Linguistica Aplicada LIVRO Versão Final - 04!04!24
Linguistica Aplicada LIVRO Versão Final - 04!04!24
Linguistica Aplicada LIVRO Versão Final - 04!04!24
LINGUÍSTICA APLICADA NA
CONTEMPORANEIDADE
Linguagem e sociedade em tempos
pandêmicos
Fortaleza, 2024
Título: Linguística Aplicada na Contemporaneidade – linguagem e sociedade em
tempos pandêmicos
Organizadores: Antonia Dilamar Araújo
Hylo Leal Pereira
Denise Teixeira Marques
Ana Karine Souza
APRESENTAÇÃO 17
1 A TENSÃO NO GÊNERO DRAMÁTICO: A ESTILÍSTICA 19
SOCIOLÓGICA NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA
Ádria Araújo Costa Godinho
Cristiane Dominiqui Vieira Burlamaqui
2 A BRANQUITUDE COMO CATEGORIA TEÓRICA E 41
ANALÍTICA NOS ESTUDOS DA LINGUAGEM: MAPEANDO
PESQUISAS REALIZADAS ENTRE 2009 e 2021
Adriana dos Santos Pereira
3 CONSTRUINDO UM MODELO DIDÁTICO PARA O ENSINO 57
DO GÊNERO CONTO
Alana Cerqueira Paranhos Capitó
Gustavo Lima
4 BILETRAMENTO E PRÁTICAS SOCIAIS: UMA 76
INVESTIGAÇÃO SOBRE MÉTODOS, MATERIAIS
DIDÁTICOS E INCLUSÃO
Aline Aquino Vieira
5 RELATOS DE EXPERIÊNCIA NO PIBIC COM O GÊNERO 92
JORNAL: A ABORDAGEM DIALÓGICA NA AULA DE
PORTUGUÊS
Aline Caroline Castro de Castro
Ana Paula Santos Pimentel
Cristiane Dominiqui Vieira Burlamaqui
6 CERZINDO TRAMAS E TEXTURAS: RESSIGNIFICAÇÕES 112
DE CONSTRUÇÃO DE SABERES E MEMÓRIAS EXPRESSOS
NOS TECIDOS ANDINOS FEITOS POR MULHERES
Ana Carla Barros Sobreira
7 ANALISANDO E DESCREVENDO RECURSOS DE CALL EM 129
LÍNGUA INGLESA NO ENSINO SUPERIOR:
OS CONTEXTOS DE PANDEMIA
Francisca Alyne Alves da Silva
Ana Cristina Cunha da Silva
8 AS EMOÇÕES COMO FORÇA MOTRIZ DE PROCESSOS 147
CRÍTICO-REFLEXIVOS NA FORMAÇÃO INICIAL E
CONTINUADA
Atos Edwin Pereira da Silva Lucas
Vitor Azevedo Abou Mourad
9 PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA DE GÊNEROS 157
ACADÊMICOS NO MESTRADO: A FORMAÇÃO DO
PROFESSOR PESQUISADOR
Beatriz Fernanda Fortunato
10 A ALTERAÇÃO DO VOLUME DE VOZ NA 179
FALA-EM-INTERAÇÃO EM SALA DE AULA
Blenda Lima dos Santos
Roberto Perobelli
11 POLITIZAÇÃO DA PANDEMIA: REPRESENTAÇÕES 199
DISCURSIVAS NAS REDES SOCIAIS
Caetano Silva Santos Viana Feitor
Cleverton Henrique Porificação dos Santos
Matheus Barreto de Mello
Cristiane Carvalho de Paula Brito
12 INTERNACIONALIZAÇÃO NO ENSINO SUPERIOR, 219
POLÍTICA LINGUÍSTICA E PLANEJAMENTO LINGUÍSTICO
Camila Hofling
Elaine Maria Santos
13 DIMENSÕES LEXICAIS DO TWITTER NAS 237
MANIFESTAÇÕES DE 7 E 12 DE SETEMBRO DE 2021
Aline A. Zamboni Milanez
Carlos Henrique Kauffmann
Maria Claudia Nunes Delfino
Patricia Pereira Bertoli
Tamires Dártora
14 INTERAÇÃO E AUTONOMIA EM MEIO REMOTO NA 256
APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA: O QUE
APRENDEMOS COM A DISTÂNCIA FÍSICA DURANTE A
PANDEMIA?
Carolina Morais Ribeiro da Silva
15 AÇÕES E IMPLEMENTAÇÕES PARA O DESEMPENHO ORAL 274
DA LÍNGUA INGLESA EM CONTEXTOS ACADÊMICOS
Catherine Echkardth da Silva
Gysele da Silva Colombo Gomes
16 RETRADUÇÃO COMO ATUALIZAÇÃO: O CASO ORWELL 288
Cynthia Beatrice Costa
17 ESTUDOS SOBRE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE 306
ÉTNICO-RACIAL NO TEMPO E NA MEMÓRIA
Daniane Rafaela de Oliveira
18 LETRAMENTO E MULTIMODALIDADE DO LIVRO 320
LITERÁRIO INFANTIL NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR
MEDIADOR DE LEITURA
Denise Giarola Maia
19 POSTURAS AFETIVAS EM CENÁRIO DE ATENDIMENTO 336
PEDAGÓGICO: A PRODUÇÃO DE AÇÕES AFILIATIVAS
APÓS A OCORRÊNCIA DO CHORO NA INTERAÇÃO
Deyvid Petri Ceccon
Carina Santos Lamas Couto
Igor José Sousa Mascarenhas
20 O QUE O(A)S PROFESSORE(A)S SENTEM QUANDO 349
ENSINAM A DISTÂNCIA? AFETIVIDADES, IDENTIDADES
E IDEOLOGIAS EM NARRATIVAS SOBRE O ENSINO DE
LÍNGUA INGLESA
Diogo Oliveira do Espírito Santo
Rafaela Santos de Souza
21 ENSINO-APRENDIZAGEM ON-LINE EM TEMPOS DE 369
COVID-19: EXPERIÊNCIAS EM AULAS DE GRADUAÇÃO E
DE PÓS-GRADUAÇÃO
Douglas Altamiro Consolo
22 ENSINO DE LÍNGUA INGLESA PARA ALUNOS COM 388
DEFICIÊNCIA VISUAL NA PERSPECTIVA DO LETRAMENTO
CRÌTICO E DOS MULTILETRAMENTOS
Douglas Edson de Araújo Ribeiro
23 NARRATIVAS DOS HOMENS INFAMES: REPRESENTAÇÕES 408
DE UM MIGRANTE CUJA VIDA NÃO “MERECIA” SER
VIVIDA
Eliane Righi de Andrade
24 CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO DA ARGUMENTAÇÃO 426
NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NUMA
CONCEPÇÃO EMANCIPADORA
Elionai Mendes Silva
Renata da Silva Posso
26 REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE INGLÊS NO EJA SOB 440
A PERSPECTIVA DA TEORIA SOCIOCULTURAL E DO
LETRAMENTO CRÍTICO
Emerson de Sousa Pereira Pessoa
Elizabete de Souza Lima
27 HATERS RACISTAS: UM ESTUDO SOB O OLHAR DA 459
ANÁLISE DE DISCURSO E DO LETRAMENTO CRÍTICO
COM ALUNOS DO ENSINO MÉDIO
Fabrício Oliveira Nobre
Beatriz Gama Rodrigues
28 A FASE DA PRÉ-TAREFA E O SEU PAPEL DENTRO DO 475
PLANEJAMENTO BASEADO EM TAREFAS
Fernanda Goulart
Rita Barbirato
29 PROTÓTIPOS DIGITAIS ERGÓDICOS SOB O VIÉS DOS 491
MULTILETRAMENTOS
Fernanda Victória Cruz Adegas
Vinicius Oliveira de Oliveira
30 A PROPOSTA DE INTERVENÇÃO SOCIAL NO GÊNERO 510
REDAÇÃO DO ENEM
Filipe Emanuel Da silva Henriques
Adilson Ribeiro de Oliveira
Denise Giarola Maia
31 EXPERIÊNCIAS INSPIRADORAS DE ENSINO E 530
APRENDIZAGEM DE INGLÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Gabriela da Cunha Barbosa Saldanha
32 GÊNERO MULTIMODAL TIRINHAS NO LIVRO DIDÁTICO 545
DE PORTUGUÊS DO 6º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL
Geane do Socorro Rovere Pinheiro
Fernanda Rocha Bonfim
33 LETRAMENTOS E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: 564
ARTEFATO MULTIMODAL NO CONTEXTO DO ENSINO
EMERGENCIAL REMOTO
Ilza Léia Ramos Arouche
34 A METHODOLOGICAL PATHWAY TOWARDS LANGUAGE 584
STUDY IN DOUGLAS BIBER AND KEN HYLAND’S
ACADEMIC REGISTERS
Janailton Mick Vitor da Silva
Deise Prina Dutra
35 BUILDING LANGUAGE STYLE THROUGH COLLOCATIONS 597
AND STANCE MARKERS: A CASE STUDY IN APPLIED
LINGUISTICS ARTICLES
Janailton Mick Vitor da Silva
Deise Prina Dutra
36 O DESENVOLVIMENTO DO INGLÊS POR CRIANÇAS: PARA 617
ALÉM DO LINGUÍSTICO
Joceli Rocha Lima
Felipe Flores Kupske
37 CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO EM FAIXAS DE PROFICIÊNCIA 637
NA PRODUÇÃO ESCRITA DE PROFESSORES DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA
José Ricardo de Oliveira Cunha
38 OS VÍDEOS CURTOS DAS REDES SOCIAIS IMPACTANDO 657
O APRENDIZADO DO PROCESSO ANAFÓRICO EM LIBRAS
NO PERÍODO PANDÊMICO
Josue Shimabuko da Silveira Júnior
39 EM BUSCA DE UM NOVO MODELO DE MATERIAL 672
DIGITAL: O PERCURSO GAMER
Juliana Vegas Chinaglia
40 ORALIDADE NA EDUCAÇÃO BÁSICA PARA OS ANOS 693
INICIAIS: ENTRE OS PCN E A BNCC
Leandro de Amaro Rodrigues
Maíra Sueco Maegava Córdula
41 ANÁLISE SEMIÓTICA SOCIAL E MULTIMODAL DAS 716
OBRAS DA “ESTANTE DIGITAL” DO PROGRAMA “LEIA
PARA UMA CRIANÇA”
Letícia Stefane Cunha Castro
Denise Giarola Maia
42 INTERSECÇÃO ENTRE RAÇA E GÊNERO NA ATUAÇÃO 737
DAS TRADUTORAS E INTÉRPRETES DE LIBRAS/LÍNGUA
PORTUGUESA NEGRAS
Luana Isabel Gonçalves de Lima
Kassandra da Silva Muniz
43 LEITURA E ESCRITA NA CULTURA ACADÊMICA: AS 756
EXPERIÊNCIAS DO PROJETO EXTENSIONISTA LPT
ACADÊMICO
Luanne Beatriz Fialho de Carvalho
Guilherme Reis de Souza Silva Ferreira
José Ribamar Lopes Batista Júnior
44 O ISF-INGLÊS E A INTERNACIONALIZAÇÃO EM MEIO AO 768
ENSINO REMOTO NA UFS
Lucas Natan Alves dos Santos
Rodrigo Belfort Gomes
45 O LUGAR DAS PRÁTICAS LETRADAS DE ARGUMENTAÇÃO 784
NA BNCC: CONTRADIÇÕES E POTENCIALIDADES
Luciano Novaes Vidon
46 AVALIAÇÃO EM LEITURA ENQUANTO INSTRUMENTO DE 805
POLÍTICA LINGUÍSTICA: REFLEXÕES NO ÂMBITO DO
ENSINO FUNDAMENTAL
Marcela Moura Torres Paim
Wagner Barros Teixeira
47 AS INTERSECCIONALIDADES E(M) ETHÉ DE VIRILIDADE: 820
UMA ANÁLISE DISCURSIVA DE DUAS CENAS DA
PROSTITUIÇÃO MASCULINA BRASILEIRA
Marcos da Silva Cruz
48 PRÁTICAS POLÍTICAS EMERGENTES DE 841
RESSIGNIFICAÇÃO DA NEGRITUDE - UM ESTUDO SOBRE
PERFORMATIVIDADE A PARTIR DAS LETRAS DE EMICIDA
Maria Clara Schaeffer de Souza
49 REFLEXÕES SOBRE O PORTUGUÊS FALADO POR 859
POVOS INDÍGENAS: CONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA
APLICADA
Maria Gorete Neto
50 RESSIGNIFICAÇÃO E RESISTÊNCIA NO SINTAGMA 873
“DISTANCIAMENTO SOCIAL”: UMA ANÁLISE DISCURSIVA
SOBRE A LUTA PELOS SENTIDOS EM TEMPOS DE
COVID-19 NO BRASIL
Mariana Jantasch de Souza
Naiara Souza da Silva
51 UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO DO SOM [ɫ] EM FALAS 887
DE LICENCIANDOS EM LETRAS: IMPLICAÇÕES PARA O
TESTE ORAL DO EPPLE E PARA A PROFICIÊNCIA ORAL
DO PROFESSOR DE LÍNGUA INGLESA NO CONTEXTO
BRASILEIRO
Mariana Melo Cialdini
52 PRÁTICAS DE LINGUAGEM DOS ESTUDANTES DE 902
PEDAGOGIA EM AULAS VIRTUAIS
Mário Ribeiro Morais
53 EXPERIÊNCIAS LEITORAS DE GRADUANDOS DE 926
CIÊNCIAS SOCIAIS
Miriam Martinez Guerra
54 A CONSTRUÇÃO DE MURAIS DIGITAIS EM PRÁTICAS DE 945
LEITURA DE “QUARTO DE DESPEJO”: UMA ANÁLISE NA
PERSPECTIVA INTERCULTURAL E DECOLONIAL À LUZ
DOS MULTILETRAMENTOS
Naiara Chaves de Carvalho
Layse Oliveira Ferreira Marques
55 “E SE FOSSE VOCÊ?”: UMA ANÁLISE DE REPRESENTAÇÕES 965
IMAGÉTICAS SOBRE IMIGRAÇÃO À LUZ DA
MULTIMODALIDADE E DOS MULTILETRAMENTOS
Naiara Gomes Lamarão
56 OS CAMINHOS DE UM CONCEITO ACADÊMICO: O 980
MARCO LEGAL DOS MULTILETRAMENTOS NOS PLANOS
NORMATIVOS E NAS PRÁTICAS DISCURSIVAS DE
EXTENSÃO ACADÊMICA NO BRASIL
Patrícia Pinho Andrade
57 DIFICULDADES, POSSIBILIDADES E REFLEXÕES DE UMA 995
PROFESSORA DE INGLÊS ACERCA DO ENSINO REMOTO
EMERGENCIAL NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Raiane F. Sombra Pires de Campos
58 VENDO O MUNDO ATRAVÉS DO “OLHAR DE SARINHA”: 1009
UM RELATO DE EXPERIÊNCIA DE UMA PROFESSORA DE
INGLÊS
Raquel Siqueira Buonocore
Cyntia Bailer
59 LETRAMENTO IDEOLÓGICO E AÇÃO DIALÓGICA EM 1021
CÍRCULO DE LEITURA NO ENSINO BÁSICO
Reinaldo da Silva Kreppke
60 LETRAMENTO E ENSINO DA ARGUMENTAÇÃO: UMA 1042
EXPERIÊNCIA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Renata da Silva Posso
Isabel Cristina Michelon de Azevedo
61 DO PROGRAMA ISF À REDE ISF: ENSINO, 1061
INTERNACIONALIZAÇÃO E FORMAÇÃO DE
PROFESSORES NO NUCLI-UFS DE INGLÊS
Rodrigo Belfort Gomes
Elaine Maria Santos
62 IDENTIDADE FRACTALIZADA DE DOCENTES DE 1075
LÍNGUAS EM FORMAÇÃO: UM RECORTE EPISTÊMICO-
METODOLÓGICO
Rosyanne Louise Autran Lourenço
63 LEITURA E LEITOR COMPETENTE: SIGNIFICADOS 1089
REPRESENTACIONAIS ATRIBUÍDOS POR ESTUDANTES
BRASILEIROS
Rosyanne Louise Autran Lourenço
Edgleuba de Carvalho Queiroz de Andrade
64 A LEITURA-ESCRITA PARA O PROJETO DE PESQUISA: 1103
NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS DE MESTRANDAS
Samanta Henriques Pinto
Yasmin Pereira de Oliveira
Jéssica do Nascimento Rodrigues
65 REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA 1119
O ENSINO E APRENDIZAGEM DE INGLÊS NO PERÍODO
PRÉ E PÓS-PANDEMIA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
Sandra Mari Kaneko-Marques
66 STORYTELLING E GAMIFICAÇÃO: RELATO DE 1137
UMA EXPERIÊNCIA NOS ANOS FINAIS DO ENSINO
FUNDAMENTAL
Tatiana Ramalho
67 LETRAMENTOS CRÍTICOS NA ARENA PEDAGÓGICA 1151
DE INGLÊS PARA FINS ACADÊMICOS: NOTAS SOBRE
UM MATERIAL DIDÁTICO DO CURSO INGLÊS PARA
GRADUANDOS (UFRJ)
Thais de Melo Sampaio
Gabriel Lucas Martins
Matheus Lage Nogueira da Silva
68 O MATERIAL DIDÁTICO DIGITAL EM LÍNGUA 1174
ESPANHOLA COMO LA COMO VIÉS PARA A FORMAÇÃO
LINGUÍSTICA DOCENTE
Valéria Jane Siqueira Loureiro
69 (DES)CONSTRUINDO PRÍNCIPES E PRINCESAS: A 1192
LEITURA MULTIMODAL DE TEXTOS MULTISSEMIÓTICOS
SOB UMA PERSPECTIVA CRÍTICA DE ENSINO DE LÌNGUA
INGLESA
Veronica Pereira Coutinho Constanty
Maura Bernardon
APRESEN TAÇ Ã O
17
LA, afetos e emoções em LA, acessibilidade em LA, materiais didáticos de
línguas, aquisição de linguagem, trabalho docente em LA, saúde e LA, e
estudos da periferia e LA. Dessa forma, os artigos deste volume, inseridos
na LA Indisciplinar, tratam de questões atuais vinculadas à linguagem
sempre orientadas para a prática social situada, em que o fazer científico
compromete-se com as questões sociais.
Convidamos, portanto, os leitores a apreciarem as pesquisas cons-
tantes neste rico volume para conhecerem as temáticas, os novos enfo-
ques e metodologias que envolvem o ensino e aprendizagem de línguas,
bem como as demais pesquisas na área.
18
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
ABSTRACT: We present here the results of the research carried out during the
Institutional Scientific Initiation Scholarship Program (ISISP), with students
from the 6th year of elementary school, the finalyears of a public school in the
city of Belém, State of Pará, the goal of the proposed activities was to explore
stylistic aspects of the dramatic text in Portuguese Language classes. As a
19
theoretical-methodological benchmark, we opted for the dialogic approach to
discourse, specifically the reflections of Bakhtin (1992; 2013) and Voloshinov
(2019) about the conceptions of discourse genre and sociological stylistics.
The participatory research, constituted by the initial observation and the
didactic-pedagogical intervention, turned to the students’ reading and textual
production. The activities developed took place, initially, through reading
and comparison between discursive genres incirculation in the artistic-literary
field; in the next stage, it focused on the stylistic aspects that converged and
distinguished narrative texts from dramatic texts so that, in the end, the
students produced a small adaptation from the narrative to the dramatic genre.
The comparative analysis between the different discursive genres, based on
a sociological stylistics, raised the need to explore the inseparability between
form, style and content in the production of meaning with language in the
literary sphere. The answers given by the students at each stage of the didactic-
pedagogical intervention showed writing styles based on different genres and
their ways of dialoguing with reality for the production of content, and the
perception of their interlocutors and the context around themselves for the
textual composition.
KEYWORDS: Dramatic genre; Sociological stylistic; Portuguese teaching;
ISISP.
Introdução
Apresentamos aqui os resultados de atividades didáticas realizadas
durante o projeto PIBIC1, desenvolvido com alunos do 6º ano do en-
sino fundamental anos finais, com o objetivo de trabalhar os aspectos
estilísticos em textos teatrais, que compartilham comumente com o
narrativo, durante as aulas de Língua Portuguesa (LP).
Os desafios enfrentados por professores e estudantes durante a pan-
demia da Covid 19, sobretudo nas escolas públicas brasileiras, tornaram
urgente a reflexão sobre como seria o retorno das atividades presenciais,
1
Projeto PIBIC “Ler e escrever nas escolas de Belém: abordagem dialógica da
linguagem no entrelugar das margens”, orientado pela profa. Dra. Cristiane Do-
miniqui Vieira Burlamaqui, desenvolvido no âmbito da Universidade do Estado
do Pará (UEPA), com apoio financeiro da Fundação Amazônia de Amparo a
Estudos e Pesquisas (FAPESPA), aprovado no Edital nº 020/2021-UEPA.
20
após um ano e meio de ensino remoto em que a grande maioria dos
alunos não tinha acesso às tecnologias digitais e o trabalho dos profes-
sores acabaram limitando-se aos cadernos de conteúdos, atividades e às
interações pelo aplicativo WhatsApp. Na escola em que foi desenvolvi-
do o projeto, foram sendo detectadas lacunas na formação escolar dos
estudantes, em especial no processo de aprendizagem da leitura e da
produção escrita.
Em uma turma do 6º ano do ensino fundamental anos finais, depa-
ramo-nos com estudantes com sérios déficits de leitura e da escrita, com
a escola pública em condições precárias e o livro didático como único
recurso às aulas de Língua Portuguesa. O cenário que as bolsistas e as
voluntárias do projeto PIBIC encontraram precisava de atitudes reflexi-
vas e estratégias pedagógicas que envolvessem os estudantes dialogando
sobre questões de seu interesse e, ainda, a possibilidade de fazê-los par-
ticipar das atividades de forma mais ativa.
O texto narrativo tem como característica um compilado de pro-
priedades de naturezas diversas que exigem do leitor restituir as relações
entre as formas do gênero, a materialidade linguística e o conteúdo na
produção dos sentidos associados à vida, isto é, aos aspectos extralin-
guísticos. Um diálogo que se estende sobre a cultura como fenômeno
sócio-histórico e a linguagem como forma material produto da intera-
ção social (VOLÓCHINOV, 2019 [1926]).
Viola Spolin (1979) e Garcia e Pires (2021) problematizam a in-
serção da linguagem teatral no ambiente escolar, apresentando meto-
dologias e orientações teóricas que dão corpo às argumentações sobre a
linguagem dramática e o teatro no ambiente escolar como meio de dar
vivacidade ao texto e envolver os estudantes em jogos dramáticos.
Diante de tais proposições, emergiu a questão desse estudo: como
poderia o trabalho com o gênero dramático aproximar arte e vida nas
aulas de português?
A fim de expor o percurso de investigação, este estudo se organizou
em cinco seções.A primeira seção, intitulada O gênero dramático na esco-
la: a linguagem dramática e o ensinode português, apresenta os aspectos do
21
gênero dramático e do teatro como recursos no ensino-aprendizado de
língua portuguesa. Na segunda seção, Estilística sociológica e gênero dis-
cursivo no ensino de língua materna, discorre-se sobre dois conceitos basi-
lares da teoria dialógica que fundamentam teórico-metodologicamente
esse estudo. A terceira seção, A experimentação da Sequência Didática
como metodologia, mostra os aspectos metodológicos da pesquisa de
campo, o lócus, os sujeitos que participaram da pesquisa e a sequência
didáticausada na organização das atividades e na produção escrita dos es-
tudantes. A quarta parte, A produção escrita dos estudantes, discorre sobre
os aspectos linguísticos-discursivos da escritados estudantes do 6° ano.
Por fim, nas Considerações Finais, retoma-se às ponderações apre-
sentadas ao longo das seções a fim de construir uma reflexão sobre o
que os gêneros narrativo e dramático podem proporcionar ao ensino de
Língua Portuguesa.
22
O gênero dramático, surgido no século VI a.C, reapresenta os mo-
dos de vida, os interesses de grupos em disputa, os costumes, as tensões
sociais. Trata-se do registro das manifestações da vida cotidiana como
constitutiva da arte. Dessa forma, a arte teatral, materializada no tex-
to dramático, é condição essencial para a expressão em sua plenitude
(GOUVEIA; DE SOUZA; DE SOUZA, 2021). Portanto, o gênero
dramático caracteriza-se pela reunião de particularidades que dialo-
gam com diversos âmbitos de ordem individual esocial.
Para Martins e Barreiros (2008), o estudo do teatro serve como
estímulo à formação de leitores, auxiliando no desenvolvimento da ca-
pacidade crítica e na proficiência de leitura dos estudantes. Em vista
disso, os pesquisadores propõem o Folhas, um projeto no qual questio-
namentos focam em jogos teatrais, que promovem as práticas de leitura,
escrita e oralidade entre os alunos.
De acordo com Costa (2013), o trabalho com a linguagem do gê-
nero dramático pode ser articulado com outros ângulos dos estudos
linguísticos, tais como os gêneros textuais em geral, a análise linguística
e a intertextualidade, através da adaptação de textos narrativos parao te-
atro. A autora também aborda a avaliação esperada do professor, focada
no processo e não no produto isoladamente, possibilitando observar as
escolhas linguísticas e as estratégias sociodiscursivas empregadas pelos
estudantes em sua atividade de produção de sentidos coma linguagem.
No estudo realizado por Garcia e Pires (2021), as autoras propu-
seram a construção de material didático, a partir da produção de uma
sequência didática. Apoiadas na reflexão sobre o gênero crítica de teatro
e na conscientização da linguística crítica, o estudo focou na gramática,
especialmente, nos aspectos coesivo, avaliativo-argumentativo de subs-
tantivos e adjetivos. Dessa maneira, as autoras sustentam que com esse
material pode-se explorar outros aspectos linguísticos tais como o léxico
e a sintaxe.
O gênero dramático e o teatro nas escolas têm tido resultados e
divulgação que proporcionam reinscrever as práticas escolares a par-
tir de metodologias interativas e interdisciplinares, as quais emergem
23
do diálogo entre áreas do conhecimento e campos da atividade social,
como a Pedagogia do teatro.
Ainda assim, com este levantamento, observou-se um número re-
duzido de pesquisas desenvolvidas para o ensino de LP e, sobretudo,
para as séries do Ensino Fundamental. Isso pode ser compreendido
como o desconhecimento das possibilidades do emprego do gênero
dramático em sala de aula ou, ainda, a falta de divulgação dos trabalhos
desenvolvidos por professores com o gênero dramático e o teatro nas
aulas de português.
24
limite verbal da palavra. De acordo com Volóchinov (2019[1926], p.
123) “o falante entra em contato com os ouvintes justamente por meio
da entonação: a entonação é social [...]”. Em vista disso, a metáfora
entonacional - que trabalha com o subentendido, isto é, com aquilo
que não é dito, mas apresenta conhecimentos compartilhados entre o
emissor e interlocutor - e o gesto ganham forma, já que expressam não
apenas o estado emocional ou passivo do falante, mas sempre a relação
viva e energética com o mundo exterior.
Diante disso, toda palavra enunciada torna-se a expressão e o pro-
duto da interação social entre o falante, o ouvinte e aquele (aquilo) sobre
quem (ou sobre o que) eles falam. O sentido da palavra só é determi-
nado a partir da avaliação que é expressa por meio da valoração social.
Sendo assim, a palavra é como um quebra-cabeça que vai criando vida
no caminhar da comunicação social, realizada e fixada no material da
forma artística. Issoimplica nas escolhas estilísticas que o sujeito faz no
seu discurso, uma vez que são resultado de experiências de linguagem
em situações de interação, configurando, assim, a estilística sociológica.
25
Bakhtin (2013) também defende a importância da articulação en-
tre a estilística e a gramática, partindo de leituras e análises de textos.
O autor acredita que “toda forma gramatical é, ao mesmo tempo, um
meio de representação. Por isso pode e deve ser analisada, esclarecida e
avaliada de uma perspectiva estilística” (BAKHTIN, 2013, p. 24). A
proposta bakhtiniana considera o estudo dos elementos da estrutura
enunciativa (movimentação da palavra dita entre realidades), interes-
sando-se pelo estilo - manifestação não só individual, mas também que
considera a visão do autor/leitor - e seus componentes (expressividade
e dramaticidade).
Em outras palavras, o estilo está intimamente ligado ao enunciado,
que por sua vez trabalha com os gêneros discursivos, logo, a palavra é
determinada não só pela relação com o objeto, como também pelo esti-
lo do outro, sendo avaliada pelo mundo social. Nesse sentido, ofalante
seleciona a palavra que mais cumpre com as finalidades comunicativas,
apropriada ao enunciado e descarta outras que não convém à situação
da escolha, caracterizando seu estilo.
26
Com base na perspectiva dialógica da linguagem concebida por
Bakhtin e o Círculo, pode-se identificar possíveis articulações entre os
conceitos acima apresentados e as práticas escolares. No que tange à
leitura, é apresentado ao aluno o enunciado poético, a entonação e a
metáfora entonacional. No que concerne à produção textual, o estu-
dante já estabelece uma relação entre seu arcabouço sociocultural com
as opções estilísticas recém-chegadas pela leitura do texto trazido pelo
professor, além de não excluir o trabalho com os elementos gramaticais
da língua. Tanto na produção de texto quanto na prática oral, o gesto de
expressividade se torna importante, uma vez que modela o estilo único e
próprio do aluno, traduzindo o jeito que ele enxerga o mundo.
Desse modo, percebe-se que cada prática explora diferentes habi-
lidades no desenvolvimento do discente. Com isso, os gêneros textuais
devem ser trabalhados em sala de aula numa relação interativa com o
aluno. Sendo assim, torna-se um meio da prática didático-pedagógi-
ca que visa capacitar o estudante no processo de desenvolvimento da
leitura, escrita e oralidade (ROCHA, 2020). Dessa maneira, o texto
aparece como aliado no repertório estilístico do aluno, na interação so-
ciodiscursiva, na produção de sentidos e no processo de ensino-apren-
dizagem da Língua Portuguesa de forma geral.
27
escritos, a fim de colaborar com o processo de ensino-aprendizagem dos
gêneros textuais e discursivos em sala de aula.
Para esses autores, é necessário que haja, por parte do professor,
uma análise dos textos que apresentará para a turma, visto que pre-
cisa entender “a função social, o contexto de leitura e produção, bem
como a estrutura organizacional e os aspectos linguísticos do gênero a
ser trabalhado’’ (GARCIA; PIRES, 2021, p. 278) para atender o grau
de escolaridade, a situação e as necessidades dos estudantes. Nesse
sentido, Dolz, Noverraz e Scheneuwly (2004) fazem um esquema,
dividido a SD em quatro fases, desde a produção inicial até a final, que
serão descritas adiante e como foram utilizadas neste trabalho.
De acordo com a orientação dos autores acima, a primeira fase re-
fere-se à apresentação da situação, em que se expõe o objetivo do projeto
da produção de um determinado gênero, levando em consideração as
condições de produção (para que se destina, a finalidade, qual a função
social, etc.).
Imagem 1: Apresentação da situação
Fonte: autoral.
28
Nesse momento, explanou-se para os alunos a proposta de se ex-
plorar o gênero dramático e discutir suas características e finalidades
na vida social, utilizando diferentes textos narrativos - e outros gêneros
textuais - na intenção de compreender e reconhecer os elementos da
narrativa e quais deles fazem diálogo com os traços do texto teatral,
além de que, ao final da SD, fossem capazes de produzir uma pequena
adaptação de um texto narrativo para um texto dramático.
Fonte: autoral.
29
os contos, entre outros (como mostrado na imagem acima). Dessa
maneira, todos os textos que iam sendo lidos em sala de aula eram
analisados pelos discentes por meio de perguntas que traziam reflexões
linguístico-estilísticas, para que os alunos reconhecessem os elementos
narrativos já explicados nas aulas. Essa etapa é importante, pois possibi-
lita não só que o professor conheça mais a realidade do aluno, como
também o julgamento crítico - baseado nas experiências sociais dos
estudantes com os gêneros.
Imagem 3: Percurso didático
Fonte: autoral.
30
mesma finalidade, etc. Com todas essas indagações, foi possível iden-
tificar os desafios linguísticos e gramaticais em comum enfrentados
pela turma, sendo o pontapé inicial para a (re)formulação das futuras
atividades.
Em seguida, têm-se os módulos ou oficinas como terceira fase. Essa
etapa se foca nas atividades de intervenção em relação aos problemas
detectados na produção inicial enfatizando as práticas linguísticas de
leitura, produção escrita e análise da língua. Em vista disso, recorreu-se
a outros textos narrativos como trechos do Auto da Compadecida,
de Ariano Suassuna, e do O Menino Narigudo, adaptação de Walcyr
Carrasco da obra Cyrano deBergerac.
Diante disso, os alunos tiveram o primeiro contato com o gênero
dramático nas aulas, identificando os traços em comum entre a narra-
ção e o teatro e, ao mesmo tempo, percebendo suas diferenças. Assim,
com as respostas das perguntas feitas em relação aos textos, pôde-se não
só orientá-los melhor sobre a questão gramatical, tomando como base
os seus próprios desvios (análise linguística), mas também discutir acer-
ca desses traços estilísticos dos textos narrativos e teatrais.
Fonte: autoral.
31
A última fase diz respeito à produção final solicitada pelo professor
a partir de uma proposta bem definida e que proporcionou aos estu-
dantes a prática de todos os conhecimentosadquiridos e trabalhados ao
longo das aulas. Desse modo, os alunos ficaram encarregados de pro-
duzir uma adaptação de um trecho da lenda Mani: a lenda mandioca,
que teve como fonte a Revista eletrônica Xapuri, para o texto dramático
com seus respectivos elementos estilísticos.
A partir disso, foram coletadas 14 respostas e produções das duas
últimas atividades da turma que possuía 36 alunos. No entanto, foram
selecionadas três respostas dadas às questões do terceiro módulo e a
produção final de três alunos, haja vista que somente esses estudantes
realizaram as duas atividades - o restante executou somente uma ou ne-
nhuma atividade proposta. A seção seguinte apresentará a análise com-
parativa dessas materialidades discursivas.
32
houveram perguntas acerca datemática, mas também como conseguiam
transmitir seus conhecimentos de mundo e reflexões, levando em conta
a indissociabilidade da forma e do conteúdo na produção de sentidos.
Sendo assim, dessas oito, foram selecionadas duas questões (a terceira
e a oitava).
A terceira questão exigia a identificação da rubrica teatral (orienta-
ção do que o ator deve fazer na cena), o reconhecimento de um elemen-
to que já foi estudado. Os alunos A, B e C responderam:
33
Já o aluno C, identificou e copiou dois casos em que havia a ma-
nifestação do componente textual teatral em questão. É válido ressaltar
que esse estudante não só transcreveu somente a orientação da ação
que a rubrica fornece, como também se preocupou em trazer o recurso
da pontuação do parênteses visando argumentar indiretamente que se
tratava desse elemento teatral e não de qualquer outro, apontando para
a indissociabilidade da forma e do conteúdo.
Na oitava questão, foi explorada a inferência e a compreensão glo-
bal do texto, já queos estudantes necessitavam realizar uma análise con-
textual para expor concepções acerca do questionamento: “Você acha
mais importante a beleza exterior ou a interior? Por quê?”. Obteve-se
como resposta dos alunos:
34
pontuação adequada, mas em compensação utiliza o conectivo aditivo
“e” como uma acumulativa para solidificar e justificar o motivo da sua
resposta (por dentro e gentil carinhoso(a) engraçado(a) e faz coisas boas e
suas atitudes valiosas.)
Já o aluno B escolheu manter-se “neutro”, haja vista que não deixa
indícios explícitos de sua voz enunciadora, sua entonação assume um
sentido (valor) de imparcialidade, dando a impressão de que sua posi-
ção é a do senso comum. Por fim, o aluno C, assim como a aluna A,
posiciona-se claramente como sujeito do discurso por meio do prono-
me “eu” e, ainda, reafirma sua opinião no verbo “acho”. Diferentemente
dos outros estudantes, ele optou por recorrer à conjunção explicativa
“porque” - mesmo não estando adequado à norma da língua - vi-
sando deixar claro o seu posicionamento. É possível até observar a
criação de uma aliteração pela repetição da consoante “p” (Porquê uma
Pessoa Pode ser feia Por fora mais Pode ser bonita Por dentro).
Diante disso, a primeira atividade explorou os recursos estilísti-
cos do texto teatral. São esses os elementos formais que o texto dra-
mático utiliza para aproximar o leitor da realidade e dos heróis nas
obras. Todavia, não se pode esquecer que, de acordo com Bakhtin e
Volóchinov, forma e conteúdo são indissociáveis na produção do sen-
tido. Em vista disso, essaatividade também colaborou em revelar como
o gênero teatral dialoga com as questões humanas - sociais, culturais e
subjetivas - fazendo com que os estudantes se identificassem com o que
estava sendo tematizado no texto.
35
Imagem 5: Produção escrita e transcrição da adaptação produzida pelos alunos
36
Aluno C, 11 anos: Joara (Mãe): (vendo a
beleza de sua Pequena
indiazinha) - Veja como ela
e muito bonita, Pajé.
37
O aluno B trouxe o nome de três personagens, mas só dois conver-
saram. No entanto, não há indicação de quem são eles, como ocorreu
na produção da aluna A que diferenciou cada um (mãe Inara, suben-
tendido pela fala que é a mãe de Mani, e pajé). Percebe-se também que
não existem muitas marcações teatrais. Por último, o aluno C traba-
lhou com quatro personagens, devidamente especificados, presentes
na cena, porém só três dialogaram. Além disso, manifestou as rubricas
e as pontuações no corpo do texto, somado ao uso de diminutivos
como “indiazinha” e “filinha” para demonstrar maior expressividade
de afeto e, assim, proporcionar vivacidade à produção textual e ao
receptor.
Desse modo, os estudantes elaboraram suas produções textuais
finais não só com base nas aulas sobre o estudo do gênero dramáti-
co, como também nas suas vivências extraclasse. Por meio dessa última
etapa da SD, contatou-se que os alunos souberam adaptar sucintamen-
te um trecho de um texto narrativo para o dramático, usando os
recursos que o gênero teatral oferece e relendo a lenda através de suas
escolhas estilísticas para inserir o leitor na situação contextual e, assim,
assemelhar a dramaturgia ao cotidiano da vida, configurando a estilís-
tica sociológica.
Considerações Finais
Com base nas experiências que outros autores deixaram ao traba-
lhar com o gênero dramático em sala de aula, na associação com distin-
tos gêneros textuais e discursivos, na utilização da sequência didática na
abordagem do estudo do texto teatral, partindo dos traços compartilha-
dos com o narrativo e na aplicação da mesma, pretendeu-se responder
o que aproxima essa esfera artística-literária do aluno no ensino de LP,
partindo da perspectiva estilística sociológica de Bakhtin e Volóchinov.
Em vista disso, recorreu-se à tensão do gênero dramático, criada
a partir da comparação entre diversos outros gêneros trabalhados com
os estudantes do 6° ano, para no final produzir uma adaptação do tex-
to narrativo para o teatral e averiguar como os alunos absorveram as
38
informações a ponto de fazer uma releitura subjetiva do que compreen-
deram em conjunto com a sua bagagem sociocultural.
A partir da realização das atividades propostas pela SD, pôde-se
identificar as dificuldades linguísticas e trabalhá-las contextualmente
em sala de aula. Ademais, serviram, ainda, para verificar se os estudantes
haviam entendido a estrutura e os recursos do gênero dramático, além
de possibilitar a análise de como manifestaram seus posicionamentos
linguísticamente (escolhas estilísticas) e socialmente. Dessa maneira,
percebeu-se o desenvolvimento da atitude responsiva dos estudantes na
leitura, na compreensão e na produção escrita.
Portanto, os estudantes ao responderem os questionamentos e ao
produzirem as adaptações, levaram em conta a situação/contexto extra-
verbal, a entonação valorativa de cada palavra, que foi escolhida estra-
tegicamente, a fim de causar determinado efeito pretendido poreles, ou
seja, expuseram seu próprio estilo, por meio da seleção de palavras, de
pontuações, defiguras de linguagem, entre outros recursos apresentados
ao longo do artigo, o que acaba trazendo produtividade ao texto, na
medida em que cada marcação dessa assume sentido no texto, viabiliza
o leitor a entonar valorativamente, aproximando a forma da arte dra-
mática do conteúdo do cotidiano social.
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. 2. ed. Imprensa Nacional –. Casa da
Moeda. 1990. Série Universitária. Clássicos de Filosofia.
39
DIONÍSIO, M. T. A questão do valor na linguagem para (o círculo de) Bakhtin.
PercursosLinguísticos. Vitória (ES). v. 3, nº 1, p. 172-182, 2011.
FIORIN, J. L. Da necessidade da distinção entre texto e discurso. In: BRAIT, B.; SILVA,
C. S. S. (Orga.) Texto ou Discurso? São Paulo: Contexto, 2012.
40
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
41
more especially in the field of Applied Linguistics, in which is possible to
investigate whiteness as a theoretical and/or analytical category. For this, I take
the CAPES Catalog of Dissertations and Theses as a basis for the identification
of works developed in Brazilian graduate programs from the perspective of
racial relations, focusing on the performances of the white person and their
social privileges. With a descriptive-interpretative character, we have based
our study on theoretical-methodological considerations by Moita Lopes
(2013), Fabrício (2006), Nascimento (2019) and Bonfim (2021) on language
and on assumptions by Fanon (2008 [1952]), Guerreiro Ramos (1957),
Schucman (2012), Cardoso (2014), Bento (2016) and Piza (2016) on racial
issues. Although subtle advances can already be identified in academic spaces
regarding the discussed theme, the results show that there is still a long way to
go to whiten the theme of research in language studies and stop the escalation
of oppressions experienced by the blackness-theme.
KEYWORDS: Whiteness; Language; Race Relations.
1. Considerações iniciais
Como mulher branca, moradora da periferia, docente de Língua
Portuguesa da escola pública e doutoranda em Linguística Aplicada em
uma instituição também pública, compreendo que minhas escolhas não
se descolam do mundo social em que estou inserida, nem das indaga-
ções e responsabilidades que circundam os lugares de minha existência.
Portanto, como professora-pesquisadora, creio na necessidade urgen-
te de investigar, visibilizar e questionar temáticas diversas, em especial
àquelas capazes de criar e manter bolhas sociais legitimadoras de de-
terminados conhecimentos/corpos por meio de estruturas hegemoni-
camente coloniais que, como aponta Kilomba (2019), definem quem
sabe, quais saberes são validados, quem pode saber, o que se pode saber
e em quais espaços se pode adquirir tais saberes.
A branquitude2 e seus pactos, por exemplo, é um desses temas
que carecem de problematização e transformação, inclusive para mim
2
Destaco que as leituras sobre branquitude, iniciadas em 2021, foram fortemente
influenciadas pelo professor Marco Bonfim (UECE) e pela docente Geisa Mat-
tos (UFC). Gratidão!
42
(hoje, consciente de que racializar é um processo complexo e contínuo,
em nível ad infinitum de letramento racial crítico). Por muito tempo,
nós, pessoas brancas, dissertamos acerca de raça, racismo e questões
referentes a negras/os desconsiderando os entrelaçamentos ontológicos/
epistemológicos que privilegiam a branquitude e constroem uma at-
mosfera de superioridade intelectual em torno daqueles que detêm o
poder – geralmente homens brancos –, em distintas esferas da socieda-
de. A falácia da democracia racial e a invisibilidade de cor, enraizadas
no ideário brasileiro, violentaram (e continuam violentando) física e
simbolicamente indivíduos negros que são inferiorizados e, de modo
naturalizado, transformados em objetos de pesquisa.
Nesse sentido, realizo uma pesquisa bibliográfico-descritiva, de
caráter interpretativista, que objetiva mapear trabalhos sobre a bran-
quitude, como categoria teórica e/ou analítica, produzidos em progra-
mas de pós-graduação no Brasil, na grande área do conhecimento de
Linguística, Letras e Artes, especialmente na Linguística Aplicada. Para
isso, a perspectiva de Moita Lopes (2013), Fabrício (2006), Nascimento
(2019) e Bonfim (2021) – sobre língua/linguagem –, e os pressupostos
de Fanon (2008 [1952]), Guerreiro Ramos (1957), Schucman (2012),
Cardoso (2014), Bento (2016) e Piza (2016), – sobre relações raciais –,
são essenciais para esta pesquisa com foco na branquitude.
43
de uma branquitude que pretende ser crítica, reconheço as vantagens
que nos favorecem estruturalmente.
O posicionamento racial de universalidade que silencia corpos ne-
gros e evidencia a branquitude, entendendo esta como padrão a ser
seguido/almejado, colabora com a manutenção das desigualdades à
proporção que inviabiliza a compreensão da sociedade racista em que
vivemos. Consequentemente, os problemas são sempre delas/es (ne-
gras/os) e nunca nossos (brancas/os), visto que uma grande parcela da
população, consciente ou inconscientemente, acredita que não enxerga
cor, apenas seres humanos. Tais reverberações se materializam em prá-
ticas cotidianas por meio da linguagem e de suas multissemioses, as
quais, para além de representação e comunicação, atuam como arma
eficaz para implementar e manter relações de poder.
Nesse sentido, Kilomba (2019, p. 14, grifos do original) nos aler-
ta para o fato de que “por mais poética que possa ser, [...] através das
suas terminologias, a língua informa-nos constantemente quem é nor-
mal e quem é que pode representar a verdadeira condição humana”.
Nascimento (2019, p. 17) declara ainda que a linguagem, como um
fetiche ocidental marcado pelos ideais brancocêntricos greco-latinos, e
sua pseudoneutralidade no campo dos estudos linguísticos são vistas
como “uma marca de dominação e por onde também se dá a figu-
ra estruturante do racismo”. Assim, como professora-pesquisadora no
âmbito das linguagens e iniciante nas investigações sobre branquitude,
interessa-me averiguar se e como essas pautas ocorrem em pesquisas na
Linguística Aplicada (doravante LA).
Ressalta-se que a perspectiva que me acompanha extrapola as dis-
cussões da LA como subárea da Linguística, isto é, enveredo-me para
além de uma ciência que, em fase inicial, apresentava-se como um mo-
delo aplicacionista no processo de ensino e aprendizagem de línguas
(estrangeira e materna) e me ancoro em uma área com identidade e
foro próprio, pois vem amadurecendo e sendo reconhecida, nacional e
internacionalmente, devido à realização de pesquisas relevantes, porque
44
problematizam normas hegemônicas e se colocam abertas às novas for-
mas de produção do conhecimento. Moita Lopes (2013, p. 227) reforça
que “o estudo das relações entre linguagem e vida social, especificamen-
te, das relações entre linguagem e classe social, gênero, sexualidade, raça
etc., tem sido um grande tema [...] da LA”.
Ampliando a perspectiva (trans)(inter)disciplinar da LA, o profes-
sor-pesquisador negro Bonfim (2021, p. 165) nos convida à prática
de uma “linguística aplicada antirracista”, que “deve ser militante” na
seguinte direção:
45
(brancas/os), considerada a identidade normativa (SCHUCMAN,
2012; CARDOSO, 2014). As vantagens raciais brancas também re-
percutiram nas pesquisas do filósofo e psiquiatra martinicano negro
Fanon, em especial no livro Pele Negra, Máscaras Brancas, de 1952, o
qual apresenta um estudo clínico, sob uma visão psicológica, das mar-
cas do colonialismo na relação entre brancas/os e negras/os. Estas/es,
são mantidas/os em situação de subalternidade ou de inexistência pe-
rante a esclerose do “branco [que] quer o mundo; ele o quer só para si.
Ele se considera o senhor predestinado deste mundo” (FANON, 2008
[1952], p. 117).
Especificamente, no Brasil, o sociólogo baiano negro Guerreiro
Ramos (1957, p. 171, 172) foi pioneiro ao discutir, em A patologia
social do “branco” brasileiro, a capacidade inesgotável da minoria bran-
ca3 de escrutinar o tema negritude, com os mais diversificados pro-
pósitos em pesquisas da Antropologia e Sociologia, e de julgar, “no
plano ideológico, [...] a brancura como critério de estética social”. A
negação da população branca brasileira quanto à própria ancestralidade
negra (com a crença de pureza racial), a tendência ao branqueamento
no país (como a propensão de autodeclarações de matizes mais claras
no censo) e a associação direta de acepções negativas à cor preta (como
nas expressões ovelha negra, a coisa tá preta e mercado negro) confir-
mam tal patologia, tão bem discutida pelo autor supracitado e que, até
hoje, os noticiários recheiam nosso cotidiano com seus sintomas e suas
consequências.
No que concerne à branquitude como categoria analítica, os es-
tudos surgem, no início do século XXI, com nomes importantes dos
quais destaco: i) a psicóloga negra Cida Bento (2016, p. 25), que nos
faz refletir sobre os pactos narcísicos, isto é, os acordos implícitos (re)
construídos por “brancos de não se reconhecerem como parte absoluta-
mente essencial na permanência das desigualdades raciais no Brasil”; ii)
a psicóloga branca Edith Piza (2016), que nos leva a questionamentos
3
Minoria no sentido estatístico quando se compara, quantitativamente, a popula-
ção brasileira que se autodeclara branca à negra/parda.
46
como o que significa ser branca/o, como essa identidade é construída
e por quais motivos existem uma constante nomeação de negras/os e
uma frequente neutralidade/invisibilidade de cor da pessoa branca; iii)
o cientista social negro Lourenço Cardoso (2014, p. 11), que nos pre-
senteia com uma pesquisa na qual “Vossa Excelência, o branco”, é a
figura central a ser investigada a fim de se descobrir por que “o branco
pensa o Outro e não em si”.
Portanto, compreendo a importância de extrapolar a abordagem
unilateral analítica da população negra, pois, conforme alerta Cardoso
(2014, p. 119), o “silenciamento, a omissão, a construção da branqui-
tude como ‘não questão-acadêmica’ fortalece a identidade racial do te-
órico branco como ‘perfeição’”. Além disso, o entendimento de que a
racialização ocorre na/pela linguagem por intermédio de distintos dis-
cursos, principalmente os que legitimam privilégios materiais (alimen-
tação, moradia, educação, emprego etc.) e simbólicos (beleza, inteligên-
cia, sucesso etc.), é fundamental para a concretização de uma linguística
aplicada antirracista, como orienta Bonfim (2021).
47
Quadro 1 – Dados sobre pesquisas que abordam a categoria branquitude
48
dissertação de Simões (2009), da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, orientada pelo renomado linguista aplicado Moita Lopes
(2013, p. 238), que defende a necessidade de questionarmos a produ-
ção histórico-discursiva da masculinidade e da branquitude devido ao
apagamento e/ou à eliminação daqueles que não se adequam ao “consi-
derado natural e hegemônico”.
A fim de delimitar o material de pesquisa e chegar a um corpus com
trabalhos produzidos particularmente em programas de LA (embora
esta ainda seja considerada uma subárea da Linguística segundo a clas-
sificação da Capes), restringi a busca às áreas de concentração seguintes:
Estudos de Linguagem, Interdisciplinar em Linguística Aplicada, Letras
e Linguística. Desse modo, foram encontradas 5 dissertações e 2 teses
(ver Quadro 2).
49
Pesquisador/a Curso / Estado Objetivo geral da pesquisa
Cardes Amancio Doutorado em Estudos Analisar a imagem do sujeito negro no
(2019) de Linguagens / Minas Brasil, produzida por autores brancos
Gerais ao longo dos séculos de escravidão e
após a abolição, para a criação e ma-
nutenção do ideário colonial e a nor-
matização da opressão pelo racismo.
Leda Doutorado Interdisci- Investigar como as ideologias de raça
Boaventura plinar em Linguística comparecem em conversas sobre ra-
(2020) Aplicada / Rio de Ja- cismo entre professoras em uma escola
neiro pública do Rio de Janeiro.
Mariana Veiga Mestrado em Linguísti- Analisar os discursos produzidos por
(2021) ca / Minas Gerais estudantes de uma escola pública para
construir uma compreensão a respeito
de como esses sujeitos se posicionam
sobre vida social, direitos humanos,
racismo, branquitude e opressões.
Daniela Mestrado em Letras / Investigar de que forma, na obra Ame-
Scheifler (2021) Rio Grande do Sul ricanah, os temas da branquitude e da
supremacia branca apareciem proble-
matizados pela personagem Ifemelu
no seu percurso migratório, ao deslo-
car-se da Nigéria aos Estados Unidos
Fonte: elaboração própria com base no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes,
destaques meus.
50
de engenharia genética”: a construção discursiva da branquitude em uma
comunidade do site Orkut, de Simões (2009).
Ao analisar a fragilidade da branquitude, “referente a um modo de
ser que tornou-se naturalizado com o triunfo do projeto emancipador
modernista”, a dissertação de Simões (2009, p. 11) é pioneira nessa te-
mática na LA do Brasil. Como indivíduo negro, que só teve consciência
crítica da própria racialidade na universidade – rodeado por brancas/
os –, interessou-se pela construção do discurso das identidades sociais,
em particular da identidade branca. Para compreender melhor o objeto
de estudo do pesquisador, apresento um trecho em que, de modo au-
tobiográfico, ele nos conta um pouco das experiências corpóreo-raciais
vivenciadas.
51
Mantendo a narrativa em primeira pessoa, semelhante a “um na-
vegante [que] descreve detalhadamente sua jornada pelos mares em seu
diário de bordo” (SIMÕES, 2009, p. 16) e apoiando-se na análise crí-
tica do discurso, na semiótica social e nos estudos sobre letramentos e
sobre relações raciais no Brasil, o pesquisador mergulha em uma LA
que se faz mestiça/transgressiva a fim de analisar o modo pelo qual a
identidade racial branca foi discursivamente construída na comunidade
virtual Beleza Branca, do extinto Orkut, que há época possuía 3680 usu-
ários. Embora a descrição Comunidade destinada a todos os admiradores
da Beleza Branca, independentemente de raça, credo, religião, ideologia
etc. transmita uma aparente ideia de espaço virtual aberto a todas as
pessoas, a imagem de uma criança branca com olhos azuis e os trechos
de um texto do líder americano neonazista David Lane confirmam o
posicionamento racista da comunidade.
De natureza interpretativista e utilizando referências sobre questões
raciais, Simões (2009) analisou dados coletados entre setembro de 2008
e janeiro de 2009. Os textos apresentavam informações do/a i) perfil da
comunidade Beleza Branca, ii) perfil de uma participante branca bas-
tante ativa na comunidade e iii) discussão intitulada S.O.S engenharia
genética. Assim, por meio de teorias linguísticas e sociais, o pesquisa-
dor identificou itens lexicais, transitividade verbal, intertextualidade e
imagens que colaboraram com o objetivo pré-estabelecido. A seguir,
exponho trechos do corpus analisado (SIMÕES, 2009).
52
padre logo de manha! (p. 123).
[...] mas acho que ainda não é o momento de nos importarmos
com os negros, temos que nos importa com nós mesmo (p. 126).
[...] esses brancos que querem ser negros nada mais são que alie-
nados da mídia? a mídia que visa destruir a identidade cultural
dos povos caucasianos (p.135).
5. Considerações finais
As enormes distorções que atravessam as identidades raciais se re-
fletem tanto nos lugares de vantagens que naturalizam a vida de pessoas
brancas como padrão quanto na apuração detalhada da vida de indiví-
duos negros para discussões sobre o racismo. Como doutoranda em LA
inserida em uma linha de estudos críticos e ciente de meu pertencimen-
to ao grupo opressor, o qual não é comumente tema de pesquisas, senti
a necessidade de investigar como a categoria branquitude é explorada
em dissertações e teses de programas de pós-graduação em Linguística,
Letras e Artes.
Mapear tais pesquisas é, acima de tudo, uma possibilidade de deso-
cultar a conveniente invisibilidade de cor que permeia a sociedade bra-
sileira em todas as instâncias. Tal cegueira nos faz normalizar que bran-
cas/os ocupem indiscriminadamente os melhores postos de trabalho,
53
as escolas/faculdades mais renomadas, os bairros com maiores índices
de desenvolvimento humano, os importantes espaços publicitários, os
papéis mais representativos em filmes/novelas, entre outros.
Nessa direção, o modo como os trabalhos são desenvolvidos mostra
que, normalmente, os sujeitos se engajam em práticas discursivas situ-
adas concernentes as suas realidades, seja em ambiente virtual ou real.
Por exemplo, os mais de 3600 usuários da comunidade Beleza Branca
(SIMÕES, 2009) compartilham (em prol de engajamento) crenças e
valores de superioridade racial branca defendidos pelo regime neona-
zista, os quais rememoram o holocausto, genocídio que assassinou mi-
lhões de pessoas ao longo da Segunda Guerra Mundial.
Embora os estudos críticos sobre a branquitude aliados a uma pers-
pectiva antirracista de LA ainda sejam escassos, as discussões iniciais
levantadas neste texto nos direciona a reivindicar: i) a compreensão
de que o processo de racialização é o primeiro passo para o indivíduo
situar-se em seus lugares de fala e ação; ii) a produção séria de trabalhos
acadêmicos que deem visibilidade e credibilidade ao assunto; iii) uma
literatura consistente e atualizada que ponha em xeque as certezas de
brancas/os. Assim, de modo sincero e ético, será possível enegrecer a
vida e embranquecer o tema das pesquisas para interromper a escalada
de opressão racial.
Referências
AMÂNCIO, Cardes Monção. Biopolítica, cinema e a construção do devir-afro-pin-
dorâmico. Tese (Doutorado em Estudos de Linguagens) – Centro Federal de Educação
Tecnológica de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 349. 2019.
54
BONFIM, Marco Antonio do. Por uma Linguística Aplicada antirracista, descolonial
e militante: racismo e branquitude e seus efeitos sociais. Língu@ Nostr@, Vitória da
Conquista, v. 8, n. 1, p. 157 – 178, 2021.
FANON, Frantz. O negro e a linguagem. In: FANON, Frantz. Pele negra, máscaras
brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008 [1952], p. 33-51.
MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Gênero, sexualidade, raça em contextos de letramentos
escolares. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo da (org.). Linguística aplicada na moderni-
dade recente: festschrift para Antonieta Celani. São Paulo: Parábola, 2013, p. 227-247.
PIZA, Edith. Porta de vidro: entrada para a branquitude. In: CARONE, Iray; BENTO,
Maria Aparecida Silva (orgs). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude
e branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016, p. 60-96
55
SCHEIFLER, Daniela Severo de Souza. Diáspora e branquitude em Americanah de
Chimamanda Ngozi Adichie. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Letras,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, p. 149. 2021.
56
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
57
propose a didactic model of this specific genre; and b) create a digital repository
for wide dissemination of the didactic model of the genre. The choice of the
short story genre is due to the fact that this is a recurrent genre in textbooks,
which teachable dimensions are almost always associated with the structure of
the genre. The didactic model proposed here aims to expand these dimensions
and was prepared based on a survey of the state of the art on teaching the short
story genre and on the analysis of authentic examples of it and its variations.
KEYWORDS: Didactic model; textual genres; short story.
Introdução
A proposição de tomar os gêneros textuais como objeto de ensino-
aprendizagem está atrelada à ideia de que língua é social e, como tal,
apresenta-se em textos, orais e escritos, que circulam na sociedade, com
funções específicas e que “surgem, situam-se e integram-se funcional-
mente nas culturas em que se desenvolvem” (MARCUSCHI, 2002,
p. 20). Ao considerarmos a perspectiva de gêneros textuais como ins-
trumento para mediar o processo de ensino-aprendizagem da língua e
das marcas discursivas que a constitui, é importante que encontremos
caminhos viáveis para ensiná-los. Nessa perspectiva, os modelos didáti-
cos podem funcionar como subsídios didáticos para o aprimoramento
e simplificação do saber. Apresentado como enfoque sanar carências de
aprendizagem, o modelo didático possui duas características: 1) ele é
destinado a orientar as intervenções dos professores; e 2) apresenta as
dimensões ensináveis, com base na criação de diversas sequências didá-
ticas (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 82).
Neste artigo, propomos subsídios didático-metodológicos para a
construção de um modelo didático do gênero conto5. A escolha desse
gênero deve-se ao fato de este ser um gênero recorrente nos livros di-
dáticos, mas cujas dimensões ensináveis são quase sempre associadas à
5
Essas pesquisas, realizadas entre os anos de 2016 e 2018, analisaram as capaci-
dades de linguagem contempladas nas propostas curriculares de Caetés e Gara-
nhuns, o processo de agrupamento e progressão de gêneros e a decomposição do
gênero como objeto de ensino nos livros didáticos de língua portuguesa adotados
pelos municípios de Caetés e Garanhuns.
58
estrutura do gênero. O modelo didático aqui proposto pretende am-
pliar essas dimensões e foi elaborado com base no levantamento do es-
tado da arte sobre o ensino do gênero conto e na análise de exemplares
autênticos de tal gênero e suas variações.
Adiante, apresentaremos conceitos importantes para a sistemati-
zação e estruturação deste trabalho, bem como para que pudéssemos
caminhar em solo firme ao lado de teorias importantes para o desen-
volvimento deste estudo. Para atingirmos o objetivo desta pesquisa, nos
fundamentamos em autores como Bakhtin (2003), Bronckart (1999),
Machado e Cristovão (2006), Machado (2010), Marcuschi (2002,
2008) e Schneuwly e Dolz (2004). Os pressupostos teóricos que serão
abordados a seguir são: a noção de gênero e seu ensino; noção de mo-
delo didático; e a análise de textos através dos três níveis da arquitetura
textual propostos por Bronckart (1999). A estrutura do artigo segue
a apresentação dos procedimentos-metodológicos e, posteriormente, a
análise e resultados dos dados, finalizando com as considerações finais.
59
ensino-aprendizagem através dos gêneros textuais evita que as práticas
de linguagem tenham uma imagem fragmentária acerca da sua apro-
priação. Desse modo, os gêneros textuais são referências intermediárias
para a aprendizagem de língua, considerado como “um mega-instru-
mento” (DOLZ e SCHNEUWLY, 2004).
Ademais, segundo Marcuschi (2008, p. 173), “a vivência cultural
humana está sempre envolta em linguagem e todos os textos situam-se
nessas vivências estabilizadas simbolicamente”. Nesse sentido, podemos
observar a importância de o ensino de língua ser situado em contextos
reais da vida cotidiana.
60
elaboração. Esses autores defendem a existência de modelos intuitivos
ou implícitos e modelos explícitos ou complexos. O modelo implíci-
to funciona, segundo os autores, como “cópia e é apenas um pouco
mais desenvolvido que uma sequência didática dada” (DE PIETRO;
SCHNEUWLY, 2003, p. 18), resultado das limitadas dimensões do
gênero a ensinar. Sendo assim, é defendida, na proposta da engenharia
didática, a elaboração de modelos explícitos, os quais consideram ilimi-
tadas dimensões do gênero a ensinar e incluem as diversas variações do
gênero escolhido e, consequentemente, a produção da diversidade de
sequências didáticas (DE PIETRO; SCHNEUWLY, 2003).
Para finalizarmos esta seção, destacamos a relação entre sequência
didática e o modelo didático de gêneros. O modelo didático do gênero
tem como função organizar as características gerais sobre um determi-
nado gênero textual a ensinar. As sequências didáticas, por sua vez, se
baseiam no modelo didático e planificam as atividades e estratégias de
ensino. Esse processo foca no objetivo de levar os aprendizes a mobiliza-
rem os conhecimentos adquiridos durante a sequência para as diversas
situações comunicativas, orais ou escritas.
61
sequências. O segundo nível de análise do folhado textual, de acordo
com Bronckart (1999), é a identificação de dois mecanismos que atri-
buem aos textos uma coerência global: os mecanismos de textualização
e os mecanismos enunciativos. Conforme Bronckart (1999), no tercei-
ro nível do folhado textual, são analisadas as modalizações, estas que
fazem parte das avaliações do enunciador sobre um ou outro aspecto
do conteúdo temático abordado no texto e que podem ser divididas
em: lógicas, deônticas, pragmáticas e apreciativas. Nesse mesmo nível
do folhado textual, as vozes explicitam as instâncias que assumem ou
se responsabilizam pelo que está sendo dito e também fazem parte dos
mecanismos enunciativos (BRONCKART, 1999).
Metodologia
A coleta de dados foi desenvolvida em quatro etapas e incluiu, ini-
cialmente, uma pesquisa bibliográfica (GIL, 2010) e, em um segundo
momento, uma análise documental (LÜDKE; ANDRÉ, 2012). Assim,
o presente estudo previa, na sua etapa inicial, o resgate de dados das
fases anteriores do projeto de pesquisa, a fim de identificarmos qual
gênero era priorizado pelos currículos e coleções de livros didáticos mais
adotadas nos municípios de Caetés e Garanhuns, situados na região
do agreste meridional do Estado de Pernambuco, o que nos levou aos
gêneros conto.
Em síntese, a coleta de dados consistiu inicialmente no levanta-
mento dos estudos já disponíveis na literatura científica sobre o gênero
conto. Partimos aqui da premissa de que esses estudos nos ofereceriam
subsídios teórico-metodológicos para a construção do modelo didático
desse gênero. De posse desses dados, realizamos, na etapa seguinte, a
coleta de 10 (dez) exemplares autênticos dos gêneros em diferentes su-
portes, os quais foram analisados com base nas categorias do folhado
proposto por Bronckart (1999). Por fim, com base nos estudos pré-
vios e na análise de exemplares autênticos desses gêneros, definimos as
suas dimensões ensináveis, de modo a construir o modelo didático do
gênero (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004).
62
ANÁLISE DOS DADOS
TÍTULO/ FONTE
(de onde/quando foi retirado? Informar referência
da revista, jornal, site, etc.)
Missa do Galo – Machado A Biblioteca Virtual de Literatura. Link de acesso:
de Assis http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://
www.biblio.com.br/conteudo/MachadodeAssis/mis-
sadogalo.htm. Acesso em: 25 de abril de 2021.
Dois corpos que caem – Palavras Rabiscadas. Link de acesso: https://mscamp.
João Silvério Trevisan wordpress.com/2008/11/27/dois-corpos-que-caem-
-joao-silverio-trevisan/. Acesso em: 25 de abril de 2021.
63
TÍTULO/ FONTE
(de onde/quando foi retirado? Informar referência
da revista, jornal, site, etc.)
O Gato Vaidoso – Montei- Conto Brasileiro. Link de acesso: https://contobrasi-
ro Lobato leiro.com.br/o-gato-vaidoso-conto-de-monteiro-lo-
bato/. Acesso em: 25 de abril de 2021.
A caçada – Lygia Fagundes Conto Brasileiro. Link de acesso: https://contobra-
Telles sileiro.com.br/a-cacada-conto-de-lygia-fagundes-te-
lles/. Acesso em: 25 de abril de 2021.
O homem que sabia javanês UNAMA. Acesso em: 25 de abril de 2021. Link de
– Lima Barreto acesso: http://www.dominiopublico.gov.br/down-
load/texto/ua000165.pdf. Acesso em: 25 de abril de
2021.
A moça tecelã – Marina Co- Página da Beatrix. Link de acesso: http://www.bea-
lassanti trix.pro.br/index.php/a-moca-tecela-marina-colasan-
ti/. Acesso em: 25 de abril de 2021.
Maria – Conceição Evaristo EVARISTO, Conceição. Olhos d’Água. 1° ed. Rio de
Janeiro: Pallas, 2016.
I – Mário Rodrigues RODRIGUES, Mário. Receita para se fazer um
monstro. 1° ed. Rio de Janeiro: Record, 2016.
Marília acorda – Natália POLESSO, Natalia Borges. Amora. Porto Alegre:
Borges Polesso Não Editora, 2015.
O amuleto – Renata Py Revista acrobata. Link de acesso: https://revistaacro-
bata.com.br/demetrios/conto/o-amuleto-um-conto-
-de-renata-py/. Acesso em: 16 de junho de 2021.
Fonte: Elaborado pelas bolsistas desta pesquisa
64
escritora Renata Py. Cada exemplar apresenta características particula-
res, porém, considerando os objetivos deste estudo, nos debruçamos em
suas características comuns, como veremos nos próximos parágrafos.
Através da análise dos contos, notamos o domínio discursivo fic-
cional e o contexto de circulação que se trata da esfera de circulação
Literária/artística. Os exemplares do gênero conto foram publicados
em blogs voltados para a produção/divulgação de literatura, em revis-
tas e alguns livros, estes suportes são caracterizados como ferramentas
para publicação e compartilhamento de outros gêneros também. No
conto, há a predominância do tipo de discurso narrativo, a primeira
ou terceira pessoa do singular e/ou do plural, também pode apresen-
tar outros discursos, como o descritivo a depender do foco da narra-
tiva, como observamos a caracterização (descrição) de personagens e
ambientes. As estruturas linguísticas do gênero são, na maioria dos
exemplos, simples, porém também podem apresentar uma linguagem
complexa. Podemos observar a predominância de organizadores tem-
porais, advérbios (de lugar, de tempo, de modo), conectivos. E nos
tempos verbais, a predominância do Pretérito perfeito e imperfeito do
modo indicativo.
As temáticas exploradas são direcionadas a temas que abordem si-
tuações que misturam realidade com ficção e apresentam acontecimen-
tos absurdos com mistérios, suspense e medo. As narrativas podem se
desenvolverem em torno de um acontecimento trágico, mas que têm
um final feliz. Além disso, podem apresentar situações realistas que te-
nham como objetivo divertir os leitores, que envolvem lembranças e
sentimentos ou que possuam a intenção de levar o leitor a refletir.
Na análise dos contos, identificamos as categorias das condições
de produção dos textos (BRONCKART, 1999) que influenciaram na
produção dos exemplares do gênero conto: o contexto de produção e o
conteúdo temático.
Segundo Bronckart (1999, p. 93), no primeiro plano, todo tex-
to resulta de um comportamento verbal concreto, “todo texto resulta
65
de um ato realizado em um contexto físico”, o contexto de produção.
Sendo assim, além dos lugares de produções que observamos nos exem-
plares dos contos, o lugar de produção pode ser livros, revistas, mural
da escola, sites de internet voltados para a produção/divulgação de li-
teratura, e-books, entre outros. Já o momento de produção pode ser
indeterminado ou está presente na modernidade. O produtor pode ser
um escritor que faz parte das esferas literária, acadêmica, entre outras.
Enquanto o público-alvo são leitores em geral, professores, estudantes,
crianças, adultos, entre outros.
No segundo plano a produção de todo texto, de acordo com
Bronckart (1999), marca atividades de uma formação social ou de in-
teração comunicativa, sendo esse o mundo social e o mundo subjetivo,
seu conteúdo temático. Isso refere-se ao conteúdo temático que trata o
lugar social, posição social do produtor, posição social do público-alvo
e o objetivo da interação. O lugar social é o da esfera literária, em de-
corrência disso, tem sua circulação em escolas, como a sala de aula e
sala de leitura, em espaços públicos como a biblioteca pública, o teatro,
clubes de leitura, cinema e entre outros. A posição social do produtor
é caracterizada de acordo com a ocupação no lugar social. A posição
social do público-alvo → Papel de aluno, papel de leitor, de professor,
ou de acordo com o lugar social. Enquanto o objetivo da interação pode
ser de transmitir histórias acumuladas pelo imaginário popular, uma
sequência de fatos ou acontecimentos diversos.
Na análise dos textos, seguimos os três níveis da arquitetura tex-
tual propostos por Bronckart (1999). No primeiro nível, o da infraes-
trutura, identificamos o plano global dos textos, os tipos de discursos
e dos tipos de sequências. No nível dos mecanismos de textualização,
fizemos o levantamento dos mecanismos de conexão, coesão nominal
e coesão verbal. E, no nível dos mecanismos enunciativos, identifica-
mos as modalizações e as vozes. A infraestrutura geral do gênero conto
apresenta estruturas organizadas em planificação geral do conteúdo
temático e os tipos de discursos, os quais são as sequências. Abaixo,
abordamos o quadro que mostra os três estratos do folhado textual do
gênero conto.
66
Quadro 2: Os três estratos do folhado textual no gênero conto
67
textualização identificamos a presença de organizadores temporais, ad-
vérbios de lugar, de tempo e de modo, assim como conectivos. Esses
elementos foram reforçados por segmentos de discurso da ordem do
narrar, organizados em sequências de descrição e de explicações. Nos
contos analisados, a introdução ou a retomada ocorre através de pro-
nomes pessoais, relativos, demonstrativos e possessivos ou de sintagmas
nominais. Além disso, observamos a predominância do tempo do pre-
térito perfeito e pretérito imperfeito do modo indicativo. Observamos
também o predomínio do discurso narrativo na primeira e/ou na tercei-
ra pessoa do singular e/ou do plural.
Em relação aos mecanismos enunciativos, o gênero textual con-
to apresenta vozes e modalizadores para respaldar, apoiar e justificar o
ponto de vista assumido pelos produtores, assim como as informações
que são levadas para o texto pelo escritor. Com base na seleção de vozes,
as vozes de personagens e as vozes sociais são introduzidas em forma
de discurso indireto e discurso direto, o emprego dessas vozes depende
das intenções, dos objetivos e dos estilos dos escritores, visto que cada
produtor os utiliza de acordo com o modo que ver como adequado para
introduzir a temática ao texto. O uso das modalizações varia também de
acordo com os objetivos, de acordo com as representações das situações
narrativas e da produção das representações narrativas que o produtor
quer causar para o determinado leitor sobre essa imagem que quer pas-
sar da história relacionada ao que estabelece entre o produtor e o leitor.
As modalizações identificadas, aos analisarmos o conto, foram lógicas,
apreciativa, deôntica e subjetiva.
As características apresentadas nos parágrafos acima são as que mais
são presentes nos contos, o que significa dizer que alguns contos não
apresentam todos os elementos, uma vez que gênero conto, assim como
os outros gêneros textuais, sofre modificações ao longo do tempo. Ao
realizarmos a análise dos exemplares, notamos que a principal mudança
entre os contos clássicos e os modernos está na temática. Os contos
modernos estão voltados para a representação das classes marginalizadas
68
da sociedade, como o negro e o homossexual. Assim, abordando temas
que estão sendo discutidos atualmente e que promovem a reflexão sobre
a voz dos excluídos, além de aproximar a ficção da realidade, visto que
apontam assuntos vividos no cotidiano, sem utopias e sem desfechos
encantados. Observamos também que os diálogos diminuíram nos con-
tos modernos. O conto Dois corpos que caem, de João Silvério Trevisan,
possui uma característica peculiar: não possui desfecho. O conto encer-
ra-se no clímax.
Portanto, identificamos as características ensináveis do gênero
conto e construímos o modelo didático, levando em consideração o
conjunto de operações de linguagem que devem ser mobilizadas pelos
alunos para que eles desenvolvam capacidades de linguagem (ação, dis-
cursiva, linguístico-discursiva). Essa etapa constitui-se, primeiramente,
do estabelecimento da correlação entre as características dos gêneros,
de acordo com os níveis de produção e análise propostos no modelo do
Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), e as operações de linguagem que
o produtor mobiliza para realizar a produção verbal e do levantamento
das características ensináveis do gênero, a elaboração do modelo didáti-
co e a sugestão de atividades.
O modelo didático elaborado em nosso estudo foi produzido com
base na análise dos dez exemplares dos contos. Isso implica dizer que,
se conduzirmos a pesquisa com mais exemplares e em um tempo maior,
poderíamos, talvez, apresentar ainda mais características possíveis de
serem levadas para as aulas de língua portuguesa. O modelo didático do
gênero conto poderá ser observado a seguir:
69
Figura 1: Modelo didático do gênero conto
70
que já estão disponíveis em outros espaços, de forma a facilitar
o acesso dos professores, auxiliando-os, de algum modo, no agir
didático com gêneros na sala de aula.
Na parte Início do site, os professores e as demais pessoas que aces-
sarem o site poderão navegar através dos links vinculados a cada título
dos materiais. Exemplo, o professor que estiver navegando no site e cli-
car no título “O domínio dos acadêmicos de letras a análise linguística
em gêneros textuais” será direcionado ao local em que esse material está
disponibilizado. Os materiais presentes nessa aba foram coletados pelas
colaboradoras desta pesquisa, Camila Santos Ferreira e Karine Pereira
dos Santos, em repositórios digitais. Já a aba de Palestras e Conferências,
foram pesquisadas na plataforma do YouTube.
Além desse Início, o blog conta com a aba voltada às informações
sobre o próprio repositório. Esta aba, denominada Sobre, apresenta
um breve resumo sobre os demais projetos idealizados pelo professor
Doutor Gustavo Lima, idealizador e orientador deste estudo, os cola-
boradores envolvidos em cada etapa da pesquisa e atuais.
A aba Sobre o Blog aborda a história das pesquisas do PIC/PIBIC
desenvolvidas sob orientação do professor Gustavo Lima. Uma história
que envolve algumas pessoas, como Lucas Diniz, o primeiro orientan-
do do projeto idealizado pelo professor Gustavo Lima em 2016. Esse
projeto buscou analisar as capacidades de linguagem contempladas nas
propostas curriculares de dois municípios que compõem a região do
Agreste Meridional, a saber: Caetés e Garanhuns. A partir dessa pes-
quisa, houve o desenvolvimento de outras pesquisas, como as das cola-
boradoras Leidiane Raimundo e Delmira Yane, no período de 2017 a
2018. As pesquisas desenvolvidas nesse período analisaram o processo
de decomposição do gênero como objeto de ensino nos livros didáti-
cos de língua portuguesa e o processo de agrupamento e progressão
de gêneros no livro didático de língua portuguesa. A partir de 2018 a
2019, as pesquisas tiveram continuidade com Camila Santos e Jéssica
Florentino, que analisaram o agir de didático do professor de língua
portuguesa no ensino de gêneros. De 2019 a 2020, as pesquisas foram
71
desenvolvidas por Camila Santos e Alana Cerqueira, que focaram nas
ressignificações do professor de língua portuguesa acerca do agir didá-
tico com gêneros.
Na seção O que temos, é destacada a disponibilização de artigos
científicos desenvolvidos no âmbito do PIC/PIBIC e outros artigos
necessários para a apropriação da teoria de gêneros textuais. Como já
dito, as demais abas são direcionadas a monografias, dissertações
de mestrado e teses de doutorado que tratam da temática, além de
anais de eventos sobre os gêneros textuais nas diversas modalidades.
Na aba de materiais didáticos, ainda haverá a disponibilização desses
materiais, uma vez que serão postadas sequências didáticas desenvol-
vidas na disciplina de Didática e Avaliação, ministrada pelo professor
Gustavo Lima, no curso de licenciatura em letras na UFAPE. Essas
sequências didáticas ainda precisam da autorização dos alunos que de-
senvolveram cada uma e para serem publicadas no blog com a devida
referência aos produtores.
Na aba Quem Somos, é disponibilizado as informações sobre as in-
tegrantes do projeto de pesquisa e da produção do site, assim como do
orientador da pesquisa, o professor Gustavo Lima. O projeto é compos-
to por duas graduandas em letras pela Universidade Federal do Agreste
de Pernambuco, Alana Cerqueira e Andressa Maria, até então bolsistas
do PIC/PIBIC. O projeto conta também com duas graduadas em letras
pela UFAPE, Karine Pereira dos Santos, pós-graduanda em metodolo-
gia do ensino de língua inglesa e espanhola pela FAVENI, e por Camila
Santos que, atualmente, é mestranda em educação no Programa de
Pós-Graduação em Educação Contemporânea (PPGEduc) pela UFPE
(campus Caruaru) e pós-graduanda em metodologia do ensino de lín-
gua portuguesa, literatura e língua inglesa pela FAVENI.
Na aba de contato, disponibilizamos o e-mail de acesso para mais
informações. Além disso, criamos um espaço de Chat para mantermos
um canal de interação com os professores que assim quiserem buscar
mais informações sobre o repositório ou sobre os materiais disponibili-
zados, tirar dúvidas e até mesmo compartilhar materiais.
72
Com base na produção do blog, além da disponibilização do e-mail
para contato, foi necessária a criação de um perfil na rede social do
Instagram com objetivo de dar mais visibilidade ao blog, uma vez que
o Instagram é uma rede social bastante acessada pelos usuários e conta
com muitas ferramentas para a divulgação de informações sobre o pró-
prio blog. Assim como site, o perfil do Instagram está em construção e
tem o objetivo de ampliar o compartilhamento de produções e eventos
científicos e materiais didáticos da área dos gêneros textuais. Abaixo, é
possível observar a captura de tela do perfil no Instagram:
Retornando ao repositório, o blog se configura em um espaço cria-
do exclusivamente para disponibilizar diferentes materiais de ensino,
aprendizagem e de produção científica. O objetivo é possibilitar trocas
entre docentes, pesquisadores, compartilhamento de materiais didáti-
cos, acesso às produções pedagógicas elaboradas por professores, profes-
soras, pesquisadores e pesquisadoras que desenvolvam os seus trabalhos
com base na perspectiva do ensino de gêneros textuais.
Considerações finais
A análise de exemplares autênticos do gênero conto nos blogs, nas
revistas e nos livros apontou algumas dimensões ensináveis do gênero
com base nas categorias propostas por Bronckart (1999) para a infraes-
trutura geral do texto. A situação inicial marcada pelo conflito (desequi-
líbrio), clímax, desfecho; elementos da narrativa (personagens, tempo,
espaço, narrador). Os mecanismos de textualização identificados nos
exemplares dos contos foram os organizadores temporais, advérbios (de
lugar, de tempo, de modo), conectivos; Pronomes pessoais, relativos,
demonstrativos e possessivos; Sintagmas nominal; Predominância do
Pretérito perfeito e imperfeito do modo indicativo; Predominância do
tipo de discurso narrativo primeira ou terceira pessoa do singular e/ou
do plural; Os mecanismos enunciativos foram vistos como as seguintes
dimensões: vozes de personagens, vozes sociais; Modalizações deônti-
cas, lógicas/epistêmicas, apreciativas e pragmáticas.
73
A criação do repositório digital de materiais didáticos com novos
exemplares autênticos de gêneros da ordem do narrar, no caso, o conto,
foi finalizada, porém, está e estará sempre em processo de construção
e ampliação. Esse repositório é destinado a um processo permanente
de produção de material didático para professores dos mais diferen-
tes níveis de ensino acessarem e utilizarem os gêneros como objeto de
ensino-aprendizagem nas aulas de língua materna. A busca constante
por ferramentas e recursos que contribuam para o ensino de língua é
constante. Além disso, a procura dos professores por bases e referências
teóricas são recorrentes. Visando isso, o nosso blog também se propõe a
divulgação de eventos voltados para a perspectivas dos gêneros no ensi-
no de língua. Nesse sentido, o repositório atua como um espaço que ar-
mazena objetos de aprendizagem e materiais didáticos produzidos, de-
vidamente referenciados, para serem suportes ou ferramentas nas aulas.
Destacamos a importância da construção de modelos didáticos
(MDG) por colaborar com o desenvolvimento de capacidades de lin-
guagens. A partir deste estudo, esperamos oferecer subsídios didáticos
que possam contribuir significativamente para o desenvolvimento do
agir didático dos professores de língua portuguesa, atrelando a isso um
trabalho sistemático e produtivo com a leitura e a produção de gêneros
na sala de aula. O modelo didático construído pode ser considerado
uma ferramenta importante para a aprendizagem significativa, sendo
capaz de contribuir para o desenvolvimento dos alunos. Mais impor-
tante ainda, o conhecimento não é acabado, consequentemente, a pro-
dução do modelo didático também não pode ser visto como uma pro-
posta inalterável ao utilizá-lo no ensino de língua portuguesa.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do Discurso. In: Estética da Criação Verbal. 4. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 261-306.
74
DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michele e SCHNEUWLY, Bernard. Sequências di-
dáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY,
Bernard. DOLZ, Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas, SP:
Mercado de Letras, 2004. p. 81-108.
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2010.
5 ed.
75
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
76
practices propose the construction of meanings through contextualization,
warn that decoding skills alone are not enough for textual understanding and
the development of critical literacy. The present study aims to investigate the
use of a mixed method of literacy in English, in the context of an international
and bilingual school in Brazil. The research methodology used will consist in
the elaboration and use of a didactic material, based on the report of the needs
of literacy teachers in English through semi-structured interviews and field
research. Triangulation of pre- and post-intervention data will be carried out
to measure the results of the use of didactic material that proposes to combine
explicit phonics instruction with the use of authentic discursive genres,
literary texts and recreational and sensory activities, respecting diversity
and learning preferences. This research is based on the Universal Design for
Learning (UDA) guidelines, aiming at eliminating barriers to learning, on
the sociocultural theory developed from the studies of Vygotsky and Bakhtin,
and on the psychogenesis of written language by Emilia Ferreiro. It is mainly
inspired by Freire’s pedagogy towards social transformation.
KEY WORDS: Biliteracy; Inclusion; Bilinguism
Introdução
A procura por escolas bilíngues e internacionais têm mostrado cres-
cimento no Brasil e na América Latina devido à promessa de maiores
oportunidades para o futuro e a globalização dos mercados, visão sobre-
tudo potencializada pelas tecnologias de informação e comunicação em
que o inglês é a língua de maior prevalência. Há que se refletir, contudo,
sobre a responsabilidade emancipatória atribuída ao inglês em um país
em que, em língua portuguesa, “mais de 2 milhões de alunos concluin-
tes do 3º ano do Ensino Fundamental apresentaram desempenho insu-
ficiente no exame de proficiência em leitura” (BRASIL, 2019, p. 10) e
em que “3 de 10 brasileiros entre 15 e 64 anos podem ser considerados
analfabetos funcionais”, representando 29% dessa população no ano de
2018 (p.13).
Em pesquisa realizada na América Latina, 68% dos executivos
apontaram o inglês como a língua mais utilizada para os negócios embo-
ra a população seja predominantemente hispanófona (CRONQUIST;
77
FISZBEIN, 2017, apud BRASIL, 2020). Tal tendência levou o
Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 2020) a normatizar a mo-
dalidade nas Diretrizes Nacionais para a Oferta de Educação Plurilíngue
no Brasil enfatizando a posição do Inglês enquanto língua de prestígio:
78
esmagadora das famílias brasileiras. Segundo reportagem veiculada no
portal da Multirio (ALTOÉ, 2018), no ano de 2018 a cidade do Rio de
Janeiro abrigava 25 escolas bilíngues e atendia 7.605 estudantes, ofere-
cendo ensino em espanhol, inglês, alemão e francês, o que de acordo
com relatos de profissionais participantes do projeto contribui para a
diminuição da evasão escolar, maior interesse dos alunos e aumento da
autoestima. É preciso, portanto, que medidas sejam de fato implemen-
tadas para a ampliação da oferta de educação bilíngue e qualificação
docente na esfera pública do ensino.
Em linhas gerais, as Diretrizes Nacionais para a Oferta de Educação
Plurilíngue no Brasil discutem divergências quanto à aprendizagem si-
multânea ou posterior de uma das línguas, a prevalência de uma sobre
a outra e estabelece níveis de proficiência mínimos para serem atingidos
pelos alunos. Afirmam que a educação plurilíngue ou bilíngue “implica
menos o ensino da língua e mais o aprendizado da língua adicional
pelo uso estruturado em conteúdos e contextos culturais relevantes”
(BRASIL, 2020, p 16). Destacam a importância de uma aprendizagem
socioculturalmente contextualizada que remeta à multiplicidade de vi-
sões de mundo em detrimento do foco da aquisição da língua enquanto
processo mecânico (p.17).
No que tange metodologias para a alfabetização, há muito debate
quanto à eficácia dos métodos. Em países de língua inglesa, a oposição
entre whole language e Phonics resultou nas chamadas reading wars, en-
quanto no Brasil, conflito similar ocorreu entre construtivismo e métodos
‘tradicionais’ analíticos e sintéticos (SOARES, 2021a, p.42). Ferreiro;
Teberosky (1999, p.28) atentam para a existência de dois tipos de traba-
lho na literatura sobre aprendizagem da escrita “os dedicados a difundir
tal ou qual metodologia como sendo a solução para todos os problemas,
e os trabalhos dedicados a estabelecer a lista das capacidades ou das apti-
dões necessárias envolvidas nessa aprendizagem”, lamentando o fato de
que em sua visão “os êxitos na aprendizagem são atribuídos ao método
e não ao sujeito que aprende”(p. 30).
No cenário brasileiro contemporâneo, os métodos fônicos (Phonics)
para alfabetização têm sido privilegiados, sobretudo em contextos
79
bilíngues, devido aos resultados publicados por estudos internacionais,
como o National Reading Panel (NICHD, 2000), que concluiu que a
instrução sistemática por Phonics se mostrou a forma mais efetiva para
o ensino de leitura nos Estados Unidos.
Segundo a Política Nacional de Alfabetização (BRASIL, 2019,
p.16), “a maioria dos países que melhoraram a alfabetização nas últi-
mas décadas fundamentaram suas políticas públicas nas evidências mais
atuais das ciências cognitivas” que apontam para a alfabetização fônica
através do “ensino sistemático e explícito das relações entre grafemas
e fonemas” como a abordagem mais eficaz, fundamentando-se pilares
como a consciência fonológica, a consciência fonêmica, a fluência de
leitura, o vocabulário e a compreensão de textos (BRASIL, 2019, p.
16). Outros documentos elaborados a partir de iniciativas nacionais
como os relatórios Educação de Qualidade Começando pelo Começo
(2004) e Aprendizagem Infantil: uma abordagem da neurociência, eco-
nomia e psicologia cognitiva (2011) corroboram com a mesma visão
e foram utilizados pela PNA para justificar a difusão da metodologia
fônica. Porém, como aponta Morais (2020, p.70) é importante:
80
pode-se considerar evidente a diferença entre o nível de pro-
fundidade da ortografia do inglês, de grande opacidade, e o da
ortografia do português brasileiro, de ortografia transparente ou
próxima da transparência, o que muitas vezes torna inadequada
a transferência direta, para a alfabetização de crianças brasilei-
ras, de resultados de pesquisas sobre a aprendizagem da língua
escrita por crianças inglesas, como com certa frequência tem
sido proposto.
81
Alfabetização e letramento são processos cognitivos e linguís-
ticos distintos, portanto, a aprendizagem e o ensino de um e
de outro é de natureza essencialmente diferente; entretanto, as
ciências em que se baseiam esses processos e a pedagogia por
elas sugeridas evidenciam que são processos simultâneos e in-
terdependentes. A alfabetização – a aquisição da tecnologia da
escrita – não precede nem é pré-requisito para o letramento, ao
contrário, a criança aprende a ler e escrever envolvendo-se em
atividades de letramento, isto é, de leitura e produção de textos
reais, de práticas sociais de leitura e de escrita”.
82
Independentemente da língua privilegiada na alfabetização bilín-
gue, o aprendizado de uma língua serve como base para a outra. Segundo
Alves (2012a.p.173), “a consciência das diferenças entre a produção do
aprendiz de L2 e o falar nativo é vital para a aquisição dos diversos as-
pectos de uma segunda língua (fonológicos, sintáticos, morfológicos,
dentre outros).” Na alfabetização bilíngue, o aprendiz lida com sons da
língua inglesa não pertencentes ao inventário fonológico do português
e é através da consciência metalinguística, por meio de comparações
e contrastes, que percebe as diferenças entre os sistemas sonoros para
então manipulá-los (ALVES, 2012a, p.171). Para Morais (2020, p.41):
83
O presente estudo objetiva investigar a utilização de um método
misto de alfabetização em Inglês que contemple a instrução fônica ex-
plícita e a promoção de práticas sociais. A alfabetização bilíngue no
contexto brasileiro carece de investigações e problematizações e é ne-
cessário estabelecer um diálogo entre as abordagens de ensino, aliando
estratégias em busca da aprendizagem contextualizada através de situa-
ções comunicativas autênticas para a formação leitora.
Pressupostos teóricos
Para a investigação proposta, a concepção de língua adotada é a de
inglês como língua global, não privilegiando uma variante linguística
em detrimento da outra. Ainda que a alfabetização busque estabelecer
relações grafofonêmicas apropriadas ao repertório fonológico da língua
inglesa, esse estudo se opõe a visão de que o aluno deva tentar reprodu-
zir padrões sonoros nativos de um país anglófono e refuta a visão de so-
taque enquanto defeito a ser eliminado. Segundo Ferreiro e Teberosky
(1999, p. 260) “a suposta ‘pronúncia correta’ ignora as variantes diale-
tais, impõe a norma da fala da classe dominante (a norma real ou ideali-
zada) e, ao fazê-lo, introduz um conteúdo ideológico do próprio início
da aprendizagem da leitura”, portanto, é preciso combater estereótipos
depreciativos sobre o inglês não nativo.
A visão de ensino empregada se fundamenta na teoria sociointe-
racional elaborada a partir dos estudos de Vygotsky (1991, 2010) e
Bakhtin (1986, 1997, 1999) acerca da valorização dos saberes prévios,
da atuação do professor enquanto mediador na construção do conhe-
cimento e da aprendizagem escolar aliada às práticas sociais através da
dialogicidade bakhtiniana, pautada na concepção de linguagem socio-
-historicamente situada e mediada por gêneros discursivos.
No âmbito da alfabetização e do letramento, são tomados como
base os estudos de Emília Ferreiro e Teberosky (1999), quanto à psico-
gênese da escrita, e de Magda Soares (2021a, 2021b), crítica ao status
contemporâneo do método fônico de detentor absoluto de soluções
para alfabetização. Este estudo alinha-se à visão de Soares (2021a, p.
84
28), que aponta para a existência de três facetas principais de inserção
no mundo da escrita que são priorizadas ou desprezadas dependendo
da abordagem utilizada: a faceta linguística da língua escrita enquanto
sistema de representação gráfica dos sons, relacionada ao processo de
alfabetização; a faceta interativa da língua escrita, enquanto veículo de
interação entre as pessoas e a faceta sociocultural, relacionada aos usos,
funções e valores atribuídos em contextos socioculturais, ambas rela-
cionadas ao letramento. A contemplação das três facetas é, portanto,
fundamental para o desenvolvimento da leitura e da escrita enquanto
práticas sociais. Contudo, é preciso desconstruir a ideia de métodos
universais que assegurem o aprendizado de todas as crianças e cabe ao
professor a tomada de decisões em relação às estratégias que vai privi-
legiar ou refutar em sua prática docente (CARVALHO, 2015, p.45).
Recorremos a Paulo Freire (2016) e a sua visão crítica para uma al-
fabetização emancipadora, que vai além da decodificação e da codifica-
ção de palavras vazias que não dialogam com a realidade do aprendiz e
o eleva a posição de protagonista em seu aprendizado. A aprendizagem
descontextualizada sócio-historicamente e culturalmente da leitura e da
escrita se detém ao domínio da mecânica do processo e despreza a fun-
ção da língua enquanto prática social. É preciso contemplar os saberes
prévios, valorizar as identidades e estimular o pensamento crítico dos
alunos, peças centrais desse processo. A aprendizagem não deve ocorrer
de forma passiva. Metodologias e práticas de ensino devem contribuir
para a reflexão e para a construção em detrimento da memorização e da
reprodução conforme o modelo bancário apontado por Freire (2016,
p. 80):
85
Sendo assim, o professor-alfabetizador bilíngue não deve restringir
a aprendizagem a um processo mecânico de repetição e memorização
isento de significados socioculturamente construídos.
A alfabetização é um momento de transposição de inúmeras barrei-
ras. Ao contrário da fala, o desenvolvimento da leitura e da escrita não
acontece de forma natural (SOARES, 2021a, p.45) requerendo uma
instrução explícita e sistemática por parte do professor, mediador do
conhecimento. No contexto bilíngue, Alves (2012b, p. 219) ressalta:
6
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders.
7
American Psychiatric Association.
8
Universal Design for Learning.
86
diversidade real entre os estudantes. Esses currículos fracassam
quando tentam proporcionar a todos os alunos oportunidades
justas e equitativas para aprender, já que excluem aqueles com
distintas capacidades, conhecimentos prévios e motivacionais
que não correspondem ao critério ilusório da média. (Sebastián-
Heredero, 2020, p.735)
Metodologia
A investigação proposta por essa pesquisa qualitativa, alinha-se ao
paradigma interpretativista e possui base etnográfica e natureza aplica-
da. Será realizada investigação acerca das abordagens e metodologias
para alfabetização, através de revisão bibliográfica, buscando problema-
tizar e ressignificar suas aplicações no contexto de uma escola interna-
cional no Rio de Janeiro.
Serão analisadas as crenças, dificuldades e práticas do professor-al-
fabetizador em inglês, utilizando como instrumento de coleta de dados
questionários, entrevistas semi-estruturadas e relatórios a partir de ob-
servações em sala de aula.
A partir dos dados coletados nessa primeira etapa, será elaborado
um material didático com metodologia mista para alfabetização e le-
tramento em inglês baseado em gêneros discursivos autênticos e temas
que dialoguem com o contexto brasileiro. Para contemplar os diferentes
perfis e preferências dos aprendizes e remover barreiras para o apren-
dizado, serão utilizadas as diretrizes do DUA, envolvendo estratégias
auditivas, visuais e cinestésicas para engajamento, representação, ação
e expressão.
87
Após a conclusão da elaboração do material didático, será iniciada
a fase de utilização do mesmo em sala de aula, visando a análise dos
resultados práticos em relação às expectativas e metas propostas em sua
idealização.
A partir dos dados gerados, visamos responder às seguintes pergun-
tas de pesquisa:
Considerações finais
Ainda que se distancie da realidade da maioria dos estudantes bra-
sileiros, a educação bilíngue em português e inglês é uma crescente de-
manda em todo país. Seja sequencial ou simultâneo, o processo de al-
fabetização bilíngue carece de maiores investigações, sobretudo em um
cenário em que metodologias disputam uma posição de maior prestígio
gerando controvérsias que muitas vezes se sobrepõem às necessidades
dos alunos.
Tendências contemporâneas para métodos de alfabetização, anco-
radas em estudos nacionais e internacionais, apontam que a instrução
fônica explícita é essencial para o desenvolvimento das habilidades de
leitura e escrita, o que vem sendo difundido em documentos oficiais
como a Política Nacional de Alfabetização. Por outro lado, apoiadores
dos métodos globais, cujas práticas de ensino propõem a construção de
significados por meio da contextualização, alertam para o fato de que as
88
habilidades de decodificação isoladamente não bastam para a compre-
ensão textual e o desenvolvimento do letramento crítico.
A escassez de materiais didáticos para alfabetização em inglês no
contexto brasileiro é um fator complicador, pois os recursos encontrados
em fontes internacionais quase sempre oferecem atividades estritamen-
te fônicas, privilegiando a repetição e a memorização, de forma descon-
textualizada e sem a utilização de gêneros discursivos autênticos. Sendo
assim, esse estudo objetiva investigar o emprego de uma metodologia
de alfabetização em inglês mista, através da utilização de um material
didático elaborado para o contexto brasileiro, que se alinhe à concepção
de linguagem enquanto prática social e que possibilite a construção de
significados além da mera decodificação de palavras vazias.
Referências bibliográficas
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18 de jul. de 2018. Disponível em: <http://www.multirio.rj.gov.br/index.php/leia/
reportagens-artigos/reportagens/14064-escolas-bil%C3%ADngues-na-rede-p%-
C3%BAblica-municipal-de-ensino>.Acesso em: 22 de nov. de 2021.
89
ARCHANJO, R. Globalização e multilingualismo no Brasil: competência linguística
e o Programa Ciência sem Fronteiras. Revista Brasileira de Linguística Aplicada –
RBLA. Belo Horizonte, v. 15, n.3, p. 621-656, 2015.
BAKHTIN, M. Speech genres and other late essays. Austin: University of Texas
Press. 1986.
90
SEBASTIÁN-HEREDERO, E. Diretrizes para o desenho universal para a
aprendizagem. Revista Brasileira de Educação Especial. Bauru, v.26, n.4,
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F5g6rWB3wTZwyBN4LpLgv5C/?lang=pt . Acesso em: 19 nov. 2021.
SOARES, M. Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever. São Paulo:
Contexto, 2021b.
91
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
92
features of Discourse genre, to life and to the possibilities of producing
meaning through language in the Portuguese Language class. As one of
the stages of PIBIC project, the activity proposal with the newspaper was
intended to encourage the students’ authorial production, thereby, stages were
organized, as proposed by Genebra’s group in teaching methods, including a
final production. The work proposal with newspaper genre made possible to
explore the inextricable link between a genre circulating in human activities’
sphere, and the meaning this genre can take when displaced to other sphere, in
this case the dialogue between journalistic-media and educational spheres. The
students’ writing production materialized their way of receiving the guidelines
for the newspaper production, their comprehension of newspaper’s social role,
the experience lived in their social group and their unique perspective on this
interactive process in the class room.
KEYWORDS: Portuguese Language Teaching; Newspaper genre; Dialogic
Language Approach.
Introdução
O presente trabalho é um relato de experiência do projeto PIBIC e
objetiva apresentar os resultados obtidos com o gênero discursivo jor-
nal, desenvolvido com alunos do 9º do ensino fundamental anos finais,
na Escola Estadual de Ensino Fundamental Monsenhor Azevedo, loca-
lizada na periferia de Belém do Pará.
O prédio em que a escola Monsenhor Azevedo está instalada per-
tence à Paróquia de São Judas Tadeu, e durante muitos anos não foram
realizadas reformas. No segundo semestre de 2021, após luta e insistên-
cia da comunidade escolar, iniciou-se uma reforma que se arrastou por
meses, deixando os alunos expostos a poeira, entulhos, banheiros em
condições precárias e salas de aula sem ventilação.
A necessidade de naquelas condições desfavoráveis retomar as ati-
vidades presenciais após um ano e meio de ensino remoto, exigiu-nos
sensibilidade para perceber as lacunas que os estudantes traziam do pe-
ríodo que estiveram realizando atividades por meio de WhatsApp ou
respondendo os impressos compostos por conteúdo e exercícios entre-
gues a eles e devolvidos na escola, em algumas circunstâncias os impres-
sos eram deixados sem terem sido respondidos.
93
Foi nesse cenário que o processo de ensino-aprendizagem da língua
portuguesa foi transformando-se em um espaço de debates, relatos e re-
flexões sobre o conjunto de elementos que constituíam a vida daqueles
jovens no ambiente escolar e fora dele.
A luz da teoria dialógica do discurso, concebida por Bakhtin e o
Círculo, a proposta de trabalho com o gênero jornal permitiu explorar
a indissociável relação entre um gênero em circulação em uma esfera da
atividade humana e os sentidos que esse gênero pode assumir quando
deslocado para outra esfera, neste caso o diálogo entre as esferas jornalís-
tico midiática e educacional. Nesse sentido, os conceitos de gênero dis-
cursivo (BAKHTIN, 2016) e entonação valorativa (VOLÓCHINOV,
2019 [1926]) orientaram as atividades em diferentes direções: para os
aspectos que caracterizam o gênero discursivo, para a vida e para as
possibilidades de produzir sentidos com a linguagem na aula de língua
portuguesa.
Como resultado da intervenção, obteve-se a produção de quatro
seções do jornal redigidas pelos estudantes, as quais dialogam com sua
visão de mundo no entrelugar da escola e da vida cotidiana.
Para melhor apresentar o percurso do estudo, organizamos este ar-
tigo em quatro seções e as Considerações finais. A primeira seção intitu-
lada O jornal na escola: o ensino da língua portuguesa, apresentamos um
breve histórico desde a chegada da imprensa no Brasil e como passou
a ser meio de comunicação e uma fonte de informação, de costumes e
de valores sociais, até a sua incorporação pela esfera escolar. Na segunda
seção, Abordagem dialógica da linguagem: gênero discursivo e entonação
valorativa, debatemos os conceitos de valoração e gênero discursivo se-
gundo os estudos de Volóchinov (2019 [1926]) e Bakhtin (2016). Na
terceira seção, intitulada Percurso metodológico, apresentamos aspectos
relativos à pesquisa de campo bem como a materialidade analisada e
os sujeitos participantes da pesquisa. Na quarta seção, “Folha Teen”: o
protagonismo dos estudantes na produção do jornal escolar, analisamos a
produção escrita dos estudantes. E nas Considerações finais, consti-
tuímos parte de nossa trajetória com vistas às reflexões que permitem
94
compreender como o gênero discursivo na escola assume as formas e o
estilo da esfera de origem.
95
e meio, o principal meio de comunicação e de formação da opinião
pública, e praticamente o único, pois antes da era analógica e depois
da digital, grande parte da sociedade brasileira obtinham informações
pelos jornais impressos e seu conhecimento de mundo e consequente
senso crítico vinham desses veículos de informações, que muito con-
tribuíram com o papel de aguçar o interesse sobre os fatos políticos,
sociais, culturais e econômicos do país e do mundo.
O gênero discursivo jornalístico e a abordagem dialógica da lingua-
gem no ensino, ganham maior relevância com a renovação do currículo
e das metodologias de ensino operadas pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais - PCN, em 1998 (BONINI, 2011).
Porém, antes dos PCN (BRASIL, 1998), ainda na década de 1980,
já estava em debate no meio acadêmico os objetivos do ensino de por-
tuguês e como este ensino poderia de fato operar as mudanças neces-
sárias à melhoria da educação brasileira. Problematizou-se, entre outras
questões, a abordagem comunicativa voltada à capacidade do estudante
se comunicar, o que ainda parecia limitar o debate sobre a realidade
social da linguagem às funções da linguagem e aos meios de comunica-
ção. Emergia desse debate, uma nova orientação centrada nas práticas
sociais de linguagem a serem trabalhadas nos três eixos: leitura, escrita
e análise linguística (GERALDI, 1993). O que mais tarde, vai orientar
o debate presente nos PCN (BRASIL, 1998) e, atualmente, na BNCC
(BRASIL, 2018).
A respeito da utilização do gênero jornal como prática social de lin-
guagem nas aulas de língua portuguesa, Oliveira (2012) problematiza:
96
Oliveira (2012) afirma ainda que na prática estamos assistindo a
uma pedagogia que considera os gêneros discursivos quase que apenas
no aspecto de organização textual e das normas linguísticas ou a uma
transfiguração em nome de uma didatização promovida pela escola.
Ora, o jornal protagoniza bastante esse aspecto de organização textual,
com a estruturação de colunas, notícias, classificados e mais.
No entanto, a utilização do jornal no ensino de língua foi pensa-
da concomitante a ideia de trabalhar os aspectos formais e estilísticos
que constituem o gênero jornalísticos vinculando as tensões sociais que
estão impressas na maneira como são selecionados os fatos a serem no-
ticiados e a entonação valorativa dada à forma de veicular ao grande pú-
blico. Perspectiva do trabalho do gênero na escola que tem como base
teórico-metodológica a abordagem dialógica da linguagem, ou teoria
dialógica como vem sendo conhecida no Brasil.
97
implicações, como por exemplo o campo jornalístico, é constituído por
enunciados articulados para atingir determinado público alvo e orientar
ideologicamente a notícia de acordo com os interesses dos grupos no
poder.
Outro aspecto importante a ser citado sobre as propriedades dos
gêneros discursivos produzidos e em circulação nas grandes mídias são
os elementos que os constituem: o conteúdo temático, o estilo e a cons-
trução composicional. Estes três elementos juntos estão ligados no con-
junto de enunciados e são determinados pelas especificidades da esfera
de comunicação.
É importante destacar que a noção de enunciado é um dos conceitos
mais caros ao Círculo de Bakhtin, sendo concebida como a própria
unidade da comunicação discursiva, pois “aprender a falar significa
aprender a construir enunciados (porque falamos por meio de enun-
ciados e não por orações isoladas e, evidentemente, não por palavras
isoladas)” (BAKHTIN, 2016, p. 39).
O enunciado pode ser concebido a partir de três características fun-
damentais: a alternância dos sujeitos do discurso, a conclusibilidade
específica do enunciado, a expressividade. É, pois, na expressividade
dos enunciados, que o analista pode observar a entonação, a valoração/
avaliação social, o modo como as ideologias (oficiais ou do cotidiano)
refratam os modos sociais de perceber o mundo. Em outras palavras, os
modos como as avaliações sociais, construídas nos grupos sociais, refra-
tam-se nos signos são mais “visíveis” na expressividade dos enunciados.
Isso porque o aspecto da expressividade está ligado à posição axiológica
dos interlocutores em dada situação de interação frente aos objetos de
discurso e de sentidos, ao auditório da interlocução e seus discursos,
“A relação valorativa do falante com o objeto do discurso [...] tam-
bém determina a escolha dos recursos lexicais [temática], gramaticais
[estilo] e composicionais [conteúdo composicional] do enunciado.”
(BAKHTIN, 2016, p. 47).
Ademais, a expressividade está ligada à entonação que, para
Volóchinov (2019 [1926], p. 123, grifos do autor), “[...] sempre está no
98
limite entre o verbal e o extraverbal, entre o dito e o não dito”. É, portanto,
na entoação que se marca a acentuação valorativa dos falantes no enun-
ciado (SILVA, 2012).
A valoração é um elemento constitutivo-funcional do enunciado,
portanto os elementos da língua que compõem a estrutura desse res-
pondem à valoração. A funcionalidade do enunciado é, portanto, valo-
rativa, avaliativa. Desse modo, a valoração é um elemento que é tanto
constitutivo quanto funcional. Ademais, a valoração é índice social, que
é avaliativo, expressivo e axiológico do enunciado. Assim, todo enun-
ciado reflete e refrata certo recorte do mundo social, uma certa projeção
do mundo social, ou como Volochínov (2019) pontua em seu ensaio de
1926, “A palavra na vida e a palavra na poesia”, o enunciado é como um
cenário da vida social. Esse cenário é sempre um cenário social-avaliati-
vo, social expressivo e social-axiológico, porque traz, na sua natureza, na
sua organicidade, um tom que é avaliativo dessa projeção que se enun-
cia. A valoração determina as escolhas linguísticas e composicionais do
enunciado, e a valoração determina os sentidos do enunciado.
3. Percurso metodológico
Hernandes e Ventura (1998) afirmam que o jornal escolar se re-
vela um dos instrumentos mais apropriados para o desenvolvimento
da metodologia dos projetos didáticos. É por essas e outras qualidades
e características já enunciadas nas seções anteriores que o jornal foi o
gênero para compor as atividades realizadas junto aos estudantes do 9º
ano do ensino fundamental, em janeiro de 2022, o final do período
letivo de 2021.
Sobre o projeto didático envolvendo o gênero jornal, Bonini (2011)
argumenta que:
99
Antes da efetivação do projeto didático, era discutida previamente
em reunião cada etapa, como resultado dos debates tínhamos orienta-
ções e sugestões à organização das atividades na forma de sequência di-
dática com foco na produção de um jornal e de suas seções. Ocorreram,
ainda, reuniões de estudo de obras e ensaios de Bakhtin, de membros
do Círculo e de seus interlocutores no Brasil.
Oliveira (2012) traz um trecho dos estudos de Bakhtin/Volóchinov
que consegue se relacionar com o que os alunos abordaram no Caderno
de Esporte;
100
O tipo de intervenção didático-pedagógica usada na pesquisa de
campo, na literatura educacional, é concebido como pesquisa partici-
pativa, em que o pesquisador além de observador também participa
interferindo no fenômeno social. O trabalho desenvolvido com a turma
de de 9° ano foi intitulado de “Jornal na Escola”.
Todavia, os encontros presenciais na escola tiveram que ser suspen-
sos e as atividades seguiram de forma remota pelo aplicativo WhatsApp.
Essa mudança se deu porque no mês de janeiro, período em que esta-
vam programadas as atividades com a turma, ocorreu um surto de gripe
e de Covid 19 entre alunos, professores e pesquisadoras, que fez com
que as aulas fossem suspensas por um determinado período e as ativida-
des seguissem de forma remota.
A sequência didática se estendeu por cinco semanas, foram uti-
lizadas quinze aulas de português para que a atividade proposta fosse
colocada em prática com a turma. O período vigente foi do dia 04 de
janeiro até 04 de fevereiro de 2022. Além disso, o objetivo inicial era de
planejar coletivamente a realização de um jornal sobre várias temáticas
que foi definido em conjunto com os alunos, com regras acordadas e
divisão de grupos para a ação.
As seções e as pautas (tema) foram definidas coletivamente, a partir
do debate nos grupos. Em seguida os grupos fizeram a apuração das in-
formações, debateram sobre como iriam abordar o assunto, quem iriam
entrevistar, quais fontes iriam pesquisar para se apropriar da temática.
Cada grupo produziu seu texto, analisando criticamente seu ponto de
vista levando em consideração seu público alvo (a comunidade escolar).
Em virtude disso, foi trabalho, primeiramente em sala, a Notícia,
um texto informativo que apresenta informações sobre determinado
assunto, foi explicado para os estudantes que uma notícia é composta
por duas partes: sendo a primeira a lide, que seria o primeiro parágrafo
do texto e que nele é feito o resumo da proposta do jornal. Também
foi trabalho em sala a abordagem do gênero Reportagem, também é
um texto informativo, mas que se difere da notícia, pois tem função de
transmitir claramente uma opinião. Foi apontado os componentes que
101
uma reportagem pode conter, são eles: a manchete, subtítulo, lide e o
corpo do texto.
Bonini (2003) argumenta que a outra necessidade de se ter um
conceito de gênero aplicável é o fato de haver, no jornal, textos que
correspondem a uma seção específica (editorial, sumário, cabeçalho)
e outros que estão dispersos, não tendo uma identificação direta com
uma seção.
Houve também a leitura e um breve debate sobre uma crônica,
um gênero que pode ser produzido e circular em diferentes esferas da
atividade social, artístico-literária ou jornalística-midiática como são
apresentadas as esferas na BNCC, e, contudo, resguarda características
sociocomunicativas das esferas onde é recepcionada.
O gênero Editorial foi apresentado como sendo aquele dedicado
à opinião do jornal. Dessa forma, ao ser levado tais gêneros aos alunos
explorou-se os aspectos temáticos, estilísticos e composicionais de cada
seção do jornal, para que nas aulas posteriores os estudantes pudessem
escolher qual o gênero e como iriam produzir seu texto. Em seguida,
os alunos iniciaram a parte prática da elaboração do jornal, eles tive-
ram dúvidas e sempre perguntavam para a professora e as bolsistas do
projeto. Para auxiliá-los na composição do caderno do jornal, foram
distribuídos layout de cada seção com espaços para imagens e textos.
Durante as aulas foi notado engajamento e o empenho dos es-
tudantes na produção do caderno. No entanto, quando as atividades
passaram a ocorrer de forma remota, aquele engajamento diminuiu, e
alguns alunos e alunas passaram a não responder às provocações e ativi-
dades enviadas pelo WhatsApp.
102
participaram da atividade. Os grupos escolheram o tema que mais se
identificavam e passaram a produção das matérias de acordo com as se-
ções do jornal: Capa do jornal, cinco estudantes responsáveis; Caderno
de moda, seis alunos; Caderno de esporte, cinco alunos; e o Caderno de
reportagem, três alunos.
103
O título do jornal estabelece relações dialógicas com a cultura de
massa que se torna parte constitutiva do conhecimento de mundo dos
jovens alunos, remetendo de um lado a um veículo popular da esfera
jornalística e de outro a um estrangeirismo que representa as vozes jo-
vens autoras do jornal. Na capa, o leitor visualiza as manchetes anun-
ciando o conteúdo do jornal e remetendo aos cadernos.
A impressão do layout da capa do jornal distribuído aos alunos,
serviu de base para composição das sessões. As colagens de imagens
representando os cadernos e suas respectivas matérias, demonstra a cria-
tividade na seleção de elementos verbo-visuais destinados a despertar a
atenção dos futuros leitores.
104
Imagem 3 - Título da matéria no Caderno de Modas
105
leitor em um tempo-espaço da escola e da vida cotidiana. A partir disso,
os autores selecionaram trechos da entrevista que julgaram ser capaz de
construir um universo narrativo em torno da questão-lide “O que os
professores usam que os tornam únicos”, subtítulo do caderno de modas.
Na entrevista, a professora conta que seus acessórios vêm de feiras de
artesanato, essa informação vem seguida de uma descrição do estilo da
educadora. Na produção textual é possível identificar os conhecimentos
de recursos linguísticos (alternância entre as pessoas do verbo quando
na ausência de pontuação adequada e verbos declarativos) na delimita-
ção das formas do discurso. As flexões dos verbos que se alternam em
primeira pessoa do singular e do plural delimitam o discurso direto e o
indireto; o emprego dos verbos dicendi (disse e brincou), ou elocucio-
nários, enunciam quem fala ou o modo como o interlocutor se expressa.
Mais duas entrevistas com professores compõem o Caderno. Cada
uma chama atenção para a estética singular, isto é, o estilo de cada pro-
fessora: os acessórios, as cores e estampas de roupas e como cada cada
elemento revela singularidades.
Ao final da matéria, um título chama novamente atenção: “DICA
FASHION”, parte esta que direcionada a dicas de moda para os demais
alunos da escola.
106
O uniforme da escola é o foco dessa parte da matéria: “O nosso
colegio tem um uniforme um pouco peculiar, isso dificulta os alunos
a acharem acessorios pelos quais se identificam, por isso aqui (…)”, os
autores avaliam e indicam o uso de acessórios como alternativa para
criar o estilo mesmo que o objetivo da vestimenta seja uniformizar
(uniforme).
Os desvios são indícios de um processo de escolarização ainda com
lacunas no uso adequado da norma, sendo que no nível de escolarização
desses estudantes já se prevê conhecimentos suficientes sobre ortografia,
pontuação e acentuação.
107
No “Caderno de Reportagem” é possível destacar a entonação va-
lorativa nas escolhas estilísticas dos estudantes. No enunciado: “muitos
acreditavam que a nossa nova direta seria a nossa secretária Gerusa”, é evi-
dente a avaliação prévia feita pelos estudantes na forma de abordar o as-
sunto “a nova diretora da escola”. O enunciado seguinte: “Segundo ela,
ela foi bem recebida e não teve problemas em se estabelecer”, evidencia o
posicionamento da diretora frente ao impasse diante de sua nomeação,
considerando que expectativas haviam sido criadas pela comunidade
escolar, tal qual orienta o enunciado anterior.
Na entrevista com a merendeira, o enunciado introdutório “Como
na maioria das escolas públicas no Brasil, a escola Monsenhor Azevedo
enfrenta problemas com relação a merenda escolar”, também assume en-
tonação avaliativa, a matéria segue com o registro das perguntas e res-
postas dadas pela merendeira da escola.
A consciência individual é constituída no meio social, por meio de
ideologias adquiridas na interação verbal, portanto, a expressão indivi-
dual sempre será socialmente orientada, pois está baseada nas condições
sócio-históricas dos sujeitos.
108
O caderno de esporte, dividido em duas partes, teve a assinatura
de quatro estudantes. A imagem posicionada acima a direita tematiza
a canoagem como esporte que requer procedimentos e o reconheci-
mento de suas peculiaridades. Os autores usam um estilo informal em
tom de conversa com o leitor. Eles alertam sobre os cuidados que se
deve tomar na prática do esporte, “Se você estiver praticando canoagem
pela primeira vez comece devagar (...)” e, continuam, “(...)aprenda o
básico tornará o esporte mais divertido desde o início você terá uma
ideia melhor se deseja investir (...)”. Em seguida, eles apresentam os
equipamentos necessários para a prática do esporte e utilizam imagens
que orientam sobre postura durante as remadas e a maneira correta de
posicionar as mãos durante a prática do esporte.
No segundo Caderno, posicionado à direita da imagem 7, os alu-
nos/autores tratam do futebol, contam que “O esporte é praticado por
duas equipes”, e “O Futebol chegou ao Brasil em 1894”. Eles descrevem o
que é preciso para praticar o esporte, comentam sobre alguns jogadores
conhecidos, como Neymar e Pelé, e depois destacam duas imagens no
Caderno. As escolhas feitas pelos alunos na composição de seus textos,
caracterizam-se pelo tom injuntivo, apresentando as características de
cada esporte, orientando sobre as regras, os equipamentos e a maneira
adequada de praticá-los.
Os autores demonstram conhecimento e posicionam-se veladamen-
te sobre preferências e pontos de vista sobre quem pratica o esporte: “O
futebol é jogado entre equipes, é proibido jogar homem contra mulher”,
seguindo “Mas é um esporte praticado também por mulheres”. Além
de introduzirem com uma conjunção adversativa o enunciado que trata
da presença feminina no esporte, eles não citam jogadoras mulheres
que praticam o esporte. Os alunos finalizam enunciando que praticam
e gostam do esporte, bem como o assistem quando transmitidos na TV.
Considerações finais
O jornal na escola é um gênero produtivo para problematização e
reflexão sobre a relação entre forma, estilo e conteúdo. A introdução ao
109
gênero jornalístico e suas características composicionais, estilísticas e
temáticas não podem ser trabalhadas apartados de sua dimensão social,
isto é, como forma de interação entre sujeitos situados em contextos so-
ciais. A história do jornal no Brasil se mistura à construção de uma so-
ciedade brasileira que se transforma a partir da apropriação dos valores
e costumes vindos do Ocidente com a família real e a corte portuguesa.
A produção escrita dos estudantes registra a compreensão que têm
do gênero e sua apropriação na esfera escolar. Os temas escolhidos dia-
logam com a esfera escolar, mas o estilo e a forma composicional são
índices de sua apropriação do gênero jornal.
As dificuldades enfrentadas durante o desenvolvimento da pesquisa
de campo servem como registros desse cronotopo pandêmico que ainda
não se tem a real dimensão de suas consequências na escolarização de
crianças e jovens oriundos das camadas populares.
Por outro lado, esse estudo permitiu às pesquisadoras bolsistas e às
voluntárias do projeto PIBIC, identificar as diferenças entre a apropria-
ção da norma pelo aluno e o conhecimento sociodiscursivo que cada
sujeito adquire na interação social.
Essas questões somam à percepção de formação escolar, na compre-
ensão de que o trabalho com o gênero discursivo é sempre indissociável
das formas de interação social em cada esfera da atividade humana.
Referências
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso [Speech Genres]. Paulo Bezerra (Organização,
Tradução, Posfácio e Notas); Notas da edição russa: Seguei Botcharov. São Paulo:
Editora 34, 2016.
110
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:
terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos parâmetros curriculares
nacionais/ Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1998.
GERALDI, J.W. Portos de passagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
JORNAL NO BRASIL. Joca, São Paulo, 28 de abril. de 2017. Disponível em: https://
www.jornaljoca.com.br/conheca-a-historia-do-jornal-no-brasil/ Acesso em: 06 de abril
de 2022.
MOLINA, M. M. História dos Jornais no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
2015.
111
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
Introdução
Este texto delineia os passos iniciais de uma pesquisa de doutora-
mento ainda em fase embrionária, sem resultados conclusivos e que
está sendo construída junto às mulheres tecedoras da Cordilheira dos
112
Andes no altiplano boliviano. Como se trata de uma investigação em
andamento, buscaremos guiar os leitores e as leitoras em um alinhavo
contínuo, objetivando tecer o texto da tese e ressignificar os olhares
que temos para as mulheres subversivas dos Andes bolivianos. Galeano
(1986, p.1) disse: “Quem escreve, tece. Texto vem do latim “Textum”,
que significa tecido. Com fios de palavras, vamos dizendo, com fios de
tempo vamos vivendo: os textos são como nós, tecidos que andam.”
Dessa forma, juntamo-nos às mulheres do altiplano que tecem seus te-
cidos e tramam suas histórias de vida com palavras e com bordados. E
em cada salta9 e em cada desenho eu, pesquisadora k`ara10, me enxergo
incentivada a construir minha própria trama em forma de texto escrito
como se existisse um tecido-papel que ainda está sendo costurado.
O lidar com as linhas, as canções, os cantos das mulheres, me le-
vam a refletir sobre a construção de memórias e saberes das mulheres
andinas. Eu me guio através dos estudos da Linguística Aplicada e suas
características transdisciplinares que tecem teias entre teorias e metodo-
logias. Durante a construção deste texto, começo a fazer escolhas, sigo
instruções, leio e releio, e, parafraseado Ingold (2012, p. 5), me vejo
em um mundo de fervura constante onde os bordados dos tecidos são
imagens que falam, ou talvez eu mesma esteja participando de algo ino-
vador para o qual ainda não despertei: o aprender a ver com as palavras,
o reaprender a ler com as imagens e com os bordados.
Trata-se de uma pesquisa etnográfica no sentido tradicional do ter-
mo, que está sendo construída a partir das sensibilidades afetivas que
vão além das palavras do humano, abrindo-se tanto para a materialidade
quanto para o toque (BELLACASA, 2009), envolvendo linhas, telares,
wichiñas11, mulheres, memórias e identidades. Com isso, vai surgindo
lentamente o bordado na tese que envolve as sensibilidades e as subje-
tividades em uma forma holística dentro e fora da semiosfera andina,
que talvez venha finalizar em uma tese-bordada, de leituras lineares, que
9
Tecido.
10
Estrangeira na língua Quéchua.
11
Osso de lhama usado para tecer.
113
segue um fluxo e que transita através das referências bibliográficas e dos
letramentos acadêmicos.
1. Um pouco de História
Quando os conquistadores espanhóis chegaram à América Latina,
os Incas haviam atingido seu apogeu como uma das maiores sociedades
da época no contexto da Abya Ayala12. As maravilhas arquitetônicas des-
sa civilização como Machu Pichu no Peru sobrevivem até nossos dias
e na Bolívia pode-se destacar diversos sítios arqueológicos como por
exemplo o Portal do Tihuanacu, a 70 km da capital La Paz e Puma
Punku, uma cidade em ruínas próxima a Tihuanacu, que apresenta
uma interessante obra de engenharia, formando blocos de pedra que se
encaixam. Pode-se destacar também o Forte de Samaipata, patrimônio
12
A propósito do termo Abya Yala Carlos Walter Porto-Gonçalves (2002, p. 1) de-
senvolveu um verbete na Enciclopédia Latino-americana explicitando o termo e
que pode ser consultado no link http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/a/abya-
-yala. Acesso em 30 de janeiro de 2022. A grosso modo trata-se de um termo
usado como sinônimo de América, ou de Continente Americano.
114
mundial da UNESCO13 a 120km de Santa Cruz de la Sierra, construída
a 2 mil metros de altitude, cidade dividida em duas partes, um local
de cerimônias e as residências da população que lá habitava. Um outro
sítio arqueológico a ser destacado é a cidade perdida de Inkallajata na
região do Lago Poopó na Bolívia, ainda por ser explorada.
Segundo Galvão (2011), a história da civilização Inca, apesar de
muito breve, foi intensa e brilhante. No entanto, mesmo fazendo parte
de nossa história como latino-americanos, pouco conhecemos acerca
do período de 1200 a 1500. O fato é que, nesse período, o interes-
se dos estudiosos se concentrava na Europa, que ainda vivenciava o
Renascimento, o Ciclo Medieval, enquanto que, no Sul Global, acon-
teciam eventos importantes na América pré-colombiana, que fugiram
aos olhos dos investigadores.
Acredita-se, porém, que a civilização Inca não conhecia a escrita
como nós a concebemos. As histórias desses povos que chegaram até
nós são contadas oralmente ou carregam em si as visões hegemônicas
dos colonizadores espanhóis. Para Desrosiers (1997) a escrita da história
andina está indissoluvelmente vinculada à visão dos espanhóis, e não há
textos que possam ser interpretados através de uma visão tipicamente
indigena.
Para Galvão (2011), as únicas fontes que temos disponíveis para es-
tudos mais aprofundados sobre o tema são os textos de Garciliano de la
Vega, que escreveu Historie des Incas, Rois du Peru, publicado logo após
a dominação espanhola, e o livro de Felipe Guaman Poma de Ayala,
Nueva Corónica y Buen Gobierno, que retrata, através de imagens, sua
visão indigena da colonização. Obviamente as histórias escritas pelos
colonizadores eram repletas de crenças e motivações hegemônicas e et-
nocêntricas, afinal, não podemos dispor de nenhum documento que
descreva os períodos da invasão espanhola do ponto de vista Inca.
Ocorre que muitos estudiosos das terras altas andinas como por
exemplo, De la Jarra, Silverman, Burns, Ferrell, Platt, entre outros,
13
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura.
115
estão conseguindo identificar uma forma propriamente andina de es-
crita. São registros escritos e guardados pelos Incas, os quais chegaram
até os dias atuais, apresentando textos multimodais em tecidos feitos a
mão por mulheres andinas, as Saltas, como também artefatos têxteis de
cordas de algodão ou fibras em forma de nós que expressam mensagens
diversas, os Khipus. O primeiro estudioso a encontrar significados na
leitura dos Khipus foi Leland Locke (1912), que conseguiu decifrar um
sistema numérico decimal, o qual indicava números de valores diferen-
tes, segundo um tipo de nó e de sua posição.
116
com o braço estendido horizontalmente.Uma série de cordas
atadas que hoje são conhecidas como quipu pendem do braço.
Antes da sociedade Tiwanaku, os arqueólogos descobriram o
quipu mais antigo conhecido feito há cerca de 4.600 anos em
Caral, na costa peruana (In. YOFFEE, 2022, p.1).
117
construindo uma substituição, e na cadeia um significante assume o
lugar do outro.
Dessa forma, refletindo a partir de uma visão holística de lingua-
gem, as imagens narrativas que se apresentam nos tecidos andinos, as
Saltas, vão além de uma representação da linguagem. Elas constituem a
própria linguagem, ou seja, já não nos deparamos com sistemas de re-
presentação, mas com a própria linguagem como semiose. No momen-
to da colonização espanhola, os tecidos andinos foram utilizados como
formas subversivas de mensagens culturais, que segundo Desrosiers
(1997, p.333),
118
No contexto boliviano, as mulheres do altiplano participantes de
movimentos sociais desde os anos 2000, começaram a usar as Saltas
para carregar pedras para serem usadas como ferramentas de guerra. Os
tecidos da região de Oruro-BO expressam relações políticas e históricas
de toda a região, inclusive apresentando uma visão alternativa feminina
da constituição do Estado.
119
descortinar espaços de opressão e silenciamentos, mas também espaços
de lutas e subversões.
Desse modo, do ponto de vista científico, a linha de pesquisa que
iremos adotar buscará revelar processos de construção de identidades e
manutenção de memórias sociais através da produção coletiva de teci-
dos feitos por mulheres na Cordilheira dos Andes, colocando em evi-
dência, no meio acadêmico, narrativas outras de mulheres relegadas ao
silenciamento. Quanto à relevância social, à convivência e às interações
vivenciadas no trabalho de campo de uma pesquisadora brasileira fora
do seu país, constitui uma forma de perceber testemunhos de mulheres
contra os processos colonizadores a que foram submetidas.
Vale ressaltar aqui que, ao estudar os desenhos nos tecidos andinos,
a teoria e a prática devem caminhar juntas. Isso porque, as vozes femini-
nas se revelam nas texturas dos tecidos. Por esta razão, faz-se importante
compreender os desenhos como imagens; imagens que dialogam e que
transmitem algo de suas autoras. E assim como evidencia Samain (2012,
p. 158), “[...] sem chegar a ser um sujeito, a imagem (os desenhos nos
tecidos) é muito mais que um objeto: ela é o lugar de um processo vivo,
ela participa de um sistema de pensamento”. Queremos com o trabalho
que, por ora propomos, nessa pesquisa, abrir algumas portas de co-
municação intercultural e de processos de tradução (BHABHA, 2005)
em termos teóricos e práticos, no âmbito dos estudos da Linguística
Aplicada.
Para tanto, considerando que a representação feminina nos tecidos
andinos se faz presente através de narrativas expressas em cores, con-
tornos, formas, textos multimodais e transmitem processos de cons-
trução de identidades e manutenção da memória cultural dos Andes,
é que propomos essa pesquisa. Os espaços, os meios de comunicação,
as visualidades e outros mecanismos utilizados pelas mulheres andinas
propõem uma pesquisa de caráter social e político que configura regis-
tros de histórias como uma política de memória. E, assim, buscaremos
estabelecer diálogos entre o campo da linguagem no qual se localizam
as pesquisas em Linguística Aplicada (LA) e a prática social, destacando
120
as pluralidades de linguagens que poderão ser observadas através das
interações semióticas. As práticas sociais situadas que são observadas
no contexto em que são produzidas os tecidos acrescentam às pesquisas
em LA combinações com áreas de conhecimento que buscam favore-
cer a compreensão social e histórica de tais práticas. Assim, segundo
Kleiman; De Grande (2015, p.13), essas pesquisas como “práticas so-
ciais situadas, variam segundo as instituições, os participantes e as rela-
ções de poder que as sustentam e, portanto, não são universais”.
A adoção de diversos conceitos e teorias para o desenvolvimento da
pesquisa refletem também o caráter multidisciplinar das pesquisas em
LA, o que implica considerar a multiplicidade de linguagens, modos
e semioses nos textos verbais e não verbais em circulação social, como
também observar a articulação dos modos semióticos nas construções
de sentidos dentro dos textos multimodais. Os estudos semióticos po-
dem possibilitar leituras mais aprofundadas como, por exemplo, a cons-
trução das narrativas nas saltas andinas orquestrada para a produção de
significados.
Através dos estudos da Semiótica Social, buscaremos ampliar o
olhar sobre as narrativas que circularam no período da colonização espa-
nhola nas Américas e como se transformaram (ou não) em seus diversos
constructos sociais. Sem dúvida, as narrativas cristalizadas que conhece-
mos e que expressam a visão dos colonizadores podem ser questionadas
se, ao realizarmos leituras dos processos de invasão territorial, tivermos
disponível outra visão desse período, agora através da cosmovisão indi-
gena. As Teorias Decoloniais preconizadas por Mignolo (2020) podem
nos levar a (re)descobrir a história, (re)inventá-la e (re)lê-la.
Quanto às construções de identidades e aos constructos memo-
rialísticos, buscaremos embasamento teórico nos estudos de Candau
(1998), Hall (1997) e Assman (2016), entre outros, visando a entender
na prática como são construídas as memórias sociais coletivas e como
chegaram até nossos dias através das produções das mulheres andinas.
Pode-se assim observar que o estudo que propomos evidencia a arti-
culação e o diálogo entre diversos campos teóricos, o que evidencia uma
121
pesquisa interdisciplinar entre a Linguística Aplicada, a Antropologia,
a Biologia, as Ciências Sociais, os estudos da linguagem e a Filosofia.
Quanto aos estudos da linguagem, destacamos os processos dialógicos
propostos por Bakhtin (2011), que propõe olhares para os diversos dis-
cursos e enunciados e as situações de heteroglossia desenvolvidas por
ele. Analisaremos as expressões coletivas de construção de memórias
e como elas são apresentadas nos tecidos que, segundo Palma (2021,
p.29), podem ser pensadas “[...] desde níveis internos (ou seja, afetando
os processos mais autobiográficos) até nos planos mais sociais”. Assim
consideramos que as mulheres andinas constroem suas próprias subje-
tividades ao se autorrepresentar através das produções dos textos nos
tecidos.
Quanto à metodologia da pesquisa, esta é de natureza etnográfica,
no sentido tradicional do termo, que, segundo Geertz (1973), busca
explicar o contexto em que as práticas sociais ocorrem ou ocorreram.
Contudo, para a realização da pesquisa, utilizaremos o método cartográ-
fico para a coleta e a análise dos dados. A cartografia foge aos métodos
rígidos de pesquisa e busca desenvolver práticas de acompanhamento
de processos, ou seja, busca uma filosofia da multiplicidade, eviden-
ciando que não há entrada nem saída que sejam corretas ou orientadas
em um caminho plural.
Vale observar aqui que a cartografia como método surge a partir
dos estudos de Deleuze; Guattari (2011) que, em seu livro Mil Platôs,
inserem a cartografia nos princípios do conceito de rizoma, ou seja, a
forma como se concebe a produção de subjetividades. O rizoma seria
aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversí-
vel, suscetível de receber modificações constantemente” (DELEUZE;
GUATARRI, 2011, p. 30). Nesse contexto, os princípios rizomáticos
descritos pelos autores vão além das articulações binárias de causa e
efeito e se contrapõem aos modelos demonstrativos-representacionais.
O desafio lançado pelo método cartográfico se refere à aceitação de
um pensamento aberto, sem pré-conceitos a tudo que possa aparecer
no momento da pesquisa, e o que aparecer deve ser considerado como
122
possibilidade de produzir novos conhecimentos que sejam pertinentes
e persistentes.
Dessa forma a cartografia supõe inevitavelmente o mergulho do
pesquisador no campo de investigação, esse mergulho implica “movi-
mentos de forças de intensidades e de afetos circulantes” (ESCOSSIA;
TEDESCO, 2012, p. 32). Presume-se assim que o funcionamento
da atenção do pesquisador durante a investigação concebe uma ação
corporificada em sintonia com o contexto da investigação, buscando
produzir o saber pelo fazer, ou seja, “produzir conhecimento é posicio-
nar-se e tomar posição no mundo” (SOUZA, 2020, p.1). Nesse aspec-
to é importante ressaltar que, quando nos propomos desenvolver uma
pesquisa etnográfica a ser produzida em trabalhos de campo, devemos
ter caminhos e possibilidades abertos a “tudo que nos surpreende, nos
intriga, tudo que estranhamos” (PEIRANO, 2014, p. 378). E, como
defende Malkki (2007), entender que a vida é um constructo contínuo
e acontece em seu decorrer.
As teorias de investigação que propomos utilizar nessa investigação
são válidas, mas fazem parte de um repertório de possibilidades que
não deixa de ser aberto, flexível, inseparável do contexto social em que
é produzido, ou seja, é uma prática social situada e sensível ao tempo.
E é assim que, ao nos prepararmos para uma pesquisa de campo, deve-
mos, como sugere Malkki (2007), nos preparar para a convivência com
a comunidade estudada, seu idioma, conhecer literaturas que tratam do
assunto a ser pesquisado, estudar os ensaios e teorias sobre o tema para
construir diálogos e intersecções.
Alinhado ao método cartográfico para a análise e a coleta dos dados,
utilizaremos a ferramenta SGVCLin, software desenvolvido pelo proje-
to ALib- regional do Paraná, que busca agilizar e otimizar o trabalho
dos estudiosos na tarefa de elaboração de ferramentas audiovisuais para
a coleta de dados e criação de bancos de dados para organização de ma-
terial linguístico coletado. Com essa ferramenta iremos armazenar da-
dos de MySQL, uma linguagem adotada pelo JAVA. Em linhas gerais,
a ferramenta apresenta uma interface intuitiva e de simples manuseio,
123
que permite o armazenamento de dados geolinguísticos para análise
posterior, criação de textos, criação de atlas e consulta ao banco de da-
dos já existente na plataforma e alimentado por outros pesquisadores. A
ferramenta ainda proporciona ao usuário a possibilidade de criação de
grupos de questões, geração de relatórios pautados em diferentes variá-
veis, criação de cartas e textos.
Para a validação da pesquisa, utilizaremos o processo de trian-
gulação, que é fundamental para a coleta dos dados. Os estudos de
Cresswell (2007) apontam estratégias que devem ser seguidas para fazer
uma triangulação de diversas fontes de informação de dados como,
3. Algumas (in)conclusões
É importante observar aqui que, sendo uma pesquisa de caráter
etnográfico sob a ótica social, podem surgir mudanças no decorrer
das investigações em relação às hipóteses formuladas e às perguntas
de pesquisa. Isso porque trata-se de uma pesquisa não objetiva que
requer do pesquisador um processo de autopercepção, autocrítica e
autorreflexão. Deve-se segundo Heath; Street (2008) levar, durante o
trabalho de campo, uma pergunta fundamental: O que está acontecendo
aqui? E levar em consideração também as limitações da pesquisa que
124
podem se constituir por um caminho sinuoso e não responder tão obje-
tivamente às perguntas de pesquisa como o pesquisador deseja.
Assim, temos como hipótese central deste trabalho que os tecidos
andinos agrupam um ciclo criativo muito mais complexo, o qual envol-
ve uma dinâmica genealógica mais extensa do que imaginamos princi-
palmente quanto à personificação do tecido, uma vez que as mulheres
tejedoras veem em suas produções um ato maternal de haver parido um
filho (wawa), e esse filho carrega consigo o espírito dos antepassados.
O ato de tecer, dessa forma, pode estar relacionado a (re)introdução do
novo ser na comunidade e, assim, todo o processo de criação se centra
na função de revitalizar o morto gerando uma nova vida. Propomos
assim, que talvez exista uma linguagem feminina típica da região do
altiplano e esta linguagem pode estar expressa nas iconografias, nas es-
truturas do tecido, nas cores e contornos. Estaríamos assim questionan-
do o próprio fazer semiótico de interpretação de mensagens, uma vez
que estamos diante de uma escrita com imagens, no qual o trabalho de
memória oral, a partir dos desenhos feitos por mulheres, são expressos
nas narrativas das Saltas.
Como hipóteses secundárias, estas foram construídas a partir de in-
tersecções entre os estudos da linguagem, da construção de identidade
e da manutenção da memória coletiva, que possivelmente podem estar
expressos nos textos imagéticos das Saltas andinas.
Finalmente formulamos a hipótese de que os tecidos andinos po-
dem fazer parte de um constructo mais amplo de significação que trans-
cende a interpretação de imagens e textos e pode nos levar ao entendi-
mento de novas formas de leituras por imagens. Poderão estar evidentes
redes outras nas estruturas dos tecidos e outras dinâmicas de relações
iconográficas que revelam uma lógica cultural e social típica da região
andina, a qual se entrelaça com outros signos icônicos como, por exem-
plo, o bélico e os troféus de guerra. Além disso, o contexto da produ-
ção dos tecidos, poderá revelar noções do sagrado e do espiritual com
relação a construção das tramas, isso porque as relações entre a mulher
tejedora e o tecido fazem parte de uma teia de significação que envolve
125
também a memória espiritual tanto da mulher tejedora como do tecido
que ela está construindo.
Referências
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cultural. Tradução de Paulo Soethe. Campinas. São Paulo. Editora da Unicamp. 2011.
BHABHA, Homi. O local da cultura. Ed. UFMG: Belo Horizonte, 2005. BLAKE,
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126
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e misto. 2ª edição. Porto Alegre. Edcao Artmed. 2007.
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1997. Disponivel em http://books.openedition.org/iheal/825. DOI : https://doi.
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GALEANO, Eduardo. Memoria del fuego III: el siglo del viento. Madrid. Siglo
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GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures. New York. Basic Book. 1973.
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V.14. Edicao 12. Abril-junho. 1912
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SOUZA, Lynn Mario Menezes de. Fala ministrada em aula na disciplina Estudos do
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YOFFEE, Norman. Cidades Experimentais? In. M. Love & J. Guernsey (Eds.), Early
Mesoamerican Cities: Urbanism and Urbanization in the Formative Period (pp.
238-246). Cambridge: Cambridge University Press. doi:10.1017/9781108975124.011.
2022.
128
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
129
(CALL) resources in English language classes were different when compared
to the results of a similar survey carried out in 2018.
KEYWORDS: Teaching-learning, English language, Emergency remote tea-
ching, pandemic, covid-19.
1. Introdução
Na linguística aplicada, a aprendizagem de línguas mediada por
computadores (CALL) é designada como o campo de estudo que se
preocupa com a pesquisa e a prática de potenciais inovações tecnológi-
cas no ensino e aprendizagem de línguas. Bax (2003) questionou sobre
o futuro de CALL e afirmou que estaríamos caminhando para a nor-
malização. Com a crise sanitária da Covid-19, esse processo precisou
avançar rapidamente.
No Projeto Político Pedagógico (PPC) do curso de Letras-Língua
Inglesa na Unilab, está previsto que no percurso da graduação os estu-
dantes devem ser expostos a diversas metodologias integradoras do ensi-
no, fundamentadas no uso de tecnologias. Foi pensando no espaço ocu-
pado por tecnologias e recursos CALL dentro dessa Universidade que a
pesquisa de Silva e Lopes (2020) foi realizada, e as conclusões acerca do
uso e normalização de CALL no período da pesquisa apontaram que os
docentes de Língua Inglesa estavam no estágio 4 (medo/admiração) e
5 (normalizando) segundo a teoria de Bax (2003) e no que diz respeito
ao processo de normalização de CALL. Problemas como a realidade so-
cioeconômica da região em que a Instituição de Ensino Superior (IES)
está localizada, ausência de formações que capacitassem os professores
a utilizar os recursos de CALL em sala de aula, estigmatização desses
recursos CALL pelos discentes, e limitações na infraestrutura institucio-
nal foram alguns desafios para que a normalização não acontecesse de
forma plena e consolidada, segundo os pesquisadores.
Em razão da pandemia de covid-19, as discussões sobre o uso de
CALL então tomaram novos rumos. Devido ao momento de caráter
emergencial causado pelo distanciamento social, todas as instituições
de ensino tiveram que adotar recursos digitais obrigatoriamente, sem
130
tempo para percorrer gradativamente todas as fases de normalização
propostas por Bax (2003). Até mesmo as instituições que estavam em
situação de baixo letramento digital ou limitações de infraestrutu-
ra institucional tiveram que se adaptar ao modelo de Ensino Remoto
Emergencial (ERE).
Na UNILAB, o tempo levado para garantir formações de professo-
res sobre o uso de tecnologias de ensino e aprendizagem em AVA’s, as-
sim como a distribuição de dispositivos eletrônicos como tablets e chips
de internet para os alunos em situação de vulnerabilidade econômica
foi de 5 meses, período em que a universidade não funcionou para os
alunos, embora os demais setores - administrativo e pedagógico - traba-
lhassem normalmente. Esses investimentos somados à adoção do ERE
durante três semestres letivos, de fato, avançaram o processo de supera-
ção dos desafios para normalização de CALL nessa instituição, segundo
a pesquisa de Silva e Lopes (2020). A pesquisa assume a hipótese de
que a Fase Integrada (BAX, 2003) de normalização já havia chegado na
instituição de ensino.
Portanto, o presente artigo é um estudo de caso que tem como
objetivo analisar quais recursos CALL foram utilizados em uma disci-
plina de Língua Inglesa na adaptação ao contexto de ERE. Este artigo
contém registros de como foram ministradas as aulas da disciplina de
Língua Inglesa 4, ofertada no curso de Letras-Línguas Inglesa, investi-
gando quais foram as crenças dos discentes sobre o uso desses recursos.
Realizamos uma observação dos registros das aulas e atividades realiza-
das; com a análise desses dados, tínhamos o objetivo de identificar o
estágio atual de normalização de CALL que se encontrava a instituição,
bem como realizar um registro de como aconteceu esse processo, atra-
vés de um caso representativo.
2. Metodologia
A pesquisa teve como principal objetivo investigar como as aulas
de Língua Inglesa IV foram ministradas e como os recursos CALL fo-
ram utilizados na adaptação das aulas ao ERE. Também tivemos como
131
objetivo comparar as crenças dos participantes acerca do uso desses re-
cursos CALL, em comparação com crenças percebidas em uma pes-
quisa similar realizada na instituição em 2017-2019, para verificarmos
os avanços que aconteceram no processo de normalização de CALL
durante esse período.
Sendo o contexto da pandemia um cenário recente e excepcional,
um objetivo da pesquisa é explorar e registrar como esse contexto ocor-
reu nas aulas de Língua Inglesa nesse contexto. Portanto, para a realiza-
ção da pesquisa, escolhemos a metodologia de estudo de caso explora-
tório. O caso escolhido é a disciplina de Língua Inglesa IV, ministrada
durante a pandemia de covid-19, na modalidade de Ensino Remoto
Emergencial (ERE), na Universidade da Integração da Lusofonia Afro-
Brasileira (UNILAB), no segundo semestre de 2021. Optamos por esco-
lher um único caso como representativo para o contexto da instituição.
Para a realização dessa pesquisa, ocorreu uma análise das aulas vir-
tuais gravadas, bem como os materiais disponibilizados nos Ambientes
Virtuais de Aprendizagem (AVA’s), tais como SIGAA (Sistema de
Gestão de Atividades Acadêmicas) e Google Classroom. Essa observa-
ção de dados registrou e levou em conta todos os momentos em que
recursos CALL foram usados pela docente da disciplina e pelos dis-
centes. A organização desse material ocorreu em formato descritivo de
registro das atividades síncronas e assíncronas realizadas a partir ou com
o auxílio de recursos CALL. A organização do material também seguiu
o objetivo da atividade, de acordo com as quatro habilidades (leitura,
escrita, fala e escuta) e o papel do recurso CALL na proposta e, ainda, as
metodologias e abordagens de ensino adotadas pela docente.
Após a fase de observação e registro, a organização e conhecimento
dessas informações subsidiou a formulação de um questionário produ-
zido com o Google Forms, com perguntas objetivas e subjetivas que
tinham o objetivo de questionar as percepções dos alunos que cursaram
a disciplina de Língua Inglesa IV sobre a experiência de aprendizagem
que tiveram a partir do auxílio de recursos CALL. Para isso, as pergun-
tas foram norteadas a partir das seguintes questões: (1) entender quais
132
as crenças que os estudantes têm a respeito de CALL hoje em dia; (2) se
eles consideram que o ensino de Inglês com auxílio de recursos CALL
foi eficiente para a aprendizagem; (3) se o uso desses recursos foi efi-
ciente para o processo de ensino-aprendizagem durante a disciplina; (4)
quais dificuldades esses alunos enfrentaram em estudar inglês durante
a pandemia e; (5) se o desempenho dos alunos no desenvolvimento da
disciplina em si e das atividades foram influenciados por questões pes-
soais de saúde mental, considerando o contexto de pandemia.
133
outra fala: “Eu confesso que gostaria de usar mais, mas não sei como.
Talvez, haja necessidade de uma formação” (D13).
AVA SIGAA
Aplicativos Duolingo
Sites da internet Google tradutor, YouTube, Facebook, blog, email.
Recursos físicos Data show, celular, notebook
Fonte: Silva e Lopes (2020)
Repositórios de atividades
YouTube, Drive, Google Classroom.
assíncronas
134
Comparando o quadro 1 com o quadro 2, fica claro que a pande-
mia gerou um grande impacto em relação às aulas de Língua Inglesa.
Podemos observar claramente o aumento da quantidade e variedade de
recursos CALL utilizados nas aulas. Além disso, podemos observar tam-
bém substituições do recurso SIGAA, apesar do mesmo ser o ambiente
virtual de aprendizagem que a universidade oferece. Os professores no
GF em 2017 afirmaram que o recurso era insuficiente para seus objeti-
vos (SILVA; LOPES, 2020). Esse fator foi determinante para a escolha
do Google Classroom como AVA durante o curso. Os professores tam-
bém relataram no GF terem receio de usar CALL em sala de aula, pois
havia uma estigmatização do uso de CALL como evasão da sala de aula
pelos discentes: “porque isso ainda é visto como evasão do professor
de aulas presenciais” (D1). Muitos dos recursos que antes eram vistos
como “tapa buracos”, durante o período remoto foram os que media-
ram as aulas de modo indispensável.
A participação dos estudantes nos semestres realizados em ERE foi
possível devido à distribuição de tablets e chips de internet a estudantes
que não tinham acesso a essas tecnologias, projeto realizado nos meses
em que o semestre 2020.1 esteve parado/interrompido.
135
as atividades eram propostas aos alunos, como fóruns de discussão e
interação entre os estudantes sobre vídeos do YouTube ou livros on-line
sugeridos pela docente. Assim como os fóruns, a maioria das atividades
eram realizadas em colaboração e postadas no mural da turma para que
os estudantes mantivessem como parte da rotina de estudos a troca e
a construção de conhecimento em conjunto, conforme também reco-
menda Riedo (2022, p. 163): “as relações entre os estudantes em AVA
devem ser estimuladas através das ferramentas do tipo correio, fórum de
discussão, mural, bate-papo, entre outras”.
136
Essa forma de utilizar o recurso podcast exige, na opinião de Gomes
(2011), um comprometimento maior dos estudantes, em contrário da
forma exploratória, quando o aluno utiliza como recurso de aprendiza-
gem um podcast já produzido e publicado na internet por outros.
137
compartilhamento de arquivos, vídeos e links foram muito úteis no
decorrer das aulas síncronas.
Outra plataforma que possibilitou a interação imediata dos alunos
foi o discord. O recurso foi sugestão dos próprios alunos para a prática
de conversação em pares, no exercício da habilidade de speaking. Nessa
plataforma, eram criadas várias salas de bate-papo simultaneamente, e
em cada sala ficavam cerca de 2 ou 3 estudantes que conversavam sobre
um tópico de conversa sugerido pela docente, que neste momento ape-
nas monitorava. Em conversa com os alunos, a atividade de conversa-
ção por meio dessa plataforma foi avaliada de forma positiva pela turma
e, por isso, era repetida com frequência nas aulas síncronas.
Fonte: registro feito em forma de captura de tela por uma das autoras.
138
Alguns aspectos, em especial, diferem o desenvolvimento dos es-
tudantes no contexto de ERE, tais como o estado de saúde mental de-
les - estresse, sentimento de impotência e tristeza frente ao isolamento
social, medo de perder parentes e amigos e preocupação com a situação
econômica do país foram os sentimentos normalmente percebidos em
estudantes universitários durante o período da pandemia de covid-19
(GUNDIM et al., 2021). Portanto, desejamos agora verificar em que
medida o estado de saúde mental dos alunos influenciou no desempe-
nho deles durante a disciplina.
Para entender este ponto, lançamos no questionário a pergunta
“No início do semestre, como você avalia o seu nível de animação/
motivação para a disciplina, considerando que a modalidade remo-
ta iria ser executada?”, que deveria ser respondida entre os níveis de
1 a 5, com a finalidade de medirmos se esse estado de motivação mu-
dou durante o decorrer do semestre. A resposta mostrou que 5 alunos
consideraram seu nível de animação/motivação em nível 3, ou seja, as
expectativas dos alunos sobre a disciplina parecem, portanto, incertas.
139
(1) Os estudantes informaram ter receio com o ensino remoto emergen-
cial e desmotivação com problemas causados pela pandemia, preo-
cupação em participar da aula com a câmera e microfones ligados
- problema que também foi vinculado à falta de um local adequado
para assistir às aulas. Houve afirmações sobre alguns alunos se sen-
tirem confortáveis para participar da aula apenas no ambiente da
universidade. Ao responderem a pergunta do questionário “Pensou
em desistir alguma vez? Por quê?”, um estudante respondeu: “Sim,
estudar em casa não é nada fácil. Era comum o sentimento de des-
motivação e desinteresse em relação aos estudos por causa da pan-
demia”. Outro respondeu: “Sim, devido à falta de compatibilidade
com a modalidade de ensino à distância”. Podemos afirmar, então,
que o estado mental dos estudantes devido à pandemia influenciou
negativamente no processo de aprendizagem e no desempenho das
atividades propostas. Além disso, os estudantes sentiam dificuldade
na adaptação ao contexto ERE e, inclusive, confundiam esse con-
texto com a educação a distância (EaD).
140
que também foi vinculado à falta de um local adequado para assistir
às aulas, houve afirmações sobre alguns alunos sentirem-se confor-
táveis para participar da aula apenas no ambiente da universidade.
Isso é observável nas respostas “o espaço de casa não era propício
para se concentrar, entre outros empecilhos”.
141
por parte dos estudantes, uma estigmatização do uso de recursos CALL
como evasão dos professores da aula, quando não tivesse sido possível
para eles (os docentes) planejar a aula. Ao pensarmos nas crenças dos
alunos após a experiência com o ERE devido à pandemia de covid-19,
tivemos a hipótese de que essa crença teria agora mudado. A fim de
responder a essa pergunta, lançamos o seguinte questionamento: “Na
sua opinião, quais são os pontos positivos sobre o uso das ferramentas
e recursos tecnológicos durante a disciplina, como YouTube, Google
classroom, entre outros?”. Nos questionários enviados à turma, sobre
essa questão, as respostas mostraram, de fato, uma percepção positiva
dos estudantes sobre a experiência.
No geral, os estudantes afirmaram acreditar que o uso desses re-
cursos é efetivo e imprescindível para a aula; afirmaram também que o
uso dessas ferramentas é importante no contexto remoto como também
no contexto presencial de aprendizagem. Um estudante respondeu: “O
Google classroom foi e ainda é muito importante para o nosso aprendi-
zado, pois diferente do SIGAA ele está sempre disponível e é bem sim-
ples de lidar, contendo uma organização muito boa para quem não tem
muito tempo a perder ou tem uma agenda apertada”. Outro respondeu:
“O google classroom é uma ferramenta necessária, mesmo com retorno
das aulas no regime presencial”.
Ainda sobre as crenças dos estudantes sobre o uso de recursos di-
gitais, lançamos a pergunta “Na sua opinião, quais são os pontos ne-
gativos sobre o uso das ferramentas e recursos tecnológicos durante a
disciplina, como o YouTube, Google Classroom e outros?”. Para essa
pergunta, houve alunos que afirmaram não encontrar nenhum ponto
negativo no uso, outros não responderam pontos negativos, mas sim,
desafios que dificultavam o uso desses recursos, dos já mencionados
nesse artigo, a baixa qualidade da rede de internet e dispositivos mó-
veis foram mencionadas. Além desses, alguns estudantes afirmaram que
certas plataformas possuem certa complexidade no uso: “Certas plata-
formas, como o YouTube, apresentam um grau maior de complexida-
de no uso, o que pode atrapalhar os estudantes”. “Apesar de o uso de
142
recursos tecnológicos serem uma boa opção para se utilizar em sala, a
maioria dos alunos não possui ainda maturidade para fazer o uso delas.”
Esse ponto já havia aparecido na pesquisa de Silva e Lopes (2020) - os
estudantes não possuíam conhecimento de como usar as plataformas.
Porém, no decorrer da disciplina, todos os estudantes conseguiram, de
certo modo, superar esse desafio e participaram das atividades.
Quanto à avaliação dos estudantes sobre as atividades propostas,
esses dados servirão para pensar se as mesmas serviram ao objetivo de
desenvolver as habilidades de escuta, fala, escrita e leitura que tem a
disciplina. Como afirma Santos (2021, p. 9),
143
Gráfico 3: Avaliação das atividades assíncronas pelos estudantes
144
5. Considerações finais sobre o estado de normalização de
CALL na UNILAB
Problemas como a realidade socioeconômica da região em que a IES é
localizada, ausência de formações que capacitassem os professores a utilizar
CALL em sala de aula, estigmatização dos recursos CALL pelos discentes
e limitações na infraestrutura institucional foram alguns desafios para a
normalização de CALL em dados de 2017, segundo a pesquisa de Silva e
Lopes (2020). Visto que o cenário da pandemia da COVID-19 mudou
completamente este cenário, neste artigo discutimos sobre os avanços na
superação desses desafios durante o período da pandemia de COVID-19.
De modo geral, dados já expostos nesse artigo demonstraram que
os estudantes não mais possuem a crença de que o uso de recursos CALL
servem como “tapa buracos” e avaliam o uso de CALL como impres-
cindível. A rapidez com que os professores da instituição precisaram
adquirir conhecimento sobre como utilizar CALL nas aulas obrigou
que os mesmos superassem de maneira abrupta dificuldades como as
mencionadas de contemporização e produção para as aulas. A institui-
ção também ofereceu cursos de formação aos professores. Todavia, a
instituição ainda carece de formações continuadas na área (NIZ, 2017).
Os entrevistados do GP já afirmavam utilizar CALL mesmo que
ocasionalmente, mas dada as limitações citadas anteriormente a fre-
quência em que esses docentes utilizavam CALL era comprometida.
Portanto, à medida em que esses desafios sejam superados, há a tendên-
cia de que os docentes adotem recursos CALL em suas aulas. Na seção
anterior, mostramos que essa frequência e quantidade do uso de CALL
apenas nas aulas da disciplina de Língua Inglesa é superior ao quadro
com a lista de recursos que informaram todos os docentes que partici-
param da pesquisa em 2017.
O estágio de normalização de CALL segundo a teoria de Bax (2003)
da UNILAB no ano de 2017 foi classificado nos estágios 4 medo de
admiração, e 5 normalizando. De acordo com os dados aqui expostos,
afirmamos com o estágio final 6 normalizado, quando a tecnologia já
se tornou integrada ao cotidiano e é vista como parte do processo de
ensino-aprendizagem.
145
Referências
BAX, S. CALL - past, present and future. System, 31, p. 13–28. 2004.
146
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
147
them as the driving force of a critical-reflective process, which can lead to
social transformations (FREIRE, 2020; HOOKS, 2017). In this bias, the
purpose of the text is to create intelligibility (MOITA LOPES, 2006) about
issues relevant to life in the classroom, based on the ethical-critical-reflexive
principles proposed by Exploratory Practice (MILLER et al, 2008; GRUPO
DA PRÁTICA EXPLORATÓRIA, 2020) and the close relationship between
teaching-learning and emotions (ZEMBYLAS, 2004; BARCELOS, 2013).
The work to understand how affects affect life in pedagogical contexts will be
built on exploratory conversations between students and teachers in initial and
continuing education. Our understandings suggest that emotions are central
to the various social practices and pedagogical activities of the participants,
contributing to: (i) understanding the practices of the teachers and students
participating in the exploratory conversations; (ii) the reflective conception of
teaching-learning and; (iii) the possibility of critical analysis of the aspects that
affect them positively or negatively.
KEY-WORDS: Exploratory Practice; Emotions; Teacher training.
1. Introdução
Historicamente, a educação brasileira tem uma raiz de caráter bas-
tante opressor e tradicional. Há muitos anos, preserva-se praticamente
o mesmo modelo de ensino, com foco voltado para a disciplina e para
as notas, definido por Freire (2020) como a educação bancária. Não é à
toa que, se compararmos fotos das salas de aula do século passado com
fotos mais recentes, não encontraremos muitas diferenças.
Nessa direção, é possível notar a influência das transformações so-
ciopolíticas no ramo educacional. Assim, é cobrado que as instituições
de ensino básico e superior guiem os alunos rumo a um futuro de su-
cesso e prosperidade, alinhando-se ao sistema e aos valores capitalis-
tas vigentes. Com isso, perde-se muito a oportunidade de o ambiente
de ensino-aprendizagem promover trocas e interações entre os agentes
envolvidos nesse processo. Com o foco nos conteúdos programáticos
das disciplinas, as emoções e as experiências dos alunos – e também
dos professores – costumam ser deixadas de lado. Fala-se muito pouco,
no espaço da sala de aula, sobre o que os agentes ali envolvidos estão
148
sentindo. E menos ainda se pensa a respeito dessas emoções e do porquê
de elas não serem tratadas em ambientes de ensino-aprendizagem.
Nessa direção, entendemos que olhar para as emoções de alunos e
de professores é um movimento fundamental para pensarmos as práti-
cas pedagógicas desses indivíduos, num processo crítico-reflexivo. Em
nosso caso, cujo foco é no contexto de formação – inicial e continuada
– de professores, é possível notar que a construção dessas emoções reve-
la valiosos entendimentos sobre os fazeres pedagógicos de tais agentes
sociais, dentro de suas realidades específicas.
Ademais, diante de um sistema educacional que privilegia a mera
transmissão de conteúdos e, consequentemente, sua memorização,
olhar para o nosso interior e também para o exterior, tanto nas nossas
expressões próprias, quanto no que nos cerca, é uma prática fundamen-
tal de resistência e de reexistência. Ao romper, mesmo que de forma
pouco chamativa, com o que é esperado e imposto, estamos construin-
do novas maneiras de ensinar e de aprender.
Dessa maneira, considerando uma postura crítico-reflexiva, a ati-
vidade docente pode ser entendida de outro modo, não mais aquela
tradicional que colocava o professor como uma entidade superior e que
sempre estava certa, mas sim como um ser em constante aprendizado.
O estudo acerca de nossas próprias emoções, crenças e identidades faz
parte do caminho para uma educação que prioriza o trabalho para en-
tender a qualidade de vida (MILLER et al., 2008).
Buscando refletir acerca das questões emocionais em sala de aula, é
fundamental, de início, destacar que a sala de aula é, por essência, um
espaço de muita emoção. Ao entendermos as emoções como perfor-
mances (ZEMBYLAS, 2004) em constante movimento, consideramos
de alta complexidade o estudo sobre o que sentimos e sobre como exte-
riorizamos nossa afetividade (NÓBREGA KUSCHNIR, 2003). Assim,
esta pesquisa não tem pretensão de definir e rotular o que os agentes
envolvidos no processo de ensino-aprendizagem sentem e pensam, mas
sim de investigar as origens dessas emoções, como elas refletem nossa
maneira de pensar e ver o mundo e como se relacionam às práticas de
alunos e professores.
149
Com isso, pretendemos, neste trabalho, criar inteligibilidades
(MOITA LOPES, 2006) acerca da vida em sala de aula, tendo em
vista os princípios da Prática Exploratória (GRUPO DA PRÁTICA
EXPLORATÓRIA, 2020; MILLER et al., 2008) e as contínuas re-
lações que são estabelecidas entre ensino-aprendizagem e emoções
(BARCELOS, 2013; ZEMBYLAS, 2004). Tais ideias surgem de con-
versas exploratórias entre alunos e professoras em formação inicial e
continuada, que possibilitaram significativas trocas e reflexões.
2. Fundamentação teórica
Ao olharmos e analisarmos o sistema educacional brasileiro, consta-
taremos, além de uma expressiva desigualdade, um modelo ainda mui-
to preso ao passado, em que, de maneira opressora (FREIRE, 2020),
ocorre a ‘‘doação’’ dos conhecimentos de um indivíduo, considerado
sábio, para os tidos como ignorantes. Assim, considerando uma postu-
ra, geralmente, autoritária dos professores, tais saberes são transmitidos
de maneira impositiva e afastada da realidade dos agentes envolvidos no
processo de ensino-aprendizagem.
Nesse sentido, tal visão e ação de/em sala de aula ‘‘reforça a sepa-
ração dualista entre o público e o privado, estimulando os professores
e os alunos a não ver ligação nenhuma entre as práticas de vida, os
hábitos de ser e os papéis professorais’’ (HOOKS, 2017, p. 29). Dessa
maneira, cria-se um muro – muito maior que os das instituições de
ensino – entre elas e o mundo ao redor, dificultando o estabelecimento
de relações, por professores e alunos, entre suas vidas, suas emoções e
suas identidades.
Em oposição à perspectiva bancária da educação, surge a educação
como prática da liberdade, que, ‘‘ao contrário daquela que é prática da
dominação, implica a negação do homem abstrato, isolado, solto, desli-
gado do mundo, assim como também a negação do mundo como uma
realidade ausente dos homens’’ (FREIRE, 2020, p. 98). Sendo assim,
propõe a possibilidade real de transformação social. No entanto, para
que isso aconteça, é necessário que o professor, de fato, esteja aberto
150
e disposto a adotar uma prática libertadora (HOOKS, 2017). Com
ela, aos alunos se oferece maior espaço para o desenvolvimento de suas
habilidades e de suas identidades. Para o professor, essa pedagogia tam-
bém traz benefícios e reflexões valiosas, visto que ‘‘toda sala de aula em
que for aplicado um modelo holístico de aprendizado será também um
local de crescimento para o professor, que será fortalecido e capacitado
por esse processo’’ (HOOKS, 2017, p. 35).
Nessa direção, pensando em uma educação transformadora
para alunos e professores, trazemos as vozes que construíram e con-
tinuam construindo a Prática Exploratória (GRUPO DA PRÁTICA
EXPLORATÓRIA, 2020; MILLER et al., 2008) ao destacarem a im-
portância de uma ação investigativa para/em sala de aula. Sendo assim,
a Prática Exploratória (PE) busca entendimentos para o que acontece
no ambiente em questão. Desse modo, professores e alunos são convi-
dados a, juntos, desenvolverem um olhar atento para as questões ao seu
redor. Assim, alguns princípios que orientam a maneira de pensar da
Prática Exploratória são:
151
Nesse sentido, ao destacar a importância de buscarmos entender
a qualidade de vida dos participantes de um grupo, a PE se mostra
preocupada com o que os indivíduos sentem e pensam, não restringin-
do o espaço da sala de aula aos conteúdos programáticos. Ademais, a
complexidade desse espaço pode ser percebida melhor ao destacarmos
a concepção tridimensional da sala de aula, ‘‘onde as dimensões social,
afetiva e cognitiva convivem em harmonia, fazendo deste contexto uma
unidade sistêmica’’ (NÓBREGA KUSCHNIR, 2003, p. 47). Dessa
forma, reconhecemos os vários fatores que estão em jogo dentro de
uma sala de aula.
Explorando de maneira mais aprofundada a dimensão afetiva,
Nóbrega Kuschnir (2003) pontua a necessidade de o professor (re)co-
nhecer as manifestações emocionais em sua sala de aula, passando a
conhecer melhor seus alunos, também no aspecto emocional, o que
possibilita uma construção diferenciada das relações coconstruídas no
grupo. Nessa perspectiva, a autora entende o afeto como ‘‘um construto
social que permeia e interage constantemente com as estruturas sociais
e cognitivas do contexto escolar’’ (NÓBREGA KUSCHNIR, 2003, p.
51), já que reconhecer os afetos positivos e negativos pode causar dife-
rentes efeitos nos grupos sociais.
Na Linguística Aplicada (LA), em sua abordagem contemporânea
e indisciplinar (MOITA LOPES, 2006), as emoções podem ser enten-
didas como resultado das interações internas e externas, sendo frequen-
temente geradas e mudadas, o que afirma seu caráter ativo. Além disso,
elas são construtos socioculturais (ZEMBYLAS, 2004), uma vez que
dependem do contexto em que estão inseridas, moldando-o e sendo
moldadas por ele. Dessa maneira, as emoções de alunos e professores
são construídas a partir do contexto em que esses agentes atuam e dos
valores de suas comunidades e grupos sociais.
Ademais, Zembylas (2004) considera as emoções como práticas
discursivas, compreendendo que ‘‘não são estados internos, mas são
sobre vida social; assim, as relações de poder são inerentes a conver-
sas sobre emoção’’ (p. 187), visto que tais relações determinam o que,
152
socialmente, pode ou não pode e quem pode e quem não pode ter
determinadas emoções.
Nessa direção, esta pesquisa, ancorada na concepção de Linguística
Aplicada Indisciplinar (MOITA LOPES, 2006), se debruça sobre a im-
portância de se falar em/sobre emoções no processo de formação inicial
e continuada de professores (de línguas), possibilitando, assim, trocas
e reflexões a todos os agentes envolvidos nesse processo contínuo e
constante.
153
Nessa direção, quando bell hooks (2020) nos traz uma nova visão
sobre o amor e as demais emoções, ela reforça a importância do ‘‘falar
sobre’’, de expressarmos o que sentimos e de pensarmos por que senti-
mos. Segundo ela,
154
espaço, também, para falarmos sobre como as situações cotidianas nos
afetam positiva e negativamente. Com efeito, buscamos estabelecer, nos
espaços em que estamos, relações pautadas na ética amorosa (HOOKS,
2020), ou seja, na ética que busca colocar em prática as dimensões do
amor: ‘‘cuidado, compromisso, confiança, responsabilidade, respeito e
conhecimento’’ (HOOKS, 2020, p. 130).
4. (In)Conclusões
Refletindo acerca das emoções em contextos educacionais, pude-
mos compreender a centralidade delas nas práticas sociais e pedagógicas
de alunos e professores, possibilitando uma percepção mais atenta e
apurada do que está acontecendo ao redor. Com esse olhar, acreditamos
que o professor pode sentir-se mais empoderado para desconstruir, em
alguma medida, a educação bancária e pouco reflexiva, aproximando-
-se, assim, de um processo de ensino-aprendizagem mais horizontaliza-
do, empático e preocupado com todos os envolvidos nele.
Nesse sentido, quando aos aprendizes, dentro de seus ambientes
específicos, é dado o espaço para a troca de reflexões e experiências,
há um ganho para todos os participantes. Assim, com as nossas con-
versas exploratórias, pudemos refletir, de maneira crítica e cuidadosa,
a respeito de inquietações que tinham grande significado para nós em
determinado momento e que, certamente, ressoam ainda em nossas vi-
das e práticas. Além disso, para as professoras, em contínua formação,
acreditamos que as conversas puderam trazer novos pensamentos sobre
a sala de aula, até pensando em seus próprios fazeres pedagógicos, de
maneira crítica.
Portanto, dar atenção às emoções, em ambientes pedagógicos, é
fazer com que os indivíduos – independentemente da posição que ocu-
pam – possam desenvolver maior sensibilidade em relação ao outro,
colocando em prática a ética amorosa de bell hooks, e a si mesmo,
buscando entender os próprios atos e discursos. Nessa direção, abre-se
espaço para que a educação seja, de fato, libertadora, não só diante do
sistema, que já é opressor, mas também diante de si próprio.
155
Referências bibliográficas
BARCELOS, A. M. F. Desvelando a relação entre crenças sobre ensino e aprendiza-
gem de línguas, emoções e identidades. In: GERHARDT, A. F. M.; AMORIM, M.
A.; CARVALHO, A. M. (Org.). Linguística Aplicada e Ensino: Língua e Literatura.
Campinas: Pontes, 2013. p. 153-186.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 74 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020.
HOOKS, B. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2020.
MILLER, I. K. et al. Prática Exploratória: questões e desafios. In: GIL, G.; VIEIRA-
ABRAHÃO, M. H. Educação de professores de línguas: os desafios do formador.
Campinas: Pontes Editores, 2008. p. 145-65.
MOITA LOPES, L. P. Por uma Linguística Aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola
Editorial, 2006.
156
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
157
basis, will rely upon works that discuss the Literacy and the New Literacy
Studies (STREET, 1984; GEE, 1996, 2000, 2015; SOARES, 1998, 2006;
KLEIMAN, 1995, 2008, 2012) and Academic Literacies (STREET, 2014;
LEA, STREET, 1998; ZAVALA, 2011; FIAD, 2011; WILSON, 2019;
COELHO, 2021). The baktinian concepts of chronotopy and exotopy will
also be used as analysis methods, which will guide the researcher’s “look”
to the “other” from the students’ answers to two questionnaires that will be
applied at two different times. The study is in the theoretical elaboration
phase and the first questionnaire is expected to be applied in May of this year.
After the analysis of the answers to the questionnaires has been carried out,
it is expected that the experiences of students in their academic reading and
writing practices will be mapped, recognizing those that are most recurrent
and that produce meanings and have some impact on their lives.
KEYWORDS: Academic literacies; Academic training; Discourse Genres.
Introdução
O ingresso ao mundo acadêmico é algo marcante. Proporciona ao
indivíduo a possibilidade de agregar conhecimentos valorosos no âmbi-
to cultural e familiar. Entretanto, para que o indivíduo seja partícipe do
contexto acadêmico, é necessário que o estudante se submeta às normas
privilegiadas pela academia e que as internalize. Caso isso não aconteça,
o aluno pode se sentir excluído de tais práticas. Por isso, chegando ao
mestrado, ao se deparar com a necessidade de escrever textos acadê-
micos, alguns estudantes – muitos já professores da educação básica
quando se trata das licenciaturas, se sentem despreparados e, por vezes,
desmotivados. Essa dificuldade do estudante decorre da inexperiência
com determinados gêneros, cujo domínio é, de fato, um comportamen-
to social, como lembram os ensinamentos de Bakhtin (1997).
O conceito de letramentos acadêmicos e dos Estudos do Letramento,
está embasado em autores como Street (1984, 2010, 2012, 2014),
Wilson (2017, 2019), Coelho (2021) Kleiman (1995, 1998, 2005), en-
tre outros importantes autores da área. De acordo com Kleiman (1995,
p. 19), “podemos definir hoje o letramento como um conjunto de prá-
ticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto
158
tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. Em
um escrito posterior, a mesma autora diz entender o letramento “como
as práticas e eventos relacionados com uso, função e impacto social da
escrita” (KLEIMAN, 1998, p. 181). Seguindo essa linha de pensamen-
to, podemos definir letramentos como as práticas sociais de leitura e es-
crita, levando em consideração a forma como tais práticas são colocadas
em ação e a maneira como tais práticas atingem a sociedade (SOARES,
2002).
A partir de observações e reflexões a respeito das práticas de letra-
mentos acadêmicos dos mestrandos e com base nas respostas obtidas a
partir de nossa pesquisa, intentamos realizar uma investigação dos dis-
cursos sobre a leitura e a escrita que subjazem à fala dos alunos. Desse
modo, é importante verificar o que os mestrandos pensam, sentem e
experimentam acerca de suas práticas de leituras e escritas para que,
dessa forma, possamos nos aprofundar nos conflitos com as práticas
de letramentos acadêmicos no âmbito do mestrado. A partir da análise
das experiências dos mestrandos poderemos explorar e nos aprofun-
dar no estudo dos discursos acerca da leitura e produção de gêneros
acadêmicos.
Com base nessa problemática, nosso estudo buscará perceber como
mestrandos de um programa de pós-graduação em Letras de uma uni-
versidade no Rio de Janeiro vivenciam e experimentam as práticas de
letramentos acadêmicos em um curso de mestrado. Os objetivos especí-
ficos desta pesquisa consistem em:ilustrar as experiências dos discentes
acerca da leitura e produção escrita de gêneros acadêmicos; identificar a
ocorrência das práticas de leitura e escrita acadêmicas em um mestrado
acadêmico; apontar quais são os textos/gêneros textuais cuja leitura e
escrita são mais exigidas pelos professores.-mapear as possíveis dificul-
dades encontradas pelos discentes na leitura e na escrita de textos aca-
dêmicos; analisar como os letramentos pregressos e os letramentos do
cotidiano contribuem para os letramentos acadêmicos dos estudantes.
Devido à limitação em relação ao número de páginas e ao fato de
nossa pesquisa ainda se encontrar em fase de desenvolvimento, para este
159
trabalho, optamos em fazer um recorte de nossa discussão teórica acerca
dos letramentos, onde realizamos um breve panorama sobre os estudos
de letramentos, abordando a definição de letramentos (STREET, 2010)
e apresentando os conceitos de práticas de letramento (STREET, 1984)
e eventos de letramento (HEATH, 1982, 1983). Em seguida, começa-
mos a tratar das definições que envolvem os letramentos acadêmicos
(LEA & STREET, 1998; WILSON, 2017, 2019; MARINHO, 2010;
FIAD, 2011; ZAVALA, 2010).Além de traçar um panorama histórico
dessas ideias, discutimos os usos sociais da leitura e da escrita no Ensino
Superior.
Letramentos
O fenômeno do letramento é um tema que recebeu significativa
atenção no Brasil a partir da década de 1990, graças às publicações de
autores como Angela Kleiman e Magda Soares, além de outros estu-
dos sobre o assunto. O movimento conhecido como Novos Estudos
de Letramento (NLS), baseado nos trabalhos de Shirley Heath, Brian
Street, David Barton e Mary Hamilton, para citar alguns dos nomes
mais conhecidos no Brasil, tornou-se conhecido como resultado de tais
obras.
O termo letramento, é derivado da palavra inglesa literacy (habili-
dades de leitura e escrita), é uma adição relativamente nova ao léxico da
Educação e das Ciências Linguísticas, surgindo na segunda metade da
década de 1980. O termo foi aplicado primeiramente nas publicações
de Kato (1986) e Tfouni (1988), mas somente a partir da metade final
da década de 1980 é que o uso e a circulação do termo letramento fo-
ram ampliados graças aos estudos de Tfouni (1995), Kleiman (1995) e
Soares (1998).
Devido à diversidade de práticas ou usos sociais da leitura e da es-
crita, que refletem nas diversas formas como as pessoas interagem com
elas, o termo “letramento” foi cunhado para descrever todas as com-
plexidades que caracterizam o sujeito da leitura e da escrita (SOARES,
2004; MARINHO, 2010). Como resultado, definimos letramentos em
160
consonância com o que Street (2010) define como um conjunto de prá-
ticas sociais que fazem uso da leitura e da escrita, práticas que se carac-
terizam por suas próprias complexidades e pode ser observada em uma
variedade de situações cotidianas. Goulart (2014) também comenta so-
bre a definição de letramento explicando que “o conceito de letramento
está ligado à inclusão dos indivíduos no mundo letrado, envolvendo-o
na participação social e política” (GOULART, 2014, p. 37).
Essa concepção de letramentos, que se sustenta no que Street
(1984) chama de modelo ideológico de letramento, nos interessa de
maneira singular. Street (1984) dissocia o conceito de letramentos do
processo de escolarização, associando-o a metodologias de socialização
mais amplas vinculados às instituições sociais. A concepção ideológica
está pautada nos significados que surgem do cotidiano de cada grupo
social, impedindo que seja interpretado de forma homogênea, como se
as diversas formas de escrita produzissem os “mesmos” significados e se
apresentassem da mesma forma para todos os grupos.
A opção pelo modelo ideológico proporciona um olhar mais sensí-
vel sobre as práticas de letramento, reconhecendo que elas irão variar de
um cenário para outro, pois o letramento é uma prática social, não ape-
nas uma habilidade técnica e neutra. Ou seja, esse modelo leva em con-
ta a singularidade dos letramentos em locais e tempos distintos. Nesse
sentido, os resultados da pesquisa de Heath (1982) demonstram que
cada comunidade tem sua própria concepção de letramento, sendo um
equívoco utilizar a concepção da classe média como paradigma univer-
sal nas sociedades contemporâneas. Essa falha se reflete na sala de aula
quando os professores ignoram as características de aprendizagem do
grupo social ao qual os estudantes pertencem, impedindo-os de receber
a educação de que necessitam.
Street (1984) formaliza o conceito de modelo ideológico de letra-
mento como uma crítica ao chamado modelo autônomo. De acordo
com o autor, o modelo autônomo considera que o letramento ocor-
re apenas em contextos institucionalizados de utilização das práticas
de leitura e escrita. Nesse modelo existe uma correlação direta entre
161
a utilização da escrita e o exercício da escrita formal. Além disso, o
modelo autônomo conclui associando letramento com as noções de
“desenvolvimento” e “civilização”, o que leva à errônea concepção de
que “não-letrados” ou “iletrados” poderiam ser rotulados como “não
desenvolvidos” ou “primitivos”. Street (1984) afirma que os dois mo-
delos não são conflitantes, mas coexistem; o modelo ideológico é o que
melhor representa a heterogeneidade das práticas de escrita e elucida as
relações de poder que são próprias da língua, seja ela falada ou escrita.
Uma das distinções fundamentais dentro da concepção dos
Letramentos é a entre os conceitos de evento e prática de letramen-
to. Esses conceitos servem como modelos analíticos, utilizados pelos
pesquisadores, para entender a diversidade da utilização e os sentidos
que são atribuídos por distintos grupos sociais às práticas de leitura e
escrita.
Para começar, Heath (1983) define um evento de letramento como
qualquer situação em que o texto escrito é algo que constitui a interação
entre os sujeitos. Essa concepção diz respeito aos aspectos mais visíveis
das atividades que envolvem as práticas de leitura e a escrita, ou seja, o
que vemos as pessoas fazendo quando utilizam essas ferramentas. Por
meio dos eventos de letramento, os pesquisadores podem distinguir a
oportunidade, o lugar e a maneira como os sujeitos leem, escrevem,
conversam sobre um texto escrito ou usam a palavra escrita para inte-
ração. Os eventos de letramento acontecem em uma variedade de am-
bientes sociais, podem assumir muitas formas e servem a uma variedade
de propósitos.
É possível nos aprofundarmos acerca dos sentidos que são
atribuídos aos eventos categorizando-os como práticas de letramento.
Street cunhou a expressão “práticas de letramento” em sua obra
clássica em 1984. O conceito permite uma análise e interpretação mais
aprofundada das práticas sociais que envolvem a escrita. Segundo Street
(2012), diferentemente dos eventos, as práticas de letramento não são
abertamente observáveis. Como resultado, é necessário que ocorra
interação com os sujeitos, para que seja possível ouvi-los e conectar os
162
eventos de letramento a outras atividades que eles realizam. Só assim,
os significados construídos naquela situação podem ser compreendidos.
Reforçando essa concepção, Magalhães (2012) afirma:
163
está seu letramento; aqui está outra cultura, aqui está seu letramento”
(adendo meu). O risco, segundo Street (2012), é acreditar na hipótese
de que existe um ‘letramento’ único relacionado a uma ‘cultura’ única.
Utilizamos o termo Letramentos Acadêmicos no plural pois se trata de
uma dimensão distinta de práticas de leitura e escrita social, constituin-
do-se em um tipo particular de letramentos devido às particularidades
que são exclusivas à esfera acadêmica.
164
acadêmicos como uma prática social, que auxiliasse na constituição de
identidades e de conhecimentos e contribuísse para a valorização de
grupos sociais outrora desprezados, de modo que novas maneiras de
sentir e ver o mundo fossem experimentadas, conforme Ivanic (1997),
Lea; Street (1998), Marinho (2010), Zavala (2010), Wilson (2013,
2017), Coelho (2021).
Lea e Street (1998; 2014) e Street (2010) examinam os fundamen-
tos dos letramentos acadêmicos no Reino Unido, com foco nas práticas
de escrita no Ensino Superior. De acordo com Lea e Street (1998), as
abordagens da escrita e da leitura do aluno em contextos acadêmicos
podem ser concebidas por meio da combinação de três perspectivas ou
modelos: habilidades de estudo ou habilidades cognitivas, socialização
acadêmica e modelo de letramentos acadêmicos.
Os letramentos acadêmicos, segundo o modelo de habilidades de
estudo, são compreendidos como uma gama de habilidades de leitura
e escrita desenvolvidas em um contexto particular e cognitivo (LEA;
STREET, 2014). Essas habilidades devem ser aprendidas pelos alunos,
pois são vistas como transferíveis para outras situações (LEA; STREET,
1998). Por conseguinte, habilidades adquiridas em âmbito de uma dis-
ciplina, podem ser reaplicadas em outra disciplina, sem considerar as
práticas letradas e dando pouca atenção ao contexto. Porém, como afir-
ma Fiad (2013), não há como separar os letramentos de seu contexto
pois:
165
os discentes apresentam em relação às práticas de leitura e escrita aca-
dêmica, são tratadas como algo que deve ser corrigido. Segundo Fiad
(2015), esse modelo não leva em consideração a trajetória de letramen-
to prévia do discente e, ao descobrir que esse estudante não dispõe dos
conhecimentos relacionados ao letramento acadêmico, passa a enxergar
o estudante apenas em suas dificuldades, como alguém que necessita de
aprendizado.
Dentro do ambiente acadêmico, por exemplo, há uma continuida-
de desse modelo de letramento, segundo o qual há habilidades indivi-
duais e cognitivas que os alunos precisam desenvolver para que possam
transferi-las para o contexto da universidade, não levando em conta os
processos e a história de letramento que cada um vivenciou antes de
ingressar na vida acadêmica (OLIVEIRA, 2017).
No modelo de socialização acadêmica, o trabalho do docente é
socializar os alunos na cultura acadêmica (LEA; STREET, 1998), pro-
curando fazer com que os alunos dominem e compreendam os regi-
mentos dos discursos existentes no âmbito acadêmico. Em consequên-
cia, caso tenham êxito nesta tarefa, obterão “modos de falar, escrever,
pensar, e interagir em práticas de letramento que caracterizem mem-
bros de comunidade disciplinar ou temática.” (LEA; STREET, 2014,
p. 479). Contudo, de acordo com essa concepção, o âmbito acadêmico
é visto como um espaço de homogeneidade onde apenas o fato de ter
conhecimento de suas normas, levará os alunos a estarem participando
de todas as suas práticas, de maneira ativa, fato que não acontece. Sobre
o modelo de socialização acadêmica, ainda que seja uma abordagem
mais sensível, Street (2010)apresenta diversas críticas, principalmente
sobre o fato de pensar o contexto acadêmico como homogêneo, e que
garante o acesso de todos os alunos de forma plena.
O modelo dos Letramentos Acadêmicos combina elementos das
outras duas abordagens, mas os supera devido ao seu entendimento
mais amplo acerca da natureza da escrita, ressaltando a produção de sen-
tidos, práticas institucionais, relações de poder e autoridade, o caráter
das convenções acadêmicas e questões de identidade (LEA; STREET,
166
2014). Lillis e Scott (2007), afirmam que essa perspectiva tornou visí-
veis dimensões que antes eram invisíveis ou desconhecidas.
A escrita acadêmica é reconhecida como uma prática social na con-
cepção do modelo dos letramentos acadêmicos dentro de um ambiente
institucional e disciplinar definido, e destaca-se a influência de fato-
res como poder e autoridade na produção textual dos alunos. Além
dos aspectos cognitivos da leitura e da escrita, o modelo de letramen-
to acadêmico mobiliza outros saberes. Ele se concentra na formação
de significados, onde são estabelecidas relações identitárias, de poder e
autoridade.
Sobre o modelo dos Letramentos Acadêmicos, Lea e Street (2014)
sustentam que:
167
dos estudantes e todo processo de ensino-aprendizado no âmbito
acadêmico. Além disso é ressaltado que o letramento não é nada estático,
o próprio modelo dos letramentos acadêmicos possui características dos
outros dois modelos, ainda que a perspectiva dos letramentos acadêmi-
cos seja vista como a mais coerente, pois “leva em conta a natureza da
produção textual do aluno em relação às práticas institucionais, relações
de poder e identidades; em resumo, consegue contemplar a complexi-
dade da construção de sentidos, ao contrário dos outros dois modelos”
(STREET, 2010, p. 546).
Os modelos de habilidades e socialização acadêmica têm sido toma-
dos como base para o desenvolvimento de práticas pedagógicas, desde os
anos iniciais do Ensino Fundamental até auniversidade. O modelo dos
Letramentos Acadêmicos é proposto por Lea e Street (2014) como uma
nova perspectiva que vem a contrapor o paradigma dominante. Eles ar-
gumentam que esse modelo pode auxiliar no planejamento de projetos
de desenvolvimento curricular e instrução em ambientes acadêmicos.
No contexto brasileiro, Marinho (2010) afirma que existem diver-
sas pesquisas que discutem o ensino-aprendizado da leitura e da escrita
na Educação Básica, mas que as práticas de leitura e escrita de estudan-
tes do Ensino Superior não têm recebido a atenção que merecem. Essa
é uma das razões pelas quais a pesquisadora optou por focar esse nível
de ensino em sua pesquisa. Esses estudos apontam a desvalorização das
disciplinas oferecidas para trabalhar a escrita e a leitura no nível univer-
sitário, o que é um tanto inesperado diante das contínuas reclamações
dos docentes universitários de que seus alunos têm dificuldade de ler e
escrever textos acadêmicos.
Os docentes frequentemente se surpreendem ao se deparar com
estudantes que não estão familiarizados com a literatura e produção
de gêneros que embasam suas aulas e outros eventos singulares à esfera
acadêmica. Mesmo diante dessas dificuldades, os discentes adotam uma
atitude auto discriminatória, julgando indesculpável não dominarem os
gêneros discursivos. Predomina o modelo de déficit dominante, como
se pode observar. A forma como professores e alunos se enxergam (e
168
de que maneira se enxergam) é baseada em uma crença comum de que
se aprende a ler e escrever, independentemente do gênero, ocorre du-
rante a Educação Básica. Assim, caso o discente tenha cursado pelo
menos doze anos de escolaridade, com aulas obrigatórias de Língua
Portuguesa, e seja aprovado no vestibular, espera-se que tenha domínio
da leitura e da escrita.
Essa crença, por outro lado, não considera que esses alunos pro-
vavelmente estejam engajados nas práticas de leitura e escrita acadê-
mica, pois “os gêneros acadêmicos não constituem conteúdo e nem
práticas preferenciais nas escolas de Ensino Fundamental e Médio”
(MARINHO, 2010, p.366). Por conseguinte, ao invés de presumir
que os estudantes universitários ingressantes não sabem escrever e atri-
buir-lhes uma nota negativa, os professores devem considerar que “ao
entrarem na universidade, os estudantes são requisitados a escreverem
diferentes gêneros, com os quais não estão familiarizados em suas práti-
cas de escrita em outros contextos” (FIAD, 2011, p.362).
De acordo com Marinho (2010), essa dificuldade muitas vezes se
reduz à falta de conhecimento formal da linguagem, portanto, basta-
ria superá-la. Contrastando com essa concepção reducionista, Marinho
(2010) comenta, com base em Bakhtin (1997), que o domínio de gê-
nero é um comportamento social. Consequentemente, as dificuldades
enfrentadas pelos estudantes na produção de determinados gêneros no
âmbito acadêmico se devem à falta de experiência com esses gêneros.
Segundo a autora: “o domínio de um gênero depende da experiência,
da inscrição dos indivíduos nas esferas que os produzem e deles neces-
sitam” (MARINHO, 2010, p. 383).
Em resposta à falta de uma orientação específica, Street (2010) ela-
borou o termo “dimensões ocultas”, no qual alguns aspectos do pro-
cesso de produção textual, assim como os parâmetros utilizados por
aqueles com poder no meio acadêmico, permanecem em sua maioria
escondidos. Acerca dos aspectos que se encontram escondidos em re-
lação à leitura e à escrita, Wilson (2017) reforça que o movimento de
apropriação dos letramentos ocorre em um terreno conflituoso, cheio
169
de nuances e características específicas, independente de existirem ele-
mentos que normatizem as práticas de letramento, no âmbito acadêmi-
co. Desse modo, é necessário que os professores explicitem esses crité-
rios nas discussões em aula, deixando as exigências e convenções para
a leitura e escrita dos gêneros transparentes e acessíveis, para que os
discentes possam assumir uma posição autoral em relação às práticas de
leitura e escrita acadêmica.
Street (2010) defende que os gêneros acadêmicos não devem ser
identificados e classificados apenas com base em dimensões estruturais
e históricas, mas sim com base em suas “dimensões ocultas”. O autor
identifica a obrigação de explicitar o que é frequentemente tratado a
nível de hipótese, e propõe que essas dimensões sejam objeto de dis-
cussão entre professores e alunos, levando em consideração o gênero
em uso. Marinho (2010) também destaca o fato de ser necessário “des-
locar o aluno e o professor de determinados pressupostos, convenções
e acordos tacitamente estabelecidos, quando se realizam atividades nas
disciplinas de curso superior” (MARINHO, 2010, p. 377).
Para resolver os problemas discutidos, não basta especificar como
o gênero acadêmico está organizado linguisticamente, ou seja, não é
suficiente que os estudantes adquiram uma gama de estratégias textu-
ais, gramaticais, e os conceitos normativos próprios dos gêneros acadê-
micos. Antes disso, é preciso que ocorra a conscientização acerca das
condições relacionadas às produções textuais na academia. Sobre essa
conscientização Fiad (2011) afirma que “precisam ficar claros os mo-
tivos pelos quais algumas práticas são privilegiadas no domínio acadê-
mico em detrimento de outras, qual significado determinada prática de
letramento tem nesse domínio” (FIAD, 2011, p.363).
Ademais, os escritos de nível universitário e de Ensino Médio são
frequentemente atividades fictícias e fabricadas. Se a artificialidade for
reduzida, os alunos terão mais oportunidades de desenvolver a escrita,
bem como utilizá-la como ferramenta de aprendizagem e construção
do conhecimento, formando uma “relação mais positiva e produtiva
dos estudantes universitários com a escrita acadêmica” (MARINHO,
2010, p. 383).
170
Podemos, desse modo, compreender que o processo de ensino e
aprendizagem no nível superior está relacionado muito mais do que
apenas as práticas de leitura e escrita. Segundo Street (2014), o êxito dos
alunos nas práticas de redação universitária não depende apenas de suas
aptidões. Quando questionada sobre as características de um indivíduo
letrado, Fischer (2008) afirma que ser letrado academicamente:
171
Dentro da concepção de que os Letramentos Acadêmicos são con-
cebidos como prática social, não é possível desconsiderar que os âm-
bitos sociais em que vivem esses novos grupos emergentes ao Ensino
Superior, terão impactos em seus letramentos, pois reconhecem que
este não é um saber que pode ser ensinado e aprendido objetivamente,
mas está indissociavelmente ligado às vivências dos sujeitos. Assim, os
letramentos acadêmicos não devem ser concebidos como “habilidade”
que serve de critério para a classificar os estudantes, distinguindo os
bons alunos daqueles com algum tipo de déficit. Os Letramentos, por
outro lado, são um processo contínuo de construção de saberes que
acontece com o envolvimento dos sujeitos em práticas sociais. Zavala
(2010) corrobora com o que foi afirmado acima, ao dizer que:
172
Wilson (2019), seguindo a mesma linha de pensamento de Zavala,
enfatiza que a forma como os estudantes escrevem dentro da universi-
dade é influenciada por suas vivências com a língua, ou suas origens em
contato com novos letramentos; através das relações de poder decor-
rentes do peso do destinatário que irá avaliar a escrita dos estudantes.
Desse modo, percebemos que os letramentos estão intimamente ligados
às experiências diárias linguísticas próprias de cada âmbito social.
Em geral, os discentes não ingressam ao âmbito universitário sem sa-
ber escrever, eles se configuram como sujeitos letrados que estão inician-
do nas práticas de leitura e escrita de nível universitário. Desse modo é
importante que os docentes compreendam que os estudantes ao ingres-
sar na esfera acadêmica podem ser considerados como “[...] imigrantes
que enfrentam uma nova cultura, admite que isto é intrinsecamente um
desafio para qualquer um, que se trata de um processo de integração a
uma comunidade estrangeira e não uma dificuldade de aprendizagem”
(CARLINO, 2003, p. 20, tradução nossa)17. Sendo assim, é importante
que esses alunos se sintam acolhidos e que possam ser familiarizados
com as práticas de leitura e escrita próprias do âmbito acadêmico.
Os letramentos acadêmicos não são apenas a aprendizagem de téc-
nicas, mas sim um elemento fundamental para a construção de conhe-
cimentos e de identidades, pois auxiliam na criação de novas formas de
significar e de enxergar o mundo (ZAVALA, 2010). Segundo Zavala
(2010, p. 81), “as formas de escrita caminham juntas às formas de pen-
sar e as operações cognitivas envolvidas são, por sua vez, inseparáveis da
compreensão subjetiva e contextualizada que a pessoa faz de mundo”.
Ainda sobre o processo de construção de identidades na esfera
acadêmica Ivanic (1997) afirma que:
173
dominantes, e os valores, crenças e interesses por eles incorpora-
dos. (IVANIC, 1997, p. 104, tradução nossa) 18
Conclusão
Para os propósitos da pesquisa, acreditamos ser apropriado observar
e analisar as experiências relacionadas às práticas acadêmicas de leitura
e escrita, através das respostas dos mestrandos ao questionário, para que
seja possível conhecer mais sobre suas vivências, os sentidos atribuídos a
essas práticas, suas expectativas, realizações e possíveis frustrações. Para
identificar as práticas de letramentos se faz necessário a ocorrência da
interação com os sujeitos, para ouvi-los e vincular os eventos de leitura e
escrita a outras atividades realizadas por eles. Desse modo, vamos abor-
dar as experiências dos estudantes sobre a leitura e a escrita acadêmica
como uma prática de letramentos acadêmicos.
Para dar prosseguimento a nossa pesquisa, nossos próximos passos
serão tratar sobre os aspectos teóricos que enquadram nossos pressupos-
tos metodológicos e instrumentos de pesquisa (MINAYO, 2010), além
de realizarmos a apresentação e a descrição dos participantes do estudo.
Em seguida, será feita a análise do estudo de campo que serviu de base
para a criação da pesquisa. Por meio dela, iremos compreender as ex-
periências dos alunos nas práticas de letramentos acadêmicos utilizadas
no Ensino Superior.
174
Reiteramos a importância da escolha da temática desta pesquisa,
pois é fundamental tentarmos entender as dificuldades e os obstáculos
que os mestrandos encontram no que se refere às práticas de leitura e
escrita de gêneros textuais acadêmicos no âmbito do mestrado, bem
como, se a trajetória deles durante a graduação, teve influência em tais
dificuldades.
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177
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178
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
179
ABSTRACT: This article is the result of the Scientific Initiation research called
“The alteration in voice volume as an affective stance in talk-in-interaction in
a school setting” (in press), which is part of the research project “Emotions-in-
interaction”, coordinated by the second author of this work. In the subproject,
the alteration of the voice volume, especially the scream, is examined as an
affective stance in the talk-in-interaction in the classroom, with the interest,
also, of going beyond a priori ideas about scream necessarily exhibit anger
or emotional out of control, for example. Using the Conversation Analysis
approach and using audiovisual recordings that make up the database of
the Grupo Linguagem, Interação e Etnometodologia (GLIE), the motto of
the research is to understand how the action of screaming is organized in a
certain scene in the situational context of a class, since the analysis of this
phenomenon can contribute for understanding emotions, in an interactional
perspective. From the corpus, a moment was cut in which some screams were
made relevant by the participants and resulted in “consequent” actions in the
interaction. Thus, with the increase in the volume of voice, the objective is to
understand and describe (in a detailed, contextualized and non-aprioristic way)
the actions that would be related to this exhibition and how the participants
give evidence of their interpretations from them. This analysis, then, leads to
two possible considerations, in that context, in relation to the phenomenon:
(i) it evidences engagement with the ongoing interactional agenda, in order
to guarantee that the participants win the ratification of other interactant(s)
for this engagement; and (ii) highlights the immediate demand for affiliation
of the addressed participant, since he is, in some way and for some reason,
resistant to the answers offered. In summary, the present analysis helps to
better understand the phenomenon of screaming in the classroom, in order
to constitute an empirical source of information for classroom practitioners
about the phenomenon.
KEYWORDS: Alteration in voice volume. Scream. Affective stance. Talk-in-
interaction in the classroom in late modernity.
Introdução
Em uma rápida busca na internet pelos termos “grito” e “sala de
aula”, é possível encontrar alguns blogs educacionais que entendem que
elevar o tom de voz em sala de aula se trata de descontrole emocional, in-
disciplina, irracionalidade, arbitrariedade e, deve, assim, ser controlada,
180
razão pela qual dispõem de tutoriais e estratégias para isso. Em um
dos blogs, afirma-se: “fato é que o grito, é sem dúvida uma agressão
emocional e psicológica, é muitas vezes seguidos de ofensa, que é um
tipo de agressão não bem-vinda em um lugar e principalmente em sala
de aula onde bom senso, e o equilíbrio é requerido”. (ALVES, [s.d.],
recurso on-line, negrito no original). Tais afirmações, generalizantes e
sem compromisso com a observação empírica da realidade, não levam
em consideração, por exemplo: (i) o momento em que o aumento de
volume de voz (e.g. grito) pode ocorrer; (ii) o que o provoca; e (iii) que
outras ações se desdobram naquela situação.
Em uma situação comunicativa, de maneira geral, ações empre-
endidas pelos atores sociais durante a interação estão relacionadas à
produção de demonstrações públicas a respeito de como estão com-
preendendo as ações uns dos outros. Tais ações são passíveis de escru-
tínio minucioso pela ótica da Análise da Conversa (AC), abordagem
teórico-metodológica assumida por esta pesquisa, pois ela parte do
âmbito interacional para analisar a organização da sociedade (SILVA,
ANDRADE, OSTERMANN, 2009). Assim, o interesse central da AC
é descrever a ação social por meio da “observação de dados de ocor-
rência natural dessa ação mediante o uso da linguagem” (GARCEZ,
2008, p. 22), e é comum a essa corrente voltar-se para uma ação do
cotidiano (bem como à visão do senso comum a respeito) e analisá-la
em minúcias. Para tanto, afirma-se que, na conversa, os participantes
se orientam à fala um do outro (e essa orientação se dá de forma se-
quencial e ordenada), uma vez que eles se valem de determinadas téc-
nicas para desempenhar as ações turno a turno (SILVA, ANDRADE,
OSTERMANN, 2009) – o que evidencia que a conversa é passível de
ser analisada.
Entre essas técnicas, inclui-se a alteração do volume de voz (e.g.
o grito), que é muito comum na interação humana. Em um espaço
diverso como a sala de aula e que possui algumas marcas interacionais
específicas, analisar esse fenômeno é relevante para buscar entender
o que ele significa para a organização social nesse contexto e para os
181
participantes envolvidos – trabalha-se, aqui, com a perspectiva êmica,
entendida como a perspectiva dos interagentes sobre as ações conforme
eles a demonstram (GARCEZ, 2008). A fala-em-interação em sala de
aula se constitui, de acordo com Del Corona (2009), como um tipo de
fala institucional devido a três pontos básicos: i) orienta-se para o cum-
primento do mandato institucional (deveres e metas dos participantes
em relação à instituição de que fazem parte); ii) restringe-se às contri-
buições aceitas (há limites e normas quanto às ações a serem implemen-
tadas no cenário em questão); e iii) envolve a inferência de enquadres
e procedimentos (refere-se a papéis e ações que são bem marcados em
contextos específicos).
Durante a observação dos dados, foram percebidas muitas situa-
ções de alteração de volume, mas uma boa parte delas não foi notada,
ou seja, não foi tornada relevante pelos próprios interagentes. Não obs-
tante, destaca-se o caso de uma série de gritos (que se configuram como
um tipo de alteração de volume) que foi tornada relevante em certo
momento e foi importante às ações subsequentes da interação. Desse
modo, tem-se trabalhado com a alteração do volume de voz a partir
do grito, e interessa, também, ir além de ideias a priori de que o grito é
uma forma de exibição de raiva, por exemplo.
Objetiva-se, portanto, a partir do aumento do volume de voz, com-
preender e descrever (de forma minuciosa, contextualizada e não aprio-
rística) as ações que estariam relacionadas a essa exibição e como os
participantes sinalizam suas interpretações a partir delas (seria exibição
de raiva? de autoridade? de empolgação? de engajamento? de desconfor-
to?). Em síntese, tem-se como mote entender como a ação de aumentar
o volume de voz se organiza em uma determinada cena no contexto
situacional de uma aula, pois a análise desse fenômeno pode contribuir
para a compreensão das emoções, em perspectiva interacional.
Ademais, segundo Ruusuvuori (2013), toda conversa é afeti-
va até certo ponto, já que aspectos emocionais podem ser percebi-
dos pelo tom de voz, pelas escolhas lexicais, pelas expressões faciais,
182
independentemente se serem ações corporificadas ou oralizadas. Tendo
em vista que esses aspectos se constituem como um recurso relevante
para a interpretação de uma ação, a exibição de posturas afetivas é outro
ponto considerado pela pesquisa. Nesta pesquisa, “postura afetiva” é en-
tendida como uma prática situada de demonstração de emoção impli-
cada na performance dos falantes através de recursos multissemióticos
(entonação, gestos, postura corporal, entre outros)22.
Os dados
O segmento interacional a ser analisado neste trabalho foi gerado
por Mascarenhas (2020). Em sua análise acerca das posturas epistêmi-
cas em sequências de ativação do conhecimento prévio em uma aula de
inglês, o pesquisador gravou, em instrumentos de áudio e vídeo, três
aulas que compuseram uma sequência didática sobre casa e moradia,
incluindo uma atividade de vocabulário com identificação das partes de
uma casa. Toda essa sequência gravada totalizou 1h32min56s de ma-
terial audiovisual, a partir do qual foram segmentados e transcritos de
acordo com parâmetros de transcrição da AC (JEFFERSON, 2004).
Segue, abaixo, o quadro com a distribuição dos vídeos observados:
183
QUADRO 1 – Distribuição dos vídeos
Análise
No segmento escolhido para ser analisado neste trabalho, Flávio23
(FLA), dando continuidade a um trabalho de correção de atividade,
convida a turma a olhar para a segunda imagem da folha (“a segunda
aí ↑ó”, ℓ. 01). A seguir, destaca-se o ponto exato da seção “New vocabu-
lary” do material didático fornecido (cf. fig. 1) para o qual FLA convida
toda a turma a olhar e a transcrição do momento da aula em que esse
convite é feito:
Excerto 1
184
VÍDEO_1_AULA_2 [12m15s a 12m54s]24
01 FLA a segunda aí ↑ó
02 (.)
03 FEL °>fogão<°
04 (0,3)
05 FLA cooker.
06 (0,4)
07 IAG [ fogão ]
08 DAC [° banhei]ro°
9 (0,3)
10 FEL fogão
11 (.)
24
Por se tratar de uma interação em sala de aula, com grande número de partici-
pantes, outras situações ocorreram paralelamente ao momento da pergunta do
professor e das respostas dos alunos. Em razão disso, as ações paralelas foram
descartadas da transcrição com objetivo de priorizar-se esse diálogo específico
em que há alterações de volume da voz dos participantes. Somente uma situação
de conversa paralela (cisma) foi registrada na transcrição por ter sido tornada
relevante pelos interagentes (cf. Excerto 3, mais adiante).
185
Após o convite de FLA para que os demais interagentes voltassem
sua atenção para a segunda imagem (ℓ. 01), ocorre uma breve pau-
sa (ℓ. 02) e, depois disso, Felipe (FEL) apresenta uma possibilidade
de resposta, ou o que também pode-se chamar de “resposta candidata”
(“°>fogão<°”, ℓ. 03). A pausa seguinte, de três décimos de segundo (ℓ.
04) pode ser indicativa de algumas possibilidades de “recebimento” des-
sa resposta. Uma possibilidade seria a de que FLA possa não ter ouvido
a resposta, pois FEL a emite em volume mais baixo (como é possível
perceber na transcrição pelo símbolo “ º ” presente antes e depois da
UCT25 enunciada) e de forma acelerada (como é possível perceber pelos
símbolos “>” e “<” antes e depois da mesma UCT). Outra possibilidade
seria a de que, mesmo tendo ouvido a resposta candidata, FLA estaria
abrindo espaços de oportunidade para que outros participantes tomas-
sem o turno e oferecessem outras respostas candidatas. Como isso não
acontece, FLA então lê a palavra que está ao lado (e um pouco abai-
xo, cf. fig. 1, no detalhe) do segundo desenho (“cooker.”, ℓ. 05). Essa
leitura após a resposta candidata de FEL começa a tornar um pouco
mais forte a segunda possibilidade (a de que FLA escutou, mas estaria
aguardando outras respostas candidatas), tornando, assim, mais fraca a
primeira (a de que ele não teria ouvido).
No entanto, mesmo após o convite para direcionar os olhares para
o segundo desenho (cf. ℓ. 01) e ler a palavra relacionada a esse desenho
(cf. ℓ. 05), ainda assim nenhuma outra resposta é proferida, e mais uma
situação de descontinuidade na sequência tem lugar (ℓ. 06). Essa pau-
sa também pode ser vista como uma oportunidade em que os demais
participantes precisariam decidir se e como tomariam o turno, já que
FLA não faz uma seleção do falante seguinte, o que permite então que,
se FLA não continua falando, qualquer outro possa iniciar um turno na
sequência. Isso fica evidente quando Iago (IAG) e Daniel Castanheiras
(DAC), após a pausa, tomam o turno ao mesmo tempo, resultando em
sobreposição de vozes. Com isso, é interessante observar como ambos
25
UCT é uma sigla que remonta à expressão Unidade de Construção de Turno,
conceito importante em AC.
186
oferecem respostas candidatas distintas. Enquanto IAG oferece uma
resposta semelhante à que FEL já havia enunciado anteriormente (“fo-
gão”, ℓ. 07), DAC se refere à segunda imagem do desenho geral da casa
(cf. fig. 2, a seguir).
26
Na folha que foi entregue aos/às estudantes, havia centralizada a imagem de uma
casa, com quatro cômodos distintos, dispostos em duas colunas e duas linhas. A
imagem mais à esquerda e mais acima apresenta um quarto e a imagem ao lado,
mais acima e mais à direita, a de um banheiro. Já as figuras mais abaixo são uma
sala, mais à esquerda, e a cozinha, mais à direita. Considerando que, no ocidente
global, o fluxo de leitura segue um percurso da esquerda para a direita e de cima
para baixo, a segunda imagem, entre essas quatro, de acordo com a resposta de
DAC, era a do banheiro. Desse modo, sua resposta demonstra sua compreensão
de que a pergunta de FLA se referia à imagem central da folha, e não à imagem
mais ao lado com o subtítulo “New Vocabulary”.
187
por FLA ao falar “segunda” (cf. ℓ. 01) ainda não tinha sido recuperado
por todos os estudantes, e essa percepção pode ser importante para se
compreender o que acontece mais adiante na sequência. Após essa so-
breposição de vozes, nova pausa se instaura na interação (cf. ℓ. 09), e
FEL, em seguida, volta a oferecer a mesma resposta candidata que havia
fornecido anteriormente (“fogão”, ℓ. 10), só que dessa vez, em um tom
de voz mais alto que o anterior, que havia sido proferido em volume
mais baixo.
Na continuação da sequência, após uma micropausa (ℓ. 11), FLA
inicia um reparo, que, em se tratando do contexto situacional da sala
de aula, marca uma prática muito comum nesse cenário: a iniciação de
reparo, não como método para buscar uma informação desconhecida,
mas como método para ratificar (ou não) uma informação já conhecida,
pelo menos da parte de quem inicia o reparo (o professor, nesse caso)27.
188
Diante do início de reparo de FLA (ℓ. 12), nova descontinuidade
se instala (ℓ. 13), para em seguida, novamente, os mesmos participantes
de antes, DAC e IAG inserirem suas contribuições em sobreposição de
vozes. Enquanto DAC volta a insistir em demonstrar seu entendimento
de que a pergunta a que FLA estaria se referindo à segunda imagem
da figura central da casa na folha fornecida (“banheiro”, ℓ. 14), IAG
responde ao início de reparo de FLA, confirmando que sua resposta era
mesmo aquela que ofereceu antes (“(FOI)”, ℓ. 15). É importante res-
saltar que, dessa vez, tanto DAC quanto IAG produzem suas respostas
com alterações prosódicas em seus turnos. O primeiro impõe ênfase
sobre a sílaba tônica da palavra que compõe o seu turno (ℓ. 14), e o
segundo produz sua resposta em uma UCT com a extensão de uma
palavra com volume mais alto, ou seja, “gritado” (ℓ. 15).
A partir dessa resposta, ocorre nova pausa, a maior até o momento,
com mais de um segundo de extensão (ℓ. 16). Essa pausa, pelo que é
possível observar, já pode caracterizar mais fortemente uma orientação
de FLA para demonstrar que as respostas fornecidas até esse ponto da
interação ainda não atendem corretamente ao que foi perguntado, isto
é, a tradução de cooker não corresponde a nenhuma das respostas já for-
necidas até então: não significa “fogão” nem “banheiro”. A partir dessa
constatação, também já não é mais possível inferir que FLA não tenha
ouvido as respostas, como foi levantado anteriormente28.
Na continuidade da sequência, FEL, demonstrando ter com-
preendido que as respostas oferecidas anteriormente estariam erradas,
apresenta então uma nova resposta candidata (“é (freezer)”, ℓ. 17), ao
mesmo tempo em que Romeu (ROM), em sobreposição, reafirma a
resposta já dada anteriormente pelos colegas (“é fogão.”, ℓ. 18). Essa
reapresentação de uma resposta já “testada” anteriormente pode ter
duas explicações: (i) ou é uma técnica de repetir uma resposta de modo
a mostrar para o professor que mais estudantes estão em conformidade
com a resposta do primeiro colega que a ofereceu, e assim, ratificar a
técnica de iniciação de reparo como um método para verificar se os
demais participantes estão certos de suas respostas; (ii) ou é uma técnica
189
de repetir a resposta com a demonstrada presunção de que talvez ainda
FLA não tenha ouvido os outros colegas dizendo “fogão”. Essa segunda
possibilidade também se destaca em razão das posições que os partici-
pantes ocupam na sala: FEL e IAG estão fora do enquadre da câmera,
no fundo da sala, em posição diametralmente oposta ao professor, en-
quanto ROM está sentado na frente da turma, na primeira carteira,
praticamente em frente à mesa do professor.
O silêncio de um segundo e quatro décimos de segundo, na se-
quência (ℓ. 19), marcam nova descontinuidade e novas oportunidades
abertas por FLA para o surgimento de novas respostas, que é o que
acontece quando IAG toma o turno novamente (“air fryer”, ℓ. 20). No
entanto, após terem surgido muitas oportunidades de oferta de respos-
tas candidatas, FLA toma o turno e inicia um movimento em direção a
prover uma resposta para a questão que tinha sido feita antes, eviden-
ciando que nenhuma das respostas candidatas anteriores correspondia
à correta tradução de cooker. O interessante é a forma como ele inicia
esse movimento, porque ele não oferece a tradução de pronto, mas ape-
nas, por enquanto, faz, de forma modalizada, uma observação acerca da
insistência dos demais participantes em tratar “fogão” como tradução
para cooker (“eu conheço- (0,7) fogão como ↑ó stove.”, ℓ. 21). Depois
dessa consideração, novas respostas candidatas ganham espaço na ten-
tativa de encontrar a palavra em português equivalente ao termo cooker,
em inglês:
190
Excerto 3 - continuação do excerto anterior
VÍDEO_1_AULA_2 [12m15s a 12m54s]
22 (0,5)
23 DAC RELÓGIO,
24 (0,5)
26 DAC é relógio.
27 FLA [°nã:::o°]
28 TAL [meu fi ]lho relógio é
29 ( ) (é cl[ock)] ➔ IAG FORNO
30 DAC >[que ] que ➔ IAG FORNO
31 cê falou?< ➔ IAG FORNO
32 (0,6)
➔ 33 IAG FORNO
34 (0,5)
35 RAF precisa gritar=
➔ 36 IAG =FORNO=
37 FLA =no caso
38 aí gente é a panela
39 (0,3)
191
um relógio, pode ter sido a fonte dessa nova resposta candidata. Nesse
caso, no entanto, talvez levando essa possibilidade em consideração,
FLA não tardou em afirmar que essa resposta não era uma possibilidade
(“°nã:::o°”, ℓ. 27). De igual modo, inclusive em sobreposição de voz
com o professor, Talia (TAL) também se mobilizou para desconsiderar
a resposta de DAC como uma possibilidade, e ainda fazendo a correção
de maneira direta (“meu filho relógio é ( )(é cl[ock)”, ℓℓ. 28-29).
Essa maneira mais incisiva de corrigir levou DAC, sobre a afirmação da
colega, a iniciar reparo (“>que que cê falou?<”, ℓℓ. 30-31), mas essa
ação não vai adiante.
Paralelamente, em um cisma29, IAG fornece uma resposta candida-
ta nova (“FORNO”, ℓ. 29) e o faz com insistência, aos gritos (cf. ℓℓ.
30, 31, 33 e 36). Essa insistência ganha a afiliação30 de Rafael (RAF),
que, ao produzir uma formulação para a ação implementada por IAG,
presta contas dessa ação, tratando-a como inevitável (“precisa gritar”,
ℓ. 35). Nesse sentido, é válido notar que esses gritos insistentes de IAG
parecem induzir FLA, então, a fornecer logo a resposta correta, que é
o que ele faz em seguida (“no caso aí gente é a panela”, ℓℓ. 37-38),
29
A noção de “cisma” em AC está relacionada à distribuição dos turnos em uma
conversa. De acordo com Sacks (et al. 2003 [1974], p. 28-29), “[c]om quatro ou
mais partes, introduz-se uma restrição possível para a tendência pela possibilida-
de de cisma. Se existe um interesse em reter, em uma dada conversa, algum dado
conjunto atual das partes (onde existem no mínimo quatro), então os meios do
sistema de tomada de turnos para implementar esse esforço envolvem ‘a disper-
são de turnos’, uma vez que qualquer par de partes que não esteja recebendo
ou tomando o turno ao longo de algumas seqüências de turnos pode encontrar
acessibilidade mútua para entrar em uma segunda conversa”.
30
Na interação, as ações dos participantes podem se afiliar ou não à postura ou
ao ponto de vista do falante. O interlocutor se afilia, por exemplo, quando de-
monstra apoio e endossa a postura exibida pelo falante corrente. Além disso,
chamam-se “ações afiliativas” as ações que se afiliam à postura; enquanto cha-
mam-se “ações desafiliativas” as ações que não se afiliam (COAN, 2021, apud
STIVERS, 2008, p. 31-57). Ressalta-se que as pesquisas em afiliação estão di-
retamente ligadas aos estudos sobre afeto e emoção. Por esse ângulo, a emoção
é compreendida, através de uma perspectiva social e não cognitiva, como uma
ação que envolve atores sociais, signos e ferramentas auxiliadoras, tais como: a
linguagem, os textos, gestos corporais, objetos e os espaços (COAN, 2021, apud
LEWIS; CRAMPTON, 2015).
192
suspendendo a trajetória anterior de abrir espaços de oportunidade até
que a resposta correta pudesse ser fornecida por algum estudante, e não
por ele.
Na continuação da sequência, o que se observa é o recebimento dessa
resposta por parte daqueles que haviam feito tentativas anteriormente:
193
orientação dos participantes em relação aos recursos utilizados no início
e que foram abandonados no fim. Os gritos, nesse caso, foram respon-
sáveis por alterar o método adotado por FLA que, inicialmente, estava
voltado para não tomar o turno a fim de que surgissem espaços de opor-
tunidade em que os estudantes pudessem por si só, olhando as imagens
e formulando possibilidades, oferecer a resposta correta que correspon-
desse à tradução do termo em foco. Com a adoção de uma postura
insistente de IAG em produzir uma resposta candidata não correspon-
dente ao que foi tratado como esperado pelo professor, o método inicial
precisou ser abandonado, e outra forma de se cumprir a proposta foi
assumida, sendo, portanto, o próprio FLA a fornecer a resposta correta.
Considerações finais
A análise desses excertos leva, portanto, a duas considerações im-
portantes: (i) a alteração do volume de voz não é indício de descontrole
emocional ou desatenção na aula, mas evidencia engajamento com a
agenda interacional em curso, buscando conquistar a ratificação do ou-
tro interagente para esse engajamento; e (ii) ressalta a demanda imedia-
ta por afiliação do participante endereçado, uma vez que ele se mostra,
de alguma forma e por algum motivo, resistente às respostas oferecidas.
Em uma interação, alterar o volume de voz pode acontecer por
motivos variados e pode trazer consigo diversas interpretações. Nesta
pesquisa, focalizou-se o grito em certo momento de uma interação em
sala de aula. Tendo em vista o ambiente institucional no qual o grito se
deu, é possível que alguém o entenda como um caso de perda de auto-
ridade do professor, já que, institucionalmente, cabe a este o papel de
gerenciar a fala-em-interação em sala de aula, o que incluiria, portanto,
tratar os gritos como inapropriados31 no contexto situacional em foco.
Para além de avaliar “impropriedades” na sala de aula, remontamos à
31
Del Corona (2011) lembra que, como as interações institucionais se orientam
para o cumprimento de um mandato (que, por sua vez, implica um uma série de
práticas próprias), qualquer contribuição que não vá ao encontro deste pode ser
entendida como inapropriada ao contexto.
194
afirmação de Garcez e Lopes (2017, p. 67), segundo os quais “mais do
que simplesmente descrever como se organiza a interação numa tal sala
de aula, indagamos que oportunidades há para aprender, que evidências
haveria de que os participantes estão engajados (também) no trabalho
de aprender, e se aprendem”.
Do mesmo modo, neste trabalho, temos ainda o intuito de mos-
trar que certas posturas adotadas em sala de aula, em uma visada mais
aligeirada, poderiam permitir a interpretação de que se trata de indis-
ciplina ou desrespeito, mas, com o ajustar das lentes e um olhar mais
minucioso, é possível notar que os gritos também podem ser índices
importantes de engajamento e participação na sala de aula. Por meio
da análise, entende-se, portanto, que os gritos de Iago tratam de um
mecanismo interacional de engajamento do qual o discente se valeu
naquele momento da interação. Ademais, compreende-se que essa ação
se caracteriza como o trabalho do aluno de fazer-se ser ouvido pelo
professor e de dar sua resposta à pergunta feita. Em outras palavras, ele
estava apenas tentando participar da aula.
Referências
ALVES, Wesley. O que é pedagogia do grito? [s.d.] Disponível em: <https://pales-
traparaprofessores.com.br/educacao/o-que-e-pedagogia-do-grito/>. Acesso em: 31 jul.
2022.
195
DEL CORONA, Márcia de Oliveira. Fala-em-interação cotidiana e fala-em-interação
institucional: uma análise de audiências criminais. In: LODER, L.L.; JUNG, N.M.
(Org.). Análises de fala-em-interação institucional: a perspectiva da Análise da
Conversa. Campinas: Mercado das Letras, 2009. cap. 1, p. 13-44.
GARCEZ, P. M.; LODER, L. L. Reparo iniciado e levado a cabo pelo outro na con-
versa cotidiana em português do Brasil. Revista Delta, v. 21, n. 2, p. 279-312, 2005.
196
SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON (2003[1974]). Sistemática elementar para a or-
ganização da tomada de turnos para a conversa. Tradução publicada em Veredas, Rev.
Est. Ling, v. 7, n. 1 e n. 2, Juiz de Fora, p. 9-73, jan./dez. 2003.
197
] Indicação de onde termina exatamente uma fala sobreposta
£ trecho £ Indicação fala risada
.h Expiração audível (e.g. risos)
.h Inspiração audível
FLA Indicação do turno de fala de um/a dos participantes (e.g. Flávio)
Fonte: Jefferson (2004), adaptado pelo GLIE e inspirado em Silva, Andrade e
Ostermann (2009).
198
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
POLITIZAÇÃO DA PANDEMIA:
REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS
NAS REDES SOCIAIS
199
More specifically, we aim to identify discursive representations on the theme
‘the politicization of the pandemic in social networks’. We are based on
Bakhtinian conceptions of language, being basic for the development of the
study notions of dialogism, enunciation, alterity, ideology, among others.
We also rely on the studies of Applied Linguistics on language practices in
cyberspace. The corpus consisted of: posts on the social network Twitter
that addressed the selected theme; and the video of the Brazilian president’s
speech about the beginning of the pandemic. In order to investigate the
discursive functioning of the politicization of the pandemic, we listed, from
an initial reading of the corpus, five axes of analysis that constituted sub-
themes, namely: i ) the pandemic; ii) the lockdown; iii) early treatment; iv)
the vaccine; and v) religious practices. For each of these axes, representations
were delineated to point out the effects of meaning of the utterances produced
in the corpus. The analyzes point out that the production and circulation of
meanings in cyberspace affect the construction of “truths”, which, in turn,
position subjects, institutions, and finally public policies in order to (dis)favor
certain social groups. In the case of the theme we investigated here, it is noted
that this incidence not only (un)veils conflicting ideologies, but impact/ed in
the lives of thousands of Brazilians.
KEYWORDS: Speech; Pandemic, Twitter.
1. Introdução
O trabalho em tela apresenta resultados parciais de uma pes-
quisa de Iniciação Científica do Ensino Médio desenvolvida pelos
três primeiros autores, sob a orientação da última autora do texto. A
pesquisa foi desenvolvida no âmbito do projeto “Tomada da palavra
na rede digital: (im)possibilidades de dizer(-se) na contemporanei-
dade”, o qual se propôs a: i) promover o engajamento do aluno da
educação básica em práticas discursivas que consideram a lingua-
gem em sua dimensão histórica, sociocultural e política; ii) mapear
e descrever os aspectos linguístico-enunciativos que constituem os
gêneros discursivos digitais (tais como comentários on-line, fóruns
virtuais, vídeos do youtube, dentre outros); iii) investigar represen-
tações discursivas (sobre si, sobre o(s) outro(s), sobre temáticas va-
riadas) construídas pelos sujeitos, ao tomarem a palavra, na rede
200
digital; iv) discutir as possibilidades de constituição de um lugar
autoral pelos sujeitos em seus modos de dizer(-se) na rede digital;
e v) problematizar as (im)possibilidades dos dizeres instauradas na
relação sujeito-ciberespaço.
A partir do referido projeto, e balizados por uma perspectiva enun-
ciativo-discursiva de linguagem, os bolsistas analisaram representações
discursivas sobre o tema politização da pandemia nas redes sociais,
em postagens no Twitter e no vídeo de pronunciamento do atual presi-
dente no início da pandemia.
Para explicitar o desenvolvimento da pesquisa, apresentamos, neste
texto, além desta introdução e das considerações finais, algumas noções
teóricas que fundamentaram a investigação; seu desenho metodológico;
e alguns gestos de análise.
201
Importante também foi o texto de Di Fanti (2003), que nos per-
mitiu uma entrada nas concepções bakhtinianas de linguagem, a partir
das noções de dialogismo, plurilinguismo e enunciação. Com Di Fanti,
aprendemos que a interação verbal se constitui no/pelo movimento
‘linguístico-ideológico-dialógico” da palavra, sendo que os enunciados
são (re)produzidos em uma “teia de discursos” que se comunicam entre
si. Todo dizer remete-se a um dizer já-dito, assim, a tomada da palavra
reveste-se de nuances e entonações histórico-sociais e ideológicas.
Nessa mesma esteira, discutimos o texto de Alves (2016), que dis-
corre sobre a multiplicidade dos enunciados concretos – unidade ne-
cessária à linguagem – na constituição da cadeia discursiva a partir da
teoria bakhtiniana. Desse modo, analisamos a origem do termo “enun-
ciado”, que é traduzido do russo “viskázivanie” e indica “transmitir, ex-
primir pensamentos/sentimentos em palavras”. Assim, a enunciação foi
interpretada como o ato de retirar a palavra da individualidade mental
do sujeito e expressá-la na extensa cadeia discursiva e dialógica, dan-
do vida ao discurso e às suas diversas formas de ressonância. Ademais,
Alves propõe a exploração das características semânticas, expressivas,
compositoras e éticas dos enunciados, o que aponta para a complexi-
dade destes.
A fim de refletirmos sobre a produção da linguagem no ambiente
virtual, discutimos o texto de Santos; Marques e Rodrigues (2019), que
analisa a manifestação da ironia como expressão de resistência aos dis-
cursos dominantes. Os autores exploram o jogo do dito e do não-dito
a partir da análise de comentários em uma postagem do perfil “Spotted
UFMG - VSF” no Facebook, em que usuários identificados como mu-
lheres instauram uma enunciação de resistência a um discurso machista
através da ironia, criando um campo de tensão e defesa contra os dis-
cursos dominantes característicos do patriarcalismo.
Ainda sobre a circulação e formulação de sentidos no ciberespa-
ço, discutimos o texto de Silva (2018), que toma como objeto de seu
estudo os memes, tidos como constituintes de discursos próprios que
possuem a faculdade de mobilizar grandes grupos nas mídias sociais
202
e disseminar informações capazes de influenciar comportamentos no
meio exterior. Ademais, com base na teoria de Fontanella, a autora ana-
lisa os princípios que condicionam os memes, os quais incluem os seus
conteúdos, as formas como esses se relacionam a uma “teia” de outras
produções já aceitas pelo público e o modo como referenciam o mundo
exterior. A partir disso, observamos a linguagem memética como uma
reprodução/réplica cômica dos assuntos e discursos presentes no campo
exterior, gerando formas relativas de interpretação e efeitos ideológi-
cos, e tomando de “mutações” conforme propagam-se no ciberespaço.
Vale ressaltar ainda que o teor crítico, político e ideológico dos memes
também foi analisado no artigo. Assim, interpretamos como o debate
político pode originar se a partir da construção dessa linguagem.
Por fim, citamos Viscardi (2020), que analisa as “verdades, mentiras e
fake news” publicadas no Twitter do atual presidente do Brasil à época
de sua eleição em 2018. A autora, com base nas teorias de Ernesto
Laclau e Chantal Mouffe, aponta o caráter populista do atual governo,
mostrando como discursos políticos entram de forma importante na
construção das figuras públicas como o próprio presidente. Viscardi
afirma que as novas tecnologias trouxeram inúmeras novas possibili-
dades de políticos se relacionarem com a sociedade, sendo que as redes
sociais, com suas ferramentas e dinâmicas de compartilhamento, con-
tribuem para a viralização e o estabelecimento de proximidade com os
usuários.
A partir desses estudos teóricos, os estudantes bolsistas puderam
pensar em possibilidades de temas que conversassem com o projeto de
pesquisa da orientadora. Passou-se, assim, ao recorte do corpus de aná-
lise e do caminho metodológico da pesquisa.
3. Percurso Metodológico
O percurso metodológico se iniciou com a seleção de um tema
para análise da tomada da palavra na rede digital. O tema escolhido foi
a politização da pandemia nas redes sociais. Nosso corpus se cons-
tituiu de 37 postagens na rede social Twitter que abordavam o tema
203
selecionado e do vídeo de pronunciamento do Presidente no início da
pandemia. Investigamos as vozes presentes nas instâncias enunciativas
e os mecanismos linguístico-discursivos, a fim de identificar represen-
tações discursivas e modos de tomada da palavra nesse contexto. Mais
especificamente, após a seleção do tema e, a partir dos objetivos do
projeto da professora orientadora, buscamos: a) identificar o embate
de vozes com teor político e partidário nas postagens relacionadas ao
combate da pandemia; b) investigar os indícios de polarização políti-
ca dos discursos relacionados à pandemia; c) explicar a manifestação
do conhecimento científico e acadêmico nas postagens do Twitter em
relação ao combate do coronavírus; d) observar o comportamento dia-
lógico presente nos discursos que se constroem em torno do contexto
pandêmico; e e) discutir o impacto dos “líderes de opinião” frente ao
combate da pandemia.
A fim de investigar o funcionamento discursivo da politização da
pandemia, elencamos, a partir de uma leitura inicial do corpus, 5 (cinco)
eixos de análise que se constituíram em subtemas: a saber: i) a pandemia;
ii) o lockdown; iii) o tratamento precoce; iv) a vacina; e v) as práticas
religiosas. Para cada um desses eixos, foram delineadas representações
que apontassem os efeitos de sentidos dos enunciados produzidos no
corpus. Vejamos cada um dos eixos a partir do recorte de nosso corpus.
4. Gestos de análise
204
Boa noite.
Desde quando resgatamos nossos irmãos em Wuhan, na China,
numa operação coordenada pelos Ministérios da Defesa e Relações
Exteriores, surgiu para nós o sinal amarelo que começamos a nos
preparar para enfrentar o Coronavírus, pois sabíamos que mais
cedo ou mais tarde ele chegaria ao Brasil. Nosso Ministro da Saúde
reuniu-se com quase todos os Secretários da Saúde dos Estados para
que o planejamento estratégico de enfrentamento ao vírus fosse
construído. E, desde então, o doutor Henrique Mandeta vem de-
sempenhando um excelente trabalho de esclarecimento e preparação
do sus para atendimento de possíveis vítimas, mas o que tínhamos
que conter naquele momento era o pânico a histeria e ao mesmo
tempo, traçar a estratégia para salvar vidas e evitar o desemprego
em massa. Assim fizemos, quase contra tudo e contra todos grande
parte dos meios de comunicação foram na contramão espalharam
exatamente a sensação de pavor tendo como chegar ao anúncio do
grande número de vítimas na Itália, um país com grande número
de idosos e com um clima totalmente diferente do nosso cenário
“perfeito” potencializado pela mídia para que uma verdadeira his-
teria se espalhasse pelo nosso país. Contudo percebe-se que de ontem
para hoje parte da imprensa mudou seu editorial, pede calma e
tranquilidade, isso é muito bom parabéns imprensa brasileira e é
essencial que o equilíbrio e a verdade prevaleçam entre nós. O vírus
chegou está sendo enfrentado por nós e brevemente passará nossa
vida tem que continuar os empregos devem ser mantidos o sustento
das famílias deve ser preservado devemos sim voltar à normalidade
algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem aban-
donar o conceito de terra atrasada e a proibição de transportes o
fechamento de comércio confinamento em massa o que se passa no
mundo têm mostrado que o grupo de risco é um dos das pessoas de
acima de 60 anos então por que fechar escolas raros são os casos
fatais de pessoas sãs com menos de 40 anos de idade 90% de nós
não teremos qualquer manifestação caso se contamine devemos sim
é ter extrema preocupação e não transmitir o vírus para os outros
em especial aos nossos queridos pais e avós respeitando as orientações
do ministério da saúde. No meu caso particular pelo meu histórico
de atleta caso fosse contaminado pelo vírus não precisaria preocupar
nada sentiria ou seria quando muito acometido de uma grande
205
gripe de uma gripezinha ou resfriadinho como bem disse aquele co-
nhecido médico daquela conhecida televisão enquanto estou falan-
do o mundo busca um tratamento para a doença o FDA americano
e o Hospital Albert Einstein em São Paulo buscam a comprovação
da eficiência da cloroquina no tratamento do COVID-19 nosso
governo tem recebido notícias positivas sobre esse remédio fabricado
no brasil largamente utilizado no combate à malária ao lúpus e
artrite acredita em deus que capacitará scientist as e pesquisadores
do brasil e do mundo na cura dessa doença aproveito para render
minha homenagem a todos os profissionais da saúde médicos, enfer-
meiros, técnicos e colaboradores que na linha de frente nos recebem
nos hospitais nos tratam e nos confortam, sem pânico e histeria
como vem falando desde o princípio, venceremos o vírus e nos orgu-
lhamos de estar vivendo nesse novo brasil e que tem tudo sim tudo
para ser uma grande nação estamos juntos cada vez mais unidos,
Deus abençoe nossa pátria querida.
Figura 1. Tweet 1
206
O fato de o presidente não demonstrar muita importância acerca
dos problemas enfrentados na pandemia se tornou motivo de chacota e
piada diante de outros governos do mundo, conforme vemos no Tweet
2, o qual mostra a publicação de um jornal alemão fazendo uma brin-
cadeira com o presidente por meio da imagem do vírus e da morte que
o aplaudem por suas atitudes:
Figura 2. Tweet 2.
Figura 3. Tweet 3.
207
4.2 Eixo 2: O lockdown
Um dos grandes motivos de politização da pandemia se deu em
torno da medida restritiva do lockdown, o qual pode ser representado
pelo enunciado: o lockdown (não) é eficiente e proveitoso.
No contexto pandêmico, Eduardo Bolsonaro, filho do Presidente
da República, se manifesta constantemente nas redes sociais, sobretudo
no Twitter, como um líder de opinião e influenciador de pontos de
vista. O Deputado Federal possui mais de dois milhões de seguidores
em seu perfil oficial, o que lhe oferece grande engajamento e repercus-
são em suas postagens na plataforma de tuítes. Por meio da análise do
conteúdo disseminado em suas redes, percebe-se que o filho de Jair
Bolsonaro gerou expressiva polarização política frente ao contexto pan-
dêmico. Vejamos o Tweet 4:
Figura 4. Tweet 4.
208
liberdade pessoal e expressiva. Tal dizer produziu efeitos de sentido que
incidiram na polarização das vozes sociais no cenário de enfrentamento
à Covid-19, afinal um líder político expressa uma opinião sobre um
fato científico, influenciando também o ponto de vista de seus eleitores
sobre o assunto.
Vale ressaltar que a colocação de Eduardo expressa grande negacio-
nismo científico, uma vez que contraria o que é proposto e recomen-
dado pelos estudos científicos precursores do enfrentamento eficaz da
Covid-19. Em razão disso, a própria plataforma de tuítes restringiu a
circulação da postagem na timeline com a justificativa de violação das
regras da rede e devido à presença de informações impolidas e antagôni-
cas ao combate à Covid-19, como se observa no Tweet 5:
Figura 5. Tweet 5.
Figura 6. Tweet 6.
209
No tweet de Castanhari, percebe-se resistência ao discurso de
Eduardo Bolsonaro por meio do uso da ironia. Essa estratégia discursiva
envolve o tom humorístico de modo a gerar oposição à voz expressada
pelo filho do Presidente. Ao dizer “Saudades de sair pra beber todas até
ficar assim” e repostar a fala do político, o youtuber o critica. Vê-se que
o silêncio é colocado como o ponto de deslocamento dos sentidos, per-
mitindo que estes se movam entre o dito e o não-dito. Em meio a esse
espaço de movimentação de “presença-ausência”, a ironia é produzida
e desenvolvida.
Em contraposição às vozes de crítica ao lockdown, apresentamos os
Tweets 7 e 8, em que o biólogo Atila Iamarino apresenta dados cientí-
ficos que contradizem a visão de Eduardo e seus seguidores e critica o
gerenciamento da pandemia por parte do Governo Federal (referencia-
do por “Brasília” no Tweet 8), de forma irônica no enunciado: “o Brasil
gerando até variante de coronavírus de lacinho”.
210
nas redes sociais, sobretudo no Twitter, como um líder de opinião e in-
fluenciador de pontos de vista. O Deputado Federal possui mais de dois
milhões de seguidores em seu perfil oficial, o que lhe oferece grande
engajamento e repercussão em suas postagens na plataforma de tuítes.
No Tweet 9, Eduardo se manifesta na defesa do tratamento precoce à
Covid-19, o qual teve sua eficácia negada pelos estudos científicos pro-
postos. Nesse Tweet, as colocações do deputado corroboram a represen-
tação de que “o tratamento precoce não é eficiente e não pode conter o
avanço do coronavírus”:
Figura 9. Tweet 9.
211
Figura 10. Tweet 10.
212
No Tweet 12, Atila Iamarino comenta as mortes por COVID, que
deixaram vários órfãos no país; e no Tweet 13, o cientista (d)enuncia o
alto número de mortes no Brasil e a insistência no uso de medicamen-
tos ineficazes:
213
No Tweet 14, a personagem Cuca do seriado “Sítio do Pica Pau
Amarelo” é usada para satirizar o discurso de Bolsonaro. Ao redigir
“Esperando a ANVISA dizer qual a probabilidade de quem tomar a va-
cina se transformar em jacaré…”, o internauta refere-se dialogicamente
às afirmações do Presidente em seu discurso na Bahia, demonstrando
uma aversão a suas colocações e apoiando a vacinação. No Tweet 15, a
personagem Cuca também atua como um objeto de ironia e resistên-
cia ao discurso de Bolsonaro. O internauta “Jacaré pós vacina” inicia
sua postagem com a frase “quem tomar a vacina pode virar jacaré”, a
qual indica uma citação do Presidente da República, mas sem referen-
ciá-lo. Essa postagem relaciona-se dialogicamente com uma gama de
outros tuítes sobre o tema e com o discurso anti-vacina proposto por
Jair Bolsonaro. Ao inserir a imagem da personagem Cuca, o internauta
também resiste às afirmações do Presidente e se apropria do discurso
científico em favor da vacinação.
Há de se ressaltar que, a partir do início de 2021, foi notório um
súbito apoio à vacinação contra a Covid-19 por parte do Presidente
da República e sua família, o que contraria seus discursos anti-vacinas
durante o ano anterior. Sob esse viés, os perfis oficiais de Jair Bolsonaro
e de seus filhos no Twitter passaram a compartilhar supostas realidades
de progresso na vacinação da Covid-19 no Brasil, usando apenas núme-
ros absolutos que desconsideram a relatividade populacional do país e
transparecem uma condição de “fim da pandemia”.
Tal condição de “fim da pandemia” se mostrou problemática, pois
incitou parte da população ao relaxamento das medidas de seguran-
ça ao coronavírus, o que destoa totalmente do proposto pela ciência
para o combate eficiente do contágio. Os Tweets 16 e 17 refletem esse
discurso.
214
Figura 16. Tweet 16. Figura 17. Tweet 17.
215
enunciado a fé cristã é uma arma no combate à COVID-19, como se
vê no Tweet 21:
216
Considerações Finais
Esta pesquisa visou analisar o funcionamento discursivo do tema
a politização da pandemia nas redes sociais. Para isso, identificamos
representações discursivas em 5 (cinco) eixos constituídos a partir de
subtemas. No Quadro 1, sintetizamos nosso gesto de análise, no qual
procuramos ressaltar o conflito e embate de vozes postas em cena na
tomada da palavra no ciberespaço. Salientamos que as representações se
entrelaçam e que aqui foram separadas por razões didáticas:
Eixos Representação
Pandemia “a pandemia (não) é uma gripezinha”
217
Referências
ALVES, M. P. C. O enunciado concreto como unidade de análise: a perspectiva me-
todológica bakhtiniana. In: RODRIGUES, R. H.; PEREIRA, R. A. Estudos Dialógicos
da Linguagem e Pesquisas em Linguística Aplicada. São Carlos: Pedro & João Editores,
2016. p. 163-177.
VISCARDI, J. M. Fake news, verdade e mentira sob a ótica de Jair Bolsonaro no Twitter.
Trabalhos em Linguística Aplicada, n. 59.2, p. 1134-1157, 2020.
218
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
INTERNACIONALIZAÇÃO DO ENSINO
SUPERIOR, POLÍTICA LINGUÍSTICA E
PLANEJAMENTO LINGUÍSTICO
219
ABSTRACT: The discussions related to the process of internationalization
of the higher education institutions are focused not only on numbers of
programs, projects and calls for faculty’s or students’ academic mobility, but
mainly on the preparation and sensibilization of the academic community for
the plurilingual and intercultural dimension of this process (KNIGHT, 2004),
what directs to themes such as Hudzik’s Comprehensive Internationalization
(2011), and Beelen & Jones’s Internationalization at Home (2015). We
have realized that the process of internationalization of higher education
has been modified, once observed the past and the current characteristics
of internationalization. It is fundamental, then, that such concepts must
be discussed, understood and put into practice and, from the discussion
among academic administrators and community, the institutions could
redirect and redefine their educational proposals, relocating mainly the role
of the foreign/ additional languages, which start adopting other institutional
roles, contributing to the discussions towards the construction of goals and
objectives of internationalization, that is, playing an important role within the
strategic planning of the institution for the internationalization, and mainly
within its strategic language planning. The actions related to the teaching and
learning foreign/ additional languages need, in this way, to be linked to the
process of language teachers’ initial or continued formation , that will prepare
pre-service and in-service teachers to this multi/plurilingual and multi/
pluricultural academic context, once the particularities of this context would
be emphasized and studied, favoring the academic life putting into practice the
empathy, the mutual understanding among language users and the knowledge
of the others’ language and the culture. Our objective, therefore, is to discuss
this relation among internationalization of higher education, the institutions’
language policies and their strategic language planning.
Introdução
Trabalhando com alguns conceitos: Internacionalização
Abrangente e Internacionalização em Casa
Antes de nos concentrarmos nas questões relativas à formação de
professores de línguas no contexto da internacionalização das IES, faz-
-se necessário buscar definições de políticas de internacionalização para
a educação superior que incorporem os contextos específicos de IES
brasileiras.
220
O Grupo de Pesquisa em Políticas Linguísticas e de
Internacionalização da Educação Superior (GPLIES33) do qual somos
pesquisadoras integrantes, desde 2020, tem como objetivo promover
estudos e pesquisa no universo de políticas de internacionalização e po-
líticas linguísticas, assim como estudos sobre ferramentas de ensino-
-aprendizagem de línguas que facilitem o processo de implementação
das propostas de internacionalização das IES.
Desse modo, baseado em estudos prévios formulados por Knight
(2004), Hudzik (2011), De Wit et al (2015), entre outros autores e
pesquisadores na área de internacionalização do ensino superior, o
grupo de pesquisas formulou uma definição de política de internacio-
nalização que busca acomodar diferentes contextos de IES, com suas
especificidades.
GPLIES, portanto, tomou como base o conceito mais abrangen-
te proposto por Knight (2004, p. 11)34: “Internacionalização, nos ní-
veis nacional, setorial e institucional, é definida como o processo de
integração das dimensões internacional, intercultural, ou global, nos
propósitos, funções e oferta da educação pós-secundária”; passando
pelo conceito de internacionalização abrangente/ transversal de Hudzik
(2011, p. 6)35: “Comprometimento, confirmado pela ação, em infundir
perspectiva internacional e comparativa através da missão da educação
superior de ensino, pesquisa e extensão”; perpassando pelo conceito
de De Wit et al (2015, p. 29)36, que ampliam a definição de Knight,
33
Grupo de Pesquisa no CNPQ: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogru-
po/9572177799231276. Coordenação: Waldenor Barros Moraes Filho (UFU) e
Denise de Paula Martins de Abreu e Lima (UFSCar).
34
No original: The process of integrating an international, intercultural or global
dimension into the purpose, functions or delivery of post-secondary education
(KNIGHT, 2004, p. 11).
35
No original: Comprehensive internationalization is a commitment, confirmed
through action, to infuse international and comparative perspectives throughout
the teaching, research and service mission of higher education. (HUDZIK,
2011, p. 6).
36
No original: Internationalization of higher education is the intentional process
of integrating an international, intercultural or global dimension into the pur-
221
reforçando a dimensão política de intencionalidade da internaciona-
lização: “processo intencional de integração das dimensões interna-
cional, intercultural ou global na finalidade, funções e provimento da
educação pós-secundária, de forma a melhorar a qualidade da educação
e da pesquisa para todos os estudantes e professores, e contribuir de
forma significativa para a sociedade”.
Segundo Knight e De Wit (2018), em um passado não tão distan-
te, a internacionalização era caracterizada principalmente como coope-
ração internacional, intercâmbio de estudantes, estudos no exterior, e
parcerias entre pesquisadores, entre outras características.
Entretanto, as discussões que perpassam as questões relacionadas ao
processo de internacionalização das IES estão centradas não apenas em
torno de números relacionados aos programas nos quais a IES participa,
ou em torno dos números de acordos de cooperação com instituições
estrangeiras, ou nos projetos e editais de mobilidade acadêmica docente
ou estudantil.
Para além desses números, tais discussões relacionadas à internacio-
nalização também devem ter como foco a preparação e sensibilização da
comunidade acadêmica interna para a dimensão plurilíngue e intercul-
tural desse processo (KNIGHT, 2004).
Tal contexto de sensibilização, portanto, abre espaço para se colo-
car em prática os processos de Internacionalização em Casa (doravante,
IeC), de Beelen & Jones (2015), que denominam como IeC a integra-
ção intencional das dimensões internacional e intercultural no currícu-
lo formal e informal para todos os estudantes dentro dos ambientes
de aprendizagem domésticos (grifo nosso). Para que o processo de IeC
aconteça, a instituição deve propiciar espaços significativos para que
gestores, professores e estudantes possam trabalhar colaborativamente
(AGNEW & KAHN, 2014).
222
O processo de IeC se caracteriza, portanto, como um movimento
de inclusão, criando oportunidades a uma maioria de indivíduos, que
não faz parte dos processos de mobilidade outgoing, de participar ativa-
mente do processo de internacionalização da instituição, tendo, assim,
uma melhor compreensão do outro (de indivíduos com suas línguas
e culturas). Esse processo de sensibilização faz com que se crie uma
atmosfera plurilíngue e intercultural, de compreensão e empatia, em
um movimento de criação de uma sociedade global, mais propensa a
começar uma discussão sobre a internacionalização do currículo e de
institucionalização de atividades de internacionalização.
Assim, considerando tais definições de internacionalização,
GPLIES define que
223
de ações linguísticas que ocorrem. Um exemplo claro de ação de po-
lítica linguística é a adesão, por parte das IES, ao programa Idiomas
sem Fronteiras (doravante, IsF). Abreu-e-Lima & Moraes Filho (2016),
indicam que
37
Considerado o maior programa de mobilidade acadêmica brasileiro, entre 2011
e 2016, o CsF fomentou bolsas de estudos para estudantes universitários (em
nível de graduação e pós-graduação), bem como para pesquisas de pós-doutora-
mento e para docentes pesquisadores, para fora do país. Informações podem ser
obtidas em http://www.cienciasemfronteiras.gov.br/web/csf/o-programa Acesso
em agosto 2022.
38
O programa Idiomas sem Fronteiras, lançado em 2012 como Inglês sem Fron-
224
meçaram a ser pensadas ações para o alemão, espanhol, francês, italia-
no, japonês e português para estrangeiros (BRASIL, 2014). Apenas os
coordenadores e professores-bolsistas do IsF-Inglês recebiam bolsas do
MEC para desempenhar as suas atividades, entretanto, já se pensava no
estabelecimento de uma política nacional plurilíngue, com valorização
dos sete idiomas do Programa.
Duas datas importantes merecem destaque para essa análise sobre o
surgimento, nas universidades brasileiras, de uma necessidade formati-
va, vinculada ao IsF, pensando-se no contexto da internacionalização. A
primeira é o edital de (re)credenciamento das IES brasileiras (BRASIL,
2017) interessadas para integrar o grupo de instituições do IsF, uma vez
que, novamente, a associação entre ensino de línguas e internaciona-
lização tenha sido destacada. Neste edital, houve, portanto, a obriga-
toriedade em apresentar um rascunho de política linguística, e futura
promulgação da mesma, o que culminou em novos rumos para as dis-
cussões que já haviam sido iniciadas sobre o IsF e a internacionalização.
As universidades interessadas em participar do programa tinham
que, obrigatoriamente, criar uma comissão para discutir e organizar um
documento que representasse suas políticas linguísticas, contemplando
ações de ensino de línguas estrangeiras, colocando-as sempre no contex-
to do ensino acadêmico e da internacionalização. Importante destacar
que não se trata apenas de trabalhar inglês instrumental ou inglês para
fins específicos, já que, pensando-se em uma dimensão intercultural,
novos espaços formativos se faziam necessários.
225
Os coordenadores pedagógicos do IsF eram também professores de
instituições de ensino superior brasileiras e já desempenhavam ativida-
des de formação de professores em seus respectivos currículos das licen-
ciaturas. No entanto, foi perceptível a necessidade em se buscar novos
conhecimentos e habilidades, que tivessem como foco não somente os
processos formativos, mas que incluíssem as demandas específicas da
internacionalização, e que se adequassem às políticas e planejamentos
linguísticos institucionais. Esses docentes, dessa forma, começaram a se
aprofundar nessas novas e desafiadoras temáticas, havendo, nos dias de
hoje, muitos trabalhos que articulam o ensino de línguas no contexto
da internacionalização, as conexões entre política linguística e planeja-
mento linguístico, as práticas formativas situadas nesse novo contexto
educacional e um aprofundamento teórico sobre LEME (língua estran-
geira como meio de instrução) e, mais fortemente, no EMI (English as
a medium of Instruction - Inglês como meio de instrução).
Entendemos a EMI como uma abordagem de ensino utilizada
para ensinar conteúdo específico tendo como ‘meio/modo de instrução’
a língua inglesa. O início do uso dessa abordagem EMI em contexto de
ensino superior brasileiro é difícil de ser apontado, levando em consi-
deração a forma esporádica, individual e não-oficial que tais cursos têm
sido/ são oferecidos nas IES, segundo Höfling e Zacarias (2017).
Segundo Macaro (2013), para se ter clareza quanto à implementa-
ção do EMI em uma IES, é necessário, por exemplo, que se considere
todos os interessados nesse processo. São eles: (1) os professores que irão
ministrar os cursos e disciplinas; (2) os estudantes que irão cursar tais
cursos e disciplinas, sejam eles estrangeiros em mobilidade acadêmica
ou estudantes da própria instituição; e (3) os gestores das políticas lin-
guística da instituição. Para que o processo ocorra, é preciso que haja
um consenso entre todas as partes envolvidas, quanto ao percurso e
planejamento de todas as ações que envolvem a implementação do EMI
na instituição.
Entretanto, restrições e impedimentos (ou, o que chamamos de
desafios) na inserção da abordagem EMI como política linguística
226
institucional já começam a aparecer no contexto de sala de aula, com
relação ao nível de proficiência na língua de instrução de professores
ministrantes e estudantes. Outros desafios que se colocam são referentes
às mudanças no sistema de avaliação, nas interações professor-alunos
em sala de aula, na linguagem técnica do conteúdo de uma disciplina
(vocabulário acadêmico), entre outras.
Para que tais desafios sejam superados, todos os interessados devem
cumprir seus respectivos papéis. Por exemplo, é imprescindível que haja
amparo institucional para os professores ministrantes com cursos sobre
a abordagem EMI, acompanhamento do desenvolvimento da profici-
ência na língua estrangeira tanto dos professores ministrantes quanto
dos estudantes, com todas as ações estampadas em uma política linguís-
tica clara sobre a instauração da abordagem EMI na instituição, para
que todos os interessados se sintam contemplados e dispostos a encarar
tal desafio. Höfling e Zacarias (2017) identificam com clareza a neces-
sidade de tal apoio:
227
Em 2019, o IsF passou por nova reestruturação, em decorrência
do desligamento do Programa junto ao MEC, que, de patrocinador,
tornou-se apenas um parceiro. Ao ser ligado à ANDIFES (Associação
Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior),
o programa passou a se chamar Rede Andifes de Especialistas Idiomas
sem Fronteiras, Rede Andifes Nacional de Especialistas em Língua
Estrangeira Idiomas sem Fronteiras, ou Rede Andifes IsF (BRASÍLIA,
2019). No teor da nova resolução, as mesmas preocupações educacio-
nais são encontradas: foco na internacionalização, no ensino de línguas
estrangeiras e na formação de professores.
É importante destacar que na Resolução de 2012, não havia
nenhuma menção às questões ligadas à formação de professores, já que
o programa surgiu para dar suporte ao CsF. No entanto, a partir de
2014, mesmo que timidamente, a formação de professores passou a
estar presente nos documentos oficiais, já que o programa começava
a se organizar em prol das suas próprias necessidades e, com o fim do
CsF, em 2017, todas as premissas que davam suporte ao IsF passaram
a ser regulamentadas a partir das necessidades do próprio Idiomas sem
Fronteiras. Era o fortalecimento de uma identidade, que já havia sido
iniciada em 2012.
Como dito anteriormente, os coordenadores do IsF, à medida em
que foram se inteirando do Programa e percebendo as particularidades
e as necessidades associadas, para que questões acadêmicas pudessem
ser trabalhadas, em língua inglesa, em suas necessidades acadêmicas,
passaram a investir tempo de pesquisa nas temáticas associadas às prá-
ticas desenvolvidas no IsF, podendo ser perceptível o crescimento de
pesquisas sobre Internacionalização, IsF e ensino de línguas, bem como
em política linguística, planejamento linguístico e EMI.
Apesar de ser um tema bastante recorrente em outros contextos
educacionais e que já vem sendo estudado há muito tempo, as pesquisas
e artigos sobre o inglês como meio de instrução no contexto univer-
sitário tiveram um incremento mundial no período de 2002 a 2014,
com destaque para textos publicados na Europa, já que esse continente
228
vivenciou um aumento de 1000% nesse tipo de pesquisa, com mais de
800 mil programas disponíveis (WÄCHTER; MAIWORM, 2014). Ao
pesquisar no site de busca de periódicos da CAPES sobre ‘English as a
medium of instruction’, é possível encontrar um total de 2.780 artigos,
entretanto, quando associamos com a palavra ‘Brazil’, esse número cai
para 17. Ao usar o termo em português, ‘Inglês como meio de instru-
ção’, encontramos apenas 43 textos, com somente 17 artigos associados
ao termo ‘Brasil’.
O EMI está totalmente interconectado com as necessidades do
IsF em auxiliar as IES na busca por ações que possam auxiliar a inter-
nacionalização, tomando como ponto de partida o ensino de línguas
estrangeiras. No entanto, é notório o quanto ainda são necessários in-
vestimentos para que essas ações sejam difundidas e as práticas sejam
compartilhadas. Da mesma forma, as pesquisas em formação de profes-
sores no contexto do EMI e do IsF ainda precisam de um incremento,
de modo que seja possível identificar os pontos de interseção que li-
guem o ensino de línguas, a internacionalização e as questões acadêmi-
cas. Teorias e definições abrangentes, voltadas para o ensino de línguas
estrangeiras podem não dar as mesmas respostas, o que pode aconte-
cer somente com o diálogo estabelecido entre especialistas, a partir de
eventos acadêmicos e artigos publicados. Nesse contexto, precisamos
situar o espaço a ser ocupado pelas discussões que envolvem o ensino
de línguas, o contexto universitário e o processo de implementação de
políticas e planejamentos linguísticos.
229
superior, de modo a ser possível compreender os espaços que foram
ocupados nas IES brasileiras, quando da publicação desses documentos.
Para Spolsky, a política linguística pode ser compreendida com um
conjunto de regras que passam a ser obrigatórias nas instituições de
ensino, de modo que questões relacionadas a uso e forma da linguagem
são detalhadas (SPOLSKY, 2012, p. 3). Partindo desse pressuposto, ao
definirmos ações voltadas para a internacionalização pautadas em ques-
tões linguísticas, é imprescindível que a noção de língua e linguagem
seja compartilhada pela comunidade, bem como as línguas que rece-
berão ações e os objetivos propostos, conforme orientação encontra-
da no documento sobre Política Linguística para internacionalização
do ensino superior, elaborado por um grupo de especialistas ligados à
Associação Brasileira de Educação Internacional (FAUBAI), criada em
1988.
Foi nesse contexto que o IsF incentivou as IES a reunirem seus es-
pecialistas na preparação de suas políticas linguísticas. No entanto, mui-
to do que foi observado foi uma corrida pela publicação de Resoluções
que regulamentaram as PL institucionais, sem um maior envolvimento
da comunidade acadêmica como um todo, ou preocupação prática na
sua implementação. As questões referentes ao ensino de línguas e à for-
mação de professores precisavam ter sido pensadas no momento dessa
elaboração, o que não ocorreu em todas as IES.
Com a constatação de que muitas das atividades previstas não foram
executadas nas universidades que passaram a ter suas políticas linguís-
ticas, chegamos à conclusão de que é necessário que dois passos sejam
tomados, de forma estratégica: a reformulação das PLs já aprovadas,
230
ou elaboração de políticas, nas IES que ainda não a possuem; e a cons-
trução de planejamentos linguísticos, capazes de, a partir das métricas
desenhadas, prazos estipulados e detalhamento de processos, colocar
em prática tudo que foi idealizado nas políticas linguísticas. Assim, para
Calvet (2002), devemos chamar de política linguística “um conjunto de
escolhas conscientes referentes às relações entre língua(s) e vida social e
de planejamento linguístico, a implementação concreta de uma política
linguística” (CALVET, 2002, p. 133).
Política e planejamento linguísticos precisam ser construídos de
forma a se ter uma unidade teórica e prática, já que a “política linguís-
tica está diretamente vinculada ao planejamento linguístico, razão pela
qual é importante tê-la como parte dos planos de internacionalização”
(ABREU-E-LIMA et al., 2017, p. 6). Não há como se pensar em pla-
nos de internacionalização sem que uma política e um planejamento
linguístico tenham sido anteriormente delineados, aprovados e ampla-
mente divulgados. De nada adianta termos políticas linguísticas insti-
tucionais se não temos um planejamento linguístico que facilite a sua
execução, conforme já destacado por Souza e Pereira (2016).
231
As pesquisas em ensino de línguas e as especificidades exigidas
pelos projetos de internacionalização
As inquietações acadêmicas aqui compartilhadas foram e são obje-
tos de reflexão e debates nas rodas de especialistas que trabalham com
o ensino de línguas no contexto da internacionalização. Algumas dessas
discussões foram promovidas no GPLIES - Grupo de Pesquisa sobre
Políticas Linguísticas e de internacionalização da Educação Superior,
formado em 2020, sob a coordenação do Prof. Dr. Waldenor Barros
Moraes Filho, da UFU, e a Profa. Dra. Denise de Paula Martins de
Abreu e Lima, da UFSCAR. O grupo dispõe, atualmente, de 20 pes-
quisadores e 08 estudantes. Trata-se de um grupo interinstitucional,
que conta com integrantes de dez instituições, a saber: UFBA, UnB,
UFSCar, UFU, UFS, UEMS, IFSP, IFSULDEMINAS, UFPR e USP,
e que tem como objetivo
232
internacionalização e suas ações são divididas em 3 linhas de pesquisa:
Linha 1: Ensino e Aprendizagem de Línguas para a Internacionalização;
Linha 2: Políticas e Práticas de Internacionalização; e Linha 3: Políticas
e Práticas Linguísticas para a Internacionalização. As análises promo-
vidas no GPLIES são importantes para as discussões aqui propostas,
principalmente no que se refere às inquietações trazidas pela Linha 1.
Para os especialistas ligados a essa linha de pesquisa, é preciso pensar
no processo de formação de professores e de ensino-aprendizagem de
línguas no contexto e especificidades da internacionalização, mas o que
se percebe é a repetição no uso de teorias e termos associados ao ensino
geral de línguas estrangeiras. A mensagem que é passada, então, é a
de que se os procedimentos e o processo formativo são os mesmos, as
especificidades do ensino acadêmico não são levadas em consideração.
Poucos teóricos se preocupam em diferenciar os contextos educa-
cionais, o que faz com que tenhamos que buscar uma teorização pró-
pria, que se incorpore ao cânone teórico utilizado nas pesquisas com os
processos de ensino-aprendizagem de línguas. Esse gap teórico vem sen-
do registrado nos eventos nos quais o GPLIES participa, como é o caso
desse Simpósio Temático, do CBLA, bem como da sessão coordenada
que foi promovida pela CLAFPL, de 15 a 17 de setembro de 2021, com
o GT: Formação de Professores no contexto de ensino-aprendizagem de
línguas estrangeiras/ adicionais para a internacionalização; e também no
I Encontro brasileiro sobre Internacionalização e inovação em estudos
linguísticos, literários e formação de professores de línguas, ocorrido no
período de 18 a 22 de outubro de 2021, no qual foi apresentado o GT
06: Ensino e Aprendizagem de línguas em contextos plurilíngues com
foco na internacionalização.
Somente com discussões como essas promovidas pelo GPLIES é
que conseguiremos definir melhor nosso objeto de estudo, uma vez que
as práticas mais corriqueiras são aquelas que o associam ao estudo de
línguas como fim específico, com predominância do trabalho com lei-
tura instrumental.
233
Algumas considerações (que estão longe de serem consideradas
finais)
Quando pensamos em internacionalização do ensino superior, es-
tamos nos distanciando cada vez mais da visão simplista de outrora, que
colocava a internacionalização praticamente como sinônimo de mobili-
dade acadêmica. Noções como a valorização da dimensão intercultural
(KNIGHT, 2004), internacionalização em casa (BEELEN; JONES,
2015) e internacionalização abrangente (HUDZIK, 2011) estão cada
vez mais presentes no nosso dia a dia. Não podemos mais pensar na
internacionalização como algo intangível e para poucos, e sim com foco
nas trocas culturais e acadêmicas promovidas pela instituição, que passa
a envolver toda a comunidade acadêmica em direção a esse novo cená-
rio de respeito e trocas.
Ações coordenadas, como os ciclos de palestras e discussões pro-
movidos pelo GPLIES são fundamentais, pois precisamos pensar nas
práticas e técnicas a serem utilizadas, a partir de conceitos muito es-
pecíficos, como, por exemplo, definir o que é ensinar no contexto da
internacionalização e quais as principais preocupações que projetos de
formação de professores devem ter, para que a internacionalização possa
ser percebida por toda a comunidade.
Nas nossas discussões, ao tentar definir o que é/ não é internacio-
nalização, aproximamo-nos de discussões sobre EMI e EAP (English for
Academic Purposes - Inglês para propósitos acadêmicos). É importante
destacar, no entanto, que apesar do EMI ser importantíssimo para a
internacionalização dos currículos, ele não pode ser visto como sinô-
nimo geral de internacionalização, pois nossas práticas são muito mais
amplas e não podem ser alocadas em algumas caixas fechadas e isoladas.
Não basta, no entanto, somente participar de eventos e discussões. Toda
uma teorização precisa ser feita, de forma conjunta, uma vez que há
muitos teóricos e pesquisadores na área de linguística aplicada inseri-
dos em contextos cujos processos de internacionalização vêm ocorren-
do há muito tempo. Sendo assim, o momento é agora, ou corremos
o risco de deixar que decisões sobre questões linguísticas envolvendo
234
a internacionalização sejam tomadas por gestores cujos conhecimentos
não envolvem as questões linguísticas e não se concentram na problema-
tização em torno da formação de professores, uma vez que não há inter-
nacionalização sem que se discuta o ensino e a aprendizagem de línguas.
Referências bibliográficas
ABREU-E-LIMA. D. M., et al. Política linguística para internacionalização do en-
sino superior. Documento do GT de Políticas Linguísticas para Internacionalização.
FAUBAI, Novembro, 2017, 19p.
235
CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. Tradução: Marcos
Marcionilo. 2. ed. São Paulo: Editora Parábola, 2002.
236
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
237
PALAVRAS-CHAVE: análise multidimensional lexical, big data, mídias
sociais.
Introdução
Na tentativa de mobilizar simpatizantes pró-governo durante as
comemorações da independência do Brasil em 2021, apoiadores do
presidente da República propuseram uma manifestação pública que
238
pretendia envolver todo o país. Convites para a participação do público
e exaltações à manifestação foram feitos pelas mídias sociais, especial-
mente pelo Twitter. Em reação à manifestação, surgiu outra, a de 12 de
setembro, proposta por grupos opositores à primeira, utilizando-se da
mesma plataforma e para os mesmos fins.
O objetivo deste trabalho é analisar tuítes contendo ‘hashtags’39 que
se referem aos dois movimentos surgidos por efeito do 7 de Setembro,
verificando seus léxicos de forma simultânea nas várias dimensões dis-
cursivas dos participantes, por meio da análise multidimensional lexical
(BERBER SARDINHA, 2017). Assim, este estudo encontrou suporte
teórico em pesquisas sobre o uso de mídias sociais para fins políticos,
como as de Baker e McEnery (2015), Boulianne et al. (2020), Clarke
e Grieve (2017) e Sloan e Quan-Haase (2017). O trabalho também
encontra-se fundamentado pela Linguística de Corpus (BERBER
SARDINHA, 2004), o que abre caminho para a fundamentação teó-
rico-metodológica da Análise Multidimensional (AMD), proposta por
Biber (1985; 1988), desenvolvida por autores como Berber Sardinha
(2020) e Berber Sardinha, Kauffmann e Acunzo (2014). Mais especi-
ficamente, este estudo seguiu os passos da Análise Multidimensional
Lexical (AMDL), proposta por Berber Sardinha (2020), a fim de des-
vendar as dimensões discursivas de variação lexical, identificadas por
meio da interpretação dos campos semânticos subjacentes à coocorrên-
cia do léxico mais saliente em cada polo dimensional.
Fundamentação
As mídias sociais são espaços virtuais desenvolvidos principalmente
para a comunicação entre usuários, mas também servem para a divulga-
ção comercial e política. O Twitter está entre as mídias sociais mais po-
pulares. Em termos relativos, as “mídias sociais são usadas por uma em
cada três pessoas no mundo, com provável aumento de popularidade
39
Termo utilizado em mídias sociais para indexar uma expressão anteposta com o
símbolo ‘hash’ (#), que se torna um hyperlink agrupando outras publicações com
a mesma marcação.
239
em 2020, devido ao distanciamento físico, face à pandemia da Covid-
19”40 (RÜDIGER; DAYTER, 2020, p. 1).
O uso de plataformas sociais pode ser considerado tanto uma nova
maneira de socialização, quanto um novo espaço de demonstração das
identidades dos usuários e de grupos de pessoas que se identificam,
afetando o mundo de forma econômica, social e linguística. As mu-
danças causadas por essa nova maneira de interação têm sido alvo de
diversas pesquisas. Sloan e Quan-Haase (2017), por exemplo, editaram
uma coleção de 38 artigos sobre metodologias para coleta, desenho e
armazenamento de dados advindos de mídias sociais, pesquisas sobre
abordagens quantitativas e qualitativas para a análise dos dados e ferra-
mentas de pesquisa e análise. Já Rüdiger e Dayter (2020) editaram uma
coletânea com oito trabalhos baseados em Linguística de Corpus com
mídias sociais, relacionando-as a tópicos como a formação de comuni-
dades, variação linguística de subgrupos e o papel das imagens nas co-
municações. Há também pesquisas como a de Clarke e Grieve (2017),
que identificaram três dimensões de variação linguística relacionadas ao
grau de interatividade, antagonismo e atitudes presentes na linguagem
dos usuários, em um corpus composto por mensagens do Twitter de
teor racista e sexista. Em outro estudo, os mesmos autores (CLARKE;
GRIEVE, 2019) analisaram a variação estilística da conta de Twitter de
Donald Trump entre 2009 e 2018, pois, durante sua campanha para
a presidência dos Estados Unidos, Trump usou a plataforma para se
comunicar com seus partidários, detectando o quão conversacional, de
campanha eleitoral, engajado e de aconselhamento foi o discurso de
Trump naquele período.
Por sua vez, Baker e McEnery (2015) analisaram postagens do
Twitter por beneficiários de auxílios governamentais no Reino Unido,
coletando um corpus de tuítes com menções à série-documentário de
TV britânica Benefit Street, que tem como foco os moradores de uma
40
Do original: This means that social media platforms are used by one in three
people in the world, with popularity likely having surged in the face of the 2020
COVID-19 pandemic confining many users to their homes.
240
rua reconhecidamente desfavorecida na cidade de Birmingham, cujos
moradores recebem benefícios públicos. Eles identificaram os discursos
do pobre ocioso, do pobre como vítima e o rico que fica mais rico, re-
forçando a consolidação das mídias sociais, especificamente o Twitter,
como fonte para a obtenção de corpora e temáticas acerca do discurso
da atualidade. A plataforma Twitter, como visto, relaciona-se com a po-
lítica conforme atua como veículo da informação emitida por políticos
renomados, como o ex-presidente americano Donald Trump (CLARK;
GRIEVE, 2019) e o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (COSTA;
BERNARDI, 2021).
As mídias sociais são também consideradas como uma espécie
de “câmara de eco” por servirem como meio de propagação de ideias.
Boulianne et al. (2020) investigaram a relação de mídias sociais, es-
pecialmente o Twitter, com movimentos políticos de extrema direita.
Boulianne et al. (2020) destacaram o papel de mobilização popular da
mídia e a existência de um elo entre as mídias sociais e o populismo,
por propagar as informações em grupos específicos. De fato, as mídias
sociais da era digital facilitam esse processo de agrupamento ideológico
homogêneo, criando redes de comunicação onde não há conflitos de
interesse, apenas o “nós” e o “nosso”.
As mensagens publicadas em mídias sociais interessam pesquisas
na área da Linguística de Corpus (LC), por ser uma área que estuda
grandes quantidades de dados de origem natural, ou seja, da língua
em uso. Para a LC, a língua é um sistema probabilístico e as escolhas
lexicais dos falantes revelam os padrões da fala e, consequentemente,
as intenções do falante (BERBER SARDINHA, 2004). Os dados são
processados por programas computacionais que auxiliam na coleta e na
análise quantitativa dos dados. Nesta pesquisa, foi coletado um corpus
a partir de dois hashtags diferentes, com o uso da ferramenta Snscrape
para Python – que pesquisa conteúdos de mídias sociais, como perfis e
hashtags, e retorna os itens descobertos que são relevantes. Além disso, os
dados foram etiquetados e processados por programas computacionais
para a análise fatorial, componente chave da Análise Multidimensional,
à qual os dados foram submetidos.
241
Análise Multidimensional
A associação de uma abordagem estatística à análise linguística per-
mite a caracterização da língua a partir de várias dimensões que podem
descrever aspectos diferentes dentro de um mesmo texto. Proposta por
Biber, em 1985, a Análise Multidimensional parte da seleção de carac-
terísticas linguísticas a partir de padrões de co-ocorrência revelados por
uma análise fatorial exploratória, o que propicia a descrição de grandes
quantidades de dados linguísticos em diferentes registros. A interpreta-
ção dos grupos de características identificadas na análise fatorial identi-
ficar a função comunicativa por elas compartilhadas, designando cada
‘dimensão’, que são descritas como ‘parâmetros subjacentes de variação
linguística’41 (BIBER, 1985, p.338).
Com essa abordagem, o autor investigou a variação na língua ingle-
sa (LI) confrontando textos de variados registros para delinear as carac-
terísticas linguísticas típicas de cada registro. Ele obteve uma descrição
abrangente da LI e esclareceu como os vários registros variam em di-
mensões. A coocorrência de características linguísticas ocorre de forma
sistemática “porque atendem a alguma função comunicativa comum e
a interpretação da dimensão funcional subjacente às dimensões é uma
hipótese que deve ser confirmada através da análise qualitativa dos tex-
tos que compõem um corpus”42 (BIBER, 1988, p. 91).
Recentemente, Berber Sardinha propôs um novo modelo para
a Análise Multidimensional apresentada por Biber em 1988, ba-
seado na interpretação semântica de variáveis lexicais – a Análise
Multidimensional Lexical (AMDL), cujo objetivo é encontrar dimen-
sões discursivas, identificadas por meio da interpretação dos campos
semânticos subjacentes à coocorrência do léxico mais saliente. O autor
41
underlying parameters of linguistic variation
42
a cluster of features co-occur frequently in texts because they are serving some
common function in those texts. At this point, micro-analyses of linguistic fea-
tures become crucially important. Functional analyses of individual features in
texts enable identification of the shared function underlying a group of features
in a factor analysis.
242
investigou o uso dos adjetivos American e Brazilian, bem como seus
colocados – palavras que ocorrem perto do nódulo – para identificar
os parâmetros de representação de identidade nacional e cultural pe-
los quais os EUA e o Brasil são representados nas produções textuais
em inglês a partir do século XIX disponibilizados pelo Google Books
(BERBER SARDINHA, 2019; 2020). Nessa perspectiva, a AMDL,
ora empregada, considera como variáveis (unidades de análise) apenas
as palavras ou multipalavras de conteúdo (substantivo, verbo, adjetivo e
advérbio) para a identificação das dimensões de variação.
O estudo de Berber Sardinha, descrito acima, e outros (BERBER
SARDINHA, 2016;
2017; DELFINO; FONSECA DE ARAÚJO; BERBER
SARDINHA, 2018; KAUFFMANN, 2020) inspiraram este estudo,
que tem por objetivo promover um panorama discursivo presente nas
postagens do Twitter em torno das manifestações do Sete de Setembro,
em 2021, que opuseram manifestantes contra e a favor do governo.
Metodologia
A primeira etapa do estudo foi a coleta dos tuítes da plataforma da
rede social Twitter, por meio de programas que operam no sistema ope-
racional UBUNTU. A plataforma GitHub e o extrator Snscrape foram
utilizadas associadas a um script específico. Foram coletados 30.086
tuítes, sendo 14.815 que utilizaram a hashtag 7desetembrovaisergigan-
te e 15.271 que utilizaram a hashtag 12desetforabolsonaro. Os tuítes
foram salvos em formato JSON e compuseram o corpus deste estudo,
sendo chamando de 7_12_9, em referência aos dias (7 e 12) e ao mês
(9) quando essas manifestações foram realizadas. Cada tuíte carrega
inúmeras informações, como textos, imagens e emojis. Porém, neste
estudo decidiu-se apenas utilizar os textos para análise.
A partir desses dados, foi realizada a AMDL. A parte estatística que
envolve a AMDL é dividida em três partes: pré-processamento do cor-
pus, análise fatorial inicial e análise fatorial final. No pré-processamento,
243
o corpus 7_12_9 foi etiquetado pelo programa TreeTagger, que faz a
etiquetagem automática das palavras, unificando-as por lemas ou for-
mas canônicas, que reúnem as flexões nominais e verbais de mesma ori-
gem lexical. Os textos foram normalizados por 1.000 palavras, para que
textos de tamanhos diferentes pudessem ser comparados. Em seguida,
as variáveis foram selecionadas a partir do seu valor de comunalidade43.
Na análise fatorial inicial, as contagens normalizadas das variáveis
selecionadas do corpus 7_12_9 foram processadas no programa SAS. A
análise fatorial indicou nove fatores, que produziu nove grupos de va-
riáveis e respectivas cargas fatoriais. Escores individuais dos fatores por
texto foram gerados com base na soma das cargas fatoriais padronizadas
de cada variável integrante do fator. Isso possibilitou a análise qualitati-
va dos textos e a consequente interpretação dos fatores em dimensões de
variação, recebendo diferentes rótulos de natureza discursiva.
Análises de variância (ANOVAs) também foram feitas sobre os es-
cores médios das nove dimensões em cada texto do corpus, para iden-
tificar a diferença significativa entre os textos (p < 0,05) quando uma
dimensão é tomada como variável independente, e também para ve-
rificar sua influência na variação lexical encontrada, calculando-se os
valores de R².
Resultados e discussão
Os nove fatores extraídos da análise fatorial rotacionada foram in-
terpretados em termos de dimensões de variação lexical discursiva, con-
forme visto a seguir.
43
Comunalidade é a proporção de variabilidade de cada variável que é explicada pelo fator. Quanto
maior a comunalidade, maior será o poder de explicação daquela variável pelo fator. Em estudos de
AMD considera-se retirar variáveis cuja comunalidade esteja abaixo de 0.15 (Delfino, 2021)
244
0,52; precisar 0,52; depois 0,51; coisa 0,51; sempre 0,51; sair 0,51; acontecer 0,51;
conseguir 0,51; tempo 0,51; nunca 0,50; próximo 0,49; parte 0,49; hora 0,49; golpe
0,49; esquerda 0,49; ainda 0,48; voltar 0,48; pedir 0,48; gente 0,48; volta 0,48; de-
fender 0,48; país 0,48; enquanto 0,47; acreditar 0,47; apenas 0,47; haver 0,47; favor
0,47; pouco 0,46; tentar 0,46; achar 0,46; direita 0,46; mostrar 0,46; ajudar 0,46;
estado 0,46; lado 0,45; muito 0,45; tanto 0,45; esperar 0,45; pessoa 0,45; deixar 0,45;
derrubar 0,45; tirar 0,44; colocar 0,44; assim 0,44; governo 0,44; maior 0,44; tomar
0,43; lembrar 0,43; conta 0,43; democracia 0,43; então 0,43; mesmo 0,43; mundo
0,43; passar 0,43; amanhã 0,42; história 0,42; força 0,42; cara 0,42; momento 0,42;
também 0,42; usar 0,42; antes 0,41; casa 0,41; ficar 0,41; mudar 0,41; chamar 0,40;
saber 0,40; hoje 0,40; chegar 0,40; parar 0,40; aqui 0,40; ditadura 0,40; certo 0,39;
frente 0,39; falar 0,39; real 0,39; começar 0,39; preciso 0,39; existir 0,38; público 0,38
Negativas: lixar -1,06; salvo -0,94; cultura -0,91; contexto -0,88; conivente -0,86;
record -0,83; satanista -0,79; descente -0,79; aposta -0,75; rodrigar -0,69; tremer
-0,67; jornal -0,66; jornalismo -0,59; passaporte -0,54; vôlei -0,54; escutar -0,52;
urubu -0,51; comando -0,48; grosso -0,45; contagem -0,45; filmar -0,42; cruz -0,41;
tirania -0,39
Fonte: Elaborado pelos autores
245
Dimensão 1 (Negativo): Demonização da imprensa
“#RecordTV#BandJornalismo#7deSetembroVaiSerGigante
#doriagenocida#Fantastico#GloboNews#ISTOEGENTElLIXO
#JornalNacional#CPIdaPandemia#jornalhoje”
246
Exemplo Dimensão 2 (positivo): Crítica ao Judiciário
“O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, afirmou que “decisão da Justiça se
cumpre”, (...) Alexandre de Moraes, do STF https://t.co/RpdC7sW hd”, #12setforabolsonaro
247
Dimensão 4: Cenas das manifestações x Processo eleitoral
248
desistir 0,48; patriotismo 0,47; verde 0,47; terra 0,47; levantar 0,47; família 0,47;
contar 0,46; gazeta 0,45; neto 0,44; proteger 0,43; liberdade 0,43; gigante 0,41; his-
tórico 0,41; vida 0,40; bandeira 0,39; setembro 0,39; olho 0,38
Negativas: resposta -0.47; jornalista -0,45; petista 0,41
Fonte: Elaborado pelos autores
249
lemas verbais mobilizadores, tais como marcar, confirmar, compartilhar,
criticar e armar. O polo positivo foi denominado Convocação pública.
No polo oposto da dimensão, há um núcleo de palavras utilizadas para
ofender adversários políticos, como erro, canalha, sujeito, ladrão e mer-
da, associados a termos como bolsa, eleição, aceitar e maia. A dimensão
foi intitulada Ofensa.
250
Dimensão 8: Crítica à conduta política x Sentimento popular
Quadro 8 – Distribuição das variáveis no fator 8 (corte em 0.38)
Positivas: combate 0,85; combater 0,83; estimação 0,75; lava 0,74; petismo 0,724;
aliar 0,634; desculpa 0,61; corrupção 0,58; pano 0,55; livrar 0,53; interessar 0,50;
entregar 0,50; abandonar 0,50; chino 0,48; código 0,47; honesto 0,46; trabalhador
0,46; parir 0,44; rabo 0,44; bolso 0,44; chifre 0,41; protestar 0,39; inteiro 0,39; ca-
ráter 0,39; único 0,39
Negativas: popular -0,6; desespero -0,59; ouvir - 0,47; derreter -0,45; absurdo -0,44;
fala -0,43; fechar -0,41; seguir -0,41; ontem -0,39
Fonte: Elaborado pelos autores
251
O quadro 9 lista as 41 variáveis que carregaram no fator 9. O polo
positivo apresenta léxico ligado a uma imagem caricaturizada e negativa
do opositor político, com palavras como mídia, imprensa, militante e
hipócrita, associados aos lemas verbais matar, desesperar, chorar e odiar.
Por essa razão foi denominado Conspiração da mídia. No polo oposto,
estão termos que promovem apoio ou de posicionamento neutro em re-
lação aos poderes da República, como amor, pedido, responsabilidade,
planalto, nota, chance, institucional e senado, ao lado de verbos como
cometer, recuar e preparar. O polo foi rotulado de Responsabilidade
institucional.
252
as principais dimensões a serem destacadas são as dimensões 5 e 2, que
correspondem primeiramente a Ufanismo patriótico (R² = 34,85%),
seguida da polarização Anti-Judiciário x Terceira via (R² = 4,56%), ou
seja, são os principais temas emergentes no corpus pesquisado.
Os mesmos testes apontam para uma consolidação de duas posições
políticas a partir das dimensões encontradas: um polo pró-Bolsonaro e
outro, anti-Bolsonaro. O discurso concentrado no polo pró-Bolsonaro
pode ser descrito como expressão de um ufanismo patriótico que divul-
ga cenas de suas manifestações e uma pauta contra o Poder Judiciário, a
mídia e a classe política, com frequência por meio de linguagem abusiva
e ofensa. Em contraste, o discurso encontrado no polo anti-Bolsonaro
poderia ser descrito como expressão de uma terceira via que enxerga
vários problemas no país, mas defende uma pauta ligada à responsabi-
lidade institucional, ao processo eleitoral e ao anseio democrático, por
meio da ação política e da convocação pública.
Considerações finais
O feriado da Independência havia perdido o sentido cívico-militar
de mobilização popular quando Bolsonaro e apoiadores propuseram,
em 2021, utilizar a efeméride para manifestações a favor do presidente.
A essa manifestação do dia 7, contrapôs-se a manifestação do dia 12,
como reação política proposta por grupos com visão divergente à posi-
ção bolsonarista. Infelizmente, como os partidos de esquerda optaram
por não se manifestar, não foi possível analisar e comparar a posição
política expressa pela esquerda brasileira no período estudado.
Nesse contexto, o presente trabalho apresentou uma análise mul-
tidimensional lexical (BERBER SARDINHA, 2020) de uma amostra
representativa de tuítes veiculados com referência às manifestações pró
e contra Bolsonaro, mensuradas sob várias dimensões simultaneamen-
te, subjacentes ao embate retórico nas mídias sociais entre duas posições
políticas contrárias. A AMDL revelou nove dimensões, destacando os
principais temas tratados.
253
Essa polarização é capaz de explicar quase 40% da variação lexical
pesquisada, com destaque ao apelo muito forte de uma dimensão de
ufanismo patriótico da parte de apoiadores de Bolsonaro. Os outros
60% dos tuítes não permitem ser explicados unicamente pelo tipo de
posição política do texto expresso pelas dimensões, que detectaram a
coocorrência estatística complementar dos polos dimensionais. Todas
as outras dimensões somadas não chegam a explicar 5% da variação
encontrada, o que nos leva a supor que a variação do corpus é pou-
co determinada pela posição política adotada pelo produtor de tuítes
políticos.
Referências
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a Twitter corpus around the British benefits street debate. In: BAKER, P.; McENERY, T.
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255
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
256
ABSTRACT: Due to the need to reprogram practice spaces for the language
skills of English learners, during the covid-19 pandemic, this research
investigated two A1 level classes at the Culture House language institute at
the Federal University of Ceará. As instruments of data analysis, there were an
online survey (INST1), consisting of 23 questions applied to the investigated
classes, the interactions in the virtual environment google classroom (INST2)
and the observation diary of synchronous meetings through google meet
(INST3). Data were analyzed in the light of Grounded Theory (GT) and
discussed according to studies on autonomy, theories of foreign language
learning and studies on interaction, based on sociocultural theory. Applying
the constant comparison method (CPM), lexical incidents (IL) were extracted
from the instruments, which reinforced the contribution of access to digital
resources such as videos, search engines, movies and books for a quick
understanding of the language. Among the IL referring to the phenomenon of
using the virtual environment to promote students’ autonomy, the flexibility
incident emerged through the use of virtual resources in classes, since the
flipped classroom was used during the semester, which started to promote
the autonomy of students, as they attended classes in more convenient shifts,
becoming responsible for their learning process. The autonomy incident
emerged as an indicator of the phenomena linked to the use of the flipped
classroom and the provision of input prior to the synchronous meetings.
78.6% of the students considered themselves autonomous learners, leading
them to understand the process of acquiring autonomy as an activity to be
improved, since it is acting directly with interaction. 100% of the interviewees
affirmed that the interaction with colleagues helps their learning, declaring
that they feel harmed by the deprivation of this in the physical environment,
although they point out the flexibility achieved in the individual study as
positive.
KEYWORDS: Interaction, English as a foreign language, Autonomy, Active
Methodologies.
Introdução
A pandemia delineou novas formas de interação nas esferas de en-
sino de línguas estrangeiras. No contexto do ensino de língua inglesa, a
distância física proporcionou o uso de metodologias ativas de ensino, em
que alunos ocuparam um lugar de destaque, exercendo sua autonomia
257
e protagonismo durante o processo de aprendizagem. Durante o ensino
remoto emergencial (doravante ERE), as aulas passaram a ser lecionadas
on-line e, para que as quatro habilidades linguísticas em língua estran-
geira pudessem ser trabalhadas (produção oral e escrita e compreensão
oral e escrita), fez-se necessário o uso de recursos digitais que viabilizas-
sem não somente a apresentação do insumo sobre os conteúdos, mas
também questões relacionadas à forma de se trabalhar (como atividades
em duplas ou individuais, atividades complementares para a prática da
compreensão auditiva ou produção escrita e atividades que envolvessem
outras habilidades linguísticas).
A noção de metodologias ativas começou a ser discutida na década
de 1980, em que houve oposição às metodologias tradicionais que evi-
denciavam a transmissão de conhecimentos em um movimento unila-
teral professor-aluno. Em métodos de ensino mais tradicionais, como,
por exemplo, o método da gramática-tradução, o professor ensinava as
regras gramaticais e os alunos deviam traduzir textos para aprender a
língua-alvo. (LARSEN-FREEMAN, 2000). Em oposição aos métodos
mais tradicionais, as responsabilidades do processo ensino-aprendiza-
gem são divididas entre professor e aluno, e o aprendiz desenvolve, além
da língua-alvo, a capacidade de autoaprendizagem (MOTA; ROSA,
2018). Essa autoaprendizagem emerge não somente do estudo e da in-
vestigação por parte do aluno, mas também da atividade interativa em
sala de aula. Swain (1985) afirma que aprender uma língua estrangeira
é mais eficaz quando a língua aprendida é utilizada de forma interativa.
De acordo com Ellis (1993), ao interagir em sala de aula, o aprendiz
consegue praticar a língua e verificar sua compreensão, uma vez que se
encontra imerso em um contexto de fala real. O papel do aluno, de pas-
sivo, passa a ativo. Outra mudança de comportamento em sala de aula
pode ser vista no papel do professor, que passa “de transmissor do conhe-
cimento para monitor, com o dever de criar ambientes de aprendizagem
repletos de atividades diversificadas.” ( MOTA; ROSA, 2018, p. 263).
Há diversas definições para as metodologias ativas. É importante
salientar que, o que torna uma metodologia ativa é o fato de o processo
258
de aprendizagem ser um processo ativo, ou seja, o aprendiz precisa pro-
tagonizar esse processo. Brown (2007) define essa aprendizagem ativa
como um processo em que os alunos decidem sobre aspectos de sua
aprendizagem. Para Bakir (2011), essa autorregulação da aprendizagem
provoca não somente o pensamento crítico do aluno, como também
sua criatividade.
As metodologias ativas possuem fortes laços com a psicologia cog-
nitiva, em especial com os conceitos de metacognição e socioconstruti-
vismo. A metacognição reforça “a importância da reflexão e da autono-
mia do aluno no processo de aprendizagem” (MOTA; ROSA, 2018),
já o socioconstrutivismo faz com que o aprendiz seja visto como “um
participante ativo na construção do conhecimento”(FIGUEIREDO,
2019, p.61). Com isso, temos que, além de prática linguística, a prática
de uma língua é uma prática social, sendo a interatividade o fator que
provocará a aprendizagem do aluno.
Um dos pilares que sustentam a aprendizagem a partir da interação
social baseiam-se nos estudos de Vygotsky (2005), em que o indiví-
duo aprende a partir da sua interação com outros indivíduos, no caso
de uma sala de língua estrangeira, com seus colegas e com a interação
com o próprio meio. A aprendizagem é possibilitada por essa interação,
uma vez que gera novas experiências e essas experiências levam à novas
realidades que podem ser vividas e exploradas dentro do contexto do
próprio indivíduo.
Acreditamos que a aprendizagem significativa ocorre no intervalo
da chamada Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), assimilan-
do o conhecimento real e o potencial, sendo o primeiro aquele que o
aprendiz consegue aplicar sozinho e o segundo aquele que é aplicado
mediante auxílio dos outros. Esse intervalo poderá ser analisado com
maior cautela através da aplicação da Sala de Aula Invertida, uma vez
que a valorização do protagonismo do aprendiz poderá trazer resultados
positivos do que concerne a aplicação dos conhecimentos adquiridos
durante as aulas, seja por meio das videoaulas, seja por meio dos encon-
tros síncronos com uso de plataforma de videoconferência.
259
A sala de aula invertida (BERGMANN; SAMS, 2012) propõe uma
inversão não somente das atividades clássicas de sala de aula e de casa,
como também uma mudança de papéis de professores e alunos. Inverter
a sala de aula de línguas significa oferecer insumos para que os aprendi-
zes aprendam estrutura, vocabulário e pronúncia de forma autônoma,
utilizando o momento de sala de aula para a prática das quatro habilida-
des linguísticas, focando na interação entre os aprendizes. A orientação
para a aplicação da sala de aula invertida é que o professor prepare o
material didático a ser utilizado na fase de insumo e disponibilize-o
aos seus alunos antes da aula. Um exemplo são as videoaulas, em que o
professor grava sua aula, além de orientar referências e exercícios para
que os alunos façam após assistirem o vídeo. No encontro presencial, os
alunos já saberão o conteúdo, que poderá ser praticado em sala.
Essa prática foi realizada com as turmas investigadas neste trabalho.
A sala de aula invertida foi aplicada às turmas através da disponibiliza-
ção de aulas gravadas (aulas assíncronas) e outros materiais didáticos
como exercícios do livro didático e vídeos curtos com dicas de pronún-
cia, gramática e vocabulário. Para que as metodologias ativas fossem
aplicadas de forma dinâmica aos alunos, diferentes abordagens foram
aplicadas, de acordo com a necessidade de cada uma das turmas.
As pesquisas sobre estudos de língua baseada em tarefas, em inglês
task-based language teaching (TBLT) contribuem para a aplicação de
metodologias ativas em meio remoto. A abordagem baseada em tare-
fas promove a autonomia do aprendiz, uma vez que, após realizar a
tarefa com seus colegas, o aprendiz torna-se capaz de realizar a tarefa
em outros momentos, sozinho. De acordo com Smith; González-Lloret
(2020), com o intenso uso das tecnologias digitais no ensino de inglês,
a abordagem do ensino de língua baseado em tarefas (TBLT), transfor-
ma-se em ensino de língua baseado em tarefas mediado por tecnolo-
gias digitais, no inglês, technology-mediated task-based language teaching
(TMTBLT).
Jenkins; Purushotma; Weigelet al (2009), afirmam que os estudan-
tes acabam por se envolver com tecnologias de maneiras diferentes e
260
muitas vezes mais sofisticadas do que as encontradas na escola. Esse
envolvimento pode ser percebido durante as aulas totalmente remo-
tas, no período de distanciamento social. Os alunos utilizaram diversos
recursos digitais para auxílio próprio durante o semestre. Ao se falar
em TMTBLT, falamos em uma abordagem na qual os pesquisadores
voltam seu foco para as mais diversas possibilidades de uma ferramenta
tecnológica, ou de um recurso digital, no ambiente em que esta ferra-
menta se encontra e nas tarefas específicas ou tipos de tarefas que pro-
movem o uso da língua-alvo.
Este trabalho investigou as interações ocorridas no ambien-
te virtual google classroom de duas turmas de nível A1 (básico), da
Casa de Cultura Britânica, instituição de ensino de língua inglesa da
Universidade Federal do Ceará. À luz da TMTBLT, compreendemos os
processos de aquisição da autonomia dos aprendizes de inglês em am-
biente virtual. Assim como as tarefas propostas no uso da TBLT, com
uso de atividades mais tradicionais, como proposto por Ellis (2009) ou
atividades mais autênticas, que levaram em consideração o contexto real
de comunicação (LONG, 2016).
Percurso metodológico
O percurso metodológico desta investigação foi traçado a partir da
escolha da Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), de Strauss; Corbin
(2008) buscando a aplicação do Método da Comparação Constante
(MCC), em que categorias relacionadas aos fenômenos investigados
emergem dos dados provenientes dos presentes instrumentos de inves-
tigação. A partir do uso do MCC, estes fenômenos foram comparados
e contrastados até seu esgotamento, o que reduziu os primeiros fenô-
menos, chamados de incidentes lexicais individuais (ILI) a incidentes
lexicais comparados (ILC), resultando em categorias globais de análise
(SILVA, 2019). Nesta seção, apresentaremos o contexto da pesquisa,
seus participantes, os instrumentos de análise e o método analítico dos
incidentes localizados nos instrumentos aplicados.
261
A pesquisa foi realizada com aprendizes de nível básico (A1) de
língua inglesa, regularmente matriculados na Casa de Cultura Britânica
(CCB), da Universidade Federal do Ceará. No contexto da pandemia
do novo coronavírus, as aulas passaram a ser ministradas na modalidade
remota em 2021. As aulas foram ministradas pela professora responsá-
vel pelos procedimentos de geração de dados, caracterizando a pesqui-
sa como pesquisa-ação de abordagem qualitativa e natureza aplicada.
Foram, no total, 52 alunos matriculados nas duas turmas mencionadas.
O uso dos dados utilizados neste trabalho foi mediante assinatura do
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), disponibilizado
de forma digital, através da ferramenta google forms. O TCLE foi redi-
gido de acordo com a norma operacional no 001/2013, a qual rege a
organização do sistema CEP/CONEP, e seus procedimentos de acom-
panhamento da pesquisa que envolvem seres humanos no Brasil.
Para o gerenciamento das aulas em modalidade integralmente re-
mota, foi utilizada a plataforma Google Classroom. Para cada uma das
duas turmas, foi criada uma sala própria. Apesar das salas serem espe-
cíficas para cada turma, o conteúdo programático foi o mesmo, já que
todas as turmas são de nível A1 e utilizam o mesmo material. As meto-
dologias ativas, mais especificamente, a estratégia da sala de aula inverti-
da (flipped classroom), foi utilizada nessas turmas e por isso, o ambiente
virtual (AV) de cada turma foi necessário para disponibilizar as aulas
gravadas pela professora da disciplina, bem como fóruns de discussão e
outros materiais fundamentais para a oferta de insumo aos alunos.
As aulas ocorreram duas vezes na semana, em dias alternados: se-
gundas e quartas ou terças e quintas. De acordo com a CCB-UFC, caso
essas aulas não fossem suficientes para o preenchimento da carga ho-
rária semestral, aulas extras poderiam ocorrer às sextas-feiras. Durante
o semestre, as aulas extras ocorreram de forma assíncrona, não sendo
necessários encontros síncronos fora dos horários e dias estabelecidos.
Para a análise da aplicação da sala de aula invertida, bem como
a interação entre os aprendizes, os alunos receberam o insumo (aula
262
gravada pela professora) em um dia (ou segunda ou terça, a depender
da turma), e no dia seguinte de aula, durante o encontro síncrono cha-
mado webconference (quarta ou quinta, a depender da turma), os alunos
se reuniram para a realização de um momento de prática do insumo
previamente ofertado. Após assistirem à aula gravada, foi solicitado aos
alunos que resolvessem o caderno de exercícios (workbook), em que
atividades de gramática, pronúncia e vocabulário foram previamente
realizadas. Estas atividades foram corrigidas no dia do encontro síncro-
no. Além da correção do workbook, a professora da disciplina mediou
dinâmicas de conversação, em que os alunos interagiram em contextos
reais de fala.
Para esta investigação, foram utilizados um questionário on-line
(INST1), composto por 23 perguntas, aplicado às turmas investigadas,
as interações no ambiente virtual google classroom (INST2) e um di-
ário de observação das interações síncronas no google meet (INST3).
Os dados foram analisados à luz da teoria fundamentada nos dados
(TFD) e discutidos de acordo com os estudos sobre autonomia, teorias
de aprendizagem de língua estrangeira e os estudos sobre interação, ba-
seados na teoria sociocultural. Neste questionário os alunos puderam
narrar suas experiências em relação às metodologias ativas aplicadas du-
rante o semestre. Este questionário não foi de caráter obrigatório, mas
obteve alcance de 53,8% de respondentes das duas turmas investigadas.
O método a ser aplicado para extração dos incidentes lexicais, se-
jam os individuais (ILI), sejam os comparados (ILC) foi o método da
comparação constante (CHARMAZ, 2009). A terminologia referente
aos incidentes fundamenta-se no estudo de Silva (2019), fazendo a dis-
tinção entre duas categorias distintas de incidentes, os incidentes lexi-
cais individuais (ILIs), que designam os fenômenos que emergiram de
forma isolada nos três instrumentos. As categorias que emergiram após
a aplicação do MCC designam os fenômenos relacionados aos objetivos
desta investigação.
263
Análises e resultados
A fim de investigar a contribuição dos recursos utilizados nas aulas
remotas de língua inglesa para o desenvolvimento linguístico dos apren-
dizes da língua de nível básico, utilizamos um questionário diagnóstico
aplicado aos alunos ao final do semestre letivo de 2021.1. Este questio-
nário foi instrumento de geração de dados I, (doravante INST1). O
INST1 possui 23 perguntas que buscavam identificar as facilidades e di-
ficuldades dos alunos em relação às tecnologias digitais, bem como a me-
todologia adotada (sala de aula invertida). O questionário também bus-
cou investigar como se deu a interação entre estudantes em meio remoto
e de que forma essa interação interferiu na aprendizagem dos estudantes.
Com um total de 28 respondentes, 53,8% dos alunos matricula-
dos nas duas turmas de A1 da professora no semestre citado, todos os
respondentes declararam que leram e concordaram com o Termo de
consentimento livre e esclarecido (TCLE). O projeto, aprovado pelo
comitê nacional de ética em pesquisa (CONEP), tem parecer favorável,
de número 4.979761.
Os respondentes ao questionário encontravam-se matriculados em
duas turmas de nível iniciante de língua inglesa, (A1). Sendo, 53,6% dos
respondentes alunos da disciplina “Estrutura e Uso da Língua Inglesa
I”, ofertada exclusivamente aos alunos de graduação da Universidade
Federal do Ceará, e 46,4% dos alunos que responderam encontravam-
-se matriculados na disciplina “Inglês A1-S1”, ofertada a toda a comu-
nidade (alunos ou não da universidade).
Dentre os respondentes, 42,9% dos alunos afirmaram que esta
disciplina simbolizava seu primeiro contato com um curso de língua
inglesa, sendo 57,1% já familiarizados com aulas de inglês em cursos
livres. Com isso, temos que mais da metade dos respondentes já tiveram
algum contato com curso livre de inglês, conhecendo algum tipo de
metodologia de ensino de língua inglesa.
Podemos relacionar a presença da língua inglesa sentida pelos apren-
dizes em ambientes virtuais à possibilidade de aplicação da TMTBLT,
264
uma vez que aplicativos, jogos e recursos digitais fazem-se presentes na
vida dos aprendizes. Tarefas que envolvam a pesquisa em meio digital
ou uma visita guiada a um museu, por exemplo, podem contribuir po-
sitivamente para a prática de estruturas linguísticas e vocabulário em
língua inglesa.
265
mais prazerosa para eles, se individualmente ou em grupo. O gráfico
abaixo representa as respostas dos alunos:
266
utilizam para trabalho, 92,9% responderam que utilizam para estudos
e entretenimento. 89,3% afirmaram que utilizam para navegar em suas
redes sociais. 35,7% responderam que utilizam para e-commerce e ape-
nas 3,6% responderam que utilizam a internet para fins de edição/pro-
dução musical criação de peças de design. O gráfico abaixo demonstra
o percentual de cada resposta:
267
Ao serem questionados acerca de sua autonomia nos estudos de
inglês, os alunos responderam à pergunta “Você considera a autono-
mia importante para o processo de aprendizagem de língua inglesa?”.
96,4% dos alunos responderam que sim, enquanto que apenas 3,6%
respondeu que não.
268
De acordo com os estudantes, 78,6% se consideram aprendizes au-
tônomos, 3,6% não se consideram aprendizes autônomos, 7,2 % res-
ponderam “mais ou menos”, bem como 3,6% respondeu com “meio
termo”. 3,6% respondeu que “Me considero, mas levando em conta as
respostas anteriores, após a aula online da professora, teria que continu-
ar estudando pelo computador. Isso me incomoda. Diferentemente se a
aula fosse presencial e você utilizasse o computador para se aprimorar.”
3,6% respondeu que acredita que possa melhorar, principalmente no
inglês. Estas respostas nos levam a compreender o processo de aquisição
da autonomia como atividade a ser aprimorada. Os alunos afirmaram
sentirem falta da interação em sala de aula, mas pontuaram como fator
positivo a flexibilidade para estudarem sozinhos, buscarem conteúdos
on-line e utilizarem ferramentas que facilitem o aprendizado em casa.
Após comparar e contrastar os dados provenientes dos três instru-
mentos de análise, sendo o INST1 o questionário disponibilizado por
meio do google forms, o INST2, as interações entre os alunos em suas
turmas virtuais no google classroom e o INST3, o diário de observação
das interações síncronas, redigido pela pesquisadora após cada encontro
(aula síncrona), tivemos uma lista de incidentes lexicais que apontavam
para o uso das tecnologias digitais como ação de promoção da autono-
mia dos aprendizes de língua inglesa, mesmo com as dificuldades apre-
sentadas por eles, como a dificuldade de prática de produção oral em
ambiente virtual, em que alguns consideravam o momento de encontro
nas aulas síncronas insuficiente para a prática oral.
Aplicando o método da comparação constante (MCC), os inci-
dentes lexicais (IL) foram extraídos dos instrumentos 1,2 e 3, o que
reforçou a contribuição do acesso a recursos digitais como vídeos, bus-
cadores, filmes e livros para uma célere compreensão da língua. Dentre
os IL referentes ao fenômeno do uso do ambiente virtual para promo-
ção da autonomia dos alunos, destacamos o incidente flexibilidade, o
qual emergiu pelo uso de recursos virtuais nas aulas, uma vez que a sala
de aula invertida foi utilizada durante o semestre, resultando na pro-
moção da autonomia dos aprendizes, pois estes assistiram às aulas em
turnos mais convenientes, tornando-se responsáveis por seu processo
269
de aprendizagem. Observamos na figura 1 os fatores que justificam a
emergência do IL flexibilidade a partir da triangulação dos dados gera-
dos dos INST1, INST2 e INST3. Nela, é possível perceber que o IL
flexibilidade emergiu devido à presença do uso de recursos virtuais du-
rante as aulas (síncronas e assíncronas), pela disponibilização das aulas
gravadas e pela liberdade que os aprendizes tiveram para manipular as
gravações, sendo possível controlar a velocidade da aula, pular partes
que já eram de conhecimento dos alunos e assistir outras vezes, caso ne-
cessário, além de pausar a aula para resolver algum exercício específico
ou buscar outros recursos visuais midiáticos que contribuíssem para um
melhor entendimento do assunto.
Outro fenômeno ligado ao IL flexibilidade foi o não-deslocamento
para o ambiente de sala de aula físico, possibilitando o comparecimento
de alunos às aulas com maior frequência. No INST3 observamos que
a frequência dos alunos nas aulas síncronas era quase total, salvo casos
em que os próprios alunos justificavam a ausência ou apresentavam
problemas de conexão com a rede de internet.
270
consideravam-se aprendizes autônomos, levando-se a compreender o
processo de aquisição da autonomia como atividade a ser aprimorada,
uma vez que este atua diretamente com a interação. 100% dos respon-
dentes afirmaram que a interação com os colegas auxilia sua aprendiza-
gem, declarando sentirem-se prejudicados pela privação desta em meio
físico, apesar de pontuarem como positiva a flexibilidade alcançada no
estudo individual. Observamos, na figura 2, os fatores que justificam a
emergência do IL flexibilidade a partir da triangulação dos dados gera-
dos dos INST1, INST2 e INST3. Para que este IL fosse alcançado, a
comparação e o contraste entre os instrumentos mostraram que a sala
de aula invertida foi responsável pelo desenvolvimento de uma consci-
ência da responsabilidade de aprendizagem por parte dos alunos, pois,
caso não assistissem à aula antes do encontro síncrono, sua participação
acabaria sendo nula ou aconteceria de forma superficial, uma vez que
era necessário fazer os exercícios recomendados ao final da aula antes
do encontro ocorrido através da ferramenta google meet. Essa prepa-
ração para os encontros possibilitou aos alunos melhor organização de
seus estudos, responsabilidade para com seus estudos e antecipação na
resolução de problemas (inclusive para atividades de conversação, com
estruturas que foram trabalhadas nas aulas gravadas e, depois, nos en-
contros síncronos, com os colegas).
271
O uso de tarefas criativas, como por exemplo, a criação dos vídeos
finais (Final project), em que os alunos deveriam gravar um vídeo cur-
to, de, no mínimo, um minuto, apresentando sua autobiografia, com
vocabulário e estruturas linguísticas utilizadas durante o semestre, con-
tribuiu para a aquisição da autonomia, pois, durante o processo, os
alunos expressaram a necessidade de regravação de seus vídeos, uma
vez que, ao assistirem suas produções, identificavam erros de pronúncia
(auto-feedback). Os alunos afirmaram ensaiar antes da gravação, o que
caracteriza o uso de rehearsal das estruturas que eles roteirizam, promo-
vendo maior autonomia na hora da realização e finalização da tarefa.
Considerações finais
Diante do contexto das aulas remotas emergenciais, este trabalho
apresentou os resultados da investigação acerca das interações ocorridas
no ambiente virtual google classroom de duas turmas de nível A1 (básico),
da Casa de Cultura Britânica, instituição de ensino de língua inglesa da
Universidade Federal do Ceará. À luz da TMTBLT, compreendemos os
processos de aquisição da autonomia dos aprendizes de inglês em ambien-
te virtual, resultado do uso das metodologias ativas nas aulas de inglês. Os
resultados da investigação apontam para o uso das tecnologias digitais nas
aulas remotas como elemento de promoção da autonomia dos alunos,
bem como a ocorrência de maior flexibilização das formas de ensinar e de
aprender a língua inglesa. Entendemos que a distância física trouxe diver-
sos benefícios não somente para a aprendizagem de inglês, como também
para as formas de se ensinar a língua inglesa. Os recursos multimidiáticos
ganham um papel de destaque na promoção da autonomia e a aplicação
de metodologias ativas, como a sala de aula invertida, possibilitou o auto-
feedback e uma maior participação dos alunos nas aulas remotas, realizadas
de forma síncrona. A partir dos incidentes encontrados, os quais aponta-
ram para as duas categorias supracitadas, verificamos a importância das ta-
refas criativas, como a produção de vídeos para reconhecimento de erros e
prática da produção oral através do rehearsal, ou seja, do ato de ensaiar suas
falas previamente e da necessidade de alguns aprendizes de regravar seus ví-
deos, após a identificação de erros de vocabulário, gramática ou pronúncia.
272
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LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
44
Graduanda em Letras (Inglês/Português) pela UERJ/FFP. E-mail: silva.catheri-
ne@graduacao.uerj.br.
274
scientific initiation research about Comfort Zone studies (COLOMBO
GOMES, 2004; 2006; 2018), in which teachers in initial training, four
undergraduate scientific initiation scholarship holders and one research
teacher participate. The project seeks to map out the fluency of students in the
first and second periods of the teacher training college, as well as to promote
reflection and awareness about the influence of each individual in order to
enable the development or improvement of their fluency and, consequently,
of their proficiency. Such measures aim to contribute to the improvement of
teachers’ professional competence in a micro and macro spectrum. The study,
which began in August 2020, was scheduled to end in July 2022 and has been
carried out through virtual meetings on the RNP platform. The theoretical
framework was based on interactional sociolinguistics, which provides great
contributions with regard to work on the interaction and socio-discursive
competence of teachers in initial training. Data generation occurs through
participatory observation and field notes, analyzed in the light, mainly, of
politeness studies (BROWN & LEVINSON, 1987), of the face (GOFFMAN,
1974) and of the Comfort Zone (COLOMBO GOMES, 2004; 2006;
2018, 2022). The main data were generated in video lessons recorded in two
English language classes. The partially achieved understandings contributed
to the organization of an extension course as a way of implementing “actions
and implementations for the oral performance of the English language in
academic contexts”.
KEYWORDS: Comfort Zone; orality; English language.
1. Introdução
Com a necessidade do distanciamento devido à COVID-19, as au-
las na UERJ passaram a ser remotas, dessa forma, a partir de agosto de
2020, o grupo de pesquisa “Estudos da Zona de Conforto” (GPEZC),
composto por uma professora pesquisadora da UERJ/FFP e quatro bol-
sistas PIBIC, enfrentou um novo desafio: investigar como e por que de-
terminados alunos se mantinham em um estado de estagnação, no qual
evitavam o uso da língua inglesa nas interações, a fim de protegerem sua
face (GOFFMAN, 1974). Assim, fez-se necessário que os integrantes
desse GP se debruçassem sobre uma questão acerca da formação de
professores de língua inglesa. Trata-se de uma questão inquietante e
275
preocupante, pois como professores de inglês em formação inicial po-
dem não ser fluentes no idioma no qual estão se instrumentalizando
pedagogicamente para exercerem o magistério? O fio condutor dessa
investigação é o conceito da Zona de Conforto que se alicerça nos tra-
balhados de Colombo Gomes (2004; 2006; 2018) acerca da permanên-
cia ou do êxodo da ZC.
Movido pelas observações das aulas de uma turma de primeiro
período, o grupo propôs-se a alcançar quatro objetivos: (i) mapear a
fluência dos alunos dessa turma; (ii) investigar como as emoções e o
trabalho de face poderiam influenciar a fluência e a interação dos alu-
nos da turma; (iii) observar as atitudes e características dos indivíduos
na turma que se mostravam estagnados na ZC; e (iv) identificar quais
ações promoviam a permanência ou o êxodo na ZC. Pautadas por esses
objetivos, propomos as seguintes questões de pesquisa: “Como são cate-
gorizados os professores em formação inicial na FFP- UERJ no que tange à
fluência em LI?”; “De que forma as emoções (MATURANA, 1998; 2002)
e a face (GOFFMAN, 1964; 1972) podem influenciar a permanência ou
o êxodo da ZC?”; “Quais são as características de um indivíduo na ZC?”;
e, por fim, “Quais ações promovem o êxodo ou a permanência na ZC?”.
O trabalho do GPEZC já vinha sendo realizado com o mapeamen-
to da fluência de alunos em formação inicial desde 2017. Portanto, já
possuía registros e dados de alunos nos primeiro e segundo períodos da
Faculdade de Formação de Professores (alunos de 2019.1 em diante) e
planejava propor ações mais contundentes, entretanto, devido à pande-
mia, tais ações foram realizadas de forma remota, o que, de certa forma,
reduziu o impacto desejado. Todavia, apesar das dificuldades em im-
plementar as ações do projeto, buscou-se propor uma oportunidade da
prática da oralidade da língua inglesa aos participantes, além da obten-
ção de dados para o enriquecimento dos estudos de Zona de Conforto.
O presente trabalho é um recorte de uma pesquisa de natureza
qualitativa (DEZIN; LINCOLN, 2006, LINCOLN; GUBA, 2006,
ERICKSON, 2014) e de cunho interpretativista (MOITA LOPES,
1996), cujos principais instrumentos são a observação de campo, a
276
transcrição de aulas, entrevistas e questionários. Entretanto, durante o
período emergencial, nesta investigação as observações de aulas vídeo-
-gravadas em encontros em plataformas digitais, as notas de campo das
bolsistas e diários reflexivos coletados dos participantes em encontros
após a volta ao presencial na fase pós-pandêmica.
2. Fundamentação teórica
A concepção de Zona de Conforto (ZC), fundamentada por
Colombo Gomes (2004; 2006; 2018) está relacionada à dificuldade
dos alunos e professores de se expressarem oralmente na língua inglesa,
temendo uma pronúncia não assertiva e, consequentemente, quaisquer
tipos de julgamentos direcionados à sua face (GOFFMAN, 1974). O
conceito técnico de ZC é definido como “o estado consciente no qual
o falante, cujo uso dessa língua é diferente do básico, faz uso mínimo
de estruturas, não corre o risco de cometer erros e possa proteger sua
face (cf. GOFFMAN, 1974) ao se comunicar na língua em questão”
(COLOMBO GOMES, 2018).
Para entender o conceito da ZC é necessário compreender os con-
ceitos de face (GOFFMAN, 1974) e de proteção à face, os de poli-
dez e os atos de ameaça à face (BROWN; LEVINSON, 1987) e os de
emoções (MATURANA, 2002). Manifesta-se, então, a preocupação da
preservação e da manutenção da face (GOFFMAN, 1974). Além disso,
utilizar-se-ão estratégias de polidez para permear as relações sócio inte-
racionais (BROWN & LEVINSON, 1987), intrinsecamente relaciona-
das à emoção e à necessidade de continuar ou sair da Zona de Conforto.
O conceito de face é definido como “o valor social positivo que
uma pessoa efetivamente reivindica para si mesma através da linha que
os outros pressupõem que ela assumiu diante de um contato particular”
(GOFFMAN, 1974). Por linha, entende-se “um padrão de atos verbais
e não verbais com qual ela [a pessoa] expressa sua opinião sobre a situa-
ção, e através disto sua avaliação sobre os participantes [do encontro],
especialmente ela própria”.
277
No que tange à preservação da fachada (facework), podemos afirmar
que o objetivo é neutralizar possíveis incidentes (chamados de ameaças)
e assim obter a manutenção da fachada, evitando o que chamamos de
defacement, ou seja, a perda da face. Consideramos proteção defensiva
o ato de proteger a própria face, e de proteção protetora, o de proteger
a face alheia. São exemplos do facework o processo de evitação e o pro-
cesso corretivo.
Brown & Levinson (1987) propuseram, através dos estudos da
polidez, as noções de face positiva e face negativa, sendo a primeira
“a autoimagem consistente e positiva ou ‘personalidade’ (crucialmente
incluindo o desejo de que essa autoimagem seja apreciada e aprovada)
reivindicada pelos interactantes”, ou seja, a necessidade de ser admira-
do, valorizado e respeitado. Por outro lado, temos a “a reivindicação
básica de territórios, de preservação pessoal, de direitos a não-distração
– i.e. de liberdade de ação e liberdade de imposição”, como a necessida-
de de não ser limitado no que tange às suas ações. Em sua concepção,
quaisquer atos de fala ameaçam pelo menos uma das quatro faces de um
encontro: a face positiva do falante e a do ouvinte ou a face negativa do
falante ou do ouvinte.
Em relação às emoções, de acordo com Maturana (2002), elas (as
emoções) são “as diferentes disposições corporais dinâmicas que espe-
cificam os diferentes domínios de ações onde nós, os animais, nos mo-
vemos” e que “na medida em que diferentes emoções constituem do-
mínios de ações distintas, haverá diferentes tipos de relações humanas
dependendo da emoção que as sustente, e será necessário observar as
emoções para distinguir os diferentes tipos de relações humanas, já que
estas as definem” (2002, p. 67). Portanto, devemos levar em considera-
ção como as emoções podem afetar as ações de acordo com o contexto
e a necessidade, o que é imprescindível para os estudos da ZC.
3. Aspectos metodológicos
Os estudos sobre a Zona de Conforto caracterizam-se como uma
pesquisa qualitativa, de cunho interpretativista etnográfico. A pesquisa
278
qualitativa explora a organização social usando exemplos concretos ba-
seados nos dados dos quais a teoria e os conceitos emergem, os quais são
apresentados através de dados. Erickson (1998) sugere que a pesquisa
qualitativa identifica as principais ocorrências nos dados e as descreve
em termos funcionais, que se relacionam com o contexto social mais
amplo.
O método qualitativo de pesquisa coleta dados e faz mudanças
tanto na teoria quanto nos conceitos. Por isso, os estudos evoluem à
medida que mais dados são coletados. A qualidade é o foco desse tipo
de pesquisa, que tem como objetivo detalhar ocorrências diárias e com-
preender o que os participantes e observadores pensam sobre esses even-
tos (ERICKSON, 1998). Para o design deste estudo, foram utilizadas e
analisadas notas de campo, observação; no retorno às aulas presenciais
foram solicitados diários dos alunos participantes, que serviram para
identificarmos como os participantes se conscientizaram do patamar
linguístico que alcançaram e como essa conscientização alterou seu pa-
tamar de fluência.
De acordo com Moita Lopes (1994), considera-se pesquisa de
cunho interpretativista aquela que tem como objetivo investigar os pro-
cessos relacionados à produção e à compreensão linguística. Sua na-
tureza etnográfica está relacionada com o foco no contexto social da
perspectiva dos participantes, considerando a visão deste e não só a do
observador (o pesquisador externo).
É de suma importância, no que tange à pesquisa interpretativista
etnográfica, levar em conta a visão daqueles que participam da pesquisa
a fim de investigar o contexto social, visto que a linguagem representa
uma ponte entre a interpretação do participante e do pesquisador.
Considerando a crise resultante do período pandêmico d de 2020,
o contexto da investigação foi virtual, em aulas que ocorreram em uma
universidade estadual, mais especificamente numa faculdade de forma-
ção de professores, no campus de São Gonçalo, com a turma de Língua
Inglesa I. Com a necessidade de encontros remotos para a realização das
aulas, houve uma significativa alteração em nosso design metodológico,
279
pois pudemos observar que os alunos usavam a instabilidade da internet
e ruídos externos a seu favor, evitando respostas mais longas e diretas e
ganhando tempo na hora de falar. Os participantes focais do presente
estudo são três alunos, a quem denominamos “Zeus”, “Ares” e “Hera”,
alunos de primeiro período, cujos nomes reais foram preservados por
questões éticas.
3.2 Os participantes
Conforme mencionado anteriormente, os três alunos observados
pela bolsista Catherine foram Zeus, Ares e Hera. Para que a professora
da turma conhecesse a fluência e a acuidade linguística dos alunos, todos
alunos da turma, na primeira aula, receberam a solicitação de que fosse
gravado um vídeo de auto apresentação, contendo informações sobre
a história de aprendizagem da língua inglesa de cada um e a descrição
do texto usado na primeira aula versando sobre interculturalidade e
280
decolonialidade. Os vídeos poderiam ter no máximo seis minutos e de-
veriam ser enviados para a professora antes da aula da semana seguinte.
Segundo sua gravação, Zeus, 23 anos, já tinha estudado inglês em
um curso de idiomas e possuía certificado de proficiência do Michigan.
Em seu vídeo de apresentação para a disciplina, o aluno demonstrou
segurança ao utilizar a língua inglesa para se apresentar, narrar sua tra-
jetória de aprendizagem de língua inglesa, resumir e argumentar em
defesa dos tópicos contidos no texto trabalhado pela professora.
Assim como Zeus, Ares 19 anos, já tinha estudado inglês em um
curso de idiomas, porém não possuía nenhum certificado de proficiên-
cia. Em seu vídeo de apresentação para a disciplina, o aluno demons-
trou habilidade ao utilizar a língua inglesa para se apresentar e narrar
sua trajetória de aprendizagem de língua inglesa. Entretanto, ainda que
já tivesse cursado mais de seis anos em uma escola de idiomas, teve mui-
ta dificuldade para resumir e argumentar em defesa dos tópicos conti-
dos no texto trabalhado pela professora.
Hera, 19 anos, nunca tinha estudado inglês fora da escola. Foi pos-
sível perceber que no vídeo enviado para a professora, a aluna leu du-
rante toda a gravação. Na leitura, a aluna apresentava entonação, pro-
núncia e prosódia adequadas. Todavia seu olhar foi desviado da câmera
durante toda a gravação.
281
interação, percebemos na interação de Zeus a predominância do ato
de ameaça a sua face positiva realizado pelo aluno. Compreendemos
que Zeus estava realizando uma troca verbal e que era de seu interes-
se expressar uma opinião ou a forma como o aluno entendia o que
era explicado em aula, entretanto, se levarmos em conta o uso de dis-
claimers para as três vezes seguidas em que o aluno interagiu com a
professora, entenderemos que suas ideias foram parcialmente expressas
devido ao medo de errar como é o apresentado intervalo da aula entre
17:30 a 18:10 do dia 09 de outubro de 2020 nos excertos a. (contador
da gravação 17:37:11-17:39:02) , b. (contador da gravação 17:43:32-
17:43:51) e c. (contador da gravação 17:56:03-17:57:01). A interação
observada inicia-se com a pergunta de um aluno na aula às 17:30, mas
o primeiro trecho analisado de Zeus é iniciado às 17:37:11.
a. 17:37:11 a 17:39:02
Aluno não identificado: Professor, if the head of this phrase is an adjective, it is a noun
phrase?
Teacher: Who can help our friend? (…) please (…) Anyone?
Zeus: Teacher, if I’m not wrong (…) I don’t know if it’s correct to say it, but er, er…Well,
you said the head of a noun phrase is always a noun phrase. (…) Right? Is it correct?
Teacher: Go ahead, (nome do aluno), make your point.
Zeus: “The decolonial perspective presents”... , noun phrase: the decolonial perspective;
head perspective; (…), sorry…
Teacher: Come on, keep on explaining, (nome do aluno),…
Zeus: That’s all…
b. 17:43:32 a 17:43:51
Zeus: I’m afraid to say it, sorry, teacher…
Teacher: (Nome do aluno), just say what you were writing on the chat to me… it’s correct!
Zeus: predeterminer...(?)
c. 17:56:03 a 17:57:01
Hera: Eu acho, I think it, I agree, but I’m not sure.
Teacher: Does anybody agree with the assertion on the board?
A professora pede novamente a Zeus para falar o que ele escrevera no chat. Zeus desliga a
câmera para responder.
282
e da avaliação do outro. Para Brown & Levinson essa noção de poder
é importante, uma vez que essa variável tem impacto na escolha das
estratégias linguísticas referentes à polidez positiva. Ou seja, fazendo o
uso dos disclaimers if I’m not wrong e I don’t know if it’s correct to say,
Zeus busca mitigar a agressão a sua auto imagem ao apresentar previa-
mente uma “desculpa” para caso cometa algum erro em sua resposta. Ao
fazer uso dessa estratégia, Zeus fala perde o controle de sua intonação,
não apresenta prosódia, nem desenvolve uma explicação completa. Seu
desconforto é expresso mais firmemente ao desligar a câmera assim que
informa que não tem mais nada a falar (that’s all...). O que percebemos
com isso é que na luta pelo poder da preservação de sua face, Zeus perde
a oportunidade de interagir na língua estrangeira e é mantido na ZC
(COLOMBO GOMES 2004, 2006, 2018) mesmo sendo um falante
proficiente como demonstrou em sua gravação.
283
os outros. Com isso, o aluno se mantém no mesmo patamar linguístico,
por apenas usar sua competência interacional na língua inglesa em mo-
mentos em que não se sente ameaçado ou julgado, ao invés de expandir
sua habilidade oral.
284
como a noção do ritual da interação é uma aliada na promoção do
êxodo da ZC. “Hera”, por sua vez, mostrava-se interessada em assistir e
participar da aula e mesmo recorrendo de forma frequente à sua língua
materna, assegurava-se de praticar a oralidade na língua inglesa.
6. Considerações finais
O principal objetivo da presente investigação era de proporcio-
nar uma visão mais aprofundada sobre os estudos sobre a Zona de
Conforto, propostos por Colombo Gomes (2004; 2006; 2018; 2022) e
desenvolvidos pelo grupo de pesquisa “Estudos da Zona de Conforto”,
composto por quatro bolsistas PIBIC e uma professora orientadora.
Buscamos, neste recorte de pesquisa, alcançar os objetivos apresentados
na introdução e fomos guiadas por quatro perguntas de pesquisa que
respondemos nos parágrafos subsequentes.
No que se refere à primeira questão de pesquisa, “Como são catego-
rizados os professores em formação inicial na FFP- UERJ no que tange à
fluência em LI?”, pode-se destacar a proposta do “Quadro de referência
de uso de línguas para professores em formação em interações orais”,
desenvolvido pelas bolsistas PIBIC através de observações de campo
e a inspiração no “Quadro Europeu Comum de Referência para as
285
Línguas”. No quadro, os alunos são categorizados entre básico, inter-
mediário avançado, com três subcategorias cada um, as quais descrevem
brevemente quais competências e habilidades os alunos apresentam de
acordo com cada classificação na formação inicial. Ainda sendo refina-
do, a versão inicial do quadro foi publicada em um artigo na RBLA em
2022 por Colombo Gomes.
Em relação à forma como as emoções (MATURANA, 1998; 2002) e
a face (GOFFMAN, 1964; 1972) podem influenciar a permanência ou o
êxodo da ZC, acreditamos que é a partir da tentativa de manter ou proteger
sua face que os alunos deixam de exercitar a oralidade dentro de sala de
aula, visto que temem sofrer ameaças, seja à sua face positiva ou negati-
va (BROWN & LEVINSON, 1987). Podemos destacar características
como inaptidão, receio de errar, de ser julgado e criticado e a insegurança
como possíveis empecilhos, os quais promoverão a permanência na ZC e
dificultarão o êxodo dela. Entretanto, não foi possível, nesta etapa, verifi-
car como as emoções influenciou a permanência ou o êxodo na /da ZC.
Destacamos que nessa turma em particular, observamos que as ca-
racterísticas de um indivíduo na ZC não diferem daquelas já apontadas
nos estudos de Colombo Gomes (2004; 2018; 2022).
Em relação às ações promovedoras do êxodo ou a permanência na
ZC, destacam-se a proposta, feita pela professora, de formas de expres-
são aos alunos da maneira que eles se sintam mais confortáveis, como
foi observado através dos diários promovidos pela professora durante
as aulas de Língua Inglesa I e II aos professores em formação inicial. A
reflexão e a conscientização de que é necessário abandonar uma postura
mais cautelosa em função de adotar outra, mais confiante e crítica, apa-
recem como aliados na busca pelo êxodo da ZC.
Por fim, é fundamental considerar que ainda há muito a ser desen-
volvido, visto que a investigação sobre os estudos da Zona de Conforto
deve ocorrer em fluxo contínuo a fim de acompanhar como a ZC se
configura ao longo do tempo, como diferentes professores em forma-
ção se comportam e quais estratégias para o êxodo da ZC estão sendo
desempenhadas de acordo com os cenários propostos. Além disso, é
286
necessário supervisionar a evolução dos alunos analisados visando do-
cumentar seus resultados.
Referências
BROWN, P; LEVINSON, S. Politeness: some universals in language use.
Cambridge: Cambridge University Press, 1987.
DENZIN, N.; LINCOLN, Y. The discipline and practice of qualitative research. In:
The handbook of qualitative research. Thousand Oaks: Sage Publications, 2000. p.
1-27.
287
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
288
the dystopian novel Nineteen eighty-four performed by Lenita Maria Rimoli
Pisetta. The aim is to address retranslation as a generator of literary diversity
and infinite openness to new interpretations of the same text.
KEYWORDS: Literary translation; retranslation; literary interpretations; li-
terary update.
47
Além de traduções independentes publicadas por meio da Amazon e de outras
plataformas, há ao menos 20 lançadas por editoras de todo o país. Entre os
tradutores, encontram-se: Marina Colasanti (FTD, 2021); Luisa Geisler (Amo-
ler, 2021); Alexandre Barbosa de Souza (Via Leitura, 2021); Renan Bernardo
(Excelsior, 2021); Petê Rissatti (Biblioteca Azul/Globo, 2021); Fernanda Abreu
(Arqueiro, 2021); Daniel Lühmann (Aleph, 2021); Renata Russo Blazek (Mon-
289
Nineteen Eighty-Four, por sua vez, foi retraduzido ao menos 10 vezes –
com o título numérico 1984, pelo qual o livro é conhecido no Brasil
– de 2021 até o momento.48 Alguns tradutores ficaram encarregados
pela tradução dos dois livros, como Renan Bernardo (Excelsior, 2021)
e Alexandre Barbosa de Souza (Via Leitura, 2021).
Algumas retraduções de Animal Farm adotaram um título diferente
daquele pelo qual a novela alegórica era mais conhecida no Brasil. A
tradução de Leonardo Castilhone (Martin Claret, 2021) foi publica-
da com o título A fazenda dos bichos. Já as traduções de Sandra Pina
(Melhoramentos, 2021), Fábio Bonillo (Autêntica, 2021), Gustavo
Guimarães (Dying Tree Books, 2021), Denise Bottmann (L&PM,
2021) e Paulo Henriques Britto (Penguin Companhia, 2021) foram
publicadas com o título mais literal A fazenda dos animais. A altera-
ção foi divulgada com orgulho pelas editoras e comentada na imprensa
como uma superação de uma visão herdada da ditadura. Como co-
menta Dirce Waltrick do Amarante sobre a consolidada tradução de
Ferreira: “O ano era 1964, e nada como um livro contra o comunismo
para referendar o golpe militar em curso. O tradutor da versão brasileira
era um tenente, Heitor Aquino Ferreira, secretário do general Golbery
do Couto e Silva” (AMARANTE, 2020, n.p.).
Mudam-se os tempos, mudam-se também as traduções. Partindo
dessa premissa, a reflexão apresentada aqui procura relacionar o fenô-
meno da retradução ao da atualização usando como exemplos escolhas
tradutórias das palavras rebellion e revolution encontradas na tradução A
fazenda dos animais: um conto de fadas, de Paulo Henriques Britto, e em
1984, tradução de Lenita Maria Rimoli Pisetta realizada para a editora
tecristo, 2021); Claudio Blanc (Troia, 2021); Eric Novello (Farol, 2021); Fer-
nanda Consenza (Tordesilhas, 2021); André Czarnobai (Intrínseca, 2021); Jeo-
safá Fernandez Gonçalves (Serra Azul, 2021); Laura Folgueira (Literate Books,
2022); Maria Inês Moll (Autografia, 2022); Rogério W. Galindo (Antofágica,
2022); e Gisele Eberspächer (LVM, 2022).
48
Entre as novas traduções, estão as de Heloisa Jahn e Alexandre Hubner (Com-
panhia das Letras, 2019); Alexandre Boide (Darkside, 2022); Luís Gonzaga
Fragoso (Vozes, 2022); Aline Storto Pereira (Aleph, 2021); Bruno Gambarotto
(Biblioteca Azul/Globo, 2021); e Antonio Xerxenesky (Antofágica, 2022).
290
Martin Claret em 2021. Foram escolhidas essas traduções por seu diá-
logo com a contemporaneidade e pela abundância de paratextos. Como
pontos de referência de traduções passadas, são adotadas a tradução A
revolução dos bichos de Ferreira na edição da Companhia das Letras de
2007 e a clássica tradução 1984 da Companhia Editora Nacional, rea-
lizada por Wilson Velloso em 1954, em edição de 1991.
291
material, já influenciados por traduções anteriores, pela fortuna crítica da
obra e pela própria experiência do mundo ocidental ao longo dos mais de
70 anos desde o lançamento de seus livros. Um exemplo palpável desse
acúmulo de influências é a edição da Companhia das Letras da nova tra-
dução de Animal Farm, que possui um ensaio visual, o prefácio original
do autor, um posfácio assinado por Marcelo Pen, uma exibição de capas
publicadas ao longo de 75 anos e sete ensaios críticos de estudiosos de
renome, como Northrop Frye, Raymond Williams e Daphne Patai. A ge-
nerosidade de paratextos (cf. GENETTE, 2009) demonstra o peso de se
retraduzir um livro que já foi lido, relido, reeditado, pensado e repensado.
Há ainda, evidentemente, o aspecto comercial da retradução. É ní-
tida a busca de editoras brasileiras para publicar Orwell assim que sua
obra entrou em domínio público – ou seja, assim que deixou de ser
necessário pagar direitos autorais pela publicação.
Orwell relido
Uma controvérsia central relativa à obra ficcional de George Orwell
(1903-1950), escritor inglês nascido na Índia, diz respeito a quais se-
riam os governos totalitários reais que ele retrata em suas alegorias como
tão cruéis e tirânicos. O autor parece ser disputado em um cabo de
guerra ideológico: “Polemistas intelectuais da esquerda e da direita in-
vocavam com frequência o nome de Orwell, às vezes tratando-o quase
como um objeto de necromancia política”49 (RODDEN, 1989, p. 1).
Muito já se estudou sobre o real posicionamento do escritor, po-
rém, e hoje se sabe que seu desapontamento com os comunistas deriva
de sua experiência na guerra, quando teve a impressão de que a União
Soviética não apoiaria uma revolução proletária na Espanha, portan-
to traindo um princípio básico da esquerda marxista (cf. ORWELL,
2013). Em seu prefácio à edição ucraniana de 1947 de Animal Farm, o
próprio autor declarou:
49
Esta e outras traduções foram feitas por mim. Trecho original: “Intellectual po-
lemicists on both the Left and Right have freely conjured with Orwell’s name
sometimes treating him virtually as an object of political necromancy”.
292
Na verdade, nunca tive opiniões políticas claramente defini-
das. Tornei-me pró-socialista mais por desgosto com a maneira
como os setores mais pobres dos trabalhadores industriais eram
oprimidos e negligenciados do que devido a qualquer admira-
ção teórica por uma sociedade planificada. [...] Assim, em mea-
dos de 1937, quando os comunistas obtiveram o controle (ou o
controle parcial) do governo espanhol e começaram a perseguir
os trotskistas, eu e minha mulher nos vimos em meio às vítimas.
[...] E assim compreendi, mais claramente que nunca, a influ-
ência negativa do mito soviético sobre o movimento socialista
ocidental. (ORWELL, 2020, p. 15-17).
293
outros tantos tópicos prevalentes na vida contemporânea. Por isso, são
justificadas novas tomadas de decisão nas traduções de sua obra.
Para analisar brevemente a possível mudança nas estratégias de tra-
dução, os próximos tópicos focam-se nas palavras rebelião e revolução,
uma ideia nascida do posfácio de Pen sobre A fazenda dos animais, em
que ele escreve sobre o título pelo qual a mesma obra ficou mais conhe-
cida no Brasil, A revolução dos bichos:
294
Em inglês, segundo o dicionário Cambridge,51 rebellion seria uma
“ação violenta organizada por um grupo de pessoas que estão tentando
mudar o sistema político em seu país”52 ou uma “ação contra aqueles
em posição de autoridade, contra as regras ou contra a maneira norma-
lizada e aceita de comportamento”.53 No Merriam-Webster, a primeira
acepção é “oposição a uma autoridade ou dominância”,54 e a segunda,
“enfrentamento aberto, armado e geralmente malsucedido, ou resis-
tência a um governo estabelecido”.55 Em português, as definições são
similares. No dicionário Houaiss, consta em primeiro lugar “oposição a
autoridade ou poder dominante” e depois “insurreição contra autorida-
de ou ordem estabelecida, ger. com manifestação armada”. No Aulete,
constam as definições “insurreição contra a autoridade e a ordem esta-
belecidas na tentativa de substituir uma e outra; insurreição; revolta”
e “oposição ou resistência por qualquer meio moral” (portanto, não
necessariamente subentende uma ação física).
Já revolution e revolução possuem nos dicionários uma quantida-
de muito maior de acepções, pois a palavra é adotada nos campos da
astronomia, física, geometria e medicina para identificar tipos de movi-
mentos. Para a presente discussão, é preciso focar no sentido figurado.
Revolution aparece no dicionário Cambridge como “uma mudan-
ça na forma com que um país é governado, em geral para um sistema
político diferente e com frequência por meio do uso da violência ou
guerra”.56 O Merriam-Webster lista as seguintes explicações: “uma mu-
dança repentina, radical ou completa” e “uma mudança fundamental
51
Foram usadas as versões on-line de todos os dicionários citados.
52
Tradução de: “Violent action organized by a group of people who are trying to
change the political system in their country”.
53
Tradução de: “Action against those in authority, against the rules, or against
normal and accepted ways of behaving”.
54
Tradução de: “Opposition to one authority or dominance”.
55
Tradução de: “Open, armed, and usually unsuccessful defiance of or resistance to
an established government”.
56
Tradução de: “A change in the way a country is governed, usually to a different
political system and often using violence or war”.
295
na organização política”.57 Revolução, por sua vez, quer dizer “grande
transformação, mudança sensível de qualquer natureza, seja de modo
progressivo, contínuo, seja de maneira repentina” e “alteração brusca e
significativa de alguma coisa, esp. de natureza político-social”, confor-
me consta no Houaiss. Em uma de suas definições, é colocada como
sinônimo de rebelião: “movimento de revolta contra um poder esta-
belecido, feito por um número significativo de pessoas, em que ger. se
adotam métodos mais ou menos violentos; insurreição, rebelião, su-
blevação”. A Revolução Russa é citada como exemplo do seguinte uso:
“conjunto de acontecimentos históricos que têm lugar numa socieda-
de e que envolvem ger. o país inteiro, quando parte dos insurgentes
consegue tomar o poder, e mudanças profundas (políticas, econômicas,
sociais) se produzem na sociedade”. No dicionário Aulete, no âmbito
político, é listada a seguinte definição: “qualquer transformação social
através de meios radicais”.
O que se pode depreender dessas definições é que rebelião diz res-
peito a algo bem mais específico que revolução. A rebelião é em geral
entendida como uma ação ou um posicionamento contra uma determi-
nada ordem estabelecida. A revolução, por outro lado, tem um sentido
bem mais amplo – trata-se de uma mudança marcante, generalizada
– e pode ser assim definida a posteriori, ou seja, após uma grande mu-
dança, diz-se que houve uma revolução. Por isso é o termo usado para
Revolução Francesa, Revolução Russa, Revolução Cubana etc. Uma re-
belião pode ou não levar a uma revolução e, após uma revolução, pode
ser que ainda haja rebeliões daqueles que se colocam contra o novo
regime instaurado.
A seguir, são feitas breves análises dessas palavras nos textos de par-
tida e suas traduções.
296
os animais explorados por seres humanos decidem se rebelar e conquis-
tam sua independência; com o tempo, porém, os líderes da rebelião
mostram-se tão opressores para com seus iguais quanto eram os seres
humanos que derrubaram, e os princípios que levaram à rebelião clara-
mente se perdem. Como escreve Pen em seu posfácio à edição de Britto,
a novela possui chaves de leitura:
297
como se viu, essa é mesmo uma de suas acepções. No contexto dos
anos 1960 é que parece reforçar a propaganda anticomunista, especial-
mente no título. No corpo do texto, nota-se a diferença de uso pelos
tradutores:
298
Old Benjamin, the don- O velho Benjamim, o O velho Benjamim, o
key, seemed quite un- burro, nada mudara após burro, parecia não ter mu-
changed since the Rebel- a Revolução. Executava dado nem um pouco com
lion. He did his work in sua tarefa da mesma for- a Rebelião. Trabalhava
the same slow obstinate ma obstinadamente lenta do mesmo modo lento e
way as he had done it in como o fazia nos tempos obstinado como sempre
Jones’s time, never shrink- de Jones. Não se esquivava trabalhara no tempo de
ing and never volunteer- ao trabalho normal, mas Jones; nunca se esquivava
ing for extra work either. nunca era voluntário para do trabalho, mas também
About the Rebellion and extraordinários. Sobre a nunca se oferecia para fa-
its results he would ex- revolução e seus resulta- zer hora extra. Jamais ma-
press no opinion. dos não emitia opinião. nifestava opinião alguma
(ORWELL, 2008, p. 19) (ORWELL, 2007, p. 29) a respeito da Rebelião e
suas consequências.
(ORWELL, 2020, p. 46)
This is what came of re- Isso era o que advinha do Era nisso que dava uma
belling against the laws desrespeito às leis da na- rebelião contra as leis da
of Nature, Frederick e tureza, diriam Frederick e natureza, diziam Frederi-
Pilkington said. Pilkington. ck e Pilkington.
(ORWELL, 2008, p. 25) (ORWELL, 2007, p. 36) (ORWELL, 2020, p. 54)
The three hens who had As três galinhas que ha- As três galinhas que ti-
been the ringleaders in viam liderado a tentativa nham liderado a tentativa
the attempted rebellion de reação sobre os ovos de rebelião pelo caso dos
over the eggs now came aproximaram-se [...] ovos então se apresenta-
forward […] (ORWELL, 2007, p. 70) ram [...]
(ORWELL, 2008, p. 56) (ORWELL, 2020, p. 91)
Fonte: Elaborada pela autora (grifos nossos)
299
sistematismo textual (cf. BERMAN, 2012). Na fala inicial do Major,
de incentivo aos seus “camaradas” (por si só, uma referência explícita ao
modo de tratamento dos comunistas), Ferreira traduz Rebellion primei-
ramente como “rebelião” e, na segunda ocorrência, como “revolução”.
No segundo exemplo exposto na tabela, porém, ele usa Rebelião com
a inicial maiúscula, assim como está Rebellion no texto de Orwell. No
terceiro par de menções, quando se fala do burro Benjamim, Ferreira
retoma “revolução” na primeira ocorrência com a inicial maiúscula e, na
segunda, com minúscula, enquanto Orwell e Britto adotam maiúsculas
nos dois casos (Rebellion/Rebelião). Nas outras ocorrências citadas, as
variantes de rebellion (rebelling e attempted rebellion) viram, respecti-
vamente, “desrespeito” e “tentativa de reação” na tradução de Ferreira,
esvaziando a ironia de se rebelar contra uma suposta lei da natureza (hu-
manos oprimindo animais) e de as galinhas se rebelarem contra aqueles
que um dia as instigaram à rebelião. Na tradução de Britto, o uso de
rebelião em todos esses casos reforça o motif e recria a ironia.
Com o uso profícuo de “camaradas” entre os animais e tantas ou-
tras possíveis relações entre Animal Farm e a Revolução Russa,58 é difícil
imaginar que o uso de “rebelião” como tradução de rebellion tenha um
grande impacto na chave de leitura. Mas, na apreensão ideológica do
texto, talvez. Rebelião sugere a insurgência contra um poder opressor, e
por isso possa ser talvez mais facilmente entendida como algo positivo.
Revolução, por sua vez, é um termo mais amplo e flexível, usado para
abarcar um conjunto radical de mudanças. Nesse sentido, o uso regular
de “Rebelião” e “rebelião” por parte de Britto renova o texto de Orwell
em português brasileiro em dois sentidos: aproxima-o do texto de par-
tida, mantendo as várias repetições do mesmo vocábulo, e permite ao
leitor ponderar sobre as rebeliões citadas ao longo da novela como uma
58
É bem palpável a relação entre personagens e personalidades históricas. Como
é amplamente aceito entre estudiosos e leitores, o Major seria Marx; Napoleão,
Stalin; Bola de Neve, Trotsky, e assim por diante. No entanto, como já foi dito,
isso não significa que o texto possa ser lido apenas assim. As mesmas personagens
podem ser relacionadas a outras figuras ou simplesmente a ideias, a depender da
leitura.
300
rebeldia à ordem estabelecida – tanto à ordem dos humanos quanto à
ordem estabelecida posteriormente pelos próprios animais.
301
Contrapondo o texto de partida e as traduções em algumas de suas
ocorrências:
302
bichos de Ferreira –, seu uso de “rebelião” como tradução de rebellion
e suas variantes está quase sempre presente, com uma exceção no caso
de “Não se revoltarão enquanto não se tornarem conscientes, e não
se tornarão conscientes enquanto não se rebelarem”, em que ele adota
“revoltar-se” como tradução de to rebel e quebra o paralelismo da frase.
Na tradução de Pisetta, rebelião e suas variantes são mantidas em todos
os casos, bem como se nota um claro esforço de manter a pontuação (e
cadência do texto), confirmando a mesma tendência já vista na tradu-
ção de Britto, de a retradução aproximar-se do texto de partida, uma
hipótese levantada por Berman (cf. BERMAN, 1990).
Em seu posfácio, Pisetta (2021, p. 454) observa que na distopia
orwelliana as obras de autores britânicos clássicos estão em uma es-
pécie de processo de tradução para se adequarem ao espírito do parti-
do dominante. Nesse sentido, o processo de retradução de obras como
Animal Farm e Nineteen Eighty-Four não é tão diferente, pois procuram
se adequar ao espírito de seu tempo – a diferença é que, contrariamente
ao projeto de empobrecimento literário do Grande Irmão, elas tendem
a enriquecer e ampliar a experiência literária.
Considerações finais
Neste breve estudo, examinou-se como a retradução promove uma
atualização ideológica ao mesmo tempo em que procura se aproximar
do texto de partida. Trata-se de um movimento paradoxal de afasta-
mento do contexto de partida em direção ao contexto de chegada ao
mesmo tempo em que se realiza um texto mais próximo ao texto de
partida.
As palavras rebelião e revolução podem ser ou não sobrepostas em
seu significado; na obra de Orwell, o emprego é semelhante ao que se
vê no dicionário atual: rebellion relaciona-se a uma insurgência contra
o poder vigente, enquanto revolution diz respeito a uma transformação
político-social generalizada. A escolha tradutória nas ocorrências dessas
palavras foi usada como exemplo. No caso de A fazenda dos animais
de Britto, esse impacto é evidente na escolha da editora de publicar o
303
posfácio de Marcelo Pen, que abertamente critica o uso de “revolução”
na tradução de Ferreira. Com relação ao 1984 de Pisetta, rebellion e suas
variantes foram sistematicamente traduzidas como “rebelião” e suas va-
riantes em português, mantendo uma potencial apreensão positiva da
rebelião que nunca acontece.
Apesar de ser ingênuo negligenciar seu aspecto comercial, é pos-
sível também entender a retradução como uma prova da riqueza do
texto literário. Por ser multifacetada, a literatura se permite ser lida
por variados ângulos, bem como ser renovada ao longo do tempo, em
um processo de ganhos, não de perdas. As muitas retraduções não se
substituem entre si, mas somam-se e contrapõem-se umas às outras,
conduzindo à multiplicação do texto de partida em variadas facetas e
gerando uma tensão bem-vinda entre possíveis interpretações.
Referências
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gato, afirma tradutora. In Folha de S. Paulo, 19 de dezembro de 2020. Disponível em:
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Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. E-book Kindle.
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Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. E-book Kindle.
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STRUG, Cordell. ‘Metaphysics Is Not Your Strong Point’: Orwell and Those Who
Speak for Civilization. Social Theory and Practice, v. 10, n. 3, 1984, pp. 333-347.
305
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
ABSTRACT: This article results from a set of theoretical texts reflected on the
themes of neoliberalism, modernity, racial chronology, memory construction,
among others, which will be inserted here in order to relate them to the theme
of racial-ethnic relations in society and development of their identities. This
contribution aims to analyze the construction of ethnic-racial identity in time
and in memory through some important theories for the understanding of
social development. It is a research with an exploratory qualitative approach.
60
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, Programa de Pós-Gra-
duação Interdisciplinar em Linguística Aplicada, e-mail: danianeoliveira2020@
gmail.com
306
It is worth mentioning that this article does not reveal essential truths and
generalizations about the research phenomenon in question, but the use of
theoretical texts for the sum of forces movement to problematize existing
relationships nuanced by discourses and facts that naturalize racism in Brazil
and in the world and support deceptive racial democracy.
KEYWORDS: Identity, racism, time, memo
1. Introdução
A construção da identidade étnico-racial no tempo e na memória
é um tema de suma importância para compreendermos a formação das
estruturas sociais, assim como para fazermos questionamentos de como
os conceitos estabelecidos e justificados acontecem em todas as áreas da
convivência humana. Fazer análise da performance das relações étnicas
no Brasil, na contemporaneidade, ou em outro momento da história, fa-
z-nos ver além das aparências e perceber que muitas vezes por trás de uma
convivência aparentemente harmoniosa pode ocorrer relações racistas.
Buscamos corresponder a perspectiva interdisciplinar de uma Teoria
Racial Crítica que foi descrita por Ferreira (2015) como um estudo que
se estende para além das fronteiras disciplinares a fim de analisar raça e
racismo no contexto de outros domínios, como a sociologia, história,
psicologia entre outros. Permitindo, assim, uma abrangente e multi-
facetada análise de como a raça, o racismo e a (des)igualdade racial se
manifestam, este estudo traz reflexões de diferentes autores sobre como
o tempo e a memória podem gerar posicionamentos raciais.
Desse modo, concebendo a linguística como ciência aberta à his-
tória, enfatizando a relevância crítica do tempo e do espaço para a
compreensão da vida humana e dos modos de teorizar da Linguística
Aplicada, contemplando a vida social, cultural, política e histórica, este
trabalho dialoga com teorias que podem levar a uma profunda compre-
ensão de formas de investigação da sociedade.
A contemporaneidade vem trazendo à tona temáticas para a discus-
são e reflexão dos lugares impostos às pessoas em suas especificidades.
307
Manifestações em prol das minorias sociais vêm sendo frequentes nos
diversos âmbitos sociais e reflexões importantes são colocadas em pauta
como as questões relacionadas a gênero, raça, sexualidade, educação
entre outros. Diversos grupos socioculturais, hoje, estão nos cenários
públicos em tentativas de diálogo e negociação. A configuração dessas
lutas muda de acordo com cada contexto, articulando-se com diversas
construções históricas e político-culturais de cada realidade.
Em relação aos movimentos antirracistas, especificamente, desde
suas primeiras décadas do século XX, havia uma forte marca pela luta
de movimentos sociais negros e indígenas em prol de seus direitos e,
também, contra o racismo, o preconceito, a discriminação étnico-racial,
a exclusão social e a posição subalterna a que negros foram relegados na
história brasileira e na memória nacional. No século XXI, muitas ideais
que colocam o negro em evidência são desenvolvidas, mas, apesar de
todas as lutas e dos movimentos, ainda é preciso pensar a construção da
identidade negra no tempo e na memória.
O amparo legal para revisão da atuação do negro e do índio na
história brasileira e memória nacional, com a finalidade de combater
o preconceito e a discriminação étnico-racial e de gerar a conscienti-
zação da sociedade sobre as contribuições das culturas e etnias para a
formação do povo brasileiro, aconteceu a partir de 1980, em especial
com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, que fez da educação e da história importantes instrumentos
de promoção da sujeicidade histórica e da cidadania ativa dos negros e
indígenas brasileiros (ALVES; CARVALHO; COELHO, 2018).
Apesar de todas as lutas e movimentos, ainda vivemos em uma so-
ciedade que não contempla os negros com os seus benefícios, pois existe
e sempre existiu a prática do apagamento da população negra, mesmo
que seja evidente a participação ativa dessa população na construção
histórica da sociedade. A realidade ainda é de exclusão da população
negra! O acesso aos benefícios produzidos por essa mesma população
sempre foi muito difícil (PEREIRA, 2013).
308
A distribuição da ilusão de uma realidade sem racismo continua
sendo real na sociedade. Esse tipo de racismo, além de não contribuir
em nada com a população negra, também deslegitima sua história e
memória de lutas. O racismo aversivo é uma manifestação racista que
pessoas bem-intencionadas que veem a si mesmas como educadas e pro-
gressistas estão mais inclinadas a exibir (DIAGELO,2020).
De acordo com Lima (2018), existe uma dicotomização racial no
Brasil herdada do colonialismo resultando em valores, sociabilidades,
políticas – ou falta delas – na sociedade brasileira. Esta dicotomização
é orientada pelo racismo, gerando relações sociais e institucionais, di-
vidindo a população entre brancos (descendentes de europeus e, logo,
da “raça superior”) e as outras “raças inferiores” (negros e indígenas).
Baseando-se nisso, é preciso, então, levar a discussão sobre as relações
raciais à sociedade e desenvolver uma contribuição para a diminuição
das diferenças sociais relacionadas à raça.
A partir dessas observações preliminares o presente trabalho pre-
tende, com caráter provisório e inicial, oferecer algumas aproximações
à problemática das relações étnico-raciais no tempo e na história, mos-
trando como a memória social pode ser um grande fator para a cons-
trução de uma sociedade mais justa e igualitária, uma vez que, a questão
para muitos pesquisadores das ciências sociais tem sido tanto a possi-
bilidade de inaugurar “um novo paradigma social e político” quanto
“epistemológico” (SANTOS, 2004).
309
passado e ao futuro como construção de uma subjetividade democrática
(MATOS, 2008).
Quando pensamos no mal-estar contemporâneo, é importante ava-
liarmos a posição que o neoliberalismo ocupa na vida social, uma vez que
ele pode ser pensado como forma de vida: conjunto de práticas que forjam
o sentido da existência. De acordo com Dardot e Laval (2016), o neolibe-
ralismo pode ser entendido como “racionalidade”. Logo, esta racionalidade
neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrên-
cia como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação.
Segundo Dardot e Laval (2016), a definição do neoliberalismo
pode ser descrita como um conjunto de discursos, práticas e dispositi-
vos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo
o princípio universal da concorrência. Os autores citam Foucault e sua
definição de racionalidade política como uma racionalidade “governa-
mental”. No entanto, a noção de governo não é restrita à instituição
‘governo’, mas à forma como é regida a conduta dos homens no interior
de um quadro e com instrumentos de Estado.
As reflexões sobre o neoliberalismo de Dardot e Christian (2016)
podem dialogar com as ideias de Bauman (1997) sobre o sonho de pu-
reza, pois ambas transmitem posições sobre o individualismo e sobre as
práticas orientadoras de modos de ser, dizer, pensar, perceber, valorar e
fazer. O referido autor (1997) traz o sonho da pureza e o coloca como
um ideal a ser conquistado, algo que precisa ser preservado e protegido
contra o considerado impuro. Ainda segundo Bauman (1997), há um
conceito social de que aquilo que não é representado como pureza deve
ser varrido da ordem estabelecida pelas condições da modernidade, ou
seja, deve ser retirado do contexto social.
310
Consoante Bauman (1997), com sua visão de direção política e so-
cial da significação da pureza, percebemos uma corrente que nos leva às
numerosas corporificações da “sujeira”, a qual é capaz de minar padrões
e fazer com que determinados seres humanos sejam concebidos como
um obstáculo para a apropriada organização do ambiente. Em outras
palavras, é outra pessoa ou, mais especialmente, certa categoria de outra
pessoa que se torna “sujeira” e é tratada como tal (BAUMAN, 1997).
O modelo de pureza de uma determinada ordem apresenta sua própria
sujeira que precisa ser varrida. Ou seja, aquilo que foge à ordem de de-
terminadas construções deve ser eliminado, retirado para não interferir
na limpeza.
De acordo com Nogueira (2006), no Brasil há uma expectativa
geral de que o negro e o índio desapareçam, como tipos raciais, pois
o processo de branqueamento constituirá, em uma noção geral, a me-
lhor solução possível para a heterogeneidade étnica do povo brasileiro.
Dessa forma, existe um movimento de purificação de raças pautado na
tentativa de criar uma nova ordem, um novo começo. Bauman (1997)
ainda argumenta que essa mudança no status da ordem coincidiu como
advento da era moderna.
311
Todas as sociedades produzem estranhos (BAUMAN, 1997). Para
tanto, são pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo moral ou esté-
tico do mundo e que geram a incerteza, logo, dando origem ao mal-estar
de se sentir perdido. De acordo com Bauman (1997), foi o Estado que
soube a importância de a ordem aparecer; aliás, sua constituição foi uma
guerra de atrito empreendida contra estranhos e diferentes. Em consequ-
ência, estratégias antropofágicas (assimilação) e antropoêmica (exclusão)
foram usadas para causar a destruição dos estranhos e diferentes.
Ainda para o citado autor (1997), o projeto moderno fazia a pro-
messa de liberar o indivíduo da identidade herdada, porém sem uma
firme posição contra a identidade. O referido projeto só transformou
a identidade em realização, tornando-a uma tarefa individual e da res-
ponsabilidade do indivíduo. A identidade do indivíduo foi lançada
como um projeto; o projeto social e a ordem individual, ambas vistas
como projeto, estavam inteiramente ligadas.
Compreender tais conceitos discutidos até aqui e relacioná-los a
questões raciais é importante para a construção do entendimento de
que as identidades são elementos políticos e históricos, constituídos a
partir de vivências mediadas pelas organizações sociais. Com Gaspar
(2020), aprendemos que o racismo estrutural pode vir de uma cultura
organizacional e atinge a comunicação da organização, envolvendo a
necessidade de entendimento ou negligência de demandas de sujeitos
que compõem ou se relacionam com a organização.
Nesta seção, foram pontuados os conceitos pertinentes à consti-
tuição do mal-estar contemporâneo sob uma ótica sócio-histórica.
Complementarmente, a próxima seção visa a traçar uma análise dos as-
pectos que envolvem raça e memória social, bem como seus propósitos
na construção da identidade étnico-racial.
312
de referência que estruturam nossa memória e que se inserem na me-
mória coletiva a que pertencemos, tais como patrimônio arquitetônico
e seu estilo, as paisagens, as datas e personagens históricos, as tradições
e costumes, certas regras de interação, o folclore e a música e até mesmo
as tradições culinárias. O autor (1989) também pontua que, na tradição
metodológica durkheimiana, diferentes pontos de referência − como
indicadores empíricos da memória coletiva de um determinado grupo,
estruturados por hierarquias e classificações, uma memória que na defi-
nição sobre o comum a um grupo e aquilo que o diferencia dos outros
− transmitem o pertencimento e as fronteiras socioculturais.
Ainda de acordo com Pollak (1989), Maurice Halbwachs cita, além
da seletividade de toda memória, o processo de “negociação” para con-
ciliar memória coletiva e memórias individuais, pois para uma memória
ser beneficiada com a memória dos outros, não basta que eles tragam
seus testemunhos, mas é necessário a concordância dessas memórias e a
existência de pontos de contato, de modo que a lembrança trazida por
outros seja reconstruída sobre uma base comum.
313
Por outro lado, essas memórias subterrâneas que prosseguem
seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imper-
ceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos
e exacerbados. A memória entra em disputa. Os objetos de pes-
quisa são escolhidos de preferência onde existe conflito e com-
petição entre memórias concorrentes (POLLAK, 1989, p. 4).
314
durante o período escravocrata, como a capoeira (FERREIRA,
2013, p. 14).
315
De acordo com o autor, o conceito de mapas de tempo é impor-
tante para a cronopolítica porque ajuda a identificar mapeamentos do
presente e do futuro projetado também. Ou seja, não apenas onde o
grupo social em questão tem sido em sua memória, mas para onde está
indo. Além disso, Mills (2020) relaciona questões sobre modernidade,
política e religião aos aspectos temporais.
O autor ainda (2020) explica que na clássica teoria racista, “raça”
significava subseções naturais da raça humana, demarcada por causali-
dade teológica ou cultural ou biológica (ou, às vezes, de combinações
entre elas), localizados em hierarquias de habilidade cognitiva, propen-
são característica, valor estético e inclinação espiritual. Isto é, a raça
superior foi considerada mais inteligente, mais virtuosa, mais bonita,
e mais desenvolvida espiritualmente do que a raça ou raças inferiores
(MILLS, 2020). Desse modo, o autor define teoria racista como:
316
é monopolística. Distinções intra-europeias são feitas e mapeiam um
ranking “racial” interno, assim o teórico (2020) lembra que o racismo
se tornou a ideologia política mais importante da modernidade com a
sociopolítica europeia, incluindo o liberalismo. Dessa forma, o racismo
não permanece isolado, mas molda todas as ideologias reconhecidas,
sendo um erro teórico representar políticas como o liberalismo, o
conservadorismo e o socialismo como “sem raça”.
Mills (2020) escreve também sobre como as pessoas são represen-
tadas quanto à raça, de modo que representações importantes colocam
pessoas consideradas “de cor” como inferiores.
5. Considerações finais
O presente trabalho nos remete a teóricos essenciais para enten-
dermos, de uma forma mais complexa, as relações étnico-raciais pre-
sentes nos diferentes contextos sociais. Consideramos que, conforme
entendemos os movimentos desenvolvidos na construção da memória
social, nas relações econômicas e políticas − as múltiplas temporalidades
e espacialidades entrelaçadas aqui pontuadas − estaremos mais aptos a
317
refletir sobre a complexidade e a relevância de nosso dizer-fazer quando
a pauta legitima o combate ao racismo.
Abrir-se às reflexões das humanidades e das Ciências Sociais, nas
quais a pesquisa em Linguística Aplicada está situada, nos ajuda a com-
preender que as teorias aqui discutidas mostraram que as mudanças
relacionadas à vida sociocultural, política e histórica devem ser consi-
deradas na prática de pesquisa e, além disso, que a questão racial pode
estar ligada a diversas teorias.
Referências
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Maria Carlota de Rezende. A importância da educação e da história na trajetória dos
movimentos negro e indígena brasileiros e a luta destes pela reavaliação do papel do
negro e do indígena na história do Brasil. II CINAB VII SIALA E IV CNAB: Direitos
humanos e políticas públicas. Gt africanidades e brasilidades em educação e relações
ético-raciais. 2018.
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2020
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Arquivos da Memória. Antropologia, Escala e Memória, n. 2 (Nova Série), Centro
de Estudos de Etnologia Portuguesa, 2007.
319
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
LETRAMENTO E MULTIMODALIDADE DO
LIVRO LITERÁRIO INFANTIL NA FORMAÇÃO
DO PROFESSOR MEDIADOR DE LEITURA
320
early childhood; this article seeks to break with a canonical and traditional
view of reading to a multimodal literacy perspective (KRESS, 2010; KRESS;
VAN LEEUWEN, 1996, 2016 and 2021). Therefore, the objective of this
postdoctoral research (Poslin/UFMG) is to discuss what knowledge of Social
Semiotics and Multimodality can contribute to the formation of the pedagogue
when working in reading mediation situations. For this, a bibliographic review
has been carried out and, later, a manual will be prepared, in e-book format
and in a more accessible language, aimed at this target audience. It is hoped
that this material will serve as support during the preparation stage of these
reading situations, so that the interventions previously planned by the teacher
favor the literary and multimodal literacy of babies and children.
KEYWORDS: Children’s book; reading mediation; literacy; multimodality.
Introdução
A criação artística e literária é uma necessidade do ser humano.
Inventar e contar histórias é uma prática milenar que remonta a um
período da história em que as condições de vida eram muito precárias
e as pessoas resistiam a essa realidade bruta. Assim, por meio das nar-
rativas ficcionais, era possível elas imaginarem um mundo onde todos
os obstáculos poderiam ser resolvidos por meios sobrenaturais, dando
esperança ao grupo. Ademais, em linguagem simbólica e pela tradi-
ção oral, os contos transmitiam às gerações seguintes as experiências
e os saberes que a humanidade ia acumulando. Portanto, o direito à
Literatura significa dar ao indivíduo acesso a esse patrimônio cultu-
ral (CANDIDO 2004). As histórias elaboradas em diferentes épocas
e lugares são herança deixada por aqueles que nos antepassaram e que
compartilham conosco seus conhecimentos sobre o mundo, sobre si
mesmos e sobre o outro; suas vivências e seus sentimentos (medo, ale-
grias, afetos) (MACHADO, 2002).
Logo, o contato com a Literatura deve ser incentivado e iniciado
ainda cedo, preferencialmente já no período de gestação, com o adulto
cantando cantigas, canções de ninar, parlendas, etc.; contando e lendo
321
histórias para o bebê61. É pela linguagem que os adultos lhe apresentam
o mundo. Quando seus responsáveis conversam com ele, apontam e
nomeiam objetos e seres, fazendo-o conhecer o mundo ao qual perten-
ce. Além dessa função de designação, a linguagem também cumpre a
função de representação. Então, quando livros são oferecidos aos bebês
e às crianças (bem) pequenas, isto é, quando os adultos leem em voz
alta, apresentando-lhes outra modalidade da linguagem, a escrita ou
“linguagem narrativa” (AMICHE ET AL, 2009, p. 18-19); esses pe-
quenos se deparam com uma representação escrita dos objetos e dos se-
res do mundo, ou seja, as letras que grafam determinada palavra não é o
referente em si, mas está no lugar dele. Contudo, na maioria das vezes,
também a representação nesses livros se manifesta de maneira ilustrada,
por meio de um outro modo de comunicação e representação.
Nesse sentido, no mercado editorial, encontram-se muitos livros
infantis, inclusive, pensados exclusivamente para uma determinada fai-
xa etária, como, por exemplo, para os bebês. São os livros de pano, de
plástico, cartonado e com as bordas arredondadas, ou seja, livros fabri-
cados com material resistente e que facilitam o manuseio da criança.
Tudo isso com a proposta de inseri-la nessa prática social da leitura e de
possibilitar sua formação.
De fato, é inegável que a escuta de textos literários possa aproximar
os bebês e crianças (bem) pequenas do universo literário e do prazer que
pode envolver o ato de ler, fazendo que essa prática se torne um hábito;
bem como estimular a aquisição da linguagem, ampliando o vocabulá-
rio e os significados das palavras e das frases; como também enriquecer
sua imaginação, estimular seu raciocínio, concentração e memorização,
e aprender algum conteúdo. Aliás, a Literatura Infantil se posiciona
entre dois campos: o artístico e o pedagógico (COELHO, 1991).
A história da Literatura Infantil mostra que os primeiros textos li-
terários destinados à criança foram publicados no final do século XVII,
61
Há vários autores que, sob o olhar da Psicologia, Pedagogia e Linguística, discu-
tem a importância da leitura na Primeira Infância, como, por exemplo, Evélio
Cabrejo-Parra, Yolanda Reyes, René Diatkine, Eva Martinez, entre outros.
322
quando Charles Perrault, na França, e no século XIX, quando Jacob e
Wilhelm Grimm (os irmãos Grimm), na Alemanha, e Hans Christian
Andersen, na Dinamarca, começaram a compilar e reunir, em coleções,
narrativas da tradição oral (CANTON, 1999). Esses autores ficaram
conhecidos como os responsáveis por tornar esses contos pertencentes
à narrativa primordial em textos literários que, logo, foram destinados
às crianças e, até hoje, continuam fazendo parte do que vem a ser uma
Literatura Infantil (COELHO, 1991).
Essas coleções continham contos populares que visavam apresentar
às crianças e também às mulheres certas moralidades da época, ensi-
nando-lhes regras de etiqueta e de comportamento (CANTON, 1999).
Assim, surgia uma preocupação com a formação desse público infantil
que, até então, não era visto como diferente do adulto (ZILBERMAN,
2003)62. Ainda hoje, a Literatura Infantil permanece muito associada
a essa finalidade pedagógica, em que as histórias são pretextos para a
aprendizagem de conteúdos escolares e o aprimoramento e domínio da
língua.
323
do Instituto Federal de Minas Gerais - campus Ouro Branco. Durante
as discussões em sala de aula, ouvi diversas vezes as estudantes relatarem
com certo entusiasmo suas experiências com a leitura de livros infantis
de Literatura durante os estágios e residência pedagógica. Contavam
seu encantamento ao observarem os alunos conseguirem reunir as letras
e ler as palavras no texto.
Desse modo, a fala dessas estudantes me inquietava, pois me parece
haver uma redução do livro infantil literário a um mero instrumento
para auxiliar educadore(a)s na alfabetização, sem que se leve em con-
ta outros aspectos e papéis relevantes desse objeto cultural, como, por
exemplo, o enriquecimento da experiência estética das crianças, a partir
de livros que tenham uma linguagem trabalhada artisticamente e re-
cursos como ilustração, material e formato (abas, dobras, texturas) que
convidam a explorações, brincadeiras e descobertas.
De fato, o processo de alfabetização está estreitamente relacionado
ao processo de formação de leitores e escritores. A Literatura, geral-
mente, é denominada como a arte da palavra, então, ler ou ouvir um
texto literário é uma entre outras possibilidades de o bebê e a criança
(bem) pequena entrarem em contato com uma modalidade muito es-
pecífica da língua que é a da palavra escrita, conforme já mencionado.
Consequentemente, nesse contato, ela pode descobrir aspectos muito
importantes dessa modalidade, entre eles: que a organização das pala-
vras no texto escrito é permanente, que elas podem ser pronunciadas de
muitos modos, mas possui uma única grafia, ou seja, que fala e escrita
são sistemas diferentes e autônomos, entre outras. Assim, o texto (ver-
bal) literário pode potencializar essas descobertas, como, por exemplo,
quando um poema brinca com a sonoridade, grafia e sentido das pala-
vras ao usar recursos como os parônimos, as aliterações, as assonâncias,
etc. Contudo, a criança ser alfabetizada (saber decifrar o código linguís-
tico) não garante que ela se tornará um leitor crítico. Daí a importância,
disciplinas sofreram algumas alterações, entre elas a mudança de nomenclatura
para “Literatura Infantil: Educação Infantil” e “Literatura Infantil: Anos Iniciais
do Ensino Fundamental”, respectivamente. Disponível em: https://www.ifmg.
edu.br/ourobranco/nossos-cursos/PPCPedagogia2021.pdf
324
de se ampliar essa discussão do papel do livro literário e da formação
leitora a partir dos estudos dos letramentos e mais especificamente do
letramento literário (COSSON, 2004; SOUZA, COSSON, 2011), já
que ler um poema, um conto, uma narrativa em quadrinhos, entre ou-
tros gêneros dessa esfera artística não é o mesmo que ler uma notícia,
uma receita, um bilhete.
Outro desdobramento disso são os critérios estabelecidos para esco-
lha do livro que não se deve pautar apenas pela idade cronológica e bio-
lógica da criança. Autores como Coelho (1984), a partir da Psicologia
Experimental, levam em consideração os estágios ou fases de desen-
volvimento biopsíquico-afetivo-intelectual, como também o grau ou
nível de conhecimento/domínio do mecanismo da leitura, propondo,
assim, outras categorias como “tipos de leitor”, a saber: pré-leitor, leitor
iniciante, leitor em processo, leitor fluente e leitor crítico.
No entanto, há outros autores que defendem uma flexibilização
desses critérios e até dessas categorias de tipos de leitor, uma vez que
estas atribuem um peso ao código escrito, desconsiderando o fato de
que a criança mesmo não sabendo ler e decifrar todas e cada uma das
palavras do texto pode apreciar as histórias por meio da escuta da leitura
feita pelo adulto (DEBUS, 2005). Além disso, é possível que um texto
literário que, a princípio, não foi pensado para a criança, possa agradá-
-la e ser lido para e com esse público.
Contudo, há ainda nessa flexibilização uma inquietação com rela-
ção à escrita. Por exemplo, Debus (2005, n.p) declara que: “Não ouço
desprezar a linguagem iconográfica, mas ela não pode adquirir foro
de critério de seleção. Muitos títulos que o professor poderia mediar
são descartados por sua construção, com textos longos e com poucas
ilustrações”.
A fala de Debus (2005) é proferida no sentido de construir uma
crítica às categorias de leitor. Coelho (1984, p. 28) sugere alguns prin-
cípios orientadores para escolha de livros adequados a cada categoria,
considerando as inter-relações já mencionadas, dentro do que, segun-
do a autora, seria “uma evolução considerada normal” da criança e do
325
adolescente. Assim, ela recomenda que os livros literários para os pré-
-leitores e leitores iniciantes - que é o caso do perfil do público analisado
por Debus (2005), crianças entre 0 a 6 anos - tenham o predomínio
(às vezes, absoluto) da ilustração sobre a escrita. Esta, quando presen-
te, deve apresentar “palavras de sílabas simples (vogal/consoante/vogal),
organizadas em frases curtas nominais ou absolutas (períodos em coor-
denadas...), enunciados em ordem direta e jogando com elementos re-
petitivos” (COELHO, 1984, p. 31). Já aquela, segundo a autora (1984,
p. 29-30), “devem sugerir uma situação (um acontecimento, um fato,
etc) que seja significativa para a criança ou que lhe seja de alguma forma
atraente”. Sobre essa função de “encantamento” da imagem, ela sugere
“desenho ou pinturas, coloridas ou em preto-e-branco, em traços ou
linhas nítidas, ou em massas de cor que sejam simples e de fácil comu-
nicação visual” e também a técnica da colagem.
Geralmente, algumas obras destinadas a esse público pré-leitor (dos
15/17 meses aos 3 anos) apresentam imagens que podem ser descritas,
dentro das categorias do significado representacional de Kress e van
Leeuwen (2006), como conceituais. Isso significa que não há ali a re-
presentação de uma cena, em que os participantes representados estão
realizando processos, que indiquem que algo está acontecendo ou que
eles estão fazendo algo, de forma que os elementos se interajem em uma
estrutura narrativa, mas sim são representados em termos do que eles
são. No entanto, esse tipo de imagem conceitual pode não estar contri-
buindo para a literariedade (em alguns casos, esta é praticamente inexis-
tente). Nota-se claramente uma intenção desse tipo de livro de ensinar
vocabulário às crianças, apresentando-lhes objetos ou seres desenhados
juntamente com o seu nome (processo de designação ou nomeação)64.
Além disso, Kress e van Leeuwen (2006) já pontuavam, em sua
obra Reading Imagens, este problema da escola. Segundo os autores, há
uma tendência de, nos anos iniciais, os alunos serem estimulados a pro-
duzir imagens, e os livros didáticos serem repletos delas, enquanto que,
64
É possível, na mediação desse tipo de livro, o adulto criar uma narrativa oral a
partir dessas imagens conceituais apresentadas no livro infantil.
326
nas séries mais avançadas, elas se tornam muito mais técnicas e especia-
lizadas (mapas, diagramas), e a escrita passa a ganhar maior proporção
e importância, revelando a valorização apenas de um tipo de comuni-
cação visual e a prevalência de um só tipo de letramento: o tradicional.
Esse apontamento se enquadra perfeitamente no que diz respeito às
orientações dos critérios da escolha dos livros literários destinados ao
público infantil e juvenil, ou seja, à medida que o aluno vai crescendo e
avançando nas séries/anos escolares, é esperado que a escrita nos livros
ganhe predominância sobre a imagem e que outros gêneros sejam ex-
plorados, por exemplo, a novela, o romance, e não apenas o conto.
No entanto, as contribuições tanto dos estudos dos letramentos
quanto da abordagem da Multimodalidade têm possibilitado repensar
nossas concepções sobre a leitura, considerando a multiplicidade de
formas de fazer sentido. Afinal, diversos modos e recursos são sempre
usados juntos na constituição dos textos, assim por qual motivo seria
diferente em relação ao texto literário?
Portanto, não significa que um livro só com imagens, a exemplo do
livro ilustrado, do livro álbum, será mais fácil para a criança pequena,
isto é, para aquela que ainda não é alfabetizada fazer a “leitura” dele
sozinha, sem a mediação do adulto. Conquanto também a leitura desse
livro pode ser difícil para o adulto e sua mediação com as crianças de-
safiadora. Além disso, nem todo livro ilustrado significa que ele tenha
como público alvo o infantil. O que só torna a questão ainda mais com-
plexa, pois exigirá, no âmbito da escola, que educadores tenham uma
capacidade de interpretar os significados que podem ser construídos a
partir da relação e combinação dos vários modos no projeto gráfico de
uma obra, avaliando se essa estaria adequada ou não para sua turma.
Por esse motivo, há aqui uma preocupação com a formação desse pro-
fissional, já que antes de chegar às mãos da criança, o livro passa pelo
crivo do professor.
Em 2021, tive a oportunidade de orientar o Trabalho de Conclusão
de Curso da estudante de Pedagogia Fernanda Aparecida Rafael que se
propôs a analisar as ilustrações da obra “Barbazul” (2017) de Anabella
327
López, interpretando as escolhas feitas pela autora/ilustradora, a fim de
identificar como ela cria novos significados para esse conto originalmente
escrito por Perrault, tendo em vista que, na atualidade, há um retorno
por parte das obras aos contos tradicionais que são recriados de acordo
com os questionamentos da sociedade em que vivemos65.
Na contemporaneidade, a noção de livro como textos (escritos)
pertencentes a diferentes gêneros impressos sobre as páginas é obsoleta,
sobretudo, se pensamos no livro infantil. No mercado editorial, encon-
tram-se inúmeros formatos de livros, tais como, o livro-álbum, o livro
pop-up, o livro-túnel, o carrossel, o livro pull-the-tab, livro-brinquedo,
etc. que nos chama a atenção para a sua materialidade. Assim, neste
contexto, o livro passa a ser compreendido como um objeto que inclui,
em sua composição, múltiplos modos. Considerando ainda as novas
tecnologias e a internet, outro fenômeno relacionado a esse objeto são
os chamados livros digitais (e-book) os quais “acionam modos diferen-
ciados de ler e sobrelevam a necessidade de maior interatividade por
parte do leitor” (REMENCHE; MACHADO, 2017, p. 158).
Nesse sentido, tenho coordenado o projeto de Iniciação Científica
“Análise multimodal do design de livros digitais e aplicativos de
Literatura Infantil”, contemplado nos editais internos 026/2019,
015/2021 e 013/2022 do Programa Institucional de bolsas (PIBIC e
PIBIC Jr.) do IFMG.
No primeiro ano de vigência do projeto em 2020, buscamos66 dis-
cutir o estado da arte, fazendo uma revisão literária e discussão de tra-
balhos teóricos que tratam da temática, ou seja, que fazem um estudo
65
A monografia (Licenciatura em Pedagogia) defendida no dia 27 de maio de 2021
pode ser acessada no Repositório Acadêmico do IFMG – campus Ouro Bran-
co. Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1a0sgqNgADfsDE_
U5xBgTiS1wBkT_fBG8, e também no artigo publicado no periódico Kiri-Kerê
– Pesquisa em Ensino - v. 1 n. 8 (2022): Dossiê: Ensino, Leitura, Letramentos
e Multimodalidade. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/kirikere/article/
view/37559.
66
A bolsista do projeto era a estudante do curso de Licenciatura em Pedagogia
Mariana Jeronimo Borges da Luz.
328
desse objeto cultural que são os livros digitais infantis. Resultado des-
sa atividade foi a participação com apresentação de trabalho no XIV
Congresso Internacional de Linguagem e Tecnologia Online, que acon-
teceu entre os dias 04 a 06 de novembro de 2020, e cujo artigo com-
pleto pode ser acessado nos anais do evento67. Além disso, fizemos um
levantamento de livros digitais infantis produzidos no contexto brasilei-
ro e selecionamos os livros da “estante digital” do programa “Leia para
uma criança” como corpus de análise, por se tratar de uma coleção dis-
ponibilizada gratuitamente. Assim, uma análise preliminar do primeiro
livro da coleção foi apresentada no Planeta IFMG – IX Seminário de
Iniciação Científica (SIC) e o resumo expandido publicado nos anais68.
Recentemente, neste segundo ano do projeto, estamos69 dando con-
tinuidade às suas ações de análise do design gráfico desses livros apli-
cativos da coleção Kidsbook Itaú criança, os quais trazem uma história
com animações e sons, para, assim, podemos questionar a literariedade
desses recursos70.
Diante desse novo cenário, torna-se urgente e necessário debater
as questões que aqui foram sendo pontuadas. Assim, o objetivo da
67
Encontro Virtual de Documentação em Software Livre e Congresso Interna-
cional de Linguagem e Tecnologia Online v. 9, n. 1 (2020): XIV Anais do Evi-
dosol/CILTec (Edição 2020), pelo seguinte link: http://www.periodicos.letras.
ufmg.br/index.php/anais_linguagem_tecnologia/article/view/17772 Acesso em:
16/02/2022.
68
LUZ, Mariana Jeronimo Borges da; MAIA, Denise Giarola. ANÁLISE MULTI-
MODAL DO DESIGN DO LIVRO DIGITAL “O MENINO E O FOGUE-
TE”. In: Anais do Seminário de Iniciação Científica IFMG. Anais...Belo Ho-
rizonte(MG) IFMG, 2021. Disponível em: https://www.even3.com.br/anais/
planetaifmg/375017-analise-multimodal-do-design-do-livro-digital-o-menino-
-e-o-foguete/. Acesso em: 16/02/2022.
69
Atualmente, a bolsista do projeto é a estudante do curso de Licenciatura em
Pedagogia Leticia Stefane Cunha Castro.
70
A palestra “A multimodalidade das obras de Literatura Infantil digital do pro-
grama ‘Leia para uma criança’” foi ministrada pelos integrantes do projeto na
18ª Semana Nacional de Ciência e Tecnologia do Instituto Federal de Ciência e
Tecnologia de Minas Gerais, compondo uma das atividades da programação do
dia 19 de novembro. Disponível em: https://www.even3.com.br/snctifmg2021/
Acesso em: 16/02/2022.
329
pesquisa de pós-doutorado, que este artigo busca apresentar, é discu-
tir que conhecimentos teórico-metodológicos da Semiótica Social e da
abordagem da Multimodalidade podem contribuir para a formação do
pedagogo - professor de Educação Infantil e anos iniciais do Ensino
Fundamental - quando atuando em situações de mediação de leitura e
letramento do livro ilustrado.
71
No original: “multimodality describes approaches that understand communica-
tion and representation to be more than about language, and which attend to the
full range of communicational forms people use - image, gesture, posture, - and
the relationships between them”.
330
(VAN LEEUWEN, 2006; VAN LEEUWEN, DJONOV, 2015) – e
a complexa relação entre elas, mas também, e especialmente, o uso
e os efeitos dos discursos através dos usos dos recursos desses modos
em variados textos de diferentes domínios (publicitários, jornalísti-
cos, institucionais, etc.), em objetos tridimensionais como brinquedos
(CALDAS-COULTHARD, VAN LEEUWEN, 2002; MACHIN,
VAN LEEUWEN, 2009; VAN LEEUWEN, 2008) e até mesmo em
espaços arquitetônicos (KRESS, VAN LEEUWEN, 2001).
Nesse sentido, a Semiótica Social e a Abordagem da Multimodalidade
oferecem pressupostos teóricos e metodológicos que podem colaborar
na formação desse(a)s futuros educadores e orientá-los acerca dessas
questões pontuadas. Alguns conceitos da abordagem da multimoda-
lidade, tais como o de modo e de design, podem ser centrais para o
entendimento do uso e dos efeitos dos vários modos semióticos em
diferentes livros de Literatura Infantil.
Assim, os modos abrangem desde a escrita e a imagem em uma pá-
gina até a imagem em movimento e o som na tela, e a fala, gesto, olhar,
postura, corporificados na interação. Kress (2015) os define como meios
materiais e físicos compartilhados social e culturalmente como recursos
semióticos para fazer sentido. Cada modo possui seus limites e poten-
cialidades (affordances), isto é, apresenta ou não recursos para melhor re-
alizar certas finalidades comunicativas. Por exemplo, “a imagem mostra
o que leva muito tempo para ler, a escrita nomeia o que seria difícil de
mostrar. A cor é usada para destacar aspectos específicos da mensagem
global72” (KRESS, 2010, tradução nossa). Dessa maneira, um ou mais
modos podem ser usados juntos para construir a mensagem desejada,
pois o que falta em um modo pode estar disponível em outro modo.
O design faz referência aos modos e recursos semióticos, e às combi-
nações e arranjos desses, como também aos meios de realizar os discursos
72
No original: “image shows what takes too long to read, and writing names what
would be difficult to show. Colour is used to highlight specific aspects of the
overall message”.
331
no contexto de uma situação comunicativa. O termo está associado, en-
tão, ao momento de criação, digamos que ele é o projeto da mensagem,
pois se encontra entre o conteúdo e a sua expressão (KRESS, VAN
LEEUWEN, 2001).
De acordo com Kress (2003, p. 49, tradução nossa), no design da
mensagem, as pessoas se perguntam: “‘o que é necessário agora, nesta
situação, com esta configuração de propósitos, objetivos, público-alvo
e, com estes recursos, e dado o meu interesse nesta situação?’”73. Essas
escolhas motivadas estão diretamente relacionadas àquilo que os desig-
ners julgam mais adequado para a comunicação, considerando especial-
mente o público e sua relação com ele.
Desse modo, essa noção do design parece servir para orientar o pro-
cesso de mediação da leitura do livro ilustrado infantil, em que o profes-
sor deverá levar os alunos a perceberem os modos que foram usados, em
quais arranjos e de que forma esses modos e arranjos se relacionam para
construção de sentidos e de significados interacionais, representacionais
e composicionais.
Portanto, os estudos da Semiótica Social e da Multimodalidade
nos oferecem conceitos e categorias, bem como uma metodologia ca-
paz de orientar o professor em situações de mediação de leitura e
letramento do livro ilustrado. Há livros em que a originalidade da
criação literária (a narratividade) recaí no uso proeminente da escrita,
outros na ilustração ou em ambos os modos. E isso é surpreendente,
ou seja, saber que temos a nossa disposição uma infinidade de recur-
sos e possibilidades de representação e comunicação, de criação e de
experiência estética. Contudo, é preciso um “equilíbrio”, no sentido
do que os autores da Multimodalidade denominam de “política do
estilo” (ou estética), o que está relacionado ao design e a seu projeto
gráfico.
73
No original: “‘what is needed now, in this one situation, with this configuration
of purposes, aims, audience, and with these resources, and given my interests in
this situation?’”.
332
Considerações finais
O presente artigo buscou divulgar o projeto de pesquisa “Letramento
e multimodalidade do livro literário infantil na formação do professor
mediador de leitura”, que vem sendo desenvolvido no programa de Pós-
Graduação da FALE/IFMG, e também apresentar algumas discussões
suscitadas, até o momento, com a revisão bibliográfica. Espera-se que
o presente trabalho contribua não só com os Estudos do Texto e do
Discurso, linha de pesquisa a qual ela se vincula, mas também com
a Crítica e Teoria Literária Infantil, a qual ainda é um campo muito
pouco explorado, pelo menos, no Brasil, sob a perspectiva da Semiótica
Social e da Multimodalidade. Sendo assim, pretende-se estudar ainda a
obra “Reading Visual Narratives: Image Analysis of Children’s Picture
Books” (PAINTER, MARTIB, UNSWORTH, 2013) que propõe essa
abordagem e análise do significado visual e sua relação com o verbal nos
livros ilustrados para criança.
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335
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
336
Couto’s (2021), which built knowledge on pedagogical consultations provided
by the coordination of an elementary public school. These consultations were
addressed to social members responsible for students (parents, great-mothers,
uncles, etc.) to treat various issues, like misconduct in the classroom, learning
monitoring, complaints, among others. We use the investigation policy of
Conversation Analysis, with contributions from the studies on multimodality
in talk-in-interaction. Since that affective stances demonstrated in interaction
are engendered turn by turn in its sequences, we understand that it is possible
to describe the trajectories and effects that these actions produce in its ecology.
Therefore, the analysis highlights how participants of a cry episode manage
their actions based on public signals in the interactional sequence.
KEY-WORDS: Talk-in-interaction in school settings; Affective stances;
Affiliation; Cry.
1. Introdução
O ambiente escolar e seu cotidiano é caracterizado por diversos de-
safios, sobretudo na rotina da sala de aula, seja em questões pedagógicas
relacionadas a discussões sobre métodos, abordagens ou perspectivas de
ensino, seja por questões de políticas escolares que envolvem debates
sobre as condições ideais para o ensino e a aprendizagem, por exemplo.
No entanto, embora tais discussões também sejam de grande relevância
para a agenda da linguística aplicada, buscamos propor nesta pesquisa
uma discussão relacionada à interação que acontece nas minúcias da
rotina escolar, aqui colocando em realce os atendimentos pedagógicos
que buscam organizar e gerenciar tal rotina.
Acreditamos que esta investigação das minúcias do cotidiano de
uma escola poderá elucidar questões que por muitas vezes são vistas,
mas não notadas, pelos membros da sociedade. Sabemos que analisar
uma rotina exige um envolvimento por parte dos envolvidos e, por isso,
buscamos, através de uma perspectiva êmica, nos envolver com os par-
ticipantes durante a pesquisa de campo. Esse empreendimento teve o
intuito de contemplar as particularidades etnográficas dos interagentes
nos contextos pesquisados e de compreender como são empreendidas e
demonstradas as ações sociais por/entre eles.
337
Assim, a pesquisa de campo apresentada neste artigo foi realizada
por meio de um exercício de inspiração etnográfica (cf. PEROBELLI;
LEMOS, 2022). Esse exercício comparece também na pesquisa de mes-
trado de Couto (2021), desenvolvida durante os meses de março e de-
zembro de 2019 em uma escola de ensino fundamental que faz parte da
rede pública do estado do Espírito Santo.
Trazemos para a pesquisa um dado gerado durante um dos aten-
dimentos pedagógicos, que eram realizados, em sua maioria, na sala da
coordenação pedagógica. Os atendimentos eram divididos nos turnos
matutinos e vespertinos e, como não podíamos antecipar quem iria par-
ticipar dos atendimentos, optamos por filmar apenas quando estavam
presentes os responsáveis pelos estudantes. Cabe ressaltar que era expli-
cado, antecipadamente, sobre o que se tratava a pesquisa e sobre nossos
objetivos com aquela investigação.
Após todo o exercício etnográfico realizado e a geração dos dados,
seguimos para outra etapa do trabalho, durante a qual assistimos, re-
petidas vezes, às interações documentadas. Foi através desse processo
empiricamente orientado que o choro, que estava presente nas intera-
ções, nos chamou a atenção e nos motivou a empreender um exercício
analítico para o que acontecia no aqui e agora das interações dos atendi-
mentos pedagógicos.
A partir disso, buscamos investigar como os participantes indiciam
o gerenciamento de suas ações a partir do momento em que o choro é evi-
denciado, orientados pelo objetivo geral de descrever como esses índices
aparecem nas sequências de fala-em-interação em que o choro é tornado
relevante pelos participantes de atendimentos pedagógicos. Para tanto,
estabelecemos como objetivo específico o de descrever o gerenciamento
interacional do choro e o modo como os participantes lidam com essa
postura afetiva na interação.
Durante o percurso analítico da pesquisa, percebemos que diver-
sas questões relacionadas às emoções são colocadas pelos participantes
através de suas ações, como as demonstradas através do choro, princi-
palmente. Desse modo, estudar o choro e as posturas afetivas por ele
338
implicadas no curso de uma interação se tornou o cerne de nossa pes-
quisa. Isso será discutido mais aprofundadamente nas próximas seções.
339
se tem estudado abundantemente seu papel no nível lexical (BESNIER,
1990).
Feito o breve exposto, com que se caracterizou o estatuto decli-
nado das emoções, parte-se para a exposição de estatuto reivindicado.
Embora ‘emoção’ e ‘afeto’ sejam conceitos empregados na literatura da
AC de modo intercambiável, conforme Johanna Ruusuvuori (2013),
neste artigo se adota o termo postura afetiva. Cabe, então, especificar
sua abrangência. As posturas afetivas compreendem desde os índices
de afetividade, que são sinalizadores de um envolvimento interpessoal
distintivo, observados nas menores unidades da fala e nas mais efêmeras
ações corporificadas de interagentes, até as cadeias ou sequências inte-
racionais mais amplas de exibição emocional, que compõem episódios
de afeto (RUUSUVUORI, 2013). Essa categoria de análise abrange,
assim, não só ações singulares, como também as seriadas de implicação
afetuosa implementadas através de modalidades verbais e não verbais
com o gerenciamento de dispositivos lexicais, prosódicos e corporifica-
dos (RUUSUVUORI, 2013).
A autora observa, por entre as disciplinas, duas linhas de inquirição
sobre o tema: a de “emoção como experiência individual” e a de “emo-
ção como sinal social” (RUUSUVUORI, 2013, p. 332). A primeira
se caracteriza por tratar as emoções como o transbordamento de esta-
dos psicológicos internos. A segunda, por concebê-las como projetadas,
primordialmente, para os usos sociais. A abordagem da AC, portanto,
reivindica o segundo estatuto referido, que pode ser denominado de
interacional.
Entre as abordagens interacionais, entende-se que aquilo que as
pessoas sentem, como indivíduos, nem sempre corresponde ao que é
por elas exibido socialmente. Analistas da conversa, comenta a auto-
ra, preferem tratar de exibições emocionais. Dessa forma, a política de
investigação muda desde um enfoque essencialista, voltado a conhecer
a “essência” das emoções, para o enfoque em conhecer o modo como
elas emergem e são gerenciadas na interação (RUUSUVUORI, 2013).
Essas exibições, então, não são compreendidas como a expressão de
340
estados psíquicos individuais, de modo que é lançado um olhar sobre
sua dimensão mutuamente demonstrável, do ponto de vista dos inte-
ractantes. Em síntese, postura afetiva é a exibição social coconstruída no
evento particular de fala-em-interação.
Ademais, vem-se comprovando que a emergência de posturas afe-
tivas, como é o caso do choro, não deve ser vista como uma falha, ou
transbordamento involuntário, na autorregulação emocional dos indi-
víduos, pois essas ocorrências se apresentam altamente organizadas e
respectivas aos propósitos pragmáticos dos e das falantes.
Conforme Hepburn (2004), o choro não deve ser compreendi-
do como unitário ou homogêneo. Decompô-lo, isto é, compreender
os elementos que o tornam reconhecível pelos membros da socieda-
de em situações particulares de fala-em-interação, se mostra relevante.
Couto (2021) explica que existem posições sequenciais específicas que
essa postura afetiva ocupa nas trajetórias interacionais. Desse modo,
entende-se que a análise sequencial de ações constitutivas do episódio
de choro, como a ausência de fala, a voz embargada, o ato de fungar,
a inspiração audível e a tremulação das mãos (COUTO, 2021), torna
possível ampliar nossa compreensão acerca de como o choro é reconhe-
cido pelos interagentes.
341
Tabela 1 – Legenda das convenções de transcrição
Símbolos Referências
: Alongamento do som
, Entonação intermediária
. Entonação descendente
? Entonação ascendente
- Interrupção na produção vocal
= Indicação de elocuções contíguas
↓ Alteração de timbre para mais grave
[ ] Indicação de fala sobreposta
ºfalaº Elocução em volume mais baixo que os do entorno
fala Elocução em volume mais alto que os do entorno
Fala Ênfase em determinada elocução
>fala< Elocução em ritmo acelerado
* * Indicação do começo e do fim de uma ação corporificada
# Indicação do ponto onde se fez a captura da imagem
Fig Indicação da imagem em ordem cronológica
Nome Indicação do participante que executa a ação corporificada
(0,6) Indicação temporal de ausência de fala em segundos e décimos
de segundos
(.) Indicação temporal de ausência de fala menor que 2 décimos de
segundo
Xxxx Elocução cuja autoria não pôde ser determinada
ººajudaºº Sussurrando – cercado por sinais de duplo grau
.shih Exalação úmida
.skuh Exalação seca
~desculpa~ Voz vacilante – cercado por tils
↑↑Desculpa Tom alto – representado por duas ou mais setas para cima
Fonte: Jefferson (1985), Mondada (2018) e Hepburn (2004), adaptados pelos autores.
342
conta desse conflito, a menina foi agredida fisicamente pela mãe do
estudante na sua vinda para a escola. Desse modo, a responsável vai à
escola entregar o Boletim de Ocorrência e explicar o motivo pelo qual
sua filha não tem podido participar das aulas. O trecho escolhido para a
análise é o momento em que ela começa a chorar ao relatar a vontade de
sua filha de sair da escola e se mudar para outro bairro após o ocorrido.
Participam da conversa, duas pedagogas (PED e PED2), a responsável
pela estudante (RES) e a diretora da escola (DIR) . O trecho a seguir se
inicia com o relato de RES sobre a situação envolvendo a rematrícula
de sua filha na escola.
Excerto 1
343
Em sequência, a diretora emite seu pesar em relação à afirmativa
da responsável ao produzir uma avaliação (vide linha 7). A partir dessa
ação, a mãe retoma o turno para dar continuidade ao seu relato (vide
linhas 9,10,11). É importante ressaltar que nesse turno são observáveis
uma série de índices que irão projetar o choro: as constantes micropau-
sas durante a elocução e a voz trêmula/vacilante nos trechos (~estudar
aqui~, vide linha 10) e (~eu não quero (mãe)~, vide linha 11). Ao final
do turno, com o contato visual direto das três representantes da escola
ali presentes, se inicia o choro (cf. figs. 1 e 2).
344
Excerto 3: continuação do excerto anterior
345
a tentativa de alcance da intersubjetividade entre as interagentes, na
medida em que a pedagoga se coloca como participante da interação e
afirma que compreende a estudante. Essa intersubjetividade acontece
porque a representante da instituição busca acesso à experiência de sua
interlocutora, tornando-a relevante para a finalidade da interação.
Conforme exposto por Couto (2021, p. 84), “[...] ao se afiliar ao
sofrimento da menina evidenciando que a compreende, PED2 elabora
um turno em que demonstra sua posição sobre a situação descrita por
RES”. Desse modo, podemos afirmar que, diante da exibição de sofri-
mento da participante, as representantes da escola, imbuídas do papel
institucional, reagem dando suporte por meio da afiliação. De acor-
do com Ruusuvuori (2005, p. 204), em descrições de uma experiência
problemática geralmente é tornado relevante um comentário afiliativo
dos destinatários. A afiliação é realizada tão logo é percebido o choro
da interagente e, portanto, operando em caráter de preferência nessa
situação.
4. Considerações finais
A análise dos excertos apresentados nos leva à discussão sobre as
várias questões importantes para os participantes em uma interação
no ambiente escolar, aqui destacados os atendimentos pedagógicos.
Embora discussões sobre desempenho escolar estão e sempre estarão
em pauta em discussões pedagógicas, destacamos aqui, através de nossas
análises, como é importante também sobrelevar as questões afetivas e
emocionais nestes ambientes.
Neste trabalho, discutimos como se lidou com o choro em uma
determinada interação e percebemos que os participantes apresentam
indícios de um choro a ser projetado através da produção de turnos
entremeados por longas ausências de fala e com voz trêmula. Também
observamos que ações afiliativas dos outros participantes, demonstradas
através de olhares, por exemplo, valorizam a perspectiva de quem relata-
va seus problemas e contribui para cumprir o objetivo do entendimento
que é a resolução do que está em discussão na reunião.
346
Desse modo, percebemos que os atendimentos pedagógicos se de-
senham em um cenário interacional que permite não só as exibições de
posturas afetivas dos participantes, como também a troca de experiên-
cias, no sentido em que há a produção de ações afiliativas responsivas à
ocorrência do choro na interação.
Portanto, esta pesquisa nos faz refletir sobre importantes questões
do ambiente escolar, uma vez que enxergamos o gerenciamento de tais
posturas afetivas como um desafio presente na rotina da escola para
além da resolução de problemas pedagógicos ou de outra natureza.
Percebemos que, através deste olhar minucioso para interações em aten-
dimentos pedagógicos, o modo como os participantes produzem suas
ações e respondem à ação de outrem tem desdobramentos na rotina da
escola, sobretudo na gestão escolar.
Referências bibliográficas
BESNIER, N. Language and Affect. Annual Review of Anthropology. v. 19. p. 419-
451, 1990. Disponível em: https://bityli.com/nJqxD2. Acesso em: 15 ago. 2022.
347
RAJAGOPALAN, K. Emoção e política linguística: o caso brasileiro. Tradução de
Daniel do Nascimento e Silva. In: ______. Nova Pragmática: fases e feições de um
fazer. São Paulo: Parábola Editorial, 2010, p. 217-240.
348
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
349
teachers. We draw on the notion of identity and affect as discursive practices
(ZEMBYLAS, 2003; 2005; 2020; BARCELOS, 2015) that emerge from the
encounter between different bodies and ideological positionings (MORGAN;
ROCHA; MACIEL, 2021). We also rely on the concepts of translingual
sensibility and disposition (CANAGARAJAH, 2013; SELTZER, 2020)
to understand the impact of monolingual principles not only on identity
negotiation processes but also on the ways individuals produce meaning
in online teaching and learning contexts. In the light of this, we hope to
contribute to research aligned with the affective turn (PAVLENKO, 2013)
in language studies by approaching the practices of online English teachers as
involved by their emotions and by the notion of teaching as a complex web
of ideological practices.
KEYWORDS: Affect. Identity. Online Teaching.
75
Compreendemos ambos os termos como intercambiáveis, uma vez que falar de
afeto evoca experiências emocionais e sentimentais. Assim, emoções e sentimen-
tos envolvem práticas afetivas. Para mais sobre essa discussão, recomendamos a
leitura de Ahmed (2004); Zembylas (2020) e Morgan, Rocha e Maciel (2021).
76
Aqui, diferenciamos ensino remoto emergencial de ensino on-line/a distância.
350
apresentados e discutidos a fim de problematizar a relação entre prática
pedagógica, identidade e ideologia. Ademais, voltaremos a nossa aten-
ção para o papel da sensibilização translíngue no entendimento dessas
emoções como imbricadas nas identidades do(a)s professore(a)s e nego-
ciadas em complexas redes de relações de poder.
Com o intuito de melhor apresentar as nossas problematizações,
dividimos este texto da seguinte maneira: levantamos os principais
aportes teóricos que embasam o nosso olhar sobre afetividade/emoção e
os relacionamos à noção de translinguagem e sensibilização translíngue.
Ainda, apresentamos o cenário da pesquisa, enfocando sua natureza
narrativa, os instrumentos utilizados para a geração de dados, o sujeito
participante e partimos para a discussão e análise preliminar dos da-
dos. Por fim, fazemos nossa conclusão, refletindo sobre a necessidade de
mais pesquisas voltadas para a compreensão das emoções e afetividade
como construções discursivas ideologicamente orientadas e imbricadas
nas experiências que desenvolvemos no contato com o outro.
Feitas as considerações iniciais do nosso estudo, iniciamos a dis-
cussão do seu aporte teórico, debatendo os conceitos de afetividade/
emoção e sensibilização translíngue.
351
de “virada afetiva” nos estudos da linguagem (PAVLENKO, 2013), que
pesquisas aplicadas centradas nas emoções de professore(a)s de línguas
começou a ganhar destaque. Por conta desses diferentes e produtivos
vieses de investigação, Zembylas (2005), Barcelos e Aragão (2018) e
Barcelos et al. (2022) constataram que assim como são várias as emo-
ções que sentimos, o mesmo acontece com a sua definição, o que levou
ao desenvolvimento de diferentes perspectivas e abordagens de estudo.
Resumimos essas abordagens nas seguintes classificações77: a) psicológi-
ca: também definida como cognitiva e biológica. Nessa perspectiva, as
emoções são vistas como internas ao sujeito; b) sociocultural: fortemen-
te embasada nos trabalhos de Vygotsky, essa perspectiva compreende as
emoções como modeladoras de e moldadas por contextos socioculturais
mais amplos; c) crítica: envolve as perspectivas pós-estruturalistas, dia-
lógicas e discursivas, a partir das quais as emoções são vistas como parte
de uma rede complexa de práticas ideológicas.
Neste trabalho, adotamos a perspectiva crítica de afetividade/
emoção, uma vez que o nosso interesse, assim como postula Zembylas
(2003), é trazer à tona a relação entre afetos, identidades, discursos e
poder, como uma maneira de chamar a atenção de professore(a)s de
línguas para os contextos sociais, políticos e ideológicos nos quais suas
emoções estão envolvidas.
Face ao exposto, compreendemos que uma perspectiva pós-estru-
turalista nos alinha à ideia de afetividade/emoção como fenômenos
intersubjetivos, interativos e dinâmicos constituídos nas relações de
poder78. A partir dessa orientação, é possível considerar afetividade/
emoção como uma “força dinâmica” que conecta discurso, corpos e
ideologias. Assim sendo, ao falarmos desde uma lente crítica e dialógica,
77
Para um maior detalhamento dessas abordagens, sugerimos a leitura de Barcelos
et al. (2022), Zembylas (2005) e Oliveira (2021).
78
Zembylas (2003) assume uma perspectiva foucaultiana segundo a qual o poder
é negociado discursivamente. De acordo com tal orientação, onde há relação
de poder, há a possibilidade de resistência, o que indica que poder e resistência
oferecem caminhos para a agência dos sujeitos. Assim, entende-se que a agência
é produzida também pelas relações de poder construídas no discurso.
352
ressaltamos que essa força toma forma (corpo) através do encontro en-
tre sujeitos, já que “[...] [s]omos afetados pelos outros, pelo mundo, por
tudo a nossa volta, e ao experienciarmos tudo isso, nós respondemos,
afetivamente”. (MORGAN; ROCHA; MACIEL, 2021, p. 339)79
Assim, orientados por Zembylas (2003), percebemos que a adoção
de uma postura crítica/pós-estruturalista/dialógica se fundamenta no
entendimento de que: a) as afetividades não são privadas ou universais
e nem são impulsos que simplesmente acontecem com quem sofre; ao
invés disso, elas são constituídas através da linguagem e se emaranham
em questões mais amplas da vida social; b) as relações de poder estão
imbricadas na maneira como nos expressamos e, com isso, elas tanto
nos permitem como nos proíbem de sentirmos determinadas emoções;
c) os processos de negociação identitária estão atrelados às afetividades
e às relações de poder entre os sujeitos. Dessa maneira, as identidades
são tanto efeitos quanto possibilidades de ação (agência) para enfrenta-
mento das relações desiguais; d) as afetividades/emoções são entendidas
como práticas discursivas, isto é,
[...] não são apenas palavras que usamos para descrever ‘entida-
des emotivas’ [e nem] situações preexistentes com característi-
cas coerentes; pelo contrário, essas palavras são, em si mesmas,
‘práticas ou ações ideológicas’ que servem a diferentes propó-
sitos no processo de criação e negociação da realidade [...].
(ZEMBYLAS, 2005, p. 936)
79
É de nossa responsabilidade a tradução de textos originalmente escritos em lín-
gua estrangeira.
353
Repertórios, experiências e translinguagens
A translinguagem, como uma perspectiva teórica das práticas de lin-
guagem de sujeitos bi/multilíngues e como uma orientação pedagógica,
vem ganhando espaço considerável nos estudos sobre língua, identidade
e ensino no campo da Educação, Sociolinguística e LA. Partindo do
uso dinâmico que sujeitos fazem de seus recursos linguísticos, a pers-
pectiva teórico-prática da translinguagem (LI, 2018) desafia as visões de
bi/multilinguismo ainda embasadas em noções monolíngues que desle-
gitimam as práticas de linguagem de grupos minoritários. Desde uma
perspectiva pedagógica (GARCÍA; JOHNSON; SELTZER, 2017), a
translinguagem é compreendida como uma abordagem que acolhe as
línguas e experiências de aluno(a)s e professore(a)s como recursos para
se ensinar e aprender. Em suma, a translinguagem é uma postura episte-
mológica a partir da qual se critica como a herança colonial e moderna
ajudou a manter e a perpetuar hierarquias linguísticas, raciais, culturais
e sociais. É uma perspectiva centrada em sujeitos marcados por diferen-
tes discursos e experiências, muitas vezes ignoradas em pesquisas sobre
a linguagem e em abordagens de ensino de línguas.
De acordo com Otheguy, García e Reid (2015), a translinguagem é
o emprego de todo o repertório linguístico do falante para e na comu-
nicação. Ainda, segundo Li (2018), agir de forma translíngue se refere
à criação de espaços em que os sujeitos podem trazer diferentes dimen-
sões de suas histórias pessoais e de suas experiências para construir sen-
tido. Face ao exposto, é possível observar a atenção dada às trajetórias e
aos recursos que acompanham os sujeitos em suas práticas comunica-
tivas. Com esse movimento, a translinguagem propõe que ao invés de
debater quais línguas são usadas, deveriam ser destacadas as maneiras
através das quais as pessoas selecionam diferentes recursos semióticos
para se comunicar. Com isso, o foco não são as línguas como entidades
autônomas, mas o sujeito envolvido em/por uma rede de recursos que
modelam e são modelados por suas práticas de linguagem.
Uma teorização translíngue ressalta que o ponto de partida para
se estudar e criar inteligibilidade das práticas comunicativas de nossos
354
tempos deve ser o sujeito que experencia o mundo a partir de recursos
semióticos. Diante disso, ao focarmos os repertórios experienciais, vis-
lumbramos caminhos para se investigar como língua, experiência e afe-
tividade se envolvem, uma vez que não só as práticas comunicativas dos
sujeitos são impactadas por suas experiências passadas, mas a sua relação
afetiva com elas organiza as formas como agem discursivamente. Assim,
a translinguagem nos permite refletir sobre como essas experiências se
inscrevem nos corpos dos sujeitos e se tornam recursos com potencial
para orientar sua interação com os outros.
Uma maneira de se investigar o relacionamento entre translingua-
gem, identidade e afetividade, levando em conta a noção de repertório
experiencial anteriormente discutida, é debatendo o papel da sensibili-
zação translíngue na tomada de consciência dos diferentes discursos que
embasam a prática de professore(a)s de línguas. Sobre isso, Canagarajah
(2013) nos diz que sujeitos translíngues lançam mão de um conjunto
de valores, discursos e crenças para se orientarem em suas práticas co-
municativas, e acrescenta que o que os torna abertos à negociação de
sentido a partir desses diferentes recursos é justamente o que ele cha-
ma de disposição cooperativa translíngue. Canagarajah (2013) não só
discute que essa disposição se desenvolve em contextos específicos de
socialização, mas também reconhece a necessidade de se considerar as
experiências pessoais dos sujeitos, sua agência e identidades na análise
de práticas translíngues. Logo, Canagarajah (2013) advoga que a dispo-
sição translíngue seja analisada tanto em seu aspecto cognitivo quanto
afetivo.
Outrossim, para Lee e Canagarajah (2019, p. 354), as disposições
translíngues são compreendidas como “[...] socialmente adquiridas
através das práticas corporais e experienciais”. Já Lee e Jenks (2016, p.
319), discutindo o papel da disposição translíngue no ensino de língua
inglesa, a define como “[...] uma abertura ‘à língua e às diferenças lin-
guísticas’”. Seltzer (2020) também contribui com essa discussão, tra-
zendo o aspecto ideológico das disposições translíngues. Pautada no
conceito de sensibilização translíngue e em sua pertinência no contexto
355
de ensino e aprendizagem de línguas, a autora discute que uma abertura
à translinguagem pode trazer à tona diferentes identidades e ideologias
de professore(a)s e aluno(a)s com relação às línguas.
O que podemos observar, portanto, é que a sensibilização translín-
gue envolve considerar as práticas de linguagem como atravessadas por
diferentes redes ideológicas e relações de poder, que impactam as ma-
neiras como os sujeitos se orientam no mundo e negociam suas próprias
identidades e discursos. Assim, embora essa abertura à diversidade não
esteja imune às práticas monolíngues no ensino de línguas, o desen-
volvimento de uma sensibilização pautada nos princípios translíngues
pode se configurar como um caminho possível para não só se questio-
nar ideologias ainda centradas na noção de norma, correção e hierar-
quização linguística, mas encorajar professore(a)s a perceber como suas
experiências, crenças, afetos e práticas pedagógicas se interseccionam.
Logo, a translinguagem, põe em foco, conforme discutem Lucena
e Torres (2019, p. 636), o sujeito que interage e usa a linguagem “[...]
cruzando fronteiras, enfrentando lógicas monolíngues política e ideo-
logicamente impostas pelo senso comum [...]”. Dessa maneira, neste
trabalho, compreendemos as experiências de professore(a)s de inglês
como recursos pedagógicos que modelam suas identidades e tensionam
as relações afetivas desenvolvidas com e sobre o ensino de línguas.
356
importante fonte de dados para se compreender como os sujeitos se
envolvem em processos constantes de atribuição de sentido a partir de
suas experiências, discursos e ideologias.
Clandinin e Connelly (2011) compreendem pesquisa narrativa
como uma maneira de entender a experiência de modo a envolver co-
laboração entre pesquisadore(a)s e participantes. Já Clandinin (2013)
define pesquisa narrativa como uma abordagem de estudo das experiên-
cias humanas como um recurso para a construção de conhecimento.
Neste trabalho, é importante pontuar que as narrativas não são apenas
fontes para a geração de dados, mas também caracterizam a natureza da
nossa pesquisa, isto é, elas dizem respeito tanto a um método quanto a
um fenômeno de estudo.
Numa investigação voltada para narrativas, as formas de geração de
dados são variadas. Em nosso caso em questão, elas foram levantadas
através de entrevistas semiestruturadas e da escrita de diários reflexivos.
Segundo Kayi-aidar (2019, p. 126), as entrevistas narrativas “[...] não
são apenas relatos através dos quais informações são solicitadas, mas
ocasiões em que os sentidos são construídos entre pesquisadores e nar-
radores”. Já sobre o uso de diários reflexivos, Andrade e Almeida (2018,
p. 99) discutem que através deles, podemos “[...] ter um acesso ao mun-
do pessoal do(a)s professore(a)s, um recurso para explicitar os próprios
dilemas em relação à atuação profissional, um acesso à avaliação e ao
reajuste de processos didáticos [...]”. Nesses diários, o(a)s participantes
de nossa pesquisa foram solicitado(a)s a fazer análises de aulas especí-
ficas como uma forma de refletirem sobre as suas próprias práticas no
ambiente on-line.
Por motivos de escopo, concentraremos nossa atenção em momen-
tos em que apenas uma das participantes da pesquisa narra sua relação
afetiva com o ensino de língua inglesa. A partir disso, procederemos à
análise dessas instâncias confrontando-as com os conceitos de sensibi-
lização translíngue e de afetividade como prática discursiva ideologica-
mente orientada. Dessa maneira, uma abordagem narrativa para o estu-
do de emoções nos permite compreender como as nossas experiências
357
estão ligadas a desejos, ações, atitudes e valores que extrapolam as bar-
reiras virtuais. Logo, a narrativa como um método interpretativo se tor-
na uma maneira importante de se explorar os sentidos das experiências
afetivas (ZEMBYLAS, 2007).
80
Pseudônimos foram utilizados para preservar a identidade do(a)s participantes.
358
“Você não pode deixar que eles falem português”: tensionando
o cansaço, a vergonha e o trauma em narrativas sobre o ensino
de inglês
Estudos apontam que o trabalho on-line em meio à pandemia vem
nos adoecendo física e mentalmente (JORGE et al., 2021). No caso
de professore(a)s, além de atuarem em um contexto de incertezas, dis-
tanciamentos e restrições impostas pela pandemia, ele(a)s lidam com
forças ideológicas que extrapolam o cenário epidemiológico. Os trechos
que trazemos a seguir serão o pontapé inicial para desenvolvermos essa
ideia.
Neste primeiro trecho81, Catherine reflete sobre como a situação
pandêmica tem afetado as suas aulas:
[...] esse fim de ano foi pesado para todo mundo. Eu deixei de
ter novos alunos na pandemia, nas épocas que deveria. [...] Mas,
eu acho que as pessoas estão um pouco mais exaustas, mais can-
sadas [...]. (Entrevista)
81
Adaptações foram realizadas na transcrição original, a fim de aproximá-la da
norma padrão da língua portuguesa. Os parênteses ( ) foram usadas para as ob-
servações do(a)s pesquisadore(a)s.
359
consegui. Mas, eu consegui porque no plano de aula para esse
curso do CELTA, eu escrevia tudo o que eu ia dizer. Enquanto
eu estava dando aula, eu lia o plano de aula. Porque você precisa
pensar muito em tudo o que você vai dizer, se você vai dar tudo
em inglês para um aluno que não sabe nada em inglês. É uma
loucura. É possível. Eu não achava que era, mas era e eu fiz. Não
curto (coloca a mão na testa indicando dor de cabeça). Caraca,
mano, eu tinha que escrever tudo, entendeu? Então, demora
um tempo até você internalizar aquela linguagem mais simples.
Muitos gestos, enfim, muita demonstração. E os alunos têm
muito dúvida. Você não pode deixar que eles falem em portu-
guês. Ai... (coloca a mão na testa e balança a cabeça indicando
dor). Me cansa, sabe? É muito cansativo. Então, com alunos de
níveis mais básicos eu uso português [...]. (Entrevista)
Uma coisa que preciso ser mais firme com esse aluno é o uso
de inglês durante a aula. No começo, ele não entendia nada,
então eu usava muito português e deixava ele usar também. Mas
hoje ele pode mais. Mas ele ainda insiste em falar português. E
quando estou muito cansada, simplesmente deixo rolar. É mui-
to cansativa a comunicação somente em inglês no nível básico.
Mas sei que é importante para o aluno se esforçar se comunicar
na língua alvo, mesmo com as dificuldades, pois as situações
reais de uso do inglês também são assim, né. (Diário reflexivo
eletrônico)
360
(O CELTA) me abriu muita, muita possibilidade, mas também
me criou alguns traumas, assim, porque no CELTA você tem
que dar oito aulas que são monitoradas, né, pelo tutor e pelos
seus colegas de curso. Cara, quando passa o momento assim
de tipo: ‘mano, isso aqui deu errado, então travou o computa-
dor’ (põe as duas mãos no rosto indicando vergonha), na minha
mente parece que, tipo, eles estão lá vendo e anotando e de-
pois a gente vai conversar sobre isso que era o que acontecia no
CELTA. (Entrevista)
361
interessados em aperfeiçoar suas práticas pedagógicas. Devido ao im-
portante papel que desempenha nas metodologias de ensino de inglês
e ao lugar que ocupa nas narrativas de Catherine, os princípios que
embasam o CELTA atuam, conforme nossa análise, como regimes de
verdade (FOUCAULT, 1977), ditando o que pode ou não ser feito em
sala de aula. Assim, ao relacionar o cansaço à prática de ensino on-line,
Catherine coloca em evidência o impacto não só da pandemia nesse
contexto, mas do discurso monolíngue que ainda orienta o processo de
ensino e aprendizagem de inglês.
Ao narrar que não deveria permitir o uso de português (“Você não
pode deixar que eles falem português”) e de que “deveria ser mais firme”
com aluno(a)s que se embasam nessa língua para aprender, Catherine
expressa seu dilema envolvendo a tentativa de negociar diferentes nor-
mas: uma que se alinha ao seu “treinamento” como professora e outra
mais voltada à realidade que experiencia diariamente com o ensino da
língua inglesa. Esse (in)tenso processo de negociação não impacta so-
mente a condução da aula, mas o corpo de Catherine. Recursos lin-
guísticos e não-linguísticos colaboram nessa observação quando, por
exemplo, Catherine abaixa a cabeça e põe a mão na testa repetidas vezes
para indicar seu cansaço. O cansaço, aqui, é, então, resultado de uma
relação conflituosa com o ensino de inglês, que se movimenta por entre
percepções mais fechadas e contrárias ao emprego de outras línguas e a
prática pedagógica efetiva que demanda seu uso.
Além do cansaço, que vem acompanhado de dor e da sensação de
loucura (“Porque você precisa pensar muito em tudo o que você vai di-
zer, se você vai dar tudo em inglês para um aluno que não sabe nada em
inglês. É uma loucura”), o CELTA desempenha também papel prepon-
derante nos sentimentos de vergonha e trauma narrados por Catherine:
“(O CELTA) me abriu muita, muita possibilidade, mas também me
criou alguns traumas”; “Cara, quando passa o momento assim de tipo
‘mano, isso aqui deu errado, então travou o computador’ (põe as duas
mãos no rosto indicando vergonha), na minha mente parece que, tipo,
eles estão lá vendo e anotando”. Aqui, sua performance como professora
362
é julgada e vigiada (FOUCAULT, 1987) pelo CELTA, que faz parte de
uma memória afetiva traumática: se ela não agir de uma determinada
forma, não será a professora que esperam que seja. Logo, uma instrução
monolíngue atua tanto como vigia, tanto quanto punidora de práticas
pedagógicas que se afastam de seus princípios orientadores.
Concernente ao trauma, Zembylas (2020) nos conta que embora
sejam incipientes estudos sobre narrativas traumáticas e ensino, há dis-
cussões que indicam como tais experiências podem ser recursos afeti-
vos de resistência a discursos homogeneizantes. Nessa lógica, Zembylas
(2020) observa que a relação com o trauma pode levar à criação de
espaços de contestação em sala de aula, uma vez que “[...] as escolhas
pedagógicas feitas sobre as representações do trauma nunca são neutras;
elas já são em si políticas, por sempre estarem inseridas em processos
sociopolíticos mais amplos” (ZEMBYLAS, 2020, p. 13). Trazendo para
o nosso contexto, o trauma de Catherine, assim, pode resultar em prá-
ticas de ensino que se afastem dos princípios que a fizeram passar por
tal experiência, resultando na adoção de posturas de enfrentamento e
resistência à ideologia monolíngue.
Face ao discutido, percebemos que permitir que o(a)s aluno(a)
s falem outra língua que não o inglês coloca em xeque a identidade
de Catherine como professora, uma vez que vai de encontro ao que
o curso de qualificação preconiza como correto. Aqui, o discurso de
“English Only”, calcado numa lógica monolíngue e representado pelo
CELTA não provoca apenas sensações em Catherine, ele modela a sua
relação com o outro e com o ensino. Podemos dizer, assim, apoiados em
Ahmed (2004), que ao invés de considerarmos que “temos” emoções,
se torna mais produtivo pensar no que tais emoções “fazem” conosco.
O cansaço, o trauma e a vergonha, atrelados ao processo de ensino
e aprendizagem, têm suas raízes no que Cummins (2007) chama de
princípio monolíngue, que enfatiza o uso instrucional de uma língua
estrangeira às custas da exclusão da língua do(a) aluno(a). Frente a isso,
propomos a translinguagem como um caminho possível para repensar-
mos os impactos desse princípio por ela defender a abertura aos mais
363
variados recursos linguísticos que circulam no ensino de línguas e por
trazer “[...] para o debate a heterogeneidade nas escolas e o padrão mo-
nolíngue que impera em abordagens e materiais didáticos voltados ao
ensino de línguas”. (LUCENA; CARDOSO, 2018, p. 144)
Alinhadas ao potencial transgressor da translinguagem, García,
Johnson e Seltzer (2017) discutem a necessidade de compreendermos
o stance de professore(a)s de línguas como o primeiro passo para a pro-
moção de ações translíngues. Segundo as autoras, o stance diz respeito às
crenças, ideologias e valores que orientam os professore(a)s em suas prá-
ticas pedagógicas, o que inclui considerar a sua visão de língua, de ensi-
no, dos papeis do(a) aluno(a) e do(a) professor(a) e dos princípios que
embasam toda relação desses sujeitos com os recursos que levam para a
sala de aula. Nos mesmos termos, Lee e Canagarajah (2019) defendem
a inclusão sistemática da sensibilização (ou dispositivo) translíngue em
programas de formação de professore(a)s. Segundo esses autores, um
modo de promover ações translíngues concretas de modo consciente
seria adotar práticas reflexivas que ajudem o(a)s professore(a)s a exami-
narem criticamente como suas ações são modeladas por uma rede de
ideologias linguísticas.
Com isso, à Catherine seria dada a chance de lançar mão da língua
portuguesa não mais como uma prática atrelada ao cansaço ou exclu-
sivamente ao nível de proficiência (“Então, com alunos de níveis mais
básicos eu uso português”), mas como recurso para expandir as possi-
bilidades de aprendizagem e acolher as identidades e vozes de seus/suas
aluno(a)s. Complementarmente, a adoção de práticas de sensibilização
translíngue têm o potencial de permitir formadore(a)s de professore(a)s
a investigar como as crenças e valores associadas a línguas e identidades
levam a diferentes respostas afetivas no processo de ensino e aprendi-
zagem. Assim, a sensibilização translíngue pode facilitar a tomada de
consciência sobre determinados atos afetivos e sobre as consequências
políticas e sociais envolvidas nessas ações.
364
Considerações finais: para onde as emoções podem nos levar?
A virada afetiva nos estudos da linguagem nos permitiu discutir
afetividade não mais sob um viés exclusivamente psicologizante que
enxerga as emoções, pensamentos e comportamentos como caracterís-
ticas individuais. Agora, passamos a nos embasar na consideração de
que não importa o quão pessoal as emoções possam ser, os sujeitos que
sentem estão sempre imbricados em contextos mais amplos de relações
de poder. Este trabalho, ao se alinhar à perspectiva pós-estruturalista
e discursiva de afetividade/emoção, procurou apresentar como o que
professore(a)s de inglês sentem está atravessado por práticas ideológicas
que modelam o aqui e agora do ensino e aprendizagem.
Como uma maneira de discutir a relação entre afetividade/emoção,
ensino de línguas e ideologia, nos voltamos ao método narrativo, por
acreditarmos que para atender a uma investigação das emoções como
processo sociodiscursivo, precisamos teorizá-las como parte de um com-
plexo e dinâmico sistema de experiências (ZEMBYLAS, 2007). Além
disso, lançamos mão dos conceitos de translinguagem e sensibilização
translíngue que nos ajudaram a perceber que o ensino de língua inglesa
é envolvido por atos políticos que podem levar à resistência ou ao refor-
ço de práticas monolíngues que implícita ou explicitamente orientam
os trabalhos em sala de aula.
Por defendermos a adoção de uma sensibilização translíngue tan-
to na condução de aulas quanto na formação de professore(a)s de in-
glês, argumentamos a favor da criação de espaços em que aluno(a)s e
professore(a)s possam compartilhar suas experiências e práticas afetivas
a partir dos repertórios que mobilizam para fazerem sentido de seus
mundos. Nessa lógica ainda, discutimos como o ensino e aprendizagem
on-line está envolvido por fatores que impactam as relações que desen-
volvemos com as emoções (OLIVEIRA, 2021), e observamos como as
identidades docentes e discursos afetivos estão atrelados a determinadas
expectativas e normas sociais (ZEMBYLAS, 2003).
Por ainda estarmos no estágio de análise preliminar dos dados gera-
dos, não foi possível apresentar exemplos efetivos de práticas pedagógicas
365
em que se coloque em voga a atuação dos princípios translíngues e das
emoções como eixos organizadores do trabalho docente. Os dados têm
nos mostrado, por outro lado, que se há o desejo de abertura para o
outro, mas ainda atravessado por sentimentos de medo e insegurança e
pouco fundamentado em uma orientação translíngue. Em suma, con-
sideramos que seja produtivo discutir a relação entre translinguagem,
performatividade das emoções (AHMED, 2004) e letramento crítico
afetivo (ANWARUDDIN, 2015), como uma maneira de preencher as
lacunas aqui apresentadas e possibilitar uma maior compreensão so-
bre em que medida as nossas afetividades/emoções estão envolvidas
nas diferentes maneiras que enxergamos as línguas e os sujeitos que as
experienciam.
Referências
AHMED, S. The cultural politics of emotion. Edinburgh: University of Edinburgh
Press, 2004.
ANWARUDDIN, S. M. Why critical literacy should turn to “the effective turn”: mak-
ing a case for critical effective literacy. Discourse: Studies in the Cultural Politics of
Education, v. 37, n. 3, p. 381-396, 2015.
366
CLANDININ, D. J.; CONNELLY, F. M. Pesquisa narrativa: experiência e histó-
ria em pesquisa qualitativa. Tradução: Grupo de Pesquisa Narrativa e Educação de
Professores ILEEI/UFU. Uberlândia: EDUFU, 2011.
CLANDININ, D. J. Engaging in narrative inquiry. San Francisco: Left Coast Press, 2013.
367
LUCENA, M. I. P.; CARDOSO, A. C. Translinguagem como recurso pedagógi-
co: uma discussão etnográfica sobre práticas de linguagem em uma escola bilíngue.
Calidoscópio, v. 16, n. 1, p. 143-151, 2018.
PAVLENKO, A. The affective turn in SLA: From ‘affective factors’ to ‘language desire’
and ‘commodification of affect’. In: GABRY -BARKER, D.; BIELSKA, J. (org.). The
affective dimension in second language acquisition. Bristol: Multilingual Matters,
p. 3-28, 2013.
SELTZER, K. “My English is its own rule”: voicing a translingual sensibility through
poetry. Journal of Language, Identity & Education, v. 19, n. 5, p. 1-14, 2020.
ZEMBYLAS, M. Affective ideology and education policy: implications for critical po-
licy research and practice. Journal of Education Policy, v. 37, n. 4, p. 1-15, 2020.
368
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
ENSINO-APRENDIZAGEM ON-LINE EM
TEMPOS DE COVID-19: EXPERIÊNCIAS
EM AULAS DE GRADUAÇÃO E DE
PÓS-GRADUAÇÃO
369
state university in the state of Sao Paulo, in Brazil, are reported. The lessons,
originally planned to be in a face-to-face fashion, had to be offered online
due to the restrictions imposed by the COVID-19 pandemic. The lessons are
characterized as emergency remote teaching, which may have some similar
aspects to distance learning. The classes (six undergraduate groups and three
postgraduate groups) and the students are described, as well as the didactic
activities and the assessment procedures in the aforementioned classes. Lessons
occurred between March 2020 and July 2021. According to what was stated
by the students in the last synchronous encounters, the lessons represented
a satisfactory experience for the majority of students involved. Their levels
of satisfaction were also informed in answers in a questionnaire, prepared
by the teacher and answered by some of his students. Despite the fact that
the online lessons were offered because of a situation marked by conflicts,
the experience seems to have been important as teacher development for the
undergraduates and the postgraduates, and for the professional profile of
their teacher.
KEYWORDS: COVID-19; emergency teaching; online lessons; teacher de-
velopment; technology
1. Introdução
Deflagrada em 2020, a pandemia causada pelo vírus mortal
COVID-19 impactou e tem modificado a vida e o dia a dia de pessoas
em praticamente todas as partes do mundo. Recomendações para se
tentar conter a contaminação e o avanço das consequências da con-
taminação por esse vírus têm sido constantemente divulgadas, sendo
que essas recomendações, quando devidamente atendidas, reduzem os
efeitos dessa pandemia sobre a sociedade mundial.
Dentre as primeiras dessas recomendações, encontra-se o isolamen-
to social e, dessa maneira, as sérias restrições aos encontros presenciais
e às aglomerações de pessoas. E, como consequência do atendimento a
essa recomendação, muitas pessoas passaram a realizar todas, ou a maio-
ria de suas atividades – por exemplo, atividades escolares e profissionais,
compras, contatos sociais, e até reuniões de caráter festivo, a partir de
suas residências, por meio de recursos eletrônicos e acesso à internet.
370
No âmbito da educação, em todos os níveis (educação infantil,
educação básica de crianças e adolescentes e educação superior), a si-
tuação não foi diferente nos anos de 2020 e 2021, quando alunos e
professores não mais puderam se deslocar, por determinações legais,
para suas instituições de ensino, as quais fecharam suas portas por vários
meses. Diante dessa difícil realidade, autoridades do mundo todo, in-
clusive no Brasil, passaram então a discutir a questão de como viabilizar
a continuidade da escolarização e propor alternativas viáveis diante da
impossibilidade de contatos sociais, dentre as quais, as possibilidades de
recursos eletrônicos e de acesso, ou limitações de uso da internet, por
esses alunos e por seus professores.
No Brasil, dada a sua grande e diversa população, o quadro mos-
trou-se complexo e variado. Nem todos possuíam um computador
com acesso à internet para seu próprio uso. Mais comum era o uso de
telefones celulares, com conexões de baixa potência em diversos casos.
Diversas famílias, por exemplo, possuíam somente um computador
em sua residência, cujo uso deveria ser compartilhado por todos os
membros da família, os quais cumpriam o isolamento social domici-
liar: pais e outros adultos, para trabalhar em caráter remoto; crianças e
adolescentes para acesso a aulas e/ou outras atividades escolares on-li-
ne; e, além disso, para outras atividades feitas tipicamente por meio de
computadores, tais como acesso a correio eletrônico, filmes, músicas
e redes sociais. Um cenário no qual equipamentos de informática e
de acesso remoto tornaram-se imprescindíveis, porém não imediata-
mente disponíveis para tantas pessoas que precisavam fazer uso desses
recursos.
Tendo discutido as questões relativas à continuidade do cur-
so universitário sob a sua responsabilidade, o Conselho do Curso de
Licenciatura em Letras da universidade pública em contexto das expe-
riências aqui relatadas elaborou e divulgou um documento contendo
orientações e critérios para a reprogramação das atividades durante a
pandemia do COVID-19, no qual consta a seguinte recomendação:
371
É preciso considerar que muitos alunos têm condições adversas
em suas casas, o que, muitas vezes, inviabiliza sua participação
em horários específicos e compromete as condições físicas,
psicológicas e tecnológicas necessárias para a realização das
atividades propostas. Da mesma forma, os docentes também
apresentam suas dificuldades. Neste momento, a cooperação
mútua é fundamental, uma vez que professores e alunos estão
se esforçando e fazendo o melhor que podem. (CCG-Letras,
2020, p.1)
372
2. Sobre a sala de aula presencial, aulas on-line e ensino a
distância
O termo “sala de aula” significava, até relativamente pouco tempo,
um espaço físico destinado ao ensino. Geralmente uma sala contendo
carteiras ou mesas e cadeiras, enfileiradas ou em círculo; uma lousa ou
quadro branco (ou, mais recentemente, uma lousa digital) em uma das
paredes; em determinados casos, quadros, murais e/ou pôsteres nas pa-
redes, com ilustrações e informações sobre temas das aulas ministradas
na sala; e, nos contextos mais favorecidos, equipamentos de reprodução
de áudio, de vídeo e de multimídia com acesso à internet. Cabe ao
professor fazer uso do espaço físico da sala de aula, à frente dos alunos,
ou movimentando-se por diferentes partes da sala, por exemplo, para
monitorar alunos trabalhando em grupos ou em pares.
Com o advento da educação a distância (EaD), alteraram-se os
conceitos de aula e de sala de aula. Surgiram as salas de aulas virtuais,
para acesso remoto do professor e de alunos muitas vezes situados em
diversas regiões geográficas; e as aulas passaram a acontecer de modo
síncrono, ou a ser oferecidas em formato assíncrono, por exemplo,
quando professores gravam vídeos de suas aulas, as quais são posterior-
mente disponibilizadas aos alunos.
Importante salientar que as experiências de aulas on-line aqui rela-
tadas, a partir da seção seguinte, não constituem um exemplo típico de
EaD. Constituem, na verdade, exemplos de ensino remoto em (uma)
situação emergencial (GARCIA et ali, 2020; HODGES, MOORE,
LOCKEE, TRUST, BOND, 2020), cujas características se identifi-
cam em parte ou se assemelham a procedimentos adotados na EaD.
O Ensino Remoto Emergencial (ERE) é descrito como uma mudança
momentânea de ensino, sendo esse ofertado de maneira on-line. Assim
sendo, reitera-se a diferença entre o ERE e EaD, uma vez que o termo
“emergencial” se caracteriza como uma ação de necessidade imediata,
enquanto o EaD é previamente planejado e projetado para ser oferecido
ao aluno de forma on-line (MOHMMED, KHIDHIR, NAZEER &
VIJAYAN, 2020).
373
As aulas dos cursos de graduação e de pós-graduação abordadas
neste artigo haviam sido planejadas para ocorrerem de modo presencial,
no campus da universidade em questão, em salas de aulas físicas, com a
presença, em cada aula, da/o professor/a e de seus respectivos alunos de
cada disciplina. Entretanto, devido ao fato de o isolamento social cau-
sado pela pandemia do COVID-19 ter sido instituído repentinamente,
no mês de março de 2020, quando o ano letivo já havia iniciado, e
inclusive algumas aulas presenciais já terem sido ministradas, as aulas
foram interrompidas e a alternativa para que os mesmos cursos conti-
nuassem, de modo on-line, passou a ser considerada, sem que houvesse
um planejamento anterior para o estabelecimento dessa prática. A si-
tuação caracterizou-se, portanto, como emergencial, e uma proposta
de solução foi rapidamente articulada, na expectativa de solucionar um
problema repentino. E, dada a continuidade da situação da pandemia
do COVID-19 e das medidas preventivas no início de 2021, deu-se
continuidade ao ensino e demais atividades acadêmicas em formato on-
-line, na referida universidade, durante o ano de 2021, e a retomada
das aulas em formato presencial a partir do primeiro semestre de 2022.
374
Uma vez divulgada a situação de pandemia e impostas as restri-
ções à continuidade das aulas presenciais, as instâncias competentes da
Universidade nos indicaram, já na semana seguinte, a “opção” de aulas
a distância, em caráter de ERE, no formato de aulas on-line ou vídeo-
-aulas e/ou a disponibilização de outras atividades acadêmicas remotas
para nossos alunos.
A primeira recomendação foi para que os alunos fossem consulta-
dos sobre suas condições, seu interesse e seu desejo para a continuidade
do ensino no formato remoto. Na consulta, informei aos alunos que as
aulas seriam no modo on-line síncrono, nos mesmos dias e horários das
aulas anteriormente previstas para o formato presencial.
Eu ministrava, em 2020, três disciplinas de Língua Inglesa no curso
de Licenciatura em Letras, a saber:
- Língua Inglesa IV, no curso diurno, com 14 alunos matriculados,
todos formandos no referido curso (LI4D20, daqui por diante);
- Língua Inglesa IV, no curso noturno, com 10 alunos matriculados
(penúltimo ano do curso) (LI4N20, daqui por diante); e
- Língua Inglesa V, no curso noturno, com 12 alunos matriculados,
todos formandos no referido curso (LI5N20, daqui por diante).
Vale salientar que, para essas três disciplinas, eu era o professor res-
ponsável por 50% da carga horária anual de cada disciplina, e todas as
minhas horas/aula haviam sido previstas, antes do início da pandemia,
para serem cumpridas no 1o semestre letivo, ou seja, do mês de março
ao início do mês de julho. Nesse sentido, revisei meu cronograma leti-
vo e agendei as aulas remanescentes, de modo a conseguir cumprir as
cargas horárias sob minha responsabilidade, o que ocorreu na primeira
semana de agosto de 2020.
Nessa ocasião em que as aulas em formato on-line eram uma opção
para professores e alunos, mensagens eletrônicas tanto de apoio como
de repúdio às aulas remotas foram postadas nas redes de docentes da
Universidade. Enquanto alguns docentes perguntavam sobre as opções
e funcionamento de recursos eletrônicos para poderem ministrar suas
375
aulas, docentes contrários às aulas on-line justificavam posição por
razões da natureza da disciplina, pelo fato de não se sentirem preparados
para ministrar aulas on-line e porque as aulas a distância, além de não
atenderem, segundo esses docentes, todos os requisitos possíveis e
necessários de suas disciplinas, causariam ou reforçariam uma situação
de elitização para os alunos, favorecendo aqueles que possuíam recursos
para aulas remotas, mas desfavorecendo os demais alunos.
Optei por utilizar o Google Meet para ministrar as aulas, e por
disponibilizar materiais didáticos em uma pasta no Google Drive, além
de enviá-los também aos alunos, em algumas ocasiões, por e-mail e em
grupos de Whatsapp.82 Alguns minutos antes do horário previsto de
início de cada aula, eu criava a sala no Google Meet, enviava o convite
e também o link da reunião aos alunos da classe.
Aprendi a utilizar o recurso de gravação das aulas. Praticamente
todas as aulas foram gravadas, e os respectivos vídeos disponibilizados
aos alunos de cada classe. Algumas aulas foram apenas parcialmente
gravadas, ou não gravadas, por esquecimento de minha parte. Alunos
ausentes às aulas, bem como os demais alunos, puderam assistir às aulas
das quais não haviam participado, bem como revisar aulas passadas.
Quanto à metodologia de ensino e à condução das aulas on-line,
não se diferenciaram tanto das minhas aulas em formato presencial.
Selecionei, dentre os materiais didáticos previstos para as aulas presen-
ciais (apresentações em Powerpoint, excertos de áudio, de vídeo, bem
como textos e exercícios em Word ou em pdf ), aqueles que melhor se
prestavam para aulas on-line. Para os casos em que os materiais didá-
ticos não eram previamente enviados aos alunos, aprendi a utilizar o
recurso de compartilhamento de tela, dessa maneira apresentações e
outras atividades didáticas foram realizadas.
As interações, durante as aulas, foram verbais, quando alunos fa-
lavam utilizando seus microfones, e também por escrito, utilizando o
82
No início do semestre, antes da deflagração da pandemia do COVID-19, eu ha-
via criado um grupo no Whatsapp para os alunos de cada uma das classes acima
mencionadas.
376
chat do Google Meet, geralmente sempre no formato de interação en-
tre o professor e a classe toda, mas com algumas ocasiões de interação
verbal ou por escrito entre os alunos. O fato de o número de alunos
nas classes não ser muito grande facilitou a participação dos discentes.
Alguns alunos verbalizavam mais suas opiniões e respostas, enquanto
outros preferiam participar por meio do chat. Em algumas ocasiões,
percebeu-se que seria interessante dirigir perguntas a alunos específicos,
chamando-os pelos nomes, pois era possível visualizar, a cada aula, os
alunos conectados.
A maioria dos respondentes participou das aulas on-line utilizan-
do computador e microfone. Alguns alunos utilizaram também suas
câmeras, e um aluno participou das aulas utilizando telefone celular.
No caso desse aluno, sua limitação técnica foi não possuir câmera para
participar das aulas, possuía apenas um pequeno microfone conectado
ao seu computador.
Uma aluna declarou que não pôde participar da maioria das aulas
on-line devido a compromissos de trabalho concomitantes nas mesmas
datas e horários das aulas, mas que conseguiu, posteriormente, assistir
às aulas gravadas e disponibilizadas pelo professor.
A avaliação de desempenho dos alunos, nos períodos de aulas sob a
minha responsabilidade em 2020, foi uma apresentação oral, individu-
al. Nas disciplinas LI4D20 e LI5N20, a temática das apresentações foi
“aspectos culturais e inglês como língua estrangeira”. Foram sugeridos
tópicos específicos para que os alunos escolhessem sobre o que gosta-
riam de apresentar – por exemplo, comidas típicas, educação, esportes,
lazer, leis e justiça, papéis sociais do homem e da mulher, mas foi dada
aos alunos a liberdade de escolher outro tópico, desde que no âmbito de
aspectos culturais e inglês como língua estrangeira. Alguns alunos esco-
lheram tratar de um determinado tópico no contexto de um país onde a
língua inglesa é falada, por exemplo, no Canadá, na Escócia e na Índia.
Na disciplina LI4D20, cada aluno teve a duração de praticamente uma
aula inteira para realizar sua apresentação (01 hora e 30 minutos), en-
quanto que na LI4N20 foram realizadas duas apresentações por aula.
377
Esta configuração foi devido ao fato de na LI4D20 ocorrerem duas
aulas de 01:50 por semana, enquanto que na LI4N20 e na LI5N20 as
aulas, de mesma duração, aconteciam somente uma vez por semana.
Na disciplina LI4N20, a temática geral das apresentações foi “tó-
picos linguísticos em língua inglesa”, para que os alunos tivessem a
oportunidade de tratar ou de revisar aspectos da língua inglesa, à sua
escolha, por exemplo, sequência de adjetivos, tempos verbais e uso de
preposições. A configuração das apresentações nesta disciplina, também
com somente uma aula por semana, foi de duas apresentações por aula.
As apresentações objetivaram avaliar a proficiência oral dos alu-
nos, em termos de competência lexical, precisão gramatical e pronún-
cia, bem como o uso de linguagem de caráter acadêmico e pedagógico,
uma vez que todos eram alunos em formação de professores em cará-
ter pré-serviço. Ao final de cada apresentação, foi dada aos colegas a
oportunidade de comentários e questionamentos e, na qualidade de
professor de cada disciplina, comentei seus desempenhos linguísticos e
pedagógicos, oferecendo-lhes, quando pertinente, sugestões para apri-
moramento de suas “aulas”. A cada aluno foi atribuída uma nota entre
zero e dez, e as notas foram informadas aos alunos após o término de
todas as apresentações.
Na última aula de cada uma das três disciplinas, conduzi, com os
alunos, uma “conversa” de avaliação sobre a experiência das aulas on-
-line, a qual, de modo geral, mostrou-se positiva para todos os alunos
envolvidos. E lhes solicitei que respondessem um questionário sobre
essa experiência, em caráter de coleta de dados para a elaboração deste
artigo (vide apêndice).
Somente 06 alunos (17% do total) responderam ao questionário,
cujos dados são apresentados e discutidos, a seguir.
Em resposta à pergunta 5 do questionário, “Na sua opinião, as au-
las on-line foram satisfatórias? Por quê (não)?”. Todos os respondentes
informaram satisfação com as aulas, conforme ilustrado pelos seguintes
excertos:
378
As aulas foram bastante satisfatórias, pois o conteúdo foi
bem adaptado ao contexto e não foi prejudicado em razão
da situação, embora a interação, parte importante das aulas,
tenha ficado dificultada dadas as limitações do recurso digital.
(A1, G)83
Para além de ter as aulas on-line como aluno, foi uma experi-
ência interessante apresentar um seminário (microlesson) nesse
contexto, colocando-me na posição de professor. De fato, essa
se tornou uma preocupação emergente para minha formação,
porque indicou uma lacuna em nosso currículo. Em um mundo
digital, precisamos ser professores digitalmente letrados e pro-
fissionalizados. (A1, G)
379
Diferentemente da situação de aulas on-line iniciadas subitamen-
te, como ocorreu em 2020, as disciplinas de 2021 foram previstas na
modalidade on-line. As atividades didáticas, os processos interativos
durante e fora dos horários das aulas, e as atividades de avaliação, ocor-
reram de modo análogo às atividades didáticas de 2020, porém, com
mais experiência e segurança, tanto para os alunos como para o profes-
sor. Uma novidade, nas aulas, em 2021, foi a utilização do recurso do
Google Meet para a criação de salas separadas, durante determinadas
aulas, possibilitando, com esse recurso, a inclusão de atividades em gru-
pos menores de alunos da mesma classe. E, na avaliação dos alunos,
além das apresentações orais, ocorridas de modo análogo às apresenta-
ções orais de 2020, foi aplicada uma prova escrita para cada classe. As
provas foram produzidas no Google Docs, com questões de múltipla
escolha, envolvendo gramática e vocabulário. As provas foram aplicadas
no horário de uma aula, com duração máxima de uma hora e trinta mi-
nutos, e corrigidas automaticamente pelo Google Docs, e os resultados
disponibilizados imediatamente após todos os alunos terem concluído
as provas. Nas aulas seguintes às aplicações das provas, o professor reto-
mou e discutiu, com cada classe, as questões dessa avaliação.
380
A disciplina Metodologias de Investigação em Estudos Linguísticos
II foi ministrada por vários docentes do programa de EL, e nos dois
encontros sob a minha responsabilidade tratou-se especificamente de
questões de pesquisa na linha de Ensino e Aprendizagem de Línguas.
Cumpre mencionar que, para as disciplinas (1) e (2), o primeiro en-
contro foi realizado em modo presencial, no campus da Universidade, na
semana anterior ao início do decreto do isolamento social. Entretanto,
na disciplina (2), a aluna especial, que reside em outra cidade do estado
de São Paulo, não havia comparecido a esse primeiro encontro, portan-
to nosso contato na disciplina foi somente em caráter on-line.
Os aspectos de organização e realização das aulas nessas discipli-
nas de pós-graduação foram semelhantes àqueles das aulas de gradu-
ação relatados na seção anterior: aulas síncronas por meio do Google
Meet e pastas com textos e outros materiais no Google Drive; grupos
no Whatsapp para comunicação entre o professor e os alunos; aulas
gravadas e disponibilizadas para acesso dos alunos.
Textos de leitura prévia foram indicados, de acordo com as temá-
ticas de cada disciplina, e discutidos em cada aula. Quando pertinente,
conduzi apresentações, utilizando o Power Point e compartilhamento
de tela. E as interações, na grande maioria, verbais, entre o professor e
todos os alunos da classe. Todos os alunos de PG utilizaram computa-
dores com câmeras e microfones, nas aulas online, e três alunos utiliza-
ram também seus telefones celulares.
Os alunos das disciplinas (1) e (2) foram avaliados: (a) por meio de
apresentações de seminários temáticos, baseados nos conteúdos e nos
textos das bibliografias dessas disciplinas, além de outros textos escolhi-
dos por eles; (b) por sua participação nas aulas e (c) por meio de uma
prova escrita, na disciplina (1). Na disciplina (2), a outra professora res-
ponsável utilizou atividades assíncronas de avaliação, disponibilizadas
no Google Classroom. Enquanto os temas dos seminários da disciplina
(1) foram diretamente relacionados aos tópicos da disciplina, dois se-
minários de alunas da disciplina (2), por elas sugeridos, não constavam
381
do programa, porém foram aceitos por serem relevantes no âmbito da
temática geral da disciplina: alunos laudados (com características que
exigem ações pedagógicas específicas) e translinguagem, tema este re-
lacionado à pesquisa de Mestrado da aluna que tratou desse assunto.
Os seminários, dois por aula, foram apresentados nas últimas aulas de
cada disciplina, seguidos de discussões dos temas com todos os alunos.
A prova escrita foi disponibilizada aos alunos na penúltima semana de
aulas, e lhes foram concedidas 24 horas para responder à prova e enviar
suas respostas para o e-mail do professor. Às provas foram atribuídas
notas entre zero e dez e, depois de corrigidas, foram enviadas aos alu-
nos, e discutidas na última aula da disciplina. Os conceitos finais dos
alunos (A, B ou C, todos aprovados) foram disponibilizados antes da
última aula on-line.
O mesmo questionário enviado aos alunos das disciplinas de gra-
duação (vide apêndice) foi também enviado e respondido pelos alunos
de pós-graduação, das disciplinas (1) e (2). No segundo encontro da
disciplina (3), discutimos a experiência das aulas em formato remoto,
que se mostrou, de modo geral, bastante positiva. Os alunos também
gostaram do fato de a disciplina ter sido ministrada por vários docentes
do programa de EL, de diferentes linhas de pesquisa, o que permitiu
aos alunos um amplo panorama dos diferentes paradigmas e aspectos
de pesquisa na área de Estudos Linguísticos. Nesta disciplina, a avalia-
ção foi por meio dos projetos de pesquisa dos doutorandos, revisados
e enviados aos diferentes docentes do programa de EL que ministra-
ram a disciplina. No meu caso, avaliei somente um projeto, de uma
orientanda.
Dos 10 alunos matriculados nas duas disciplinas do programa de
EL sob minha responsabilidade, (1) e (2), seis alunos (60% do total)
responderam ao questionário sobre as aulas on-line.
Em resposta à pergunta 5 do questionário, “Na sua opinião, as au-
las on-line foram satisfatórias? Por quê (não)?”, obtiveram-se as seguin-
tes respostas:
382
Na minha opinião as aulas on-line foram muito satisfatórias. O
conteúdo foi explicitado com clareza, houve espaços para dis-
cussões e apresentação de diversos pontos de vista. Gostei muito
das aulas on-line, pois sem elas, eu não teria condições de fre-
quentar, já que moro muito longe. (A1, PG)84
84
PG = pós-graduação.
383
com a internet. E, de acordo com as respostas à pergunta 5, todos os
respondentes mostraram-se satisfeitos com as aulas on-line das duas dis-
ciplinas, (1) e (2).
Aos alunos da disciplina Metodologias de Investigação em Estudos
Linguísticos II não foi solicitado que respondessem o questionário.
Entretanto, ao final da segunda aula por mim ministrada nessa disci-
plina, todos os alunos presentes demonstraram satisfação com ambas as
aulas, conforme mencionado anteriormente.
5. Considerações finais
Relataram-se, neste artigo, experiências de aulas on-line de gradu-
ação e de pós-graduação, ministradas em uma mesma instituição de
ensino superior, em caráter emergencial, todas pelo mesmo docente.
A reflexão sobre tais experiências se baseou em observações do docente
das disciplinas aqui tratadas, em opiniões verbalizadas pelos alunos e
em dados coletados por meio de um questionário.
As aulas constituíram, de modo geral, uma experiência de aprendi-
zagem satisfatória e válida para a maioria dos alunos envolvidos, confor-
me depoimentos desses alunos, nas últimas aulas, e de dados coletados
por meio do questionário aplicado pelo professor, a todos os alunos de
2020, e respondido apenas por parte dos discentes. Os alunos aponta-
ram, em suas respostas ao questionário, aspectos positivos, tais como a
participação dos alunos e a troca de experiências nas aulas, além do fato
de, para alunos que residem em outras cidades, as facilidades de não
precisarem viajar para o comparecimento a aulas presenciais.
As aulas on-line aqui tratadas foram oferecidas em caráter emergen-
cial e devido a uma situação de pandemia, de modo súbito, em 2020,
e de modo planejado, em 2021. A experiência revelou-se, como um
todo, importante para a formação docente dos licenciandos em Letras
e dos pós-graduandos em Estudos Linguísticos, bem como para o enri-
quecimento do perfil profissional do professor responsável pelas disci-
plinas. Salientam-se aspectos positivos da experiência das aulas on-line,
384
no sentido que representaram um avanço no conhecimento de recursos
eletrônicos que se prestam a finalidades pedagógicas, tais como o recur-
so do Google Meet para a realização de trabalhos em grupos em aulas
on-line síncronas, e a gravação das aulas, para referência posterior tanto
dos alunos como do professor. Sou, portanto, favorável às possibilida-
des de futuras disciplinas serem oferecidas com cada vez mais apoio de
tecnologias digitais. Nesse sentido, necessita-se revisar projetos peda-
gógicos e disciplinas e, sem dúvida, possibilitar formação docente para
atuação nesta era digital.
Estou consciente de que deve também ter havido limitações ao
aprendizado de determinados alunos, por não terem acesso pleno às
aulas online, ou devido a outros problemas por eles enfrentados decor-
rentes da pandemia do COVID-19. Se, por um lado, vivenciei uma
experiência docente positiva em relação às aulas on-line e às reações
da maioria dos alunos nelas envolvidos, por outro, colegas docentes da
mesma instituição, ou de outras instituições de ensino, bem como ou-
tros alunos, não obtiveram o mesmo êxito. Importante, todavia, que se
compartilhem as experiências docentes e discentes vivenciadas durante
a pandemia, soluções encontradas e entraves ao desenvolvimento de
aulas on-line, na expectativa de se buscar alternativas educacionais para
o futuro do ensino e da aprendizagem, e para o futuro da formação
docente.
Referências
CAMPOS, B.S, KAMI, C. M. C., SALOMÃO, A. C. B. A mediação no Teletandem
durante a pandemia da COVID-19. Horizontes de LinguísticaAplicada, ano 20, n. 1, p.
DT3, 2021.
385
GARCIA, T. C. M.; MORAIS, I. R. D.; RÊGO, M. C. F. D.; ZAROS, L. G. Ensino
Remoto Emergencial: Proposta de design para organização de aulas. Natal: SEDIS/UFRN,
2020.
HODGES, C.; MOORE, S.; LOCKEE, B.; TRUST, T.; BOND, A. The Difference
Between Emergency Remote Teaching and Online Learning. 2020. Disponível em ht-
tps://er.educause.edu/articles/2020/3/the-difference-between-emergency-remote-tea-
ching-and-online-learning#disqus_thread. Acesso em: 10/12/2020.
Apêndice
QUESTIONÁRIO: AULAS ON-LINE
( em período de distanciamento social – COVID-19 )
Prezada/o aluna/o,
386
o conteúdo do artigo. Manterei sigilo absoluto sobre a identidade dos respondentes,
bem como sobre a instituição na qual as aulas foram ministradas.
Muito obrigado,
1. Disciplina:____________________________________________________
4. Durante as aulas, você participou por meio de voz (microfone), chat, ou ambos?
7. Outros comentários sobre a(s) sua(s) experiência(s) com as aulas on-line nesta
disciplina?
©DAConsolo (2020)
387
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
388
online classes, interactions through the Whatsapp app and class diaries. The
preliminary research data reveal that the learning process occurred through
interaction and collaborative practices between students and teacher, designing
the learning process to meet the specific educational needs of students with
visual impairment and that critical literacy proposal allowed students to be
protagonists and to engage in linguistic activities in English language.
KEYWORDS: English Language Learning; Visual impairment; inclusion;
critical literacy; multiliteracies.
Introdução
Cada vez mais, a educação passa por mudanças referentes ao en-
sino inclusivo, incentivadas pelo crescente apoio de correntes de pais,
professores e da comunidade social em prol do direito às pessoas com
deficiência de receberem uma educação igualitária e digna, sem exclu-
são ou segregação. Mantoan (2003), pedagoga e doutora em educação,
em sua obra
“Inclusão Escolar”, defende que uma inclusão completa só pode
ser alcançada pela quebra de paradigmas racionalistas modernos de
educação, que se traduzem em separatividade dos alunos no ambiente
escolar. O sistema educacional divide tanto o saber, em áreas separadas
e especializadas, desconectando os conhecimentos das disciplinas en-
tre si, como também os alunos, diferenciando-os entre aptos e inaptos,
normais e deficientes, iguais e diferentes.
Para Fávero (2011, p.19), apesar de a educação especial estar sendo
executada no Brasil de duas formas, apenas uma delas cumpre devida-
mente com o direito constitucional e humano da educação. A primeira,
correspondendo ao atendimento especializado de alunos com deficiên-
cia de forma complementar e, preferencialmente, no próprio estabe-
lecimento de ensino por meio de salas de recursos multifuncionais. A
segunda forma ocorre em estabelecimentos segregados de ensino, onde
só se matriculam alunos com deficiência. Segundo a autora, quando a
criança com deficiência não frequenta um ambiente plural de ensino,
com currículo comum e propósitos igualitários de aprendizagem, está
389
sendo privada do direito constitucional previsto no artigo 206 (I), que
impõe “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”
(BRASIL, 1988). Fávero reforça que não há problema no atendimento
educacional complementar pela escola especial, que cumpriria seu de-
ver legal para com os educandos:
390
dando ênfase às pessoas com deficiência visual. Na terceira seção teó-
rica, apresentaremos os conceitos de Letramento Crítico, apresentados
por Tilio (2019), Norton e Toohey (2004) e Multiletramentos, aborda-
dos por Rojo e Moura (2012), como aporte da inclusão social. Por fim,
faremos uma análise qualitativa das aulas desenvolvidas pelo projeto de
extensão, com enfoque no processo de ensino-aprendizagem dos alunos
por meio de gêneros multimodais e traremos as considerações finais.
Educação inclusiva
A inclusão social é um movimento muito recente e ainda distante
de ser plenamente consolidado na sociedade. A atitude recorrente em
uma cultura cada vez mais individualista como a nossa é a separação
e a segregação em grupos privilegiados e desprivilegiados, “normais”
e marginalizados, os que têm direitos e os que são subtraídos deles.
Em contramão a esse paradigma separatista, Sassaki (2010, p.16-17)
apresenta que “O movimento de inclusão social começou inicialmente
na segunda metade dos anos 80s nos países mais desenvolvidos, (...) e
está se desenvolvendo fortemente nos primeiros 10 anos do século 21
envolvendo todos os países”. O autor conceitua inclusão como: “(...) o
processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir, em seus sis-
temas sociais gerais, pessoas com deficiência (além de outras) e, simul-
taneamente, estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade”
(SASSAKI, 2010, p.39).
Para o referido autor, o objetivo principal da inclusão é a constru-
ção de uma sociedade na qual todos possam fazer parte integralmente,
indistintamente. Tendo por base os seguintes princípios: “celebração das
diferenças, direito de pertencer, valorização da diversidade humana, so-
lidariedade humanitária, igual importância das minorias, cidadania com
qualidade de vida” (SASSAKI, 2010, p.17). Consequentemente, atender
a esses princípios, ou seja, responder às necessidades dos que estão às mar-
gens dos padrões de normalidade estabelecidos, é um movimento con-
trário ao que está posto, enfrentando diversos obstáculos impostos pela
ignorância, pelo preconceito e pela má aplicação de políticas públicas.
391
No tocante à educação, o processo de inclusão se traduz em uma
atitude que vai além da mera integração de alunos com deficiência no
contexto escolar, mas que consiste na transformação dos paradigmas
que regem nossas práticas educativas, e, por consequência, ao incluir to-
dos os alunos indistintamente, considerando seus potenciais de apren-
dizagem, melhoram o acesso à educação para todos os alunos. Neste
sentido, Mantoan (2003, p.16) afirma que “por tudo isso, a inclusão
implica uma mudança de perspectiva educacional, pois não atinge ape-
nas alunos com deficiência e os que apresentam dificuldades de apren-
der, mas todos os demais, para que obtenham sucesso na corrente edu-
cativa geral”.
Dessa forma, uma simples atitude de ampliar as fontes nos mate-
riais projetados em sala de aula, por exemplo, beneficia não somente o
aluno com deficiência visual, mas aqueles que se sentam ao fundo da
sala, os que possuem miopia e os alunos que não desenvolvem uma lei-
tura fluida e precisam de mais atenção às palavras. Assim, os benefícios
de se pensar nas particularidades de aprendizado e adotar a inclusão
como paradigma no planejamento das aulas e das atividades, indepen-
dentemente de haver alunos com deficiência, atingem positivamente a
todos.
392
valor da acuidade visual corrigida no melhor olho é menor do
que 0,3 e maior ou igual a 0,05 ou seu campo visual é menor
do que 20º no melhor olho com a melhor correção óptica (...)
(BRASIL, 2008).
Outra crença que muitas vezes é imposta pela escola, pela sociedade
ou pela família é a de que a criança tem menos capacidade de aprender,
ou seja, que tem suas capacidades cognitivas reduzidas devido à ceguei-
ra. Essa crença gera um protecionismo da família, que muitas vezes
limita o desenvolvimento da criança mais do que a própria cegueira, e,
na escola, traduz-se na atitude de responsabilizar o aluno pelas falhas do
ensino que o próprio sistema educativo opera. Acerca dessa crença de
inferioridade, as pesquisas vêm mostrar o contrário:
393
Portanto, no que se refere à educação de pessoas com deficiência
visual, cabe às instituições de ensino e aos professores, como também à
gestão pública educacional, o dever de promover mecanismos de inclu-
são das necessidades específicas dos alunos, seja na ampliação de fontes
dos materiais impressos, ou na disponibilização de material em braile.
O potencial de aprendizagem de cada aluno é alcançado somente quan-
do se disponibilizam os recursos necessários e as aulas são planejadas
com as metodologias que atendam às particularidades de aprendizagem
dos alunos. Assim, a proposta inclusiva do atendimento a essas neces-
sidades educacionais específicas que esse artigo defende é por meio do
Letramento Crítico e dos Multiletramentos, que serão abordados nas
próximas seções.
Letramento crítico
O letramento é um termo da pedagogia que vem se popularizando
no meio acadêmico nos últimos anos e se multiplicando em diversos
ramos. Conforme o conceito de Magda Soares, letramento é “ o re-
sultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado
ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como
consequência de ter-se apropriado da escrita” (SOARES, 2012, p.18).
O letramento, que consiste na habilidade de utilizar a escrita para fazer
parte da sociedade letrada e nela desenvolver práticas sociais letradas, é
um termo que se ramificou em diversos outros, não sendo mais possí-
vel pensar no letramento como um ato isolado, mas em “letramentos”:
letramento digital, letramento visual, letramento científico, letramento
midiático..., dentre eles, o artigo dá enfoque no letramento crítico, nos
multiletramentos e seus pressupostos teóricos.
O letramento crítico, segundo Clark e Ivanic (1997) apud Tilio
(2017), tem uma função de empoderamento dos alunos, capacitan-
do-os para uma análise crítica das experiências cotidianas mediadas
pela linguagem própria e a dos outros nos ambientes de suas vivên-
cias. Nesse sentido, a perspectiva crítica é vista como mecanismo de
reflexão e transformação das percepções dos alunos sobre sua realidade
394
por meio de usos da linguagem. Analisar criticamente os discursos e
questionar o que é posto socialmente como certo é um dos fundamen-
tos do Letramento Crítico. Segundo esse pressuposto, pode-se atri-
buir ao ensino de Línguas perspectivas críticas, como apontam autores
contemporâneos:
Multiletramentos
Na sociedade da hipermodernidade, com o advento de novas
tecnologias que promovem a interação e comunicação cada vez mais
85
Tradução própria, trecho original: “Advocates of critical approaches to second
language teaching are interested in relationships between language learning and
social change. From this perspective, language is not simply a means of expression
or communication; rather, it is a practice that constructs, and is constructed by,
the ways language learners understand themselves, their social surroundings, their
histories, and their possibilities for the future.” (Norton; Toohey, 2003, p.1)1
395
virtualizadas e sofisticadas, surgem novos gêneros discursivos que se
pautam na interação do usuário com o texto em diversas modalidades.
Em uma mesma página de internet em que se mostra uma notícia, por
exemplo, há o áudio do texto escrito, vídeos de entrevistas, gráficos,
links externos para expandir a navegação a outros sites ou recursos, o
chat em que o usuário pode deixar sua opinião ou responder a comen-
tários anteriores, enfim, o usuário ganha cada vez mais participação nos
processos de constituição dos textos na hipermídia. Ao mesmo tempo
que o usuário é consumidor, ele é coprodutor dos conteúdos midiáti-
cos. A essa natureza constitutiva contemporânea dos gêneros textuais,
Rojo e Barbosa (2015) definem “textos multimodais”. Segundo os au-
tores, “texto multimodal ou multissemiótico é aquele que recorre a mais
de uma modalidade de linguagem ou mais de um sistema de signos ou
símbolos (semiose) em sua composição” (ROJO e BARBOSA, 2015,
p.53). Rojo define multiletramentos como a capacidade de o usuário de
significar esses processos de interação com novos gêneros multimodais:
396
As aulas inclusivas e seus resultados
Os dados analisados por este artigo foram coletados de uma pes-
quisa em andamento pelo autor acerca do ensino de Língua Inglesa
para alunos com deficiência visual em contexto de ensino remoto pau-
tado no letramento crítico e nos multiletramentos. A metodologia de
pesquisa adotada é etnográfica (ANDRÉ, 2012), que permite ao pes-
quisador compreender profundamente a dinâmica das relações e inte-
rações que acontecem no contexto escolar, sendo os dados analisados
qualitativamente.
O curso de Extensão Universitária do Instituto de Linguagens da
UFMT “Inglês para Alunos com Deficiência Visual” teve início no dia
14 de março de 2022 e término em 2 de maio, com duração de 40
horas, distribuídas em 8 aulas com duração média de 2 horas, realiza-
das em plataforma virtual de videoconferência Google Meet e atividades
complementares realizadas no aplicativo de comunicação Whatsapp. O
curso teve como objetivo promover a inclusão social de pessoas com
deficiência visual no contexto de extensão universitária e recebeu matrí-
cula tanto de alunos da Universidade (2 alunos cegos), como também
alunos da comunidade externa (28 alunos cegos ou com baixa visão,
em sua maioria adultos). O tema e o conteúdo das aulas se destacam no
quadro abaixo:
AULA OBJETIVO CONTEÚDO
VOCABULAR
Aula 01 – 14/03: Desenvolver a ideia de que My name is… I am
Who are you? Where nossa identidade é baseada from… I live in…; I am
are you from? em parte do nosso nome, do blind, I have low vision,
local de onde viemos e onde I have monocular vision.
moramos.
397
Aula 03 – 28/03: Refletir as qualidades huma- I am (independent, in-
Who am I? What nas presentes em cada aluno, telligent, happy, calm,
are my qualities as a de forma a reforçar que essas active…)
person? qualidades compõem a sua I am a blind woman, a
identidade. Trazer o gênero blind man.
como aspecto qualificador
dos indivíduos na sociedade.
Aula 04 – 04/04: Demonstrar a multiplicidade Narrativas de pessoas
Who am I? What are de adjetivos e personalidades com deficiência visual
my qualities as a per- que compõe a identidade introvertidas e extro-
son? (Continuação) cega, com pessoas que se vertidas, felizes e tristes,
sentem fortes e empoderadas com enfoque nos adje-
a pessoas que se sentem mal tivos que essas pessoas
diante de sua situação. atribuem a si mesmas
Aula 05 – 11/04: Apresentar o vocabulário de Diversas modalidades
What I can do and esportes, com fim a incenti- de esportes em todos
what I think I can- var os alunos para a prática os campos, sentenças
not do. de esporte. Introduzir os autênticas de praticantes
verbos relacionados aos es- dos esportes com defi-
portes. ciência visual.
Aula 06 – 18/04: Promover a escuta de uma Verbos relacionados
What I can do and história particular sobre a aos esportes.
what I think I can- prática de esportes por um
not do. (Continua- menino cego e incentivar a
ção) reflexão sobre a vida ativa
que as pessoas cegas têm o
potencial de praticar.
Aula 07 – 18/04: My Apresentar o vocabulário de I like; I don’t like, I love,
likes and dislikes ações cotidianas, como ler, I hate.
estudar, dançar, cantar, rela-
cionando-os com os nossos
gostos e desgostos.
Aula 08 – 02/05: Resumir a tônica em torno da Revisão de todos os
Synthesis: apresentação de si. temas estudados, envol-
presenting myself. vendo a apresentação do
nome, idade, qualidades,
esportes que pratica e
coisas que gosta de rea-
lizar.
398
Houve uma frequência média de 22 alunos por aula. Os alunos
interagiram com a utilização de microfones em momentos de fala, não
só produzindo oralmente as frases com os conteúdos vocabulares apren-
didos, mas também expressando a opinião própria acerca dos assuntos,
trazendo a experiência de vida, que acrescentaram aos temas trabalha-
dos contextos reais de suas vivências. Em atividades complementares,
os alunos ouviram os podcasts produzidos pelo professor e também os
feitos em colaboração dos cursistas, responderam a questões relaciona-
das ao tema e ao conteúdo vocabular das aulas por meio de áudios no
aplicativo de celular Whatsapp, produzindo usos autênticos da lingua-
gem em Língua Inglesa.
As aulas se pautaram na metodologia comunicativa, em que os con-
ceitos e conhecimentos linguísticos são adquiridos por meio da comu-
nicação. De acordo com Figueiredo e Oliveira (2012), na Abordagem
Comunicativa, a língua que se está aprendendo é considerada como um
meio de comunicação, não somente um objeto de estudo. O objetivo
dessa abordagem é o desenvolvimento da habilidade comunicativa do
educando. Por esse motivo, é dada mais ênfase ao significado do que à
forma, aos contextos reais de uso da língua em consonância a fragmen-
tos descontextualizados. O professor que adota essa abordagem em suas
aulas, promoverá atividades interativas realizadas em duplas ou grupos,
buscará materiais que apresentam situações autênticas do cotidiano,
capacitando os alunos a interagirem socialmente com a língua-alvo.
Como destacam os autores:
399
de voz, podcast, documentos de texto com a transcrição dos podcasts e
áudio de Whatsapp.
Tendo em vista a heterogeneidade da deficiência visual, alguns alu-
nos possuíam pouca acuidade visual, mas a baixa visão ainda o per-
mitiam enxergar os slides, dessa forma, a aula foi planejada tanto para
atender ao público totalmente cego, como também aos que tinham
baixa visão. O conteúdo escrito e visual é de extrema importância para
que o aluno desenvolva as habilidades de leitura e escrita em Língua
Adicional, habilidades estas mais desafiadoras de serem desenvolvidas
pelo aluno cego em um curso online, pois ele alicerça seu aprendizado
com ênfase na escuta e na fala, sendo a leitura e escrita intermediadas
pelo sistema de escrita braille.
Levando em conta a acessibilidade aos conteúdos dos slides aos alu-
nos com baixa visão, é necessário não somente ampliar a fonte, mas
também utilizar cores que forneçam um maior contraste. Como susten-
tam Mello e Vian Júnior (2019), a cor branca sobre o fundo preto ou
vice-versa promove uma visualização mais clara das informações e são
mais acessíveis do que slides coloridos ou com cores quentes. Nesta pes-
quisa narrativa, os autores relatam a falta de inclusão em apresentações
acadêmicas, que poderiam ser solucionadas com atitudes de mudança
na linguagem utilizada e no melhor tratamento dos conteúdos em slides
projetados.
Os arquivos de áudio compartilhados concomitantemente aos sli-
des promoviam uma experiência sonora com vozes digitais convertidas
dos excertos de textos utilizados. Assim, os conteúdos foram organi-
zados na seguinte sequência: tinha-se inicialmente o slide produzido
com a imagem da pessoa de quem se tratava o excerto, que passava pelo
processo de audiodescrição pelo professor e, em seguida, havia um slide
com o excerto em fonte grande (tamanho 90), e, concomitantemente,
era reproduzido um arquivo de áudio com a leitura do excerto produ-
zida por um software online sintetizador de texto para áudio, gerando
semelhança ao que é cotidianamente ouvido pelos alunos cegos em apli-
cativos leitores de tela e pela funcionalidade talkback dos dispositivos
400
eletrônicos. Portanto, os conteúdos das aulas foram formatados e com-
partilhados com o intuito de alcançar o aprendizado de Língua Inglesa
do aluno por meio dos pressupostos dos multiletramentos, pois as aulas
se pautaram na multimodalidade da linguagem, utilizando tanto textos
verbais escritos e orais, como também textos não verbais. O aprendiza-
do, nessa perspectiva, foi construído por meio oral, auditivo e visual.
Os podcasts também se revelaram um mecanismo produtivo de
efetivação dos multiletramentos, uma vez que, ao mesmo tempo que
envolve uma construção mais elaborada de cadeias sonoras, também
permite que os próprios alunos contribuíssem para a sua produção. O
professor buscou produzir podcasts relacionados com os temas das aulas,
para que os estudantes pudessem relembrar durante a semana as estru-
turas oracionais e os conteúdos vocabulares aprendidos na aula anterior,
com vantagem da reprodução ilimitada dos arquivos. Também acom-
panhavam os podcasts as transcrições em arquivo pdf, cujo texto verbal
poderia ser estudado pelos alunos com baixa visão ou lidos por meio de
softwares leitores de tela usados pelos alunos. Outra possibilidade mais
remota seria a do aluno cego imprimir o arquivo em gráficos táteis com
uma impressora braile, prática pouco usual devido ao preço oneroso
desse equipamento e devido à praticidade que os leitores de tela dis-
põem ao usuário.
Os alunos foram incluídos no processo de produção de dois pod-
casts, em que o professor solicitou a colaboração dos alunos no envio de
áudios dos conteúdos vocabulares no aplicativo Whatsapp para serem
organizados e compartilhados com a turma. A primeira experiência foi
a produção de um arquivo de áudio que serviria para parabenizar uma
colega por seu aniversário. Os alunos construíram áudios criativos, can-
tando “happy birthday to you” e utilizando vocabulários de felicitações:
“congratulations”, “happy birthday”, além de intercalarem votos em
Língua Portuguesa para a colega. A segunda experiência foi com a cons-
trução do podcast referente às qualidades e adjetivos, em que se buscou
trazer a autopercepção dos alunos, para isso o professor solicitou para
que os alunos citassem 3 adjetivos que os qualificassem.
401
Em ambos os casos, os alunos foram chamados em chat privado
pelo Whatsapp, para que se sentissem à vontade em errar e passar pela
apreciação do professor. O Whatsapp é uma plataforma que permite o
acolhimento individualizado aos alunos quando usados para fins peda-
gógicos. Assim, o cursista teve liberdade de repetir a mesma estrutura
frasal até se sentir seguro em compartilhar com a turma, também houve
possibilidade de expor dúvidas em relação à pronúncia ou ao vocabu-
lário. Com os áudios enviados pelos alunos, o professor fazia o down-
load dos arquivos e os uniam por meio de plataforma aberta de edição
de mídias Shotcut, por meio do qual se acrescentava ao podcast uma
introdução e/ou finalização com a fala do professor e também efeitos
sonoros e trilha sonora. Por fim, o arquivo final era compartilhado no
grupo da turma, para que todos os alunos tivessem acesso ao resultado
final do esforço de cada um, trazendo a eles a posição de coprodutores
do conhecimento.
As discussões e os conteúdos abordados nas aulas também se di-
recionaram para o letramento crítico, principalmente no que tange à
transformação social e o empoderamento dos estudantes. Todos os tex-
tos trabalhados nas aulas foram retirados do blog em Língua Inglesa
“Blind New World”86, que objetiva compartilhar narrativas de pessoas
com deficiência visual, contando com mais de 150 histórias. Nessas
narrativas estão presentes questões identitárias da comunidade cega,
questões raciais, preconceito e o comportamento discriminatório da so-
ciedade, além de temas envolvendo os sucessos obtidos por pessoas com
deficiência visual e histórias de pessoas que transpassaram as dificulda-
des impostas pela sociedade excludente.
Ao trazer textos exclusivamente da comunidade de deficientes vi-
suais, o professor atua como mediador do conhecimento, mas não seu
produtor, ou seja, o conhecimento é passado de pessoas com deficiência
visual para pessoas com deficiência visual, sendo o professor um canal
de comunicação. Foi observado que essa perspectiva trouxe mais enga-
jamento e os alunos se sentiram à vontade para também expressarem
86
Disponível em: https://blindnewworld.org/blog/.
402
sua opinião, trazer relatos semelhantes, validar ou questionar o que foi
posto e contribuir criticamente para a formulação de novos conceitos.
As aulas buscaram temas que pudessem se relacionar com as vivên-
cias práticas dos alunos e contribuir para a sua formação identitária,
por exemplo, as aulas de adjetivos e esportes. Ao propor aos alunos a
autodefinição por meio de adjetivos, promove-se também uma eviden-
ciação do potencial presente em cada indivíduo e suas capacidades de
ser no mundo. Ficou evidente também o empoderamento dos alunos
com os esportes, dado que muitos deles praticavam regularmente algum
esporte, seja a natação, a corrida, o goalball ou caminhada. Na aula de
gostos e desgostos, para se trabalhar o conteúdo de verbos, os cursistas
também expuseram as suas habilidades e competências, que desconstro-
em todas as concepções equivocadas da cegueira como uma deficiência
que incapacita totalmente o indivíduo.
Segundo as perspectivas críticas, o objetivo do letramento crítico,
ao abordar textos nas aulas de língua, é investigar as ideologias e os dis-
cursos neles envolvidos, abrindo espaços para reflexão, transformação e/
ou ampliação do significado do conteúdo compartilhado, desenvolven-
do capacidade crítica e reflexiva nos alunos. Com base nessas prerroga-
tivas, foi escolhido um texto para contextualizar o conteúdo vocabular
de adjetivos, em que se narrava a trajetória de uma mulher canadense
que viaja à Índia e adota uma criança cega87. Alguns comentários foram
desencadeados do conteúdo temático:
87
Texto disponível em: https://blindnewworld.org/raising-my-blind-daughter-in-
-india/
403
(...) A mãe é bem inteligente, reflexiva, ela é uma mulher com
um coração muito bom.
Aluno M.M: É algo que faz a gente refletir, uma mãe solteira
em um país como a Índia, que a gente sabe toda essa proble-
mática que a R. colocou que existe lá, criar uma filha adotada,
uma menina cega e estimular desde pequenininha que ela seja
independente, é algo muito bacana para a gente refletir (...).
Aluna V.L: No meu ponto de vista, eu também vi que no de-
correr do tempo, construiu essa identidade da mulher, porque
uma estrangeira, chega na Índia, um país que é igual os colegas
já falou, um país preconceituoso, de muitas regras, uma estran-
geira chegar, conseguir adotar uma criança, que a gente sabe que
é um caminho muito longo para se chegar, e ainda uma criança
cega (...).
Aluna J.P: Eu acho que mostra a independência de uma mu-
lher bem resolvida que ela é, e da mesma forma ela mostra que
está criando a filha dela, ela saiu da zona de conforto dela, via-
jou para outro país (...). Assim como ela foi uma mulher inde-
pendente e bem resolvida, a sua filha também vai ser.
Aluna R.L: Parabéns, professor, gostei desse elemento subja-
cente que o professor captou no texto, a questão da indepen-
dência feminina né, a mulher não precisar de um homem para
poder seguir a vida, viver. Fonte: do autor (2022).
404
educação inclusiva, que potencializa as habilidades da filha. R.L., tam-
bém enfatiza as qualidades intelectuais e morais da personagem, trazen-
do à tona os conteúdos vocabulares adjetivais em língua portuguesa.
O aluno M.M, diferente das outras alunas que, discursivamente,
atribuíram à figura feminina materna o predicativo “mãe”, caracteri-
zou-a como “mãe solteira”, demonstrando uma percepção masculina
acerca da mulher que cuida de uma criança sem a presença paterna.
Diferentemente faz R.L, no último comentário, que enaltece a inde-
pendência da mulher como uma característica inerente à própria natu-
reza, explicitando que a mulher não necessita de um homem para viver.
A aluna J.P. traz a percepção da identidade da mulher como uma
construção, um processo que se desenvolve no decorrer de sua história,
constatação que caracteriza uma conclusão de conceitos construídos
pela aluna em seu processo de aprendizagem.
Todos esses comentários partiram do campo de análise dos pró-
prios alunos, demonstrando que eles possuem competência de análise
crítica dos textos, chegando a conceitos mais expandidos do que é pos-
to, construindo novos saberes e habilidades de forma natural, bastando
dar abertura para que eles se expressem e compartilhem suas vivências
e opiniões. O fato de essa discussão ter sido suscitada na terceira aula
nos mostra que os alunos estavam predispostos e confiantes em intera-
gir em grupo. Conclui-se que a adoção do Letramento Crítico como
abordagem das aulas de Língua Inglesa facilitou o processo de ensino
aprendizagem e teve como resultado discussões críticas que contextua-
lizaram o conteúdo.
Considerações finais
Este trabalho propôs a reflexão de que se pode alcançar aulas de
línguas mais inclusivas para alunos com deficiência visual por meio
do uso de gêneros multimodais e de uma perspectiva de Letramento
Crítico no processo de ensino-aprendizagem. Os apontamentos do ar-
tigo mostram que os alunos têm uma boa desenvoltura no processo de
405
aprendizagem quando eles se inserem em contextos sociais próprios de
sua realidade e participam ativamente na produção do conhecimento,
expressando criticamente seus posicionamentos.
O número de inscritos no curso e a frequência deles demonstram
que existe um público alvo de pessoas cegas e com baixa visão interessa-
do na oferta de cursos de Língua Inglesa, bastando somente haver opor-
tunidades de estudo sob uma perspectiva educativa inclusiva. Como
mostra a pesquisa de Figueiredo e Kato (2015), existem poucos estudos
voltados para o ensino de Língua Inglesa e ainda menos estudos volta-
dos para o ensino de jovens e adultos cegos. A Universidade, como um
espaço democrático, é um campo fértil para se trabalhar com a inclusão
e promover aberturas para que cada vez mais esse público seja atendido
e contemplado.
Referências
ANDRÉ, M. E. D. A. de. Etnografia da prática escolar. 12. ed. Campinas: Papirus,
2005.
BLIND NEW WORLD. Blind New World: Real stories, real people. 2022. Disponível
em: < https://blindnewworld.org/>. Acesso em: 20 de Jul. de 2022.
406
MANTOAN, M. T. E. Inclusão Escolar: O que é? Por quê? Como fazer? São Paulo:
Moderna, 2003.
MELLO, D.; VIAN JR, O. Como Vocês Podem Ver: (Re)pensando o Uso da Linguagem
no Cenário da Inclusão. In: JESUS, D. M. de; FURLANETO, L. S. (Orgs.) Educação
Inclusiva: ensino e formação de professores de língua. Campinas, SP: Pontes, 2019,
p 59-74.
TILIO, R. Ensino Crítico de Língua: Afinal, o que é ensinar criticamente? In: JESUS,
D. ZOLIN-VESZ, F. CARBONIERI, D. (orgs.). Perspectivas críticas no ensino de
línguas: Novos sentidos para a escola. Campinas: Pontes, 2017, p. 19-31.
407
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
408
Moïse’s representations from people that knew him, most of them migrants
as he was. Moïse is narrated as a kind, hardworking, and persistent man. In
the discursive analysis of those utterances, we discuss representations that (re)
produce and create another Moïse to the society, through the narratives of
an “other” who is familiar. Thus, we intend to contribute to the studies of
vulnerable identities and discourse, in the intertwining with the studies of
decoloniality, race and migratory processes.
KEYWORDS: Migrant Identities. Discourse Studies. Media Narratives.
Decoloniality.
Introdução
Iniciamos este artigo partindo do pressuposto de que a língua(gem)
se realiza nas práticas sociais e, dessa forma, possui intrínseca relação
com a constituição das identidades. Em decorrência desse posiciona-
mento teórico, a Linguística Aplicada de onde falamos não cabe no
restrito espaço da disciplinaridade e convoca uma existência de diálogo
com áreas diversas do conhecimento, principalmente com as ciências
sociais, pois suas contribuições se dão também na forma de entender
a constituição do sujeito que fala, do sujeito que está (ou não) inseri-
do numa ordem do discurso e, ainda, considerando sua imersão nas
relações de poder e, consequentemente, colocando em evidência as de-
sigualdades sociais e discursivas e as epistemologias consolidadas unila-
teralmente pelos grupos hegemônicos.
Neste estudo, que advém de uma pesquisa institucional realizada
sobre identidades de minorias migrantes, colocamo-nos, assim, em po-
sição crítica à compreensão de se conceber o conhecimento de forma
única e igualmente distribuída, quando, na verdade, os sujeitos, agentes
na produção de conhecimento, não estão numa relação de equidade
social e discursiva. Assim, questionar as bases epistemológicas do co-
nhecimento também é uma forma de produzir saberes em Linguística
Aplicada, trazendo à discussão a possibilidade de uma LA indiscipli-
nar (MOITA LOPES, 2006), transgressiva (PENNYCOOK, 2006) e
constituída na ecologia de saberes que extrapolam o pensamento abissal
409
(SANTOS, 2007, p.71), caracterizado, segundo o autor, como um pen-
samento moderno ocidental que se quer único, por estabelecer:
410
migrante cabe o “lado” de fora da cultura e da língua nacional, o lugar
da estranheza, do estrangeiro.
A partir dessa representação, percebemos que a visão totalizante
de um só povo, de uma só língua, permeia o imaginário dos que ha-
bitam um espaço (país) idealmente unificado. Assim, o migrante não
é só aquele que põe em xeque a unidade identitária imaginada, mas
também aquele que “invade” um espaço que parecia ter um “dono” (o
colonizador), dando a ele matizes diversas, outras paisagens humanas e
culturais. Nesse espaço, materializa-se o medo, a aversão à diferença (ét-
nica, religiosa, cultural, linguística, social, de gênero, entre outras), pois
o migrante revela a estrangeiridade que também nos habita enquanto
povo híbrido e miscigenado, mas que é silenciada pelo discurso da na-
turalização do ocidental branco e “puro” que nos foi imposta pela co-
lonialidade, sem questionamento de nossas origens mestiças e diversas.
É desse “outro” que falaremos, porque dele tiramos a voz e, muitas
vezes, a vida. Dele tiramos a possibilidade de (re)existência. Nesse ar-
tigo, tomamos a licença de falar da migração daqueles que chegam ao
Brasil em situação de vulnerabilidade, por meio de narrativas sobre o re-
fugiado congolês Moïse Mugenyi Kabagambe. Temos dele apenas algu-
mas notícias, “um punhado de palavras” de uma existência breve, como
diria Foucault (2003, p.203), existência essa condicionada - como a
da minoria que ele representa - ao tipo de hospitalidade/hostilidade
(DERRIDA, 2000) que o Brasil lhe oferece.
411
que foi vitimizado pela condição vulnerável em que vivia e que outros
migrantes também vivem no Brasil, particularmente os negros, o que
de fato justifica a particularidade desse estudo dentro do grande tema
migração. Ademais, consideramos, ainda, que a interseccionalidade
(AKOTIRENE, 2018) entre migração e raça também se presentifica
nesse caso, no que diz respeito ao acolhimento dos migrantes, eviden-
ciada pelo fato de que os que estão em situação mais precária são, na
maioria, negros ou descendentes de indígenas. O termo interseccionali-
dade que Akotirene (2018, p. 13) traz de Crenshaw, remete à “maneira
sensível de pensar a identidade e sua relação com o poder”, o que tam-
bém não pode ser descartado na relação raça e migração.
Apoiando-nos em Mignolo (2008, p.243), percebemos, mais uma
vez, que a lógica da colonialidade persiste na contemporaneidade e
mantém, firmemente, “elementos fundamentais da matriz colonial de
poder”, como o controle dos corpos no agenciamento da economia ca-
pitalista, que explora as massas humanas desprivilegiadas, condenan-
do-as a um descarte humano. Esses aspectos retomam historicamente
os processos de dominação e colonização sobre territórios invadidos e
povos nativos, e esclarecem as raízes racistas e patriarcais das sociedades
hegemônicas, que continuam subjugando o desfavorecido, o diferente,
o que não pensa igual, aquele que não aceitou ser “salvo” pela civilização
dominante – o que revela ainda raízes religiosas nesse discurso.
Nesse contexto, pensamos, ainda, na construção das identidades
na relação com a discursividade, posto que somos pelo olhar do outro,
pela forma como o outro nos constrói narrativamente. Usamos o ter-
mo identidade no plural, pois, como processo social em construção, as
identidades estão sempre em transformação, amparadas nas formações
discursivas que as validam, as reproduzem e que constituem um imagi-
nário sobre elas, a partir do contexto histórico-social em que se inserem
as relações de poder. Pensando nas identidades pelos estudos filosófi-
cos, Appiah (2018, p.18) afirma que elas funcionam como “rótulos”,
determinando como as pessoas e grupos se veem e manifestam suas
representações de outros. De alguma forma, o autor coloca em questão
412
a formação das identidades na relação com as diferenças entre grupos,
que podem antagonizar e estigmatizar os mais vulneráveis, cujas repre-
sentações são menos legitimadas social e culturalmente. Nesse aspecto,
a identidade está sempre articulada à memória, posto que esta:
413
Refletindo sobre os diversos meios e os discursos pelos quais as re-
presentações sociais são (re)produzidas e circulam, inferimos que certas
imagens do migrante, particularmente do vulnerável, estão atreladas à
memória social construída dele pelos brasileiros, imagens hegemônicas
compartilhadas que passam a ter um valor de verdade. Questionamos,
então, esta estabilização de sentidos, para fazer emergir outros efeitos de
sentido, pois sabemos que, ainda que a mídia tenha trazido vozes di-
versas para falar do sujeito congolês, não podemos perder de vista que,
ao expor e reproduzir exaustivamente as imagens do acontecimento de
seu assassinato, contribuiu também para espetacularizá-lo e, de certa
forma, como aponta Courtine (2011, p.150-151), anestesiar o olhar do
espectador, de modo a torná-lo mais distante do sofrimento do outro,
tornando banal algo que não o é.
A violência exacerbada sobre um jovem negro refugiado nos faz
pensar sobre o que Arendt (1999) descreveu como a banalização do
mal. Recordamos de seu estudo, pois a defesa indefensável dos acusa-
dos do crime do congolês nos remete à frieza do nazista Eichmman,
que não se sentia culpado pelos crimes dos quais foi executor, já que
não achava que “fazia algo de errado”, ao cumprir ordens superiores do
poder estatal.
A tortura e morte gratuitas de Moïse, no entanto, nos alertam para
a violência que não é vista como violência, seja ela física, moral ou
psicológica. Se, no Rio de Janeiro, os acusados não cumpriam o papel
do Estado como alegara Eichmman (ARENDT, 1999) em seu depoi-
mento, os assassinos aqui se sentiam no direito de aplicar um “corre-
tivo” no rapaz, legitimando a violência como prática de uma justiça
paralela, feita com as próprias mãos, algo que traz à nossa memória um
certo discurso de exterminação dos vulneráveis, pobres e necessitados
em nome do benefício da maioria, que, na verdade, é hegemônica, mas
não maioria. Assim, os espancadores viam em Moïse um sujeito de “se-
gunda classe” ou, até mesmo, um “ser abjeto”, cuja existência, segundo
Mbembe (2018, p.20), é “um atentado contra minha vida, [...] uma
ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja eliminação biofísica reforçaria
414
meu potencial de vida e segurança”. O processo de desumanização cau-
sado pela organização administrativo-econômica do mundo ocidental
facilitou “estereótipos racistas de classe [à medida em que comparou] ‘o
povo apátrida’ do mundo industrial aos ‘selvagens’ do mundo colonial”
(MBEMBE, 2018, p.21).
Mbembe (2018) confere aos mecanismos de funcionamento do
necropoder ações de punição sobre o corpo vulnerável, daquele que
tomamos como “inimigo”, trazendo para a contemporaneidade os
dispositivos de tortura e terror medievais. Essa articulação do poder
disciplinar e soberano nos parece presente na tortura realizada em
Moïse: a necropolítica comandada, nesse caso, por aqueles que tentam
fazer justiça pelas próprias mãos, talvez porque nela também não acre-
ditem como instituição de garantia de direitos.
Trazemos para dialogar, com a temática da alteridade, um conceito
de Butler (2011) que nos parece ressoar neste trabalho: a rostidade.
Butler vai buscar em Levinas esse conceito. O autor relaciona a preca-
riedade do outro a uma ameaça a nosso eu narcísico. O rosto seria o
lugar que as palavras não conseguem apreender, mas onde as vivências
estão impressas. Fugimos desse encontro ameaçador e desequilibrante
de nossa pseudossubjetividade segura e unificada. O rosto marca, assim,
“a extrema precariedade do outro” (BUTLER, 2011, p.18), que não
quero ver em mim mesmo. É assim que fujo do rosto do Outro (do
estrangeiro, do negro, do pobre), que pode me convocar para tomar a
defesa dele, pois “[r]esponder ao rosto, entender seu significado quer
dizer acordar para aquilo que é precário em outra vida ou, antes, àquilo
que é precário à vida em si mesma (BUTLER, 2011, p.19), portanto,
à minha também. Aniquilar o outro em mim, “matá-lo” – de fato ou
simbolicamente – seria, então, um modo de fugir à responsabilidade
ética sobre o Outro e fugir à minha precariedade também. Infligindo a
violência, os agressores do migrante lançam mão do argumento que o
fazem “pelo bem de muitos”, quando na verdade utilizam-se dela para
suprir seus próprios sentimentos agressivos e a própria violência simbó-
lica e real que atravessam suas vidas também precárias e, muitas vezes,
415
indigentes. Como atender, então, ao apelo do rosto do Outro? Melhor
eliminá-lo... reduzi-lo a um não-sujeito, a um objeto abjeto.
416
emergir, em gestos de interpretação, representações correntes de mi-
grantes e brasileiros, as quais traçam efeitos de sentido sobre a rela-
ção entre esses grupos, denunciando também as imagens estabilizadas
e generalizantes do brasileiro como um povo amigável, hospedeiro e
cordial.
417
Moïse não está aqui para nos dizer o que aconteceu, mas o que
seus algozes afirmam é que ele estaria transtornado naquele dia, bêbado
(embora nenhum laudo técnico tenha comprovado), com problemas
(que ninguém soube dizer quais!) e queria roubar bebidas do quiosque
em que trabalhava. Tal imaginário se encaixa ao de um jovem vil, um
“infame”, o que incide sobre as representações que se fazem, muito
comumente, de migrantes, negros e pobres. Por meio desse imaginário
quer-se justificar, discursivamente, o “castigo extremo” ao jovem – por
se “comportar mal” – e a morte como uma “fatalidade”, pois não teria
sido intencional, embora a punição fosse “necessária” aos olhos dos
criminosos.
Trazemos, então, para essa análise, recortes discursivos selecionados
de mídias digitais, de pessoas que conheciam Moïse, de modo a cons-
truir um imaginário desse sujeito, desprendido do olhar enviesado dos
que o assassinaram.
418
R2 - Ivana: Que vergonha! Meu filho que amava o Brasil. Por que eles
mataram o meu filho? Moïse tinha todos os amigos brasileiros. Aí vêm
os brasileiros e matam o meu filho. [...] Olha a foto do meu filho, meu
bebezinho. Era um menino bom. Era um menino bom. Era um me-
nino bom... Por quê? Por que ele era pretinho? Negro? Eles mataram o
meu filho porque ele era negro, porque era africano. [...] Ele era traba-
lhador e muito honesto. Ganhava pouco, mas era dele. [...] E reclama-
va, dizendo que ganhava menos que os colegas, [...] Mataram ele como
um bicho. [...] Eu vi na televisão que, aqui no Brasil, se um cachorro
morrer, há várias manifestações. Então, eu quero que todo mundo me
ajude com justiça.
Fonte: SOUZA, R. N. de. Caso Moïse: ‘Era uma facada no meu coração’, diz mãe de
congolês morto em quiosque após ver o vídeo do crime. Extra Globo, 02 fev. 2022.
Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/caso-moise-era-uma-facada-
no-meu-coracao-diz-mae-de-congoles-morto-em-quiosque-apos-ver-video-do-crime-
rv1-1-25377357.html. Acesso em: 18 abr. 2022.
419
em seguida, dada por ela mesma: a razão era por ele ser negro e africa-
no, o que indica uma interseccionalidade entre raça e origem, o que o
fez alvo de uma ação tão cruel. Num misto de indignação e tristeza, ela
mostra as fotos do filho: um filho que tem “rosto” para ela; um filho
que trabalhava, um filho querido para ela. Então, fala mais uma vez
pelo filho, que reclamava que ganhava menos que os “colegas” (prova-
velmente brasileiros que também trabalhavam no quiosque como ele,
mas que, ainda assim, ganhavam mais que o rapaz), o que revela a típica
exploração a que os migrantes são submetidos.
Passando para o depoimento de um dos irmãos de Moïse, Samir
Kabamgabe, dado à TV Record para o programa Domingo Espetacular,
observamos muitas semelhanças entre os dizeres dele e de sua mãe, mar-
cados pela desilusão e revolta.
88
GANDRA, A. Família de Moïse recebe concessão de quiosque onde congolês foi
420
irmão não veio do coração de todo o povo brasileiro [...] queremos
agradecer a todos pela solidariedade”. Afinal, Samir continua a viver no
Brasil, dependendo da “bondade” dos brasileiros para aceitá-lo e a sua
família, mesmo depois do ocorrido. Seria essa, então, uma marca no
discurso de subjugação à cultura do outro, às suas regras e às condições
impostas ao migrante para continuar no Brasil? Provavelmente, sim.
Outros que conheciam Moïse sempre o retratam com característi-
cas pessoais positivas e de ser trabalhador. Talvez isso seja reforçado nos
dizeres como um modo de se fugir de um estereótipo historicamente
atribuído aos negros no Brasil pela classe hegemônica, desde os primór-
dios da escravização. No dizer de um amigo do jovem, permeado por
um discurso que ressoa uma certa religiosidade (ganhar o pão de cada
dia), o trabalho (ou subtrabalho) é o que faz com que o Brasil acolha
as pessoas migrantes, fazendo-as cumprir, no entanto, as obrigações de
qualquer cidadão de direito (a gente paga água, luz). O cuidado e o tra-
tamento dados a elas, porém, não são os mesmos, inclusive no que diz
respeito à justiça. O depoimento foi colhido em mídia digital (Esquerda
Diário), mas foi dado primeiramente à rede SBT:
421
Observamos que o rapaz reclama do “país que o acolheu”, mas que
ele, por um lapso de linguagem, diz o “escolheu” (efeito de sentido que
discutiremos no próximo recorte, por não se tratar propriamente de
um acolhimento). Ele qualifica o Brasil como uma “segunda mãe”, o
que destoa da raiz da palavra “pátria”, uma vez que a associamos, numa
cadeia parafrástica, àquilo que se refere ao pai, no caso, o Brasil. Aqui
percebemos a contradição da pátria que hospeda o migrante, o acolhe e,
ao mesmo tempo, lhe é hostil, pois “o mata, mesmo trabalhando” para
ela. Clamar por justiça é o que todos os amigos e familiares pedem; mas
o que questionamos é se a justiça vale para todos, pois seria Moïse um
cidadão de direito, mesmo tendo conquistado sua naturalização por seu
status de fugitivo?
Primo de Moïse, Yannick Iluanga Kamanda, de 33 anos, narra a
crueldade do crime à Revista Isto É, cujas imagens foram divulgadas
exaustivamente pelas TVs, por meio das filmagens realizadas no quios-
que onde ocorreu o crime.
422
abjeto. Mais adiante na entrevista, Kamanda comenta o que pudemos
também verificar nas filmagens: após a agressão e morte de Moïse, os
funcionários continuaram a trabalhar e a servir. Dessa forma, conclu-
ímos que o jovem negro foi destituído de toda sua humanidade e seus
agressores imputaram-lhe o valor de vida zoé (AGAMBEN, 2002), vida
selvagem, nua, da qual se elimina a vida “qualificada e política”, segun-
do o filósofo.
Para finalizar, trazemos trechos da fala do advogado da OAB, que
assumiu o caso de Moïse:
Nesse dizer, Mondengo aparece como uma voz que ratifica e legi-
tima a situação vulnerável a que os migrantes, principalmente negros,
têm de se submeter. As imagens negativas atribuídas ao jovem assassina-
do seriam uma forma de colocar em dúvida seu caráter, apesar de que,
em todos os recortes de depoimentos trazidos até aqui, Moïse sempre
aparece associado a imagens positivas, de um rapaz trabalhador, hones-
to e querido. Seria seu “mal” desejar ser respeitado pelo outro, brasi-
leiro? Ter seus direitos acolhidos? A situação de sobrevivência a duras
penas, recebendo menos que os outros, sem direitos trabalhistas, tornou
Moïse alvo da “fatalidade” que atormenta a população pobre e precari-
zada. População que, mesmo durante a pandemia de COVID, teve de
se expor à doença, ao excesso de trabalho, à precarização de condições
423
de saúde para sobreviver. Moïse trabalhava para quem podia se dar ao
luxo de ir à praia, quando muitos morriam, esperando uma vaga para
tratamento num hospital público.
Assim, o advogado afirma que há uma tentativa de imputar à víti-
ma a própria culpa do ato, invertendo a situação de forma escandalosa,
a não ser que ser migrante, negro e pobre seja a justificativa para se
ser “assassinado” numa sociedade desigual e indiferente às necessidades
alheias. Segundo o irmão de Moïse, ainda em reportagem dada ao SBT,
“ele nunca foi de desistir quando está certo” e essa qualidade talvez te-
nha sido o “defeito” de Moïse: acreditar numa sociedade brasileira justa
para todos e cobrar dela esses direitos.
Considerações finais
Procuramos, nesta discussão, focar discursivamente representações
de Moïse, articulando os dizeres de vários locutores que o conheciam,
o que permite traçar um perfil do jovem migrante diferente dos que os
acusados tentaram construir em suas narrativas dadas à polícia e que
foram divulgadas em mídias digitais diversas. O assassinato bárbaro de
Moïse revela um olhar de denúncia contra preconceitos que o coloca-
vam como um alvo fácil de ataque – o fato de ser negro, pobre e refu-
giado –, pois o estrangeiro é quem precisa se submeter a condições mais
severas para se “hospedar” e viver no Brasil. Dessa forma, a resistência
ou a não submissão do “estrangeiro” ao outro, quando não se sujeita
passivamente às situações precárias de trabalho e de vida, parece trazer
um certo mal-estar ao brasileiro, que se sente mais cidadão, mais pleno
de direitos do que qualquer migrante vulnerável. Assim, o congolês
foi mais um sujeito sem fama, cuja narrativa de uma vida “ordinária”
apareceu nas mídias por conta da infâmia de sua morte. Infelizmente,
Moïse teve sua vida nua e invisível tornada famosa só na morte ou,
como diria Agamben (2002, p.93), “sua vida humana [foi] exposta a
uma matabilidade incondicionada, [que] vem a ser incluída na ordem
política”.
424
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique
Burigo, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
APPIAH, K. A. In SALLUM Jr., B. et al. (Org.). Identidades. São Paulo: EDUSP, 2018.
p. 46-66.
FOUCAULT, M. A vida dos homens infames. Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro:
Editora Forense Universitária, 2003, p.203-222.
MOITA LOPES, L. P. (org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. SP: Parábola,
2006.
SANTOS, B. de S. Para além do pensamento abissal. Novos Estudos CEBRAP 79, nov
2009, pp.71-94.
425
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
426
discentes em ações coletivas e em práticas de linguagem que podem promover
mudanças sociais.
PALAVRAS-CHAVE: Argumentação Prática. Autonomia. Criticidade.
Emancipação. Práticas de letramento.
427
1. Introdução
Esta produção decorre de estudos realizados em duas pesquisas de
doutoramento, que estão sendo desenvolvidas na Universidade Estadual
de Santa Cruz (UESC), no Programa de Pós-Graduação em Letras:
Linguagens e Representações (PPGL-LR), em Ilhéus/Ba. As mesmas
discutem como o ensino da argumentação, numa perspectiva eman-
cipadora, pode contribuir para a autonomia crítica, política e ativa de
educandas e educandos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), sob a
égide da proposta pedagógica freireana (FREIRE; 1996). Objetivamos,
precipuamente, proporcionar uma formação específica voltada para o
desenvolvimento de práticas sociais argumentativas, as quais podem ser
mobilizadas em diferentes contextos situacionais.
Para isto, apoiamo-nos em estudos da argumentação que primam
por procedimentos de ensino-aprendizagem, pois consideramos ser ne-
cessário organizar propostas didático-pedagógicas que estejam apoiadas
em concepções alinhadas ao caráter crítico, autônomo e emancipató-
rio. Uma atividade custosa que requer dos profissionais da educação
compromisso, rigorosidade metódica e leitura da realidade vigente
(FREIRE, 1996), com vistas a desenvolver práticas escolares marcadas
pela multidimensionalidade da argumentação (GRÁCIO, 2013) e pela
abertura ao diálogo, na busca por formar educandas e educandos ativos
e atuantes frente às exigências da sociedade contemporânea.
Nesta perspectiva, o ensino de argumentação pode oportunizar aos
educandos e às educandas a refletirem e conscientizarem-se sobre a sua
própria condição humana enquanto seres sócio-históricos e políticos, a
partir da construção de saberes acerca da argumentação sob o lastro de
uma concepção pedagógica que concebe “a educação como prática da
liberdade” (FREIRE, 1987, p. 05). Assim, podemos conceber a argu-
mentação como um ato crítico-político (GRÁCIO, 2016) que orienta
os sujeitos a desenvolverem os mais variados papéis sociais enquanto
atuam argumentativamente em situações específicas de comunicação,
com vistas a promover uma argumentação prática (GONÇALVES-
SEGUNDO, 2021). Logo, uma prática social linguística direcionada a
428
resolução de problemas da vida cotidiana. Dessa maneira, assumimos,
ainda, que a argumentação, associada à tomada de decisões e às práticas
de letramento, promove o engajamento dos discentes em ações coletivas
e em práticas de linguagem que podem promover mudanças sociais.
Pensando assim, propomos um diálogo entre a Pedagogia críti-
ca freireana (FREIRE, 1986); no que tange aos princípios para uma
educação libertadora, pois defendemos que este marco teórico oferece
subsídios necessários para um ensino transformador de realidades so-
ciais, em alinhamento ao que apregoa a perspectiva do Letramento crí-
tico (CASSANY, 2006; KLEIMAN, 2008; CASSANY e CASTELLÀ,
2010), pois acreditamos que estes estudos contribuem para a realização
da leitura crítica de mundo, em articulação com o desenvolvimento de
práticas sociais de linguagem, marcadas pela argumentação. Por conse-
guinte, partimos do pressuposto de que o ensino da argumentação deva
partir de situações concretas de comunicação, mobilizando importantes
elementos na interação discursivo-argumentativa, para que, em diálo-
go com a perspectiva interacional da argumentação (PLANTIN, 2008;
GRÁCIO, 2016), seja possível ampliar as possibilidades de tratamento
dos objetos de conhecimento, de análise de pontos de vista variados e
de participação social.
Para refletir sobre esses e outros aspectos, estruturamos nossas re-
flexões em duas partes. Na primeira parte, dialogamos sobre a contri-
buição da concepção emancipatória do ensino da argumentação, com
base nos estudos da Pedagogia crítica de Paulo Freire (1987; 1996), do
Letramento crítico (CASSANY, 2006; KLEIMAN, 2008; CASSANY
e CASTELLÀ, 2010) e da Argumentação na interação (PLANTIN,
2008; GRÁCIO, 2016), apresentando, ainda, uma breve discussão
acerca da argumentação enquanto fenômeno linguístico, baseando-nos
na concepção da Retórica, da Nova Retórica e da Interação. Na segunda
e última parte, apresentamos breves discussões acerca da Educação de
Jovens e Adultos, caracterizando-a como uma modalidade de ensino em
articulação a práticas sociais de letramentos, voltadas para a atividade
argumentativa. Finalizando, seguem-se as nossas referências.
429
2. Dialogando com Pedagogia crítica, Letramento crítico e
Argumentação
Defendemos a ideia de que o ensino da argumentação, pautado em
bases emancipatórias, pode contribuir para uma emancipação crítica,
política, social e ativa de sujeitos inseridos em processos de subordina-
ção nas mais variadas situações comunicacionais. Isso porque esta con-
cepção de ensino oportuniza os educandos e as educandas a refletirem
e conscientizarem-se sobre a sua própria condição humana enquanto
seres sócio-históricos e políticos, a partir da construção de saberes acer-
ca da argumentação sob o lastro de uma concepção pedagógica que
concebe “a educação como prática da liberdade” (FREIRE, 1987, p.
05). Nessa vertente, podemos conceber a argumentação como um ato
crítico-político (GRÁCIO, 2016) que orienta os sujeitos – educandos e
educandas – a desenvolverem os mais variados papéis sociais enquanto
atuam argumentativamente em situações específicas de comunicação,
com vistas a promover uma argumentação prática (GONÇALVES-
SEGUNDO, 2021), a qual é direcionada a resolução de problemas da
vida cotidiana.
Para tanto, faz-se necessário apresentar algumas considerações acer-
ca desse fenômeno linguístico, social, discursivo, dinâmico e intera-
cional que compreendemos por argumentação. Inicialmente, devemos
destacar que desde os estudos aristotélicos que este conceito vem sofren-
do diferentes conceituações conforme a concepção teórica adotada em
decorrência da túnica posta sob a argumentação como objeto de estu-
do. A retórica dos antigos, por exemplo, deu visibilidade aos argumen-
tos lógicos como parte importante dos raciocínios dialéticos. Todavia,
tal reconhecimento, apesar de ser valorizado por pensadores latinos e
medievais, foi bastante questionado a partir do Renascimento e ficou
por um tempo esquecido, sendo revitalizados a partir dos estudos de
Perelman e Olbrechts-Tyteca, principalmente com a publicação da obra
Tratado da Argumentação, publicada em 1958.
Com a “Nova Retórica”, expressão que reúne as ideias desses auto-
res e cunhou um modo de retomá-las em diferentes pesquisas, ocorreu
430
o desalinhamento da ideia da argumentação, por meio da aplicação de
mecanismos lógicos ou estéreis, que poderiam ter como objetivo final
a manipulação unilateral de pessoas ou ideias. Com isso, os autores
colocaram em debate o assentimento do outro diante de uma discussão
de ideias e propuseram entender esse processo não limitado à aceitação,
mas como um processo argumentativo de cooperação, em que o outro
é levado a considerar o ponto de vista da doxa de modo racional e não
violento. Essa maneira de ver possibilitou retomar os estudos retóricos
na contemporaneidade e criar bases para a configuração de outras pers-
pectivas de estudos.
Numa perspectiva interacional, Plantin (2008) concebe a argu-
mentação a partir de uma situação específica de comunicação e de-
fende a ideia de que a argumentação somente ocorre quando os atores
argumentativos se propõem a desenvolver os atos argumentativos de:
propor, opor-se e duvidar. Essa situação é definida por Plantin (2008, p.
64) “pelo desenvolvimento e pelo confronto de pontos de vista em con-
tradição, em resposta a uma mesma pergunta”, ou seja, a uma mesma
questão argumentativa, que suscita, ao menos, duas respostas distintas,
dois pontos de vista antagônicos, inserindo a argumentação numa pers-
pectiva interacional, dialogada e dialógica.
Assim, Plantin (2008) desenvolve sua concepção teórica por meio
do modelo dialogal da argumentação, inspirando-se nos modelos dialo-
gais, cuja tradição foi desenvolvida inicialmente por Hamblin (1970).
Conforme o autor (PLANTIN, 2008, p. 65), tais modelos eram apre-
sentados tendo por perspectiva a lógica do diálogo como resposta à
“insatisfação decorrente dos modelos puramente monologais da argu-
mentação que surgiu pelo menos desde 1980”. Assim, o autor ressalta o
aspecto principal da atividade argumentativa que é a análise da articula-
ção de dois discursos divergentes, caracterizando a argumentação como
uma atividade interativa e dialógica, portanto, não monológica.
Na mesma esteira dos estudos de Plantin, Grácio (2016) compre-
ende a argumentação a partir de uma perspectiva multidimensional
que rompe com a ideia da argumentação como prática imperativa e
431
impositivista. Os estudos desenvolvidos por este pesquisador têm mo-
tivação de ordem pedagógica relacionada ao ensino da argumentação
acerca das técnicas e certos esquemas argumentativos que ficavam além
das expectativas dos alunos, visto que muitos apresentavam dificulda-
des não de construírem, de analisarem textos ou discursos argumenta-
dos, mas de serem postos à prova em situações concretas de confronto
oposicional.
Neste alinhamento, Grácio (2016) entende que a argumentação
é um acontecimento de interação social. Segundo esse estudioso, a ar-
gumentação “está na interação entendida como crítica do discurso de
um pelo discurso do outro” (GRÁCIO, 2016, p. 15). Assim, podemos
repensar as práticas argumentativas a partir de uma visão holística e
descritiva do processo argumentativo a partir de uma dada situação de
argumentação que, para Grácio, “implica a polarização num assunto
em questão resultante de um díptico argumentativo” (GRÁCIO, 2016,
p. 28), que desencadeado pelos discursos antagônicos em torno de uma
questão. De acordo com autor, a base da argumentação está na inte-
ração; e se encontra numa situação de argumentação caracterizada (1)
pela existência de uma oposição, (2) pela alternância de turnos de pala-
vras, polarizados num assunto em questão considerando as intervenções
dos participantes e (3) uma possível progressão para além do díptico
argumentativo inicial em que é visível a interdependência discursiva.
Preocupado com as (Im)possibilidades de ensinar a argumentação
na escola, Piris (2020, p. 32) salienta que a escola é uma instituição
que está submetida a coerções impostas pelos modos de produção da
economia, “constituída para domesticar – pela ideologia e/ou repres-
são – os sujeitos para servir somente como mão de obra para o siste-
ma”. Pensando assim, torna-se ainda mais urgente rompermos com a
dicotomia entre o poderio mantenedor da escola e sua função social de
formar cidadãos pensantes e críticos de sua realidade, tal como sugere
Freire (1987 [1970], p. 38) ao defender que é preciso a “reflexão e ação
dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela é impossível a
superação da contradição opressor-oprimido”.
432
Nessa mesma esteira, Piris (2021) enfatiza a necessidade de se pen-
sar o ensino de argumentação articulado ao desenvolvimento de práti-
cas sociais, para que assim seu ensino seja de fato efetivado, pois, nessa
perspectiva, esse ensino se distancia de abordagens puramente linguís-
tica ou retórica. Nesse bojo, as aulas voltadas para o ensino de argu-
mentação devem ser planejadas com vistas a permitir que educandas e
educandos realizem o ato de argumentar quer seja para construir novos
conhecimentos ou para tomar uma decisão, visando realizar uma inter-
venção social. Para tanto, julgamos ser necessário que tal planejamen-
to deva contemplar o desenvolvimento das capacidades argumentati-
vas necessárias para a realização desses atos, conforme sugere Azevedo
(2016). Assim, poderíamos propor um repensar sobre as abordagens
das atividades didáticas em torno do ensino de argumentação, de ma-
neira que o professor possa tornar a escola um local para realização de
situações argumentativas concretas, por meio das quais os estudantes
possam pensar e discutir sobre sua própria condição, ao vislumbrar a
argumentação como prática social ativa de linguagem.
Partiremos, então, da noção de prática social de linguagem como
vem sendo discutida por autores como Geraldi (2006), Cassany (2006)
e Kleiman (2008). Dentre esses, destacamos algumas reflexões desen-
volvidas por Geraldi (2006) por este autor defender a ideia de que o pla-
nejamento do ensino de português deve articular atividades de reflexão
epilinguística às práticas de leitura e produção textual oral ou escrita em
uma situação concreta de interação. Essa noção coaduna com os pressu-
postos das perspectivas interacional conforme Plantin (2008) e Grácio
(2016); os quais defendem que a argumentação ocorre na interação
entre sujeitos e entre os elementos constituintes de uma situação argu-
mentativa. Nessas abordagens, a argumentação é concebida a partir de
uma situação concreta de comunicação; e vista como um acontecimen-
to interacional e discursivo. Assim, está no seio das diversas situações
argumentativas com que o sujeito se vê inserido, mediadas pelos usos
que se faz da linguagem em suas práticas cotidianas. Para Schneuwly
e Dolz (2004 [1999]), esses usos estão relacionados às práticas sociais
433
gerais e específicas, haja vista que a linguagem é mediadora das dimen-
sões particulares do seu próprio funcionamento, como também de suas
práticas, distinguindo àquelas que são desenvolvidas na escola das que
são desenvolvidas fora dela.
Por esse encaminhar, é possível vislumbrar um trabalho com a ar-
gumentação que relacione o desenvolvimento de práticas escolares à vi-
vência dos educandos e das educandas aos objetivos específicos de cada
situação comunicativa. Em se tratando dos saberes de matriz escolar
e os da experiência vivida sobre a argumentação, Paulo Freire (1997)
enfatiza que “ensinar exige respeito aos saberes dos educandos” e “exige
criticidade”, sugerindo uma articulação entre os saberes da experiência
social e os de matriz curricular de forma crítica e transformadora, cuja
tese central é a de que o ensino deve partir dos saberes da vida do estu-
dante para serem ressignificados com o saber científico.
434
2005, p. 118), visando às múltiplas necessidades formativas para aten-
der ao presente e ao futuro, indo além da compensação da educação bá-
sica não adquirida no tempo em que estiveram na escola (DI PIERRO
et al., 2001).
Gradativamente, a EJA passou de uma oportunidade de escolari-
zação daqueles que nunca haviam adentrado às salas de aula, em sua
maioria das camadas populares, transpondo o caráter elitista de alguns
poucos privilegiados com acesso aos estudos por meio da ampliação
da oferta das vagas no ensino público de nível fundamental, para um
trabalho que se amplia para uma nova modalidade que atende a uma
população excluída educacionalmente, indo além dos que jamais fo-
ram à escola, mas assumindo os desafios deixados pela má qualidade da
educação tendo que suplantar as aprendizagens insuficientes da leitura,
da escrita e do cálculo, tipificado como analfabetismo funcional, para
que esta parcela da população excluída possa interagir da vida política,
econômica e cultural ao longo de sua vida. Assim, para os estudantes
de camadas populares, a escola assume a legitimidade de garantir ins-
trumentos necessários à luta contra as desigualdades sociais, sendo os
privilégios distribuídos entre todos sem distinção, o que a torna mais
importante do que para as classes privilegiadas (SOARES, 2017).
Apesar de termos em vigência políticas públicas que vislumbram um
retorno a práticas extremamente tradicionais de ensino como o Decreto
nº 9.765, de 11 de abril de 2019, que institui a Política Nacional de
Alfabetização (PNA), que enfatiza aos seguintes componentes de ensino
para a alfabetização: a) consciência fonêmica; b) instrução fônica siste-
mática; c) fluência em leitura oral; d) desenvolvimento de vocabulário;
e) compreensão de textos; e f ) produção de escrita; isto é, há um visível
enfoque no sistema fônico e em práticas descontextualizadas de leitura
e escrita. Seguimos com uma abordagem pautada nas contribuições de
Paulo Freire (1999) que acabaram por abalaram os modelos de alfa-
betização contestando o modelo “bancário” de ensino trabalhado nas
campanhas de alfabetização no Terceiro Mundo e que deu abertura para
uma abordagem que parte da conscientização do estudante em relação
às problemáticas sociais em que está implicado.
435
Indo ao encontro das ideias de Freire, Kleiman (2014, p. 19) define
letramento “[...] como um conjunto de práticas sociais que usam a es-
crita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos
específicos para objetivos específicos”. Posteriormente, a mesma autora
declara entender o letramento “[...] como as práticas e eventos relacio-
nados com uso, função e impacto social da escrita”. Essa perspectiva
também é defendida por Soares (2002, p. 144) que reitera a posição
indicando que esse conceito tem relação com as “[...] práticas sociais de
leitura e escrita e os eventos em que essas práticas são postas em ação,
bem como as consequências delas sobre a sociedade”. Ainda de acordo
com Kleiman, as práticas escolares, que antes determinavam o parâme-
tro de prática social que definia o letramento e classificavam os sujeitos
conforme a dicotomia “alfabetizado” ou “não-alfabetizado”, passam a
ser apenas um tipo de prática social, mas não o único, haja vista que
desenvolve somente alguns tipos de habilidades, e não outras, próprias
de diferentes esferas de atividade humana (FERNANDES, 2021).
Desta forma, esse entendimento de letramento social que com-
preende as práticas de linguagem como ações que são inerentes a nossa
vida cotidiana segue compatíveis a perspectiva emancipatória pertinen-
te às práticas educativas para a educação de jovens e adultos. Pois en-
tendemos que essas práticas estão presentes não apenas em atividades
escolares, mas na interação com outras pessoas, estabelecendo com elas
relações sociais, econômicas, trabalhistas, comerciais, enfim, as relações
atravessadas pela linguagem e, portanto, por textos orais, escritos e mul-
tissemióticos. Nessa perspectiva, as ações de linguagem se voltam para
a prática social e os sujeitos assumem a condição de agentes sociais en-
volvidos em práticas cidadãs efetivas.
Ao refletir acerca das relações entre estudos de argumentação e pro-
jetos de letramento, Kleiman (2021, p. 10) explica “a argumentação
é necessariamente situada, indissociável da situação – local ou global
– [...]”, por isso a prática de argumentar também é um meio que pro-
porciona ao sujeito enfrentar os discursos que afetam a vida de todos,
como os riscos à saúde global, como ocorreu durante a pandemia da
436
COVID-19; que manifestam abusos e impõe opressão àqueles que são
menos favorecidos na sociedade; que produzem insegurança, como
acontece com a circulação de fake News, por exemplo; que fortalece
alguns sobretudo quando estão diante de pessoas; que impedem, dentre
outros, o empoderamento de grupos minorizados. Ao reunir algumas
das situações que podem ser vividas em sociedade, Kleiman (2021, p.
15) demarca a complexidade da argumentação e seu ensino e, ao mes-
mo tempo, indica temas que podem ser tematizados em diferentes si-
tuações de linguagem. Ou seja, para aquele professor “que reconhece a
importância de ensinar a argumentar, mas não sabe como e por onde
começar”, esses assuntos podem ser organizados em questões legítimas
que podem promover a argumentação na escola.
Essa forma diferente de ensinar e aprender pressupõe uma reorgani-
zação dos espaços e do tempo de aprendizagem (OLIVEIRA; TINOCO;
SANTOS, 2011), o que sugere uma importante reconstrução identitária
de professores, que não mais se consideram os únicos detentores do co-
nhecimento e passam a atuar como agentes de letramento (KLEIMAN,
2008), e de estudantes, não são mais tidos como “receptores” do saber,
passando a ter uma postura ativa, uma vez que colaboram efetivamente
com a sociedade. Isso significa que as atividades desenvolvidas nas salas
de aula ultrapassam os muros escolares, e é nesse contexto que se faz
necessário pensar no ensino de argumentação em uma dimensão discur-
siva que permita organizar práticas pedagógicas que superem o uso de
estratégias de um sujeito consciente interessado em vencer o oponente
ou persuadir o ouvinte (PIRIS, 2021). Para tanto, faz-se imprescindível
possibilitar aos estudantes a participação em situações argumentativas,
tanto na escola quanto fora dela, capazes de gerar argumentos que colo-
quem pontos de vista e posições ideológicas em discussão.
Referências
AZEVEDO, I. C. M. de. Capacidades argumentativas de professores e estudantes
da educação básica em discussão. In: PIRIS, E.; OLÍMPIO-FERREIRA, M. (orgs.).
Discurso e argumentação em múltiplos enfoques. Coimbra: Grácio editor, 2016. p.
167-190.
437
BRASIL. Decreto nº 9.765 de 11 de abril de 2019. Institui a Política Nacional de
Alfabetização. Diário Oficial da União, 11 abr. 2019.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. LDB N°. 9394/96. Brasília:
MEC, 1996.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra. 1987 [1970].
438
KLEIMAN, A. B. EJA e o ensino da língua materna: relevância dos projetos de letramen-
to. Revista EJA em debate, v. 1, n. 1, p. Florianópolis, 2012.
SOARES, S. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 18. ed., São Paulo: Contexto,
2017.
439
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
440
critical perspective (FREIRE, 1996, 2013; GIROUX, 1997; LIMA, 2020).
The results indicate that learning English is part of EJA students’ dreams
and that when these learners establish relationships between the content of
texts and their daily lives, the process of reading and writing becomes more
meaningful for them.
KEYWORDS: Adulthhood; Literate social practices; Classroom research.
Introdução
O caminho da Educação de Jovens e Adultos – EJA no Brasil é
marcado pela trajetória de ações e programas que visam à conclusão da
Educação Básica. De modo que, não eram levados em conta a diversi-
dade que o alunado trazia consigo, seus desejos e objetivos para além
da obtenção do certificado de conclusão. Nela existe um encontro de
gerações muito significativo e que precisa ser levado em conta na hora
de elaborar ações para esse público.
Neste sentido, este estudo aborda a problemática do ensino de in-
glês nas escolas públicas brasileiras e mais especificamente, no contexto
das escolas públicas de Imperatriz, Maranhão. O interesse na temática
deste estudo partiu da necessidade de encontrar meios para ajudar alu-
nos e professores da Educação de Jovens e Adultos – EJA a dar significa-
dos às suas aulas de inglês. A preocupação com a modalidade em ques-
tão baseia-se nas reclamações sobre o ensino e a aprendizagem de inglês
ouvidas de discentes e docentes da rede pública estadual de ensino.
No contexto da EJA, o ensino precisa ser repensado (LIMA, 2017;
2020) para atender às necessidades de interação dos aprendizes em situ-
ações sociais do seu interesse. Os professores dessa modalidade precisam
ser vistos como profissionais capazes de desenvolver ações pedagógicas,
fazendo relação com o contexto extra escolar dos aprendizes e, assim,
oportunizar a ascensão acadêmica e social do alunado.
Desse modo, o estudo se pauta nos pressupostos da Teoria
Sociocultural (VYGOSTKY, 1991), da Linguística Aplicada e dos
Letramentos (MOTTA, 2008; SOUZA, 2011; STREET, 2014;
441
TAGATA, 2017), pois leva em conta a necessidade de repensar o ensi-
no de línguas, na perspectiva social e crítica. O aporte metodológico
se baseia em pesquisas recentes no contexto da EJA e nos pressupostos
da Pesquisa-ação Colaborativa (THIOLLENT, 1986; PAIVA, 2019;
LIMA, 2020). Quanto aos instrumentos e aos métodos utilizados no
processo da geração dos dados, o estudo apropria-se da microetnografia.
Os dados são provenientes de uma pesquisa de campo de um pro-
jeto de iniciação científica, apoiado pelo Programa Institucional de
Iniciação Científica da Universidade Estadual da Região Tocantina do
Maranhão – PIBIC/UEMASUL. O projeto teve como objetivo central
analisar de que modo fatores como a adultez e as experiências pessoais
de aprendizagem dos alunos da EJA, Ensino Médio, são levadas em
conta pelos seus respectivos professores ao selecionar os conteúdos de
inglês e, como isso, fomenta, ou não, a inclusão desses alunos em prá-
ticas sociais letradas, e foi desenvolvido em uma escola da rede pública
estadual maranhense, localizada na cidade de Imperatriz. A escola aten-
de exclusivamente a alunos do Ensino Médio da EJA. Os dados foram
gerados em duas fases do estudo de campo. A fase de observação e a fase
de desenvolvimento e aplicação de atividades de inglês com 23 alunos
de uma turma da escola locus do estudo.
Sendo assim, este trabalho objetiva compreender a influência da
adultez no ensino e aprendizagem dos alunos da EJA, no ato da escolha
dos conteúdos de inglês; descrever, com base nas atividades desenvolvi-
das pela professora de inglês a interação dos alunos quanto ao conteúdo
e analisar a importância da prática social dos alunos da EJA no contex-
to de ensino O estudo, norteou-se pelas seguintes questões: a) como
a adultez interfere no ensino-aprendizagem dos alunos da EJA? b) o
que o(a) professor(a) de inglês da EJA leva em consideração a respeito
do perfil dos alunos ao selecionar os conteúdos de inglês? Com isso,
espera-se que o trabalho contribua para a construção de conhecimen-
to e para o desenvolvimento de ações que atendam às necessidades de
aprendizagem do público da EJA.
442
Os pressupostos da teoria sociocultural e a EJA
O contexto da educação Básica no Brasil é marcado por diversas
reclamações, tanto de professores como de alunos quanto à qualidade
do processo de ensino-aprendizagem da Língua Inglesa. Curiosamente,
essas dificuldades se tornam bem mais presentes na modalidade EJA,
nas escolas da rede pública de Imperatriz – Maranhão. Portanto, é uma
modalidade de ensino que enfrenta problemas para além da realidade
local e uma delas é que esses aprendizes tenham oportunidades para
interagir em situações de aprendizagem efetivas a ponto de fazê-los sen-
tirem-se capazes de aprender.
É por este viés, que o estudo dialoga com os pressupostos da Teoria
Sociocultural, que prioriza a interação entre o ser humano e o ambiente
para a construção do conhecimento. De acordo com Vygotsky (1991),
a vivência em sociedade é essencial para a transformação do homem de
ser biológico em ser humano, ou seja, é por meio do contato que temos
com os demais do mesmo ambiente que desenvolvemos mentalmente,
para isso, a linguagem é indispensável.
Para Vygotsky (1978; 1991), a linguagem, que é o sistema sim-
bólico que marca a evolução da espécie, que fornece os conceitos, as
formas de organização do real, acaba sendo a mediação entre o sujeito
e o objeto do conhecimento. É por meio dela que as funções mentais
superiores são socialmente formadas e culturalmente transmitidas. Em
outras palavras, é na troca com outros sujeitos e consigo mesmo que se
vão internalizando os conhecimentos, os papéis e funções sociais, o que
acaba permitindo a formação de saberes e da própria consciência.
Persiste em nossa sociedade a crença de que aprender inglês nas es-
colas públicas é algo impossível. Lima (2020), comenta que em relação
ao ensino - aprendizagem de línguas estrangeira ou materna, a realidade
brasileira, é marcada por críticas ao fracasso de aprendizes e professores,
e que as críticas a esses professores, sobretudo, os de línguas acabam
sendo reiteradas pelos seus próprios alunos. A autora levanta vários
questionamentos sobre onde estaria a raiz desse problema, e infere que:
443
talvez, suas raízes estejam afincadas aos nossos problemas de
décadas passadas, quando nós, que atualmente exercemos a
profissão de professores/as de línguas, ainda éramos aprendizes.
Naquela ocasião, ainda não tínhamos nos dado conta das re-
presentações simbólicas imbricadas nos atos de saber ler e saber
escrever. (LIMA, 2020, p. 76).
444
Levar o aluno a refletir sobre a história, sobre o contexto de seus
saberes, seu senso comum. Levar o aluno a perceber que para al-
guém que vive em outro contexto a verdade pode ser diferente.
(SOUZA, 2011, p. 295)
445
Nessa visão limitada de educação o aluno é visto como uma folha
em branco, pronto para receber as verdades que o professor tem para
ensinar. Este tipo de atitude equivale a transformar a consciência em
um pensar meramente mecânico, ou seja, é fazer o aluno se sentir como
se a realidade social fosse algo exterior a ele e de nada lhe induzisse. Do
ponto de vista freiriano, o professor caminha junto com o aluno, tendo
seu papel de problematizador da realidade do educando.
De acordo com Giroux (1997), os professores não podem ser vistos
apenas como profissionais preparados para efetivar e atingir quaisquer
metas a eles apresentadas. Em vez disso, eles deveriam ser vistos como
profissionais livres, com uma dedicação especial aos valores que os alu-
nos carregam consigo e suas capacidades críticas. Na obra “Pedagogia
da Autonomia” Freire ressalta a importância de se respeitar e valorizar
os saberes dos aprendizes. Conforme ele explica:
446
descontínua, materializada sob a forma de campanhas, movimentos,
programas, projetos, ou ainda, por uma formação aligeirada e de baixo
custo.
Após a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
– LDB Nº 9.394, 20 de dezembro de 1996 e das Diretrizes Curriculares
Nacionais da Educação de Jovens e Adultos, Parecer nº 11/2000, a EJA
passou a ser caracterizada como modalidade da Educação Básica des-
tinada ao público de jovens e adultos que não frequentaram a escola
ou não concluíram a Educação Básica em tempo hábil, conforme se lê
abaixo:
447
Já o contexto da EJA no estado do Maranhão, a modalidade “tem se
construído como política de superação das desigualdades educacionais”
(PEREIRA, 2018, p.53), visto que, o Maranhão apresenta altos índices de
analfabetismo, com estimativa de aproximadamente 12% da população
(IBGE, 2017). Por este viés, entende-se que a EJA, no contexto
maranhense, tem ajudado a estimular no público-alvo dessa modalidade
de ensino, sentimentos e perspectivas positivas para o futuro, abrindo
espaço para uma satisfação pessoal como a conclusão da Educação Básica,
ou ainda, a possibilidade de ingresso na Educação Superior.
Procedimentos metodológicos
Este estudo trata de questões voltadas ao ensino e à aprendizagem
de LE na modalidade EJA, portanto insere-se nos estudos da Linguística
Aplicada. Trata-se de um estudo desenvolvido por meio de pesquisa de
campo, ou seja, por meio do contato entre os sujeitos pesquisadores e
os participantes da pesquisa.
Quanto ao local, a pesquisa foi realizada em uma escola da rede es-
tadual de ensino, localizada em um bairro ligado ao centro da cidade de
Imperatriz. Quanto à estrutura física, a escola conta com 7 (sete) salas
de aula e oferece vagas apenas para modalidade EJA, Ensino Médio, no
modo presencial e atende seus alunos nos turnos matutino, vespertino
e noturno.
Quanto aos procedimentos técnicos, o estudo configura-se em pes-
quisa-ação, porque, durante a execução da pesquisa de campo houve a
necessidade de relação participativa entre os pesquisadores e os demais
envolvidos no estudo. Neste sentido, Thiollent (1986) destaca-se que:
448
A escolha pela pesquisa-ação se deu pelo fato de que este tipo de
pesquisa possibilita mais envolvimento entre os pesquisadores e a co-
munidade estudada. Além disso, a visão da pesquisa-ação é compreen-
der e melhorar o ambiente educacional, e ela é “por natureza, partici-
pativa, pois os pesquisados, em conjunto com os pesquisadores, são os
produtores diretos do conhecimento” (PAIVA, 2019, p.73).
Quanto à sua natureza trata-se de uma pesquisa aplicada, pois “tem
por objetivos gerar novos conhecimentos, mas tem por meta resolver
problemas, inovar ou desenvolver processos e tecnologias” (PAIVA,
2019, p.11). Referente à sua abordagem, o estudo é uma pesquisa qua-
litativa. Para Godoy (1995), a pesquisa qualitativa ocupa um reconhe-
cido lugar entre as várias possibilidades de se estudar os fenômenos que
envolvem os seres humanos e suas intrincadas relações sociais.
Sendo assim, no caso deste estudo, os problemas investigados estão
diretamente relacionados ao modo como a adultez dos alunos da EJA
está presente no processo de ensino e de aprendizagem de uma LE e nas
ações para a modalidade. Quanto aos instrumentos para levantamento
de dados, optou-se pela entrevista. No contexto da pesquisa qualitativa,
a entrevista é defendida como:
449
Quanto à professora da turma participante, é egressa do Curso de
Letras Português/Inglês e Respectivas Literaturas do CESI/UEMA, atu-
al UEMASUL. Contudo, logo nas primeiras semanas do retorno das
aulas, do modo remoto ao presencial, devido a sequelas da Covid-19,
a professora efetiva alegou sentir dificuldades para respirar quando mi-
nistrava suas aulas. Por conta disso, cedeu suas turmas para a professora
pesquisadora que assumiu a disciplina de inglês do turno matutino, nos
meses de agosto e setembro de 2021.
Assim, os resultados deste estudo baseiam-se na análise dos da-
dos obtidos pela observação das aulas, inicialmente ministradas pela
professora efetiva e, posteriormente, por uma professora pesquisadora,
durante a pesquisa de campo do projeto já mencionado anteriormen-
te. Também fazem parte dessa mesma análise, o conteúdo de duas en-
trevistas, uma com alunos e outra com a professora efetiva da turma.
Portanto, trata-se de análise qualitativa cuja amostragem provém do
universo de um grupo de 23 alunos de uma turma da 1ª Etapa da EJA,
Ensino Médio, do turno matutino de uma escola situada no interior do
Maranhão. O critério para escolha da turma foi a compatibilidade do
horário dos bolsistas acadêmicos participantes do estudo.
450
Após indagar aos alunos acerca do tempo de pausa entre a conclu-
são do Ensino Fundamental e seu ingresso na modalidade EJA, 70%
dos entrevistados informaram que saíram diretamente da escola onde
cursaram o 9º ano, na modalidade regular, para a modalidade EJA e
30% deles, informaram que, após a conclusão do Ensino Fundamental,
ficaram menos de 3 anos sem estudar. Assim, partindo das respostas da-
das na entrevista com os alunos, constatou-se que no locus deste estudo,
o público da EJA, em sua maioria é formado por jovens que acabaram
de sair do Ensino Fundamental.
Ao serem indagados sobre as dificuldades para continuarem estu-
dando, 50% dos alunos apontaram para o problema com o transporte
para chegar à escola e 30% atribuíram ao fato de terem que ajudar em
casa, seja cuidando de um familiar ou trabalhando para complementar
a renda, quanto aos demais 20%, afirmaram não terem dificuldades
para irem à escola.
Quando questionados acerca da sua motivação para continuar estu-
dando, mesmo com obstáculos que dificultam a conclusão da Educação
Básica, 60% dos entrevistados revelaram que sua principal motivação
para continuar estudando e concluir o seu Ensino Médio é o desejo de
ingressar em curso superior. Diante disso, o perfil dos participantes re-
vela que a EJA é um espaço propício ao desenvolvimento de ações que
motivem os alunos a darem continuidade aos seus estudos.
No contexto em que os participantes estão inseridos ficou evidente
que as responsabilidades da adultez se tornam um grande obstáculo
para a continuação dos estudos. Essas responsabilidades seriam: traba-
lhar para complementar a renda familiar e conciliar o trabalho com os
estudos. Além disso, alguns desses alunos são mães e pais, e na maioria
das vezes precisam levar seus filhos para escola, pois não têm com quem
deixá-los. Essa realidade afeta diretamente o desempenho desses alunos.
Diante dos dados sobre o perfil dos participantes, salienta-se que
é necessário que a escola desenvolva ações que levem em conta os pro-
blemas relacionados à adultez do seu alunado. Pois, a adultez é a faixa
etária em que as pessoas são pressionadas, pela sociedade e por seus
451
familiares, a assumirem formal e legalmente diferentes responsabilida-
des, inclusive de trabalhar para garantir o sustento da sua família. E, é
neste sentido que este estudo entende que a adultez interfere no ensino
- aprendizagem dos alunos da EJA e não pode ser ignorada pela escola
e pelos professores.
A segunda questão deste estudo tratou de observar como o (a) pro-
fessor (a) de Inglês da EJA leva em conta o perfil dos alunos ao sele-
cionarem os conteúdos de inglês trabalhados em sala de aula, ou seja,
se a perspectiva sociocultural e crítica fundamentam a elaboração de
atividades de leitura e escrita com vista a esse perfil.
Nas aulas de inglês da turma participante, foram observadas algu-
mas atividades ali desenvolvidas, quais sejam: um texto ilustrado com
imagens de alguns pontos de Imperatriz, alagados, durante a cheia de
2019 (Atividade 1); um bingo com vocabulário referente ao conteúdo
Parts of the house and furniture (Atividade 2) e a reprodução de um tex-
to, em forma de diálogos, intitulado de We are at our home sweet home
(Atividade 3).
Ao analisar o que ocorreu nas aulas de inglês durante o desenvol-
vimento dessas atividades, foi possível avaliar a atuação delas para pro-
mover ou não o ensino da Língua Inglesa, e entender, como a adultez
dos alunos se manifesta no decorrer do processo em sua aprendizagem.
As aulas observadas e as atividades nelas desenvolvidas, estão des-
critas no quadro abaixo.
452
22/09/ Atividade 2: Praticar o Refletir sobre os Texto impresso em
2021 Leitura do texto reading problemas am- cores (disponibili-
com imagens de bientais e como zado pela professora
Imperatriz, du- evitá-los; posi- pesquisadora)
rante um período cionar-se criti-
de alagamento de camente diante
alguns locais da de problemas
cidade sociais.
29/09/ Atividade 3: Praticar o Contribuir para Texto impresso e
2021 Leitura e repro- reading, a construção da colorido (disponibi-
dução (escrita e writing e autoconfiança lizado pela profes-
oral) do texto We speaking em dos aprendizes; sora pesquisadora)
are at our home um diálogo elevar a autoes-
sweet home curto. tima das pessoas
da EJA
Fonte: Notas de campo, setembro de 2021.91
91
Relação das atividades desenvolvidas na pesquisa de campo.
453
desenvolvam atividades lúdicas que promovam a interação e desenvol-
vimento dos alunos.
A atividade 2 trazia um texto em português com palavras-chave em
inglês. O texto era ilustrado por imagens de lugares alagados da cidade
de Imperatriz, Maranhão. Ao lado de cada imagem perguntas como
Where is this place? What happened to this place? What happened to this
city? What happened to the houses? No ato da realização dessa atividade
destaca-se a intensa participação da turma. Muitos alunos identificaram
os lugares da imagem.
Nas interações entre alunos e a professora, ficou evidente a partici-
pação ativa dos alunos, tanto respondendo às perguntas como na leitura
do texto mesmo que de forma tímida. Quanto ao uso de inglês no texto
em questão, alguns alunos tiveram dificuldade em entender algumas
palavras, porém, com a exemplificação da professora esse problema foi
amenizado. O que se notou no desenvolvimento dessa atividade, além
da participação ativa dos alunos, foi o interesse que eles demonstraram
em responder às perguntas da professora. Pelo visto, o simples fato de
ter ilustrado o texto com imagens da cidade onde eles vivem, fez com
que eles se sentissem sujeitos principais da história (TAGATA; 2017).
A Atividade 3, objetivava desenvolver a autoconfiança dos alunos e
fazê-los melhorar a autoestima, ao sentirem-se capazes de participar de
uma atividade de leitura e reprodução (escrita e oral) do texto We are at
our home sweet home. Na aplicação dessa atividade a professora iniciou a
discussão com o título. O que os alunos entendiam a partir dele, ficou
nítido que eles tinham vergonha de se expor, percebendo isso, a profes-
sora passou na carteira de cada um ouvindo-os.
Após instruí-los a marcar determinadas palavras do texto, expli-
cou-lhes que iriam trocar as palavras marcadas, por outras da mesma
categoria. Assim, os pronomes pessoais e os nomes referente aos obje-
tos e cômodos da casa, deveriam ser substituídos por outros nomes da
mesma categoria de vocabulário ou classe gramatical como se observa
na figura abaixo:
454
Figura 1: Cópia do texto para leitura e reprodução dos alunos
92
Imagem disponível na Internet, em domínio público, e texto elaborado pela
professora pesquisadora.
455
Considerações finais
O estudo abordou a problemática do ensino de Língua Inglesa na
EJA, pautando-se nos pressupostos teóricos da Teoria Sociocultural e
do Letramento Crítico, no sentido de encontrar meios para ajudar alu-
nos e professores da modalidade EJA a dar significado às aulas de inglês.
A preocupação com a modalidade em questão baseia-se nas reclamações
ouvidas de discentes e docentes da rede pública relacionados ao ensino
e à aprendizagem de inglês.
Os dados analisados são resultados de uma pesquisa de iniciação
científica intitulada “Análise da relevância da adultez e das experiências
pessoais dos Alunos da EJA nas decisões da/o professor(a) de Inglês para
escolha dos conteúdos da disciplina”. O referido projeto foi realizado
em uma escola da Rede Pública estadual, localizada em Imperatriz,
Maranhão.
Com base nos dados, constatou-se que, de fato, as responsabilida-
des da adultez (trabalhar e estudar ao mesmo tempo, ajudar na renda
familiar, cuidar dos filhos) interferem de modo significativo na apren-
dizagem dos alunos. Muitos desses alunos precisam trabalhar e para
não desistir dos estudos, enfrentam jornadas pesadas: saem direto da
escola para o trabalho, ou vice-versa, e diante disso, seu rendimento está
comprometido. Devido ao cansaço, dormem durante as aulas, ou não
realizam as tarefas da escola por não terem tempo, ou por terem que
cuidar dos filhos.
Durante a realização das atividades observou-se que, de fato, apren-
der inglês faz parte dos sonhos dos alunos da EJA, isto ficou evidente na
participação deles, de modo que, os conteúdos trabalhos sob a perspec-
tiva Sociocultural e do Letramento Crítico, aproximando os assuntos ao
contexto social dos alunos, abriu espaços para uma maior participação e
deu-lhes protagonismo na sua própria aprendizagem.
Dessa forma, diante das responsabilidades da adultez, os professo-
res e a escola precisam criar ações que minimizem as interferências da
adultez nesse processo de aprendizagem dos alunos da EJA. Além disso,
456
precisam direcionar os conteúdos de ensino da Língua Inglesa, de modo
que contemplem a realidade dos alunos, para assim, promover o ensi-
no - aprendizagem significativa para eles tanto nas atividades escolares
quanto em outras fora da escola, no seu cotidiano.
Referências
BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. LDB – Lei nº 9394/96, de 20 de de-
zembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da Educação Nacional. Brasília: MEC,
1996.
457
PEREIRA, D. R. Trajetória escolares, considerações de ingresso, permanência e
conclusão dos egressos da Educação de Jovens e Adultos na Educação Superior /
Diego Rodrigo Pereira. – 2018. 118 p. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal
do Maranhão, São Luís, 2018. Disponível em: https://tedebc.ufma.br/jspui/handle/
tede/2547. Acesso em: 19/02/2022.
458
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
459
alunos nas intervenções realizadas. Os resultados obtidos demonstram que os
discursos de ódio racistas são ancorados aos saberes de crença; que essa prática
discriminatória pode estar vinculada às questões socioeconômicas ou não,
havendo uma evidência de racismo estrutural; e que a aplicação do letramento
crítico contribui para a conscientização social e crítica dos alunos.
PALAVRAS-CHAVE: Discriminação racial; Análise de Discurso; Letramento
Crítico.
ABSTRACT: This paper is an excerpt from the master’s thesis “The say
without limits: analysis of racist discourses and critical literacy as instruments
of language practice in high school”, presented to the Graduate Program in
Letters (PPGEL), of the Federal University of Piauí (UFPI), in July 2022.
In general, we proposed to analyze the hate discours in cases of racism in
the social networks of famous people and to research how Critical Literacy
can contribute to the reduction of racial prejudice, through interaction with
students high school students from a campus of the Instituto Federal do Piauí.
As a theoretical basis, we use we use the assumptions of Semiolinguistics and
Materialist Discourse Analysis, from contribuitions of Charaudeau (2017,
2018), Modesto (2021) and Orlandi (2001, 2017), and Applied Linguistics,
with contributions from Freire (2021). The methodology used typifies this
research as field and documentary, of qualitative and interpretative character.
In this clipping, the corpus is composed of an analysis of racist hate speeches,
a question from the diagnostic questionnaire and some considerations by
students in the interventions carried out. The results show that racial hate
speech is anchored in the knowledge of belief; that this discriminatory practice
may or may not be linked to socioeconomic issues, with signs of structural
racism; and that the application of Critical Literacy contributes to students’
social and critical awareness.
KEYWORDS: Racial discrimination. Discourse analysis. Critical literacy.
Introdução
Os problemas sociais do mundo sempre foram questões complexas
que afetam as relações interpessoais, levando em conta eles que são ma-
terializadas na linguagem e produzem sentidos. O preconceito, a estrati-
ficação e a desigualdade social, por exemplo, são práticas materializadas
460
nas atitudes e manifestadas através da linguagem que causam um efeito
negativo no diálogo, pois um indivíduo, ao expressar seus posiciona-
mentos de forma antissocial ou agressiva, coloca outras pessoas em um
lugar de inferioridade.
Considerando que a internet é um espaço de comunicação global
que abrange antagonismos relativos às diferentes facetas do social, em se
tratando daquelas que dizem respeito aos grupos oprimidos, podemos
nos perguntar como os discursos difundidos nas redes sociais por haters
são formulados em casos de discriminação racial, de que forma isso
reflete nas pessoas e como elas se posicionam?
Para buscar estudar esse problema, de forma geral, propusemos
analisar os discursos de discriminação racial publicados nas redes sociais
de pessoas da mídia brasileira e pesquisar como o Letramento Crítico
pode contribuir na diminuição do preconceito racial.
No que se refere aos aspectos teóricos, esta pesquisa pauta-se nos
pressupostos da Análise de Discurso Semiolinguística e Materialista, a
partir de contribuições de Charaudeau (2017, 2018), Modesto (2021)
e Orlandi (2001, 2017), considerando que propus analisar discursos
de cunho racista direcionados a pessoas famosas em suas redes sociais;
e também da Linguística Aplicada, com as contribuições de Freire
(2021), visto que escolhi trabalhar a referida temática sob o viés do
Letramento Crítico, analisando questionários escritos e as participações
orais dos alunos nos momentos de intervenção. Tendo em vista as duas
etapas da pesquisa, a metodologia é classificada como documental e de
campo, possuindo caráter qualitativo e interpretativo.
461
interpretativa, a reflexão de temas de poder e sociedade, a busca pela
luta de direitos igualitários em aspectos políticos e socioeconômicos,
entre outros. Diante disso, é notável que o professor que pratica o LC
em suas aulas incentiva o aluno a ter mais determinação nos seus méto-
dos, na sua forma de ler, compreender, interpretar e, principalmente, se
posicionar acerca de temas importantes para a sociedade, ocasionando
a aquisição de uma autonomia no processo de ensino-aprendizagem.
Em razão de a leitura ser requisito para o Letramento, Freire
(2021a, p. 35-36) diz que o ato de ler “não se esgota na decodificação
pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa
e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a
leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir
da continuidade da leitura daquele”. Em outros termos, as experiên-
cias, as vivências e as relações sociais surgem primeiro na vida das pes-
soas e os códigos e os signos linguísticos escritos vêm depois. O autor,
ao fazer um percurso antes de ler palavras, descreve que lia o mundo
em sua vivência com o uso dos sentidos do corpo humano, como o
que via, o que ouvia e o cheiro que sentia. Isso justifica a sua defesa
de que o ato de ler precisa ser associado ao mundo para proporcionar
significação.
Uma das condições para tornar o ato de ler crítico é a de propor-
cionar uma autonomia para o aluno de tal forma que ele se sinta capaz
de produzir significações com aquilo que aprende, pois “a leitura da
palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma
certa forma de ‘escrevê-lo’ ou de ‘reescrevê-lo’, quer dizer, de transfor-
má-lo através de nossa prática consciente” (Ibid., p. 51). Apesar de,
nesse trecho, Paulo Freire se referir à alfabetização, ele pode muito bem
ser atribuído ao letramento, já que um dos principais objetivos dessa
habilidade é o de expressar e representar ideias de grupos sociais que os
beneficiem. Afinal, o conhecimento serve para permitir que os indiví-
duos lutem por seus direitos.
Consoante a isso, uma das principais vantagens do LC possui um
fator político – o de identificar ideologias camufladas em discursos que
462
buscam ludibriar a sociedade comum em prol de governos elitistas.
Percebemos, ocasionalmente, que alguns posicionamentos governa-
mentais na área da educação demonstram, claramente, ter influências
ideológicas, já que existem decisões tomadas de forma unilateral e re-
jeição a apelos populares. Apesar disso, Freire (2021a, p. 61-62) diz
que a educação sistemática não é uma mera reprodutora da ideologia
dominante e explica o porquê:
463
[...] A Análise do Discurso não trabalha com a língua enquanto
um sistema abstrato, mas com a língua no mundo, com ma-
neiras de significar, com homens falando, considerando a pro-
dução de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto
sujeitos seja enquanto membros de uma determinada forma de
sociedade.
464
objeto de estudo da Análise de Discurso devido ao seu uso ser comparti-
lhado socialmente, e à fala, que pode ser o sintoma da sua produção. O
autor, que desenvolveu estudos sobre os Imaginários Sociodiscursivos
(IS), pontua que eles procedem das representações sociais que advêm da
linguagem, da fala, das narrativas. Desse modo, podemos afirmar que
os fatos da humanidade costumam ser contados por grupos que seguem
uma linha narrativa e discursiva coerente de simbolização do mundo
conforme os saberes já conhecidos socialmente.
Os IS possuem dois tipos de saberes: os de conhecimento e os de
crença. Os primeiros, saberes de conhecimento, estão ancorados à no-
ção de verdade, ao que pode ser comprovado e ao que tem objetividade.
Dessa forma, a utilização desse tipo de saber deve vir embasada com
informações que podem ser comprovadas quando necessário. Em hipó-
tese alguma, o saber de conhecimento pode advir do que é subjetivo.
Por outro lado, “os saberes de crença não se relacionam com o conhe-
cimento do mundo no sentido que temos que atribuir a ele, mas com
as avaliações, apreciações, julgamentos a respeito dos fenômenos, dos
eventos e dos seres do mundo, seu pensamento e seu comportamento”
(CHARAUDEAU, 2017, p. 582).
O autor faz uma subdivisão desses conceitos, que será apresentada,
a seguir, de forma sintetizada. Os saberes de conhecimento abrangem
o saber de experiência, que tem um viés empírico e não garante que o
que se afirma será provado, mas, devido aos seus apontamentos, que são
feitos por um sujeito com base em uma experiência vivida, podem fazer
com que ele suponha que outras pessoas nas mesmas circunstâncias te-
rão experiências semelhantes ou iguais.
Os saberes de crença abrangem dois tipos de saberes, o de revelação
e os de opinião, esses últimos divididos em opinião comum, opinião
relativa e opinião coletiva. O saber de revelação encontra-se no exte-
rior do sujeito, porque requer que outra pessoa tenha feito um anúncio
que deve acontecer no tempo futuro – os discursos religiosos podem
ser citados como exemplo; o saber de opinião comum refere-se às opi-
niões compartilhadas sobre qualquer temática, de forma social, sem
465
exclusividade; o saber de opinião relativa valoriza o diálogo e o espaço
para o contraditório, possuindo, assim, um caráter democrático; e a
opinião coletiva faz alusão aos juízos de valor intergrupais, quando um
grupo específico faz atribuições a outros grupos. Considerando o objeto
de pesquisa deste trabalho, voltaremos a discussão para o racismo mate-
rializado nos estudos discursivos.
3. Racismo e discurso
Tecendo brevemente algumas reflexões sobre as questões raciais e o
discurso, Modesto (2021, p. 8) aponta que “os discursos racializados não
se limitam a discursos de ou sobre raça, podendo então interferir em outras
instâncias discursivas”. A instância mais comum de ser atrelada ao racismo
é a socioeconômica. Para os racistas, o negro não tem ou não deveria ter
condições financeiras que lhe dê poder aquisitivo de compra ou de ocupar
os mais diversos espaços na sociedade. Outras associações pejorativas feitas
de forma usual em casos de racismo podem ser mencionadas, como a de
escolaridade – eis a importância da garantia à educação e às oportunidades
de espaço em ambientes ditos privilegiados aos negros – e a de religiões
afro-brasileiras, que são alvos de preconceito, violência e silenciamento por
causa da predominância das religiões cristãs no país, efeito da catequização
dos indígenas pelos Jesuítas no Colonialismo Português.
Indo contra todas as evidências históricas e atuais do racismo no
Brasil, tem-se um grupo de pessoas que nega a existência da discrimi-
nação e do preconceito racial e defende uma paridade de condições e
tratamento às pessoas. É um posicionamento desvinculado com a rea-
lidade, obviamente, e que ganha força com o incentivo de líderes polí-
ticos que têm afinidade com ideologias autoritárias e segregacionistas.
Sobre isso, Flannery (2021, p. 25) diz que “trata-se de um discurso que
desconsidera propositadamente, ou ignora por completo, o impacto
que séculos de escravidão (e os consequentes estigmas gerados por esse
regime) tiveram e ainda têm para as vidas de milhões de brasileiros”.
Na prática de discriminação racial, há variados recursos linguísticos
que conotam negativamente os negros, havendo, também, uma série de
466
formações imaginárias que atravessam seus discursos ou que simples-
mente marcam a materialidade discursiva.
95
Como esta pesquisa envolveu seres humanos, o projeto foi submetido ao Comitê
de Ética da UFPI e foi realizada após ter o parecer aprovado, sob o número de Cer-
tificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) 52406121.3.0000.5214.
467
Pocah é o nome artístico de Viviane de Queiroz Pereira. Ela tem 28
anos, nasceu no Rio de Janeiro e é compositora e cantora do ritmo funk.
Ainda na adolescência, quando sua carreira estava no início, ela utiliza-
va o nome MC Pocahontas. Aos 18 anos, Pocah lançou o seu primeiro
hit. Em 2020, foi convidada a integrar o grupo camarote da vigésima
edição do Big Brother Brasil96. Durante o confinamento, a equipe que
administrava as redes sociais da cantora percebeu que haters estavam
cometendo crimes racistas contra ela e contra a sua filha.
Fonte: Reprodução/Twitter/Instagram
96
Portal NaTelinha. Tudo sobre Pocah. Disponível em: https://natelinha.uol.com.
br/famosos/tudo-sobre/pocah. Acesso em maio de 2022.
468
respectivas torcidas, na medida que as defendiam, teciam críticas às
rivais. Foram compartilhados, pela equipe da cantora, quatro regis-
tros: três publicados no Twitter e um no Instagram. Antes de analisar
o conteúdo, é importante mencionar que há suspeitas de que os ata-
ques não partiram de torcedores de Juliette. Segundo a sua equipe,
eles tinham sob posse arquivos de haters dizendo que se passariam
por “cactos”, apelido dos fãs de Juliette, para prejudicar a imagem da
participante97.
Os comentários demonstram: ameaça de agressão física à filha de
Pocah e agressão verbal depreciativa; insulto moral à Pocah e discurso
racista à sua filha; e injúria racial com alegorias. Dentre as ideologias,
tem-se: uma cultura de vingança “ela mexe com a Ju que dói em mim,
eu mexo com a filha que mais dói nela”; o preconceito sexista de que
mulheres do funk não têm valores éticos “piranha”; a ideologia racista
de diminuir pessoas negras e de julgar que a cor delas indica sujeira
e odor “neguinha fedida”; e preconceito com cabelos crespos “petição
para a Pocah pentear a bucha da filha dela”, “cabelo duro”, valorizando
o padrão estético imposto pela sociedade de que o cabelo liso é superior
em detrimento dos demais tipos.
Acerca dos Imaginários Sociodiscursivos, é interessante relacionar
esses discursos com a falta de logicidade encontrada. De acordo com
a teoria biológica que trata dos cinco sentidos humanos, as sensações
precisam estar próximas ou conectadas ao corpo. Como o hater pode
chamar alguém que ele provavelmente nunca viu na vida e está a quilô-
metros de distância de fedido, estando impossibilitado de sentir o seu
cheiro? Não há outra explicação senão o preconceito racial atrelado à
discriminação que uma parcela da sociedade pratica culturalmente.
97
Portal Notícias da Tv. BBB21: Filha de Pocah é alvo de ataques na web por su-
postos fãs de Juliette. Disponível em: https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/bbb/
bbb21-filha-de-pocah-alvo-de-ataques-na-web-por-supostos-fas-juliette-55775.
Acesso em maio de 2022.
469
Direcionando a análise para a interação com os alunos98, foi feito
o questionamento sobre o racismo que as pessoas famosas são vítimas
iguais aos cidadãos comuns. Neste momento, percebe-se, de forma unâ-
nime, que o racismo não escolhe condições econômicas.
Nelson M. Sim, isso e uma coisa que pode acontecer com qualquer um inde-
pendente da posição social.
Carolina J. Sim, pois as pessoas não se importam com o dinheiro ou fama que
elas têm, só querem fazer o mal.
Chadwick B. Sim, o Neymar mesmo sendo o 2º maior nome da história do fute-
bol brasileiro é alvo de muita discriminação “cai, cai”, “sombra do
pelé”, “Macaco”.
Machado A. Com certeza sim. Pessoas famosas também estão sujeitas a discrimi-
nação de ambas formas.
Emicida Sim, um exemplo são os jogadores de Futebol, que são menospreza-
dos no jogo pelos torcedores.
Martin Jr. Sim. Principalmente quando são de classes sociais inferiorizadas,
quando surgem de realidades difíceis e conseguem crescer social-
mente a crítica infundamentada emerge instantaneamente.
Beyoncé Sim, pois eles são gente e por serem “influências e conhecidos” isso
pode acontecer.
Elza S. Sim não é só porque eles são pessoas bem-sucedidas que eles não
sofrem discriminação racial.
Gilberto Gil Sim, no caso deles fica ainda mais evidente, já que são figuras públi-
cas sofrendo ataques constantemente.
Alcione Sim. A discriminação racial ocorre em todo o mundo.
Luiz Gama Sim. A discriminação está presente em todas as classes, da mais po-
bre a mais rica.
Fonte: Elaborado pelo autor (2022)
98
Devido aos protocolos éticos, os nomes dos participantes da pesquisa foram ano-
nimizados e substituídos por nomes de personalidades negras da mídia nacional
e internacional.
470
De forma geral, todos os alunos concordaram que o status social e/
ou econômico não isenta as pessoas negras de sofrerem discriminação
racial. Os comentários de Chadwick B., Emicida e Martin Jr. chama-
ram-me a atenção. Começando pelo primeiro mencionado, segundo
ele, o jogador Neymar é alvo de discriminação e é chamado por apeli-
dos como “Cai, cai”, “Sombra do Pelé” e “Macaco”. Linguisticamente
falando, apenas o último termo possui cunho racista. As outras palavras
podem ser explicadas com utilização do contexto. O apelido “Cai, cai”
faz referência às suas quedas em campo em razão das faltas que sofre99.
Já a expressão “Sombra do Pelé” foi dita em uma situação de desenten-
dimento com outro jogador, que insinuou que o Neymar é inferior ao
craque brasileiro da geração anterior100.
Emicida traz um ponto relevante ao dizer que jogadores de futebol
são menosprezados pelos torcedores. Isso ocorre comumente quando a
situação está desfavorável ao time ou ao jogador em específico, nunca
acontece quando o time está ganhando ou quando o jogador tem um
bom desempenho. Há, também, situações quando jogadores negros são
alvos da torcida do time rival. A paixão irracional e o racismo estrutural
fazem com que pessoas falem da negritude dos jogadores, violentando-
-os de forma desumana em seus locais de trabalho e sem considerar que
a cor nada tem a ver com a desenvoltura em campo.
Martin Jr. comenta os casos em que as pessoas de origem humilde
conseguem conquistar recursos e espaços privilegiados, mas, quando
são notadas, há um movimento de falta de acolhimento. Isso é visto em
Modesto (2021) que mostra que as questões raciais são advindas de um
sistema capitalista, que prega a hegemonia de um grupo principal.
99
Portal R7. Cai-cai? Neymar é o jogador que mais sofre faltas na Europa. Disponí-
vel em: https://esportes.r7.com/futebol/fotos/cai-cai-neymar-e-o-jogador-que-
-mais-sofre-faltas-na-europa-26022022. Acesso em maio de 2022.
100
Portal R7. ‘Lixo’. ‘À sombra de Pelé’. Infantilizado, Neymar é ridiculari-
zado. Disponível em: https://esportes.r7.com/prisma/cosme-rimoli/lixo-a-som-
bra-de-pele-infantilizado-neymar-e-ridicularizado-14012021. Acesso em maio
de 2022.
471
Em dado momento da intervenção, analisávamos os discursos de
ódio racistas coletivos. Foi exposto um vídeo, do ano de 2017, que exi-
bia um trecho do Programa Mais Você, da Tv Globo. A apresentadora
e chef, Ana Maria Braga, preparou um nhoque de abóbora para suas
convidadas, as atrizes Fernanda de Freitas e Taís Araújo. Esta última
rejeitou o prato preparado porque não comia abóbora e justificou: “Eu
não vou comer só porque estou aqui! Eu como de tudo, a única coisa
que não como na vida é abóbora!”101. Em uma rede social, após esse
fato, a atriz sofreu diversos ataques racistas. Um deles, dizia para levar
o prato para a África e perguntar se as pessoas de lá queriam, por con-
siderar que na circunstância de necessidade alimentar, não há recusa a
qualquer prato.
Pedi aos alunos para explicarem porque a África foi citada no co-
mentário e tive as seguintes respostas em sequência: Beyoncé: – “Porque
a África é um país pobre”. / Emicida: – “Uma das regiões que mais so-
frem”. / Martin Jr. – “As pessoas costumam dizer ‘quando você for dei-
xar de comer esse prato lembre que tem gente de outro lugar no mundo
passando fome’. Lembro disso quando eu era pequeno”. / Beyoncé con-
corda com Martin Jr.: – “Falam até hoje”. As falas dos alunos indicam
que as condições de produção e os imaginários sociodiscursivos fazem
com que os sujeitos sejam preconceituosos com o continente africano e
relacionem seus fatos negativos como lógica para menosprezar pessoas
negras e estrangeiras menos favorecidas. Reproduzindo a situação de
forma precisa, pessoas que moram no Brasil, um país com milhões de
pessoas em situação de insegurança alimentar, usam um outro conti-
nente como referência para falar da fome.
Considerações finais
Este trabalho, fundamentado nos pressupostos teóricos da Análise
de Discurso Materialista, da Teoria Semiolinguística e do Letramento
101
Portal Extra. Taís Araújo recusa nhoque de abóbora no ‘Mais você’ e arranca garga-
lhadas de Ana Maria. Disponível em: https://extra.globo.com/tv-e-lazer/tais-a-
raujo-recusa-nhoque-de-abobora-no-mais-voce-arranca-gargalhadas-de-ana-ma-
ria-21342144.html. Acesso em junho de 2022.
472
Crítico objetivou analisar os discursos de discriminação racial publica-
dos nas redes sociais de pessoas da mídia brasileira e pesquisar como o
LC pode contribuir na diminuição do preconceito racial, por meio de
interação com alunos da educação básica.
De acordo com a análise do corpus documental, constatamos que
os Imaginários Sociodiscursivos estão presentes nas práticas de discrimi-
nação racial por meio dos saberes de crença, sem embasamento lógico
e com utilização de vieses empiristas e ideológicos, que impedem um
diálogo polido entre as pessoas devido ao seu alto nível de violência e
opressão.
Na análise do questionário inicial, observamos que os alunos fo-
ram capazes de identificar que o racismo estrutural não isenta pessoas
bem-sucedidas economicamente da discriminação racial, demonstran-
do uma intolerância que deve ser combatida. Na intervenção, perce-
bemos que o racismo pode acontecer de forma mascarada, atrelando a
cor negra à pobreza, como se houvesse um privilégio da sociedade que
tem menos pessoas negras que o continente africano, mesmo que ela
também enfrente dificuldades econômicas.
Acerca de ter realizado essa pesquisa em uma sala de aula, trago a
citação de Freire (2021b, p. 127), que diz que “a educação é um ato
de amor e, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A
análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de
ser uma farsa”. Por isso estamos aqui tratando sobre esse tema, às vezes
desacreditado por pessoas desconectadas com a realidade, e propusemos
levar esse diálogo a alunos de um instituto público de ensino. Essas pala-
vras de Freire, severas, porém reais, não podem jamais ser esquecidas por
todos aqueles que exercem a função do magistério, que têm a missão de
incentivar os educandos a resistirem contra as ideologias hegemônicas.
Referências
CHARAUDEAU, Patrick. Dicionário de análise do discurso. Patrick Charaudeau,
Dominique Maingueneau; coordenação da tradução Fabiana Komesu. 3. Ed., 3ª reim-
pressão. São Paulo: Contexto, 2018.
473
CHARAUDEAU, Patrick. Os estereótipos, muito bem. Os imaginários, ainda me-
lhor. Traduzido por André Luiz Silva e Rafael Magalhães Angrisano. Entrepalavras,
Fortaleza, v. 7, p. 571-591, jan./jun. 2017.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 50ª ed. São Paulo: Paz e Terra,
2021b.
474
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
475
the target language (BARBIRATO, 2005). The pre-task is the first of the three
phases that make up a task cycle and, although not mandatory, it has been
extensively studied and applied in different ways in international empirical
research (ELLIS et al, 2020). This work is part of a doctoral research at
its initial phase that aims at analyzing how the use of pre-tasks, developed
from the Thematic Task Based Planning, can contribute to the performance
of students during communicative tasks, as well as assess their potential for
acquiring English language. Although task-based language teaching is pointed
out with the potential to generate successful acquisition and to provide greater
opportunities for the use of the target language, we have not found national
studies analyzing the potential of the use of pre-tasks in the performance of
communicative tasks in the Brazilian context of teaching.
KEYWORDS: Task Based Language Teaching. Task cycles. Pre-tasks. English
Language Teaching.
Introdução
O Planejamento Baseado em Tarefas (PBT) é uma proposta pe-
dagógica que tem como eixo organizatório tarefas comunicativas
(BARBIRATO, 2005) e organiza as experiências de aprender uma língua
por meio de atividades de interesse ou necessidade do aluno (ALMEIDA
FILHO, 2002). Conhecido em inglês como “Task-based language tea-
ching” (TBLT), o PBT prevê, em uma aula típica, uma série de tarefas
cujo foco é alcançar um resultado comunicativo (ELLIS, 2019).
Juntamente com as novas práticas que entraram em vigor a partir
movimento comunicativo de ensino de línguas entre 70 e 80, surgem
as primeiras discussões sobre o papel das tarefas comunicativas, que
apresentam, como foco principal, oferecer oportunidades de uso da lín-
gua em “condições relativamente naturais” (ELLIS et.al, 2020, p.179).
Diferentemente da abordagem tradicional de ensino de línguas, o PBT
enfatiza a importância de engajar as habilidades naturais dos aprendizes
para aquisição da língua de forma incidental. O processo de ensino
e aprendizagem de línguas estrangeiras ganhou, portanto, uma nova
interpretação a partir do PBT (ELLIS, 2003; SKEHAN, 1996, 2003;
WILLIS, 1996).
476
As propostas iniciais do PBT datam no início da década de 1980
(ELLIS et.al, 2020) com sua primeira aplicação de ensino na Índia atra-
vés de um projeto de larga escala implementado pelo linguista Prabhu
(1987). Sua insatisfação com o estruturalismo, dominante na época,
fez com que o pesquisador se debruçasse nesse novo modelo de ensino.
Para Prabhu (1987, p. 24) tarefa é “uma atividade que requer uma res-
posta a ser dada pelos alunos, a partir de uma informação previamente
fornecida por meio de algum processo de pensamento”. Com foco no
significado e ausentes de qualquer pré-seleção de itens linguísticos, as
tarefas propostas em seu projeto envolviam processos cognitivos como
a inferência, a dedução e o raciocínio prático.
O programa de Prabhu (1987) conhecido como Communicational
Teaching Project, ou Bangalore Project, foi responsável também por tra-
zer o conceito do que ficou conhecido, mais tarde, como pré-tarefas.
No projeto, a organização das atividades se deu por meio duas tarefas
similares. A primeira tarefa, mais simples, realizada sob o controle do
professor, com a turma toda ou com um aluno mais experiente, tinha
como objetivo apresentar e verificar a dificuldade da atividade. A segun-
da tarefa, similar à primeira, embora envolvesse os mesmos processos de
raciocínio, exigia maior esforço cognitivo e era realizada individualmen-
te. Depois de Prabhu, o PBT passou a ser pesquisado e implementado
por diversos autores (LONG, 1985, NUNAN, 1989) e várias propostas
para esse ensino têm sido discutidas na literatura até os dias atuais.
Embora os resultados de estudos empíricos nacionais e internacio-
nais tenham apontado para o potencial do PBT no ensino de línguas
estrangeiras, poucas pesquisas no Brasil aplicaram a fase da pré-tarefa
com o intuito de avaliar de que maneiras essa etapa influencia ou não
na realização da tarefa e qual o seu potencial para a aquisição da lín-
gua entre nossos estudantes. Pouco se tem discutido, também, sobre os
diferentes papeis dessa fase na visão de diferentes autores na literatura
nacional.
Diante desse contexto, temos como objetivo, neste artigo, trazer
definições de pré-tarefa (PRABHU, 1987; ELLIS et.al, 2020; LONG,
477
2015; NUNAN, 1989; XAVIER,2007; BARBIRATO, 2005), discutir
o seu papel dentro do ciclo de tarefas no Planejamento Baseado em
Tarefas e refletir sobre o seu potencial para contribuir com o processo
de aquisição de língua. Para tanto, organizamos o texto em três seções.
Na primeira, trazemos um breve panorama do PBT e o conceito de
tarefas comunicativas por diferentes autores. Depois, tratamos especi-
ficamente da pré-tarefa, seu surgimento, suas definições e como essa
fase tem sido abordada na literatura. Por fim, discorremos sobre como
os pesquisadores brasileiros entendem a pré-tarefa e apontamos o que
os resultados de algumas pesquisas brasileiras têm demonstrado sobre
essa fase.
478
01). A versão fraca, embora considere a tarefa uma condição para o en-
sino, lança mão de algum tipo de reforço linguístico, tanto antes quanto
depois da realização das tarefas.
No Brasil, Almeida Filho e Barbirato (2000, p.25), ao defenderem
a versão forte do PBT, caracterizam a tarefa como uma atividade que
envolve “o uso comunicativo da língua, no qual a atenção do usuário
está focalizada no significado e não na estrutura linguística”. Segundo
os autores, uma tarefa deve, portanto, ser uma atividade comunicativa
com foco no sentido e resultado comunicativo, diferentemente de um
exercício que tem foco na forma, no emprego de regras linguísticas e no
uso extensivo de exercícios mecânicos de automatização.
Como forma de verificar e distinguir se a atividade proposta é uma
tarefa ou um exercício, Ellis e colaboradores (2020) apresentam quatro
critérios, quais sejam: 1) foco primário no significado, 2) existência de
um tipo de lacuna para haja uma real motivação para troca de informa-
ções e opinião; 3) uso de próprios recursos linguísticos e não-linguístico
pelos estudantes, 4) presença de um resultado comunicativo claramente
definido, que seve ser atingido com a realização da tarefa. Ainda, para
Ellis (2003, p.16), “tarefa é um trabalho que requer o processamento
pragmático da linguagem para se chegar a um resultado, que pode ser
avaliado pelo conteúdo transmitido”. Para atingir esse propósito, por-
tanto, “a tarefa exige do aprendiz atenção prioritária ao significado e o
uso de seus próprios recursos linguísticos”.
Richards (2005, p.161) descreve a tarefa como “uma atividade que
faz uso da língua alvo para encontrar a solução de um enigma, ler um
mapa e oferecer as direções, ou ler uma série de instruções e montar um
brinquedo”. Skehan (1996) define tarefa comunicativa como um tipo
de atividade na qual o significado é o aspecto principal; há relação com
as situações encontradas fora da sala de aula; o processo de realização da
tarefa tem prioridade; a avaliação do desempenho é realizada em termos
de resultados. Willis (1996), motivada por Prabhu (1987), define tarefa
como uma atividade através da qual o aprendiz precisa alcançar um
resultado real, para resoluções de problemas.
479
Ao analisar algumas definições de tarefa, Xavier (2011) afirma que
todas elas parecem apresentar dois elementos em comum: “o uso da
língua para fins comunicativos e um resultado do trabalho realizado
com a língua (outcome)” (XAVIER, 2011, p.149). O intuito de se usar
tarefas é, pois, o de criar oportunidades para o aluno fazer coisas na e
com a língua-alvo e, acima de tudo, comunicar-se com propriedade
(BARBIRATO, 1999).
Para o trabalho com o PBT, opções metodológicas têm previsto o
uso de ciclos de tarefas, que incluem as fases da pré-tarefa e pós tarefa,
antes e depois da tarefa principal, respectivamente. Embora não obriga-
tórias, essas fases têm sido aplicadas em pesquisas empíricas e conside-
radas relevantes para o processo de ensino de línguas.
480
Com o intuito de fornecer assistência aos estudantes e verificar que
houve a compreensão clara do que deve ser realizado posteriormente,
o professor, atua, na fase da pré-tarefa, como regulador e facilitador da
aprendizagem, trazendo um insumo compreensível para ensaiar para a
tarefa final. Esse ensaio constrói uma espécie de andaime (scaffolfing)
(FOLEY,1991), diminuindo, portanto, a distância entre o nível de de-
senvolvimento potencial103 e o real do estudante. A pré-tarefa converge,
portanto, com a ideia da zona de desenvolvimento proximal, uma vez
que ao interagir com outros colegas mais experientes e com o professor,
os processos internos de desenvolvimento são ativados (VYGOSTKY,
1991, p. 60).
Depois de Prabhu e com o surgimento do PBT, outros autores
passaram a trazer outros modelos de pré-tarefa. Ellis e colaboradores
(2020) reforçam que, apesar de não obrigatória, a pré-tarefa vem sendo
bastante estudada e aplicada de formas variadas em pesquisas empíricas.
Segundo o autor, os tipos de atividades realizadas na pré-tarefa depen-
dem de seu objetivo. Ellis (2003), alinhado com o que Prabhu propôs
como pré-tarefa, acredita que nessa fase não deve haver o foco nos itens
linguísticos necessários para a tarefa. Para ele, por exemplo, o ensino
de vocabulário na fase da pré-tarefa pode induzir a uma atividade de
prática de palavras selecionadas. Long (2015) assumindo a mesma pro-
posta, entende que pré-tarefa deva ser uma forma simplificada da tarefa,
com o intuito de construir esquemas ou informações necessárias para
auxiliar na tarefa alvo.
Ellis e colaboradores (2020) apontam três objetivos distintos para a
fase da pré-tarefa. O primeiro deles é gerar motivação, interesse e criar
expectativas nos estudantes. O segundo objetivo é preparar para a tare-
fa, ou seja, verificar se os procedimentos para sua execução e resultados
a criança sabe fazer por si só – o Nível de Desenvolvimento Real – e o que ela faz
com ajuda de um colega mais avançado do que ela ou de seu professor.
103
O desenvolvimento potencial é aquele determinado através da solução de pro-
blemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros
mais capazes. (VYGOSTKY, 1991, p. 28)
481
esperados estão claros e certificar-se de que eles possuem o conhecimen-
to linguístico e enciclopédico (conhecimento de mundo) necessários
para a realização da tarefa. O terceiro objetivo da pré-tarefa é criar opor-
tunidades que contribuam para a performance e resultado da tarefa.
Nunan (2004, p. 34), ao atribuir atividades prática controlada de
vocabulário, estrutura e funções linguísticas na fase da pré-tarefa, diver-
ge da proposta inicial de Prabhu (1987). No entanto, em sua proposta
de sequência pedagógica para a aplicação do PBT, o autor sugere que as
primeiras atividades da sequência devam também atuar como andaimes
(scaffolding).
Ao tratar do scaffolding, Nunan (2004) reconhece que, o momento
certo que o professor encontra para retirar o andaime e deixar os alunos
seguirem sozinhos seria a “a arte” do PBT. Para ele, “se o andaime é
removido prematuramente, o processo de aprendizagem entrará em ‘co-
lapso’. Se for mantido por muito tempo, os aprendizes não vão desen-
volver a independência exigida no uso autônomo da língua” (NUNAN,
2004, p. 35).
Na literatura internacional, além de Nunan, Willis (1996), propõe
um modelo que diverge da ideia inicial de pré-tarefa de Prabhu. Com
foco na versão fraca do PBT, em sua proposta, a autora não exclui to-
talmente o foco na forma na fase pré-tarefa e considera, por exemplo,
a apresentação de listas de vocabulário e itens linguísticos que se façam
necessários para o desempenho da tarefa principal.
Algumas opções metodológicas para o trabalho com pré-tarefas
têm sido implementadas. Para melhor visualização dessas opções, Ellis
e colaboradores (2020) propõem um quadro, que reproduzimos a
seguir.
482
Quadro 1- Resumo de opções metodológicas para
a pré-tarefa (ELLIS et al, 2020, p. 211)
• Durante o planejamento, os
professores podem permitir que os
alunos façam anotações, trabalhem
com materiais linguísticos e
planejem na sua língua materna ou
segunda língua, ou ambas.
483
Como podemos observar, são diversas as opções metodológicas
que trazem o trabalho com a fase da pré-tarefa, o que reforça a sua
importância dentro do PBT. Uma vez que nos alinhamos à opção me-
todológica que vai de encontro com o que propõe Prabhu no que diz
respeito ao uso e função da pré-tarefa, chamamos a atenção para as
duas primeiras propostas presente em “outras opções” no quadro acima.
Essa opção inclui atividades de preparação e familiarização do conteú-
do/tópico presente na tarefa, como tipo de ativação ou construção de
conhecimento de mundo. A segunda proposta dessa categoria é a já
mencionada anteriormente, conhecida como scaffolding, ou andaimes,
refere-se ao nível de assistência dos professores para que a tarefa seja
realizada de forma bem sucedida. Neste tipo de pré-tarefa o professor
fornece auxílio por meio de perguntas e respostas a partir de uma ta-
refa similar mais simplificada, com o objetivo de desenvolver no aluno
uma autorregularão, ou seja, “(...)a habilidade de realizar a tarefa sem
nenhum tipo de assistência” (ELLIS et. al., 2020, p. 221).
Uma vez que o foco da pesquisa que estamos desenvolvendo se dá
no contexto brasileiro de ensino de línguas, achamos relevante trazer,
na próxima seção, o que os pesquisadores nacionais entendem sobre a
fase da pré-tarefa e o que os estudos realizados envolvendo essa fase têm
apresentado.
484
Em sua pesquisa de mestrado, Barbirato (1999), com o objetivo
de analisar a construção do processo de ensino/aprendizagem da língua
inglesa por meio de tarefas comunicativas, fez uso de pré-tarefas. Para a
autora, as pré-tarefas aplicadas na sua pesquisa tiveram como finalidade
preparar os estudantes para a realização da tarefa escolhida. Nessa fase
foram utilizadas, por exemplo, atividades de compreensão da lingua-
gem oral para que os estudantes se familiarizassem com os tópicos que
seriam exigidos nas tarefas principais.
Onodera (2020), baseando-se nas fases de tarefa pro-
posto por Ellis (2003), teve como objetivo, em sua pesqui-
sa de doutorado, aplicar e avaliar a eficácia de um curso
de Inglês para Fins de Negócios baseado em tarefas orais, na modalidade
a distância. No que diz respeito às pré-tarefas aplicadas, seus resultados
demonstraram que essa fase teve influência positiva e foi fundamental
para a preparação da tarefa final. Como exemplo de pré-tarefa realizada
nesse estudo, o autor cita que os estudantes realizaram chamadas tele-
fônicas curtas, com poucas informações, uma vez que a tarefa final teve
como objetivo realizar outra chamada telefônica, porém com mais in-
formações e maior grau de complexidade. Também verificou que a pré-
-tarefa foi relevante para que os alunos utilizassem “apropriadamente os
itens lexicais, estruturas sintáticas e vocabulário de reuniões, discutiram
e argumentaram expondo suas opiniões” (ONODERA, 2020, p. 137).
Luce (2009) e Pereira (2015), trabalhando com uma linha mais
estruturalista dentro do PBT, mostraram um potencial positivo da pré-
-tarefa. Luce (2009), em sua dissertação de mestrado, analisou de que
formas as atividades de pré-tarefa ou pós-tarefa contribuíram para a
melhoria da produção escrita de estudantes adultos a partir do gênero
crítica de filmes. Resultados apontaram que as pré-tarefas com textos
autênticos “serviram de base para que os alunos pudessem apropriar-se
de estilos e ideias pertinentes ao gênero e ao tema” (LUCE, 2009, p.
127). Pereira (2015) investigou a percepção dos participantes sobre a
implementação de um ciclo de tarefas desenvolvido por meio da abor-
dagem embasada em tarefas a partir da temática turismo para um grupo
485
de aprendizes idosos de inglês como língua estrangeira. O objetivo das
pré-tarefas foi de motivar e providenciar input para as tarefas. Também
incluíram apresentação de vocabulário e alguma prática de pronúncia.
Resultados demonstraram que a fase da pré-tarefa atuou como uma
forma de encorajamento para a realização da tarefa principal.
Emidio (2017) ao propor um curso de inglês a distância por meio
de um planejamento temático baseado em tarefas (PTBT), na platafor-
ma Moodle, não fez uso da pré-tarefa em sua pesquisa. A autora apon-
tou, portanto, como limitação do seu estudo a não inclusão de pré-ta-
refas. Como sugestão, aconselha que o professor faça uso de pré-tarefas
como forma de andaime e que, provavelmente, o uso dessa fase na sua
pesquisa poderia ter solucionado o problema da falta de familiaridade
do aluno com o gênero textual trabalhado e afirma que “é possível que
com o uso de pré-tarefas, os alunos poderiam se sentir mais confortáveis
e melhor preparados para realizarem as tarefas e prosseguirem no curso”
(EMIDIO, 2017, p. 241). Ademais, a autora recomenda que a pré-ta-
refa pode ser trabalhada com o “intuito de auxiliar aqueles alunos que
demonstraram pouco conhecimento de língua inglesa ou alunos consi-
derados aprendizes iniciantes dessa língua” (EMIDIO, 2017, p. 214).
Abaixo, trazemos um quadro elaborado por Emidio (2017, p. 190),
demonstrando as dificuldades encontradas durante o curso aplicado e
as soluções para a realização das tarefas na plataforma proposta pela
pesquisadora.
486
Para finalizar nossa discussão sobre a fase da pré-tarefa, propomos
um quadro para contribuir com a visualização dos objetivos dessa fase
por diferentes autores, internacionais e nacionais.
Considerações finais
Concluímos este artigo reforçando que o estudo da pré-tarefa não
é algo novo, com seu início na década de 1980 no Projeto de larga es-
cala de Prabhu (1987), quando o Planejamento baseado em Tarefas não
487
havia ainda sido pensado. Pudemos compreender, pelas reflexões trazi-
das ao longo do texto, que, desde a sua implementação na Índia e após
o surgimento do PBT, a fase da pré-tarefa tem sido estudada, princi-
palmente, por autores internacionais. Os resultados desses estudos têm
demonstrado, na grande maioria, sua influência positiva na aquisição
de língua e melhor preparação dos estudantes para a tarefa.
Verificamos que a maioria dos autores, em especial os adeptos à
versão forte desse planejamento, compartilham da mesma definição de
pré-tarefa e corroboram com a ideia de que seu objetivo principal seja
preparar para a tarefa, servindo como um modelo e que não deve, assim
como propôs Prabhu (1987), ser vista como uma atividade de ensino de
itens linguísticos para a preparação da tarefa.
Entendemos a pré-tarefa como uma fase de construção inicial, for-
necedora de andaimes, muito necessária e relevante para a fase da tarefa,
principalmente para alunos considerados iniciantes. Apesar de presente
em alguns estudos realizados no Brasil, conforme apontamos, a fase da
pré-tarefa ainda não recebeu destaque nas pesquisas nacionais. Faltam
estudos, portanto, que corroborem para um melhor entendimento des-
sa fase para o processo de aquisição de línguas e como facilitadora para
a fase da tarefa entre estudantes no contexto nacional de ensino.
Finalizamos ressaltando que não tínhamos como intenção esgotar
o assunto a respeito das pré-tarefas nesta proposta e que muito ainda
pode ser discutido e apresentado sobre essa fase e seu papel no PBT.
Sugerimos que estudos empíricos envolvendo o PBT, com ênfase na fase
da pré-tarefa, em alunos brasileiros de diferentes contextos de ensino e
níveis de proficiência sejam realizados para que, além de fortalecermos
essa área de pesquisa, possamos contribuir, também, com professores
que pretendam aplicar esse planejamento de ensino em suas aulas de
línguas de forma mais eficaz e bem sucedida.
Referências
ALMEIDA FILHO, J. C. P. Dimensões comunicativas no ensino de línguas.
Campinas: Pontes, 2002.
488
ALMEIDA FILHO, J. C. P.; BARBIRATO, R. C. Ambientes comunicativos para
aprender língua estrangeira. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 36, n. 01, p. 23-
42, 2000.
LONG, M.A role for instruction in second language acquisition: Task-based language
teaching. In: HYLTENSTAM, K.; PIENEMANN, M. (Ed.) Modelling and assessing
second language acquisition. Clevedon: Multilingual Matters, n.18, p. 77-99, 1985.
489
ONODERA, J. Curso de inglês para fins de negócios (IFN) baseado em tare-
fas orais no AVA Edmodo: um estudo de caso. 2020, 265p. Tese (Doutorado em
Linguística) -Programa de Pós Graduação em Linguística. Centro de Educação e
Ciências Humanas. Universidade Federal de São Carlos, São Carlos/SP, 2020.
490
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
491
Portuguese Language Teaching Under the Perspective of Multiliteracies”,
developed together with the Letters course, at the Federal University of Mato
Grosso do Sul . Therefore, it proposes to produce digital prototypes aimed
at the teaching of languages, based on the assumptions of the Pedagogy of
Multiliteracies (COPE AND KALANTZIS, 2000; 2009, ROJO, 2013;
2015), which is related to the studies of the new ( multi)literacies (ROJO
and MOURA, 2012; LANKSHEAR and KNOBEL, 2007). In this sense, the
production of digital teaching prototypes is being supported, from a theoretical
point of view, on the idea of ergodic learning (LEFFA; BEVILÁQUA, 2019),
which requires an active posture from the user, given that he ceases to being a
consumer and becomes the protagonist of their learning and builder of their
meanings. Based on this, it is emphasized that the present project uses the
ELO (Online Language Teaching) tool for the creation of prototypes, since
ELO is an open material authoring system that enables the integration of
technological resources. for the development of digital teaching materials. In
view of the above, it is pointed out that the project methodology includes
three phases, namely: study of the aforementioned theoretical frameworks;
implementation of prototypes through the ELO tool; validation of prototypes
from users registered in the tool. Thus, it is mentioned that, currently, the
project is in the prototype creation phase. In this regard, we could see that the
prototypes developed based on the ergodic perspective allow the development
of an active posture of the user, which is compatible with the new ethos of the
new literacies.
KEYWORDS: Digital Teaching Prototypes; Multiliteracies; Ergodic Learning.
Introdução
A presente pesquisa apresenta os resultados atuais do projeto de
Iniciação Científica (IC), denominado “Protótipos Digitais Aliados ao
Ensino de Língua Portuguesa Sob a Perspectiva dos Multiletramentos”,
o qual é desenvolvido no curso de Letras, da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul. Originalmente, o projeto possui o intuito de
produzir protótipos digitais para o ensino de línguas, os quais estejam
ancorados no paradigma da aprendizagem ergódica e nos pressupostos
dos multiletramentos e dos novos letramentos. Para tanto, cabe afirmar
que os protótipos foram elaborados no sistema de autoria (doravante,
492
SA) ELO, devido a algumas vantagens que a ferramenta apresenta, as
quais serão expostas em seção posterior.
O surgimento das Tecnologias Digitais da Informação e da
Comunicação (doravante, TDICs) trouxe mudanças nos processos de
letramentos, fato que implicou alterações, também, no comportamen-
to dos sujeitos com relação à linguagem. Nesse sentido, frisa-se que
as TDICs impuseram novas semioses como, por exemplo, áudios, ví-
deos, imagens etc, nas práticas de produção de sentidos, as quais in-
fluenciaram na linguagem. Outrossim, é cabível destacar que um dos
estudos desenvolvidos nessa conjuntura foram os Novos Estudos dos
Letramentos (STREET, 1984; 1995), os quais passaram a enxergar a
linguagem pelo viés histórico, político, cultural e social.
Por conseguinte, elenca-se que as tecnologias influenciaram na es-
fera educacional, especificamente nos desdobramentos da Linguística
Aplicada. Sendo assim, Lemke (2010) faz um apontamento acerca da
postura dos seres humanos da era digital, os quais ele diz que estão, cada
vez mais, midiáticos e que, portanto, a educação deve considerar tais
predicados. Posto isso, Leffa e Beviláqua (2019) trazem o conceito da
“aprendizagem ergódica”, a qual evidencia um comportamento ativo,
colaborativo e protagonista do indivíduo, o qual participa ativamente
do seu processo de aprendizado. Logo, é pertinente que os materiais de
ensino se adequem ao perfil exposto, com o fito de proporcionar um
aprendizado significativo aos estudantes.
Diante dos pontos destacados, Rojo (2013) faz uma conceituação
acerca dos “Protótipos Digitais de Ensino”, os quais são conceitua-
dos como sendo uma espécie de PDF navegável. Quanto a eles, Rojo
(2013) afirma que seriam uma alternativa para o trabalho do professor
e do aluno, sob o prisma dos multiletramentos e dos novos letramen-
tos, ambos ancorados no uso das TDICs. Todavia, a autora (2017a) faz
novas acepções à teoria, ao pontuar que os protótipos seriam pautados
na Aprendizagem Interativa e teriam as TDICs intrínsecas à sua cons-
tituição. Em 2017b, Rojo traz evoluções ao afirmar que os protótipos
teriam a ideia de design e redesign e, também, uma arquitetura vazada,
493
o que permite ao professor e aluno realizar colaborações e inserções.
Nesse cenário, ao analisar a evolução teórica das propostas de Rojo
(2013, 2017a, 2017b), cabe problematizar a ideia de que um Protótipo
Digital de Ensino seria, apenas, um PDF navegável, haja vista que os
compreendemos, aqui, como alternativas potencializadoras para a pro-
dução de materiais ergódicos.
Ademais, destaca-se que as TDICs corroboraram para a criação de
ferramentas, as quais são consideradas meios para a criação eficiente de
materiais didáticos digitais interativos como, por exemplo, os protóti-
pos. Nesse âmbito, os SA configuram-se como instrumentos potencia-
lizadores para um aprendizado sob a ótica digital (LEFFA, 2006). Nessa
perspectiva, um SA é um sistema que permite a produção, operacio-
nalização, interação e reutilização de materiais didáticos em contexto
digital. Assim, neste artigo, defendemos a ideia de que um SA pode
ser considerado como um suporte para o uso e produção de protótipos
digitais ergódicos.
Para fins de análise, optamos, nesta pesquisa, por utilizar o ELO
como objeto de estudo dos SA, dado a algumas características vanta-
josas, as quais serão expostas posteriormente. Destarte, interessa-nos
evidenciar que os protótipos digitais desenvolvidos no ELO podem
ser considerados ergódicos, além de estarem presentes nas presunções
dos novos letramentos. Sob o ponto de vista retórico, o presente artigo
apresenta as as seguintes seções: a relação dos letramentos, multiletra-
mentos e dos novos letramentos; conceituação dos protótipos digitais e
sua conexão com a aprendizagem ergódica; conhecimentos acerca dos
sistemas autorais e uma dedicada a análise de um protótipo desenvol-
vido, por nós, no ELO, a fim de embasar, de modo prático, as teorias
exploradas nesta pesquisa; por fim, traçaremos considerações finais a
respeito da pesquisa.
494
práticas que possuíam a escrita como mediadora (KLEIMAN, 1991).
Nessa conjuntura, Street (1984; 1995) traz uma nova dimensão dos
estudos dos letramentos, a qual foi cunhada como “Novos Estudos do
Letramento” (New Literacy Studies, doravante NEL). Dessa forma,
Street enxergava os letramentos como práticas de cunho ideológico,
isto é, não havia o olhar, meramente técnico para o termo, visto que,
para o autor, eles não seriam habilidades neutras. Street considerava os
Letramentos em sentido sociocultural, no qual as atividades de escrita e
de leitura fazem parte de um contexto social, cultural, político e econô-
mico. Assim, Street (2003) diz que:
104
os NEL representam uma nova tradição ao abordar a natureza
do letramento, na qual há menos foco na aquisição de habili-
dades, como é recorrente nas abordagens tradicionais, e mais
ênfase no que significa pensar em letramento como prática so-
cial. Isso acarreta o reconhecimento de múltiplos letramentos,
que variam de acordo com o tempo e o espaço, mas também
estão atrelados a relações de poder. NEL, portanto, não toma
nada como óbvio a respeito do letramento e das práticas sociais
com as quais se relaciona, mas problematiza o que é considera-
do letramento em qualquer tempo e espaço e questiona quais
letramentos são dominantes e quais são marginalizados ou de
resistência. (STREET, 2003, p. 77).
104
Tradução nossa do original: “What has come to be termed the ‘New Literacy
Studies’ (NLS) (Gee, 1991; Street, 1996) represents a new tradition in conside-
ring the nature of literacy, focusing not so much on acquisition of skills, as in
dominant approaches, but rather on what it means to think of literacy as a social
practice (Street, 1985). This entails the recognition of multiple literacies, varying
according to time and space, but also contested in relations of power. NLS, then,
takes nothing for granted with respect to literacy and the social practices with
which it becomes associated, problematizing what counts as literacy at any time
and place and asking ‘whose literacies’ are dominant and whose are marginalized
or resistant.” (STREET, 2003, p. 77).
495
práticas sociais situadas, tendo em vista que existem diversos modos de
contextualizar os significados de ler e escrever nas esferas sociais. Assim
sendo, Street (2006, p. 466) frisa que “é enganoso pensar em uma coi-
sa única e compacta chamada letramento”, dadas as distintas práticas
sociais e épocas. À vista disso, Street disserta sobre sua preferência pelo
“modelo ideológico de letramento”, o qual considera a pluralidade dos
letramentos, da mesma maneira que “o significado e os usos das práticas
de letramento estão relacionados com contextos culturais específicos e
que essas práticas estão sempre associadas com relações de poder e ide-
ologia” (STREET, 2006, p. 466).
Dadas às questões citadas, é fundamental destacar que a emergên-
cia das TDICs exerce influência nas práticas sociais e nos letramentos.
Nesse sentido, um grupo de pesquisadores dos estudos da linguagem,
conhecido como “Grupo Nova Londres”, cunhou o termo “multiletra-
mentos” para contemplar a multissemiose de textos em circulação as
culturas múltiplas, presentes no mundo globalizado. Nesse contexto,
frente à multiplicidade de multimodalidade, é coerente pontuar que a
sociedade hodierna contém um cenário comunicativo, no qual diver-
sas modalidades de linguagem materializam-se, de modo a expandir a
significação dos enunciados (LEMKE, 2011). Logo, os textos multi-
modais estão, gradualmente, ganhando mais espaço, se comparados à
cultura do grafocentrismo.
Por conseguinte, destaca-se que os multiletramentos possuem re-
lação, também, com a multiplicidade cultural, a qual está presente em
diversas linguagens e em momentos específicos. Diante disso, Cope e
Kalantzis (2006, p. 166) frisam acerca da crescente variedade de “lin-
guagens sociais” (GEE, 1996), uma vez que, para eles, a propagação
das multiplicidades culturais e de linguagem segue a reestruturação dos
domínios do trabalho, da vida social e da cidadania, os quais integram
a vida humana (KALANTZIS; COPE, 2006 [2000]). Assim, Cope e
Kalantzis evidenciam que uma educação linguística contemporânea
deve levar em consideração as multiplicidades impostas pelos multile-
tramentos, bem como a reestruturação dos âmbitos da vida humana, os
quais foram supracitados.
496
As TDICs criaram, além da reestruturação dos campos da vida hu-
mana, uma nova configuração no relacionamento entre os cidadãos e as
instituições. A respeito disso, Cope e Kalantzis (2009) afirmam que a
relação Estado-cidadão (top-down) está, paulatinamente, sendo substi-
tuída por uma relação, na qual os sujeitos exercem papel ativo, ou seja,
não atuando, apenas, como consumidores, mas como produtores de
seus próprios sentidos. Portanto, os autores pontuam que , dada à me-
nor influência do Estado, há a emergência por dispositivos que se auto-
governam e, nessa perspectiva, elenca-se a internet, a qual expande pos-
sibilidades para que os usuários selecionem informações, assim como
criem e compartilhem diversos conteúdos. Logo, Cope e Kalantzis ex-
planam sobre as novas gerações e suas relações de autonomia:
105
Eles [novas gerações] buscam ser atores em vez de audiência,
jogadores em vez de espectadores [...]. Não contentes com o
rádio, essas crianças criam suas próprias playlists em seus iPods.
Não contentes com a televisão tradicional, eles leem suas narra-
tivas por DVDs e vídeos via internet-stream, variando na pro-
fundidade dessa leitura (o filme, o documentário a respeito do
making-of do filme) [...]. Não contentes com uma visão única
da transmissão de jogos esportivos pela televisão aberta, eles es-
colhem seus próprios ângulos, replays e análises estatísticas na
televisão interativa. (COPE; KALANTZIS, 2009, p. 173).
497
Dessa maneira, Lemos (2002) diz que um dos princípios norteadores
da cibercultura é a remixagem, haja vista que ela permite que qualquer
indivíduo crie informações veiculadas na internet, em distintos gêneros
discursivos e em diferentes modalidades. Destarte, é perceptível que
esse processo está de acordo com o ser humano ativo, o qual é defendi-
do por Cope e Kalantzis (2006).
Outrossim, é primordial trazer a concepção dos Novos Letramentos
(Lankshear e Knobel, 2007), o qual difere dos multiletramentos. Nesse
viés, afirma-se que, enquanto os multiletramentos são baseados na
multiculturalidade e na multissemiose, os novos letramentos, além de
pautar esses dois conceitos, também evocam a presença das TDICs
em sua constituição. Em suma, ressalta-se que nem toda prática de
multiletramentos pode ser relacionada com um novo letramento.
Com isso, salientamos que esta pesquisa utiliza a teoria dos novos le-
tramentos (STREET e KNOBEL, 2007), tendo em vista que os pro-
tótipos desenvolvidos no ELO estão, inerentemente, relacionados às
TDICs, dado que sua operacionalização está condicionada ao uso de
tais ferramentas.
498
Em vários momentos, acreditou-se que existiam várias maneiras de
aprender como, por exemplo, um ensino expositivo, no qual o aluno
era um agente passivo, até um ensino ativo, no qual o aluno é mar-
cado por ser um estudante, sendo objeto do verbo aprender (LEFFA;
BEVILÁQUA, 2019). Nesse cenário, pontua-se que a aprendizagem
ergódica considera o estudante em seu processo, visto que exige uma
postura ativa para sua operacionalização. Portanto, a aprendizagem er-
gódica é um conhecimento construído por pessoas e objetos, envol-
vendo as seguintes teorias: 1) pós-humanismo (PENNYCOOK, 2017);
2) agência distribuída (LATOUR, 1988; RAMMERT, 2008); 3) rea-
lidade aumentada (MARTÍN-GUTIÉRREZ et al, 2015) a realidade
aumentada.
Em seguimento, destaca-se que as telas possuem a característica
de serem muito mais voláteis, pois permitem diversas alterações em
seus conteúdos, diferentemente do papel impresso, o qual é estanque
(LEFFA, BEVILÁQUA, 2019). Nessa conjuntura, é cabível mencionar
que o ambiente digital possui, também, espaços destinados ao apren-
dizado de línguas, os quais contêm a presença de recursos e conteúdos
digitais e interativos. Quanto a isso, elenca-se que o ELO, por exem-
plo, configura-se como uma ferramenta presente em ambiente digital
interativo, uma vez que permite que os usuários corrijam atividades,
colaborem, modifiquem conteúdos, forneçam feedback, além de exigir
uma postura ativa, frente à sua dinâmica etc.
Analisando a ferramenta citada e outras existentes, pontua-se o
conceito de Protótipos Digitais de Ensino, estabelecido, inicialmente,
por Rojo (2013), o qual indica que protótipos seriam materiais didá-
ticos navegáveis e interativos, disponibilizados de forma aberta e co-
laborativa, sob a perspectiva dos multiletramentos. Desse modo, os
protótipos digitais de ensino “seriam um “esqueleto” de sequência
didática (SD) a ser “encarnado” ou preenchido pelo professor”
(ROJO, 2013a, p. 193). Nessa instância, Rojo (2017a) faz adições à
teoria, ao frisar que os protótipos estão ancorados no Paradigma da
Aprendizagem Interativa e no uso efetivo das TDICs, de forma que o
professor não ocupa mais função central no processo de aprendizagem,
499
ou seja, o aluno se comporta como um coautor. Ademais, em 2017a, a
autora afirma que os protótipos motivam “um trabalho digital aberto,
investigativo e colaborativo” (ROJO, 2017a, p. 18) para os alunos e
professores. Logo, destaca que:
500
Diante da postulação, percebe-se que a autora destaca que os pro-
tótipos seriam marcados pela colaboratividade, além do uso substancial
das TDICs. Todavia, a definição de protótipo como um PDF navegável
é passível de problematização, pois esse pressuposto assemelha-se à ideia
do impresso, o qual é estático e não exige envolvimento do sujeito.
Nisso, ressalta-se que as contribuições dos estudos acerca da aprendiza-
gem ergódica para os protótipos digitais oferecem um quadro promis-
sor para a criação de novas inteligibilidades a respeito dos materiais de
ensino de língua na contemporaneidade. Logo, discorreremos, a seguir,
sobre os Sistemas Autorais de Materiais Didáticos, os quais entendemos
como suporte para a produção de protótipos digitais ergódicos.
106
Disponível em: <https://elo.pro.br/cloud/>. Acesso em: 24 jul. 2022.
501
Acerca do ELO, objeto de análise deste artigo, justifica-se que a
escolha por ele se deve a algumas vantagens, dentre elas: tutoriais de-
talhados para orientação dos usuários; bom resultado final; interface
visual agradável; auxílios personalizados ao usuário e várias opções de
mídia para a criação de conteúdos. Além disso, destaca-se que tal fer-
ramenta é gratuita, contém um banco de dados inerente à conta e é
colaborativa.
Por conseguinte, pontua-se que o ELO possui três opções de aces-
so, cada uma com suas especificidades: estudante, professor e visitante.
Assim, cabe mencionar que o ELO possibilita a criação, adaptação, re-
elaboração e edição de atividades diversas a respeito de conteúdos di-
versos. Ademais, cumpre destacar que o ELO transcende a noção de
SA, pois permite o compartilhamento, a (co)criação em rede e o ar-
mazenamento das atividades criadas, as quais são licenciadas de modo
automático, por intermédio da licença Creative Commons BY – NC,
permitindo, com isso, a adaptação e uso dos conteúdos, sem fins co-
merciais, mas com respeito aos créditos autorais.
O ELO disponibiliza, a seus usuários, nove módulos para criação
de atividades interativas, a saber: memória, eclipse, texto, organi-
zador, sequência, cloze, quiz, vídeo e composer. Diante dos pontos
elencados, o ELO ainda oferece feedback às atividades desenvolvidas,
o que é um recurso interessante, dada a interação e apoio pedagógico
entre professor e aluno. Nesse quadro, pondera-se que o ELO possui
três tipos de feedback: o feedback genérico, que responde apenas se
o exercício está certo ou errado; o situado, que sugere comentários
sobre a atividade, buscando mostrar os erros ou acertos do aluno e
o estratégico, que sugere estratégias de aprendizagem de modo in-
dutivo, ou seja, sem apontar onde está o erro ou acerto, apenas exi-
bindo possíveis caminhos para chegar a tal resultado. Com o fito de
demonstrar o ELO, a seguir, será exibida uma imagem da página
inicial do SA:
502
Figura 1: Apresentação do ELO.
Fonte: <https://elo.pro.br/cloud/>.
503
atividade supramencionada é classificada nas seguintes categorizações:
Língua ou área - Língua Portuguesa; Faixa Etária - Jovens; Nível de
Dificuldade - Médio. Outrossim, salienta-se que a atividade possui seis
módulos, os quais foram construídos por meio dos recursos disponí-
veis na ferramenta, especificamente: hipertexto, vídeo, memória, quiz e
cloze. É oportuno frisar que as atividades no ELO podem receber fee-
dbacks e avaliações entre os usuários, fato que coloca a colaboratividade
como característica intrínseca ao SA em voga.
Ao navegar pela atividade, são apresentadas instruções iniciais,
as quais são postadas pelo autor e, após isso, iniciam-se os módulos.
Como citado, o primeiro corresponde a uma atividade com recurso de
hipertexto. Neste módulo, esse recurso foi utilizado, a fim de fazer con-
textualizações teóricas a respeito do assunto “Figuras de Linguagem”.
Salienta-se que o ELO possui um editor que possibilita a escrita de
textos com diversas opções de fontes e estilo, assim como a inserção de
imagens, vídeos, links entre outras mídias. Adiante, segue uma imagem
do módulo descrito:
504
módulo hipertexto, reconhecemos que não há tanta imersão do usuá-
rio, haja vista que é um módulo de caráter mais teórico e introdutório.
Entretanto, nos módulos posteriores, o usuário necessita participar ati-
vamente da dinâmica da atividade, visto que sem essa participação, não
é possível concluir a atividade. Para fins demonstrativos e por questão
de espaço, selecionamos o módulo “jogo da memória”, denominado
“Vamos exercitar um pouco mais sobre figuras de linguagem”, o qual
exige que o usuário jogue para que a atividade seja executada e conclu-
ída. A seguir, exibimos uma imagem do módulo citado:
505
colaborativos e interativos. Ademais, as TDICs são parte constituinte
da ferramenta, fato que coloca os novos letramentos em destaque, dado
que eles exigem a presença das tecnologias em sua execução. Portanto,
é coerente afirmar que a ideia de protótipos digitais como sendo PDFs
navegáveis não é condizente com os materiais produzidos em SAs, os
quais são, consideravelmente, participativos e colaborativos. Logo, des-
taca-se que o ELO configura-se como um suporte para o desenvolvi-
mento de protótipos digitais, sob a perspectiva da aprendizagem ergó-
dica e dos novos letramentos.
Para tanto, constata-se que a ideia de protótipos digitais ergódicos é
válida, uma vez que o ELO permite a criação de protótipos, os quais po-
dem ser interativos e colaborativos. Além disso, as TDICs são inerentes
à ferramenta, o que coloca os novos letramentos em destaque, dado que
eles exigem a presença das tecnologias em seu funcionamento. Assim,
afirma-se que a ideia de protótipos digitais como PDFs navegáveis não
supre a proliferação de protótipos produzidos em SAs altamente parti-
cipativos e colaborativo, logo, frisa-se que o ELO se configura como um
suporte para a elaboração de protótipos digitais ergódicos, pautados nos
processos dos novos letramentos.
Considerações finais
Após a conclusão deste trabalho, é relevante mencionar que os
novos letramentos estão, gradativamente, mais presentes na sociedade
contemporânea, dado o uso mais acentuado das TDICs nas esferas co-
tidianas. Nesse contexto, a educação linguística deve atentar-se a tais
mudanças, com o propósito de pensar e criar novas implementações,
ações e políticas que sejam condizentes com o perfil da sociedade atual.
Para tanto, é necessário que os educadores e pesquisadores pensem em
materiais didáticos para o ensino de línguas, os quais atendam às expec-
tativas de um público, cada vez mais, midiático e protagonista de sua
própria aprendizagem.
Por conseguinte, conclui-se que, a partir da realização desta pesqui-
sa, os novos letramentos impulsionam um comportamento mais ativo
nos indivíduos, o que pode ser observado por meio da aprendizagem
506
ergódica, sobretudo na relação de envolvimento das pessoas com o ob-
jeto de ensino. Dessa forma, cita-se que essa aprendizagem exige que
o aluno seja um estudante, ou seja, ativo e protagonista, não somente
passivo. Depreende-se, portanto, que essa aprendizagem deve ser levada
em consideração nas elaborações de materiais didáticos, bem como na
preparação de atividades e aulas, com o fito de que sejam significativas
aos estudantes. Posto isso, concluímos que os SAs, especificamente o
ELO, potencializam a produção de materiais didáticos ergódicos.
A respeito dos protótipos digitais sob a perspectiva da aprendiza-
gem ergódica, produzidos no ELO, concluímos que eles são alternativas
válidas para a viabilização de um ensino de linguagens que contemple
os novos letramentos, além de serem formas coerentes para a aplicação
da aprendizagem ergódica, visto que exigem o uso efetivo das TDICs
e são colaborativos e ativos. À vista disso, foi possível perceber que os
protótipos não são, apenas, PDFs navegáveis, haja vista que transcen-
dem tal ideia, como pode ser observado por meio do ELO. Para ta,
entendemos que os SAs são suportes efetivos para a operacionalização
de materiais didáticos digitais, interativos e ergódicos.
Portanto, com esta pesquisa, concluímos que a educação linguística
deve potencializar as ferramentas digitais, disponíveis na web, para aten-
der aos interesses e características de um grupo de estudantes midiáticos
e protagonistas. Assim, utilizar SAs, como o ELO, para a produção de
protótipos digitais de ensino é uma maneira bastante compatível para a
execução da aprendizagem ergódica e dos novos letramentos. Em suma,
conclui-se que os protótipos desenvolvidos no ELO são materiais in-
terativos, tecnológicos, ergódicos e colaborativos, os quais devem ser,
paulatinamente, implementados no ensino de línguas na escola.
Referências
AARSETH, E. J. Cybertext: perspectives on ergodic literature. The Johns Hopkins
University Press: 1997.
507
COPE, B.; KALANTZIS, M. (Eds). Multiliteracies – Literacy Learning and the design of
social futures. New York: Routledge, 2006[2000].
COPE, B.; KALANTZIS, M. Designs for social futures. In: COPE, B.; KALANTZIS,
M. (Eds). Multiliteracies: Literacy Learning and the design of social futures. Nova York:
Routledge, 2006[2000], p. 203-234.
GEE, J.P. Social linguistics and literacies: Ideology in discourses. London: Taylor and
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(Orgs.) A new literacies sampler: New literacies and digital epistemologies. Nova York:
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LEFFA, V. J. Nem tudo que balança cai: objetos de aprendizagem no ensino de línguas.
Polifonia. Cuiabá, v. 12, n. 2, 2006. p. 15-45.
508
RAMMERT, W. 2008. Where the action is: distributed agency between humans, ma-
chines, and programs. In: SEIFER, U.; KIM, J. H.; MOORE, A. (Org.). Paradoxes of
Interactivity. New Brunswick: Transcript and Transaction Publishers, 2008, p. 62-91.
509
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
510
recurrences and transformations related to the aspects considered in the
evaluation process and to build an overview that allows a better understanding
of the genre and its impacts in teaching-learning. Based on theoretical
contributions from Textual Linguistics and the official documents that govern
the Enem and essay evaluation, through a quali-quantitative, descriptive and
interpretative approach, the research focuses on a corpus composed of 38
copies of note essays thousand of the editions from 2013 to 2018, published
in the Participant Booklets made available by the Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). The results indicate
a variation in the treatment given to the intervention proposal over the years
when comparing aspects such as the command given in the drafting proposal
for the elaboration of the social intervention proposal and the constitutive
elements of its organizational structure (agent, action, mode/medium, effect
and detail) and considered in their evaluation, which possibly has impacts on
school approaches to writing.
KEYWORDS: Enem; Essay of Enem; Social Intervention Proposal.
511
V da redação do Enem), um recorte de projeto mais amplo cujo objetivo
central é mapear, descrever e analisar recursos textuais caraterizadores
de competências exigidas na referida redação, com vistas à construção
de pistas que possam nortear estratégias e metodologias de ensino desse
tipo textual – um gênero, melhor dizendo, já que se consolidou como
prática social, ainda que “limitada” a uma avaliação de larga escala
como é o Enem.
Com base na Matriz de Referência do Enem, a competência V da
redação exige do participante a seguinte operação: “Elaborar propos-
ta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos
humanos.” (BRASIL, 2019, p.5)107, exigência que cumpre os Eixos
Cognitivos III e V da referida Matriz, quais sejam:
107
As demais competências são (cf. BRASIL, 2002, p.14): I. Demonstrar domínio
da norma culta da língua escrita; II. Compreender a proposta de redação e apli-
car conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro
dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo; III. Selecionar, re-
lacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em
defesa de um ponto de vista; IV. Demonstrar conhecimento dos mecanismos
linguísticos necessários para a construção da argumentação. Na redação do refe-
rido exame, as competências são avaliadas em seis níveis de desempenho (0, 40,
80, 120, 160, 200 pontos).
512
participante, que obteve a nota máxima no exame, foi construindo a
sua Proposta de Intervenção Social? Será que essa Proposta era exigida
desde a primeira edição do Enem? A essas e outras perguntas, baseadas
nos argumentos supracitados - e considerando a dimensão do Exame
- este artigo busca responder, apresentando o mapeamento, a compre-
ensão, bem como a análise das variações que a Proposta de Intervenção
Social vem sofrendo ao longo dos tempos em exemplares de redações
avaliadas com a nota máxima e disponibilizadas pelo Inep (Instituto
Nacional de Estudos de Pesquisas Educacionais) nas Cartilhas do
Participante, observando-se a recorrência e a presença/ausência dos
elementos exigidos na Proposta de Intervenção Social (agente, ação,
modo/meio, efeito e detalhamento).
513
1999, no entanto, o comando dado ao participante solicitava que ele
elaborasse uma proposta de ação social, além disso, o uso do título
do texto não apareceu na proposta de redação (BRASIL, 1999). A
edição do Enem 2001, por sua vez, apresentou outra mudança: o
respeito aos direitos humanos e a elaboração de propostas para
a solução do problema. (BRASIL, 2001). Com o passar dos anos,
novas mudanças foram sendo incluídas nas propostas de redação e, na
edição de 2012, o Enem trouxe uma nova nomenclatura: Proposta
de Intervenção Social (BRASIL, 2012). Logo, devido ao fato de a
proposta de redação trazer alguns comandos divergentes em cada
edição, faz-se necessário, neste artigo, mencionar a diferença entre
Proposta de Ação Social, utilizada em algumas edições, e Proposta
de Intervenção Social, presente na Matriz de Referência do Enem e
em alguns documentos oficiais, como as Cartilhas do Participante,
disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e os Manuais de Correção, tam-
bém disponibilizados pelo mesmo Instituto. Buscando no dicionário
Piberam a definição mais apropriada para intervenção é: “ato de in-
tervir; intermédio”. Por outro lado, buscando no referido dicionário,
a definição de ação é: “ato ou efeito de agir; movimento ou ativida-
de para obter determinado resultado; influência ou efeito sobre algo
ou alguém” (PIBERAM, 2020). Sendo assim, com as definições do
dicionário apropriadas para a proposta de redação, pode-se perceber
algumas diferenças: enquanto a Proposta de Ação Social solicitava
ao participante a ação para se chegar a algum resultado, a Proposta
de Intervenção Social admite o intermédio do participante, a in-
tervenção dele - e da sociedade - para a construção de uma proposta
detalhada, que envolva não só ele, mas o social como um todo. Na
imagem a seguir, representada por uma linha do tempo, podem ser
observados todos os dados elencados neste tópico, de forma resumida
acerca da variação da Proposta de Intervenção.
514
Figura 1 – Variações da Proposta de Intervenção Social
515
Na próxima seção tratar-se-á dos elementos que estão presentes na
proposta de intervenção e sua relação com as variações mencionadas ao
longo deste tópico.
108
As Cartilhas do Participante do Enem “[...] apresentam dicas importantes para
produzir uma boa redação no dia do Exame. Além disso, trazem exemplos de
redações do Enem [...] que obtiveram nota máxima.” (BRASIL, 2019, p.3). As
Cartilhas do Participante são divididas em edições anuais: em 2016, com reda-
ções nota mil das edições 2015, 2014 e 2013 do Enem; em 2017, com redações
da edição 2016 do Enem; em 2018, com redações da edição 2017 do Enem; e
em 2019, com redações da edição 2019 do Enem.
516
texto (BRASIL, 2019). O elemento ação tem como foco a ação prática
demonstrada pelo participante como sendo necessária à resolução do
problema apresentado no tema proposto, enquanto o elemento agente
identifica o ator social apontado para executar a ação que se propõe. Já o
elemento modo/meio trata da maneira e os recursos pelos quais a ação
é realizada e o elemento efeito corresponde aos resultados pretendidos
ou alcançados pela ação proposta. Por fim, o elemento detalhamento,
em que são utilizadas informações adicionais sobre os outros elementos
já citados. (BRASIL, 2019).
A título de ilustração, pode-se observar a articulação desses elemen-
tos no seguinte exemplo:
517
Análise e discussão de resultados: considerações acerca da
Proposta de Intervenção Social
Nesta seção, analisar-se-á, por meio dos dados extraídos das carti-
lhas do participante do Enem, a presença dos elementos da redação do
Enem ao longo dos anos 2013 a 2018. Além disso, busca-se mapear a
recorrência de tais elementos, com o número médio da sua recorrência,
a análise detalhada e específica de cada elemento, bem como a sua dis-
tribuição percentual.
No primeiro gráfico, a seguir, apresenta-se um panorama acerca do
uso do elemento ação nas redações nota 1000 do Enem.
518
A seguir, o gráfico responsável pela concretização do mapeamento
do uso do elemento agente nas redações:
519
O agente, no contexto da Redação Enem, é um item que não se
caracteriza pela estaticidade e pela inflexibilidade, isto é, o seu emprego
pode ser estabelecido de forma diversa, flexível e fluida, de acordo com
o tema e com as necessidades argumentativas construídas ao longo do
projeto de texto. Sendo assim, torna-se essencial a estruturação de um
panorama gráfico que expresse, panoramicamente, quais são, quanti-
tativamente, os principais agentes recorridos nas redações nota 1000
entre o período de 2013 a 2018, conforme se apresenta nos gráficos
seguintes.
520
Figura 5. Percentual de agentes recorrentes nas redações nota mil do Enem 2017.
Figura 6. Percentual de agentes recorrentes nas redações nota 1000 do Enem de 2016.
521
O gráfico de setor representativo da edição do Enem de 2016, de-
certo, é o que mais se reveste em diversidade e em expressividade nu-
mérica, o que, possivelmente, endossa a ideia de que, nesse contexto
histórico/cronológico do Enem, existia a valorização quantitativa do
emprego de agentes nas propostas de intervenção social das redações, já
que a sua matriz foi sendo alterada ao longo dos tempos.
Figura 7. Percentual de agentes recorrentes nas redações nota 1000 do Enem 2015.
Figura 8. Percentual de agentes recorrentes nas redações nota 1000 do Enem 2014.
522
O gráfico da Figura 8 representa, quase de forma homogênea, o
uso dos agentes nas redações nota 1000 de 2014. Com exceção do
agente “Sociedade”, que abarca 33,3% da área, os demais: “Empresas
de Publicidade”, “Escola”, “Estado” e “Legislação Brasileira” atingem o
percentual máximo de 16,7%.
523
Figura 10. Presença do elemento “modo/meio”
nas propostas de intervenção social.
524
Figura 11. Presença do elemento “efeito” nas propostas de intervenção social.
525
14,3% da amostra, utilizaram o detalhamento no agente e no modo/
meio, respectivamente.
Na edição 2017, por sua vez, 35,7% da amostra consultada ficou
destinada ao detalhamento no efeito; 28,6% na ação; 14,3% tanto no
modo/meio quanto no efeito; e 7,1% foi destinado aos detalhamentos
dos elementos agente, modo/meio e ação/modo/meio.
A edição 2016 trouxe, como detalhamento, algumas variações,
pois, no corpus de redações nota mil analisadas, em 44,4% da amostra
não havia detalhamento, ou seja, os participantes não detalharam as
suas propostas de intervenção, ou ainda, não trouxeram informações
relevantes/complementares para enriquecer a proposta. Além disso,
33,3% detalharam o elemento ação, e 22,2% detalharam o elemento
efeito.
Na edição 2015, em 40% da amostra analisada não havia detalha-
mento e, em 20%, houve detalhamento na ação, no agente e no efeito,
respectivamente. Dando continuidade aos detalhamentos recorrentes
em cada edição da redação do Enem, em 2014, em 50% da amostra ha-
via o detalhamento na ação, 33,3% no efeito e 16,7% no agente. Por
fim, na edição 2013, em 40% da amostra analisada, o detalhamento
ocorreu na ação, no entanto, na mesma quantidade citada acima, não
houve a ocorrência do detalhamento nas propostas de intervenção e, em
20%, o detalhamento se deu no modo/meio.
O gráfico a seguir apresenta todos esses dados de forma conjunta,
representando a presença do detalhamento nas propostas de interven-
ção da redação do Enem e a sua ocorrência.
526
Figura 12. O elemento “detalhamento” nas redações do Enem de 2013 a 2018.
Considerações finais
Por meio desta pesquisa, com a análise de 38 redações divididas
em quatro cartilhas do participante, foi possível identificar as variações
que a redação do Enem passou ao longo dos anos, entre 2013 e 2018,
a começar pelo comando solicitado ao participante, que, nas primeiras
edições, não previa a “proposta de intervenção”, que depois passou a
ser denominada “proposta de ação social” e, atualmente, “proposta de
intervenção social”. Além disso, outras mudanças foram sendo observa-
das, como a inclusão do “respeito aos direitos humanos”.
A pesquisa se baseou nas redações que receberam nota máxima na
avaliação e foram publicadas na Cartilha do Participante da redação do
Enem das edições 2013 a 2018, analisando as propostas de intervenção
social, requisito importante para se obter a nota máxima no Exame.
Dito isso, a análise detalhada de cada elemento da proposta, seguida de
527
sua recorrência nas redações, foi importante para se tecer algumas con-
clusões. A primeira delas é que a proposta de intervenção social segue
alguns parâmetros para ser completa e detalhada e tais requisitos são
visíveis ao longo dos anos.
Os direitos humanos, quando delimitados enquanto prática edu-
cacional, pedagógica, metodológica constituinte do bojo da matriz de
avaliação da Redação do Enem, adquirem caracteres que extrapolam
a simples adequação legal a acordos e a documentos que prescrevem,
burocraticamente, políticas e programas sociais de garantia básica de
condições determinantes para o desenvolvimento cognitivo, educacio-
nal e cultural dos indivíduos. Há de considerar, a partir de uma lógica e
de uma leitura críticas do fenômeno, que o Enem, na redação, especial-
mente, concede ferramentas, para que naqueles que prestam o exame
sejam engendradas noções, comportamentos e posturas que refletem,
para além da teoria, na vivência plena e, principalmente, na prática do
que se entende por liberdade, dignidade e igualdade, expressões norte-
adores da existência da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Trata-se e aspectos que moldam o Enem e, progressivamente, endossam
a sua identidade e a sua relevância dentro do quadro educacional bra-
sileiro, como pode ser observado pelas variações que foram ocorrendo
ao longo dos anos em termos da presença e organização dos elementos
constituintes da Proposta de Intervenção Social, conforme ilustram os
dados investigado na pesquisa e analisados neste artigo.
Referências
ABREU, Ricardo Nascimento. Exercício da cidadania e direitos humanos: as funções
da competência V na redação do ENEM. In: SILVA, Leilane Ramos da; FREITAG,
Raquel Meister Ko. (Org.). Linguagem, interação e sociedade: diálogos sobre o
ENEM. João Pessoa (PB): Editora do CCTA, 2015, p. 97-108.
528
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
Ministério da Educação. Documento Básico. Brasília, 2002. Disponível em: http://
portal.inep.gov.br/documents/186968/484421/ENEM+-+Exame+Nacional+do+Ensi
no+M%C3%A9dio+documento+b%C3%A1sico+2002/193b6522-cd52-4ed2-a30f-
24c582ae941d?version=1.2. Acesso em: 14 dez. 2020.
G1. Redação do Enem que ferir direitos humanos não pode tirar nem nota zero
nem nota mil; entenda. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/enem/2017/
noticia/redacao-do-enem-que-ferir-direitos-humanos-nao-pode-tirar-nem-nota-zero-
-nem-nota-mil-entenda.ghtml. Acesso em: 06 mar. 2021.
TEIXEIRA, Wagner Barros. Redação ENEM: um olhar para os direitos humanos. In:
SANTOS-JUNIOR; DINIZ, Leandro Rodrigues Alves Diniz. Avaliação em Língua
Portuguesa. Em Aberto, Brasília, v. 32 n. 104, 2019. Disponível em: http://rbep.inep.
gov.br/ojs3/index.php/emaberto/article/view/4197. Acesso em: 07 dez. 2020.
529
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
530
the main element promoting inspiring learning experiences. The implications
of this study point to the need to provide meaningful and inspiring experiences
for English students in regular schools so that the paradigm of inefficiency of
English learning in this context can be deconstructed.
KEY WORDS: experiences; inspiring teaching; regular school.
Introdução
O ensino e aprendizagem de língua inglesa em escolas regulares,
principalmente públicas, é marcado por histórias de desafios, frustra-
ções e insucessos. Essas histórias podem ser evidenciadas nos trabalhos
de vários autores (COELHO, 2005; PAIVA, 1997; MOITA LOPES,
1996; BARCELOS, 2006; BARCELOS, 2007) que identificaram esse
contexto como sendo marcado por crenças e discursos que reforçam
o paradigma da ineficiência do ensino e aprendizagem de inglês em
escolas.
Miccoli (2010) utiliza a expressão “inglês de colégio” (MICCOLI,
2010, p.177, grifo da autora) para se referir a um conhecimento res-
trito de inglês, longe de refletir aquele ensino que propicia ao aluno
uma aprendizagem mais ampla, envolvendo as quatro habilidades
linguísticas.
Barcelos (2006) assevera que as crenças sobre ensino-aprendizagem
de línguas poderiam ser definidas como resultantes de um processo de
interpretação e ressignificação que ocorre por meio de nossas experiên-
cias. Ao conceber as crenças como “construções” da realidade por meio
daquilo que é experienciado, poderíamos compartilhar os seguintes
questionamentos da autora:
531
A pesquisa de Arruda (2014) representa um grande avanço no sen-
tido de responder a essas perguntas ao propor uma investigação sobre
experiências bem-sucedidas de aprendizagem de inglês em escolas pú-
blicas, apresentando dados de narrativas de professores e seus respec-
tivos alunos que comprovaram ser possível ter uma aprendizagem de
sucesso em sala de aula. Concordo com a autora quando alerta para a
necessidade de investirmos em mais pesquisas que busquem eviden-
ciar experiências bem-sucedidas de ensino e aprendizagem no ensino
regular, seja ele público ou privado. No sentido de contribuir com
essa tarefa, apresento aqui um recorte da minha tese de doutoramen-
to (SALDANHA, 2019) que teve como objetivo central identificar e
descrever as experiências inspiradoras de estudantes e professores de in-
glês em escolas regulares da Grande Belo Horizonte a fim de conhecer
e refletir sobre os elementos que modulam tais experiências buscando
assim, coletar evidências que abalem a crença de que não é possível
aprender inglês nesse contexto.
Para a discussão teórica, apoiei-me nas teorias Sociocultural
(VYGOTSKY, 1999; SWAIN, KINNEAR e STEINMAN, 2010),
na Psicologia Positiva e nos estudos sobre emoções (ARAGÃO, 2007;
MERCER, 2011; SWAIN, 2013; MACINTYRE e MERCER, 2014),
na Pesquisa Experiencial (MICCOLI, 1997, 2007, 2010, 2012) bem
como nos estudos sobre Ensino Inspirador (LAMB e WEDELL, 2013a,
2013b; JENSEN, ADAMS e STRICKLAND, 2014) e sobre a relação
professor-aluno (MORALES, 2006; GILES, 2008).
Em relação à metodologia, esta pesquisa se caracteriza como um
estudo de caso de natureza mista (DÖRNYEI, 2007) e interpretativis-
ta, adotando uma perspectiva êmica ao valorizar as vozes dos próprios
participantes por meio das narrativas sobre as experiências vivenciadas
e relatadas por eles. Foram utilizados os seguintes instrumentos para a
geração de dados: pesquisa de opinião online, questionário perfil do
professor, entrevistas semiestruturadas, notas de campo (utilizadas nas
observações de aulas dos professores participantes).
532
Primeiramente, foi feita uma pesquisa de opinião por meio de um
questionário online, inspirado em Lamb e Wedell (2013a), aplicado a alu-
nos do ensino médio em escolas públicas e particulares de Belo Horizonte.
Este questionário teve como objetivo identificar professores de inglês que
inspiraram e fizeram a diferença na aprendizagem – e na vida – daqueles
alunos. As respostas obtidas no questionário foram filtradas até que pu-
dessem ser selecionados os 7 professores participantes deste estudo.
O presente estudo foi realizado em sete escolas regulares (quatro
públicas estaduais, uma municipal, uma escola particular e uma de en-
sino médio técnico) da região metropolitana de Belo Horizonte onde
lecionam os sete professores indicados por seus ex-alunos que respon-
deram ao questionário sobre professores inspiradores de inglês. Essas
escolas atendem a alunos do ensino fundamental e médio.
As análises, quantitativas e qualitativas, foram realizadas em dife-
rentes etapas, tomando-se como base os dados gerados por meio: da
pesquisa de opinião, do questionário perfil do professor, das entrevistas
e das observações e notas de campo. As análises da pesquisa de opi-
nião foram realizadas segundo os procedimentos adotados por Lamb
e Wedell (2013a); as das entrevistas e questionário perfil do profes-
sor foram realizadas de acordo com Lieblich, Tuval-Mashiach, Zilber
(1998). Ao final dessa etapa foi feita uma triangulação dos dados por
meio de análises cruzadas das respostas dos ex-alunos aos questionários
de opinião e das respostas dos professores às entrevistas, bem como das
aulas observadas e dos registros em notas de campo. Essa triangulação
possibilitou a identificação dos elementos potencialmente inspiradores
nas práticas das professoras e reforçou a relação estreita professor-aluno
como o elemento chave nas experiências inspiradoras de aprendizagem.
Apresentarei, a seguir, um recorte dos principais resultados revelados
pela pesquisa realizada.
533
efeitos nos alunos inspirados e c) iniciativas dos alunos inspirados. Em
relação à primeira categoria, constatou-se que as experiências inspirado-
ras dos alunos foram moduladas: pelo tipo de aula que seus professores
propiciaram a eles (aulas interessantes, uso de métodos não tradicionais,
explicações claras); pelas qualidades pessoais (serem pacientes, entusias-
mados) e profissionais (serem persistentes com seus alunos, terem boa
didática, serem dedicados e demonstrarem amor pela sua profissão) de
seus professores e também pela relação afetiva que seus professores de-
senvolveram com eles, encorajando-os, respeitando-os e acreditando em
seus potenciais, corroborando Lamb e Wedell (2013a, 2013b); Jensen,
Adams e Strickland (2014); Powell-Brown, Butterfield e Yao (2014) e
Sammons et al (2014).
Esses primeiros resultados revelam ainda que para fazer a diferen-
ça na aprendizagem de seus alunos, o professor deverá ir além do que
dar aulas interessantes, utilizar métodos não tradicionais e ter uma boa
didática. É preciso investir em uma relação de proximidade que os faça
sentir valorizados e confiantes para enfrentarem os desafios que se colo-
carem diante deles.
Em relação à segunda categoria, os resultados revelam que os sen-
timentos dos alunos mudaram por influência das aulas de seus profes-
sores, corroborando Lamb e Wedell (2013a) quando afirmam que o
ensino inspirador consegue mudar a relação entre o aprendiz e o con-
teúdo a ser aprendido. Essa constatação corrobora ainda a concepção
de Jensen, Adams e Strickland (2014) do ensino inspirador como um
resultado e não como um conjunto de qualidades, uma vez que é trans-
formador e tem um impacto contínuo na aprendizagem dos estudantes
a ponto de “inspirá-los a fazer algo diferente do que está no livro, mu-
dar seus esquemas, suas visões de mundo e afetá-los não apenas no ní-
vel intelectual, mas pessoal109” (JENSEN; ADAMS; STRICKLAND,
2014, p.39).
109
Tradução livre de: “The learning experience has to inspire the students to do
something that is not in the handbook; change their schema, their world view;
and affect them on a personal, not just intellectual, level”.
534
Segundo Lamb e Wedell (2013a), os efeitos de um ensino inspi-
rador são, em grande parte, mutuamente sustentados, ou seja, o inte-
resse do aprendiz faz com que ele se esforce na sua aprendizagem, que,
provavelmente será bem-sucedida, e essa aprendizagem bem-sucedida
potencializará a autoconfiança desse aprendiz. O mesmo ocorre na or-
dem inversa, ou seja, a autoconfiança modulada pelo professor é o que
abastece o interesse e esforço do aprendiz. Esse efeito recíproco pôde ser
observado no presente estudo por meio dos relatos de estudantes que,
por se sentirem mais motivados, passaram a se esforçar mais e se torna-
ram mais autoconfiantes e de outros que, por se sentirem mais confian-
tes em relação à aprendizagem da língua, passaram a se interessar e a se
dedicar ainda mais a essa aprendizagem.
Finalmente, foi possível constatar o impacto das emoções positivas
na aprendizagem dos estudantes e da importância do professor como
o mediador dessas emoções. Como a mediação ocorre, segundo Swain,
Kinnear e Steinman (2010), por meio de processos intermentais e in-
tramentais, pode-se observar que as práticas inspiradoras e sua relação
com os alunos se constituíram como as principais mediadoras de emo-
ções positivas vivenciadas pelos alunos, impactando o modo como eles
passaram a conceber essa aprendizagem.
No que se refere à categoria 3, foi possível constatar que as prin-
cipais iniciativas tomadas pelos alunos (fora da sala de aula) em or-
dem decrescente foram: fazer atividades de leitura, fazer atividades com
vocabulário e com música e começar a fazer um curso particular por
influência de seus professores. Em sala de aula, as principais iniciativas
foram: participar mais ativamente nas aulas e procurar a professora para
sanar dúvidas e dificuldades. O fato de os alunos terem tomado inicia-
tivas, principalmente fora da sala de aula para aprenderem a língua sem
a ajuda do professor poderá levá-los a se tornarem mais autônomos, e
isso provavelmente os tornará mais bem-sucedidos nessa aprendizagem,
pois, como argumenta Paiva (2006), aprendizes bem-sucedidos desen-
volveram sua autonomia quando se envolveram com a língua fora da
535
sala de aula, incentivados por seus professores. Nesse sentido compar-
tilho do pensamento da autora de que “o professor não é responsável
pela aprendizagem do aluno, mas pode ajudá-lo a ser mais autônomo”
(PAIVA, 2006, p.35).
536
Os elementos mapeados nas respostas dos ex-alunos à pesquisa de
opinião, juntamente com as respostas dos professores nas entrevistas,
revelaram a importância da relação estreita professor-aluno nas expe-
riências inspiradoras de aprendizagem, corroborando vários outros es-
tudos, como os de Lamb e Wedell (2013a), Powell-Brown, Butterfield e
Yao (2014); Jensen, Adams e Strickland (2014), Sammons et al (2014).
É importante destacar, antes de tudo, que o presente estudo parte do
seguinte conceito de relação professor-aluno:
A relação professor-aluno é um sistema complexo e dinâmico,
constituído em uma escala macro de tempo por interações momento-a-
-momento e modulado por diferentes elementos de natureza atitudinal,
comportamental, emocional, conceptual, cultural, pedagógica, social,
cognitiva e contextual que interagem entre si possibilitando a emergên-
cia de diferentes configurações de relações: estreitas, distantes, formais,
conflituosas, amistosas, duradouras. (SALDANHA, 2019, p.61)
É pela relação – devido ao seu caráter bidirecional (MORALES,
2006) – que os professores inspiradores conseguiram influenciar até
mesmo o modo como seus alunos enxergavam a disciplina estudada. Ou
seja, quando o professor conhece seu aluno, valoriza suas experiências,
seus gostos, esse aluno passa a olhar para ele com admiração, respeito,
carinho, pois, de certa forma, reconhece que seu professor o admira por
seu esforço em aprender, o respeita pelos desafios que passa ao aprender,
bem como demonstra cuidado e atenção ao que vivencia para ajudá-lo a
superar suas dificuldades.
Segundo Giles (2008, p. 103), “quando a relação professor-aluno
importa, a experiência relacional do professor e do aluno é engajadora,
conectada e respeitosa” 110. Nesse sentido, os resultados desta pesqui-
sa revelaram a estreita relação professor-aluno como o elemento chave
para emergência de experiências inspiradoras de aprendizagem.
110
Tradução livre de: When the teacher-student relationship matters, the teacher’s
and student’s relational experience is engaged, connected and respectful of the
other.
537
Os elementos mapeados nas relações dos professores com seus ex-
-alunos foram sintetizados na figura a seguir:
538
que, nesse estudo, ela aconteceu por meio de uma relação de parceria
dos professores com seus alunos.
539
colaborarem para o desenvolvimento de uma relação estreita dos pro-
fessores com seus alunos.
540
Além de defender a relação estreita professor-aluno como a base
do ensino inspirador, esta pesquisa trouxe evidências de que a apren-
dizagem bem-sucedida de inglês na escola é possível, mesmo diante de
inúmeros obstáculos relacionados a uma política de não valorização à
educação que se reflete nas más condições de trabalho para o professor
(estrutura física precária das escolas, salas cheias, falta de recursos didá-
ticos – cotas reduzidas ou inexistentes de xérox – falta de aparelho de
som em boas condições de uso, turmas heterogêneas em relação ao nível
de proficiência na língua inglesa, bem como problemas de indisciplina
e falta de interesse dos alunos). Mesmo diante dos inúmeros problemas
mencionados, ainda sim é possível fazer a diferença na aprendizagem
dos estudantes. A prova disso é que os professores participantes des-
ta pesquisa, por meio de suas práticas e, principalmente por meio da
relação estreita que construíram com seus alunos o fizeram. Enaltecer
experiências inspiradoras vivenciadas por alunos e professores de inglês
no ensino básico não significa compactuar com essa política de des-
valorização adotada pelo sistema educacional brasileiro, especialmente
no que se refere ao ensino de língua inglesa. É preciso lutar contra ela,
mas, sem que isso prejudique os estudantes, no sentido de transferir
para eles as frustrações e o desânimo, que muitas vezes assolam os pro-
fessores em sua jornada docente. É preciso, acima de tudo, propor-
cionar-lhes uma “aula de verdade” de inglês, oposta àquele “inglês de
colégio” (MICCOLI, 2010) tão insistentemente propagado no contex-
to do ensino regular brasileiro. Nesse sentido, é fundamental investir
em práticas que proporcionem experiências significativas e inspiradoras
para esses estudantes, para que crenças como as de que não é possível
aprender inglês na escola sejam desconstruídas.
Referências
ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes de. O professor de língua estrangeira em formação.
Campinas, SP: Pontes, 1999.
ARAGÃO, R. C. São as histórias que nos dizem mais: emoção, reflexão e ação na sala
de aula. 2007. 276 f. Tese de Doutorado. Faculdade de Letras, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.
541
ARRUDA, C. F. B. É preciso propiciar a aprendizagem de inglês na escola: experiências
bem- sucedidas para investir no paradigma da eficiência. 2014.264 f. Tese (Doutorado
em Estudos Linguísticos) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2014.
542
LAMB, M.; WEDELL, M. Portraits of inspiring English teachers in China and
Indonesia. British Council. 13 Jul. 2013b. Disponível em: http://englishagenda.british-
council.org/research-papers/portraits-inspiring-english-teachers-china-and-indonesia.
Acesso em: 02 jun. 2014.
LIMA, D. C. Inglês em escolas públicas não funciona? Uma questão, múltiplos olhares. São
Paulo: Parábola, 2011.
MOITA LOPES, L.P. “Eles não aprendem português quanto mais inglês”. A ideologia
da falta de aptidão para aprender línguas estrangeiras em alunos da escola pública. In:
MOITA LOPES, L.P (Org). Oficina de linguística aplicada: a natureza social e educa-
cional dos processos de ensino/aprendizagem de línguas. Campinas: Mercado de Letras,
p. 63-80, 1996.
543
POWELL-BROWN, A.; BUTTERFIELD, D.L.B.; YAO, Y. Stoking the fire: what
makes a teacher inspirational? Educational Renaissance v. 3, n. 1, p. 65-81, 2014.
Disponível em: https://educationalrenaissance.org/index.php/edren/article/view/75.
Acesso em ago.2018.
544
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar um estudo sobre o livro
didático de português utilizado no 6° ano do Ensino Fundamental II. Nesse
sentido, propõe a análise de práticas multimodais a partir do gênero midiático
tirinhas, levando em conta um novo aspecto em relação ao modo como esse
gênero multimodal é abordado no presente livro didático. Serão apresentados
conceitos sobre os gêneros multimodais e os processos de aprendizagem
utilizados a partir deles. Propomos a ideia de que os gêneros midiáticos, em
específico as tirinhas, possuem aspectos semânticos que ampliam o modo de
ler o texto, tendo como recurso a linguagem verbal e não verbal. O estudo
tem como aporte metodológico a pesquisa bibliográfica de caráter qualitativo,
fundamentada em teóricos como Benevenuti (2019), Coscarelli (2017), Rojo
(2015), Vergueiro (2014), os quais possuem obras voltadas para o trabalho
com gêneros multimodais em sala de aula. A proposta de ensino de gêneros
multimodais no livro didático advém de pesquisas realizadas na disciplina
de Estágio Supervisionado de Língua Portuguesa, em que percebemos a
necessidade de compreender como de fato os gêneros multimodais têm
contribuído para o ensino em sala de aula. Desse modo, nosso corpus de
pesquisa é um livro didático do 6º ano do ensino fundamental utilizado
por uma escola da rede pública, pertencente à coleção Alpha da editora
SM, aprovado no PNLD de 2020. Os resultados revelaram que os recursos
midiáticos estão interligados nos argumentos da proposta e nas práticas do
livro em análise. Ademais demonstra a importância do gênero em estudo,
indicando como as propostas de atividades presentes no livro estudado podem
somar para o desenvolvimento da criticidade dos alunos da educação básica.
PALAVRAS-CHAVE: Multimodalidade, Tirinhas, livro didático, Gênero.
545
approached in this textbook. Concepts about multimodal genres and the
learning processes used from them will be presented. We propose the idea
that the media genres, specifically the comic strips, have semantic aspects that
expand the way of reading the text, using verbal and non-verbal language as
a resource. The study has as a methodological contribution the qualitative
bibliographic research, based on theorists such as Benevenuti (2019), Coscarelli
(2017), Rojo (2015), Vergueiro (2014), who have works focused on working
with multimodal genres in the classroom. of class. The proposal for teaching
multimodal genres in the textbook comes from research carried out in the
Supervised Internship of Portuguese Language, in which we realized the need
to understand how multimodal genres have actually contributed to teaching
in the classroom. Thus, our research corpus is a textbook of the 6th grade of
elementary school used by a public school, belonging to the Alpha collection
of the SM publisher, approved in the PNLD of 2020. The results revealed
that the media resources are interconnected in the arguments of the proposal
and the practices of the book under analysis. In addition, it demonstrates
the importance of the genre under study, indicating how the proposals for
activities present in the book studied can add to the development of the
criticality of basic education students.
KEYWORDS: Multimodality, Comics strips, textbook, Genre.
1. Introdução
Ao considerar a importância do ensino pautado no uso de gêneros
em sala de aula, em específico os multimodais, este estudo busca verifi-
car como o livro didático de Língua Portuguesa, volume do 6º ano do
Ensino Fundamental II, explora o gênero Tirinha. Nesse sentido apon-
tamos alguns questionamentos que pretendemos responder ao final da
pesquisa: como são organizadas as atividades do gênero Tirinhas a partir
dos recursos multimodais? Quais as suas contribuições para a formação
de um leitor crítico? De que forma os recursos multimodais contribuem
para as práticas de leitura e escrita?
Percebe-se que o tema multiletramentos e práticas multimodais
estão em voga, há diversos artigos, pesquisas e livros que versam sobre o
tema publicados, inclusive, a própria Base Nacional Comum Curricular
546
(BNCC). Embora muito se tenha produzido com relação à temática,
nem todas as escolas promovem práticas alinhadas aos múltiplos
letramentos e a exploração de textos multimodais no contexto de sala
de aula. Nota-se que as escolas, sobretudo as públicas, não dispõem
de recursos tecnológicos, para que se consiga trabalhar com a grande
variedade de textos multimodais e midiáticos disponíveis, ampliando
nos discentes sua capacidade de reconhecer os gêneros textuais em sua
dimensão social e funcional. Nesse sentido, consideramos o gênero tiri-
nha oportuno, pois, independe de recursos tecnológicos para o seu uso
em sala de aula, uma vez que este pode ser usado de forma impressa, de
jornais ou até mesmo do próprio livro didático dos alunos.
Ademais, discutimos que a tecnologia pode ser vista como mudan-
ça de culturas, entretanto é preciso despertar e ver que os discentes são
construtores de suas práticas e que são agentes do que se constrói. Sob
esse olhar, Benevenuti (2019, p. 10) esclarece que “[...] o que se pode
observar é que o gênero se adapta a um outro, isto é, modela-se e ressig-
nifica-se, se reestrutura às novas condições impostas pelo meio social.
[...]’’. Com esse pressuposto, temos a ideia de que é relevante ao profes-
sor compreender que os gêneros discursivos estão em constante trans-
formação e são portadores de linguagens, ou seja, favorecem o trabalho
didático-pedagógico dos docentes em relação ao campo midiático.
Assinalamos que o gênero Tirinhas possui uma comicidade que fa-
vorece a transposição da prática pedagógica, e por chamar a atenção
dos estudantes em relação ao modo como são manifestados os recursos
multimodais no texto. Apontamos a importância de sua materialização
em diferentes suportes, jornais e revistas. Antes encontradas apenas em
bancas, hoje as encontramos em redes virtuais. Frente ao apresentado, a
pesquisa se apresenta como bibliográfica, de caráter qualitativo, funda-
mentado em teóricos como Benevenuti (2019), Coscarelli (2017), Rojo
(2015), Vergueiro (2014), os quais promovem discussões relacionadas
ao uso de gêneros midiáticos na sala de aula de língua portuguesa.
O estudo percorre os campos midiáticos na aprendizagem dos
alunos do 6º ano. Primeiramente observamos como se dá o uso das
547
múltiplas manifestações dos gêneros midiáticos na aprendizagem. Em
segundo plano, analisamos como é o gênero multimodal Tirinhas. Em
seguida apresentamos a metodologia e os resultados da pesquisa. Para
além, trazemos as considerações finais, onde se observa o universo mul-
timodal. Dessa forma, mostramos discussões relacionadas ao trabalho
midiático e apresentamos diferentes manifestações teóricas.
Mediante isso, focamos em evidenciar o trabalho dos autores do
volume do 6º ano do Ensino Fundamental quanto ao gênero Tirinhas,
apontando como sua proposta de ensino pode despertar nos alunos o
modo de ler e ver as Tirinhas, não só pelo olhar do locutor, mas sim de
diferentes interlocutores e linguagens, tornando-se relevante investigar
e questionar se a proposta do livro contribui para as práticas multimo-
dais. Ao ter em vista as práticas midiáticas, sabemos que os professores
utilizam diversificadas maneiras de ministrar suas aulas. A partir dessa
afirmação, o estudo destaca ainda que existem novas formas de apro-
fundar e trabalhar as técnicas midiáticas nos livros didáticos. É fácil
perceber que são mudanças extremamente necessárias, porém, os do-
centes precisam ainda ser preparados para utilizar o que a tecnologia
pode oferecer.
Para além, enfatizamos a ideia de que o docente já faz uso dos re-
cursos midiáticos em sala de aula, assim é necessário que ele assuma
uma didática pedagógica nas escolas, buscando recursos e técnicas aces-
síveis. Sabemos que a realidade é bem diferente do que se deseja, porém,
quando a escola reconhece a contribuição dos gêneros midiáticos na
formação crítica dos discentes, temos um novo modo de explorar os
gêneros, não só nos aspectos linguísticos, mas sim discursivos.
548
professores que atuam no ensino de Língua Portuguesa a compreen-
são de conceitos e práticas pedagógicas que promovem a formação do
docente por meio das múltiplas formas de manifestação da linguagem
multimodal.
É nesse sentido que entram as práticas pedagógicas e as tecnológicas
na comunicação entre professor-aluno e aluno-material didático, ligan-
do o conhecimento escolar ao uso de diferentes ambientes virtuais. O
professor, ao reconhecer a multimodalidade, pode construir novos há-
bitos de linguagem e reconhecer a interação social como fundante de
sua prática docente. Porém, é necessário destacar que não é apenas uma
representação ou junção, mas uma forma de integrar o aluno ao gênero
trabalhado, com mais facilidade de entendimento, ou seja, transformar
as práticas pedagógicas de forma a propiciar novas práticas de comunica-
ção, que levem em consideração a multimodalidade. Quanto mais con-
tato os alunos tiverem com as Novas Tecnologias Digitais da Informação
e Comunicação (NTDIC), mais ampliarão sua aprendizagem e a relação
interativa com o gênero em estudo em diferentes esferas textuais.
Hoje, as NTDIC propiciam uma maneira de adentrar os gêneros
textuais com as necessidades das escolas e dos alunos para lidar com a
linguagem multimodal. Assim, faz-se relevante ainda que os docentes
busquem nos ambientes educacionais, uma adequação tecnológica, di-
recionando a linguagem verbal com a imagética, de modo a preparar os
discentes a interagir com o mundo.
As práticas multimodais são constituídas pela união de duas ou
mais formas de representação, consistindo em textos que fazem uso de
elementos da linguagem verbal e visual. Coscarelli (2017, p. 63) explica
que “[...] reconhecer as repetições de sons, como rimas, sílabas e sufixos,
e saber, gradativamente, identificar e registrar as letras [...]’’, é necessá-
rio para ganhar entendimento quanto às capacidades de reconhecer os
traços multimodais dentro do texto pedagógico, aprendendo a identifi-
car as letras e os símbolos.
Ao ressaltar sobre o contexto educacional, pode-se considerar que
o principal material de apoio aos professores tem sido o livro didático
549
e, mesmo esses materiais apresentando conteúdos propostos para a in-
tegração da escola com o gênero, é necessário verificar como está sendo
transmitida toda essa novidade aos alunos. E como está sendo desenvol-
vida essa capacidade de linguagem neles.
Em relação ao gênero estudado, sabemos que o processo de leitura
crítica é complexo e exige uma certa dedicação. O docente ao reconhe-
cer a necessidade do uso da prática multimodal em sala de aula, tem
contato com novos símbolos, gestos ou imagens que contribuem para
ampliar o universo de leitura e de entendimento da linguagem. Com
base no que foi dito, a forma crítica de aprendizagem do aluno em sala
de aula deriva do fato de o professor não ter tido uma construção de
conhecimentos na multimodalidade e da falta de conhecimento dos
alunos ao estudar os livros didáticos.
Ao adentrar no componente curricular de Língua Portuguesa o alu-
no nem sempre possui noção de criticidade e entendimento do que a
leitura quer transparecer. O desenvolvimento do discente por meio de
práticas de leitura amplia sua criticidade quanto ao conteúdo e à for-
mação de ideias na construção de sentidos. De acordo com Benevenuti
(2019, p. 10), “[...] os processos de leitura e escrita no ensino, em suas
mais amplas formas de variedades e modalidades de realização, devem
ir além do verbal’’.
Para realizar uma boa leitura crítica, o leitor deve manter-se sempre
conectado ao mundo real, a leitura é um episódio excêntrico, em que
o leitor e o texto constroem um sentido. A leitura e a escrita não estão
restritas, pois o leitor não tem o papel apenas de decodificar, mas sim de
compreender os sentidos do que está sendo lido, formando novos senti-
dos nas palavras. Segundo Benevenuti (2019, p. 11), “[...] de fato, tanto
o professor quanto o aluno são atores nesse processo e isso lhes permite
inovar na forma de aprender e de ensinar, a partir de metodologias dife-
renciadas e significativas, o que torna a aula mais dinâmica, contextuali-
zada e prazerosa’’. É necessário que o docente compreenda seu papel na
formação do discente perante a sociedade, de modo a buscar inovações
quanto às práticas de formação crítica, em especial no campo midiático.
550
2.1 Os gêneros discursivos
Os textos multimodais trazem uma representação a respeito dos
gêneros discursivos. Segundo Rojo (2015, p. 16), “todas as nossas falas,
sejam cotidianas ou formais, estão articuladas em um gênero de discur-
so. [...]’’. Cada gesto ou performance, desde o acordar até o dormir, está
interligado a qualquer que seja a manifestação.
Nesse sentido, o texto multimodal tem uma linguagem impressa e
visual com diferentes formas de apresentação, aspectos textuais, múlti-
plas práticas de compreensão e de interação. A título de exemplificação,
temos a classe do anúncio impresso, em que a comunicação é estabe-
lecida com o sentido do texto. Por ser um ato de comunicação que se
integra no sistema com uma função de produzir sentidos e interação, o
impresso não tem a opção de reconstrução, mas o digital sim, tornan-
do-se então uma atividade textual estruturada com modos distintos de
construção. Posto isso, o texto impresso e o digital sempre estabelecem
comunicação entre locutor e interlocutor com recursos específicos da
contemporaneidade.
Geralmente, o material impresso é rico em detalhes, a análise é
feita a partir dos recursos semióticos usados nos meios de comunica-
ção, intercalados pelos recursos visuais e verbais que constroem uma
unidade de sentido, com os signos formando um texto multimodal.
Porém, há ainda alguns docentes que não compreendem como usar o
gênero Tirinha a partir das particularidades linguísticas e discursivas.
Em se tratando deste posicionamento, é interessante argumentar que o
professor deve acompanhar as mudanças para que possa entender como
se manifesta a multimodalidade no gênero Tiras.
Os estudantes do 6º ano, ao aprenderem as múltiplas formas de
linguagem textual, começam a ler e interpretar os elementos verbais e
não verbais que dão sentido ao texto. Os elementos que compõem o
gênero são o tipo de imagem, tamanho e cores, em que cada um tem
seu valor simbólico ante a compreensão das intenções enunciativas, que
possibilita ao gênero trabalhar o midiático no texto. Na perspectiva de
Rojo (2015), às modalidades:
551
[...] que podem comparecer na composição de um texto em um
gênero dependem, de certa maneira, das mídias em que esse tex-
to foi produzido e circula. Na mídia impressa, só se pode dispor
de imagem estática (fotos e ilustrações) e de escrita. Já na mídia
digital, todas as modalidades e semioses – língua oral e escrita
(verbal), linguagem corporal (gestualidade, danças, performan-
ces, vestimentas), áudio (música e outros sons não verbais) e
imagens estáticas e em movimento – podem entrar na compo-
sição e frequentemente encontram-se hiperlinkadas, ou seja, em
hipermídia. (ROJO, 2015, p. 111-112).
552
2.2 Multimodalidade e Multiletramentos na BNCC
É visto que a internet é um grande incentivo de linguagem, pois
requer diferentes modos de leitura, mostrando ser um objeto de co-
nhecimento que vem a contribuir com os gêneros escolares. Em meio
a essa lógica que envolve os signos como se pudesse obter sentido da
linguagem, a multimodalidade traz os elementos não verbais e verbais
como sujeito da textualidade e meios de comunicação. Uma vez que
seja uma característica da mensagem, de ser vinculada, ela se torna um
produto cultural, histórico e social. De acordo com Rojo (2015), apesar
de nenhum texto ou enunciado ser unimodal, pois:
553
sem os recursos atuais. A maior evidência é o universo jovem. As crian-
ças já nascem nesse mundo digital, portanto, para elas, são meios de so-
brevivência já naturalizados em suas atividades diárias. Tratando disso,
a escola deve de modo urgente aderir aos meios digitais para que possa
se beneficiar da facilidade dos jovens com a comunicação, de forma que
contribua no conhecimento dos educandos.
A BNCC traz habilidades e competências que podem ser tra-
balhadas em prol do desenvolvimento na Educação Infantil, Ensino
Fundamental e Médio. A tecnologia, se bem utilizada, pode-se reve-
lar um veículo pedagógico a favor do ensino e aprendizagem. Segundo
Rojo (2015, p. 116), novos “[...] tempos, novas tecnologias, novos tex-
tos, novas linguagens” surgem no cotidiano social e escolar. Sem dúvi-
da, é o melhor meio de produção e socialização de textos multimodais.
Com mudanças e inovações, o professor tem a seu favor um novo jeito
de ensinar a Língua Portuguesa.
A visão de multiletramentos na BNCC abrange a linguagem em
novos meios de comunicação e objetiva preparar o discente para a vida
social e profissional. A intenção é que o aluno tenha domínio de gênero.
Essa inovação com textos digitais, novos meios de comunicação e de
decodificação proporciona uma aprendizagem significativa em sala de
aula.
Na visão de Coscarelli (2017, p. 31), “os professores precisam en-
carar esse desafio de se preparar para essa nova realidade, aprendendo
a lidar com os recursos básicos e planejando formas de usá-los em suas
salas de aula”. Desse modo, diferentes técnicas pedagógicas nos meios
digitais ganham força na aprendizagem e se ajustam cada dia mais ao
ensino da linguagem e à proporção em que novas habilidades são tra-
zidas nesse novo documento norteador da ação pedagógica nas escolas.
554
escolas com o gênero hipermidiático. É preciso se adaptar às oscilações
e ao que é inserido no meio escolar, buscando desenvolver uma ampla
aprendizagem. É válido ressaltar que a tecnologia tem possibilitado aos
educadores um avanço no processo de ensino e aprendizagem, propi-
ciando novas abordagens e estratégias pedagógicas.
Com as inovações constantes, a tecnologia pode atravessar o cur-
rículo de forma que haja a comunicação nos meios multimidiáticos e
multimodais, mudando a prática pedagógica de forma significativa.
Um exemplo disso é o modo como a Língua Portuguesa é explorada na
BNCC, em que os gêneros textuais se manifestam nos demais compo-
nentes curriculares. Essa integração com os demais componentes curri-
culares pode ser por meio do uso da hipertextualidade, que se dá através
de sons, textos e imagens.
Entretanto, ainda é notório o privilégio da cultura impressa, a
supervalorização da linguagem formal e escrita. Nesse sentido, Rojo
(2015) destaca:
555
usar links para ligar outros textos ou outras informações. Essa nova or-
ganização multilinear de informações tem sido muito usada nos textos
de Língua Portuguesa, principalmente em Tirinhas, favorecendo aos su-
jeitos/aprendizes diferentes trilhas de leitura. No caso da cultura digital,
o hipertexto é marcado pelo uso de palavras, ícones, imagens, frases ou
elementos da página que o leitor acessa.
A hipermídia tem atuado como a criação do novo que se refere ao
suporte multidimensional, gerando reflexo na escrita e nos seus mate-
riais, mostrando a alteração na maneira de escrever um texto mesmo
com o digital. A hipermídia tem sido vivenciada como um sistema am-
biente, não só com meios digitais, mas com a escrita sobrepondo um
sistema expresso de modificação, assim como uma rede de conexão da
mente humana. No que está relacionado, Rojo (2015, p. 118) salienta
que, no “[...] contexto da hipermodernidade, o prefixo se desloca, se re-
coloca ou instala em outros contextos: hipercomplexidade, hiperconsu-
mismo e hiperindividualismo (além de hipertexto e hipermídia, dentre
outros)’’. O gênero pedagógico está em constante mudança, fazendo-se
com que o midiático transforme o texto escrito em digital e associe a
prática à teoria.
3. A Tirinha
As Tirinhas são um gênero jornalístico/midiático que esteve sempre
presente na vida dos seres humanos desde a pré-história, quando o
homem expunha seus conhecimentos em forma de desenhos, era um
leve aparecimento do que vivemos hoje. As Tiras são apresentadas
em forma de quadrinhos, tendo diferentes situações do uso da língua
presentes nas características do texto, a linguagem verbal, escrita e visual.
Manifestando suas mensagens com narrações humorísticas, cômicas e
até mesmo sentimentais.
Assim, a Tira é uma das práticas de leitura e de escrita da atuali-
dade que se voltam para a compreensão de uma nova visão de mun-
do e desperta para a capacidade crítica dos estudantes. Isso é evidente
no componente curricular de Língua Portuguesa que se orienta para o
556
desenvolvimento de habilidades interpretativas, contribuindo nas ati-
vidades de reflexão do educando. Nas Tirinhas, Vergueiro (2014, p.
9) descreve que “uma imagem fala mais do que mil palavras’’, ou seja,
reconhecemos os discursos e as falas no texto.
No âmbito educacional, as Tiras podem ser desenvolvidas em dife-
rentes práticas de linguagem como: leituras, escrita, produção textual,
oralidade, análise linguística e semiótica, pois para Vergueiro (2014),
esse gênero é um instrumento de construção de saberes presente nos
livros didáticos. Nessa perspectiva, as Tirinhas apresentam uma função
ideológica que conduz o leitor a refletir sobre as críticas pertencentes ao
meio atual, por ser uma fonte de construção de conhecimento sistêmico.
De acordo com o autor, as Tiras têm seu próprio estilo e uma
linguagem própria no ensino, independente dos gêneros, as Tirinhas
podem ter diferentes habilidades trabalhadas em sala, do imagético a
uma narrativa, dando espaço para os alunos explorarem (tempo, espa-
ço, enredo e personagem), eles podem projetar melhor suas próprias
Tirinhas. O trabalho com o gênero em questão pode proporcionar a
aquisição de habilidades orais e escritas, por estabelecer uma relação
dialógica entre sujeitos, formando sua prática discursiva e interlocutora,
aguçando a criatividade dos estudantes e integrando-os na sociedade.
Além disso, as Tiras têm a função de entreter o público, apresentan-
do uma comunicação que conduz o leitor à linguagem semiótica, já que
existem diferentes recursos semióticos integrados nos gêneros discursi-
vos que favorecem em textos, durante as práticas de leitura, os efeitos/
alterações multimodais. A cada esforço do aluno, materializado com di-
ferentes recursos verbais ou não verbais, desenvolve-se nele o letramen-
to crítico, como enfatizamos no tópico. Para Benevenuti (2019, p. 12),
“[...] a multimodalidade, no que tange à linguagem on-line, procura
compreender como sistemas semióticos verbais e não verbais trabalham
juntos para formar textos coerentes e dotados de sentido [...]”. Desse
modo, ao interagir com diferentes técnicas, é possível agregar outros re-
cursos sem fugir do semiótico, como cor da fonte e espaçamento, traços
que estão em um texto multimodal.
557
Não obstante isso, o uso da multimodalidade já é comum nos com-
ponentes curriculares e nas salas de aula, inclusive, por meio de recursos
tecnológicos que são uma forma de envolver os discentes na comunicação
multimodal. Segundo Coscarelli (2017), os principais objetivos da edu-
cação é a formação dos alunos protagonistas de sua própria rota de apren-
dizagem, sem que haja impactos de abordagens com novas tendências
digitais, sem deixar para trás as características de uma cultura linguística.
A escola, ao explorar o gênero multimodal, pode trabalhar novos
domínios vinculados com a tecnologia, trabalhando as mudanças na
linguagem referentes ao conhecimento já obtido, propondo sempre um
discurso e ação cultural relevante aos alunos. Ao relacionar a linguagem
com o âmbito dos estudos, inclui-se o letramento crítico como base
nas escolas para o ensino do gênero, desenvolvendo novas práticas de
aprendizagem e conhecimento/conteúdo. Para Coscarelli (2017, p. 51),
a condição letrada pressuposta está intimamente relacionada tanto ao
que se elabora nas diferentes instituições e práticas sociais orais e escri-
tas, quanto aos muitos objetos e formas de expressão sociais, entre elas
a expressão em língua escrita.
Para tanto, as instituições fazem mudanças na forma da linguagem
relacionando-as com inovações tecnológicas e com heterogeneidades
distintas em relação ao processo de aprendizagem a partir das particu-
laridades de conhecimento dos discentes. Com isso, é possível ver os
reflexos do letramento digital na esfera educacional, confirmando que as
novas estratégias de ensino e aprendizagem alicerçadas na multimodali-
dade têm promovido aprendizagens com os discentes no âmbito escolar.
Apesar de as escolas nem sempre terem os recursos tecnológicos,
ainda podem contar com o uso de livros didáticos, pois podem ajudar
no entendimento das questões imagéticas do texto, atingindo potencia-
lidade de compreensão, formação crítica e letramento social.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A escolha de trabalhar com o gênero midiático Tirinhas no volu-
me do 6º ano do Ensino Fundamental II, da coleção de Costa Cibele
558
Lopresti, da Geração Alpha Língua Portuguesa (2018) está relacio-
nada justamente pelo livro didático ser um instrumento multimodal,
podendo ser impresso ou digital. Visto que o material reúne textos,
imagens, cores e formatos diferentes. São visíveis os apontamentos e
pensamentos dos autores utilizados para a construção do trabalho, aos
quais recorremos com citações no decorrer da pesquisa. Diferentes au-
tores são usados para fundamentar os argumentos apresentados, como:
Benevenuti (2019), Coscarelli (2017), Dondis (1997), Rojo (2015) e
Vergueiro (2014). Tomando como base as informações acima, temos
um estudo com aporte metodológico e uma pesquisa bibliográfica de
caráter qualitativo, fundamentada em teóricos que abrangem o gênero
em análise.
O conceito de metodologia que utilizamos para embasar a teoria
é de Minayo (2001, p. 16), que afirma: “entendemos por metodologia
o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da reali-
dade. Nesse sentido, a metodologia ocupa um lugar central no interior
das teorias e está sempre referida a elas’’. No tocante à relação entre o
científico e a realidade, é a exploração do sentido que ocupa teorias que
abordam temas diferentes.
Nessa essência, a presente análise trabalha concepções que promo-
vem uma pesquisa qualitativa, de modo a compreender as percepções
de princípios básicos e narrativos que se dão no gênero multimodal
e os dados que compõem o livro didático que é um dos principais –
quando não o único – instrumento para a leitura crítica utilizados por
professores nas escolas é o livro didático, seja no contexto da educação
pedagógica, na multimodalidade e em Tirinhas. Para Vergueiro (2014),
a leitura de uma Tira pode ser uma interatividade no desenvolvimento
de linguagem, seja ela verbal ou não verbal.
Nesse sentido, o ato da leitura vai além de uma decodificação, fa-
zendo uma comparação com a interpretação do que foi lido, no oral ou
imagético. Consideramos a leitura crítica como um ato real do aluno, a
qual é oportunizada por meio de práticas pedagógicas que promovem
diferentes progressões e níveis distintos de leitura, ancorado em diversos
559
gêneros textuais, de acordo com a proposta contida na Base Nacional
Comum Curricular.
Destacamos que a prática da leitura está em transformação, por
ser uma atividade social que promove no contexto escolar a formação
crítica e reflexiva dos estudantes. Discutir o gênero Tirinhas envolve
um processo de aquisição de leituras imagéticas e uma incorporação
das imagens pelo leitor, retratando sempre aventura, realidade social,
fotos e personagens de diferentes vertentes, desde que se posicione com
a identificação da imagem.
Diante desses apontamentos, apresentamos o nosso corpus, intitu-
lado Geração Alpha, Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental,
anos finais. O livro didático está dividido em 8 (oito) unidades, todas
compostas por dois a três capítulos, sendo elas: narrativa de aventura,
conto popular, histórias em quadrinhos, notícia, relato de viagem e de expe-
riência vivida, biografia e anúncio de propaganda e entrevista. É possível
notar em todas as unidades, de modo geral, que os gêneros multimodais
são explorados, pois trabalham variedades de comunicação existentes.
O livro possui vários exemplos de Tirinhas, que são observadas em
atividades dos mais variados assuntos, em alguns casos, dá ênfase à lin-
guagem verbal, sem perder o efeito cômico da situação apresentada.
Em alguns casos, a linguagem verbal no último quadro garante o efeito
humorístico. Em todas as tirinhas observadas ao longo do livro, é per-
ceptível que as atividades as quais as tirinhas estão associadas, provocam
reflexões sobre o uso da língua, com questionamentos que levam o alu-
no a realizar uma leitura multimodal.
Durante a análise do gênero, é possível notar a presença das tiri-
nhas no referido livro didático, que conduz os alunos a refletir sobre os
temas sociais, a atuação de uma expressão e seus benefícios comuns que
a tirinha pode proporcionar. É notório que o livro didático está sempre
trabalhando o gênero em questão, identificando a interpretação crítica,
humor e abordagens construtivas para uma análise linguística e moda-
lidades diferentes. A partir das análises feitas das tiras, notamos que o
livro didático trabalha de forma positiva a construção da aprendizagem
dos alunos.
560
5. Considerações finais
No desenvolvimento do presente estudo, realizou-se uma análise
de como o gênero tirinha tem sido trabalhado com os alunos do 6° do
Ensino Fundamental por meio do livro didático. Ao analisar o material,
questionamos a criticidade do aluno e de que forma está sendo traba-
lhada essa crítica no mesmo. Notamos que a formação crítica dos alu-
nos quanto ao que se é oferecido no material didático está no caminho
certo, pois os textos oferecidos trabalham a criticidade e a interpretação
textual de forma positiva para o discente. Ao trabalhar a crítica do alu-
no no ambiente escolar, utilizando o gênero Tirinhas, seja por meio do
livro didático ou de forma virtual, está sendo formado um cidadão mais
crítico na sociedade. Percebemos que são variáveis as possibilidades de
indagações quanto ao ser crítico. Com suas múltiplas possibilidades de
serem trabalhadas as tirinhas no meio multimodal, possui um eixo de
ensino/aprendizagem ao utilizar diferentes linguagens, possibilitando a
comunicação e entendimento do aprendiz. Ao trabalhar com a tira na
sala de aula, entendemos que o gênero possibilita que o aluno seja um
leitor mais eficiente, ampliando suas habilidades de leitura de textos
multimodais, pois, para compreensão de textos que unem múltiplas
linguagem, como é o caso do gênero em questão, é necessário acionar
diversos saberes para sua efetiva compreensão.
Concluímos que a multimodalidade nas tirinhas no livro didático
é bem representada, no entanto, o uso de recursos, mídia e tecnologia
ainda não é a realidade de todas as escolas. Apesar de o índice ter ganho
novos números com a pandemia, ainda existem alunos que não têm
contato com o meio digital ou até mesmo acesso a livros didáticos de
qualidade. A tecnologia vem transmutando todos os gêneros e forman-
do novas habilidades que têm contribuído de forma significativa no
ambiente escolar. Uma dessas mudanças é que a tirinha ganha formas,
gestos, cores e interatividades a cada dia.
A pandemia intensificou o uso de ferramentas e recursos digitais
além do esperado, mudando as práticas e interações professores e alu-
nos, que passaram a ser mediadas por meio de recursos digitais. Nesse
561
contexto, muitas escolas e professores não possuíam recursos tecnoló-
gicos e acesso à internet de qualidade para tal. Afinal, a sociedade não
estava preparada para um desenvolvimento desta amplitude, muito me-
nos as escolas para transformar seus conteúdos didáticos de forma tão
rápida como a pandemia nos exigiu.
O centro no qual o aluno está inserido muda seu jeito de usar a
tecnologia e de analisar suas tirinhas, ou qualquer outra atividade esco-
lar que o discente precisar realizar, pois o ambiente em que ele convive
interfere no seu desempenho escolar e na sua vida social.
Por meio desta pesquisa, notamos os recursos midiáticos e as pro-
postas que estão em prática no livro didático e sua importância para
o desenvolvimento no meio escolar, com novas técnicas, métodos e
estratégias. Principalmente as tecnologias digitais no nosso cotidiano.
Mesmo com resultados satisfatórios do livro didático no desenvolvi-
mento da multimodalidade nas tirinhas, ainda há necessidade de levar
a investigação à frente, para melhor atingir resultados mais concretos.
Referências
BENEVENUTI, C. B. et al. Leitura e produção de textos multimodais: linguagem
on-line e práticas digitais no ensino de língua portuguesa. Campos dos Goytacazes, RJ:
Brasil Multicultural, 2019.
562
MINAYO, M.C. de S. (Org.). Pesquisa Social. Teoria, método e criatividade. 18. ed.
Petrópolis: Vozes, 2001.
563
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
564
various media is prioritized. To this end, objects were built using the digital tool
Padlet; the production of videos from learning challenges. The corpus consists
of fragments of the participants’ diaries and multimodal texts. The analyses
of the generated data were made from the production of the participants who
operated digital tools and their interfaces for the construction and expression
of meanings of multimodal texts, making the scientific dissemination part of
the remote teaching of LI.
KEY-WORDS: Multiliteracies, Scientific Divulgation; Remote Teaching.
1. Introdução
As experiências adquiridas durante a pandemia que vive o mundo
de hoje, nos deixam um importante legado que deve ser observado no
momento pós-pandêmico. Vivemos numa sociedade da informação, a
qual exige que sejamos dinâmico-participativos, por tanto, criativos,
inovadores, capazes de solucionar problemas do dia a dia, e sobretudo,
trabalhar em equipe, essas características também são prevalentes no
fazer científico - acadêmico. Com essa perspectiva em mente, desenvol-
vemos a disciplina Produção Oral em Língua Inglesa, a qual foi o fio
condutor para a execução desta experiência.
Como é destaque em várias obras nestes momentos de pandemia,
(MENDONÇA; ANDREATTA; SCHLUDE, 2021), (KERSCH ET
AL, 2021,2022), os especialistas da área da linguagem como sempre
fazemos, enfrentando os desafios do momento, estamos produzindo
novos conteúdos para atualizar, auxiliar os professores nestes momentos
de docência pandêmica, quiçá os inspire a repensar a suas práxis. Os
dois trabalhos contribuem para a divulgação científica com o necessário
conhecimento sobre multiletramentos para enfrentarmos o ensino re-
moto, a distância, ou híbrido. O primeiro destaca os multiletramentos,
mas o foco na formação emergencial, enquanto o segundo, direciona a
experiência dos autores sobre os multiletramentos desde uma perspecti-
va comparativa dos dois contextos dicotômicos.
Ao dizer de Kersch; Dornelles (2021), a pandemia - e o distancia-
mento social decorrente dela - fez com que as novas formas de fazer
565
tivessem que ganhar as salas de aula, mas, infelizmente, em muitos ca-
sos, apenas os antigos modos foram levados para a vida digital. Tendo
em vista que existem lacunas didáticas nesta área de ensino, podemos
aproveitar este momento para pensar em novos modos de fazer, pensar
em tornar os multiletramentos numa prática prazerosa e significativa e
que auxilie numa educação crítica que impulsione a curiosidade epistê-
mica como sustentava Freire (1987; 1996).
Lidar com as novas tecnologias é um desafio. Temos que nos prepa-
rar para atender à demanda das novas gerações, que, muitas vezes, são
nativos digitais; e os multiletramentos podem ser o caminho.
Isso posto, este trabalho aborda o letramento digital, como espaço
de interação para o ensino de inglês na formação inicial de professores
da língua inglesa, resultado de uma pesquisa de iniciação científica em
uma universidade pública estadual no Maranhão em 2021. O objeti-
vo é demonstrar como a participação e o engajamento em tarefas em
comunidade de aprendizagem sob a perspectiva dos novos letramentos
contribuem para a co-construção do conhecimento científico, juntos ao
desenvolvimento dos multiletramentos.
Para que tenhamos professores na rede básica que sejam multiplica-
dores de práticas de letramentos que atendam a demanda da sociedade
digital que tenham o espírito investigativo, parece-nos que esses ne-
cessitam vivenciar desde o início da graduação essas experiências, para
que as naturalizem em sua formação e façam parte da sua profissão
posteriormente.
Por isso, é indispensável trazer para o espaço escolar linguagens
e práticas de letramentos midiatizadas que fazem parte do cotidia-
no do alunado. Os professores precisam dialogar com o universo dos
jovens com linguagens e metodologias acessíveis (GLEICER, 2020)
para que o ensino faça sentido. Para tanto, eles necessitam de uma
formação que vá ao encontro dos anseios dos jovens. Desse modo,
propiciaremos letramentos midiáticos como forma de inclusão digital
e formando o cidadão para os desafios profissionais da sociedade do
conhecimento.
566
Portanto, esta é uma pesquisa – ação interventiva em que se prioriza
a construção de objetos multimodais com o uso de diversas mídias. Para
tanto, foram construídos objetos usando a ferramenta digital Padlet; a
produção de vídeos a partir de desafios de aprendizagem.
O córpus se constitui da descrição do projeto correspondente a
unidade 4 do livro texto, um mural interativo digital, o gênero mul-
timodal – vídeo de uma receita culinária e os journals. As análises dos
dados gerados são feitas sob a ótica dos multiletramentos, adotamos o
modelo análise do design (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO,2020)
para análise do vídeo e do mural.
2. Fundamentação teórica
A definição de letramento ganhou um novo perfil à medida que
foram transformadas as formas de circulação e interação na socieda-
de, principalmente com a inserção da web 2.0 na educação que trouxe
maior interação entre os usuários que se tornam não apenas consumi-
dores de textos/ informação. Nesse sentido, Lankshear e Knobel (2011)
definem os letramentos como formas socialmente reconhecidas que co-
municam, geram e negociam conteúdos significativos a partir de textos
codificados em contextos de participação em Discursos, variedade de
sentidos e padrões de comunicação em diferentes contextos e domínios
específicos. Esses mesmos autores consideram que no cotidiano, nas
relações interpessoais, em distintos contextos, as pessoas precisam nego-
ciar as diferentes maneiras com que usam a linguagem. Nesse sentido,
deve-se pensar a aquisição do letramento não apenas em uma única
direção, com regras preestabelecidas, mas, deve-se assumir a pluralidade
do letramento.
Indo nessa direção, Kalantzis e Cope (2012) pontuam que se pre-
cisa estender a pedagogia dos letramentos não apenas às representações
do alfabeto, ou seja, a leitura linear, mas trazer textos multimodais, tí-
picos da nova mídia digital para o currículo. Até porque nossos discen-
tes estão familiarizados com as diversas plataformas digitais, só que,
na maioria das vezes, usam-nas apenas para entretenimento, com uso
567
lúdico. Por isso, seria importante envolver e dar destaque ao ensino hí-
brido para melhor preparar os jovens para o mercado de trabalho.
Nessa perspectiva, atualmente, há uma diversidade cultural e de mí-
dia que requerem que se assumam diferentes papeis, identidades e que se
transitem em vários mundos (GEE, 2015). Isso implica multiplicidade
de discursos e negociação de sentidos. Deixamos de ser meros expecta-
dores para nos tornarmos protagonistas em nossas ações [...] “Em vez de
sermos passivos receptores de cultura de massa nós nos tornamos ativos
criadores de informação e co-projetistas (co-designers) dos nossos pró-
prios entretenimentos”. Editamos nossos vídeos em celulares e postamos
nas redes sociais (Facebook, Youtube, Instagram), conforme Kalantzis et
al. (2016, p.56). Isso aponta novos tempos, novos letramentos.
Um dos construtos usados pelos estudiosos e intelectuais dos mul-
tiletramentos (GNL, 1996) para marcarem de onde falavam e quais
eram os seus posicionamentos sobre os letramentos foi o termo design.
Essa ideia de design parte da premissa que a gramática é um conjunto de
ferramentas que as pessoas usam ativamente para projetar a comunica-
ção e interação, a fim de realizar atividades e alcançar propósitos. Usar
essas ferramentas é um tipo de arte, assim como um pintor entende de
arte, ele usa tinta, cor, luz e composição para causar um dado efeito; já
o usuário da língua usa a gramática para esse fim. (GEE, 2017).
Numa abordagem de multiletramentos, o foco não é apenas na co-
municação, mas também na representação. As representações são sempre
a priori, e a interpretação implica outra representação. Representamos
e nos comunicamos através de uma gama de modos – textual, visual,
espacial, significados orais e auditivos. Cada modo funciona como um
sistema distinto, os significados humanos podem ser representados de
forma abrangente em cada modo, por exemplo, em gesto, como na
linguagem de sinais, via toque para deficientes auditivos, via toque para
o com deficiência visual, para citar alguns. (COPE, KALANTZIS e
ABRANHAMS, 2017).
Os autores ainda pontuam que designing é o ato de fazer algo com
os designs disponíveis de significações, seja ele através da escuta, leitura,
568
comunicação com outras pessoas ou visualização, criando avisos de men-
sagem aos quais outras pessoas podem responder. O ato de criar nunca
é uma réplica ou cópia, mesmo sendo baseado em padrões pré-estabele-
cidos de criação de significado. O redesigned é a transformação do que é
deixado no mundo social do significado. Os designing torna-se redesigned,
novos recursos para significações no jogo aberto e dinâmico de subjetivi-
dades e significados (AROUCHE, 2020). Sempre que agimos no mundo
estamos transformando os designs disponíveis, a partir do momento que
interpreto, manipulo algum artefato cultural e/ou material, o que devol-
vo ao mundo já é transformado em algo novo, já está ressignificado.
Nessa perspectiva, os multiletramentos, por sua natureza eminen-
temente crítica, trabalham com ideologia e agência. Como pontuam
os seus defensores, os alunos precisam pensar criticamente sobre como
as formas de comunicação oral e escrita são projetadas para funcionar,
significando que realizam coisas e, às vezes, manipulam as pessoas. Mas
os estudantes também precisam saber como redesenhar, transferir con-
venções e criar novos designers no quadro do desenvolvimento huma-
no como pessoas agentes, ativistas, cidadãos globais que façam criações
proativas. Portanto, os alunos precisam ser dinâmicos, produtores, par-
ticipantes, transformadores e inovadores e conseguimos auxiliando-nos
em multiletramentos - na multimodalidade, principalmente na cons-
trução dos vídeos e murais virtuais pelos discentes, entre muitas outras
atividades digitais.
Os teóricos dos multiletramentos argumentam que é necessária
uma metalinguagem para descrever os significados inerentes aos gêne-
ros multimodais de maneira explícita diferente por exemplo da gramá-
tica tradicional, para que se apreenda, a forma a estrutura e o propósito
da construção do significado, denominado de ‘análise do design’- “uma
metalinguagem que valoriza uma série de modos construir significa-
dos.” (KALANTZIS, COPE, PINHEIRO 2020).
O modelo teórico de análise do design dos multiletramentos
idealizados pelo (GNL,1996) é baseado em cinco níveis que for-
necem questionamentos que facilitam a análise e compreensão do
569
significado em um contexto de comunicação em todos os modos,
denominados elementos do design, a saber: referência, diálogo, es-
trutura, situações e intenção. a) referência – os significados se re-
ferem a ... quem? E o quê?. b) diálogo – os significados conectam
quem e o quê?... Como?. c) estrutura – os significados se mantêm
juntos... Como?. d) Situações – os significados são localizados ...
Onde? Quando?. e Intenção – os significados são ... Para quem? Por
quê?. (KALANTZIS , COPE, PINHEIRO, 2020, p.188). O analista
de textos/ gêneros podem recorrer a esse modelo de análise se apro-
priando desses questionamentos.
3. Metodologia
A pesquisa, com uma abordagem qualitativa interpretativa, teve
como suporte teórico da pesquisa-ação interventiva (TRIPP, 2005).
Pois, uma das pesquisadoras é professora da disciplina alvo deste es-
tudo que buscou ressignificar as práticas de letramento na LI. Desse
modo, lidamos com o letramento digital – com a construção de objetos
de aprendizagem multimodais com o uso de diversas mídias digitais; a
interação em plataformas digitais para fomentar a criatividade e inteli-
gência coletiva (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020).
Neste recorte trazemos a experiência de um projeto desenvolvida
em uma das disciplinas alvo da pesquisa – Produção Oral em Língua
Inglesa -Nível Intermediário com carga horária de 60 horas aula, ofer-
tada no IV período de letras/Inglês , a qual foi adaptada para o perí-
odo pandêmico do Covid-19. As aulas da LI eram expositivas e dialoga-
das remotamente com 2 aulas síncronas e 2 assíncronas semanalmente.
Para o desenvolvimento das aulas foram usadas o G suíte do Google
disponibilizado pela universidade, principalmente, o Google Classroome
que possibilitava os encontros síncronos, gravação das aulas e postagem
dos materiais. Além de recorrermos à plataforma PB work para a pos-
tagem dos diários dos discentes que denominamos de Journal, e para as
discussões - fóruns virtuais.
570
As aulas foram ministradas por meio de exposição do conteúdo
em língua inglesa a partir do uso de textos acadêmicos desencadeadores
das ações pedagógicas, com uma abordagem comunicativa baseado na
obra New Interchange 2 (Richards, 2010), como norte assim como
textos multimodais por exemplo, um vídeo legendado, um texto com
imagens etc., por meio de recursos digitais nas plataformas virtuais
mencionadas.
112
O chip mencionado é uma iniciativa para garantir que os acadêmicos da Uema-
sul tenham acesso à internet.
571
usar alguns aplicativos de mídias digitais de entretenimento, mas não
com um cunho educacional. Poucos dominavam as ferramentas mais
complexas como por exemplo um editor de vídeo.
A pesquisadora bolsista de iniciação científica era encarregada de
ministrar oficinas aos discentes, sob a nossa orientação, como usarem
algumas plataformas e ferramentas digitais, além de transcreverem os
dados coletados e fazerem registros nos diários de campo das aulas.
Tínhamos também assessoria da monitora da turma na digitação de
algumas atividades e na assistência do google meet para monitorar os
trabalhos em grupos e fazer as postagens das atividades nas plataformas
google classroom e PB works.
572
3.3 Geração dos Dados: Córpus Tratamento dos Dados e Modo de
Descrição das Análises
O corpus da pesquisa segue o roteiro de duas etapas distintas: a
primeira trata da descrição do projeto 2 correspondente a unidade 4
do livro texto, pois ao longo da disciplina produção oral em LI foram
realizados pequenos projetos; a segunda refere-se à criação de um ví-
deo na elaboração de uma receita de um prato fitness e a produção de
um mural interativo multimodal com os procedimentos da criação do
referido prato e, por fim temos os excertos dos journals (diários) dos
discentes sobre as suas impressões da execução da tarefa de aprendiza-
gem dos gêneros multimodais.
Descrição do conteúdo e
Conteúdo e des-
das aulas sob a perspec- Registro do-
crição da ativida- Google
tiva dos multiletramen- cumental em
de da unidade 4 Classroom
tos –vídeo 2 e mural vídeo
do projeto
virtual.
Registro em
Produção de um vídeo e no
Reprodução de uma re- mural digital Google
vídeo e mural
ceita da tradição familiar Meet
virtual Observação
participante
Fonte: Elaborado pela autora
573
excertos. Foram analisados os aspectos dos léxicos e ações que denota-
vam os discursos e as representações das identidades no contexto virtual.
As análises do vídeo e do mural interativo serão realizadas à luz
dos multiletramentos, tendo como sustentação os elementos de análise
de design que abordam a construção de significados com uma série de
questionamentos que conduzem o leitor e/ou analista da linguagem a
refletir sobre a amostragem da linguagem, a saber: referência, diálogo,
estrutura, situações e intenção (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO,
2020). Nas análises, serão usados nomes fictícios para preservar a iden-
tidade dos participantes.
4. Construção do projeto
A partir da unidade temática do livro texto, cujo tema versava sobre
comida e métodos culinários, foi desenvolvido um projeto, intitulado
“trabalho colaborativo com o gênero receita usando ferramentas digi-
tais” cujo objetivo era propiciar uma experiência real com a LI dentro
de um contexto de um ambiente familiar, envolvendo o gênero receita
e o letramento digital. Os discentes deveriam preparar um prato/sobre-
mesa favorito ou da tradição familiar, com o suporte das ferramentas
digitais a partir do trabalho colaborativo.
Inicialmente foram trabalhados os aspectos conversacionais, lin-
guísticos e gramaticais do livro texto, tais como: diálogos em pares fa-
lando de experiências de degustação de pratos regionais, usando tempos
verbais no simple past, present perfect e, sequence adverbs com um exer-
cício de fixação em uma receita de um prato típico regional. Também
foram apresentados métodos de cozinhar diferentes alimentos como
carnes, peixes e legumes etc., na LI.
Na primeira fase do projeto a professora aprofundou no uso do lé-
xico e expressões relacionados aos métodos de culinária, com exemplos
contextualizados com imagens associadas às dos verbos, tais como: mix,
put, cut, bake. O objetivo era instrumentalizar os discentes com a lin-
guagem específica para que pudessem se expressar na LI quando fossem
preparar o prato/sobremesa.
574
Em seguida, foi apresentado um vídeo do Youtube de um chefe
cozinhando, uma receita semelhante ao que os discentes tinham lido
no livro texto, que tinha alguns efeitos visuais, sonoros acompanhados
de legenda. O intuito era ilustrar o modo como eles poderiam gravar
e editar o vídeo. Além de reforçar o vocabulário e fazer com que se
apropriassem da estrutura do gênero receita a partir das perguntas de
compreensão textual.
O vídeo foi usado em um ambiente interativo de aprendizagem –
AVA gratuito denominado de Playposit. Esta ferramenta digital transfor-
ma um conteúdo passivo em uma experiência interativa. O professor pode
selecionar vídeos do Youtube, ou fazer o upload dos seus arquivos, como
documentários, filmes. O usuário pode fazer a edição e elaboração de per-
guntas interativas, tais como perguntas de múltiplas escolhas, discursivas.
O professor de inglês pode usar esse AVA para trabalhar a compre-
ensão oral, ou escrita, tanto no ambiente de sala de aula, como também
pode passar uma tarefa pedindo aos alunos que assistam filme, docu-
mentário, ou vídeo de música e que respondam as perguntas. Desse
modo, aproveita o espaço de sala de aula para fazer discussões aprofun-
dadas sobre o que os alunos já viram.
O desafio de aprendizagem era que eles pesquisassem na internet a
receita de um prato e/ou lanche favorito ou apresentassem uma receita
da tradição familiar. Eles receberam um roteiro com algumas recomen-
dações sobre como realizar cada etapa. Desde a distribuição das tarefas
dos componentes, quanto a aquisição dos ingredientes, e os registros de
cada fase do processo da criação do prato com fotografias, gravação em
vídeo e áudio que seriam editados e apresentados posteriormente. Eles
deveriam usar o gênero receita, respeitando o estilo e a linguagem.
Foi recomendado que eles criassem um Padlet - um mural intera-
tivo com todos os registros das etapas da realização do prato desde a
gravação do vídeo, uma narrativa justificando a escolha daquele prato.
Assim como deveriam usar o gênero receita. O objetivo é que eles usas-
sem o gênero para fazer coisas no mundo e não apenas estudar sobre o
gênero.
575
5. Resultados e discussão
Para a realização dessa tarefa de aprendizagem foram formados oito
grupos com três componentes, cada grupo escolheu um prato. A maio-
ria dos grupos optaram por sobremesas simples que usavam poucos in-
gredientes e que o custeio fosse barato, tais como mousse de chocolate,
mousse de limão, bolo fitness, mugunzá etc., mas também tiveram pra-
tos mais elaborado, como macarronada, pão de queijo.
Devido estarmos no período pandêmico, os discentes não se reu-
niram para a criação do prato/sobremesa, ou degustação. Então, eles
definiram entre si qual seria a função de cada componente de acordo
com a habilidade de cada um. Aqueles que tinham dotes culinários
optaram em fazer o prato, também tiveram alguns que se arriscaram a
fazer a sobremesa com ajuda de um membro da família, como no caso
de um participante que era casado, ou outra bem jovem e que teve
ajuda da avó. Eles também solicitaram a ajuda dos membros da família
para gravarem o vídeo via celular. Os outros componentes dos grupos se
encarregaram de gravar o áudio, editar o vídeo, escrever o gênero receita
e publicar no padlet.
Trazemos como exemplo um dos padlets elaborados por um grupo
que foi uma receita de um dos pratos apresentado por um grupo que
foi um bolo fitness.
576
O grupo era composto por duas garotas e um rapaz. Eles escolhe-
ram apresentar um bolo fitness - uma panqueca de aveia. Cada um
dos componentes ficou responsável por uma ação. Uma participante
preparou o bolo e narrou em áudio as etapas, um membro da família
ajudou com a gravação. Outro componente fez a narração do áudio
justificando o porquê da escolha desse prato e editou o vídeo, e outro
componente ficou responsável em criar a receita e publicar no padlet.
Na construção do mural, os participantes escolheram o título
Cooking with us o mesmo presente no vídeo. A primeira postagem do
mural foi o vídeo do prato preparado e pronto para o consumo intitu-
lada com a interjeição onomatopaica hummmm, depois eles identifica-
ram os participantes do grupo, em seguida indicaram qual prato vai ser
preparado, a postagem seguinte é a lista dos ingredientes, logo após o
modo de preparo e a última publicação foi um hiperlink para o visitante
acessar o vídeo da receita.
A característica de organização dos elementos no mural revela a
concordância da estrutura do mural com a do gênero receita, na seção
do modo de preparo é possível notar o uso de advérbios first, when e
after, a linguagem em segunda pessoa marcada pelas conjugações dos
verbos caracterizam o texto do gênero.
Para a criação do mural os alunos utilizaram a sinestesia
(KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p.192) para expressar sig-
nificado de modos diferentes, dentre eles: escritos (através da leitura
e escrita); visual (por imagens estáticas ou em movimento); espaciais
(posicionamento das postagens).
Vejamos algumas etapas da elaboração do prato na gravação em
vídeo e sua edição no gênero multimodal - receita culinária como os
participantes construíram significados, segundo o modelo de análise do
design ( KALANTZIS; COPE;PINHEIRO,2020).
A receita que o grupo decidiu fazer foi uma panqueca de aveia, que
tinha como ingredientes aveia, ovo e chocolate em pó. Ela foi descre-
vendo cada etapa da elaboração do prato, como adicionar os ingredien-
tes, até o processo de levar ao fogo e a fase de guarnição.
577
Figura 2: Panqueca fitness
578
Os significados construídos na atividade (ver o conceito de Gee,
2010), revelam que os participantes desempenharam sua identidade de
designer e estabeleceram conexão entre os papéis de produtor/consumi-
dor, criador de sons/ouvintes. A escolha da organização do vídeo mostra
como os participantes criaram a coesão dos elementos audiovisuais com
o gênero receita, primeiro apresentando o prato qual foi preparado, os
ingredientes necessários, em seguida cada etapa do modo de preparo.
Um elemento que marca a coerência interna são os marcadores de se-
quência first, then, when after, next step usados para instruções dentro da
cozinha para execução de um prato.
Os significados construídos na produção dos alunos estão situados
no ambiente familiar, devido a situação pandêmica e de isolamento, em
alguns casos parcial que as famílias se encontravam e no contexto fami-
liar, o ato de cozinhar é visto como um gesto de demonstrar afeto por
alguém. O vídeo e as construções feitas ao longo do processo podem ser
usados como mecanismo de incentivo aos colegas e as suas famílias a
terem mais atenção com a saúde, compartilhar uma receita saudável de
panqueca, ou proporcionar um momento de lazer através da atividade
de cozinhar em conjunto enquanto se resguardam em casa.
A produção do vídeo permitiu que os discentes fizessem uso real
da língua nas atividades propostas, isso os impactaram. Neste excerto
vimos a satisfação da participante Maria na criação da receita em inglês
“[...]Fazer uma receita usando o inglês foi muito interessante, eu gosto de
atividades que me façam usar o inglês”. Maria é uma aluna fluente no
idioma, criar a receita na língua alvo foi um desafio positivo para ela.
Ela usa o marcador de intensidade muito adjetivado para firmar o seu
posicionamento “muito interessante”. Os alunos em sua maioria não
têm muitas oportunidades para usarem o inglês de maneira real, quan-
do isso acontece, aqueles que gostam ou dominam o idioma usufruem
desses momentos. O discente Júlio também enfatiza essa questão de
amostras da língua real que vão além do livro texto que propicia agên-
cia “[...] acredito que o uso de atividades de pôr a mão na massa que nos
incentiva a fazer o uso da língua em situações contextualizadas, muito mais
579
eficientes do que quando lemos um pequeno diálogo em um livro didático
[...]”. Uma coisa é ser apenas leitor/consumidor de gêneros, outra é ser
produtor. Luiza também valora positivamente e aponta que a tarefa de
aprendizagem vai para além dos muros da escola, pois posteriormente
eles poderão reproduzir esses pratos apresentados em sala de aula pe-
los colegas, além de ampliarem o seu repertório linguístico no idioma:
“[...]essa foi uma aula muito boa, de muito aproveitamento, pois além de
aprendermos pratos novos, ver o seu modo de preparo e seus ingredientes,
aprimoramos nosso vocabulário”.
Para a execução das atividades, os participantes fizeram uso da lin-
guagem formal como se estivessem falando diretamente com o interlo-
cutor, como no caso da criação do gênero receita em que se direciona o
interlocutor na elaboração da panqueca fitness. Eles não usaram a forma
contrata da língua nas produções, fazendo emergir o discurso escolar.
Os dados apontam que os discentes ao produzirem os textos pude-
ram trabalhar a habilidade de construção de sentidos com textos mul-
timodais, executando as atividades em cooperação agindo pessoalmen-
te ou coletivamente com flexibilidade, empatia, respeitando ao outro
mesmo com as diferenças de familiaridade e a facilidade de lidar com as
ferramentas e conciliar a rotina como por exemplo, a criação do vídeo
que exige mais tempo para editarem.
A produção dos textos nas atividades contribui para que os alu-
nos pudessem se apropriar do protagonismo que a cultura digital nos
proporciona. As produções dos participantes não se tornam artefatos
pessoais que apenas eles têm acesso; permite que os usuários do Padlet
acessem os murais e consequentemente os vídeos, compartilhando os
textos não deixando restrito apenas aos alunos da turma e a disciplina.
6. Considerações finais
As mudanças repentinas causadas pela pandemia na sociedade, fez
com que repensássemos algumas atividades feitas pelos indivíduos den-
tre uma destas, a forma de ensino foi uma delas. Mesmo com resis-
tência à inserção da cultura digital no cotidiano escolar, os professores
580
em pouco tempo tiveram de ressignificar a prática docente para serem
inseridos à nova realidade. A escola como instituição que participa na
formação do cidadão tem de se adaptar às exigências do meio social. Os
docentes da rede básica de ensino e do ensino superior público passaram
a utilizar as TDICs para a criação de ambientes digitais escolares e con-
tinuar a prática de ensino. Para adaptar as aulas remotas em um curso de
Letras/inglês a professora em uma disciplina de língua inglesa adaptou o
currículo, trabalhando com projetos nas unidades do livro texto.
Trabalhar com projetos na disciplina de Língua Inglesa tendo su-
porte em variadas plataformas e aplicativos digitais podem aproximar
os discentes de um ensino que faça sentido para eles, que os motivem
para querer aprender a língua adicional, como demonstramos neste es-
tudo. Para isso, na formação inicial de professores, deve-se desde os
primeiros períodos, discutir com os alunos os preceitos dos multiletra-
mentos, ou seja, vivenciar no cotidiano escolar o que os alunos já fazem
fora do espaço acadêmico.
O estudo revelou que mesmo os discentes participando de redes
sociais, fazendo uso de ferramentas digitais, muitos não conseguem
usá-las como recurso pedagógico satisfatoriamente. Há alguns alunos
que têm predisposição e representam um ethos tecnológico; conseguem
editar vídeos, manusear aplicativos e navegar em diferentes plataformas
com facilidades. Outros precisam ainda ser mais estimulados e oportu-
nizados. Uma das formas para que se promova o letramento digital é
oferecer oficinas dentro da disciplina com tutoriais para que eles per-
cam esse receio de usar as ferramentas digitais proativamente. Para isso,
o professor precisa oportunizar tarefas de aprendizagem que desafiem os
alunos para se tornarem designers.
7. Referências
AROUCHE, I.L R. Letramentos Críticos na Formação Inicial de Professores de
Inglês como Língua Estrangeira. 244f . Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) -
Universidade do Vale do do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em Linguística
Aplicada, São Leopoldo, RG, 2020.
581
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Base Nacional
Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 09 nov.2021.
GEE.J.PA Personal Retrospective on the New London Group and Its Formation. . In:
SERAFINI F.; GEE E . Remixing Multiliteracies: Theory and Practice from New
London to New Times . New York: Teachers College Press, Columbia University,
2017. E-book .
582
LANKSHEAR. C.; KNOBEL, M. New Literacies: everyday practices & classroom
learning. 2 ed. McGraw Hill, 3ed. 2011.
583
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
584
lexico-grammatical patterns typical of their academic writing. By means of
such a methodological pathway and thorough contextualized data analyses,
we hope to unveil the linguistic academic styles of both scholars.
KEYWORDS: language style; academic writing; language use; lexico-
-grammatical items corpus linguistics.
585
1. Introduction
This paper aims at proposing a preliminary methodological path-
way towards investigating language used in academic texts from a style
perspective (BIBER; CONRAD, 2009; LEECH; SHORT, 2007;
McMENAMIN, 2002). This pathway will subsidize the stylistic pro-
filing of two renowned applied linguistics scholars, Douglas Biber and
Ken Hyland. For this purpose, corpus linguistics (CL) will be used as
an approach (TOGNINI-BONELLI, 2001) to perform linguistic anal-
yses based on corpora. The main goal of such an investigation is to
unveil the linguistic academic styles of these scholars, by comparing
the ways they employ lexico-grammatical items and how other scholars
utilize the same items in academic registers.
Style, in the ongoing investigation, has been understood as an aca-
demic writer’s personal form of expression, his/her peculiar way of em-
ploying various lexico-grammatical features in specific social contexts,
aiming at an audience and achieving predetermined goals by means
of typical language choices. For instance, the way an author employs
an adjective in a predicative and not in an attributive position may
characterize a personal linguistic preference which, tied to other consis-
tent language choices, will subsidize the identification of his/her style
(BIBER; CONRAD, 2009; CÂMARA JÚNIOR, 1978; CRYSTAL,
2013; GARCIA, 2006; HENRIQUES, 2011; LEECH; SHORT,
2007; McMENAMIN, 2002).
To pursue these research goals, a corpus linguistics (CL) meth-
odological framework will be proposed in this paper. The core of our
investigation departs from the empirical side of the language (the ‘per-
formance’) produced by language users, according to thorough obser-
vation of natural data available in corpora (McENERY; WILSON,
2001). Specifically, we use tools for compilation and in-depth analysis
of our corpora, namely WordList, KeyWords and Concord of WordSmith
Tools© (WST), version 8 (SCOTT, 2022). These steps are described
and discussed in detail in section 3 of this proceedings paper.
586
2. Language style: introductory concepts
Style has been defined as “[…] the way in which language is used
in a given context, by a given person, for a given purpose, and so on”
(LEECH; SHORT, 2007, p. 9). Every choice made within the lan-
guage comes from a subject (or a group) who, in a social and specific
context, seeks to impact his/her audience in a certain way. In addition,
the term refers to the way the language is used in a literary school,
in a textual genre, and/or in a specific historical period (CÂMARA
JÚNIOR, 1978; LEECH; SHORT, 2007).
We also understand style as the “[...] personal form of expression
[...]”113 (GARCIA, 2006, p. 123, our translation114) of that individual
or a social group, or “[...] the definition of a personality in linguistic
terms”115 (CÂMARA JÚNIOR, 1978, p. 13), when using “[...] phono-
logical, morphological, syntactic, lexical, semantic, discursive resources
of the language to express, orally or in writing, thoughts, feelings, opin-
ions etc.”116 (HENRIQUES, 2011, p. 27). However, it would still be
necessary to understand what is unique or what this ‘personal’ form of
expression is. To bridge this gap, Crystal (2013) proposes that the focus
of stylistics would be on linguistic distinction, that is, on what is pecu-
liar to an individual or social group that separates him/her (in terms of
language use) from another individual or group.
Biber and Conrad (2009) have proposed that style is the third among
three perspectives on text varieties, added to register and genre approaches.
According to the scholars, a “register perspective combines an analysis of
linguistic characteristics that are common in a text variety with analysis of
the situation of use of the variety” (BIBER; CONRAD, 2009, p. 2). The
authors add that the genre perspective is similar to the latter, however,
113
“[...] forma pessoal de expressão [...]” (GARCIA, 2006, p. 123).
114
All translations in this paper are ours, unless otherwise stated.
115
“[...] a definição de uma personalidade em termos lingüísticos” (CÂMARA JÚ-
NIOR, 1978, p. 13)
116
“[...] recursos fonológicos, morfológicos, sintáticos, lexicais, semânticos, discursivos da
língua para expressar, oralmente ou por escrito, pensamentos, sentimentos, opiniões,
etc.” (HENRIQUES, 2011, p. 27).
587
[…] it includes description of the purposes and situational
context of a text variety, but its linguistic analysis contrasts
with the register perspective by focusing on the conventional
structures used to construct a complete text within the variety
(BIBER; CONRAD, 2009, p. 2).
Table 01. Outline of style analysis proposed by Biber and Conrad (2009, p. 16).
588
out of the array of all available forms. Choices represent variations
within a norm (different ‘correct’ ways of saying the same thing),
deviations from a norm (mistakes), and idiosyncrasies (author-
specific forms). (McMENAMIN, 2002, p. 130).
589
books, and 16 book chapters as a single author, Hyland, himself, how-
ever, has released 112 journal articles, 18 books, and 74 book chapters.
Since there is a significant difference between such production, we will
randomly select, from Hyland’s publications, the same number of arti-
cles, books, and book chapters as Biber’s production, as an attempt to
equalize the quantity of texts and words.
All these texts were downloaded from the web and saved to com-
puter folders on the research’s archive. The .pdf files will be converted
into .txt documents (Unicode) using online programs. Possible con-
verting errors will be checked for and eliminated so as not to compro-
mise the files processing on WST® Wordlist.
It is important to use a reference corpus to have a comparison
parameter to illustrate what is particular to Biber’s and Hyland’s lan-
guage repertoire and is probably not peculiar in other academic writ-
ers’ repertoire. It is relevant that this type of corpus be, as stated by
Berber Sardinha (2000), at least five times greater than the study cor-
pora, since this size may guarantee more reliable results. Therefore,
we downloaded linguistics texts from Lawrence Anthony’s (2022)
AntCorGen, a freeware discipline-specific corpus creation tool. The
texts encompass 17 areas of research in linguistics. Since the tool
currently has 3,012 texts, thus surpassing more than 5 times the size
of the study corpora, we reduced the number of texts downloaded
to only Berber Sardinha’s (2000) recommendation. To this author,
reference corpora five times larger than the study corpus do not
accomplish significant results. The choice of texts will be random.
Finally, additional corpora might serve as complementary reference,
such as larger general language corpora as the British National Corpus
(BNC) and the Corpus of Contemporary American English (COCA).
The importance of using general language corpora is to have an idea
of how distinctive (and therefore unique) Biber’s and Hyland’s styles
are as compared to language that is expected to be used in daily used
registers.
590
2) Quantitative and qualitative identification of lexico-grammatical
items, which are distinctive in the study corpora compared to the
reference corpus
A combined approach towards corpus exploration is taken in this
step: corpus-driven and corpus-based (TOGNINI-BONELLI, 2001).
We subscribe to Biber and Conrad’s (2009) argument that deciding
ahead of time what linguistic features to use for register (in our case,
style) analysis is a difficult task, since various features might likewise
seem relevant for analysis. Rather, it is important to check what the
corpus initially discloses so as to proceed with making specific decisions
for deeper style analysis later on. Therefore, the Keywords tool of WST®
will be used here to perform this task, similarly to Hyland (2010).
According to Scott (2022), Keywords program compares two pre-ex-
isting wordlists, which must have been created using the WordList tool.
The 1st wordlist comprises words from the study corpora (Biber’s and
Hyland’s texts), and the 2nd one consists of words found in the reference
corpus (AntCorGen’s texts). Scott (2022)117 further adds:
A word is said to be ‘key’ if
591
Positive keywords are those found more frequently in the study corpus
than in the reference corpus, while negative keywords are more often
noticed in the reference corpus. Therefore, we will compare Biber’s and
Hyland’s texts to the AntCorGen texts. Relevant lexico-grammatical
items in the form of single words, collocations, and n-grams may be re-
vealed here as keywords in the corpora, which will then serve as a basis
for qualitative analysis using Concord, as we see next.
• A word which is negatively key occurs less often than would be expected by chan-
ce in comparison with the reference corpus.
592
many others (STUBBS, 2005). Additional theoretical support is also
fundamental here, such as the studies on grammatical complexity in
academic English, considered a major indicator of academic prose style
(BIBER; GRAY, 2016).
Having pursued the previous step, we can then proceed with
looking upon the choices that are significantly typical of Biber’s and
Hyland’s style, and thus try to search for any other potential motivation
underlying their choices when opting for particular items over others,
such as the construction of authorial identity in academia (HYLAND,
2010). This quest is aligned with Biber and Conrad’s (2009) under-
standing that style choices are not functionally motivated by the situ-
ational context, but by the writer’s aesthetic preferences. If any further
motivation is recognized, we will attempt to name it (or them). If the
study corpora in comparison to the reference corpora do not disclose
further traces as far as this point is concerned, complementary search
should be conducted elsewhere, such as in interviews Biber and Hyland
have given on academic rhetoric.
Although we understand that a style analysis is certainly compre-
hensive, we do not want to overlook the fact that other agents may have
influenced Biber’s and Hyland’s linguistic choices, especially during
proofreading and editing stages. However, our attention will be direct-
ed particularly to the texts resulting from such processes, since tracking
other people’s editions to the authors’ texts may be a daunting, if not an
impossible task to carry out here. Additionally, as to Biber and Conrad
(2009), because the academic texts composing both study and reference
corpora may have been produced in similar situational contexts to one
another, potential differences concerning this aspect will be disregard-
ed, unless prominently relevant for the ongoing investigation.
4. Final remarks
This paper has proposed a preliminary methodological pathway to-
wards investigating language used in academic registers written by two
renowned applied linguistics scholars, Douglas Biber and Ken Hyland,
593
from a style perspective. Similar to any other academic investigation,
we understand that challenges may appear on the way and demand that
we reshape certain steps of such a proposal.
Nonetheless, we have chosen CL as an approach to perform lin-
guistic analyses based on our corpora. As mentioned, the steps sug-
gested here involve compiling three corpora using WST®; identifying
lexico-grammatical items distinctive in the study corpora compared to
the reference corpus; and comparing the ways Biber and Hyland use
these items in each other’s texts, as well as how other academic writers
use the same items, thus unveiling the stylistic profiles of both authors.
A relevant point must be made here regarding the corpora to be
used. Firstly, the study corpus of applied linguistics, although con-
sisting of only two scholars’ texts, may be used in future research as
we intend to make it available for the academic public free of charge,
though abiding by copyright issues. Additionally, the reference corpora,
AntCorGen subcorpus, BNC and COCA, should be paramount as tra-
ditional comparative sources largely used in CL-based papers. While
AntCorGen made it easy for us to compile a subcorpus, BNC and
COCA are readymade corpora matching our goals and saving us time
in what is a time-consuming research phase.
Considering what has been discussed here, by means of the intend-
ed methodological pathway and thorough contextualized data analyses,
we hope to unveil the linguistic academic styles of Biber and Hyland,
also contributing to the understanding of what style in academia looks
like.
References
ANTHONY, Lawrence. AntCorGen (Version 1.2.0) [Computer Software]. Tokyo,
Japan: Waseda University, 2022. Available at: https://www.laurenceanthony.net/soft-
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SCOTT, Mike. WordSmith Tools manual. Stroud: Lexical Analysis Software Ltd., 2022.
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STUBBS, Michael. Conrad in the computer: Examples of quantitative stylistic meth-
ods. Language and Literature, Thousand Oaks, v. 14, n. 1, p. 5-24, 2005.
596
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
597
to the other scholars. Based on these results, the contextualized linguistic
analyses have revealed a similar stylistic preference between BC and CorALA
for specific collocations, and, in the case of stance markers, striking results
that reveal Biber’s style and personality in academic rhetoric.
KEYWORDS: language style; collocations; stance; academic writing; corpus
linguistics.
598
1. Introduction
An individual, while producing language, leaves his/her fingerprint
in different texts, revealing a style that may be promptly tied to that
person. Style, in this paper, refers to an academic writer’s personal form
of expression, his/her peculiar way of employing various lexico-gram-
matical features in specific social contexts, aiming at an audience and
achieving predetermined goals by means of typical language choices
(LEECH; SHORT, 2007; McMENAMIN, 2002).
In this research, we present how collocations and stance markers
are used in journal articles written by a renowned scholar, Douglas
Biber, by means of corpus linguistics analysis carried out on two corpo-
ra, the Biber Corpus (BC) and the Corpus of Applied Linguistics Articles
(CorALA). The analysis seeks to demonstrate how his style may be iden-
tified in some journal articles by the way he crafts language through
collocations (FRANKENBERG-GARCIA, 2018; SCOTT; TRIBBLE,
2006; SINCLAIR, 1991; 2004) and stance markers (BIBER; 2006;
BIBER et al., 2021).
Additionally, this paper attempts to challenge the myth of a dry,
impersonal discourse in academic writing (HYLAND, 2002). We in-
tend to show that scholars, as writers producing various registers, make
use of certain lexical-grammatical features to express their views, atti-
tudes, opinions, levels of certainty etc. in their texts. Particularly in the
case of stance usage, we build evidence against an “[…] idealized repre-
sentation of university language, [in which] there would be no need for
stance expressions” (BIBER, 2006, p. 87).
We also understand, however, that levels of (im)personality have
been associated with disciplines (HYLAND, 2000). In our paper, we
conceive of academic discourse, especially in the discipline of applied
linguistics, as another social field of authorial style expression. If “al-
most everything we write says something about us and the sort of rela-
tionship that we want to set up with our readers” (HYLAND, 2002, p.
352), it is arguable that whatever linguistic choice an academic writer
makes, be it in the form of collocations and/or stance markers, will
599
serve to engage with audience, mark personality in writing, and reveal
authorial style.
600
as “language” have often collocated with “learners”, “acquisition” etc.
as AntConc has shown. Collocations, belonging to the idiom princi-
ple as understood by Sinclair (1991), may be contiguous (“carry out
research”) and noncontiguous (“carry out much-needed research”)
(FRANKENBERG-GARCIA, 2018, p. 94).
Another linguistic feature that may be used to mark authorial
style is hereby comprehended as stance markers. Biber (2006, p. 87)
reinforces that there is no such a way academics may be impersonal in
their texts, as they often “seem more concerned with the expression of
stance than with the communication of ‘facts’”. To this end, individuals
employ stance markers with the intention to “express [their] personal
feelings, attitudes, value judgments, or assessments” towards what is be-
ing said or written or to another proposition available in the discourse
(BIBER et al., 2021, p. 958).
Like the understanding of formulaic language, linguistic mech-
anisms used to address writers’ personal feelings and assessments en-
compass a myriad of labels, such as “‘evaluation’; ‘intensity’; ‘affect’;
‘evidentiality’; ‘hedging’; ‘modality’ and ‘stance’” (BIBER, 2006, p. 87).
Aligned with Biber’s (2006) choice for the term ‘stance’, we share that
stance meanings are expressed in many ways, including grammatical
devices, word choice, and paralinguistic devices to convey evaluation,
affect, certainty, etc.
Biber et al. (2021) have discovered that adverbials and complement
clauses with verbs and adjectives are the two most common ways to
convey stance in discourse. Lexical choice alone is also found to mark
stance. Adjectives (good, lovely, nice) and verbs in simple declarative
forms (like, love, want) are often evaluative in nature. In academic
prose, for instance, adjectives are commonly found as predicative, “dif-
ficult, important, likely, necessary, possible, true”, and attributive, “ap-
propriate, good/best, important, practical, useful” (BIBER et al., 2021,
p. 961). All in all, as the scholars’ research has shown, there are a few
grammatical devices used to express stance, such as: stance adverbials;
stance complement clauses; modals and semi-modals; stance noun +
601
prepositional phrase; premodifying stance adverb (stance adverb + ad-
jective or noun phrase).
These grammatical devices accomplish at least three semantic func-
tions: epistemic, attitudinal, and styles of speaking. According to Biber
et al. (2021), language users employ epistemic markers to convey “cer-
tainty (or doubt), actuality, precision, or limitation”, or yet to “indicate
the source of knowledge or the perspective from which the information
is given” (p. 964). Attitudinal markers are employed to “report person-
al attitudes or feelings” and emotions (p. 966). At last, stance devices
marking style of speaking serve to present “speaker/writer comments on
the communication itself ” (p. 967).
As our stance data discussion will focus on modals, we provide a
summarized definition of modal meanings:
602
3. Designing the study and the corpora
In this paper, corpus linguistics (CL) has been used as an approach
(TOGNINI-BONELLI, 2001) to subsidize the corpus compilation
steps, and both the data extraction (through Word List, Concordance,
Clusters/N-Grams, Collocates, and Keyword List on AntConc 3.5.9) and
linguistic analyses.
To this end, we have compiled the Biber Corpus (BC), consisting
of 25 journal articles among other registers written by the scholar. We
opted for single-authored texts so as to control authorship. All these
texts were cataloged on Biber’s personal website119, and were download-
ed from web pages and saved to the research computer folders. Since
we had files in both .OCR and .PDF formats, we converted them into
.DOC. Using basic automated Word processors, we edited the texts by
correcting typos and other conversion-resulting errors, such as in “distri-
bu-tion → distribution”. Later, we withheld in brackets (<>) the abstracts
and keywords, citations, titles of the journal sections and subsections
(<Introduction>), information related to the author (<Douglas Biber
Northern Arizona University, Flagstaff>), years of cited bibliographic
works (<2000>), and added text-related identification tags (<text id =
BC.JA.2011.01>). Lastly, we saved the files into .TXT (UTF-8).
Check an example of a tagged journal article from Biber Corpus in
Image 01 below:
119
Available at: https://dougbiber.weebly.com/academic-articles.html Access on: 11
Apr. 2022.
603
As a reference corpus, we have used the Corpus of Applied Linguistics
Articles (CorALA) (DUTRA; BERBER SARDINHA, 2021). The cor-
pus contains 144 multi-authored journal articles, compiled from rele-
vant journals such as Journal of EAP, Language Learning and Technology,
TESOL Quarterly. The charts below show the numbers of types and
tokens of both BC and CorALA obtained through Word List.
604
To serve as a basis for our linguistic investigation, we have used
AntConc to search for collocations and stance markers. For both cases,
we applied multiple tools from the program, such as Clusters/N-Grams,
Collocates, and Concordance. Specifically for stance markers, we opted
for Keyword List, using CorALA as a reference corpus to BC. These re-
sults and data analyses are presented and discussed next.
Table 02. Most common n-grams in both corpora measured by relative frequency.
n-grams BC CorALA
of the 2,23230417 2,253482
in the 1,53370538 1,9761589
2-grams
to the 0,71867347 0,8504987
on the 0,56811338 0,6599549
the use of 0,13717421 0,09408446
3-grams
the present study 0,0706655 0,04094286
the extent to which 0,03895466 0,00965645
4-grams
at the same time 0,02371153 0,01212671
Source: Our elaboration.
605
Table 03. Most frequent n-grams in context: excerpts from both corpora.
606
Table 04. Most frequent nodes and their co-occurring collocates in both corpora.
607
In Table 04, it is observable that the majority of collocations, espe-
cially the most frequent ones, represent keywords related to the themes
of the articles composing the corpora. In BC, the papers discuss core
linguistics, focusing on lexis and syntax. In CorALA, instead, the ar-
ticles cover research related to language learning and teaching. A few
excerpts extracted from both corpora can be seen in Table 05.
Table 05. Most common collocations in context: excerpts from both corpora.
608
a preference for patterns related to the themes of the articles composing
the corpora.
keyness + keyness -
2060.16 features 1396.1 students
1795.87 linguistic 1020.3 learning
1767.08 registers 709.45 their
1735.28 dimension 688.46 was
1608.51 are 665.56 were
Source: Our elaboration.
609
Hence, while positive keywords unusually occurred more frequent-
ly in BC than in CorALA, the negative ones occurred less frequently.
If we look at the data results, the positive keywords are more easily
found and important in BC articles than in CorALA, while the negative
keywords are more certainly identified and relevant in CorALA than in
BC. Undoubtedly, most of the keywords from Table 06 are nouns and
appear frequently as observed in the nodes and collocates from Table
04, also suggesting that a few collocations might likewise be key in the
corpora.
We proceeded to take an overview of all the keyword list retrieved
from AntConc and noticed that, in general, pronouns were the only
grammatical device not observed as positively key in BC, showing great-
er significance in CorALA. However, other devices were similarly found
in both corpora, with differences detected only in the use of particu-
lar words (i.e. “especially” vs. “particularly”). Thus, adjectives, adverbs,
modal verbs, and nouns (e.g. “common”, “relatively”, “major”, “fact”,
“most”, “quite”, “must”, “can”, “actually”, “apparently”, “especially”)
have been observed as positive key stance markers in BC, while other
modal verbs, pronouns, adverbs, and adjectives (e.g. “may”, “about”,
“our”, “we”, “own”, “particularly”, “my”, “better”, “mainly”, “appropri-
ate”, “could”) figured as negative in BC and, therefore, prominent in
CorALA.
Although we recognize personal pronouns as a grammatical re-
source to mark personality and stance in academic writing (HYLAND,
2002), we will resort, on the last pages of this paper, to focus our data
discussion on modal verbs, such as “can” and “must” (more frequent
in BC than in CorALA), and “may” and “could” (more frequent in
CorALA than in BC).
In both corpora, “can” has been used to mark possibility (BIBER,
et al., 2021; DOWNING, 2015). In BC, it often collocates with “that”,
“it”, “we” (L) and “be”, “also”, “control” (R), and the frequent n-grams
are “can be”, “can be used”, “can also” and “can be seen”. In CorALA,
“can” frequently co-occurs with “that”, “it”, “they” (L) and “be”, “also”,
610
“help” (R), showing common n-grams as “can be”, “can also”, “can
help”, and “can be seen”. Clearly, “can” is more used in passive con-
structions in BC, like in Biber (et al., 2021). A few excerpts are shown
below:
611
Table 08. Modal “must” in context.
“Although both can and may tend to occur with inanimate subjects
[…]” (BC.JA.2006.01)
“At other times, there may be little explicit marking of the participants
BC
[…]” (BC.JA.1984.01)
“[…] subordinate constructions may have differing communicative
functions […]” (BC.JA.1986.02)
“[…] they may be appropriate for L2 students […]” (CorALA.LLT.
Art.2014.002)
“Although this assumption may be a methodological necessity […]”
CorALA (CorALA.TQ.Art.2015.001)
“While there are other obviously non-native problems with syntax and
vocabulary in this essay, which may have accounted for the low score
[…]” (CorALA.EAP.Art.2015.005)
Source: Our elaboration.
612
Finally, “could” has been employed to mark possibility (BIBER, et
al., 2021; DOWNING, 2015; SWAN, 2016). In BC, it often collo-
cates with “it”, “analyses” (L) and “be”, “not” (R). In CorALA, “could”
frequently co-occurs with “they”, “which” (L) and “be”, “have” (R). In
both corpora, the frequent n-grams are “could be” and “could not”.
Similarly to the use of “must”, “could” has been followed by both nouns
and pronouns in the corpora. Additionally, “could” is often used in pas-
sive constructions in BC and CorALA, a similar result to Biber’s (et al.,
2021) research. A few excerpts are presented below:
“In fact, it could be argued that a corpus provides the best way to
represent a textual domain […]” (BC.JA.2011.01)
“[…] these analyses could be usefully extended to include
BC
consideration of language characteristics […]” (BC.JA.1995.01)
“[…] these constructions could not be illustrated in question-
response elicitation data […]” (BC.JA.1984.01)
“[…] any search results which could not be considered
directives.” (CorALA.LLT.Art.2014.003)
“The former could have been conceptualized […]” (CorALA.
CorALA
TQ.Art.2014.008)
“They could be motivated when they saw role models. […]”
(CorALA. TQ.Art.2014.010)
Source: Our elaboration.
613
done. Therefore, by showing a stylistic preference for some modals over
others, Biber builds an assertive and confident self-image in academia,
taking stronger stances as compared to CorALA authors.
5. Final remarks
In this paper, we have demonstrated how Biber’s linguistic aca-
demic style is marked in his journal articles by the ways he employs
specific collocations and stance markers. Based on the findings pre-
sented and discussed, there is stylistic preference between Biber and
CorALA authors regarding a few collocations. Both groups of scholars
share analogous preference for some n-grams, although Biber uses more
“the present study”, “the use of ”, “the extent to which” and “at the same
time” to structure discourse and argumentation in academic writing.
Furthermore, different stylistic results appear when Biber opts for “lin-
guistic features” and “grammatical features”, and the other scholars for
“language learners” and “language acquisition”, suggesting a preference
for patterns related to the themes of the articles.
Additionally, when we investigated the use of stance markers, how-
ever, other striking findings emerged. In general, pronouns were the
only grammatical device not observed as positively key in BC, showing
greater significance in CorALA. Nevertheless, other devices were sim-
ilarly found in both corpora, such as adjectives, adverbs, modal verbs,
and nouns. We compared particularly the uses of the modal verbs “can”
and “must” (more frequent in BC than in CorALA), and “may” and
“could” (more frequent in CorALA than in BC). Based on the results, it
appears that Biber, by preferring “can” over “may” and “could”, takes a
more certain epistemic stance towards his claims, contrary to the other
scholars. Furthermore, when Biber opts for “must” more often than the
other researchers, he claims certainty about his assertions at the same
time as expresses feelings on how something must be done by taking
epistemic and attitudinal stances, respectively. Therefore, by showing a
stylistic preference for some modals over others, Biber builds an asser-
tive and confident self-image in academia, taking stronger stances as
compared to CorALA authors. In addition, the choice for such modal
614
patterns is not motivated by the articles’ themes. Finally, as we ponder
both sides of language style expression through collocations and stance
markers, Biber’s language choices highlight that academic writing holds
neither a dry nor an impersonal discourse.
References
ANTHONY, Lawrence. AntConc (Version 3.5.9) Tokyo: Waseda University, 2020.
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SINCLAIR, John. Trust the Text: Language corpus and discourse. London: Routledge,
2004.
616
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
617
the NNL. The article provides a cutout of the data from the first author’s
doctoral project and is theoretically based on studies in the area of bilingualism
(BIALYSTOK, 2001; SOUZA, 2021; VASSEUR, 2012), the teaching of
English to children (CAMERON, 2001; ROCHA, 2007a, 2007b) and teacher
training (TONELLI; CHRISTOPHER, 2010; TUTIDA; TONELLI, 2014),
interaction (VYGOTSKY, 1998), cognition and the complexity of languages
(BECKNER et al., 2009; BERTICELLI, 1997; BYBEE, 2016; DÖRNYEI,
2012; KUPSKE; GUTIERRES, 2018). Among the aspects addressed we
emphasize: the specificities of child learning, the teacher, the planning, the
quality of the input and interaction, the propitious environment, the role of
the native language (NL), and the joint processing of languages. The data for
this analysis come from the field notes filled during the generation of data
during weekly meetings, between instructors and children, in the day care
center. The analysis has revealed that these aspects, not only linguistic ones,
significantly influence the development of English-NNL by children, favor a
receptive attitude and the constant influence between the two languages.
KEYWORDS: English-NNL, Children, Development, Extralinguistic.
Introdução
Este trabalho aborda aspectos diversos que envolvem o desenvol-
vimento do inglês como língua não nativa (LNN) por crianças120. O
objetivo é apresentar elementos envolvidos no processo que vão além
do aspecto linguístico e que se mostraram fundamentais para o desen-
volvimento do inglês-LNN. Esses aspectos englobam: especificidades
do aprendizado infantil e a(s) atitude(s) das crianças diante da LNN;
a natureza sociointeracional do processo, momento em que refletimos
sobre o papel do professor ao trabalhar com o ensino da língua inglesa
para crianças – doravante LIC – e a importância do planejamento; a
qualidade do ambiente onde a LNN está sendo desenvolvida, momento
120 Uma discussão preliminar sobre esses aspectos que influenciam o desenvolvi-
mento do inglês na fase inicial da infância aparece em LIMA, J. R.; PEIXOTO,
P. G. Inglês em Fase Inicial da Infância: Elementos que Propiciam o Aprendiza-
do. In: ATAÍDE, C.; SOUSA, V. V. (org.). Língua, texto e ensino: Descrições
e aplicações. Recife: Pipa Comunicação, 2018. Cap. 55, p. 897-908. E-book do
GELNE 40 anos.
618
em que contemplaremos uma breve reflexão sobre a importância da ro-
tina e da língua nativa LN (o português) no ambiente de aprendizagem
e, por fim, a qualidade do input e da interação no contexto.
Os dados para esta análise foram gerados durante a vigência de um
projeto institucional, de ensino de inglês, implementado pela primeira
autora em uma creche universitária no interior da Bahia. O propósito
do projeto foi investigar o desenvolvimento do inglês-LNN por crian-
ças menores de cinco anos de idade. Esses dados são um recorte do
arquivo que compõe o projeto de doutorado da primeira autora e os
registros foram feitos, pela equipe executora do projeto, em notas de
campo.
Esta análise é embasada teoricamente por estudos na área da cogni-
ção e complexidade das línguas (BECKNER et al., 2009; BERTICELLI,
1997; BYBEE, 2016; DÖRNYEI, 2012; KUPSKE; GUTIERRES,
2018) que colocam em evidência a necessidade de se considerar o seu
desenvolvimento complexo e dinâmico. Nesse desenvolvimento, pro-
cessos cognitivos gerais atuam na língua(gem) e, para além do indivíduo,
os aspectos sócio-comunicativo-interacionais que levarão ao desenvol-
vimento da nova língua se horizontalizam. Na sequência, abordaremos
o ensino de LIC valendo-nos das contribuições de estudos como os
de (CAMERON, 2001; ROCHA, 2007a, 2007b), também discuti-
remos a importância da interação (VYGOTSKY, 1997[1978]) para o
desenvolvimento do inglês-LNN pelas crianças e, consequentemente,
a formação do professor que trabalha com esse aprendiz (TONELLI;
CRISTOVÃO, 2010; TUTIDA; TONELLI, 2014). A discussão bus-
cará fazer convergir considerações que envolvem o fenômeno do bi-
linguismo (BIALYSTOK, 2003[2001]; SOUZA, 2021; VASSEUR,
2012) experienciado pelas crianças envolvidas.
O campo de estudos na área do desenvolvimento de línguas (segun-
das ou mais) para crianças (bastante conhecido como LEC – Línguas
Estrangeiras para Crianças), nessa primeira década do século XXI, res-
surge com força (ROCHA, 2007a, 2007b). As motivações para tal en-
contram-se na realidade mundial do inglês como língua internacional,
619
do mundo globalizado, e essas discussões sobre o papel do inglês no
mundo aquecem a discussão sobre o início precoce (ROCHA, 2007a).
A partir de uma perspectiva dinâmica e complexa do desenvolvi-
mento das línguas, aspectos que dizem respeito ao indivíduo – motiva-
ção para aprender, personalidade, características individuais (ROCHA,
2007a, 2007b; KUPSKE, 2019, SILVA; CARDOSO; KUPSKE, 2020)
– cedem lugar a aspectos que estão em um âmbito mais amplo do de-
senvolvimento das línguas. Os fatores extralinguísticos que envolvem os
contextos comunicativos (aí contempladas as variáveis sociais), a ação
do professor nesse contexto e a dinâmica das interações aí também in-
seridas tomam o nosso foco de atenção. Esses fatores cooperam signifi-
cativamente para o desenvolvimento linguístico das crianças-aprendizes
e serão apresentados a seguir.
1. Referencial teórico
1.1 A realidade dinâmica do desenvolvimento de LNNs
O desenvolvimento de línguas (nativas e não nativas) é um pro-
cesso altamente complexo (DE BOT; LOWIE; VERSPOOR, 2007;
KUPSKE; PEROZZO; ALVES, 2019; PAIVA, 2014; THELEN;
SMITH, 1994) porque envolve aspectos tanto da ordem do indivíduo
(cognição, afetividade, motivação) como da ordem do ambiente (o so-
cial e seus fatores: interação, mediação, colaboração etc.).
Pensar dinamicamente o desenvolvimento de uma LNN é consi-
derar a variabilidade dessa língua a depender do seu contexto de uso
(BYBEE, 2016; SILVA; CARDOSO; KUPSKE, 2020; TOMASELLO,
2003). Nessa mesma linha, Nunan (2001) aponta para a inter-relação
dos diversos fatores que integram o processo de desenvolver uma LNN:
a capacidade natural para a língua(gem), o input e o output, além dos já
mencionados: diferenças individuais, ambiente e interação. Como se vê,
é um processo dinâmico que não se dá em uma trajetória linear e fixa,
mas que é afetado por variáveis múltiplas e é mutável (BERTICELLI,
1997).
620
1.2 Crianças desenvolvendo línguas
Enquanto investigadora do aprendizado de línguas por crianças,
Cameron (2001) assevera que ensinar crianças não é uma tarefa sim-
ples, e guiar-se por “generalizações” é uma atitude que não traz bene-
fícios para o processo. Pelo contrário, é necessário descobrir como as
crianças aprendem uma nova língua. “Felizmente crianças são autênti-
cas, espontâneas e revelam o que realmente sentem e desejam – basta
sentirem-se confortáveis para isso” (LIMA; PEIXOTO, 2018, p. 898
a partir de CAMERON, 2001). A partir de Pires (2001), vemos que,
para a criança aprender, o contexto de aprendizagem deve ser propício
e contemplar:
- atividades lúdicas e estimulantes;
- o toque e a manipulação dos objetos;
- o fazer juntos: as crianças entre si ou em conjunto com o
professor/educador;
- formas e estímulos variados;
- atividades em pequenas porções: para respeitar o limite de con-
centração e interesse das crianças pelo novo;
- o ‘revisitar’ atividades e temas já visto (garantindo pontes/cone-
xões significativas com o novo);
- o questionar/perguntar/querer saber, ver e ouvir.
621
Mesmo contando com a motivação natural da criança pelo novo, o
adulto (professores e pesquisadores) não pode incorrer no lapso de dei-
xar seus interesses didático-pedagógicos e/ou de pesquisa se sobreporem
aos da criança. No caso específico deste estudo, a busca pela efetividade
do input e que, consequentemente, as crianças desenvolvessem, de fato,
a nova língua, não poderia negligenciar o indivíduo criança em sua
totalidade: sua vontade, necessidade, disposição, interesse etc. Como
discutem Lima e Peixoto (2018), o desejo do professor/instrutor/pes-
quisador de ensinar não pode se sobrepor ao desejo da criança de ‘não
querer’ (mesmo que seja apenas por alguns minutos) até que ela volte
a ter interesse pelo que estiver sendo exposto. Lima e Peixoto (2018)
abordam a questão da didatização em contextos infantis de ensino e
aprendizagem. Essa discussão é levantada por Vigotski (2008[1933])
que alerta para a preservação dos interesses da criança – interesses es-
ses manifestados pela própria criança, nas brincadeiras livres que elas
mesmas iniciam, que realizam as suas necessidades. Esse é um princípio
que deve ser garantido para que não incorramos no equívoco de, mes-
mo não intencionalmente, ‘didatizarmos’ as brincadeiras e os estímulos
propostos (ver LIMA; PEIXOTO, 2018). Os autores defendem, pauta-
dos em Vigotski (2008[1933]), que o planejamento cuidadoso deva ser
o ponto de partida para a proposição de ações/atividades que engajem
as crianças respeitando a dimensão afetiva que as envolve.
A busca pelo output não pode tornar professores e/ou pesquisadores
cegos para uma necessidade essencial da criança: brincar. Assim sendo,
posturas reguladoras e excessivamente corretivas e exigentes, bem como
a cobrança à (re)produção de estruturas linguísticas, tornam-se questio-
náveis (LIMA; PEIXOTO, 2018). Em suma, a exigência desnecessá-
ria de que crianças-aprendizes “mantenham uma postura instrucional”
podem acarretar sérios prejuízos ao processo de desenvolvimento da
LNN como um todo, complementam (p. 899). Como apontam os au-
tores, faz-se necessário amadurecer a discussão sobre a didatização da
infância para evitar os exageros e garantir que a pesquisa no campo do
desenvolvimento de LNNs não se mostre, em alguma medida, danosa
622
para o público infantil. Por outro lado, é importante também que
sejam aprofundadas as discussões e debates sobre o direito da criança
ao acesso a uma ou mais LNNs em fases iniciais da infância, continuam
os autores.
Dando continuidade à discussão sobre os elementos que vão além
do aspecto linguístico e sua importância para o desenvolvimento de
uma LNN, abordaremos na sequência elementos que dizem respeito ao
ambiente e aos agentes envolvidos no processo de desenvolvimento do
inglês-LNN pelas crianças.
121
O uso do termo língua(gem) expressa nossa visão agregadora e ampla da língua(-
gem) enquanto um fenômeno social complexo que superou a visão tradicional
que a dissociava em dois fenômenos.
623
se desenvolvem, como pensam e como aprendem línguas e (b) sobre
a(s) abordagem(s) metodológica(s) a esse público, o que o motiva e,
naturalmente, a competência linguística (ROCHA, 2007a; TUTIDA;
TONELLI, 2014). Rocha (2007a) ainda argumenta em defesa do le-
tramento da criança na LNN, uma tarefa que é de responsabilidade do
professor. Seguramente, somente um professor bem preparado pode-
rá cumprir tal tarefa uma vez que demanda o conhecimento teórico e
metodológico que somente a boa formação, aprimorada pela formação
específica (quando possível), pode garantir ao profissional que decide
atuar no campo do ensino de LIC.
O déficit desse tipo de formação especializada é espelhado nos
currículos de vários cursos de licenciatura no âmbito dos estudos da
língua(gem). Uma pesquisa com propósito puramente consultivo às
grades curriculares dos cursos de Letras (somente no estado da Bahia)
mostram que os licenciados em inglês não recebem instrução para o
trabalho com a Educação Infantil; são raras as instituições (públicas e
privadas) que contemplam algum componente curricular (disciplina)
voltado para essa formação, ainda que seja de caráter optativo no cur-
rículo. Esse tensionamento nos é apresentado por Tonelli e Cristovão
(2010), em estudo semelhante, que aponta para a necessidade de se
mudar tal realidade. Nas palavras de Lima e Peixoto (2018, p. 901), a
partir de Rocha (2007a),
624
a) o aproveitamento da energia que é natural às crianças – é
fundamental que haja movimento nas atividades, jogos e
brincadeiras propostas;
b) a tolerância ao barulho – crianças são naturalmente
barulhentas;
c) a disposição para a revisão constante – crianças aprendem
rápido, mas também esquecem rápido;
d) a exploração de todos os sentidos – é importante investir
em vários estímulos;
e) o aproveitamento da imaginação e do entusiasmo por
aprender;
f ) o respeito ao tempo de cada uma – crianças devem ser in-
centivadas e não forçadas a desempenhar tarefas.
(a partir de PIRES, 2001, p. 50-51, ver também LIMA;
PEIXOTO, 2018, p. 899).
625
para o aprendizado, é o que afirma Pires (2001, citada por LIMA;
PEIXOTO, 2018). A rotina traz a segurança e a sensação de conforto
de que a criança precisa para que se sinta à vontade para ‘experimentar
o novo’. Em consonância, Cameron (2001) e Rocha (2007a) asseve-
ram que ela é o “mecanismo” que cria o laço de equilíbrio entre a se-
gurança advinda daquilo que já é conhecido, rotineiro, familiar e o en-
tusiasmo despertado pela informação nova (a palavra, a brincadeira, a
tarefa, o objeto etc.). A discussão de Cameron (2001) e Rocha (2007a)
acerca do ensino de LEC é bastante fundamentada pelas contribuições
‘vigotskianas’ para o desenvolvimento infantil de modo geral. As duas
estudiosas desenvolvem pesquisas com crianças em idade escolar (já al-
fabetizadas). Ainda assim, as reflexões que propõem sobre a importân-
cia das atividades rotineiras que colaboram para o aprendizado dentro
da sala de aula são aplicáveis a outros contextos e a outros públicos
(inclusive mais jovens). Cameron (2001) e Rocha (2007a) ressaltam
tal importância, posto que a realização de eventos repetitivos (que
geram conforto e segurança diante do que é conhecido) propiciam a
construção do já mencionado ambiente propício ao crescimento, es-
tando aí incluído o desenvolvimento de línguas (ver também LIMA;
PEIXOTO, 2018).
- A presença da LN
Sabe-se que diversos métodos e abordagens de ensino de línguas
censuram e até mesmo proíbem o uso da LN em sala. Essas orientações
teórico-metodológicas veem a LN dos aprendizes como algo danoso
quando, pelo contrário, pode representar um auxílio no alcance de ha-
bilidades específicas na LNN (KODA, 2005). Essa constatação de que a
LN ajuda no desenvolvimento da LNN aparece no legado de Vygotsky
há décadas – diz respeito à relativa maturidade (relative maturity) da
LN sendo suporte para a LNN. Felizmente, se percebeu que a LN pode
funcionar como uma ferramenta de mediação (mediation tool) e poten-
cializar a aprendizagem (CAMERON, 2001; ROCHA, 2007a). Ainda
as autoras argumentam em prol da valorização das diversas formas de
interação no contexto da sala de aula, enxergando-as como naturais. De
626
fato, a LN deve ser encarada como mais um recurso comunicacional
disponível – que ela venha agregar e não causar tensão.
Mesmo havendo hoje menor resistência ao seu uso na sala de aula
de LNNs, Cameron (2001) e Rocha (2007a) alertam para a necessidade
de que seja realmente apenas um recurso mediador, que “maximize” o
desenvolvimento da nova língua.
627
significa entender que as línguas não são fixas e, portanto, estão sem-
pre suscetíveis a mudanças (KUPSKE; GUTIERRES, 2018). Essa dis-
cussão sobre o desenvolvimento de línguas conta com a contribuição
de Ara (2009, p. 163-164) com seu estudo sobre o ensino de inglês a
crianças em escolas de Bangladesh. A autora argumenta em favor da
exposição da criança à língua que ela estiver desenvolvendo, que pos-
sam observar, ouvir, copiar sons e gestos, que experimentem e cometam
erros, que chequem se entenderam por meio da repetição, enfim, que o
ambiente da aprendizagem lhe transmita confiança.
Como se vê, a experiência com a nova língua, que se dá na intera-
ção, através do uso da própria língua, constitui-se como realidade no
desenvolvimento de LNNs.
628
2. O contexto da geração dos dados contemplados nesta análise
Como mencionado na introdução deste trabalho, esta análise usu-
frui dos arquivos de dados registrados durante a implementação do
projeto de ensino de inglês em uma creche universitária no interior da
Bahia. As atividades do projeto aconteceram, prioritariamente, na sala
de cada turma de crianças. O foco da proposta está no desenvolvimento
do inglês-LNN, em sua modalidade oral.
A interação da equipe de execução do projeto com as crianças da
creche se deu por meio de input exclusivo em inglês, e nenhuma ativi-
dade que envolvesse o acesso a formas escritas do inglês-LNN foram
utilizadas. A intenção foi evitar confundir as crianças com a associação
grafema e fonema na LNN, visto que não há a mesma correlação entre
letras e sons que ocorre no português-LN.
Os encontros na creche ocorreram semanalmente, com a duração
de 1 (uma) hora e alternaram: (a) a execução de um plano pré-elabo-
rado (com um tema e vocabulário definidos) e (b) o acompanhamento
das atividades regulares da creche. É importante destacar que os encon-
tros de acompanhamento da rotina contribuíram para a construção da
tão desejada atmosfera de confiança e conforto; uma necessidade que se
mostrou, desde o início, fundamental para que as crianças se sentissem
à vontade para interagirem com a equipe. Fazer com que as crianças se
sentissem familiarizadas, acostumadas com a presença dos instrutores,
contribuiu para a aceitação, também, da ‘outra língua’ que essas pessoas
falavam. Todos os dados estão registrados em notas de campo.
122
Muitos dos exemplos que aparecem nesta discussão de dados já foram apresenta-
dos em Lima e Peixoto (2018).
629
a) quanto ao professor e ao planejamento: todo o planejamento
de atividades buscou a garantia dos aspectos discutidos no referencial
teórico: ludicidade, atividades manuais e com variações de estímulos
(vídeos, canções etc.). O convívio com as crianças nos mostrou que
também a diversificação de atividades em intervalos curtos de tempo é
um aspecto crucial para a manutenção do interesse das crianças, visto
que não conseguem, por uma condição inerente à idade, manter o foco
e a atenção em algo por muito tempo.
b) quanto à construção do ambiente favorável ao desenvolvimento
da nova língua: a necessidade de segurança é essencial para que as crian-
ças se ‘abram’ ao aprendizado e mantenham uma atitude receptiva para
a LNN. A atitude da equipe em sala caracterizou-se por (1) paciência e
respeito ao tempo da criança (para desempenhar tarefas e dar respostas)
e à sua disposição para participar; (2) respeito ao seu espaço pessoal
(evitando contato físico não desejado); (3) promoção de uma atmosfera
lúdica, que motivava seu engajamento, e calma (com uso de voz ameno)
para favorecer a sensação de conforto.
A experiência com as crianças revelou que negativas de participa-
ção nas atividades propostas se davam predominantemente por uma
indisposição física, ou sono, não por resistência às atividades do projeto.
A preocupação com a garantia do ambiente de conforto e segurança
fez com que o desejo de ter a atenção das crianças123 não condenasse
as suas distrações; que a vontade da equipe de apresentar/expor algo
novo não lhe suprimisse o encargo de ser tolerante diante das negativas.
Essas negativas foram por vezes motivadas por inibição ou insegurança.
Contudo, com o suporte da professora da turma, essas barreiras foram
aos poucos sendo superadas.
630
No que diz respeito à rotina, enxergá-la como fator gerador do
“elo de equilíbrio” entre a segurança proveniente do que já é conhecido
(habitual) e a excitação despertada pela curiosidade pelo novo, como
defendem Cameron (2001) e Rocha (2007a), tem se mostrado essencial
para o desenvolvimento do inglês-LNN. A manutenção de ações roti-
neiras contribui para a construção do ambiente propício ao aprendiza-
do, na medida em que “acalma as crianças, atrai sua atenção e as prepara
para o novo” (LIMA; PEIXOTO, 2018, p. 905).
Um exemplo dessas ações foi cantar uma canção no início de cada
encontro, logo na chegada dos instrutores. A ‘canção da chegada’ era
cantada antes ou depois das saudações iniciais e greetings: “Hi”, “Hello”,
“Hi, everybody”, “Good morning” e “Good afternoon”. Como destacam
Lima e Peixoto (2018), a saudação melódica que iniciava cada encontro
proporcionava uma sensação de alegria e, em pouco tempo, de aceita-
ção da nova língua: o inglês que ‘os tios falam’ passou a ser algo familiar.
Isso foi constatado nas atitudes das crianças:
631
caixa124, associando-a à aula de inglês: “Mamãe, hoje tem aula
de inglês, olha lá a caixa.” (cochichando para a mãe)
124
Caixa plástica onde era transportado o material a ser utilizado nos encontros.
632
usasse outro recurso, a garota - tendo entendido o pedido
- ajuda):
MF: “Levanta!”
(Prontamente, o instrutor aproveita a oportunidade e diz a MF:
Instrutor: “Ask her to stand up, MF. Come on, ask her: stand up!”
(usando gestos)
MF: “Vai, levanta!”
(Diz falando ao ouvido da colega e lhe dando um toquezinho
de ombro)
633
Há uma soma de fatores relativos ao ambiente e às interações e
inter-relações aí promovidas atuando em favor do desenvolvimento de
línguas que é uma experiência dinâmica.
Considerações finais
Vimos que aspectos que estão para além do linguístico têm in-
fluenciado significativamente o desenvolvimento do inglês-LNN pelas
crianças, favorecendo uma atitude receptiva e, como consequência, a
influência constante entre as duas línguas. A LN no ambiente não se
mostrou um empecilho ou obstáculo à interação entre as crianças e
a equipe. O mesmo concluímos para o uso exclusivo do inglês pelos
instrutores, ainda que isso tenha demandado mais recursos e estraté-
gias para a equipe se fazer entender. Pode-se perceber que as crianças
precisam se sentir confortáveis e seguras, motivadas e dispostas para
aprenderem uma nova língua. Sem esses pré-requisitos, se retraem, se
calam e a língua não se desenvolve. As produções das crianças revelam o
seu processamento bilíngue e fatores que estão para além do indivíduo
criança compõem a experiência linguística que viveram ao lidarem com
duas línguas no mesmo ambiente.
Referências
ARA, S. Use of Songs, Rhymes and Games in Teaching English to Young Learners in
Bangladesh. The Dhaka University Journal of Linguistics, Dhaca, Bangladesh, v. 2,
n.3, p. 161-172, feb/dec. 2009.
BECKNER, C.; BLYTHE, R.; BYBEE, J.; CHRISTIANSEN, M. H.; CROFT, W.;
ELLIS, N. C.; HOLLAND, J.; KE, J.; LARSEN-FREEMAN, D.; SCHOENEMANN,
T. Language is a complex adaptive system: position paper. Language Learning,
Michigan, v. 59, p. 1-26, Dec. 2009. Suppl. 1.
BROWN, H. D. Principals of language learning and teaching. 3rd ed. USA, New
Jersey: Prentice Hall Regents, 1994.
634
BYBEE, J. Língua, uso e cognição. Tradução: Mª Angélica Furtado da Cunha. São
Paulo: Cortez Editora, 2016. 383 p.
DÖRNYEI, Z. Language and the brain. In: DÖRNYEI, Zoltán. The Psychology
of Second Language Acquisition. Oxford: Oxford University press, 2009. cap. 2, p.
27-45.
KUPSKE, Felipe F. The impact of language attrition on language teaching: the dy-
namics of linguistic knowledge retention and maintenance in multilingualism. Ilha do
Desterro, Florianópolis, v. 72, n. 3, p. 311-330, 2019. Disponível em: https://periodi-
cos.ufsc.br/index.php/desterro/issue/view/2931. Acesso em: 30 jul. 2022.
635
PIRES, S. S. Vantagens e Desvantagens do ensino de língua estrangeira na educação
infantil: um estudo de caso. 2001. Dissertação (Mestrado em estudos da Linguagem),
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001.
636
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
637
analyzing the written production in tasks from the EPPLE – The Proficiency
Examination for Foreign Language Teachers (CONSOLO et al., 2009, 2010),
an assessment tool whose goal is to assess the linguistic proficiency of foreign
language teachers, EFL teachers in particular, whether in pre-service education
in Letters courses or in current in-service contexts. Both the relevance and
the importance of this investigation (CUNHA, 2021) lies on the search
to better characterize the aspects concerning the written metalanguage of
those professionals. The corpus analyzed was obtained from a total sample
of 24 EPPLE tests, containing written production tasks produced by Letters
undergraduate students from two public universities from Brazil between 2017
and 2018. Regarding that the written production tasks which comprise this
corpus seek to characterize relevant aspects concerning EFL teachers’ written
language proficiency, the methodological approach in this investigation
is qualitative. Both the sample and the data analyses led to the proposition
of an analytic rating scales model. The results suggest that the rating scales
model proposed by Cunha (op. cit.) is capable of not only assessing the written
production tasks from EPPLE, but also being an effective tool in characterizing
the written language proficiency of foreign language teachers. It is expected
that this article provides contributions to the ongoing studies of assessment of
foreign language teachers’ proficiency, of the written language proficiency of
EFL language teachers, as well as to the education of future foreign language
teachers in Letters courses, concerning their foreign language proficiency.
KEYWORDS: Assessment; EPPLE; Written production; Rating scales;
Teachers’ pre-service education
Introdução
A qualidade da formação de professores de língua estrangeira (do-
ravante, LE) no Brasil, especialmente de professores de língua inglesa
(doravante, LI), vem sendo tema de investigação acadêmica crescente
em Linguística Aplicada (doravante, LA). Isto acontece devido a uma
grande preocupação quanto ao caráter deficitário da formação de pro-
fessores de LE em parte dos cursos de Licenciatura em Letras do país,
levando-se em conta sobretudo o aspecto linguístico de tal formação
(por exemplo, ALMEIDA FILHO, 1992; CONSOLO, 2005, 2017;
CONSOLO e TEIXEIRA DA SILVA, 2014). Reconhecendo que a
638
chamada proficiência linguística está relacionada não apenas ao domí-
nio das estruturas da LE que o professor possua, como também à sua
capacidade de utilizar satisfatoriamente tais estruturas ao fazer uso da
LE no processo de ensino e de aprendizagem em sala de aula, é impor-
tante que o futuro professor demonstre possuir adequados conhecimen-
tos linguísticos da LE com a qual pretende atuar (ALMEIDA FILHO,
1999; FERNANDES, 2016). Por isso, faz-se necessário haver alguma
forma de avaliação que possa ser aplicada a esse professor, com vistas
não apenas a aferir tal proficiência, mas também a atestar sua qualidade.
A avaliação de professores de LE, tanto em processo de formação
nos cursos de graduação, como já em atuação profissional, tornou-se
objeto de inquietação acadêmica de vários estudiosos na última década
no país, interessados em trazer o tema para uma discussão mais ampla,
dada a constatação de que se faz cada vez mais necessária, nos cursos
de Licenciatura em Letras, a presença de instrumentos de avaliação ca-
pazes de verificar a qualidade da formação linguística desses futuros
professores (por exemplo, CONSOLO, 2004; SCARAMUCCI, 2006;
TEIXEIRA DA SILVA, 2007; MARTINS, 2017). A avaliação é um
procedimento que pode, além de estabelecer o nível de proficiência lin-
guística do professor de LE, ajudar esse profissional a buscar um aper-
feiçoamento constante e um desenvolvimento crescente de seus conhe-
cimentos linguísticos. Desta maneira, a avaliação poderá servir como
instrumento de referência fidedigno e capaz de mostrar exatamente em
quais áreas de conhecimento linguístico esse professor precisa melhorar.
Justificativa
Um grande empenho tem sido dirigido para a criação de mecanis-
mos de avaliação de professores de LE no Brasil, especialmente para
os que atuam no ensino de LI. Estudos em LA buscam caracterizar a
proficiência linguística, bem como criar instrumentos de avaliação com
o propósito de se medir essa proficiência - como, por exemplo, o exame
EPPLE (CONSOLO et al., 2009, 2010), que é o Exame de Proficiência
para Professores de Língua Estrangeira, cujo propósito principal é
639
avaliar a proficiência linguística tanto de professores em processo de
formação nos cursos de Licenciatura em Letras, como para aqueles já
atuantes no contexto profissional (CONSOLO, 2010; CONSOLO e
TEIXEIRA DA SILVA, 2014).
Entretanto, um aspecto da proficiência de professores de LE que
também tem relevância no âmbito do processo de avaliação, mas sobre
o qual talvez ainda não haja tantos trabalhos de investigação e pesquisas
acadêmicas como a produção oral, seja o aspecto da produção escrita.
Sua importância no escopo de uma avaliação de proficiência não pode
ser menosprezada, quanto menos deixada de lado em estudos acadê-
micos. É preciso, contudo, que critérios adequados e confiáveis sejam
definidos, para que tal avaliação possa contribuir não apenas para atestar
adequadamente a proficiência linguística do professor de LE, mas que
possa ser um instrumento confiável e capaz de auxiliar na melhoria da
formação dos futuros professores em cursos de Licenciatura em Letras
(SCARAMUCCI, 2004).
Este artigo tem como base a investigação de Cunha (2021), cujo
objetivo geral foi discutir aspectos que caracterizam a proficiência em
linguagem escrita do professor de LE – relativos à (meta)linguagem
escrita desses profissionais –, além de discorrer sobre como avaliar a
proficiência linguística da produção escrita desse professor, em especial
do professor de LI, por meio da análise dos critérios de avaliação das
tarefas de produção escrita do exame de proficiência EPPLE. Para tan-
to, uma amostra de 24 testes escritos do exame EPPLE foi selecionada,
contendo tarefas de produção escrita de duas seções desse teste feitas
por estudantes de Letras de duas universidades públicas do Brasil, entre
os anos de 2017 e 2018. Essas tarefas foram então analisadas com base
no modelo de faixas de proficiência, de caráter analítico, proposto por
Cunha (op. cit.). Com isso, buscou-se verificar a viabilidade do modelo
em avaliar os aspectos da produção escrita, com vistas a caracterizar a
proficiência nas habilidades escritas do professor de LE, especificamen-
te de LI.
640
Fundamentação teórica
O conceito de avaliação
Uma avaliação pode ser vista como um instrumento, um meca-
nismo, ou ainda um processo, através do qual busca-se verificar um
progresso, uma competência, além de medir a qualidade de uma ação
previamente executada, ou atribuir um juízo de valor a um processo
como forma de medir a qualidade do resultado atingido (como, por
exemplo, se houve aprendizagem de um programa de ensino condu-
zido por um professor por um dado período letivo). A avaliação pode,
também, informar o quão próximos ou distantes os processos de ensino
e de aprendizagem estão dos objetivos educacionais previamente esta-
belecidos, podendo descrever os objetos de conhecimento adquiridos
pelos aprendizes e indicar se, de fato, houve aprendizagem e se essa é
resultado de um ensino eficaz; e se não houve, como o ensino pode ser
repensado em função das dificuldades enfrentadas ao longo do processo
de apredizagem, ou das eventuais falhas e outros problemas detectados
na assimilação desses conhecimentos.
De acordo com Scaramucci (1999/2000), a prática da avaliação,
no âmbito do processo de ensino e aprendizagem, deixa de ser um ele-
mento isolado e associado somente a uma simples medição por meio de
testes e notas em um dado ponto desse contexto, e passa a ser vista nos
tempos atuais como uma tarefa a ser cumprida ao longo do percurso
educacional, ou ainda um instrumento usado de uma maneira mais
dinâmica, contínua e negociada. Desta forma, a avaliação, junto com os
processos de ensino e de aprendizagem, constitui um tripé de elementos
indissociáveis que, em conjunto, visam atingir a produção de conheci-
mento, bem como aferir a qualidade na educação e no rendimento dos
estudantes (SCARAMUCCI, op. cit.).
A discussão sobre a importância da avaliação no contexto de uma
sociedade não é recente, sobretudo quando se consideram contextos
educacionais e acadêmicos. Para Scaramucci (2006 apud QUEVEDO-
CAMARGO, 2017, p. 43), após um exame minucioso dos currículos
de formação de professores de línguas, não existe clara preocupação
641
com questões relativas à avaliação. Ela ainda reforça que tais questões
“devem ser trabalhadas consistentemente pelos formadores durante a
formação inicial do professor” (QUEVEDO-CAMARGO, op. cit., p.
44). A avaliação deve ser vista em permanente articulação com os pro-
cessos de ensino e de aprendizagem, na medida que aquela é capaz de
informar acerca do quão alinhado, ou não, os outros dois estão com os
objetivos educacionais estabelecidos segundo o planejamento de pro-
gramas escolares e de aulas, ao invés de centrar-se em uma mera e isola-
da verificação de conteúdos em episódios fragmentados, ou de objetos
de conhecimento fora de contexto para os aprendizes (QUEVEDO-
CAMARGO, 2019).
O conceito de proficiência
O conceito de proficiência linguística, ainda que não seja simples
de ser definido (QUEVEDO-CAMARGO, 2019), pode ser melhor
entendido no que se refere ao uso futuro da língua por um indivíduo,
levando-se em consideração a especificidade do contexto real desse uso,
em uma situação possível de ser medida através de uma escala de grada-
ção dessa proficiência (SCARAMUCCI, 2000). Em outras palavras, a
definição técnica de proficiência, segundo Scaramucci (op. cit., pg. 14),
privilegiaria um indivíduo capaz de demonstrar um adequado controle
operacional da língua em uma situação específica, sendo posteriormen-
te classificado por níveis (ou faixas) de proficiência crescentes, à medida
que demonstre possuir um maior domínio, ou uma maior proficiência
na LE. Assim, procurou-se seguir a definição técnica desse conceito (cf.
SCARAMUCCI, 2000) para a investigação aqui apresentada, pois ao se
tratar de exames de proficiência linguística nos quais os candidatos são
levados a demonstrar o uso futuro da língua em situações reais, e que
possam ser classificados em diferentes níveis (ou faixas) de proficiência
conforme a complexidade da situação de uso da língua (e que é o caso
do exame EPPLE), é pertinente adotar-se a definição técnica do concei-
to de proficiência.
Ao se discutir proficiência, vale trazer à baila dois modelos teóricos
que surgem no final do século XX, cuja grande contribuição à discussão
642
foi considerar tanto o caráter dinâmico da comunicação, como tam-
bém possibilitar o uso da língua pelos aprendizes em situações reais da
vida. Tratam-se do modelo de competência comunicativa, apresentado
por Canale e Swain (1980) que “minimamente inclui três competên-
cias principais: competência gramatical, competência sociolinguística e
competência estratégica” (op. cit., pg. 28), e do modelo de habilidade
linguístico-comunicativa proposto por Bachman (1990), que não só
representou um grande avanço na compreensão do que é ser proficiente
em uma língua, como é até hoje considerado bastante importante no
estudo e na elaboração de testes e exames de proficiência.
Avaliação de proficiência
Conforme Scaramucci (1998), a avaliação é um conceito amplo
e relacionado a um processo por meio do qual busca-se verificar um
desempenho, uma competência ou um nível de proficiência linguística
através da coleta de evidências e de interpretação do conhecimento e das
habilidades adquiridas, permitindo que “um juízo de valor seja atribuí-
do ao final desse processo por parte de quem o conduz” (SHOHAMY,
2006, p. 1). Ainda segundo Scaramucci (2006), a prática da avaliação
exerce um papel central nos processos de ensino e de aprendizagem,
integrando-os e formando um conjunto de elementos indissociáveis.
A avaliação é tida como uma das práticas sociais de maior importân-
cia, sobretudo ao se considerar contextos educacionais e acadêmicos
(BONVINO, 2010). Uma avaliação de proficiência linguística de in-
divíduos não-nativos de uma LE objetiva verificar a capacidade de um
candidato em realizar tarefas de uso futuro daquela língua, de maneira
competente, sendo ao final classificado em níveis de proficiência con-
forme seu desempenho nessa avaliação.
Entretanto e de acordo com Martins (2017), uma avaliação com
vistas a aferir, em específico, a proficiência linguística de um professor
de LE no contexto de atuação brasileiro é ainda considerada uma no-
vidade. Assim, membros do grupo de pesquisa ENAPLE-CCC vêm
trabalhando nos últimos anos na elaboração e no aprimoramento de
643
um exame com a finalidade específica de avaliar a proficiência linguísti-
co-comunicativa de professores de LE que atuam no cenário brasileiro
(CONSOLO, 2010), que é o exame EPPLE, Exame de Proficiência
para Professores de Língua Estrangeira (CONSOLO et al., 2009,
2010). Este exame apresenta características de um exame para fins es-
pecíficos (DOUGLAS, 2000), tais como tarefas que simulam o uso
de linguagem típica de sala de aula em LE, levando seus candidatos a
demonstrar o domínio de uso desta linguagem (FERNANDES, 2016).
Em se tratando do EPPLE, o seu construto está em consonância
com a visão de Stern (1983, apud ANCHIETA, 2015, p. 255), segundo
a qual proficiência está relacionada ao desempenho do usuário de uma
determinada língua, capaz de desenvolver competências comunicati-
vas nessa língua. Corroborando a visão supracitada, são encontradas no
construto do EPPLE algumas características que compõem um exame
de base comunicativa, tais como capacidade de uso real da língua, ênfa-
se na comunicação, conteúdos autênticos e contextualizados e resulta-
dos expressos em faixas de proficiência (SCARAMUCCI, 1999). Para
Lim (2012), é indispensável considerar-se o construto de um exame
para uma elaboração de tarefas que assegure que esse construto seja
adequada e balanceadamente contemplado.
Assim, os candidatos ao EPPLE encontram no teste de produção
escrita tarefas típicas do contexto de atuação do professor de LE, a par-
tir das quais podem demonstrar que sabem utilizar a LE em contextos
de ensino e de aprendizagem, bem como que possuem a proficiência
linguística desejada para sua melhor atuação profissional, permitindo
“a interação entre a proficiência linguística e o conhecimento de conte-
údos específicos dos avaliados” (ANCHIETA, 2015, pg. 63).
Proficiência do professor
A preocupação com a qualidade da formação docente no Brasil,
bem como a adequada proficiência de professores de LE, especialmente
de professores de LI que irão atuar no contexto de ensino e aprendi-
zagem do país, vem sendo tema de investigação acadêmica crescente
644
em LA (por exemplo, ALMEIDA FILHO, 1999; CONSOLO, 2001,
2004, 2005, 2017). No que se refere aos cursos de Licenciatura em
Letras e a preocupação quanto a formação adequada de professores de
LE, levando-se em conta o aspecto linguístico de tal formação e o ce-
nário contemporâneo de ensino e aprendizagem, é importante salientar
que ainda não há parâmetros determinados para se avaliar a qualida-
de da proficiência destes profissionais (cf. QUEVEDO-CAMARGO,
2017), o que corrobora com o caráter deficitário da formação docente
quanto à proficiência linguística destes futuros profissionais.
Almeida Filho (1992) já havia constatado a problemática da for-
mação de professores de LE em cursos de Licenciatura em Letras com
dupla habilitação (isto é, licenciados na língua materna e em uma LE,
principalmente a LI) que, embora sejam graduados em Letras, não se
consideram competentes para usar a LE em sala de aula. O autor relata
que o professor
645
linguístico-comunicativa (ALMEIDA FILHO, 2006) do professor de
LE (sobretudo, na LE com a qual pretende atuar) – é considerada um
requisito para a atuação deste profissional. Assim, a competência lin-
guístico-comunicativa (ALMEIDA FILHO, 1993; CONSOLO, 2007;
BORGES-ALMEIDA, 2009) é a principal, porém não a única, com-
petência que o professor de LE deve possuir para o exercício adequado
do ensino de LE.
Considerando, desta forma, o conceito de proficiência linguísti-
co-comunicativa de professores, Consolo e Silva (2014) apresentam
como o construto do exame EPPLE aspectos da proficiência linguísti-
ca essenciais ao professor de LE, como aspectos fonéticos, fonológicos,
morfológicos, sintáticos, semânticos, além de aspectos de proficiência
mais específicos e que são esperados por parte deste profissional, isto é,
aspectos característicos da linguagem do professor, como sua metalin-
guagem, sua capacidade em dar instruções aos aprendizes, utilizar lin-
guagem de correção e de apreciação, dentre outros aspectos. Desta for-
ma, a competência linguístico-comunicativa que as tarefas do EPPLE
visam avaliar consideram a língua usada em contextos do dia-a-dia do
professor de LE, bem como contextos mais restritos a seu ofício, e tam-
bém permitem que esta competência possa ser avaliada, uma vez que
suas tarefas reproduzem situações típicas do contexto de sala de aula,
levando o candidato a simular uma prática de uso da língua condizente
com seu ambiente profissional (ANCHIETA, 2017).
646
Consolo e Silva (2014) já clamavam a necessidade de haver uma dis-
cussão mais ampla acerca de descritores para a avaliação da proficiência
da produção escrita no EPPLE, defendendo o avanço em estudos sobre
o teste escrito do exame para “a definição de descritores e de faixas de
proficiência embasadas tanto em critérios analíticos como em critérios
holísticos, com base em estudos específicos sobre a proficiência de pro-
fessores nas habilidades escritas” (op. cit, 2014, p. 66).
Ainda que o número de trabalhos acadêmicos que tratem de aspec-
tos da produção escrita do professor de LE no âmbito das tarefas do exa-
me EPPLE tenha, de maneira tímida, aumentado recentemente (PIRES,
2015; CUNHA, 2021), ratifica-se a necessidade de que mais estudos se-
jam feitos com vistas a aprofundar as reflexões acerca do papel e da rele-
vância da produção escrita do professor de LE no contexto brasileiro, em
específico no escopo do exame EPPLE. É essencial, portanto, que essas
tarefas não somente ilustrem situações autênticas de uso dessa linguagem
escrita, como também possam caracterizar o repertório de linguagem escri-
ta esperado que um professor de LE, sobretudo de profissionais recém-for-
mados em cursos de Licenciatura em Letras do país, possua para o melhor
exercício do ofício.
Faixas de proficiência
Estudiosos na área da LA realizaram trabalhos pertinentes sobre fai-
xas de proficiência e sua importância no âmbito das avaliações linguísti-
cas (por exemplo, NORTH, 1998, 2000; HUDSON, 2005). Existem
três funções distintas para essas faixas, conforme Alderson (1991, apud
HUDSON, 2005, p. 208), sendo elas (1) descrever os níveis de desem-
penho, (2) fornecer uma referência aos examinadores que estão avalian-
do o desempenho e, finalmente, (3) orientar os desenvolvedores de tes-
tes com um conjunto de especificações. Douglas (2000, pg. 67) ressalta
a importância de se explicitar os critérios de avaliação presentes em um
exame, assim como seu cuidadoso desenvolvimento (op. cit., p. 71). Em
suma, as faixas de proficiência são usadas para mensurar o desempenho
de um indivíduo (ou, no escopo do exame EPPLE, o professor de LE)
647
quanto ao uso competente dos mecanismos linguísticos da língua para
a qual está sendo avaliado, sendo ao final do processo avaliativo classi-
ficado em uma dada faixa, em consonância com o resultado apurado.
O desenvolvimento, no último século, de diversos modelos de
competência comunicativa culminou com a necessidade de descrever,
por meio de descritores capazes de caracterizar e descrever em faixas
de proficiência, o desempenho de indivíduos submetidos a proces-
sos de avaliação linguística (QUEVEDO-CAMARGO, 2019), sendo
o QECR (Quadro Europeu Comum de Referência125, ou CEFR –
Common European Framework of Reference, no original) um dos mais
conhecidos documentos neste sentido, e amplamente utilizado em todo
o mundo como sinônimo de referência fidedigna no que tange a faixas
de proficiência linguística. Tal documento foi criado com o intuito de
servir de referência ao ensino, à aprendizagem e à avaliação de línguas e
que auxilia os usuários a desenvolver conhecimentos práticos para uso
da língua em situações no mundo real.
No que tange às faixas de proficiência, vale mencionar que exis-
tem as faixas chamadas de holísticas e faixas chamadas de analíticas.
As faixas holísticas permitem que examinadores prestem atenção de
forma geral, provendo uma visão mais global do desempenho e da
produção de um candidato em um exame (BONVINO, 2010), além
de conferir maior agilidade em um processo de correção sem deixar
de ser um instrumento confiável (PANOU, 2013, apud PIRES, 2015,
p. 36). Por outro lado, as faixas analíticas são consideradas mais explí-
citas e mais informativas (WEIGLE, 2002; SINGER e LeMAHIEU,
2014, apud PIRES, op.cit.), dado que provêm informações objetivas e
claras acerca do desempenho de um candidato (BONVINO, op. cit.,
p. 38). Se, por um lado, as faixas holísticas permitem avaliar desempe-
nho de um candidato com base em uma avaliação mais impressionista
e subjetiva do examinador, as faixas analíticas permitem que diferen-
tes aspectos de competência linguística sejam identificados e possam
125
Para mais informações, vide Council of Europe (2001).
648
ser melhor explicitados em consonância com o construto do exame
(LIM, 2012).
Metodologia
Natureza da Pesquisa
A metodologia de pesquisa adotada pela investigação aqui apre-
sentada é de natureza qualitativa (LAZARATON, 2002) e de cunho
interpretativista (ERICKSON, 1986). Segundo Lazaraton (2002), me-
todologias de pesquisa qualitativas têm como objetos de seu estudo as-
pectos sociais e humanos que eram relegados a um segundo plano por
pesquisas quantitativas, além de permitirem uma descrição mais precisa
do contexto em que a investigação se desenvolve. Entretanto, concor-
damos com Bachman (2000), ao considerar essencial desenvolver for-
mas de combinar, de maneira complementar, abordagens quantitativas
e qualitativas em pesquisas que tratam de avaliações de língua, já que
seus resultados ainda são apresentados de maneira quantitativa por meio
de números e resultados. Bogdan e Biklen (2013, apud COLOMBO,
2014), são favoráveis à utilização de dados quantitativos em pesquisas
de base qualitativa, como forma de evidenciar considerações feitas acer-
ca dos sujeitos envolvidos em uma pesquisa.
Com base na análise das tarefas do teste escrito do EPPLE e das res-
postas dos candidatos, foi possível não somente apontar quais aspectos
são relevantes nesta caracterização, como também, a partir dela, propor
critérios de avaliação da produção escrita por meio de faixas analíticas
para o exame EPPLE, especificamente para as tarefas de produção escri-
ta. Por tudo isso, e em consonância com os interesses da investigação,
adotou-se uma metodologia de pesquisa qualitativa e com utilização de
paradigmas de análise interpretativa dos dados utilizados.
Procedimentos metodológicos
Os dados da investigação foram levantados a partir de tarefas de
produção escrita coletadas de um total de 24 testes do exame EPPLE,
realizadas entre 2017 e 2018 (cf. CUNHA, 2019) por alunos de duas
649
universidades públicas – uma do interior de São Paulo e outra do sul
de Minas Gerais. À época, essas tarefas foram corrigidas e avaliadas por
uma equipe de examinadores formada por três pesquisadores, todos
membros integrantes do grupo de pesquisa “Ensino e Aprendizagem de
Língua Estrangeira: Crenças, Construtos e Competências” (ENAPLE-
CCC), tomando como critério de correção os descritores da escala de
proficiência holística do teste escrito do EPPLE existente à época do
estudo de Cunha (op. cit.) e elaborada por membros do mesmo grupo.
As tarefas coletadas formaram o corpus dessa investigação.
Foram selecionadas as seções 2 e 3 do teste de produção escrita do
exame EPPLE, cujas tarefas compõem o foco desta análise. Na segunda
seção, é solicitado ao candidato que produza um texto, em situação
contextualizada com o trabalho de professor de LI, no qual o primeiro
e o último parágrafos são apresentados previamente redigidos, caben-
do ao candidato fazer o preenchimento do parágrafo intermediário re-
manescente. Por fim, na terceira seção, são apresentados ao candidato
excertos escritos produzidos por estudantes de LI, os quais apresentam
trechos contendo inadequações da chamada língua padrão. O candida-
to é, então, convidado a primeiro identificar essas inadequações, isto
é, os desvios presentes nesses trechos e, em seguia, redigir, recorren-
do à metalinguagem da área, correções e comentários compatíveis com
quem os escreveu – em outras palavras, de forma que seja inteligível ao
autor dos mesmos.
Após uma análise preliminar da produção escrita dos 24 testes, com
base na classificação em faixas holísticas quando da realização do exame,
foi proposto um modelo de faixas de proficiência, de caráter analítico,
criado especialmente para uma melhor avaliação do desempenho dos
candidatos no teste escrito e capaz de contemplar aspectos específicos
dessa proficiência de professores de LE, em particular professores de LI.
Ressalta-se que a elaboração do modelo faixas de proficiência de caráter
analítico para as seções 2 e 3 do teste de produção escrita do EPPLE
contemplou toda a reflexão teórica da pesquisa de Cunha (2021), bem
como fundamentou-se no conjunto de dados levantados a partir das
650
análises de amostras de tarefas de produção escrita que compõem o
corpus dessa pesquisa.
Assim sendo, os cinco critérios propostos para avaliar a proficiência
em linguagem escrita do professor de LE, de forma analítica, e por meio
das tarefas de produção escrita do exame EPPLE, são:
- Adequação discursiva à terminologia da linguagem de professor;
- Coesão e coerência textuais;
- Ortografia e pontuação;
- Estruturas linguísticas (gramaticais e lexicais);
- Cumprimento da tarefa proposta.
Os dados levantados nas amostras coletadas do teste foram com-
parados a cada um dos critérios supracitados, a fim de verificar em
que medida a produção escrita das amostras analisadas continham tra-
ços desses critérios e se os dados encontrados dariam suporte para sua
aplicabilidade. Por fim, as amostras deste corpus foram também sub-
metidas a uma análise realizada por dois examinadores especialistas,
convidados a apreciar tais amostras, e que empregaram o modelo de
faixas analíticas para avaliar a produção escrita dessas amostras. Esse
procedimento de triangulação de dados (cf. DENZIN, 2010) objeti-
vou trazer maior confiabilidade ao modelo proposto, dado que modelo
de faixas analíticas foi analisado a partir de outros olhares, com vistas
a trazer maior credibilidade não só ao modelo em si, mas também aos
dados dele oriundos.
Resultados alcançados
Os resultados alcançados a partir da análise dos dados revelam que
o modelo de faixas de proficiência analíticas (CUNHA, 2021) mos-
trou-se não só viável para avaliar a produção escrita a ser feita dentro
de um cenário de aplicação do exame EPPLE, como também capaz
de, por meio de seus descritores analíticos dentro de cada um dos cin-
co critérios propostos, caracterizar, em faixas de proficiência, o que os
candidatos ao exame são capazes de produzir, em termos de linguagem
651
escrita, e de que forma esta produção escrita pode ser classificada em
faixas de proficiência.
Além disso, a análise e o parecer de dois examinadores especia-
listas – convidados a julgar o desempenho dos candidatos e, ao final,
atribuir uma classificação das produções escritas, empregando o mo-
delo de faixas de proficiência aqui proposto – buscou verificar sua
confiabilidade, bem como corroborar as impressões alcançadas por
Cunha (2021). Assim, o modelo cumpre um de seus objetivos, que
é delinear os critérios que caracterizam a proficiência em linguagem
escrita de professores de LE que se submetem ao exame EPPLE, em
consonância com as discussões teóricas acerca do grau de detalha-
mento de informações oriundas das faixas de proficiência analíticas
(BONVINO, 2010; PIRES, 2015) capazes de serem fornecidas por
um modelo como este.
Referências
ALMEIDA FILHO, J. C. P. de. Conhecer e desenvolver a competência profissional dos
professores de LE. Contexturas, São Paulo, v. 9, p. 09-19, 2006, Ed. Especial.
652
ANDRELINO, P. J. A caracterização de instruções de professores de inglês: con-
tribuições para a elaboração de tarefas para um teste oral. In: CONSOLO, D. A.;
GATTOLIN, S. R. T.; TEIXEIRA DA SILVA, V. L. (Orgs.). Perspectivas em avaliação
no ensino e na aprendizagem de línguas: pesquisas e encaminhamentos na formação da
prática docente. Campinas: Pontes, p. 95-112, 2017.
BACHMAN, L. F. Modern language testing at the turn of the century: assuring that
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653
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MARTINS, T. H. B.; TEIXEIRA DA SILVA, V. L. An examination of foreign lan-
guage proficiency for teachers (EPPLE): The initial proposal and implications for the
Brazilian context. In: Congresso Internacional da ABRAPUI: The Teaching of English:
Towards na Interdisciplinary Approach Between Language and Literature. São José do
Rio Preto-SP. Anais… São José do Rio Preto, p. 1-15. 2009.
DOUGLAS, Dan. Assessing languages for specific purposes. Cambridge: CUP, 2000
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HUDSON, T. Trends in Assessment Scales and Criterion-Referenced Language
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SCARAMUCCI, M. V. R. Proficiência em LE: Considerações terminológicas e concei-
tuais. Trabalhos em Linguística Aplicada, vol. 36, p. 11-22, 2000.
656
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
657
more popular. Social networks such as Instagram and Tik Tok enabled tools
that help in the production and editing of short videos and, in this sense, the
practice activities - previously carried out in person - started to be elaborated
at a distance and with the use of tools available in such networks. These
autonomous uses caused two interesting phenomena: the use of social networks
to learn Libras; the influence of short videos on productions in Libras. In this
sense, this work aims to discuss the new construction of anaphora in Libras,
from the use of the virtual environment for the production of short videos
on social networks. Reflections on the phenomenon are based on the socio-
interactionism of (VIGOTSKY, 2008), on the Theory of Complex Adaptive
Systems (PAIVA, 2011) and on Interdisciplinary Applied Linguistics (MOITA
LOPES, 2006). It is possible to notice that the applications support students
by democratizing access and simplifying the process of editing videos, as well
as influencing – in some cases – in the production of activities developed
beyond the language, incorporating editing as an essential tool in the process
of multiliteracies and in the delivery of activities. In this sense, the view of the
use of the tool as a support change and it starts to incorporate technology as a
decisive resource in the production, what was just the learning of a linguistic
resource is distorted to be essential in the constructions of the language
bringing a literary vision for activities.
KEYWORDS: Anaphorism. Applied Linguistics. Second language.
1. Introdução
A língua é um símbolo, um modo de identificação, um instrumen-
to que nos permite conhecer e organizar o mundo, atribuindo sentido
ao relações humanas. A Língua Brasileira de Sinais – Libras é reconhe-
cida legalmente em nosso país desde o ano de 2002, por meio da Lei
10.436 (BRASIL, 2002). É uma língua de modalidade visuoespacial de
complexidade e atributos comparáveis a qualquer outro sistema dessa
natureza, tanto que no campo dos estudos linguísticos já se reconhece
sua legitimidade e seu amplo espaço para pesquisa, dentre alguns con-
textos de forma inicial como na Linguística Aplicada - LA.
É uma língua aprendida por contato, representando por si só as
possibilidades que traduzem as experiências visuais. “Os surdos veem a
língua que o outro produz por meio do olhar das mãos, das expressões
658
faciais e do corpo. É uma língua vista no outro” (QUADROS, 2017,
p. 34). Um espaço importante ocupado por ela são as universidades
que agora a nível de Brasil ofertam cursos de licenciatura e bacharelado
juntamente com outras línguas formam os cursos de Letras de única ou
dupla habilitação.
Tal conquista expande o interesse pela aprendizagem de Libras para
os sinalizantes ouvintes aprendizes, em sua maioria, como Segunda
Língua - L2. Por se tratar de uma língua visual, grande parte de suas
atividades práticas são realizadas em sala de aula e se apoiam fortemen-
te nas tecnologias de audiovisual para registro correção e melhoria da
produção linguística.
Para Vigotski (2008) privilegiar as mediações culturais é importan-
te uma vez que caracterizam sua visão do homem enquanto ser social,
atribuindo o exercício da humanidade à possibilidade de o indivíduo
estabelecer trocas culturais por meio da linguagem. As Redes sociais in-
vadem o cotidiano das pessoas a nível global, possibilitam uma integra-
ção/interação em tempo real, as pessoas estão conectadas o tempo todo.
Algumas delas auxiliam para aproximar os distantes territorialmente
falando e sempre foram usadas nos diversos contextos de convivência
humana como familiar, profissional, lazer, entretanto, em específico no
contexto educacional era pouco visada ou até mesmo restringida em
sala de aula.
A necessidade de ficarmos em casa por conta da pandemia no
Brasil, mais do que nunca tais redes serviram para aproximar e romper
barreiras físicas daqueles que geograficamente encontravam-se próxi-
mos e não consideravam o uso da ferramenta para estabelecer contato
para estes fins justamente pela convivência cotidiana.
A pandemia contribuiu para que novas redes sociais se populari-
zassem pelo mundo, dentre elas o Instagram e o Tik Tok. Todos os
aplicativos sociais que permitem que você interaja com seus amigos e
contatos através de vídeos curtos e parte deste tema nos interessa no
aprendizado de Libras no período pandêmico, adiante falaremos um
pouco mais sobre.
659
Grande parte dos registros de Libras fazíamos por meio de vídeo
pré-pandemia eram realizados em sala de aula e os alunos faziam uso
deste apoio tecnológico apenas como uma ferramenta. Com o advento
da pandemia alguns destes vídeos ganharam um novo olhar por meio
do apoio de ferramentas que anteriormente apenas auxiliavam no regis-
tro mas neste período começam a interferir linguisticamente nas cons-
truções, possibilitando produções que vão além do apoio tecnológico
do registrado, mas sim, trazem consigo um olhar semiótico literário
para além do uso da língua.
Nesse trabalho discorreremos brevemente pelo olhar do interacio-
nismo, da linguística aplicada crítica e pela teoria dos sistemas adap-
tativos complexos observando um fenômeno identificado no período
pandêmico com uma turma do 4º semestre de graduação no curso de
Letras Libras Licenciatura da Universidade Federal de Mato Grosso –
UFMT, ofertada na modalidade Ensino a Distância - Ead. Dividimos o
texto em introdução onde descrevo inicialmente o contexto pandêmico
e a Libras relacionados ao curso de Letras Libras, posteriormente, no
desenvolvimento, falarei sobre o Ambiente Virtual de Aprendizagem –
AVA, as redes sociais no aprendizado de línguas, o processo anafórico
(role-play) em Libras, a influência dos vídeos curtos nas produções de
Libras e, ao final, algumas considerações finais sobre o tema.
2. Desenvolvimento
A Pandemia aconteceu no mundo no ano de 2020 e, mais pre-
cisamente, em março do referido ano temos o primeiro lockdown no
Brasil, resultando em uma revolução na forma de ensinar. O sistema de
ensino presencial necessitou se reinventar e adaptar-se para dar conta do
processo educacional em nosso país majoritariamente ofertado presen-
cialmente até então.
Até início de 2020, as universidades já contavam com modalida-
des de ensino presencial, ensino híbrido e Ead, subsidiados por plata-
formas que permitiam legitimidade no processo educacional superior,
na UFMT para os cursos presenciais o aproveitamento do AVA como
660
recurso de ensino presencial acontecia de forma muito tímida. Mesmo
sendo uma das universidades pioneiras no ensino remoto, precisamos
aprender muita coisa e nos reinventar com o intuito de propiciar uma
educação de qualidade para os alunos.
Diversas estratégias de ensino foram pensadas e colocadas a teste
para tentar adaptar e sanar o prejuízo na questão educacional, espe-
cificamente no ensino superior público, a fim de que não ficássemos
parados. O uso do AVA se intensificou como uma ferramenta disponi-
bilizada há algum tempo, mas com baixa procura por parte dos cursos
presenciais como um todo.
No período supracitado os AVAs foram explorados como ferramen-
tas essenciais para um ensino formal de qualidade. Entendemos nesse
trabalho o AVA, assim como Souza (in Paiva e Nascimento, 2011, p.
93), ele pode ser identificado por ser um espaço que integra tecnologias
heterogêneas e múltiplas abordagens pedagógicas, estruturando para
prover informações educacionais e no qual interações ocorrem rumo à
construção do AVA. Podendo ser utilizado para enriquecer atividades
de sala de aula ou mesmo para substituí-la. Na UFMT, as particula-
ridades de todos os cursos não conseguiram ser supridas apenas pelo
AVA da instituição, pois existem especificidades que variaram para cada
curso de graduação.
Para além do AVA, os acadêmicos do curso de graduação em Letras
Libras licenciatura precisaram recorrer a ferramentas que prestavam su-
porte para o registro das atividades filmadas – por se tratar de uma
língua visual – e de plataformas que auxiliassem no armazenamento/
transferências de arquivos que o AVA não dava conta de suportar para
upload.
Por se tratar de atividades filmadas de uma língua visual espacial,
foi preciso ainda fazer uso de ferramentas de edição do material de re-
gistro, proporcionando filmagens claras, sem poluição visual e com cor-
tes coerentes para aquelas filmagens que não foram gravadas de uma
vez só. A nível de comparação com os demais cursos de Letras ofertados
pela UFMT campus Cuiabá, estes solicitavam que o AVA suportasse/
661
possibilitasse ferramentas para avaliação/arquivamento de áudios para
se trabalhar a parte fonológica da língua, para nós de Libras, a solicita-
ção era para que a plataforma conseguisse suportar arquivos de audio-
visual maiores ou popularmente conhecidos como “mais pesados” uma
vez que vídeos demandam tamanhos de arquivos maiores.
Essa complexidade de demandas e de apoio do AVA para a apren-
dizagem remota em diversos momentos eram contornadas com o
apoio das redes sociais/plataformas digitas que ofertam tais recursos
gratuitamente. Esta forma complexa de perceber certa sagacidade
nos alunos para buscarem recursos tecnológicos gratuitos vai além da
aprendizagem da língua, trata-se de um processo complexo. Segundo
Souza (in Paiva 2011, p.94) O paradigma da complexidade tende a
preocupar-se com “o comportamento dos sistemas dinâmicos, ou seja,
aqueles que mudam com o tempo, e se propõe uma visão holística
desses sistemas, o que oferece à Linguística Aplicada uma forma ino-
vadora de refletir sobre as questões da área”. A LA nos subsidia pensar
na complexidade para além da língua, considerar toda a semiose en-
volvida no processo.
662
que muitas vezes não foram pensados para a educação/aprendizagem de
línguas e fizessem uso para dar conta de suas demandas.
663
otimizando o tempo no processo de organização das atividades filmadas
solicitadas pelos docentes.
126
Narrativa Jacaré ou Madeira disponível em: https://www.youtube.com/watch?-
v=KdbWSgpeJ7s .
664
Esta forma de dinamicidade do discurso pode ocorrer com a de-
marcação de dois ou mais personagens. É possível demarcar três, quatro
personangens no espaço apenas com a torção do tronco se distanciado
ou aproximando do eixo central. Gelamente quando se marcam três
personagens há uma alternância entre o narrador e um personagem no
mesmo posicionamento central do corpo, a troca é percebida pelo con-
texto e pela dinâmica de expressões faciais e corporais que acompanham
a demarcação do personagem e divergem da expressão mais neutra do
narrador.
665
Figura 2: Processo anafórico(role-play) representando dois personagens
pelo posicionamento do tronco somado a troca de cores da camiseta.
666
do processo anafórico, trata-se de uma construção literária em Libras,
uma narrativa nos moldes cinematográficos, com direito a personagens
distintos, figurino, cortes bem elaborados e etc.
667
personagens – enquanto produção de discurso – quanto no momento
em que está como interlocutor e precisa ter clareza nos referentes esta-
belecidos no espaço para não confundi-los.
Pensando por este prisma para a aprendizagem do conteúdo da lín-
gua, é interessante a prática da Libras tendo a tecnologia apenas como
apoio de registro e não como uma ferramenta de “melhoria” e abertura
de possibilidades de produções poéticas em Libras. A autora Bartolomei
(2020, p.159) evidência em sua tese como os “aspectos linguísticos,
dramáticos e tecnológicos são estritamente relacionados e acoplados,
gerando assim a construção de produções de natureza altamente per-
formática e visual, híbridas e imagéticas, produzindo efeitos estéticos
que as ratificam como literárias”, o que eleva tais produções para um
patamar artístico cultural e não mais apenas uma simples atividade de
prática de role-play na Libras.
Enquanto pesquisador de LA é muito claro perceber as influências
do mundo globalizado e do desprendimento de certos moldes que a
aprendizagem de língua está inserida, como se houvesse um distancia-
mento daquilo que ensinamos/aprendemos na academia com o cotidia-
no do mundo. Reconhecer as influências das vivências dos acadêmicos e
o impacto que isso causa em suas formas de aprender é o primeiro passo
para compreender o mundo moderno e ressignificar tais ferramentas a
favor da aprendizagem de línguas.
Nesse sentido, o professor precisa ter bastante cuidado quando
olhar para tais produções, pensando pela complexidade, assim como a
autora Paiva (2011, p.192) “no contexto de aquisição de segunda lín-
gua, ser exposto a determinada experiência pode causar reações diferen-
tes em estudantes diferentes. A exposição a certas experiências pode ser
produtiva para um aprendiz e funcionar como um bloqueio para ou-
tro.” E se o professor não tiver cuidado para explicar as diferenças entre
a prática de role-play na língua e a produção visual literária, pode gerar
no aluno a sensação do fazer errado, quando na verdade, é apenas um
fazer diferente. Não é melhor e nem pior do ponto de vista da prática
do conteúdo anaforismo, apenas diferente.
668
Ensinar não é reprimir o aluno, é necessário explicar o contexto
e o objetivo das atividades práticas sim, mas também reconhecer tais
fenômenos positivamente como forma de explorar a criatividade dos
alunos. Penso que o professor que desmerece o esforço considerando
como “errado” pode estar privando a criatividade e as potencialidades
dos acadêmicos que tenham uma tendência para as produções literárias
em Libras, assim como, caso ele considere como algo superestimado,
possa passar a mensagem que no contexto de prática do processo ana-
fórico(role-play) as produções estão em um patamar superior, levando
a falsa compreensão de que o processo anafórico é praticado em sua
excelência quando for utilizado de recursos tecnológicos e adereços para
compor os personagens.
No período pandêmico essa sensibilidade e atenção por parte dos
docentes foi intensificada e necessária levando em consideração que não
foi um período fácil para os acadêmicos e para todos nós, de maneira
geral, enquanto seres humanos. Precisamos lidar com as questões par-
ticulares pessoais que fogem a universidade e a incerteza de um futuro
retornando à convivência normal cotidiana com a vitória da ciência
sobre o vírus, bem como com os desafios específicos do ensino remoto,
tecnologia necessária, internet de qualidade e etc.
Foi preciso olhar tais fenômenos pelo prisma da complexidade da
aprendizagem de línguas no mundo globalizado, conectado, entenden-
do que os acadêmicos relacionaram aquilo que aprendiam em sala de
aula com o seu cotidiano, estavam isolados, em contato limitado com
os demais colegas da turma e o docente responsável pela disciplina.
Agora, retornando ao presencial penso que será raro ocorrer novamente
tal fenômeno uma vez que as práticas voltaram a acontecer em sala de
aula, o que não permite que os alunos tenham o tempo necessário para
se apoiar na tecnologia para além do registro das atividades.
3. Considerações finais
Neste artigo, discorremos brevemente sobre o ensino de Libras em
nível superior e o fenômeno da influência das redes sociais impactando
669
a aprendizagem do processo anafórico (role-play) no período pandê-
mico, foi possível perceber que nos exemplos citados ocorreu-se que
as acadêmicas foram além da prática de um recurso linguístico para a
produção literária em Libras, fazendo uso não só da demarcação corpo-
ral dos personagens mas complementando com uso de roupas de cores
diferentes e adereços caracterizando os personagens dentro da narrativa,
este fenômeno nos possibilitou compreender que o ensino de língua
está inserido em uma sociedade múltipla e diversa que as práticas sociais
dos acadêmicos acabam por impactar no aprendizado de língua.
No caso do anafórico(role-play) foi possível perceber que tal fenô-
meno caracterizou-se com mais frequência no período de ensino remo-
to, pois no presencial não haveria tempo para toda essa produção que
busca na tecnologia não apenas o apoio do registro das atividades, mas
sim, um recurso aliado para a produção de vídeos mais elaborados.
Referência bibliográfica
ARRIENS, Marco Antônio. A Importância da Linguagem Corporal Expressiva da
Libras. In: Revista Forum. 2005. p. 16-28.
DO VALE BORGES, Elaine Ferreira et al. Por uma abordagem complexa de ensino
de línguas. Revista Linguagem & Ensino, v. 14, n. 2, p. 337-356, 2011.
670
MOITA LOPES, L. P. (Org.) Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo:
Parábola Editorial, 2006. 279 p.
PAIVA, Vera Lúcia Menezes Oliveira; NASCIMENTO, Milton do. (orgs.) (2009).
Sistemas Adaptativos Complexos: lingua(gem) e Aprendizagem*. Campinas: Pontes,
2011.
671
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
672
certain practices of literacies and genres of a social sphere; 3) the incarnation
of a character and assumption of his discursive ethos. For data generation,
we carried out action research and applied the following data generation
instruments: questionnaire, class recording, computer image capture, research
diary and interview. We conclude that the gamer route builds the enunciation
scene from the immersive world, allowing students to have more concrete
experiences before assuming a certain discursive ethos.
KEYWORDS: videogames, didactic material, writing
1. Introdução
Desde o início de 2020, vivemos tempos pandêmicos marcados pe-
las consequências da circulação e disseminação do vírus SARS-CoV-2,
que causa a Covid-19. Devido às necessidades de isolamento social para
conter o vírus, a doença provocou profundas modificações nas relações
sociais, o que também causou impactos na educação. A escola sempre
foi vista como um espaço essencial não somente para o ensino de con-
teúdos, mas também de vivências entre alunos e professores, capazes de
promover a socialização, a amizade, a cooperação entre os indivíduos e
a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Essa concepção
foi abalada pela necessidade nunca vista de promover o chamado ensino
remoto, isto é, um modelo de ensino em que os estudantes deveriam es-
tudar em suas casas. Algumas estratégias foram criadas: disponibilização
de materiais impressos para retirada nas escolas, criação de vídeos, aulas
online ao vivo, postagem de atividades em ambientes virtuais, trocas de
mensagens em aplicativos e e-mails, entre outras possibilidades. Muitas
dificuldades foram enfrentadas, principalmente devido à dificuldade
de acesso de alguns às tecnologias digitais e pelo desconhecimento de
como conduzir o processo pedagógico nesse novo cenário.
Tendo em vista os desafios impostos pelos tempos pandêmicos, é
fundamental que as pesquisas educacionais nas diferentes áreas, como
os estudos da linguagem, passem a refletir sobre quais materiais didá-
ticos podemos oferecer aos estudantes em alternativas que levem em
conta não só o ensino presencial, mas também possam ser utilizados
673
em modalidade híbrida (presencial e digital). Embora a fase mais crítica
tenha passado e as escolas tenham retornado às aulas, a crise gerada pela
Covid-19 colocou em evidência o quanto a escola brasileira ainda não
está preparada para lidar com as tecnologias digitais da informação e
comunicação. Nesse sentido, é necessário que se pense urgentemente
o que pretendemos para o futuro, já que não é nosso desejo contribuir
para uma visão utilitarista das tecnologias no ensino, entendendo-as
apenas como ferramentas e não como objetos ensináveis em uma pers-
pectiva crítica e reflexiva.
No intuito de contribuir com essa discussão, este artigo traz alguns
dos principais resultados de uma tese de Doutorado em Linguística
Aplicada, defendida em 2020, na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), que teve como objetivo geral “refletir sobre as interfaces en-
tre os games e as atividades de escrita em práticas de letramentos escola-
res, em uma aplicação de um material didático desenvolvido em lógica
gamer” (CHINAGLIA, 2020, p. 15). Desenvolvemos e aplicamos em
uma sala de aula de curso popular para Ensino Médio127, por meio da
metodologia da pesquisa-ação, um material didático digital intitulado
“Lara Croft nos templos do Camboja”128, que embasou a criação de um
novo conceito criado para a tese e que será aqui explorado: o percurso
gamer. Em resumo, o percurso gamer é um conjunto de atividades di-
dáticas, que possibilita a interação com um espaço virtual, a simulação
de determinadas ações em um mundo imersivo e a encarnação de um
personagem. Essas características serão apresentadas em relação a con-
ceitos que perpassam a Linguística Aplicada, como letramentos, gêne-
ros e ethos discursivo.
127
A pesquisa teve a orientação da Prof.ª Dr.ª Márcia Rodrigues de Souza Men-
donça, docente do PPG/LA (IEL/Unicamp) e foi realizada com o apoio da Co-
ordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior – Brasil (CAPES)
– Código de Financiamento 001. Ela também foi devidamente autorizada pelo
Comitê de Ética da Unicamp para realização de pesquisa com seres humanos.
CAAE: 68157417.4.0000.5404. Número do parecer: 2.124.312.
128
Disponível em: https://julianachinaglia.wixsite.com/atividadelaracroft. Acesso
em: 11 ago. 2022.
674
O material foi inspirado na série de games Tomb Raider, que apre-
senta a arqueóloga fictícia Lara Croft. Além da aventura vivida pela
personagem, o jogo eletrônico possibilita ao jogador interagir com
descobertas arqueológicas, por meio da manipulação e da análise de
artefatos que são encontrados no cenário. Nossa intenção foi conduzir
o estudante em uma jornada lúdica, na qual deve assumir a posição
da personagem em uma narrativa inédita e então ler e escrever textos
como ela, mobilizando gêneros científicos e de divulgação científica,
tais como diário de pesquisa, resumo, relatório, artigo de divulgação
científica, entre outros. O principal desafio da criação desse material
didático era superar a utilização apenas das mecânicas de games em ati-
vidades digitais, modelo amplamente utilizado em recursos educacio-
nais digitais disponíveis nos repositórios, como verificado em pesquisa
anterior (CHINAGLIA, 2016).
Para esclarecer melhor o que é o percurso gamer, como ele foi criado
e aplicado em sala de aula, além desta introdução, o artigo se divide em
quatro partes. Em “As contribuições dos games para a educação”, expli-
camos quais pressupostos sobre os games foram utilizados no material.
Em “O percurso gamer como um novo modelo de material didático
digital”, esclarecemos as principais características do percurso gamer,
com os devidos embasamentos teóricos utilizados. Em “A pesquisa-a-
ção e seus principais resultados” contextualizamos como foi realizada
a pesquisa em termos de método e de análise dos dados encontrados,
tecendo algumas conclusões sobre os resultados da tese. Por fim, em
“Considerações finais”, discutimos a importância do percurso gamer
para a criação de novos tempos e espaços educacionais, bem como dei-
xamos em aberto as possíveis contribuições do conceito para futuras
pesquisas na Linguística Aplicada.
675
ou do aprendiz. Por exemplo, um aplicativo que incentiva as pessoas a
fazerem atividades físicas por meio da narrativa de fuga de um apoca-
lipse zumbi. Na educação, o conceito vem sendo utilizado para incenti-
var os estudantes a realizar determinadas atividades. No entanto, como
notamos em Chinaglia (2016), a maior parte das iniciativas brasileiras
dos últimos anos considera apenas a mecânica de games, em jogos edu-
cacionais digitais que apresentam questões gramaticais que valem pon-
tos a cada acerto. Algumas iniciativas, entretanto, buscam superar essa
barreira, como pesquisas realizadas na Universidade Estadual do Ceará
(UECE), a exemplo de um jogo desenvolvido em lógica de RPG para
auxiliar no ensino-aprendizagem de ortografia, descrito em Assunção e
Araújo (2019).
O modelo de gamificação pautado apenas em mecânica de games
tem sido alvo de severas críticas, como Bogost (2011), que o considera
uma verdadeira perda de tempo, por não trazer uma contribuição sig-
nificativa para a aprendizagem do indivíduo. Essa estratégia foi deno-
minada por Chou (2014) de PBL: Points, Badges and Leaderboards, que
podem ser traduzidos como Pontos, Insígnias e Classificação. Alguns
autores, como Kapp (2012) e Burke (2015), entendem que esse tipo de
aplicação não considera realmente o engajamento do indivíduo e não
aproveita de forma satisfatória as potencialidades dos games, o que pode
ser alcançado pelo envolvimento em uma narrativa lúdica, na qual assu-
mem-se personagens e vivenciam-se situações em simulações.
Nesse sentido, para além da gamificação, parece-nos produtiva a
concepção da Aprendizagem Baseada em Jogos, de entender os games
como mundos imersivos capazes de facilitar aprendizagens por meio
da simulação e da vivência de experiências, como apontou De Freitas
(2006). Partindo dessa ideia, podemos buscar diretamente no funcio-
namento dos games princípios que podem contribuir para a educação,
como o Princípio do Significado Situado e o Princípio da Identidade,
defendidos por Gee (2014).
Gee (2014) entende que os games permitem ao jogador ter experi-
ências incorporadas, isto é, formas situadas de aprender e pensar, ao ter
676
que participar de ações, fazer escolhas, definir diálogos e, algumas vezes,
até mesmo interferir na narrativa a depender do tipo de jogo envolvido.
Para o autor, nos games, a aprendizagem se dá por meio de um ciclo
de sondagem, formulação de hipóteses, (re)sondagem e reconsideração.
Por exemplo, em Rise of Tomb Rider (2015), um dos jogos da série que
inspirou a pesquisa, Lara Croft costuma se deparar com tumbas secre-
tas, com desafios para serem solucionados. Após vencer os desafios, em
geral, o jogador pode obter uma relíquia arqueológica. Nesses ambien-
tes, é comum se deparar com objetos no cenário, como cordas, baldes,
pedras, carrinhos de mão, ferramentas, escadas etc. Para que o jogador
possa avançar na tumba e desvendar seus mistérios, é preciso que o
jogador sonde o espaço e crie hipóteses de como os objetos podem ser
utilizados para liberar uma passagem. Depois de testá-los, caso não fun-
cionem, o jogador precisa fazer uma nova sondagem e reconsiderar suas
hipóteses anteriores, fazendo uma nova tentativa.
Segundo o pesquisador, esse ciclo exploratório de aprendizagem é
fundamental para que o estudante possa aprender, pois permite a apli-
cação do conhecimento na prática por meio da imersão e da simulação,
diferentemente da maior parte das estratégias escolares que proporciona
apenas o conhecimento na teoria por meio da aprendizagem de conte-
údos e fatos que devem ser decorados.
O autor também considera que os games têm muito a contribuir
para a educação por meio da encarnação de personagens. Gee (2007)
argumenta que os games permitem ao jogador colocar-se no lugar do
outro, em uma dinâmica entre três tipos de identidade diferentes.
Segundo o linguista, o jogador tem uma identidade real, por exemplo,
ser mulher, professora, amante de games etc. O personagem, por sua vez,
também tem uma identidade virtual criada pela narrativa, por exemplo,
no caso de Lara Croft, ser mulher, arqueóloga, corajosa, inteligente etc.
Ao assumir o personagem, o jogador passa a ter uma identidade proje-
tada, por exemplo, aquela em que a jogadora fictícia mencionada se vê
como Lara Croft e passa a projetar nela suas intenções, suas crenças,
seus saberes e seus valores.
677
Para Gee (2007), a experiência de vivenciar um personagem pode
ser muito produtiva na educação para que o estudante possa conhecer
identidades diferentes da sua, solucionar dilemas morais, ser empático
com o outro e experimentar determinadas profissões, como ser um ar-
queólogo, um médico, um cientista, um jornalista, entre outras possi-
bilidades. O autor menciona, inclusive, que há jogos que favorecem a
expertise profissional, ultrapassando o conhecimento meramente técni-
co de dominar certos botões do teclado ou do joystick.
Na sequência, vamos acompanhar como esses potenciais dos games
foram utilizados na criação do material didático digital desenvolvido
para a pesquisa.
678
Assim como Huizinga (2000), entendemos que todo jogo é uma
atividade voluntária que tem espaços e tempos definidos, assim como
regras que regem o que pode ou não ser feito. Um game, nesse sentido,
é apenas um jogo eletrônico ou digital, que mantém as características
de qualquer outro, mas eventualmente pode trazer novidades, como
a hibridização com a linguagem do cinema, por exemplo. Portanto, a
partir desse princípio, consideramos que um percurso gamer pode ter
também um espaço virtual com mecânicas de games. Realizamos a
construção de um ambiente digital na plataforma Wix (figura 1), desti-
nada ao desenvolvimento de sites amadores. A narrativa criada se passa
no Camboja, então, para criar a imersão nesse local, optamos por uma
estética de floresta tropical, em fundo com folhas verdes. A temática da
arqueologia foi inserida por meio de cores como amarelo e marrom,
bem como por imagens de esculturas e templos que existem no país.
Foram agregados recursos extra, como inserção de mapas interativos, vi-
sitas virtuais em 360º, links que direcionam a textos ou galerias de fotos,
botões que abrem janelas pop-up explicativas, entre outros. Inserimos,
ainda, trilhas sonoras que ajudam a criar o “clima” de cada momento da
narrativa, exaltando momentos de suspense, por exemplo.
Figura 1. Espaço virtual do percurso gamer “Lara Croft nos templos do Camboja”.
679
Em relação ao tempo, recuperamos a ideia de que os games propor-
cionam ao jogador uma experiência única, que pode ser cumprida con-
forme o ritmo de cada um. Por exemplo, há jogadores que cumprem
as campanhas129 dos jogos em poucos dias, enquanto outros podem
chegar a precisar de semanas. Essa variável depende da experiência do
jogador e das horas dedicadas à atividade. Para o material “Lara Croft
nos templos do Camboja”, fizemos um planejamento inicial de que
cada uma das 4 missões poderia ser resolvida em 4 aulas de 50 minutos,
conforme o quadro 1. No entanto, esse modelo não é fixo e o estudante
pode ir mais rápido ou mais devagar, a depender do desafio imposto
pela atividade.
Eixo de
Missão Aula Gênero Atividade
ensino
129
No universo dos games, “campanha” é o nome dado para a jornada a ser cum-
prida pelo jogador em uma narrativa, o que pode envolver uma série de missões
principais e secundárias.
680
Eixo de
Missão Aula Gênero Atividade
ensino
Diário de
Leitura Descobrir uma pista de Carter Bell
pesquisa
1
Artigo enci-
Leitura Conhecer o povo khmer
clopédico
Sintetizar o conteúdo do artigo
2 Escrita Resumo
enciclopédico
Diário de Escolher descrições adequadas para o
2 Leitura
pesquisa diário de pesquisa
3 Relatar e documentar a escultura
Diário de
Escrita de elefante encontrada em
pesquisa
Mahendraparvata
681
Eixo de
Missão Aula Gênero Atividade
ensino
Relatório de
Leitura Ler modelos de relatórios de pesquisa
pesquisa
2
Relatório de
Escrita Analisar as descobertas encontradas
pesquisa
4
Artigo de
divulgação
Ler modelo de artigo científico com
Leitura científica
infográfico
com info-
3 gráfico
4 Artigo de
divulgação
Divulgar ao mundo as descobertas
Escrita científica
arqueológicas encontradas
com info-
gráfico
Fonte: Autor, 2020, p. 118.
682
Recuperando o conceito de De Freitas (2006) a respeito dos games
serem considerados mundos imersivos capazes de facilitar a aprendiza-
gem, bem como a ideia de Gee (2014) de que eles favorecem experiên-
cias incorporadas de aprender e pensar, criamos um mundo imersivo
da arqueologia, para que o estudante simule a prática de uma arque-
óloga, o que envolve a mobilização de determinadas práticas de letra-
mentos e gêneros. Schober (2003) descreve que a metodologia desse
campo científico é composta por alguns passos principais: 1) a identi-
ficação de um sítio arqueológico, por meio de fotografias ou filmagens;
2) o levantamento de informações, por meio de pesquisa bibliográfi-
ca, coleta de depoimentos, realização de entrevistas e sondagem do
ambiente com fotografias áreas, imagens por satélite e tecnologia de
mapeamento a laser; 3) o trabalho de campo (geralmente com esca-
vação), com anotações em formulários e em diários de pesquisa; 4) a
análise dos objetos, com catalogação e descrição em relatórios de pes-
quisa, artigos científicos em periódicos, dissertações, teses e capítulos
de livros; 5) a divulgação das descobertas encontradas, em artigos de
divulgação científica. Segundo Oliveira et al (2013), o diário de pes-
quisa é fundamental para a prática do arqueólogo, pois ele permite ao
cientista documentar as descobertas e registrar impressões individuais,
que ajudam a caracterizar os objetos encontrados. Nele, pode haver
relatos do pesquisador, breves narrativas e croquis (um tipo de dese-
nho técnico que mapeia a localização e as condições do artefato). Em
Tomb Raider, podemos notar que há uma simulação especialmente do
trabalho de campo dos arqueólogos. Como exemplo, é possível citar
as ações do mais recente Shadow of the Tomb Raider (2018). Nesse
game, Lara Croft se depara com uma série de artefatos históricos. Ao
se aproximar de cada um deles, faz reflexões sobre suas características,
origens e estado de conservação, reconstituindo uma forma de registro
do diário de pesquisa. O objeto encontrado passa a fazer parte de sua
coleção. Para simular essa experiência, o jogador pode ver o objeto,
aproximar-se dele, girá-lo e examiná-lo, conforme a figura 2, de uma
jarra de cerâmica encontrada no jogo.
683
Figura 2. Relíquia “Jarra de cerâmica” em Shadow of The Tomb Raider (2018).
684
enunciação, para Maingueneau (2010), é composta pela cena englobante
(o tipo de discurso), a cena genérica (o gênero do discurso) e a cenografia
(a forma como o enunciador constrói o discurso). Por exemplo, ao falar
para um grande público, um cientista pode utilizar um discurso cientí-
fico, por meio do gênero palestra, mas adotar uma cenografia diferente
da linguagem utilizada no meio acadêmico, aproximando-se mais da
linguagem midiática da televisão. Nesse sentido, é possível concluir que
existem gêneros que admitem cenografias variadas, enquanto outros
exigem cenografias rotineiras, como uma bula de remédio.
Também é importante considerarmos a distinção que Maingueneau
(2010) faz entre a situação de comunicação e a cena da enunciação. A pri-
meira corresponde aos leitores e produtores reais do discurso, enquanto
a segunda pode ser composta por personagens, já que é uma abordagem
interna ao enunciado. Esse tipo de distinção é muito comum na escola,
pois embora a situação de comunicação envolva professores e alunos,
a cena da enunciação pode ser outra, como estudantes que assumem o
papel de jornalistas para um grande público. Trata-se da simulação do
gênero, já discutida por Schneuwly e Dolz (2004).
No percurso gamer, na cena englobante, os estudantes devem adotar
um discurso científico, já que a personagem é arqueóloga, mobilizando
na cena genérica os gêneros mencionados, como diário de pesquisa,
resumo, relatório de pesquisa, artigo de divulgação científica, entre ou-
tros. O diferencial está no fato de que precisam utilizar a cenografia
esperada para Lara Croft, distinguindo quando o gênero admite ou não
a expressão da subjetividade. Por exemplo, no resumo não é desejável
que se tenha marcas pessoais, enquanto o diário de pesquisa possibilita
o registro das impressões do pesquisador. Embora a simulação seja ine-
vitável, assim como em qualquer outra instância escolar de ensino dos
gêneros discursivos, é possível que os estudantes compreendam mais
claramente qual é a cena da enunciação envolvida e como deve ser con-
figurada, já que ela não é dada apenas no momento da produção tex-
tual, mas é construída ao longo de todo o processo de encarnação da
personagem em todas as experiências vividas na jornada gamer.
685
A pesquisa-ação e seus principais resultados
A pesquisa referenciada foi de abordagem qualitativa, inserida no
campo de investigação da Linguística Aplicada, uma ciência transdis-
ciplinar que era adequada aos nossos propósitos, já que unimos conhe-
cimentos a respeito de games, arqueologia e linguística na construção
do percurso gamer “Lara Croft nos templos do Camboja”. Para aplicar
o material, realizamos uma pesquisa-ação, uma metodologia que, se-
gundo Noffke e Somekh (2005), consiste na resolução da divisão entre
a teoria e a prática, de modo que o pesquisador se torna coparticipan-
te da pesquisa. De acordo com Burns (2010), ela é muito utilizada
por professores, pois permite a eles investigar as práticas em sala de
aula. Seguindo esse modelo, atuamos como professora-pesquisadora
de um curso popular para estudantes de Ensino Médio da rede públi-
ca de Campinas (SP), disponibilizado pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), com a devida autorização do Comitê de Ética
da universidade. Os docentes do curso são voluntários de cursos de gra-
duação e pós-graduação e os alunos são selecionados por meio de uma
préseleção realizada no início de cada ano.
Atuamos durante um semestre nas aulas de Língua Portuguesa de
duas turmas (A e B), contando com 40 participantes da pesquisa, que
foram autorizados por seus pais ou responsáveis (quando menores de
idade) ou que forneceram sua própria autorização (quando maiores
de idade), por meio de Termos de Consentimento Livre e Esclarecido.
Todos os nomes foram trocados, para fins de preservação da identidade
dos participantes. Para gerar os dados, utilizamos os seguintes instru-
mentos de pesquisa: questionário inicial, diário de pesquisa, videogra-
vação das aulas, coleta das produções textuais, software de captura de
tela e entrevista semiestruturada.
Depois de pré-analisar os dados gerados, chegamos a duas categorias
de análise: 1) Engajamento e interações em sala de aula; 2) Situação de
produção dos textos, mundos imersivos e encarnação de personagens.
Em relação à primeira categoria de análise, observamos como os
estudantes reagiram aos aspectos de caracterização visual e sonora do
686
material, dinâmica de tempo, dinâmica de correção em pares e pontua-
ção. De acordo com os dados, os estudantes consideraram que a estética
do percurso gamer foi fundamental para a sensação de imersão. Alguns
chegaram a mencionar que as músicas das páginas e as folhagens tropi-
cais de fundo incentivaram a imaginação, fazendo com que se sentissem
em uma aventura. Apesar disso, indicaram que seria interessante que o
material oferecesse um espaço tridimensional (3D) para o controle da
personagem, o que aumentaria a percepção de que realmente estavam
em um jogo. Esse tipo de interface não foi possível de ser criada, por
limitações técnicas e financeiras, mas entendemos que ela pode ser um
elemento importante para futuras aprimorações do modelo.
Alguns estudantes também relataram que o percurso gamer tinha
muitos textos para ler e produzir, então seria interessante que fossem
disponibilizados mais “minijogos” entre as atividades. Entendemos que
os alunos possam ter considerado excessiva a quantidade de textos, o
que pode ser reavaliado, no entanto, também acreditamos que esse as-
pecto não pode ser excluído, já que ele é fundamental para o ensino de
Língua Portuguesa. A diferença entre um game qualquer e um percurso
gamer para essa disciplina está justamente no fato de que os estudantes
terão experiências imersivas de leitura e de escrita.
Ainda sobre a primeira categoria, em geral, os estudantes conside-
raram positiva a dinâmica de cada um seguir a seu tempo na realização
das atividades, embora alguns poucos alunos tenham mencionado sen-
tir falta de um professor guiando cada uma das tarefas para a classe toda,
em modelo convencional. A dinâmica de tempo, entretanto, foi afetada
quando se relacionava à dinâmica de correção dos textos em pares, o
que foi considerado improdutivo pelos estudantes. Embora a avaliação
entre colegas seja muito valorizada no ensino de Língua Portuguesa,
com a finalidade de descentralizar a avaliação do professor e as temíveis
correções que apenas apontam “erros”, o percurso gamer demonstrou
criar uma dificuldade para essa tarefa, pelo fato de que cada estudante
está em uma atividade de uma missão diferente. Assim, os alunos con-
sideraram “chato” ter que parar o que estavam fazendo, para corrigir o
687
texto de um colega, pois isso descaracterizava a experiência gamer. Essa
lacuna ainda precisa ser repensada em futuras pesquisas.
Sobre os pontos, no começo foi percebido um envolvimento ge-
neralizado das turmas pela pontuação. Muitos estudantes refaziam as
tarefas para poder obter pontuações melhores, assim como adoravam
competir entre si para a exibição do maior número. No entanto, essa di-
nâmica pouco a pouco foi perdendo o sentido ao longo da utilização do
percurso gamer, pois os estudantes relataram ter se envolvido mais pela
narrativa que pelos pontos obtidos. Isso nos mostra que a pontuação é
apenas acessória, não contribuindo de modo efetivo para o engajamen-
to dos alunos, embora possa auxiliar o professor a realizar a avaliação.
A respeito da segunda categoria de análise, o material se mostrou
importante para a formação interdisciplinar dos estudantes. Além de es-
tudarem Língua Portuguesa, os alunos mencionaram que foi muito in-
teressante aprender mais sobre o Camboja. Mario surpreendeu ao dizer
que nem sequer conhecia esse país e se sentiu envolvido pelos aconteci-
mentos históricos que pôde saber por meio da narrativa, como a consti-
tuição do povo khmer e as guerras enfrentadas com outras civilizações.
Em suas falas, os estudantes demonstraram ter se apropriado de
algumas práticas de letramentos da metodologia arqueológica. Tsuyoi,
por exemplo, menciona que achou empolgante o incentivo à pesquisa
mobilizado pelo material. O aluno destaca que, em sua experiência na
escola convencional, pouco teve a oportunidade de pesquisar, o que a
seu ver envolve “realmente ler” e não apenas copiar algo da internet,
imprimir e entregar. Diferentemente de outras atividades da escola, o
estudante afirma que o percurso gamer exigiu que a pesquisa fosse bem
realizada, ou não seria possível ter base suficiente para a escrita das pro-
duções textuais. Luna, por sua vez, destaca que o material proporcio-
nou o aprendizado de gêneros que nunca escreveu, como o diário de
pesquisa.
Mariana, assim como outros estudantes, acrescenta um detalhe
muito importante para o entendimento do percurso gamer. Ela afirma
que as propostas de escrita tinham finalidades como “alguém vai ler
688
depois” e “ah, alguém vai saber”. Com suas palavras, a estudante define
que os textos tinham interlocutores e propósitos bem construídos, isto
é, poderiam compreender bem a constituição da cena da enunciação
requisitada por cada produção textual. Podemos concluir, portanto,
que o material trouxe a esperada imersão para o momento da escrita,
facilitando para o estudante compreender cada proposta, já que assu-
mia o personagem não apenas na hora de escrever um texto, mas ao
longo de toda a jornada. Jorge sintetiza a experiência com a seguinte
consideração:
Considerações finais
Depois de realizar a produção e a aplicação do percurso gamer “Lara
Croft nos templos do Camboja”, entendemos que o conceito novo é
muito produtivo para o aprendizado da escrita, por trazer a imersão
necessária para a construção da cena da enunciação dos textos. No
689
entanto, como apontamos, algumas lacunas ainda precisam ser preen-
chidas, como aprimorar a interface digital, repensar o modelo de avalia-
ção e equilibrar a quantidade de textos e outras atividades que podem
ser mais “lúdicas”.
Entendemos que essas lacunas precisarão ser preenchidas por fu-
turas pesquisas que possam vir a aplicar outros percursos gamers, em
outras realidades. A diversificação de contextos também permitirá des-
cobrir se existem outros problemas e potenciais que ainda não foram
identificados.
De qualquer modo, consideramos que a pesquisa deixou um mo-
delo de material didático digital que pode ser reproduzido pelo profes-
sor em sua realidade, por ser construído com poucos elementos, como a
produção de um site amador, por exemplo. Ainda arriscamos dizer que,
mesmo sem qualquer tecnologia digital, seria possível reproduzir uma
experiência similar, já que o foco poderia estar na construção de um
mundo imersivo e da encarnação de um personagem, sem necessaria-
mente aplicar a mecânica de games. Assim, o percurso gamer pode se tor-
nar mais um recurso que o professor pode utilizar em sala de aula, junto
a outros, como projetos, sequências didáticas, protótipos de ensino etc.
Referências bibliográficas
ASSUNÇÃO, F. N.; ARAÚJO, N. M. Jogo desenvolvido no RPG Maker MV para
auxiliar no processo de ensino-aprendizagem de ortografia da Língua Portuguesa. Anais
do Seminário de Jogos Eletrônicos, Educação e Comunicação, v. 3, n. 1, 2019.
Disponível em: http://www.revistas.uneb.br/index.php/sjec/article/view/6365. Acesso
em: 16 set. 2020.
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titioners. New York: Routledge, 2010.
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SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Os gêneros escolares – das práticas de linguagem aos
objetivos de ensino. Tradução de Glaís Sales Cordeiro. Revista Brasileira de Educação,
n. 11, p. 5-16, 2004.
692
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
ABSTRACT: This research aims to analyze the work with orality in the
Portuguese Language component for the Early Years of Elementary School.
Therefore, we will adopt as corpus the official documents that guide Basic
Education in the country regarding the organization and elaboration of state
and municipal curricula, namely: Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),
published in 1997 and Base Nacional Comum Curricular (BNCC), approved
693
and ratified in 2018. We rely on the theoretical assumptions of researchers who
have dealt with this topic, such as Marcuschi (2001), (2003), (2007), (2010a),
(2010b), Schneuwly (2004a, 2004b), Carvalho and Ferrarezi (2018), among
others. From the reading of the theoretical references and using the analysis of
the content proposed by Bardin (2011), we analyzed the documents observing
the aprroach proposed in those documents as regards working with orality. It
is worth noting that PCN has a character of directing what should be worked
on, while BNCC resumes the first, reinforcing its assumptions. Based on the
analysis carried out, we can see that both PCN and BNCC point to working
with orality as a teaching object to be systematized at school. In BNCC, we
found that the work with orality is expanded in relation to the one proposed
in PCN, with the former reflecting on the organization of today’s society and
its relationship with the use of language. We also highlight the continuum
relationship between orality, writing and other various semioses that permeate
all language practices proposed in BNCC.
KEYWORDS: PCN, BNCC, orality; portuguese language teaching.
Introdução
O ensino de língua portuguesa tem como um dos direcionamen-
tos o ensino da oralidade como uma das modalidades da língua pre-
conizado nos documentos oficiais como nos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN), publicado em 1997, e na Base Nacional Curricular
Nacional (BNCC), homologada em dezembro de 2018. Tais documen-
tos são responsáveis pelo encaminhamento na elaboração dos currículos
estaduais e municipais.
Assim, objetivamos neste artigo observar qual direcionamento
é dado para o trabalho com a oralidade nos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental nestes dois documentos oficiais: PCN e BNCC. Esse re-
corte se dá pelo fato que, nos Anos Iniciais, um dos principais foco
é a alfabetização no que tange à aquisição do sistema de escrita e por
esse motivo a oralidade pode não ser vista pelos professores como algo
a ser trabalhado e sistematizado na sala de aula, embora já apontada
nos documentos norteadores. Entendemos também a importância de
se trabalhar com a modalidade oral da língua também nessa etapa do
694
ensino, haja vista que ela também é parte essencial da língua e que a
usamos para nos comunicar com mais ocorrência que a escrita, sendo
assim, nosso olhar será direcionado para a oralidade, principalmente
observando sua proposição nos PCN e na BNCC, levando em
consideração ainda a distância de vinte anos na elaboração e publicação
entre os dois documentos.
A partir do objetivo traçado, visando uma análise qualitativa dos
documentos, adotamos a análise do conteúdo proposta por Bardin
(2011) como o conceito de inferência a partir das unidades de registros
aplicadas ao documento para a geração dos dados.
Como resultado podemos observar que os PCN e a BNCC abor-
dam a oralidade e a escrita como práticas a serem sistematizadas pela
escola, levando em consideração o seu uso na sociedade, sendo que a
BNCC amplia as possibilidades de trabalho, levando em consideração
as relações que estão imbricadas entre oralidade e escrita, incluindo
também os textos multissemióticos nessa relação.
695
Vale ressaltar que por muito tempo – e ainda permanece muito
presente – que o modelo de escola adotado era um lugar onde os conhe-
cimentos eram dominados pelos professores e estes os depositavam nos
alunos, tidos como tábulas rasas. A relação era totalmente vertical, de
cima para baixo, e nesse lugar não havia espaço para oralidade, os alu-
nos eram silenciados, para falar era necessário permissão do professor,
quem diria, então, estudar sistematicamente a oralidade: escola é lugar
para aprender a ler e escrever, falar todo mundo já sabe.
696
noções como “norma”, “padrão”, “dialeto”, “variante”, “sotaque”, “re-
gistro”, “estilo”, “gíria” ajudando o aluno a formar uma consciência da
heterogeneidade da língua e que ela também não é monolítica.
Ainda o trabalho com a oralidade pode ressaltar a contribuição da
fala para a formação cultural e na preservação de tradições não escritas,
mesmo que a escrita já esteja enraizada em uma determinada sociedade,
como, por exemplo, contos e cantigas populares que têm sua origem
primordialmente oral. É possível também esclarecer aspectos relativos a
preconceito linguísticos e suas formas de disseminação, observando em
que sentido a língua pode ser um mecanismo de controle social e repro-
dução de esquemas de poder e dominação tendo em vista suas relações
com as estruturas sociais (MARCUSCHI, 2003).
Apontamos agora para outro aspecto da oralidade relacionado ao
letramento.
operou-se a partir dos anos 80, em reação aos estudos das três
décadas anteriores em que examinavam a oralidade e a escrita
como opostas, predominando a noção de supremacia cognitiva
da escrita dentro do que Street (1984) chamou de ‘paradigma
da autonomia’. Considerava-se a relação oralidade e letramento
697
como dicotômica, atribuindo-se à escrita valores cognitivos in-
trínsecos no uso da língua, não se vendo nelas duas práticas
sociais. (MARCUSCHI, 2010a, p. 16)
698
o caso, por exemplo, de um envelope aéreo limpo, datilografado
e multicolorido como sinal de respeitabilidade do endereçado,
emprestando ainda importância à mensagem. Estas característi-
cas produzem efeitos de sentido e enquanto meios secundários,
são equivalentes aos elementos paralinguísticos (gesto, mími-
ca, movimentos do corpo etc.) da oralidade. (MARCUSCHI,
2001, p. 30-31)
699
surgem como escritos e depois são oralizados. (MARCUSCHI
e DIONISIO, 2007, p. 17)
700
que define um conjunto possível de gêneros; 3) os gêneros possuem
uma certa estabilidade, definindo o que pode ser dizível a partir deles,
mesmo eles sendo de certa forma flexível (SCHENEUWLY, 2004a).
Por conseguinte, sob a luz de Schneuwly (2004a, p. 24) guiado por
Bakhtin (1953/1979), observamos que o gênero do discurso é um ins-
trumento pelo qual o sujeito usa para falar, sendo ele um instrumento
semiótico complexo, ou seja, uma forma de linguagem que é prescritiva
e que permite a elaboração e a compressão de textos. Por essa ótica, o
gênero não é criado pelo sujeito, mas a ele é dado, possuindo um valor
normativo constituído socialmente.
Se os gêneros, são por excelência o instrumento pelo qual sujeito
se comunica, há também de considerar que eles podem ser escritos ou
orais, ou ainda, há aqueles que transitam entre um e outro, perfazendo
uso tanto da fala como da escrita. De acordo com Scheneuwly (2004b,
p. 109), o oral não existe, o que existe na verdade, são orais, “ativida-
des de linguagem realizadas oralmente, gêneros que se praticam essen-
cialmente na forma oralidade. Ou, então atividades de linguagem que
combinam oral e escrita”.
Nesse seguimento, Marcuschi (2010b) corrobora chamando a
atenção para a relação da oralidade com a escrita no contexto dos
gêneros discursivo, pois eles distribuem-se entre as duas modalidades
num contínuo, desde os mais informais até os mais formais e em
todos os contextos sociocomunicativos. É preciso ter em mente que
existem alguns gêneros que só são recebidos na forma oral, mesmo
que tenham sido produzidos de forma escrita, ou seja, eles são apenas
oralizados.
Os gêneros orais podem ser divididos entre gêneros orais informais
e formais. Por ser objetos de construções sociais também apresentam as
mesmas características essenciais dos gêneros escritos (conteúdo temáti-
co, estilo e estrutura composicional). Os informais estão ligados aque-
les em que acontecem de forma mais espontânea enquanto os formais
possuem estruturas composicionais mais rígidas.
701
PCN e BNCC: Caracterização dos documentos
Os Parâmetros Curriculares Nacionais, segundo o próprio docu-
mento, constituem um referencial de qualidade para a educação no
Ensino Fundamental em todo País (BRASIL, 2001a). A proposta do
documento tem caráter flexível, a ser consolidada nos currículos estadu-
ais e municipais com vistas para a transformação da realidade educacio-
nal, não configurando um modelo curricular homogêneo e impositivo.
O documento teve seu processo de elaboração a partir dos estudos de
propostas curriculares de Estados e Municípios brasileiros e com infor-
mações e experiências de outros países e outros subsídios como o Plano
Decenal de Educação Para Todos (1993-2003). A partir daí, surgiu uma
versão preliminar que passou por um longo processo de discussão duran-
te os anos de 1995 e 1996, culminando com publicação do documento
final ano de 1997, um ano após a aprovação da nova Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96) (BRASIL, 2001a).
O documento é organizado em 12 volumes, atendendo todos os
componentes curriculares obrigatórios no Ensino Fundamental. Para
este trabalho, iremos apenas nos deter ao Volume 2 – Língua Portuguesa,
especificamente o intervalo de páginas de 48 a 52 que dizem respeito
ao trabalho com a oralidade nos Anos Inicias do Ensino Fundamental.
A Base Nacional Comum Curricular é um documento de “caráter
normativo que define o conjunto orgânico e progressivo das aprendi-
zagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das
etapas e modalidades da Educação Básica (BRASIL, 2018, p. 7). O do-
cumento concorre para que tais aprendizagens essenciais culminem no
desenvolvimento das dez competências gerais ao longo da vida escolar
do aluno.
A Base dialoga com outros documentos anteriores, estando em con-
sonância com a Constituição, a LDB e os PCN, além de outros. Adota
como compromisso a educação integral, reconhecendo que a educação
deve ter como foco a formação e o desenvolvimento global do sujeito,
em suas dimensões sociais, intelectuais e afetiva (BRASIL, 2018).
702
O processo de elaboração do documento começou em 2015, a par-
tir da Portaria n. 592, de 17 de junho de 2015, que instituiu uma
Comissão de Especialistas para a Elaboração de Proposta da Base
Nacional Comum Curricular. Naquele mesmo ano foi apresentada a
1ª versão do documento e que em seguida contou com a colaboração
de professores e especialistas da educação para a leitura e ajustes no
documento. No ano de 2016, é apresentada a 2ª versão que resultou
em Seminários pelos 26 estados e o Distrito Federal para debater o
documento. A partir das discussões, houve novas adequações no do-
cumento, chegando a sua 3ª versão e em dezembro de 2017 houve a
homologação das etapas da Educação Infantil e Ensino Fundamental
e, posteriormente, em dezembro de 2018 a homologação da etapa do
Ensino Médio130.
A BNCC apresenta os objetivos de aprendizagens em todos com-
ponentes curriculares de todas as etapas da Educação Básica. Para este
trabalho, nos interessa apenas o componente de língua portuguesa do
Ensino Fundamental, especificamente as páginas de 69 a 82 por tratar
dos eixos que direcionam o trabalho com a oralidade.
130
Informações retiradas do sítio oficial da BNCC, disponível em <http://basena-
cionalcomum.mec.gov.br/historico>. Acesso em 20 de jul. 2022.
703
diferente da variedade prestigiada. (BRASIL, 2001b, p. 48-
49, grifo nosso)
704
É possível observar nos grifos acima a importância do planejamento
docente para o trabalho com a oralidade em sala de aula: de forma
sistemática, sugerindo um trabalho com a oralidade tão igualmente
importante quanto com a escrita. As atividades propostas pelo professor
devem ser organizadas a proporcionar aos alunos reflexões acerca das
características próprias da língua oral em que abordem aspectos como a fala
e a escuta. Há também a sugestão de possíveis atividades que corroboram
para essa abordagem sempre ligadas a situações comunicativas.
Tendo em vista a necessidade de atividades que abordam a lingua-
gem oral e que estejam atreladas à diversas situações comunicativas,
o documento ainda postula a possibilidade de trabalho com projetos,
como vemos na citação 3:
705
interlocutor e, se feita em grupo, a coordenação da fala pró-
pria com a dos colegas — dois procedimentos complexos
que raramente se aprendem sem ajuda. (BRASIL, 2001b, p.
50-51, grifo nosso)
131
A partir da implementação do Ensino Fundamental de 9 anos, a quinta série tem
equivalência atualmente ao sexto ano.
706
como fazer, pois há suposição de que apenas saber falar é suficiente para
que a exposição oral ocorra.
Existe também, como apontado na citação 5, a possibilidade que
o gênero favorece em trabalhar simultaneamente com as modalidades
oral e escrita. É um gênero que propicia trabalhar a relação de comple-
mentariedade existente entre as duas modalidades numa relação contí-
nua entre uma e outra já citada anteriormente e defendida por pesqui-
sadores como Marcuschi (2001, 2007, 2010a, 2010b).
Ainda na mesma direção, há a proposição de um trabalho interdis-
ciplinar que a própria modalidade oral pode oportunizar, como a ex-
posição oral citada, colocando outros conteúdos e temas estudados que
possam se valer de tal gênero para serem expostos a diversos públicos de
acordo com a situação de comunicação posta.
Outra questão colocada também no documento é a respeito do
trabalho com a escuta que deve ser proposta pela escola, conforme ob-
servado na citação 6:
707
última dialoga diretamente com a primeira, retomando e reforçando
a necessidade do trabalho sistemático com a oralidade na escola assim
como é feito com a escrita, olhamos para a Base no intuito de perce-
ber quais contribuições a mais que ela traz além das mencionadas. Isso
porque, primeiro, existe uma distância de quase vinte anos entre um
documento e, segundo, a sociedade mudou muito nesse período, refle-
tindo também sobre os modos de usos da linguagem e sua relação com
diversas multissemioses para a construção de sentido junto a expansão
da Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação.
Dessa forma, a BNCC, propõe que o trabalho com a língua seja
sob tal ótica, como observado na citação 7:
708
que é imprescindível esclarecer a natureza das práticas sociais que en-
volvem os usos da língua independente da modalidade, haja vista que
essas práticas determinam o lugar e o papel de relevância da oralidade e
das práticas de letramentos e que ambas se relacionam em um eixo de
contínuo sócio-histórico. Isso é observável no quadro abaixo em que a
oralidade e escrita perpassam por todas as práticas linguagens:
Práticas de lingua-
Relação continuum entre escrita e oralidade
gens na BNCC
Consiste nas práticas de linguagem que decorrem da in-
teração ativa do leitor/ouvinte/espectador com os textos
Leitura
escritos, orais e multissemióticos e de sua interpretação
[..]. (BRASIL, 2018, p. 71, grifo nosso)
Consiste nas práticas de linguagem relacionadas à interação
e à autoria (individual ou coletiva) do texto escrito, oral
Produção de textos
e multissemiótico, com diferentes finalidades e projetos
enunciativos [..]. (BRASIL, 2018, p. 75, grifo nosso)
Consiste nas práticas de linguagem que ocorrem em situa-
ção oral com ou sem contato face a face [...]. Envolve
também a oralização de textos em situações socialmente
Oralidade
significativas e interações e discussões envolvendo temáticas
e outras dimensões linguísticas do trabalho nos diferentes
campos de atuação. (BRASIL, 2018, p. 79, grifo nosso)
Envolve os procedimentos e estratégias (meta)cognitivas
de análise e avaliação consciente, durante os processos de
leitura e de produção de textos (orais, escritos e multisse-
mióticos), das materialidades dos textos, responsáveis por
seus efeitos de sentido, seja no que se refere às formas de com-
posição dos textos, determinadas pelos gêneros (orais, escri-
Análise linguística/ tos e multissemióticos) e pela situação de produção, seja no
Semiótica que se refere aos estilos adotados nos textos, com forte impacto
nos efeitos de sentido. [...] No caso de textos orais, essa análise
envolverá também os elementos próprios da fala – como
ritmo, altura, intensidade, clareza de articulação, varieda-
de linguística adotada, estilização etc. –, assim como os
elementos paralinguísticos e cinésicos – postura, expressão
facial, gestualidade etc. (BRASIL, 2018, p. 80, grifo nosso).
Fonte: elaborado pelos autores.
709
No eixo Oralidade, a Base traz uma nota de rodapé, como mostra-
do na citação 8 abaixo, apontando que, nesse eixo, as habilidades estão
relacionadas mais especificamente a modalidade e aos gêneros orais,
deixando claro, como apontado no Quadro 1, a relação que existe entre
escrita e oralidade que perpassa por todas as práticas de linguagem:
710
Compreensão dos • Identificar e analisar efeitos de sentido decorrentes
efeitos de sentidos de escolhas de volume, timbre, intensidade,
provocados pelos usos pausas, ritmo, efeitos sonoros, sincronização,
de recursos linguísticos expressividade, gestualidade
e multissemióticos em etc. e produzir textos levando em conta efeitos
textos pertencentes a possíveis.
gêneros diversos
• Estabelecer relação entre fala e escrita, levando-
se em conta o modo como as duas modalidades
se articulam em diferentes gêneros e práticas de
linguagem (como jornal de TV, programa de rádio,
apresentação de seminário, mensagem instantânea etc.),
as semelhanças e as diferenças entre modos de falar
Relação entre fala e e de registrar o escrito e os aspectos sociodiscursivos,
escrita composicionais e linguísticos de cada modalidade
sempre relacionados com os gêneros em questão.
• Oralizar o texto escrito, considerando-se as situações
sociais em que tal tipo de atividade acontece, seus
elementos paralinguísticos e cinésicos, dentre outros.
• Refletir sobre as variedades linguísticas, adequando
sua produção a esse contexto
Fonte: BRASIL, 2018, p. 79, grifo nosso.
711
gerações. Isso é outro aspecto importante da oralidade, tendo em vista
seu surgimento anterior à escrita e que a preservação da cultura e dos
modos de organização social se davam por meio dela.
Há também a incorporação dos novos gêneros que envolvem as
diversas semioses e que surgiram a partir das Tecnologias Digitais da
Informação e da Comunicação.
No eixo da Análise Linguística/Semiótica¸ como mostrado no
Quadro 3 abaixo, há também a proposição de um trabalho com a ora-
lidade e escrita que possibilite o estudo da variação linguística a fim de
compreender como a língua funciona levando em consideração os seus
usos em diversos contextos, discutindo a sua adequação a esses contex-
tos e os processos de valoração entre variações consideradas “certas” ou
“erradas”:
Até aqui, a partir da análise feita, foi possível observar como a ora-
lidade é apresentada para ser trabalhada na escola nos dois documentos
que fizeram parte desta pesquisa.
Considerações finais
Tendo em vista o caminho percorrido até agora neste trabalho, po-
demos observar a proposição da oralidade tanto nos PCN como na
BNCC. É inegável a relação entre os dois documentos, mas o que pode-
mos observar é que ambos já apontam a trabalho com a oralidade como
prática social situada e que é concretizada em práticas discursivas por
meio de gêneros orais informais ou formais.
712
Na BNCC é possível notar de forma mais visível do que nos PCN
o trato da oralidade como prática de linguagem explícita e que precisa
ser trabalhada e, portanto, ser levada em consideração a sua sistematiza-
ção assim como ocorre com a escrita.
Outro ponto também apontado na BNCC é o fato de que a ora-
lidade nesse documento considera o trabalho com o texto multisse-
miótico, assumindo que os gêneros discursivos atualmente podem ser
compostos por várias semioses. Se no PCN, o uso da língua estava mais
voltado apenas para as relações entre oralidade e escrita, embora tam-
bém assumam a relação contínua que existe entre ambas, não marcan-
do uma dicotomia entre uma e outra, na BNCC essa relação é mais
reforçada a partir do uso das Tecnologias Digitais da Informação e da
Comunicação nas produções de textos, abarcando várias linguagens em
um mesmo texto para a construção do sentido.
Isso reflete a situação da sociedade atual e, tendo como base a lín-
gua como prática social que molda e é moldada pelo seu uso, faz sentido
a incorporação desses novos modos de usos da língua e que, portanto,
sejam também conteúdos a serem desenvolvidos na e pela escola.
Vemos, ademais, a importância de a tradição oral ser contemplada
no trabalho escolar a fim de levar os alunos a refletirem como os gêne-
ros orais eram usados para a preservação da cultura e como forma de
transmitir conhecimentos às novas gerações. Nessa relação é possível
um trabalho que compreenda como a língua na sua modalidade oral
teve papel fundamental para a organização da sociedade e por isso não
deve ser desprestigiada ou colocada num patamar de inferioridade em
relação à escrita.
Foi possível destacar também que o trabalho com a oralidade e a
escrita favorecem aos alunos a compreensão das relações de poder e ao
mesmo tempo de segregação que a escrita pode favorecer na sociedade,
bem como as variedades linguística prestigiadas socialmente. Tal traba-
lho oportuniza o entendimento do uso da língua a partir dos seus con-
textos comunicativos e que não existe uma variedade certa ou errada,
mas que há apenas variedades diferentes e que todas elas se referem a
713
uma mesma língua com usuários competentes do sistema linguístico.
Há de destacar que essa proposição tende a combater o preconceito
linguístico ainda tão arraigado na nossa sociedade, fazendo com que o
aluno tenha um posicionamento crítico sobre o uso da língua e de seus
falantes.
Posto tudo isso, ressaltamos que não pretendemos em nenhum mo-
mento esgotar de forma exaustiva as diversas análises que se podem
desdobrar do trabalho com a oralidade a partir dos documentos aqui
analisados. Em suma, apresentamos neste artigo, a forma como a ora-
lidade é concebida e como é sugerida para o trabalho pedagógico nas
escolas a partir dos PCN e da BNCC.
Referências
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714
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715
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
716
PALAVRAS-CHAVE: Semiótica Social, Multimodalidade, livro digital
infantil.
1. Introdução
A semiótica social (SS) tem como foco principal o estudo da co-
municação e da semiose humana, ou seja, do processo de produção de
sentido (HODGE; KRESS, 1988). Desse modo, é uma ciência que
busca investigar várias características inerentes à construção de sentido,
717
colocando, no mesmo nível de importância, qualquer que seja o modo
de comunicação (fala, escrita, imagem e outros), bem como os recursos
semióticos (gestos, tom de voz, cores, texturas, tamanhos, entre outros)
presentes na materialização do texto (GUALBERTO, 2016).
Um desdobramento da SS é a Gramática do Design Visual (GDV)
que continua sendo um importante trabalho teórico-metodológico.
Essa foi elaborada por Kress e van Leeuwen (2020), a partir de seus
estudos e análises da imagem em diversos textos os quais exemplificam
conceitos e categorias apresentados na obra em questão. Por sua vez, ela
busca promover um tipo de letramento visual, no qual a fotografia, o
desenho, a pintura, a filmagem, artefatos 3D, todas essas formas de re-
presentação e comunicação visual são descritas como um modo semió-
tico com recursos que são capazes de desempenhar as mesmas funções
do sistema linguístico. Desse modo, as imagens são descritas em termos
de como seus elementos se organizam e se combinam.
Segundo Gualberto (2016), a GDV associa as metafunções da
Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) de Halliday (1994), original-
mente ligadas à linguagem verbal, ao aspecto visual dos textos. Assim,
a GDV propõe um tipo de análise semiótica do que seria essa parte
constituinte do texto, por isso sua persistência e aplicação em pesquisas
recentes na área, como, por exemplo, a que é feita neste artigo.
Contudo, esse trabalho de Kress e van Leeuwen (2020) é ainda
atual por argumentar a favor de uma compreensão de que todo texto
é multimodal por natureza, isto é, o sentido é produzido por meio da
interação de mais de um modo. Segundo Kress e van Leeuwen (2020)
e Gualberto (2016), todo texto é sempre multimodal, porque o pro-
dutor recorre a mais de um modo para materializar a mensagem, uma
vez que cada modo de representação tem suas possibilidades e limita-
ções. Portanto, afirmar que um texto é multimodal acaba se tornando
redundante. Além disso, vale destacar que os modos possuem diversos
recursos semióticos, os quais o produtor utiliza na concretização do
texto e que são fundamentais para a construção de sentido. Disso re-
sulta, então, o interesse dos autores pela Multimodalidade, isto é, por
718
uma abordagem que inclua todos os modos e recursos envolvidos na
produção de sentido(s) em uma dada situação ou evento comunicativo.
O presente artigo tem como objetivo apresentar os resultados obti-
dos, até o momento, da análise sociosemiótica e multimodal das obras
da “Estante digital” do programa “Leia para uma criança”, se concen-
trando especificamente nos dados obtidos no livro “O sétimo gato”.
Esse e as demais livros da “Estante digital” são objeto de pesquisa do
projeto “Análise multimodal do design de livros digitais e aplicativos de
literatura infantil”132, que busca responder, assim, as seguintes questões:
além da escrita e ilustração, que outros modos e recursos semióticos
compõem o texto literário dos livros digitais da coleção estudada? Que
função esses outros modos desempenham no texto? Como eles con-
tribuem ou interagem com a escrita para a construção de efeitos de
sentido? Eles são utilizados coerentemente e sem excesso na narrativa?
Intitulamos este artigo como análise “semiótica social”, porque nos
interessa investigar, para além do linguístico (escrita), outros modos
presentes nos livros digitais infantis. Então, buscamos, na análise, des-
crever o significado representacional das ilustrações (tipo de estrutura,
de processos e de participantes representados - PR) e identificar outros
modos e recursos semióticos, bem como seus efeitos de sentido no tex-
to. Também o chamamos de “multimodal”, porque consideramos os
sentidos produzidos na interação entre as escolhas feitas dos processos e
PR na imagem, o aspecto verbal (a escrita) e recursos interativos de som
e de movimento, a fim de construir a literariedade do texto, apontando
leituras possíveis para a história e corroborando o letramento desse for-
mato emergente de livro.
719
planejados para a materialidade do papel, como, por exemplo, é o caso
de livros impressos que são digitalizados e disponibilizados em formato
PDF; como aqueles que foram, de fato, criados para aplicativos e dipo-
sitivos para leitura (BORGES; MAIA, 2020). Enquanto os primeiros
mantêm uma configuração e leitura semelhantes ao do livro físico, os
segundos têm como característica uma maior interatividade, além de
proporcionarem ao leitor uma experiência de leitura, na qual ele pode
escolher os rumos da narrativa e/ou participar da história, por meio de
atividades que lhe são solicitadas (MATSUDA; CONTE, 2018).
No meio digital, diferente do que ocorre na leitura em ambientes
tradicionais, o leitor atua como “navegador”, realizando alguns proce-
dimentos, tais como clicar, usar barras de rolagem, usar menus, passar
os olhos pela página na tela, entre outros (COSCARELLI, 2016, p. 76-
77133 apud MACHADO, REMENCHE, 2017, p. 163-164).
720
respectivas funções que o leitor deve conhecer antes de iniciar a leitura
da história (Figura 1).
Desse modo, a emergência desse novo formato de livro tem nos
levado a revistar nossas concepções de leitura e a romper com uma visão
canônica de letramento para uma perspectiva que acolhe as questões
socioideológicas das práticas sociais e que considera a multiplicidade de
formas de produção de sentido. Entende-se, portanto, que o letramento
é múltiplo, pois fazemos diferentes usos sociais da escrita, nos diversos
eventos e práticas sociais (STREET, 2014). Contudo, os textos se mate-
rializam não apenas no linguístico, mas também em outros sistemas se-
mióticos e em arranjos multimodais (KRESS, VAN LEEWEN, 2020).
A multimodalidade como meio de construção de sentidos tem
se tornando proeminente, principalmente nessa era digital em que o
modo verbal não é visto como o mais apto e plausível para a comuni-
cação e representação. Na literatura infantil, observar-se que os livros
destinados às crianças, especialmente as (bem) pequenas, as quais ainda
nem foram alfabetizadas, ou seja, não conhecem ou não têm domínio
do código de sua língua, essa multimodalidade é bastante explorada
durante o projeto gráfico do livro, a partir das escolhas do formato
(tamanho, textura do papel), das imagens (desenho, colagem), cor, ti-
pografia, etc. Isso não é diferente no formato digital, uma vez que as
possibilidade de aplicar outros modos e recursos como de som e de
animação são expandidas.
A coleção da “Estante Digital” do programa “Leia para uma crian-
ça” do ItaúSocial é composta por 16 livros digitais134. Todos podem ser
descritos como livros digitais pensando para esse ambiente. Até o mo-
mento já foram analisados “O menino e o foguete” e “O sétimo gato”.
134
são eles: “O menino e o foguete”, “O sétimo gato”, “O cabelo da menina”, “A bi-
cicleta voadora”, “Chapeuzinho vermelho”, “Pode ser”, “A menina das estrelas”,
“As bonecas da vó Maria”, “Meu amigo robô”, “Malala, a menina que queria ir
para a escola”, “Sovaco da cobra”, “A flor que chegou primeiro”, “Super-prote-
tores”, “Da a janela de Minas”, “O apanhador de acalantos” e “A descoberta do
Adriel”. Todos eles encontram-se na “Estante Virtual”, disponível no seguinte
site: https://www.euleioparaumacrianca.com.br/estante-digital/.
721
Para este artigo, apresentaremos, especialmente, os dados obtidos na
análise da segunda obra.
De acordo com o autor de “O sétimo gato”, ele criou a história
considerando uma certa “adequação da linguagem” ao seu público lei-
tor, mas também ao “veículo”, ou seja, ao meio digital, conforme pode-
mos notar, a seguir, na transcrição da fala de Luis Fernando Verissimo
no vídeo de divulgação (book trailer).
Essa citação nos mostra que criar uma história pode ser diferente a
depender se ela será impressa ou digital. Logo, se há essa diferença na
produção, consequentemente o outro polo da comunicação e repre-
sentação, isto é, o da interpretação, o da leitura, também exigirá novas
habilidades e competências do leitor.
722
os aspectos de produção de sentido e nas noções de signo, texto, gênero,
discursos, dentre outros. Por sua vez, a multimodalidade centra-se nos
meios materiais de representação, nos recursos para fazer textos, ou seja,
nos modos. A partir, então, dos pressupostos da SS e da multimodalida-
de é que as obras que compõem a “Estante digital” do programa “Leia
para uma criança” estão sendo analisadas.
O livro “O sétimo gato” é a história de um garoto que ganhara
sete gatos. O primeiro pensava ser francês, recebeu o nome de Bolinha,
mas não atendia por ele, ao invés de “miau”, fazia “miu”. O segundo
acreditava que fosse alemão e não gostou quando o menino o chamou
de “Chuchu”. Ele também não fazia “miau”, mas “acht”. Coringa foi o
nome dado ao terceiro bichano, esse pensava ser inglês, tomava chá ao
invés de leitinho e não dizia “miau”, e sim “oh, yes”. O quarto achava
ser chinês, o garoto deu a ele o nome de Mimoso. Esse pronunciava
“mmm” ao invés de “miau” e era o mais engraçado. Branquinha foi a
quinta gata. Rejeitou o nome que recebeu, pois pensava ser russa, e
também não falava “miau”, mas “Da”. À sexta felina, o garoto deu o
nome de Kaka. Não pensava ser outra coisa, mas também não dizia
“miau”, porém algo que ninguém entendia. O sétimo, ao entrar na
casa, a primeira coisa que fez foi fazer “miau”. O garoto pensou até
mesmo ser um sonho. Assim, no fim da história, esse último ensinou
aos outros como se falava “miau” e eles se entenderam, afinal todos eles
eram gatos.
“O sétimo gato” é uma história inventada por Luis Fernando
Verissimo, por isso ele assina como “escritor”; e as cenas foram ilustra-
das por Willian Santiago. Contudo, a produção dessa obra envolveu
todo um trabalho de pensar o design, durante o qual provavelmente foi
considerado: quando, na narrativa, colocar efeitos sonoros e de movi-
mento/animação, quais páginas deveriam ter navegação lateral, isto é,
mover para os lados e assim por diante. É a respeito desses aspectos do
design que nos atemos na análise realizada dessa obra para responder as
questões de pesquisa.
723
3. A gramática do design visual e a multimodalidade: categorias
para a análise do livro “O sétimo gato”
A GDV está fundamentada nos trabalhos de Halliday (1994). De
acordo com Brito e Pimenta (2009), embora seu foco de análise fosse a
linguagem verbal, suas teorias puderam ser aplicadas em outros modos
semióticos, já que ele mesmo considerava a linguística como um tipo de
semiótica. Assim sendo, foi a partir dessas colocações teóricas que Kress
e Van Leeuwen (2020) aplicaram os pressupostos de Halliday (1994)
no âmbito da comunicação visual, o que resultou na GDV.
A GSF é uma proposta de análise gramatical pautada na noção de
que a linguagem se processa por meio de três metafunções: ideacional,
interpessoal e textual. Igualmente, a imagem é capaz de realizar essas
três metafunções ou significados, como propõem Kress e van Leeuwen
(2020).
Na pesquisa, nos centramos no significado representacional da
GDV que corresponderia à metafunção ideacional da GSF, na qual os
enunciados são vistos como representações, conforme afirma Gualberto
(2016). Dessa forma, as imagens são analisadas a partir dos fatores que
sugerem ou revelam a representação proposta pelo texto e as interações
entre os participantes que possam estar envolvidos na imagem. Há duas
possibilidades de estrutura representacional: a narrativa e a conceitual.
Segundo Kress e van Leeuwen (2020), quando os participantes
estão conectados por um vetor, eles estão representados como se es-
tivessem fazendo algo um com o outro ou para o outro. Esse tipo de
estrutura é designada como narrativa, pois apresenta “processo”, isto é,
quando envolve vetores (setas, traços, linhas etc) que indicam processos
que podem ser: de ação, uma vez que os vetores que partem dos mem-
bros dos PR sugerem atividades realizadas no mundo real, reacional, no
qual vetores partem do olhar dos PR que reage a uma ação (fenômeno),
verbal e mental, que representa o conteúdo da fala ou do pensamento
do PR, de conversão, que se caracteriza pela transformação do PR, e de
simbolismo geométrico, o qual contém apenas o vetor.
724
Já a estrutura conceitual não apresenta vetores, pois sua finalidade é
apresentar quem ou o que é o PR. Portanto, esse tipo de estrutura pode
ser de classificação, já que os PR são organizados como sendo membros
de um grupo ou conjunto; analítica, pois relaciona os PR na relação par-
te-todo, em que o todo é um PR que carrega os atributos, isto é, as par-
tes; e simbólica, uma vez que o foco está no que cada PR é ou significa.
Portanto, a análise sociosemiótica de “O sétimo gato” foi realizada
a partir dessas categorias, sem, contudo, perder de vista a multimodali-
dade, pois, como Gualberto (2016) afirma
725
uma corresponde aos modos que buscamos identificar ou não no texto.
Já na terceira coluna, classificamos os seguintes elementos: participan-
tes representados (RP) e seus processos, de acordo com a estrutura que
eles formam, que diz respeito ao significado representacional (KRESS;
VAN LEEUWEN, 2020). Finalmente, na última coluna, fazemos uma
intepretação dos efeitos de sentidos da combinação desses vários mo-
dos, observando, especialmente, a interação entre escrita, ilustração e
efeitos de som e de animação.
726
Gráfico 1. Recorrência dos recursos multimodais no livro
“O sétimo gato” (sendo 16 o total de telas)
727
Figura 2. Exemplo de página panorâmica
728
identifica, por isso o miado também reforça, dentro dessa narrativa,
uma marca da identidade do PR. Esse é um recurso que foi utilizado
com todos os outros gatos que o menino foi ganhando durante a histó-
ria. Por se tratar de uma narrativa semelhante a um conto de repetição,
também os outros modos irão explorar essa regularidade dos modos e
recursos semióticos no design das telas.
Assim, respondendo às questões: que função esses outros modos
desempenham no texto? Como eles contribuem ou interagem com a
escrita para construção de sentido?, observamos, por exemplo, na figura
3, que o desenho tem a função de ilustrar essa informação sobre o gato
apresentada pelo narrador, na parte escrita da página anterior (figura 5).
729
para a ideia de afeto entre eles. Já o som, aparentemente, é dispensável
nessa cena.
Verificamos, então, que os recursos de animação e som possuem,
de certa forma, nesta obra, a função de caracterizar os gatos, de reiterar
informação da parte escrita, e também de trazer lucidade para o tex-
to. Igualmente o desenho é muito utilizado na função de ilustração.
Contudo, podemos dizer que ele acaba por oferecer ao leitor - curioso
em saber o que são aqueles símbolos - informações sobre aquele país,
funcionando, desse modo, como “amostras” ou “exemplos” daquela
cultura.
Essa obra faz parte do programa “Leia para uma criança”, de modo
que a proposta dos livros é contribuir para formação leitora dos bebês
e crianças (bem) pequenas, sendo essa atividade acompanhada por um
adulto que fará a mediação entre o livro e a criança. Cabe a ele chamar
atenção do leitor para esses símbolos e, a depender da criança, convi-
dá-la a pesquisar sobre eles. Por exemplo, a Torre Eiffel, chamada tam-
bém de “A Dama de Ferro” (CULTURALIZANDO, 2021), é um dos
monumentos arquitetônicos mais popular e visitado do mundo. Essa e
outras curiosidades dos países representados no livro “O sétimo gato”
são, então, suscitadas pelas imagens das telas com os símbolos represen-
tativos de cada pais.
Com isso, a história envolve o leitor que, consequentemente, acaba
aprendendo, por meio dos símbolos que lhe são apresentados, conhe-
cimentos em relação a pontos turísticos, comidas típicas, arquitetura,
entre outros aspectos culturais da França, Alemanha, Inglaterra, China
e Rússia.
Assim sendo, os modos utilizados vêm acompanhados por estra-
tégias que o produtor utiliza na concretização do texto, fundamentais
para a construção de sentido da narrativa e da sua mensagem. Trata-se
de uma história que tem como tema “a liberdade de ser diferente”.
Ao analisarmos todos os modos envolvidos na produção des-
sa obra, buscando identificar seus potenciais sentidos, consideramos
que, de fato, seus produtores conseguiram representar a temática da
730
diversidade, já que os cinco gatos possuem diferentes nacionalidades, e
o sexto, embora não tenha uma origem explícita, sabemos que ele mia
de um jeito “incompreensível” e tem uma grafia (ou melhor, tipografia
– figura 4) diferente para registrar esse som (onomatopeia).
731
A figura 5, a seguir, apresenta a tela de nº 14 do livro. O sétimo
gato é representado visualmente com um novela de lã (estrutura narra-
tiva, processo de ação). Esse elemento faz uma esteriotipação do gato,
pois, usualmente, são assim representados: brincando com esse objeto.
732
regularidade que a narrativa vinha apresentando ao leitor. Isso faz com
que a história caminhe para um final inusitado e também com mais de
uma possibilidade de interpretação como se espera que seja a literatu-
ra. O mediador da leitura, no caso, o adulto, pode instigar a criança a
investigar a nacionalidade do sétimo gato, solicitando que ela desenhe
símbolos de outros países, ou imaginar e criar uma continuidade da
história com o personagem ganhando outros gatos.
Ademais, na penúltima tela de nº 15 (figura 6), os gatos são visu-
almente representados correndo na mesma direção, há uma metáfora
(do caminho) nessa ilustração que amplia os sentidos da parte escrita.
Vale destacar que o próprio mover para o lado das telas, para finalizar a
narrativa, dialoga com a direção aonde os gatos e o menino estão indo,
dando a impressão de movimento dos PR.
733
a Torre de Babel, numa explicação da origem das línguas. Finalmente,
quanto à pergunta: os modos de som e de animação são utilizados coe-
rentemente e sem excesso no livro?, podemos responder de forma afir-
mativa, uma vez que interagem para potencializar a literariedade da
narrativa.
5. Considerações finais
Os dados obtidos, até o momento, nas análises das obras da “Estante
digital”, como essa do livro “O sétimo gato”, demonstram que escrita,
desenho, animação e som são modos que se articulam para compor a
história, por isso a necessidade do letramento, para além do verbal, dos
outros modos presentes no livro literário infantil, ou seja, da multimo-
dalidade do texto literário.
Embora os outros modos desempenhem predominantemente a
função de ilustrar o verbal, há momentos em que eles contribuem para
caracterizar os personagens e o cenário, antecipar uma informação da
parte escrita, aguçar a curiosidade do pequeno leitor, fazendo-o criar
hipóteses, inferências e outras estratégias de leitura, além de criar um as-
pecto lúdico. Desse modo, podemos afirmar que há uma preocupação,
por parte do programa, em selecionar obras em que a relação entre
os recursos semióticos seja coerente com a proposta estética da obra.
Nossa hipótese, agora, é que os demais livros, ainda a serem analisados,
corroborem essas considerações feitas aqui.
Finalizando, os resultados alcançados nos levam a refletir sobre a
leitura desse formato específico de livro, possibilitando novas pesqui-
sas que busquem investigar como seria a leitura pelas crianças desses
livros e como o adulto-mediador poderia auxiliá-las na percepção dos
sentidos que podem ser construídos na relação dos modos e recursos
explorados nesse formato de livro.
734
Referências
BORGES, M; MAIA, D. O Livro infantil no ambiente digital e a mobilização de ou-
tros recursos semióticos na produção do texto literário. Anais do Encontro Virtual
de Documentação em Software Livre e Congresso Internacional de Linguagem
e Tecnologia Online, [S.l.], v. 9, n. 1, nov. 2020. ISSN 2317-0239. Disponível em:
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/anais_linguagem_tecnologia/article/
view/17772>. Acesso em: 22 mar. 2022.
GATO. Entenda as expressões faciais do seu. Gatinho Branco: por um mundo com
gatos mais felizes! Disponível em: https://gatinhobranco.com/entenda-as-expressoes-fa-
ciais-do-seu-gato/. Acessado dia 27 de março 2022.
ITAÚ. “O sétimo gato” por Luis Fernando Verissimo (book trailer). 2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ineWTMTVz4I&t=79s Acessado
dia 22 de março 2022
KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: The Grammar of Visual Design.
3 ed. London: Routledge, 2020.
LIMA, Ú. Brinquedos para gatos: por que os bichinhos gostam de novelo de lã?. Patas
casas (site). Nestlé Brasil Ltda, São Paulo, 19 ago 2020. Disponível em: https://www.
patasdacasa.com.br/noticia/brinquedos-para-gatos-por-que-os-bichanos-gostam-de-
-novelo-de-la_a1965/1. Acessado 29 jan 2022.
735
LUZ, M; MAIA, D. Análise Multimodal do design do livro digital “o menino e o
foguete”. In: Anais do Seminário de Iniciação Científica IFMG. Anais...Belo
Horizonte(MG) IFMG, 2021. Disponível em: https://www.even3.com.br/anais/plane-
taifmg/375017-analise-multimodal-do-design-do-livro-digital-o-menino-e-o-foguete/.
Acesso em: 16/02/2022.
736
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
737
content, where we asked a generating question that was developed freely
on the theme focused on the racism suffered within the TILSP work
environment. From the interview and the analytical criteria, the discussions
turn to the most recurrent themes in the speeches of the TILSP, which are:
1- Aesthetics; 2 – Racism; 3 – Harassment/Gender. The final considerations
concern the identities of black TILS in relation to their performance, where
their blackness, their culture directly impacts their professional performance.
Racism, questions about aesthetics and harassment from a gender perspective
interfere with performance in the professional scope, because discrimination
and prejudice often come in a veiled and silent way. This discussion shows
that if the body is a cultural act, it should not be regulated, as demonstrated
in the codes of ethics. This body must show its essence, its identity and be a
body of struggle and resistance.
KEYWORDS: Black TILSP; Genre; Breed; Social identity.
Introdução
A Língua Brasileira de Sinais – Libras é oficializada pela Lei nº.
10.436, de 24 de abril de 2002 como primeira língua da comunidade
Surda135 brasileira e o Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005
que regulamenta a Lei supracitada e insere a Libras como disciplina
obrigatória nos cursos de formação de professores e fonoaudiologia.
Com isso o acesso de estudantes Surdos na educação, em classes regula-
res e no ensino superior, cresceu gradativamente.
Diante da Lei e do Decreto, a Libras se difundiu e as pessoas Surdas
começaram a reivindicar por mais acesso a sociedade, à comunicação,
à informação e à educação abrangendo desde a Educação Infantil até a
Educação Superior.
No Decreto nº 5.626 no Capítulo IV Art. 14 descreve o seguinte:
135
Para marcar ainda mais a diferença, convenciona-se grafar “surdo” com a primei-
ra letra em caixa alta “Surdo” quando se quer referir não aos aspectos audiológi-
cos, mas aos culturais ou políticos da condição de surdez” (MAGNANI, 2007).
738
informação e à educação nos processos seletivos, nas atividades
e nos conteúdos curriculares desenvolvidos em todos os níveis,
etapas e modalidades de educação, desde a educação infantil até
à superior (BRASIL, 2005).
739
2. Referencial Teórico
2.1 Representações e Identidades sociais – Um olhar sobre as
Tradutoras e Intérpretes de Libras/Língua Portuguesa negras
Quando pensamos sobre as identidades de maneira geral, ao ingres-
sar em uma organização, sujeitos com características diversas se unem
para atuar dentro de um mesmo sistema sociocultural na busca de obje-
tivos determinados. Essa união provoca um compartilhamento de cren-
ças, valores, hábitos, entre outros, que irão orientar suas ações dentro
de um contexto preexistente, definindo assim as suas identidades. Para
Hall (2003) as identidades se constroem sobre as hibridizações, “as na-
ções modernas são todas híbridos culturais” (HALL, 2003, p. 62), não
existindo mais culturas narrativas e identidades lineares. Assim, cada
sujeito possui sua identidade, suas significações, particularidades e indi-
vidualidades que são únicas, sendo necessário que se entenda o contexto
em que o sujeito está inserido para conseguir compreender como sua
identidade se forma.
A identidade é compreendida como culturalmente formada, um
posicionamento e não uma essência, ligada à discussão das identidades
culturais, nacionais e as que se formam por sentidos cambiantes e con-
tínuos do cotidiano do sujeito (HALL, 1996). Portanto, a identidade
cultural são as particularidades que um indivíduo ou grupo atribui a si
pelo fato de sentir-se pertencente a uma cultura específica.
Homi Bhabha (1998) apresenta a discussão da identidade sob a
abordagem filosófica como autorreflexão; e a visão antropológica da
diferença da identidade humana enquanto a divisão natureza/cultura.
O autor reflete e indaga sobre a identidade como um problema
ocupante de um espaço-tempo contemporâneo, marcado pelo constan-
te movimento, pela não-fixidez (signo da diferença cultural, histórica,
racial no discurso do colonialismo), o qual, antes, era estático e segu-
ro. Bhabha (1998) questiona como se dá a construção de identidades
que não atendam à estratégia discursiva estereotipada da fixidez - um
discurso do sujeito colonial que facilita as relações coloniais, o qual
740
fundamenta a identidade sob a perspectiva do estereótipo e da mímica
como estratégia de conhecimento e identificação do que é “conhecido”,
do que é socialmente “aceito” e está “no lugar” (p.107).
As identidades estão em constante construção e reformulação atra-
vés da interação social. Hall (2006) aborda que essas identidades po-
dem ser contraditórias, conflituosas e que isso faz parte do sujeito pós
moderno: ou seja, seria utópico acreditar em uma identidade plena e
completa. Assim, é nítido que os processos identitários vem sofrendo
mudanças com o passar dos anos e com a mudança social.
E essas mudanças têm acontecido nas questões de classe, gênero, et-
nia, raça e nacionalidade e têm feito com que o indivíduo tenha incerte-
zas em relação a sua identidade e em relação a si mesmo (HALL, 2006).
Em relação aos Tradutores e Intérpretes de Língua de Sinais/Língua
Portuguesa - TILSP sua função é fazer a tradução e interpretação do
par linguístico Libras/Português e vice-versa. Estes atuam em diferentes
áreas como: saúde, justiça, educação, política, meios de comunicação,
congressos, bancos, e locais que necessitam da presença desse profis-
sional. É função do TILSP garantir a acessibilidade dos indivíduos
Surdos, através das modalidades de tradução, interpretação sussurrada,
simultânea ou consecutiva. Os TILSP precisam ter o domínio da língua
alvo e da língua fonte para traduzir e interpretar, além de ter os conhe-
cimentos de técnicas, modalidades e estratégias de tradução e interpre-
tação, e estar em contato com a história, a comunidade e cultura Surda.
O surgimento dessa profissão vem atrelado à história dos sujeitos
Surdos, após o reconhecimento da Libras como língua oficial desta co-
munidade. O trabalho do Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais/
Língua Portuguesa torna-se um direito alcançado a partir da reivindica-
ção dos Surdos, sendo que este profissional é visto como relevante e de
grande importância para a referida comunidade.
A formação da identidade é um processo que está atrelado a di-
versas nuances e que influencia e é influenciado também por muitas
subjetividades. No caso da identidade do TILSP a situação não é dife-
rente: a formação desta identidade também perpassa muitas vivências
741
e experiências comuns a todos os sujeitos e outras próprias do contexto
de atuação. De modo geral, as profissões surgem, estabelecem-se e se
modificam a partir das alterações sociais e políticas de cada época. É a
partir de demandas sociais que tais se estabelecem num contexto social.
O profissional TILSP está sempre exposto, pois ele assume sua pos-
tura frente ao público. A partir dessa exposição do TILSP surge discus-
sões que voltam-se para questões relacionadas a corporeidade, gênero,
raça e identidade. Uma questão que podemos evidenciar diz respeito
a corporeidade do TILSP, pois, no ambiente de trabalho, os aspectos
relacionados a neutralidade e imparcialidade estão presentes na função
desenvolvida por este profissional e na Lei nº 12.319 que regulamenta
essa profissão aborda sobre esses dois aspectos.
Outro documento importante desse profissional é o Código de éti-
ca, onde no Art. 5º descreve o seguinte: “5º. O intérprete deve adotar
uma conduta adequada de se vestir, sem adereços, mantendo a digni-
dade da profissão e não chamando atenção indevida sobre si mesmo,
durante o exercício da função” (BRASIL, 1992).
Assim, tanto a Lei quanto o Código de Ética expõem sobre o cor-
po do profissional TILSP, como forma de mantê-lo discreto, neutro e
anônimo. Sabemos que esses documentos são publicados como uma
norma de conduta que são adequadas aos ambientes que o profissional
frequenta e também por causa do exercício profissional. Porém, deve-
mos refletir sobre o que é imposto e o que não é.
Visto que, nesses documentos podemos perceber que o corpo
do TILSP, dando ênfase nesse trabalho as Tradutoras e Intérpretes de
Libras/Língua Portuguesa negras, é regulado e impedido de expressar
sua identidade, através de seus cabelos afros, suas tranças, suas roupas
e adereços característicos a sua identidade social e cultural impossibili-
tado de performatizar, pois a padronização e a neutralidade que é im-
posta pela sociedade, reflete em todos os ambientes, principalmente nos
profissionais.
Nenhum código de ética ou regimento pode infringir o direito uni-
versal de praticar sua identidade cultural, identidade social ou étnica.
742
Ao mesmo tempo que fala que nosso corpo precisa de regras, ou seja,
precisa ser invisível, esse corpo sofre o racismo, em vários níveis, como
por exemplo, no momento em que não é permitido ter meu cabelo
afro e é preciso estar neutro com relação a aparência, quando não posso
utilizar de meus adereços que para o código de ética desvia a atenção de
quem está recebendo a interpretação. Assim, devemos pensar quais os
limites que interferem ou não no momento da interpretação.
Hall (2003) aborda que os EUA sempre tiveram a construção das
etnicidades através de hierarquias étnicas que definem as políticas cul-
turais. As etnicidades dentro de um descolamento de políticas culturais,
foi silenciado e não teve seu reconhecimento, esteve sempre à margem
das tradições vernáculas da cultura popular negra americana. O que
é preciso ocorrer é o descentramento das antigas hierarquias, abrindo
espaços para a mudança na alta cultura das relações culturais populares,
dando oportunidades estratégicas para a intervenção na cultura popular.
O autor discute que devemos indagar sobre o silêncio do pós-mo-
dernismo e questionar as formas de pensar, do olhar que ao mesmo
tempo que convida também rejeita. A padronização existe e é imposta
a partir dos seus códigos de ética, mas, e os profissionais que querem
fugir dessa padronização, desse adestramento, fugir do que Hall chama
de mainstream.
É um invólucro que impede que as estratégias culturais façam a
diferença, que tudo é igual ao que sempre foi, não tem diferença. E é
isto que vemos nos códigos de ética e nos ambientes profissionais as
regras são impostas, impedindo que nos manifestemos através da nossa
cultura e identidade, e cai na mesmice de um padrão. Assim, o corpo é
visto como um adestramento, não sendo permitido mostrar-se da for-
ma que é, excluindo o seu protagonismo, para tornar todos padrão de
um mesmo modelo.
Conforme Hall (2003) a cultura popular tem se tornado a forma
dominante da cultura global, é onde a cultura penetra nos circuitos de
poder, sendo um espaço de homogeneização com estereótipos e fórmu-
las, espaços que controlam suas narrativas, experiências e representações.
743
A padronização está aí nos circuitos de poder ou nas culturas de poder,
nos códigos de ética que enraízam os invólucros, que impedem de de-
senvolver as estratégias culturais, a cultura negra, as identidades sociais,
experiências, as transgressões que fazem a diferença travando uma ba-
talha cultural.
Não importa quantas batalhas culturais existirem, o que impor-
ta são as formas dos negros, as tradições e comunidades negras serem
representadas na cultura popular, mostrando suas representatividades,
experiências, expressividades, suas narrativas e seus discursos (HALL,
2003).
Para Oyěwùmí (2002) a sociedade é constituída por corpos que
são, “corpos masculinos, corpos femininos, corpos judaicos, corpos
arianos, corpos negros, corpos brancos, corpos ricos, corpos pobres”
(p. 2). A autora utiliza a palavra “corpo” sob dois vieses: a primeira em
relação a biologia e, a segunda, chamando a atenção para o físico e as
metáforas do corpo. Oy wùmí discute ainda que quando olhamos o
corpo podemos inferir as crenças e as posições sociais de uma pessoa ou
a falta delas.
O corpo como ato cultural, demonstra como ele é regulado e per-
formatizado, é através desse corpo negro sendo exposto, ele é alvo de
racismo devido sua roupa, seu cabelo afro e black, seu jeito, sua raça,
assim, a normalização e a padronização é imposta, como forma de ades-
tramento. Corpo este que está sempre em julgamento, discriminado,
recebendo olhar de diferença.
744
interpretação do par linguístico Libras/Português ou Português/Libras.
Seu movimento corporal demonstra suas potencialidades e performan-
ces utilizando seu corpo como instrumento de resistência, através da
sua cultura.
O repertório das TILSP negras demonstra seu corpo como mobi-
lizador de resistências e barreiras sociais que são promotoras de lingua-
gens e das discursividades. Demonstra sua performance em língua de
sinais através do corpo, apresentando sua construção social, sua iden-
tidade e sua corporeidade. Apresenta também uma potência comuni-
cacional que revela a pluralidade social e difunde sua identidade. Esta
performance tem uma raiz histórica, através da história dos Surdos e da
cultura negra.
Pinto (2002) define muito bem sobre o sujeito de fala em relação
ao ato de fala e a ação do corpo, “O sujeito de fala é aquele que produz
um ato corporalmente; o ato de fala exige o corpo. O agir no ato de fala
é o agir do corpo, e definir esse agir é justamente discutir a relação do
ato de fala cujo efeito é uma ameaça” (PINTO, 2002, p. 105).
O corpo negro tem o direito de ser vivido dentro da sua profissão,
e não na ideia de normas, de adestrar esse corpo para se tornar padrão.
O corpo negro afirma a existência e denuncia a exclusão que vive todos
os dias, o racismo. “Se os corpos aparecem, eles são articulados como o
lado degradado da natureza humana” (OY WÙMÍ, 2002, p. 4).
Ao falarmos do corpo das Tradutoras e Intérpretes de Libras negras,
devemos levar em consideração não só a questão de raça, mas também
questões de gênero, pois, essa regulação, padronização e neutralização
dos corpos é um impedimento de raça e de gênero. Dessa forma, o corpo
feminino é o mais impedido e regulado. Pelo fato do uso de adereços, de
sua roupa que condiz com sua identidade, sua cultura e seu cabelo afro.
Quando uma mulher monocromática é impedida de colocar suas
tranças, de usar o cabelo black, um brinco afro, uma roupa mais colo-
rida que faça parte de sua cultura e sua identidade, ela tem seu corpo
cerceado. Assim, o corpo feminino sofre o racismo, a exclusão, além de
tudo pode sofrer assédio.
745
Para Oyěwùmí (2002) a “ausência do corpo” mostra que mulheres,
povos primitivos, judeus, africanos, pobres foram qualificados com o
rótulo de diferente e foram considerados corporalizados e dominados,
ou seja, essa questão é uma pré-condição do pensamento racional. “Elas
são o Outro e o Outro é um corpo” (p. 4).
A diferenciação de gênero vem atrelada à história e a constituição
da diferença na prática e no pensamento social europeus. Ou seja, na
história da corporificação de categorias sociais os cidadãos aceitaram os
status que lhe eram impostos, seja qual for. As mulheres sempre foram
excluídas. [...] “as mulheres eram, por assim dizer, feitas de madeira e,
portanto, nem sequer eram consideradas” (OYĚWÙMÍ, 2002, p. 8).
Conforme o pensamento europeu as mulheres eram vistas como corpo-
rificadas e os homens eram as mentes pensantes, ou seja, o homem da
razão, a mulher era vista apenas o corpo.
O corpo é colocado como a causa das diferenças e das hierarquias
na sociedade, sendo, este corpo exposto, julgado, colocado e discrimi-
nado. O corpo é centrado na construção de categorias sociais. Assim, a
discussão de gênero sempre foi considerada radical, na cultura em que
a diferença de gênero sempre foi vista como natural. Portanto, gênero
como construção social é a principal temática em discursos feministas
(OYĚWÙMÍ, 2002).
A concepção de gênero é uma construção social que demonstra
outras culturas e as categorias de masculino e feminino se modificam
em diferentes culturas. As relações de gêneros estão vinculadas histori-
camente e culturalmente.
Dessa forma, as organizações da estrutura social mostram que a
corporeidade está relacionada com a construção de identidade e que
envolvem questões de gênero e raça. A cultura ocidental e a hierarquia
sociais ocidentais é privilegiada e legitima quem sabe e quem não.
Conforme Hall (2003, p.345) “o significado “negro” é arrancado
de seu encaixe histórico, cultural e político, e é alojado em uma cate-
goria racial biologicamente constituída pela inversão, a própria base do
racismo que estamos tentando desconstruir”.
746
A identidade social é regulada pelo controle social, que prende o
indivíduo numa identidade que garante uma política social que é apro-
priada às ideologias dominantes. Esse controle carrega os elementos
de uma “universalidade”, que é sempre essencialista que é excludente.
Assim, “As categorias de identidade nunca são meramente descritivas,
mas sempre normativas e, como tal, exclusivistas” (BUTLER, 1998,
p. 36) apud. (PINTO, 2002, p. 108). Assim, as identidades do mo-
delo tradicional normatizam os sujeitos, os controlam pela exclusão e
pré-definição, comportamentos linguísticos e sociais (PINTO, 2002).
O sujeito marca sua identidade através da sua ação performativa, e os
efeitos dos atos marcam seu quadro de comportamento da (fala, escrita,
vestimentas, alimentação, cultos, elos parentais etc).
Portanto, nos atos de fala a identidade é performativa e tem como
elemento fundamental a linguagem que garante o “nós” e o “eu”, pos-
sibilitando a estabilidade interna às identidades produzindo o efeito da
naturalidade externa.
3. Metodologia
Dessa forma, trazemos as vozes das Tradutoras e Intérpretes de
Libras, onde propomos uma pergunta geradora para que elas pudessem
relatar suas experiências. Introduzimos a seguinte questão: “O que o ra-
cismo tem impactado no seu ambiente de trabalho como Tradutora
e Intérprete de Libras negra?”. As TILS tiveram o tempo livre para
que pudessem discorrer sobre o contexto em que estão inseridas.
Durante as narrativas das TILS em suas falas surgiram diferentes
temáticas tais como, corporeidade, ética profissional, posicionamento
político, gênero, sexismo, relações de poder, estética, neutralidade, per-
formatividade, racismo, assédio e outros. Porém, como critério analíti-
co para a nossa pesquisa, nos interessa nessa discussão os assuntos que
foram mais recorrentes nas vozes das TILSP. Dessa forma, elencamos 3
temas que foram recorrentes no momento das narrativas, são eles: 1 –
Estética; 2 – Racismo; 3 – Assédio/Gênero.
747
A partir dos critérios analíticos as discussões das narrativas foram
feitas a partir das 3 temáticas elencadas, porém, outros temas surgem
nas discussões para complementar as falas das TILSP.
Portanto, a pesquisa justifica-se pela importância de estudos vol-
tados a linguagem, identidades sociais e raça no desenvolvimento, na
difusão e do uso da Libras. Além disso, evidenciar sobre a Tradutoras e
Intérprete de Libras/Língua Portuguesa a partir de sua identidade étni-
co racial e sua atuação no ambiente profissional.
748
QUADRO 1 – REGRA OU PRECONCEITO?
Tereza de Benguela - Então, é como você falou a respeito da roupa, pois, já tive várias
“dicas” de pessoas falando assim: Ah, as vezes fica melhor você usar um tom de blusa mais
claro para ficar melhor no vídeo, por exemplo. Eu não levei isso como uma questão de
preconceito, mas, isso envolve a cor da minha pele.
- Então, vamos dizer assim, que a pessoa me deu uma “dica”, e eu achei Ok. Nós temos
que fazer o melhor possível para enquadrar bem para ter uma boa imagem, mas, que-
rendo ou não, isso está relacionado também a cor da minha pele. Então, eu acho que o
tom de roupa que combina ou não, também tem relação com isso, neh.
- E, também tem a questão do cabelo, pois quando temos o cabelo crespo, temos que
fazer o máximo possível para ficar bem preso. Para não chamar a atenção. E, você falou
também do uso de brinco, acessórios, essas coisas, também. Algumas pessoas falam que
não pode unha pintada. A minha sempre está pintada.
- [...] Acho que é um preconceito sim, quando, por exemplo, não é uma regra, mas, falam
assim: Ah, é intérprete de Libras, a maioria usa roupa preta. E, não é uma regra usar
roupa preta. Por exemplo, eu sempre usei preto. Mas, quando uma pessoa chega e fala
que o preto é bom, mas, que às vezes eu poderia usar um tom de roupa mais claro para
ficar melhor...
Fonte: Dados da pesquisa (2021).
749
indivíduos enquanto elementos de identidade corporal. Eles
possuem uma grande capacidade de expressão simbólica, vincu-
lados a um contexto sociocultural (KING, 2015, p.8).
750
QUADRO 2 – O IMPACTO DO RACISMO NO AMBIENTE PROFISSIONAL
Dandara dos Palmares - O racismo ele impacta e impactou minha atuação como
intérprete de uma forma mais silenciosa, de uma forma velada. No primeiro momento,
o intérprete é um profissional que está à frente.
- E aí, a gente é muito exposto, então, não tem como esconder a nossa cor, a nossa etnia.
- E aí, o primeiro impacto que eu percebi quando comecei a atuar como intérprete numa
instituição de ensino superior foi o estranhamento que as pessoas têm, o olhar que as
pessoas te mostram. Então, a sua presença às vezes gera um estranhamento, neh. Tipo: -
Quem é essa aí que está no palco?
751
Na fala de Dandara o racismo impactou sua atuação como TILSP
de forma velada, ou seja, o racismo sofrido foi de forma silenciosa. E
essa questão relaciona-se a atitudes que são implícitas, mas que caracte-
rizam um tipo de discriminação.
Segundo Nilma Lino Gomes (2005), até hoje “o racismo ainda é
insistentemente negado no discurso brasileiro, mas se mantém presente
nos sistemas de valores que regem o comportamento da nossa socieda-
de, expressando-se através das mais diversas práticas sociais” (p. 148).
Outra questão que aparece nas narrativas das TILSP são as relações
de gênero, que exercem uma grande influência no modo como esse
fenômeno atinge as mulheres nos ambientes de trabalho e os reflexos
ultrapassam esse âmbito. É preciso entender também que as relações de
gênero impactam as relações de trabalho. Pois, na construção social his-
toricamente, os papéis de gênero atribuíram à mulher um papel inferior
ao do homem.
É importante destacarmos sobre as relações de gênero, uma vez
que, esse corpo feminino muitas vezes é colocado como acessível sem
uma permissão explícita. Pensando na questão de, como é ser mulher
nessa cultura ocidental que nos coloca na inferioridade como alvo de
violência e assédio.
Ao falarmos do corpo das TILSP negras, devemos levar em con-
sideração não só a questão de raça, mas também questões de gênero,
porque, é um impedimento de raça e de gênero. Pois, o corpo feminino
é o mais impedido de usar seus adereços, uma roupa que condiz com
sua identidade, seu cabelo afro e com tranças e também é o que mais
sofre assédio.
Quando uma mulher monocromática é impedida de colocar suas
tranças, seu cabelo Black, um brinco afro, uma roupa mais colorida que
faça parte de suas culturas e suas identidades, ela tem seu corpo cercea-
do. Assim, o corpo feminino sofre o racismo, a exclusão, além de tudo
pode sofrer assédio.
Podemos destacar algumas narrativas das TILSP que abordam so-
bre essas questões.
752
QUADRO 3 – CORPOREIDADE E GÊNERO
753
pela estrutura de gênero, pois, a cultura ocidental usa a biologia para
estruturar o mundo social e exclui a possibilidade de mais de dois gê-
neros, ou seja, o dimorfismo sexual é percebido pelo corpo humano é
projetado no domínio social (OYĚWÙMÍ, 2002).
3. Considerações
A partir da discussão sobre cultura e identidades sociais, concebemos
as narrativas das TILS negras, onde foi importante percebermos suas fa-
las a respeito do racismo que sofreram ou sofrem dentro do ambiente de
trabalho. As discussões voltaram-se para os critérios analíticos de temas
que foram recorrentes em suas falas, assim, tivemos a oportunidade de
discutir sobre a estética, ou seja, a neutralidade das TILSP negras, que
mostram sobre suas vestimentas, seus cabelos afros, seus adereços e seus
corpos, e também abordamos sobre a corporeidade e o assédio na pers-
pectiva de gênero. Dentro desses três critérios de análise podemos perce-
ber que em se tratando de impacto, as mulheres são as mais impactadas,
são as que mais sofrem assédio e preconceito, são as que mais têm seus
corpos expostos cerceados pela padronização da sociedade.
As identidades das TILSP negras são performativas, onde sua ne-
gritude, sua cultura impacta diretamente na atuação profissional. O ra-
cismo, as questões sobre a estética e o assédio na perspectiva de gênero
interferem na performance no âmbito profissional, pelo fato de muitas
vezes a discriminação e o preconceito vir de forma velada e silenciosa.
Essa discussão mostra que se o corpo é um ato cultural, ele não deve
ser regulado, como demonstra nos códigos de ética. Esse corpo deve
mostrar sua essência, sua identidade e ser um corpo de luta e resistência.
4. Referências
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana L. de L.
Reis, Gláucia R. Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
754
BRASIL. Decreto – Lei n. 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a lei
n. 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais –
LIBRAS, e o art. 4 do decreto n. 5.626 de dez.2005. Disponível em: http://WWW.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato 2004/2005”/Decreto/D5626htm Acesso em: março de
2021.
GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações
raciais no Brasil: uma breve discussão. In: BRASIL. Educação Anti-racista: caminhos
abertos pela Lei nº 10.639/03. Brasília, MEC, Secretaria de educação continuada e
alfabetização e diversidade, pp: 39-62, 2005.
KING, Ananda Melo. Os cabelos como fruto do que brota de nossas cabeças.
Geledés Instituto da Mulher Negra, 2015. Disponível em: https://www.geledes.org.
br/os-cabelos-como-fruto- do-quebrota-de-nossas-cabecas/Acesso em: 19 de junho de
2021.
MAGNANI, José G. Cantor. “Vai ter música? para uma antropologia das festas juninas
de surdos na cidade de São Paulo. Revista Eletrônica do Núcleo de Antropologia
Urbana da USP – Ponto Urbe. Ano 1, versão 1, 2007.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. Visualizing the Body: Western Theories and African Subjects
in: COETZEE, Peter H.; ROUX, Abraham P.J. (eds). The African Philosophy
Reader. New York: Routledge, 2002, p. 391-415.
755
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
756
PALAVRAS-CHAVE: letramento acadêmico; gêneros acadêmicos; extensão
1. Introdução
Considerando que muitos estudantes que ingressam no ensino
superior encontram dificuldades no domínio da leitura e escrita, que
são práticas de extrema importância para a participação ativa e cons-
ciente dentro da sociedade, o termo Letramento Acadêmico surgiu nas
discussões das universidades. Nessa situação, as instituições sentiram a
necessidade de apresentar aos seus estudantes novas práticas de leitura e
757
escrita, indo além do básico, buscando que eles compreendam os gêne-
ros acadêmicos, trazendo-os ainda para as suas realidades.
758
2. Referencial teórico
De acordo com os estudos de Lea e Street (1998) sobre as aborda-
gens de letramento da escrita no ensino superior, listam-se três princi-
pais quanto aos estudos desses alunos nos eventos e práticas de letra-
mento universitários, que são os modelos de: habilidades, socialização
acadêmica e letramento acadêmico. O primeiro compreende a capaci-
dade individual cognitiva, onde o aluno é responsável pela sua própria
adaptação no cenário universitário. O segundo modelo tem relação
com a acolhida do professor, em busca da introdução do estudante na
cultura da academia. E o terceiro diz respeito ao conjunto das práticas
sociais realizadas nesse universo.
Norteando-se por essa pesquisa, Adriana Fischer e Nilcéa Lemos
Pelandré opinam:
759
engloba a cultura digital. Não é de agora que o uso das tecnologias digi-
tais em sala é considerada fundamental, sua aplicação é encarada como
uma brecha para cooperação e autonomia na aprendizagem, e permite
que o estudante seja protagonista.
3. Metodologia
Dentre as atividades do Laboratório de Leitura e Produção Textual
(LPT/CNPq) do Colégio Técnico de Floriano (CTF/UFPI), desta-
camos neste trabalho o projeto de extensão LPT Acadêmico que tem
como propósito, dentre tantos, aprimorar as práticas de leitura e escrita
dos discentes da sua instituição, bem como da comunidade externo.
Para isso, são reunidas práticas educacionais focalizadas para pesquisas e
destrezas que cooperam para/com a sociedade. Na atuação ativa dessas
atividades, o LPT procura manter estudantes como operantes, alguns
como bolsistas, outros voluntários e colaboradores e também ouvintes
desses exercícios.
760
Figura 1: slogan do projeto de extensão do LPT Acadêmico.
4. Resultados e discussão
Neste dado momento do artigo, serão apresentadas algumas das
ações oferecidas pelo LPT Acadêmico. Abordaremos os cursos de longa
duração - carga horária mínima de 80h e com a finalidade de aprimorar
e ampliar o envolvimento no meio científico, por intermédio do desen-
volvimento de habilidades e competências; os cursos de curta duração
- com carga horária de 2h; e os eventos sobre letramentos acadêmicos e
metodologia científica.
Os Cursos de Longa Duração estão ligados à precariedade no ensi-
no, às diferentes classes e às realidades sociais que são um grande desafio
para o público que irá ingressar na universidade ou que já estão. Nessa
perspectiva, o LPT desenvolve projetos de pesquisa e extensão voltados
tanto para o Ensino Médio como para o Ensino Superior. O primeiro
é intitulado Leitura e Escrita Para Jovens (que já está na sua quarta edi-
ção), são oferecidas 60 (sessenta) vagas, sendo 30 (trinta) exclusivas para
o público UFPI, e o segundo é o Ler e Escrever na Universidade: intro-
dução aos gêneros acadêmicos (que encontra-se na sua oitava edição),
oferece 80 (oitenta) vagas, com a metade garantida ao público interno.
761
Suas cargas horárias são, respectivamente, 80h (oitenta horas) e 160h
(cento e sessenta horas). Vale ressaltar que o acompanhamento dos cur-
sos é feito por colaboradores e bolsistas do LPT Acadêmico.
762
Figuras 4 e 5: cartazes de divulgação dos cursos de curta duração.
763
Fonte: captura feita pelos autores.
764
Figuras 8 a 10: cartazes de divulgação dos cursos de curta duração.
765
Figuras 11 e 12: imagens dos cursos de curta duração 2022.1.
5. Conclusão
Na presente pesquisa, foram situadas atividades voltadas para a lei-
tura e escrita, realizadas pelo projeto extensionista LPT Acadêmico, tais
como os Cursos de Longa Duração, os Cursos de Curta Duração e os
eventos acadêmicos, que intencionam diminuir as dificuldades dos es-
tudantes universitários e proporcionar o crescimento e desenvolvimen-
to de conhecimentos e habilidades na esfera acadêmica.
Para isso, é perceptível as faces dos aspectos do letramento acadê-
mico, a importância da aplicação dos recursos das tecnologias digitais,
essenciais para a educação, pois democratiza o saber e torna-se impres-
cindível para o compartilhamento de vivências nesse âmbito.
766
Por conseguinte, os resultados dessas ações demonstram que o pro-
jeto extensionista LPT Acadêmico promove a consolidação no processo
de ensino-aprendizagem. Fazendo a utilização das práticas de leitura e
escrita, além do entendimento profundo dos gêneros acadêmicos pro-
postos no ensino superior, ampliando e melhorando ainda a comunica-
ção e habilidade de seus participantes na cultura acadêmica.
6. Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília,
2018.
LEA, Mary R.; STREET, Brian V. Student Writing in higher education: an acade-
mic literacies approach. In: Studies in Higher Education, 1998.
767
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
O ISF-INGLÊS E A INTERNACIONALIZAÇÃO
EM MEIO AO ENSINO REMOTO NA UFS
768
ABSTRACT: The internationalization has played a leading role in the
scenario of higher education, being considered the fourth mission of a
university (SANTOS; REIS, 2020), mainly due to the consequences of
the globalization process, which have been increasingly taking place since
the 20th century’s last decades (MIGLIOLI, 1999). In the midst of these
consequences, in 2020, the covid-19 brought to this scenario a crisis in which
the actions developed on the English courses within the scope of Languages
without Borders (LwB-English) were displaced, being (re)thought taking into
account the virtualization of the activities. Thus, this work aims to analyze
the actions developed by Languages without Borders’ English courses (LwB-
English) in the context of the Federal University of Sergipe (UFS) during
the pandemic’s first year, 2020, focusing on the obtained results during this
period. The LwB was chosen for this research owing to being a project that
supports the internationalization of Brazilian higher education by means of
language teaching. This is an interpretative research, with a quantitative and
qualitative approach, which had as instruments a survey and analyses of data
belonging to LwB at UFS, beyond the application of the questionnaires to the
English courses’ participants, in 2020. The findings show that there was an
increase in the number of classes when compared to 2019, because, instead of
the 32-hour classes, 16-hour ones were offered, giving rise to the number of
registrations. With the possibility of remote teaching, students from different
campi were reached, however, on the other hand, due to the peculiarities of
this modality, it was observed a considerable number of students who did
not conclude the courses. It is worth pointing out the offer of LwB-English
virtual courses at UFS as a possibility to expand the number and location of
students, in addition to being a promotion for a virtual expansion, however,
it is necessary to analyze other factors in relation to the students’ adaptation
to the remote teaching.
KEYWORDS: Languages without Borders; Internationalization; Remote
teaching.
769
século passado, essas transformações vêm sendo fortalecidas e acelera-
das com a consolidação do neoliberalismo como a atual fase do sistema
capitalista, a ascensão dos Estados Unidos como potência hegemônica,
com o término da Segunda Guerra, e a revolução das tecnologias digi-
tais e da informação, a exemplo da internet, que possibilitaram tornar
a comunicação mais rápida ou mesmo instantânea (MIGLIOLI, 1999;
SOUSA SANTOS, 2020; SANTOS, 2001).
Nesse caminho, no ensino superior, outro processo está sendo dis-
seminado: estamos falando da internacionalização, que apesar de ser
confundida com a globalização, possui características paralelas, mas
distintas. A internacionalização é a resposta dada pelas universidades
à globalização (CALVO; ALONSO, 2020) e que tem como objetivo
integrar ao ensino superior “uma dimensão internacional, intercultural
ou global”, segundo as palavras de Knight (2004, p. 11 apud KNIGHT,
2020, p. 24).
Em um outro momento, a internacionalização do ensino supe-
rior apenas procurou aprimorar o desenvolvimento do tripé de missões
que caracteriza as universidades (a saber, ensino, pesquisa e extensão).
Contudo, nos últimos anos, esse processo tem adquirido muita relevân-
cia e transposto o ensino, a pesquisa e a extensão, passando a ser con-
siderada, por alguns autores, como a quarta missão (SANTOS; REIS,
2020). Nesse caminho, a internacionalização se materializa nesse nível
de ensino tendo como intermediário os programas de mobilidade acadê-
mica, redes internacionais de pesquisadores, acordos de cooperação as-
sinados entre instituições de nações diferentes, dentre outras atividades.
No Brasil, depreende-se esse processo por seu aspecto passivo
(LIMA; MARANHÃO, 2009), em virtude de sua adoção de teorias e
modelos que são característicos e provenientes do Norte global. Além
disso, os programas que favorecem com que as universidades se interna-
cionalizem são frequentemente propostos e mantidos pelo governo fe-
deral e suas agências de fomento, favorecendo, sobretudo, a mobilidade
acadêmica. Dessa maneira, em 2011, com a publicação do Decreto nº
7.642 (BRASIL, 2011), instituiu-se o Programa Ciência sem Fronteiras
770
(doravante CsF), o qual concedia bolsas a estudantes universitários para
que pudessem participar de mobilidade acadêmica em instituições de
países anglófonos, no primeiro momento.
771
do Programa, tendo como uma das postulações a ineficácia no cumpri-
mento dos objetivos (PALHARES, 2019), apesar do Programa já ter, à
época, aproximados 7 anos de atividades e o CsF, que o originou, ter
tido seu fim decretado em 2017. Diante da desistência do MEC em ser
o patrocinador do IsF, a Andifes, Associação Nacional dos Dirigentes
das Instituições Federais de Ensino Superior, procurou dar prossegui-
mento às atividades do Programa, regulamentando-o em sua Resolução
nº 01/2019 (BRASÍLIA, 2019), na qual é formalizada a Rede Andifes
de Idiomas sem Fronteiras (Rede Andifes IsF).
Após esse evento, no início de 2020, não apenas o IsF passa por um
(novo) momento de crise e de desafio com o surgimento da pandemia
de covid-19, mas todo o cenário educacional, o qual precisou adotar e
se adaptar ao ensino remoto emergencial para a continuidade de suas
atividades. Assim, este trabalho objetiva analisar as ações desenvolvidas
nos cursos de Inglês do Idiomas sem Fronteiras (IsF-Inglês) da UFS
durante o primeiro ano de pandemia, 2020, focando nos resultados
obtidos nesse período.
Na próxima seção, descrevemos os procedimentos metodológicos
para a construção deste trabalho e, na seção seguinte, propomos uma
discussão sobre os desafios e as possibilidades manifestados, apresentan-
do os resultados obtidos no IsF-Inglês a partir do contexto pandêmico.
E, por fim, finalizamos trazendo as considerações finais.
Metodologia
Este trabalho é resultante do projeto de iniciação científica “Idiomas
sem Fronteiras: internacionalização, formação de professores e desen-
volvimento linguístico” realizado no âmbito do Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da Universidade Federal de
Sergipe. O projeto foi apoiado com bolsa IC do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), órgão ao qual agra-
decemos pela contribuição; e foi materializado sob a orientação da Profª.
Drª. Elaine Maria Santos e do Prof. Dr. Rodrigo Belfort Gomes, coautor
deste trabalho, entre os meses de setembro de 2020 e agosto de 2021.
772
Em termos metodológicos, foi uma pesquisa interpretativista de
cunho quali-quantitativo. Para obtenção de dados, foi realizada uma
revisão de documentos e dados internos do IsF nacional e do Núcleo de
Línguas da UFS (NucLi-UFS), como também a aplicação de questioná-
rios à comunidade participante dos cursos de Inglês ofertados em 2020,
2019 e 2018. Contudo, neste trabalho, nossa concentração se dará ape-
nas no ano de 2020, em razão da crise pandêmica e suas consequên-
cias imprevistas. Os questionários foram elaborados com o suporte da
plataforma Google Forms e foram enviados fazendo-se uso dos e-mails
cadastrados pelos/as participantes no ato da matrícula no/s curso/s.
Os questionários contemplaram três seções. Na primeira, encon-
trava-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, TCLE, e se
o/a aluno/a concordasse com as disposições, prosseguiria para a seção
seguinte. Por sua vez, na segunda seção, havia questões para que o perfil
dos/as respondentes pudesse ser traçado, com a inclusão de informações
tais como idade e o tipo de vínculo com a universidade. E, finalmente,
na terceira seção, são encontradas 22 perguntas objetivas e subjetivas a
respeito da/s relação/ões mantidas entre a/o respondente e o IsF-Inglês.
Os números referentes à essa aplicação estão dispostos na tabela abaixo:
773
cidadã/o global, desse modo, é estar suscetível constantemente ao im-
previsto, ao inesperado, às crises sucessivas:
774
a seus agentes, professores/as e alunos/as, a resiliência e a adaptação,
pondo em prática os significados dicionarizados do termo crise. No
dicionário, a palavra crise tem, entre seus sentidos denotativos, o estado
de ruptura de uma normalidade, provocando com que tomemos uma
decisão ou nos recomponhamos a partir do desequilíbrio, da(s) incerte-
za(s) (MICHAELIS, 2022).
Nessa incerteza pandêmica, a UFS suspendeu as atividades presen-
136
ciais , e, com isso, passou a realizá-las na modalidade remota emergen-
cial. Os cursos de Inglês do Idiomas sem Fronteiras, então, passaram
a ser materializados por intermédio da plataforma de vídeo chamadas
Teams, a qual foi disponibilizada pela própria Universidade, em con-
sequência da parceria com a Microsoft. Nesse quesito, as tecnologias
digitais da informação e comunicação, abreviadas como TDICs, passa-
ram a ocupar um lugar de imprescindibilidade nas universidades que,
por seu turno, questionaram seus papéis e planos para a internaciona-
lização e, em especial, para o ensino-aprendizagem de línguas. Finardi
e Guimarães (2020) e Santos e Reis (2020) acrescentam que, com as
TDICs e a internacionalização virtual, abriram-se caminhos para ações
e diálogos que envolvem as instituições do Sul Global, assim como a
promoção da internacionalização em casa e o fortalecimento de ações
que já estavam em desenvolvimento.
Dentre essas ações, consideramos o IsF, que nesse novo ambiente
enfrentou os desafios no que diz respeito ao uso e à desenvoltura com
os equipamentos e com a própria plataforma Teams, mas também pro-
curou concretizar as possibilidades advindas. Uma dessas possibilidades
foi a continuação do processo de formação de professores, anterior-
mente conduzidos de forma presencial, mas que foi ajustado para o
formato remoto. Assim, da mesma forma que já vinha acontecendo,
os professores em formação continuavam a ler e fichar textos teóricos
e a discuti-los nas reuniões virtuais, que aconteciam às sextas à tarde.
136
A suspensão das atividades presenciais da Universidade Federal de Sergipe acon-
teceu em 16 de março de 2020 por meio de uma nota oficial do Gabinete do
Reitor, a qual pode ser acessada no endereço: https://www.ufs.br/conteudo/
64978-ufs-decide-pela-suspensao-das-atividades-academicas-presenciais.
775
Nessas reuniões, além das discussões mencionadas, eram discutidas as
dificuldades encontradas com o ensino remoto e os discentes recebiam
toda a orientação para a preparação dos materiais para as aulas. Esses
materiais eram apresentados para a coordenação e demais professores
em formação, e eram ajustados pelos coordenadores.
Uma segunda possibilidade decorrente desse período foi a partici-
pação nos cursos de alunos/as de outros campi da UFS, tendo em vista
que, desde a implantação do NucLi na UFS, em 2013, as atividades
do IsF estavam restritas ao campus São Cristóvão. Além disso, outra
possibilidade trazida com a virtualização das atividades foi o aumento
no número de ofertas de cursos quando comparado ao ano anterior,
2019. Em 2020, o IsF-Inglês ofertou mais cursos com carga horária de
16 horas, em vez de 32 horas, ocasião que elevou o índice de matrículas,
que ficou próxima ao número de vagas oferecidas:
776
É importante pontuar o caráter democrático que o IsF-Inglês pos-
sui, ao atingir, mesmo diante de suas dificuldades, cursos de graduação
e da pós-graduação de todas as áreas do conhecimento. Com os dados
obtidos com as respostas dos/as cursistas, foi possível identificar que
eles/as são majoritariamente alunos/as ativos da universidade (94,6%),
graduandos/as (82,7%), e que se encaixam na faixa etária de 18 e 30
anos (86,7%). Agora, quando indagados acerca do/s motivo/s que os/as
levaram a ingressar no Programa, houve muitas referências ao desenvol-
vimento da língua em questão e à gratuidade do IsF, como sinalizam os
seguintes respondentes137:
137
Os nomes adotados nesta pesquisa foram de caráter ficcional com a finalidade de
preservar a identidade dos/as respondentes.
777
superiores, os agentes da prática, nesse caso professores/as e alunos/as,
(re)significam e (re)formulam essas políticas nos cargos e funções que
desempenham e nas brechas que encontram. Ainda, quando indagou-se
acerca da contribuição dos cursos para a formação acadêmica e vida
pessoal dos/as cursistas, pode-se perceber que as pontuações foram além
do desenvolvimento do inglês:
778
Gráfico 4: número de não concludentes
779
Negativos: é a interação entre nós alunos; Positivos: as aulas fi-
cam bem mais dinâmicas. (Paraíba)
Considerações finais
A inevitabilidade e a irreversibilidade do processo de globalização
(RICENTO, 2010) provocam mudanças nos comportamentos das so-
ciedades e nas estruturas de suas instituições, desconsiderá-lo seria ne-
gar as crises permanentes, por exemplo, que nos trazem desafios, mas
também a capacidade de adaptação com as possibilidades oferecidas e/
780
ou encontradas (SANTOS, 2001; SOUSA SANTOS, 2020). A crise
mais recente a nos trazer a dicotomia da globalização foi a pandemia de
coronavírus, que, em 2020, fez com que as universidades fechassem os
portões de seus campi e virtualizassem suas atividades. Nesse sentido,
ao mesmo tempo que estudam esse processo e seus desdobramentos, as
universidades se inserem e respondem-no por meio da internacionali-
zação, processo que envolve desde a mobilidade acadêmica até acordos
de cooperação entre instituições de diversos países. Contudo, nenhuma
dessas ações se corporificaria se não houvesse o (re)conhecimento e o
ensino-aprendizagem de outras línguas.
Em nosso país, no cenário do ensino superior, a internacionali-
zação pode também ser intermediada pela Rede Andifes de Idiomas
sem Fronteiras, que, além de trabalhar com o incentivo a esse processo,
através do ensino-aprendizagem de línguas, contribui para a formação
inicial de professores/as. Na Universidade Federal de Sergipe, o NucLi
do IsF está presente desde 2013 e, em 2020, diante do/s desafio/s pro-
vocado/s pela pandemia, deu prosseguimento às suas ações na modali-
dade remota emergencial. Portanto, este trabalho teve como proposta
analisar esse período ímpar na história do Programa.
Como resultados alcançados, podemos constatar a possibilidade
de participação nos cursos de Inglês de alunos/as de diversos campi da
UFS, um aumento na quantidade de turmas, quando comparado ao
ano anterior, 2019, assim como um grande número de alunos/as que
não chegaram a concluir o curso. Em suma, o ensino remoto possibili-
tou uma abrangência maior dos cursos do IsF-Inglês, e, em um cenário
mais amplo, a promoção das trocas virtuais e de uma internacionaliza-
ção em casa e/ou uma internacionalização virtual, principalmente entre
os países do Sul Global (FINARDI; GUIMARÃES, 2020). Contudo,
os desafios e as impossibilidades também vieram juntos, uma vez que
as dificuldades tornaram-se ainda mais visíveis entre os grupos de clas-
ses econômicas menos favorecidas (STALLIVIERI, 2020; SANTOS,
2001). Inclui-se nesse contexto, ainda, a adaptação às diferentes facetas
que os tempos pandêmicos trouxeram.
781
Referências
BRASIL, Ministério da Educação. Portaria MEC 30/2016. Amplia o Programa
Idiomas sem Fronteiras. Disponível em: <http://isf.mec.gov.br/images/2016/janeiro/
Portaria_30_IdiomassemFronteiras_2016.pdf>. Acesso em: 08 jul. 2020.
782
LIMA, M. C.; MARANHÃO, C. M. S. D. A. O sistema de educação superior mun-
dial: Entre a internacionalização ativa e passiva. Avaliação: Revista da Avaliação da
Educação Superior, v. 14, n. 3, 2009, p. 583-610.
783
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
784
potentialities of teaching argumentation identified in the BNCC for secondary
education. For this, it analyzes skills descriptors of the Portuguese Language
curriculum component, within the area of Languages and its Technologies,
which can envision the development of argumentative skills (AZEVEDO,
2013; 2016; 2019) in critical and decolonial literate practices (KLEIMAN,
2007; STREET, 2014; AZEVEDO; MOURA, 2021) that involve situations
of argumentative interaction, such as class assemblies (Piris and Calhau, 2021),
debates, opinion articles, critical reviews, etc. Two notions, in particular, are of
interest to us to problematize at this moment: fields of social action and genres
of discourse. With these notions, the BNCC mobilizes expensive concepts to
Bakhtinian studies, which invites us to evaluate the scope of these notions
in the document, in order to contemplate a teaching of argumentation in
a perspective, in relation to education and society, that is at the same time
critical, based on Freire (2005), and decolonial, based on Quijano (2005) and
Mignolo (2020).
KEYWORDS: Literacy; argumentation; dialogism; BNCC
1. Introdução
Este trabalho se encontra no horizonte epistemológico dos estudos
bakhtinianos, entendido, conforme Zandwais e Vidon (2019), como
um campo de saber interdisciplinar, marcado por uma formação he-
terogênea dos seus membros formadores138, e complexo, difícil de se
definir, tendo em vista encontrarmos, nesse campo, tanto bases mate-
rialistas histórico-dialéticas, quanto bases idealistas, segundo discutem
Brandist (2012) e Brandist e Lähteenmäki (2019).
Em diálogo com o campo dos estudos bakhtinianos, o trabalho
também se inscreve no campo dos estudos da argumentação139, particu-
138
Atualmente denominado Círculo de Bakhtin, foi um grupo de estudiosos rus-
sos, do início do século XX, formado por filósofos, como Mikhail Bakhtin e
Matvei Kagan, linguistas, como Valentin Volóchinov, críticos literários, como
Pavel Medviédev, musicistas, como Maria Iudina, entre outros intelectuais de
formações diversas.
139
Pistori (2013; 2019) e Nascimento (2018) também têm trabalhado nesta articu-
lação entre os estudos retóricos e argumentativos e os estudos bakhtinianos (sob
a perspectiva de uma análise dialógica do discurso).
785
larmente na linha de pesquisa em “Ensino da argumentação”, coorde-
nada por Eduardo Piris e Isabel Azevedo no âmbito do Elad (Grupo de
Estudos em Linguagem, Argumentação e Discurso), da Universidade
Estadual de Santa Cruz (UESC). A linha de trabalho que tem sido
desenvolvida pelos profs. Piris e Azevedo e por seus orientanda/os e
parceira/os do Elad procura integrar uma visão de argumentação como
prática social de linguagem a modelos de análise argumentativa, como
os de Toulmin (2006) e Plantin (2008), valendo-se, também, de fun-
damentos da nova retórica (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
1996) e da análise do discurso (AMOSSY, 2018).
É no interior desses campos inter/trans/indisciplinares, que dia-
logam, ainda, com o campo contemporâneo da Linguística Aplicada
(MOITA LOPES, 2006; PENYCOOK, 2006), que buscamos com-
preender o contexto dialógico de produção da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), o principal documento educacional brasileiro da
atualidade, a fim de refletir sobre as contradições e potencialidades de
ensino da argumentação identificadas na BNCC para o Ensino Médio,
analisando descritores de habilidades do componente curricular de
Língua Portuguesa, dentro da área de Linguagens e suas Tecnologias,
com foco nas noções de “campo da atuação social” e “gêneros do
discurso”.
786
Bases da Educação) nº 9.394, de 1996 e da Constituição de 1988140.
Particularmente importante, nesta cadeia de enunciados do campo das
políticas públicas educacionais no Brasil, a BNCC tem uma relação for-
te com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), de 2010, como é
percebido em muitas passagens do texto. Segundo as DCN/2010, havia
a necessidade de “formulação de princípios para outra lógica curricular,
que considera a formação humana de sujeitos concretos, que vivem em
determinado meio ambiente, contexto histórico e sociocultural, com
suas condições físicas, emocionais e intelectuais” (BRASIL, 2013, p.
11). Essa lógica vai na direção do que Arroyo (1999) chama de lógica
social, que envolve o conjunto de educadores e setores mais amplos da
sociedade. A concepção de currículo, portanto, está atrelada à noção
de cultura como prática social (concepção materialista, com base em
Moreira e Candau, 2006 [apud Arroyo, 1999]).
Tem-se assim um diálogo entre enunciados concretos bastante im-
portante para os sentidos que se produziram e continuam sendo pro-
duzidos para o Ensino de Língua Portuguesa e a Educação Linguística
no Brasil (PIETRI, 2005; CAMPOS, 2016; VIDON, 2019a; 2019 b;
entre outros).
Vimos estudando o Ensino de Língua Portuguesa (ELP), na pers-
pectiva de uma compreensão dialógica, discutindo as propostas de
mudanças iniciadas nos anos de 1970, em especial a partir da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB) nº 5.692, de 1971. Este con-
texto é marcado pelo início do enfrentamento, no Brasil, pelas áreas de
linguística, literatura e educação, pelo menos, de questões e problemas
relacionados ao ELP. Obviamente isso irá significar um embate duro
com as tradições escolares, escolásticas, seculares, como o normativismo
na compreensão e no ensino de língua, a sobreposição da literatura a
outras formas de linguagem e uma visão geral de linguagem como re-
presentação e expressão do pensamento.
140
Para um aprofundamento nas discussões em torno da BNCC, em especial suas
relações com uma política capitalista neoliberal, indicamos as seguintes leituras:
Saviani, 2009 Libâneo, 2003; 2012; Shiroma et alii, 2001, Dambros e Mussio,
2014, Freitas (2017), Geraldi (2018), Alcântara e Stieg (2016).
787
Esse embate refratou e refrata até hoje nas discussões sobre esse
tema, inclusive no senso comum, muitas vezes legitimado pela mídia
jornalística e outras instâncias de poder. Não é raro se ouvir e se ler,
por exemplo, que a linguística teria piorado o ELP, por ser permissi-
va com os “erros” de português, não se ensinar mais gramática e os
clássicos da literatura, ter, enfim, provocado a centralidade do texto
na sala de aula (GERALDI, 1984) e, mais recentemente, dos gêneros
discursivos.
É neste contexto dialógico, nessa arena discursiva, que temos que
situar a BNCC.
Como acentua Szundy (2017), há um “interjogo ideológico” que
adentra essa arena, relacionando ideologias historicamente cristaliza-
das e ideologias do cotidiano, em processo de constituição e embate,
na maioria das vezes, com as constituídas. De um lado, por exemplo,
encontram-se concepções tecnicistas e psicologicistas de ensino e de
argumentação, e modelos autônomos de letramento (STREET, 2014;
KLEIMAN, 1995), que congregam visões subjetivo-idealistas dos es-
tudantes e objetivistas-abstratas de língua e linguagem141. De outro,
teorias linguístico-pedagógicas em processo de desenvolvimento e
consolidação, como a teoria dialógica dos gêneros discursivos, as di-
versas teorias dos novos letramentos e as também diversas análises do
discurso e teorias da argumentação (PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 1996; TOULMIN, 2006; PLANTIN, 2008; AMOSSY,
2018; entre outros), que afetam diretamente as questões relaciona-
das às possibilidades de ensino da língua e da argumentação, não
mais com base em um modelo autônomo, mas na perspectiva de
um modelo ideológico de letramento, conforme Kleiman (1995) e
Street (2014), dentro de uma visão crítica de educação e dialógica de
linguagem.
141
Volóchinov (2017) discute o que ele considera tendências predominantes na
filosofia e nas ciências da linguagem no final do século XIX e início do sécu-
lo XX, o subjetivismo idealista, que concebe a língua(gem) como expressão do
pensamento de um sujeito idealizado, e o objetivismo abstrato, que concebe a
língua(gem) como um sistema imanente de formas.
788
3. Argumentação na BNCC: processos cognitivos e situações
de interação
Uma concepção de argumentação enquanto prática social de lin-
guagem, conforme Piris (2020; 2021), eminentemente interativa e
atravessada pelas condições materialistas sociais e históricas de pro-
dução discursiva, conforme Plantin (2008), Grácio (2016) e Amossy
(2018), e visando o desenvolvimento de uma cultura da argumentação,
na perspectiva de Grácio (2022) e Zarefsky (2009), parece poder en-
contrar alguma brecha no texto da Base Nacional Comum Curricular.
Essa concepção, no entanto, não deixa de conviver com suas contradi-
ções, em especial os vieses tecnicistas e cognitivistas que, historicamen-
te, atravessam o ensino de língua portuguesa no Brasil (VIDON, 2018;
2019a; 2019b).
Podemos perceber o matiz cognitivista da Base na forma como as
habilidades estão estruturadas, de modo que nas suas proposições en-
contramos, acompanhado a análise de Vier e Araújo (2021), a seguinte
fórmula:
789
de apresentação e apreciação de produções culturais (resenhas,
ensaios etc.) e outros gêneros próprios das formas de expressão
das culturas juvenis (vlogs e podcasts culturais, gameplay etc.),
em várias mídias, vivenciando de forma significativa o papel
de repórter, analista, crítico, editorialista ou articulista, leitor,
vlogueiro e booktuber, entre outros. (BRASIL, 2018, p. 512)
790
cognitivos e as práticas sociais (letradas e multiletradas) de linguagem?
Como não reduzir os objetos de conhecimento, como movimentos de
argumentação, tipos de argumentos e uso de operadores discursivos de
coesão, a ferramentas que poderiam ser manipuladas, supostamente,
em quaisquer situações de interação? Como relacionar esses objetos
com contextos reais de interação? Como expandir os contextos de pro-
dução, de modo que as situações de interação sejam mais próximas da
realidade dos estudantes e dos gêneros vividos de forma concreta?
Trazendo esses dilemas-desafios para o campo da argumentação,
podemos perguntar: Em que contextos dialógicos são produzidos, por
exemplo, esses textos argumentativos? Em que campos ideológicos?
Quais os sujeitos que dialogam nesses campos e que realizam os tais
movimentos argumentativos? Em que condições de produção discursi-
va um argumento tem força ou não?
Para encaminhar respostas a essas perguntas, vamos nos centrar no
que, na estrutura enunciativa dos descritores de habilidades da BNCC,
se encontra como último elemento: o contexto. Em uma perspectiva
como a bakhtiniana, ele seria o ponto de partida de uma metodologia
dialógica de ensino de argumentação, que vai das condições de produ-
ção discursiva às formas da língua, passando pelos gêneros do discurso.
A compreensão bakhtiniana, portanto, vai dos gêneros em circulação, e
suas condições de produção discursiva (ideológica), para os enunciados
específicos (concretos) e, depois, para as formas estilístico-composicio-
nais particulares, ou seja, é uma análise do tipo “top-down”, em que im-
portam metodologicamente, segundo Sartori (2008), dados da situação
enunciativa e posicionamento autoral.
Tal método sociológico, ainda segundo Sartori (id.), pode ser divi-
dido em três etapas:
1) caracterização da esfera de produção e circulação do gênero: dimen-
são dos horizontes históricos, ideológicos e culturais, dos discursos cir-
culantes; a esfera de produção e circulação do gênero: análise das formas
e dos tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas
em que se realiza.
791
2) análise das três dimensões do gênero: forma composicional, tema
e estilo;
3) análise das formas da língua.
No quadro de formulações da BNCC, portanto, contexto é o
ponto de partida de uma metodologia de ensino dialógica, em que as
noções de campos da atuação social e gêneros do discurso poderão ser
mobilizadas. Com essas noções, a BNCC pode se constituir como um
limiar de possibilidades e propostas pedagógicas que venham a con-
templar o ensino de argumentação em uma perspectiva, em relação à
educação e à sociedade, ao mesmo tempo crítica, com base em Freire
(2005), e decolonial, com base em Quijano (2005) e Mignolo (2020).
Ao mesmo tempo, essas noções convivem, no documento, como já
dissemos e discutimos em Vidon (2020) e Rocha e Vidon (2021), com
um regime de competências e habilidades que norteia o documento, em
especial a partir de sua reconfiguração nas versões finais, notadamente
após o golpe jurídico-político-parlamentar contra a presidenta Dilma
Vanna Rousseff, em 2016.
Na BNCC do Ensino Médio, os “campos de atuação social” são to-
mados como eixos organizadores das atividades (práticas de linguagem)
propostas.
792
de seus conhecimentos, alcançando maior nível de teorização
e análise crítica, quanto para o exercício contínuo de práticas
discursivas em diversas linguagens. Essas práticas visam à par-
ticipação qualificada no mundo, por meio de argumentação,
formulação e avaliação de propostas e tomada de decisões orien-
tadas pela ética e o bem comum. (BRASIL, 2018, p. 477)
793
político-ideológicos, envolvem instituições, coerções sócio-históricas e
institucionais, conforme Amossy (2018, p. 148), relações de poder (sta-
tus, papéis, posições, interesses, cf. PADILLA, DOUGLAS, LOPES
[2011]), tradições, crenças e representações sociais (valores [idem]).
Não são campos neutros, em que se exerce a linguagem a bel prazer,
em que se interage de forma tranquila, especialmente quando estamos
falando das práticas de argumentação.
A atuação na vida pública, por exemplo, como o próprio documen-
to aponta, requer uma atitude ética e política da escola, do professor e
do estudante, para que se trabalhem os parâmetros elencados para a or-
ganização e progressão curricular. No caso do Ensino Médio, um desses
parâmetros define a garantia de espaço, ao longo dos três anos, para que
os estudantes possam:
794
de atuação social e áreas do conhecimento. (BRASIL, 2018.p.
504)
795
dialogicamente sustentadas, exercer uma atividade de leitura profun-
damente crítica dos meios de comunicação, inclusive, senão principal-
mente, dos veiculados na internet, dos textos e discursos que circulam
nas redes sociais, construir espaços de produção discursiva que atendam
as comunidades escolares, sem a prática do colonialismo, é uma uto-
pia142 necessária, um inédito viável, como diria Paulo Freire.
Particularmente, na prática de produção de textos, o que se propõe
acima como práticas discursivas de argumentação (produção de textos
reivindicatórios, de reclamação, de denúncia, participação em debates,
conselhos deliberativos, etc.) tem o potencial de romper com a prática
colonialista de redação do texto dissertativo-argumentativo, já muito
discutida por nós e por outros pesquisadores143 e que, segundo Piris
(2020, p. 31), legitima “el régimen de exclusión de las mayorías tratadas
como minorías en el sistema educativo brasileño” e impossibilita o ensi-
no efetivo da argumentação no sentido de “tomar la palabra en la esfera
pública para presentar, justificar, sostener, rechazar y (re)evaluar posi-
ciones en situaciones de declarada disputa de sentidos, caracterizada por
el conflicto de perspectivas sobre una cuestión””. Essa prática escolás-
tica (BAKHTIN, 2013) e escolarizada de argumentação é claramente
orientada por uma visão dentro daquilo que Street (2014) denomina
“modelo autônomo de letramento”, já que concebe relações autônomas
142
Essa perspectiva utópica, segundo Grácio (2022), também pode ser encontrada
em Chaim Perelman, com seus ideais democráticos, civilizacionais, que valori-
zam os direitos humanos e o livre exame, e, também, em Zarefsky (2009), que
vislumbra uma cultura da argumentação, na qual o outro e sua alteridade (não
autoridade) sejam respeitados.
143
Vale lembrar que, historicamente, a argumentação, quando trabalhada pedago-
gicamente no Brasil, sempre o foi por um viés cognitivista. Mostramos isso em
Vidon (2018) com a análise de um manual de redação dos anos finais de 1970,
referência, ainda hoje, para o ensino de texto dissertativo-argumentativo. Nessa
perspectiva, e isso é encontrado também em livros didáticos, há a crença de que o
domínio das estruturas da língua, de um lado, e das estruturas do texto, de outro,
seriam suficientes para o desenvolvimento de uma capacidade (individual) de
argumentar e dissertar (ver, também, Grácio, 2016). Um formalismo tipológico
reduzia o trabalho de argumentação aos limites do texto, suprimindo o papel do
contexto e dos sujeitos envolvidos na argumentação.
796
entre o texto e seu contexto, entre o texto e seu autor, entre o autor e o
leitor, entre o sujeito do discurso e o tema etc.
Ao abrir o leque de opções de gêneros, tanto orais, quanto es-
critos, para a produção dos enunciados dos estudantes (e da comu-
nidade escolar como um todo), a BNCC desautonomiza a prática de
redação da “dissertação escolar”. Trabalhando com uma diversidade
de gêneros, tais como “discussão oral, debate, programa de governo,
programa político, lei, projeto de lei, estatuto, regimento, projeto de
intervenção social, carta aberta, carta de reclamação, abaixo-assinado,
petição on-line, requerimento, fala em assembleias e reuniões, edital,
proposta, ata, parecer, recurso administrativo, enquete, relatório etc.”
(BRASIL, 2018, p. 503), aponta para os educadores a possibilidade de
trabalhar pedagogicamente competências e capacidades argumentativas
dos educandos em contextos reais de comunicação, interagindo e
respondendo, ética e responsavelmente, a auditórios concretos e a
questões argumentativas vívidas. Azevedo (2013; 2016; 2019) defende
uma concepção de competência, e consequentemente de capacida-
de, que vá além da perspectiva meramente cognitivista, alinhada, por
exemplo a pressupostos da linguística chomskyana e/ou da psicologia
do desenvolvimento piagetiana. O alinhamento da autora se dá com
os trabalhos da psicologia sócio-interacionista de Vigotski, bem como
com a concepção dialógica do círculo de Bakhtin.
Para Azevedo (2013, p. 41),
797
perspectivas bakhtiniana e vigotskyana, antes mesmo de ser um sujeito
psicológico. Portanto, as ações, em especial as ações verbais, são também
sociais e históricas, dialógicas e ideológicas. Não se excluem o trabalho
mental do sujeito, sua atividade cognitiva. Porém, este trabalho e esta
atividade não começam nem acabam no sujeito, enquanto organismo
psicofisiológico. Ambas têm início e fim em sujeitos que dialogam den-
tro de um universo discursivo datado e situado, com tempo e espaço
relativamente definidos.
A perspectiva trazida por Azevedo (2013; 2016; 2019) e Azevedo
e Tinoco (2019) convoca noções do campo sociológico, materialista,
para reinterpretar as concepções tradicionais de competência, capaci-
dade e habilidade. Algumas dessas noções são: práticas sociais, gêneros
do discurso, campo de atuação social, letramento, agência, entre outras.
Para Azevedo e Tinoco (2019, p. 30),
798
como propõe Piris (2021), Piris e Calhau (2021), com base em Plantin,
ou seja, interações argumentativas em forma de assembleias, debates
regrados, cartas de reclamação, jornais comunitários, etc.
Considerações finais
Efetivamente, o que pode interessar a um ensino de argumenta-
ção desde uma perspectiva dialógica é construir/produzir situações de
interação sócio verbal que fomentem projetos de dizer concernentes
às realidades dos estudantes envolvidos. Neste sentido, as habilidades
prescritas na BNCC são tão somente abstrações, generalizações de re-
alidades possíveis. É preciso transformá-las em propostas concretas de
enunciação, como textos ou vídeos reivindicatórios, reclamações por
escrito ou oralmente, debates, assembleias, explorando as vivências dos
sujeitos envolvidos. Só assim, práticas linguístico-pedagógicas terão
condições de se transformar em práxis discursivas, na linha gramsciana/
freireana, ou em atos ético-responsáveis, na linha bakhtiniana.
Parece ser possível, dentro dessa perspectiva, criar um contexto de
empatia, por exemplo, ao se reivindicar melhorias para a escola, para o
bairro, para a cidade, ou o direito de reclamar da coleta de lixo munici-
pal, da merenda escolar, da falta de segurança no entorno da escola, etc.,
construir um movimento de exotopia para se trabalhar esteticamente os
enunciados concretos, dentro dos seus respectivos gêneros discursivos;
e trabalhar as relações dialógicas nos textos, isto é, as relações entre locu-
tores e interlocutores, proponentes e oponentes, oradores e auditórios.
Neste sentido, a participação dos sujeitos é fundamental. Para que
não permaneçam em uma atitude passiva, sem corpo e sem voz, oprimi-
dos, é preciso pensar no ato de argumentar como um ato ético-respon-
sável, dentro da perspectiva bakhtiniana (BAKHTIN, 2010). Enquanto
ato ético-responsável, e político, o sujeito da argumentação não tem áli-
bi, ou seja, precisa se posicionar diante de uma questão que merece ser
debatida, ser contestada ou afirmada. O lugar das práticas letradas de
argumentação, portanto, diante das contradições e potencialidades ad-
vindas da Base Nacional Comum Curricular, é o lugar da singularidade,
historicidade e ideologicidade do ser em diálogo com o outro.
799
Referências
ALCÂNTARA, R.G. e STIEG, V. “O que quer” a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) no Brasil: o componente curricular língua portuguesa em questão. Revista
brasileira de alfabetização – Abalf. Vitória, ES. V. 1, n. 3, p. 119-141, jan./jul. 2016.
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos, SP: Pedro&João
Editores, 2010 [Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco].
800
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília-DF: INEP/MEC, 2018.
801
NASCIMENTO, L. A filosofia do ato responsável como fundamento retórico-argu-
mentativo: um caminho possível. IN: AZEVEDO, I. C. M. de; PIRIS, E. L. Discurso
e Argumentação: fotografias interdisciplinares – vol.2. Coimbra, Portugal: Grácio
Editoria, 2018.
802
SAVIANI, D. Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no
Brasil. Revista Brasileira de Educação. V. 14, n. 40, 2009.
VIDON, L. N. O ensino de língua portuguesa nos anos de 1970 no Brasil: das técnicas
linguístico-cognitivas como políticas linguísticas. Conexão Letras, Porto Alegre, v. 14,
n. 22, p. 93-104, jul-dez 2019.
803
VOLOCHÍNOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora 34,
2017 [Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo].
ZAREFSKY, D. What does na argument culture look like? Informal logic 29 (3), p.
296-3008, 2009.
804
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
805
of items that make up the CAEd Bank regarding the final years of Elementary
School, related to the area of Portuguese Language. Recognizing the inductive
role of large-scale assessments on the curriculum, as asserted by Scaramucci
(2000), Antunes, Ceccantini and Andrade (2013) and Teixeira (2019),
as well as their relationships with public education policies (teaching and
assessment), we seek to answer the question: in what ways do skills from the
National Common Curricular Base (BNCC) with a focus on reading make
up the large-scale assessment matrix? Therefore, the objective is to analyze
the adaptations made by the state assessment matrices from the BNCC skills
with a focus on reading in the final years of Elementary School. From the data
obtained, this work can collaborate with inputs for the proposal of innovative
models for the evaluation of the area of Languages (Portuguese). This proposal
is based on the Diagnostic Assessment of Reading Skills model, evidenced by
Carvalho (2014), whose focus is on verifying reading skills to build reading
competence. The results of this undertaking show a contribution to the field
of Applied Linguistics, especially with regard to the assessment of the reading
process in basic education and the process of training readers, in addition to
encouraging reflections on items in the assessments developed by CAEd.
KEYWORDS: reading assessment; BNCC; Portuguese language items; ele-
mentary School.
Introdução
Considerando a relevância do impacto das avaliações em larga es-
cala em diferentes aspectos, entre os quais o da verificação da qualidade
da educação, neste artigo, de forma específica, analisamos alguns itens
de Língua Portuguesa pertencentes ao banco da Fundação Centro de
Políticas Públicas e Avaliação da Educação – CAEd, referentes ao 9º
ano do Ensino Fundamental, com o olhar para a qualidade técnico-pe-
dagógica dessas questões.
Tal abordagem apoia-se no modelo de Avaliação Diagnóstica das
Habilidades de Leitura, evidenciado por Carvalho (2014), cujo foco
está na verificação das habilidades de leitura para a construção da com-
petência leitora.
Para alcançar nosso objetivo, além dessa seção introdutória, este
texto apresenta breve fundamentação teórica sobre a importância de
806
formar leitores na educação básica e sobre como a Base Nacional Comum
Curricular – BNCC (BRASIL, 2017) de língua portuguesa aborda a
formação de leitores. Na sequência, são analisados dois itens extraídos
da prova de Língua Portuguesa do 9º ano do Ensino Fundamental, per-
tencentes ao banco de itens da Fundação CAEd, e, por fim, são tecidas
breves considerações finais.
807
conhecimento e dialogam não somente com as competências de uma
determinada área de conhecimento, mas também com as competências
gerais.
Ainda que alguns possam entender leitura como um processo que
se restringe à aquisição e à capacidade de decodificar letras. Entretanto,
um indivíduo habilitado à leitura nessa perspectiva nem sempre será
um leitor, como esclarece Zilberman (2008), pois possuir capacidade,
habilidade e técnica de decodificação não são os únicos elementos que
tornam um leitor competente e autônomo. Nesse sentido, neste artigo,
o sentido da palavra ‘leitor’ está relacionado a um processo mais amplo
e contínuo.
A aprendizagem da leitura não ocorre de maneira espontânea, por
isso, como expõe Lerner (2002): o contato com o sistema alfabético é
uma condição necessária para a utilização da linguagem, para a leitura,
para a interpretação e para a produção de textos escritos relativos aos
diferentes gêneros que circulam na sociedade. No entanto, não se esgota
nesse contato. Nesse sentido, a formação de leitores é algo que requer
mais do que técnicas e métodos adequados, é necessário refletir acerca
de um ensino que considere a relevância do aprendizado da leitura en-
quanto processo contínuo, sendo necessário oportunizar aos estudantes
uma educação de qualidade, que forme sujeitos críticos e capazes de
transformar a realidade na qual estão inseridos.
Nessa perspectiva, Solé (1998) expõe que o leitor autônomo é aque-
le que compreende textos diversos e, consequentemente, aprende com
eles, sendo capaz de se interrogar sobre sua compreensão, instituindo
relações com seus conhecimentos prévios, e permitindo aplicar o que
foi construído em distintas situações das quais participa. Segundo a pes-
quisadora, a compreensão do sentido do texto pelo leitor se dá a partir
do momento em que ele percebe seu protagonismo diante do que está
sendo lido. Assim, o processo de leitura precisa familiarizar o leitor com
o texto a partir do estímulo aos conhecimentos prévios, da criticidade,
da capacidade de questionar e de sintetizar as informações abordadas,
ressignificando-as, segundo seus objetivos.
808
Sobre essa questão, Kleiman (1998) enfatiza a flexibilidade e a in-
dependência durante o processo de leitura, dado que o leitor não segue
apenas um procedimento para chegar onde deseja, dispondo de várias
possibilidades. Assim, se uma delas não der certo, outras poderão ser
testadas. Por isso, o ensino e a modelagem de estratégias de leitura não
consistem em um ou dois procedimentos, mas em tentar (re)produzir
condições que dão ao leitor uma autonomia diante da riqueza de recur-
sos disponíveis.
A formação do leitor competente através das estratégias de leitu-
ra aponta para vários caminhos que envolvem diversas habilidades de
interpretar e de compreender textos. As estratégias são procedimentos
acionados pelo leitor e aplicados na interação a partir e com o texto,
sendo flexíveis, porque podem ser interpretadas e analisadas segundo os
conhecimentos do leitor, por meio da capacidade de realizar previsões,
elaborar e responder a questões, identificar ideias centrais, conteúdos
novos e antigos, relacionar o que se lê com o contexto e com outros
textos, ser capaz de estabelecer inferências etc.
Trata-se de um processo que deve ser contínuo, com vistas a permi-
tir que o leitor se torne autônomo e proficiente nos distintos contextos
sociais em que esteja inserido.
A seguir, veremos de forma breve o que orienta a Base Nacional
Comum Curricular sobre o processo de formação de leitores para a
educação básica brasileira.
809
informais e formais, habilidades de interação com um número
maior de interlocutores no espaço escolar, em que se amplia o
número de professores, agora distribuídos pelos componentes
curriculares. No eixo Leitura, as estratégias de compreensão e
interpretação crescem em quantidade e exigências cognitivas e
amplia-se o nível de complexidade dos textos. Também no eixo
Escrita, em paralelo com o avanço em estratégias de leitura, as
estratégias de produção textual vão se tornando, progressiva-
mente, mais numerosas e complexas. O eixo Conhecimentos
linguísticos e gramaticais parte dos eixos da Leitura (de textos
lidos) e da Escrita (de textos produzidos pelos alunos), ao mes-
mo tempo em que os apoia, colaborando com a compreensão,
interpretação e produção de textos. No eixo Educação literária,
diversificam-se os gêneros literários e as estratégias de leitura
literária, sempre com o objetivo maior de formar o leitor literá-
rio. (BRASIL, 2017. p. 115).
810
práticas de linguagem: Oralidade, Leitura/Escrita, Produção de Textos
e Análise Linguística/Semiótica. Em Leitura/Escrita, o eixo central en-
contra-se na interação ativa entre leitor/ouvinte/espectador com textos
escritos, orais ou multissemióticos oriundos de campos da atividade hu-
mana. Para realizar o aprofundamento da capacidade leitora, é sugerido
que diversas experiências de ler, ouvir e comentar textos escritos sejam
proporcionadas ao aluno.
Sobre isso, Kleiman (1998) aborda que a compreensão de um texto
é um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimentos pré-
vios, sendo mediante a interação com diversos níveis de conhecimento
que o leitor consegue construir o sentido do texto, compreendendo,
portanto, o que é lido e a sua relação com outros conhecimentos acu-
mulados, o que é corroborado por Teixeira (2017).
A leitura trazida pela BNCC é compreendida em um sentido mais
amplo, expondo que a formação do leitor deve contribuir para sua par-
ticipação em práticas sociais da cultura letrada que, em sua diversidade,
permitirão ao aluno apropriar-se progressivamente de diversos gêneros
textuais/discursivos e estabelecer relações com outros, consciente dos
sentidos que produz.
No que se refere à preocupação com a formação do leitor, existe um
número maior de habilidades, uma vez que os objetivos do campo va-
riam entre despertar o prazer pela leitura, mantê-lo e valorizar as diver-
sas produções artístico-literárias. A seguir, apresentamos algumas delas.
811
CD´s, DVD´s etc.), diferenciando as sequências descritivas e
avaliativas e reconhecendo-os como gêneros que apoiam a esco-
lha do livro ou produção cultural e consultando-os no momen-
to de fazer escolhas, quando for o caso.
812
(EF69LP48) Interpretar, em poemas, efeitos produzidos pelo
uso de recursos expressivos sonoros (estrofação, rimas, alitera-
ções etc), semânticos (figuras de linguagem, por exemplo).
813
identificação de elementos que se encontram na superfície textual. O
nível de complexidade no qual a habilidade pode ser mobilizada guarda
relação com o nível de complexidade do texto: extensão, léxico, sintaxe
e, ainda, tema tratado. Isso se relaciona com a habilidade (EF69LP49)
da BNCC por estimular o universo de expectativas, que representem
um desafio em relação às possibilidades e às experiências de leitura do
leitor, apoiando-se nas marcas linguísticas, em seu conhecimento sobre
os gêneros e sobre a temática, e nas orientações dadas pelo professor.
Além disso, a quantidade de informações apresentadas pelo texto e a
natureza dessas informações também são fatores importantes para o ní-
vel de complexidade da tarefa de localizar informações, bem como a
posição da informação solicitada no texto: se a informação se encontra
no início do texto, sua localização pode ser facilitada; quando se encon-
tra no meio ou no final do texto, sua localização pode ser dificultada.
Essa perspectiva de análise vem sendo investigada pelas pesquisadoras
Begma Tavares Barbosa, Hilda Linhares Micarello e Rosângela Veiga
Ferreira, conforme artigo “Avaliações em larga escala de língua portu-
guesa: uma pesquisa sobre a complexidade dos textos que dão suporte
a itens que avaliam a leitura”, resultante da Pesquisa em Avaliação Caed
2016-2019, área de Língua Portuguesa, em recorte específico sobre a
complexidade dos suportes dos itens que avaliam o desempenho em lei-
tura de estudantes do 5º ao 12º ano de escolarização. As pesquisadoras
analisaram quatro descritores que integram a Matriz de Referência para
Avaliação do CAEd: D06- Localizar informação explícita em textos;
D07- Reconhecer o assunto de um texto; D08- Inferir o sentido de
uma palavra ou expressão; D09- Inferir informação em um texto verbal.
814
Gabarito: D
Imagem do Item:
815
de perceber que, na verdade, quem se abrigou foi o rato, sendo perse-
guido pelo gato.
Vale a pena destacar ainda que a estrutura pedagógica do item é
adequada, haja vista que o texto-base oferece subsídios necessários para
ancorar as alternativas, garantindo sua plausibilidade, dando a possibi-
lidade de se abordar a habilidade (EF69LP49).
Segundo Item:
Código: P050184EX
Habilidade: Identificar o gênero de um texto.
Detalhamento da habilidade: a habilidade de identificar o gênero
de um texto está diretamente relacionada à dimensão do letramento,
ou seja, ao reconhecimento dos objetivos com que um texto foi escrito,
das condições em que será recebido, de sua função social etc. Por essa
razão, os níveis de complexidade envolvidos nessa habilidade depen-
dem do gênero e, consequentemente, do campo de atuação em que ele
circula. Gêneros que circulam em campos de atuação mais diretamente
relacionados às experiências de vida dos estudantes, sejam eles da vida
cotidiana ou da vida escolar (campos de atuação das práticas de estu-
do e pesquisa ou artístico-literário), são mais facilmente identificáveis,
pois a frequência com que os estudantes têm contato com esses textos
contribui para facilitar seu reconhecimento. No caso de gêneros perten-
centes a campos de atuação menos relacionados à experiência de vida
cotidiana dos estudantes, sua identificação tende a ser mais difícil, dada
a baixa frequência com que os estudantes têm contato com eles, como
expõe Carvalho (2014).
Vale a pena destacar também que a estrutura pedagógica do item é
adequada, haja vista que o texto-base oferece subsídios necessários para
ancorar as alternativas, garantindo sua plausibilidade.
816
Gabarito: C
Imagem do Item:
817
relacionaram a menção a gato e a rato com o gênero fábula; no entanto,
não perceberam que, apesar de o texto fazer menção a animais, não são
personificados e, assim, não há características típicas de uma fábula.
Quem selecionou a alternativa B, provavelmente se ateve ao fragmento
que menciona um desenho animado e, assim, equivocadamente inter-
pretou se tratar de um fragmento de lenda contado em forma de de-
senho. Aqueles que selecionaram a alternativa D, provavelmente inter-
pretaram que o fato de o gato ficar preso ao perseguir o rato evidencia
um episódio cômico e, por isso, interpretaram equivocadamente que se
trata de uma piada.
Considerações finais
Considerando o recorte a partir dos itens analisados, percebemos
que diferentes habilidades presentes na BNCC podem ser traduzidas
na prova do 9º ano de Língua Portuguesa do estado da Bahia, entre as
quais as de:
• (EF69LP44) identificação do gênero de um texto relacionado à
dimensão do letramento, ou seja, ao reconhecimento dos obje-
tivos com que um texto foi escrito e das condições em que será
recebido e, portanto, de sua função social;
• (EF69LP48) identificação dos efeitos de humor e ironia em
textos diversos por meio da atividade inferencial de leitura; e
• (EF69LP49) localização de informação explícita em texto
verbal.
Levando em conta nosso curto espaço deste texto e nosso objetivo,
ficou evidente que, no tocante à qualidade técnico-pedagógica, os itens
analisados estão bem elaborados e permitem que o estudante respon-
dente que domina as habilidades avaliadas possa ter acesso à resposta
adequada.
Além disso, em se tratando de um trabalho que versa sobre a leitura
e o papel da avaliação no processo de formação de professores, não po-
deríamos terminar este texto sem antes mencionar a importância de se
818
abordar as práticas de linguagem presentes na BNCC, considerando de
forma especial o cotidiano do estudante para despertar o interesse pelo
estudo e a compreensão de que a linguagem que o cerca contribui para
o processo de leitura.
Referências
BARBOSA, Begma Tavares; MICARELLO, Hilda Linhares; FERREIRA, Rosângela
Veiga. Avaliações em larga escala de língua portuguesa: uma pesquisa sobre a comple-
xidade dos textos que dão suporte a itens que avaliam a leitura. Revista Pesquisa e
Debate em Educação. Juiz de Fora, MG, v.10, n.1, p.1064 - 1081, jan./jun. 2020.
KLEIMAN, Angela. Oficina de leitura: teoria & prática. 6. ed. Campinas, SP: Pontes,
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ZILBERMAN, Regina. O papel da literatura na escola. Via Atlântica, n. 14, dez. 2008.
Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/50376.>
819
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
820
the core of the realization of male prostitution, circumventing the gender and
sexuality performances of the hustlers and call boys from exchanges with fees.
In order to justify our statement, we analyzed two scenes of male prostitution
in Brazil, aiming to understand the modes of enunciative constitution of the
ethé of virility in the discursive practices of male prostitution. For this, we
analyzed the forms of subjectivation of virility in the dynamics of sex charged
on the streets and in saunas in São Paulo, settings scrutinized from the notions
of discursive practices (MAINGUENEAU, 1993, 2008), discursive ethos
(MAINGUENEAU, 2008, 2010, 2016, 2018). , 2020) and intersectionality
(AKOTIRENE, 2020). The management process of the virility ethé is
supported by the articulation of statements about the intersectional traits
of age, race, social class and motivation for integration into prostitution, as
well as by the historicity that sustain them. We conclude that the enunciative
functioning of the virile image of the members of the prostitution scenes
constantly moves between a hegemonic reading and articulations that erupt
with a unilateral logic of masculinity.
KEYWORDS: Discursive ethos. Discursive practices. Virility. intersectional-
ity. Male prostitution.
Introdução
A prostituição foi instituída, em diferentes contextos sociais, como
um tipo de acontecimento a ser rechaçado. Essa projeção ocasionou
uma leitura culpabilizante e marginalizante das práticas e dos sujeitos,
concretizando um processo de invisibilização dos indivíduos e o au-
mento da dificuldade de acessibilidade social (médico, jurídico, midiá-
tica, entre outros)144. No caso da prostituição masculina homoerótica,
há a desestabilização de um conjunto referencial de comportamentos
pretensamente instituídos aos homens, i.e., da reversão das relações de
amor romântico (relacionar-se amorosa e/ou sexualmente com alguém
somente por amor) e do exercício de relações entre homens. Portanto, a
144
Além do viés qualitativo, é importante destacar que a circulação de enunciados
estereotipados sobre a prostituição também se revela nas produções científicas
sobre o tema. A partir do levantamento bibliográfico realizado por Oliveira
(2019), verificamos a tímida produção que tem como objeto as práticas de sexo
tarifado e seus elementos constituintes.
821
prostituição masculina homoerótica era (e ainda é) situada como algo a
ser reprimido, negado e abafado socialmente.
Ao mesmo tempo, em recortes temporais e espaciais pontuais, os
corpos dos michês e dos garotos de programa145 adquirem um teor va-
lorativo diferenciado, como Oliveira (2019, p.213) descreve:
822
No regime de desejabilidade, a virilidade ocupa um lugar distintivo
no processo de hierarquização dos corpos. As formas de significação
culturalmente situadas contornam os elementos éticos e estéticos que
atravessam as formas de caracterização de sujeitos entendidos como
homens, um regime de condutas que visem ratificar um modelo com-
portamental e estético. No caso da prostituição masculina, a virilidade
apresenta-se como referencial impositivo que condiciona o funciona-
mento das interações pelas quais os garotos de programa devem estimu-
lar os clientes-em-potencial, além de identificarem como integrantes na
própria dinâmica da prostituição. Logo, a virilidade perfila e é perfilada
pela demanda socioeconômica específica de constrangimento da corpo-
reidade em torno da aparência de heterossexualidade.
Diante da centralidade do corpo viril, os garotos de programa são
impulsionados a cumprirem as demandas culturais de identificação de
si a fim de lograrem êxito na dinâmica de sexo tarifado. Assim sendo,
verificamos a incidência de um regime de inteligibilidade de gênero e
sexualidade (BUTLER, 2019) pautado na leitura hegemônica da virili-
dade. Todavia, esse projeto esbarra na multidirecionalidade de significa-
ções da virilidade, posto que esta tenta ser enquadrada em um modelo
unilateral de valorização dos corpos. Nesse cenário, interessa-nos o se-
guinte questionamento: como os integrantes da prostituição masculina
agenciam corporalmente os enunciados sobre virilidade?
Estruturalmente, apresentamos o quadro teórico acerca da prosti-
tuição masculina, argumentando sobre seu funcionamento como uma
comunidade discursiva por meio de certas regularidades dos traços in-
terseccionais. Em seguida, interpretamos as estratégias discursiva de ela-
boração de uma imagem viril no exercício performático e interseccional
em duas cenas da prostituição masculina, as ruas e as saunas paulistanas.
Encerramos o texto com a conclusão de que os traços interseccionais
são mobilizados para imposição e para subversão do modelo de virili-
dade, ressaltando quatro zonas de estruturação pelas quais o cerne da
prostituição masculina se torna maleável.
823
A comunidade discursiva dos garotos de programa: as práticas
discursivas e as interseccionalidades
Ao nortear a forma de organização da prostituição masculina, a vi-
rilidade contorna as formas de significação dos sujeitos em níveis com-
portamentais e de apresentação visual. Essa forma de entendimento da
estruturação da prostituição masculina homoerótica se aproxima da no-
ção de comunidade discursiva proposta por Dominique Maingueneau
(1993, 2008a). Para o autor, a ideia de comunidade discursiva compõe
uma tríade que tenta responder como os textos atuam na organização
de coletivos sociais, sem perder de vista as singularidades de cada um
dos integrantes de um grupo. Assim, a circulação de determinados tipos
de textos, de posicionamentos e de lugares enunciativos garante a im-
pressão de homogeneidade de um conjunto de indivíduos.
A comunidade discursiva estabelece vínculos com outras duas noções,
as “práticas discursivas” e de “formações discursivas”. No intento de eluci-
dar os modos de articulação dos termos, Maingueneau (1993, p.56) afirma:
824
Uma forma de visualização da tríade em um contexto situado está
na pesquisa de Pessoa e Moreira (2016). Na ocasião de análise do papel
enunciativo do inquérito policial, os autores constatam que o gênero
discursivo em questão mobiliza as condutas de diferentes atores envol-
vidos no processo judicial, como vítimas, testemunhas, policiais, escri-
vães e investigadores. Para cada um desses sujeitos, o inquérito funciona
como um tipo de texto que norteia uma forma de tratamento da reali-
dade social e dos sujeitos, impelindo os envolvidos com o documento a
adotarem um tipo de conduta específicos para seus papéis enunciativos
e, simultaneamente, sentirem-se como integrante do lugar social que
ocupam.
Os discursos sobre virilidade são considerados constituintes da
prática discursiva da prostituição masculina porque amparam minima-
mente a imagem de coletividade dos michês e dos garotos programa. A
partir dos diferentes textos (verbais ou multimodais), as significações
sobre a virilidade ganham forma, que, de acordo Maingueneau (2008b,
p.39), “serve de norma e garantia aos comportamentos de uma coleti-
vidade da coletividade” e contorna “lugares-comuns da coletividade”.
Uma leitura da virilidade, entrelaçada por intentos hegemônicos, jus-
tifica-se como referencial para a congregação dos sujeitos no grupo de
integrantes da dinâmica de sexo tarifado e sustenta o reconhecimento,
por outrem, dos participantes e de seus intentos comunicativos.
No caso da virilidade na prostituição masculina, as formações dis-
cursivas direcionam-se para os corpos dos michês e dos garotos de pro-
grama. Ao recuperar determinadas formas de ser e estar no mundo, os
corpos são compelidos à realização de determinada forma de compor-
tamento social e sexual aos clientes em vista. Assim, do entendimento
sobre o que significa ser viril, os integrantes da prostituição masculina
precisam concretizar um tipo de exercício ético pautado na imagem
heterossexualizante norteante do regime de desejabilidade que os sujei-
tos integram, o que permite justificar e ratificar sua pertença ao grupo.
Logo, além da verbalidade do escrito e do oral, o corpo apresenta-se
como a textualidade pela qual se verifica o exercício da virilidade, e que
825
também permite investigar os processos discursivos constituintes das
práticas sociais.
Ao analisar o cenário da prostituição masculina brasileira, Cruz
(2022) defende o corpo como uma tessitura discursiva. De um lado,
o corpo é alvo de uma série de regulações, recortes sobre os limites de
ser, querer e fazer, condicionando a recepção social como “normais” ou
abjetos. Por outro, ao perceberem o teor impositivo de certas condutas,
os sujeitos se valem de técnicas para adequação às demandas colocadas,
elaborando estratagemas corporais eficiente na confirmação uma ima-
gem uníssona. Sob a ótica da virilidade, os integrantes da dinâmica de
sexo tarifado precisam recuperar determinados traços de identificação,
manifestá-los corporalmente de forma aparentemente coerente, o que
permite lograrem êxito.
Alvo de diferentes instâncias sociais, a significação do corpo viril
perpassa pela articulação dos traços interseccionais. A partir das colo-
cações de Akotirene (2020), os traços interseccionais podem ser en-
tendidos como as formas simbólicas de diferenciação dos corpos, pelas
quais lógicas dissimétricas de poder tentam se efetivar. Questões raciais,
de gênero e sexualidade, classe social, localização geográfica, idade, são
alguns dos pontos diferenciais entre os sujeitos, pelos quais estes podem
ser alvos da valorização ou da marginalização. Em ambas as direções ve-
rificamos a ocorrência de forma de significação dos corpos, perfilando
imagens específicas para os sujeitos, o que baliza o trabalho diferencial
dos sujeitos pelo contextual cultural em que se inserem e forja a preten-
sa naturalidade dos agrupamentos sociais.
De maneira mais enfática, entendemos que a noção de prática
discursiva converge com o conceito de interseccionalidade. As forma-
ções discursivas indexam para um agenciamento mais ou menos es-
tável de enunciados acerca dos traços de subjetivação em raça, classe,
gênero, sexualidade, entre outros, promovidos por instâncias médicas,
jurídicas e midiáticas. Esse agenciamento resulta em uma conformação
mínima de uma imagem social acerca dos traços éticos e estéticos dos
garotos de programa, o que implica a tentativa de réplica de uma ideia
826
unilateral sobre virilidade. Ainda, essa “demanda de mercado” contorna
o horizonte de expectativas dos pares integrantes na prostituição, dos
clientes e do próprio sujeito que comercializa fantasias146.
A ambientação em que os corpos dos michês e dos garotos de pro-
grama são comprimidos é marcada pela negociação dos enunciados e
suas formas de articulação a fim de garantirem uma imagem coerente
de virilidade. Para Cruz (2020), os processos de subjetivação das iden-
tidades masculinas perpassam necessariamente por um regime de “de-
bilidades performativas”. Embora a leitura superficial do autor sobre o
caráter movediço das sexualidades147, suas constatações fornecem dados
significativos acerca das relações de contingência sobre os sentidos que
compõem as subjetividades viris, pois o cerne processual são os rearran-
jos, as adequações ao quadro situado em que cada sujeito elabora sua
vida (sexual), manejando os traços interseccionais em um projeto de
valorização de si.
Ao voltarmos nossa atenção ao cenário da prostituição masculina,
também propomos que há menos um regime maniqueísta de disposi-
ção dos traços do que uma movimentação suplementar contínua entre
os termos. Essa suplementaridade é nutrida pela associação de formas
de significação de cada um dos elementos diferenciais constituintes da
imagem de virilidade, significantes que têm seus significados orques-
trados historicamente e, com efeito, delimitam os lugares positivados
146
Com base em um conjunto de entrevistas com mulheres que se prostituem,
Guimarães e Merchán-Hamann (2005) desmistificam a ideia de que a prostitui-
ção seriam a venda do corpo. Diferentemente, os autores advogam, mediante os
apontamentos das informantes, em direção a uma leitura da prostituição como
um processo discursivo pautado na realização das fantasias sexuais dos clientes,
fantasias que são, em menor ou maior grau, constrangidas em outras práticas
discursivas.
147
É importante sublinhar que noção de “debilidade performativa” é abandonada
posteriormente pelo autor, tendo em vista que percebia as subjetividades apenas
em máximas, não capturando as movimentações e arbitrariedades como uma
dimensão constituinte da linguagem que perfaz as performances de gênero e
sexualidade. Em estudos posteriores (CRUZ, 2022), verificamos a modalização
das categorizações, refletindo o rearranjo dos referenciais bibliográficos do autor
e das observações dos fenômenos sociais.
827
ou não dos sujeitos como cumpridores da imagem de “homem viril”.
Nessa ambientação, a ideia de agenciamento emerge, como um pro-
cesso de percepção das condições de enunciabilidade e a disposição de
tentativas de adequação ao modelo de subjetivação vigente148.
De modo geral, defendemos a ideia de que a imagem de virilida-
de imputada aos integrantes da prostituição masculina só é realizável
mediante a retomada e a atualização dos enunciados acerca dos traços
interseccionais. São esses enunciados corporificados que permitem o
rastreamento mínimo das condições enunciativas em que se encontram
os garotos de programa, identificando as forças enunciativas que per-
filam a efetividade das imagens projetadas e a pertinência articulató-
ria dos elementos interseccionais que as sustentam. Ao mesmo tempo,
esse rastreamento garante a ilustração sobre os modos de agenciamento
das condições enunciativas mobilizada pelos garotos de programa, seu
modo de funcionamento em projetos situados e os efeitos ao lograr
êxito na prostituição masculina.
828
A prova pelo ethos consiste em causar uma boa impressão me-
diante a forma como se constrói o discurso, em dar uma ima-
gem de si capaz de convencer o auditório, ganhando sua con-
fiança. O destinatário deve, assim, atribuir certas propriedades
à instância que é posta como fonte do acontecimento enuncia-
tivo” (MAINGUENEAU, 2008b, p.56).
829
Em diferentes textos ao longo de sua carreira, Maingueneau
(2008b, 2008c, 2016, 2018 e 2020) sublinha que o elemento distintivo
da noção de ethos, aquilo que garante o teor discursivo, é o processo em
que o locutor de um discurso se torna sujeito por meio da tomada da
palavra. De fato, não há nada de inocente nesse gesto, pois pressupõem
três ocorrências simultâneas, em que
830
esperada pela sociedade e pelos clientes-em-potencial, tendo em vis-
ta que é condição de êxito para inventariar os retornos financeiros e
uma forma de integração ao grupo dos homens viris na prostituição
masculina.
Até aqui abordamos a noção do ethos em sua estrutura morfoló-
gica no singular, mas é importante assinalar sua marcação plural, os
ethé discursivos. Como veremos nas análises, a decisão de ratificação do
termo no plural justifica-se pela sinalização pluridirecional dos espaços
sociais de comunicação pelos quais os garotos de programa transitam e
nos quais os sentidos sobre virilidade são rearranjados constantemente.
Além disso, os rearranjos dos traços interseccionais promovidos pelos
integrantes da dinâmica de sexo tarifado depõem sobre a fluidez e a
diversidade das formas de corporificação da virilidade.
Tendo em mãos as informações acerca das relações entre as práti-
cas discursivas e as interseccionalidade, bem como entre as noções de
ethé discursivos e o espectro da virilidade mediante as possibilidades de
combinação entre os traços interseccionais, prosseguimos para as análi-
ses nas duas cenas elegidas.
As ruas e as saunas
Antes de enveredarmos pela análise dos dados coletados, é impor-
tante resumir os procedimentos metodológicos que nos conduzem na
organização das informações acerca do fenômeno observado. Como
uma pesquisa de teor bibliográfico, utilizamos como base de dados as
plataformas Google Acadêmico e Scielo, recorrendo aos marcadores
“prostituição masculina”, “virilidade” e “discurso”. Com o levantamen-
to, encontramos dois textos que, embora apartados temporalmente149,
149
A diferença temporal de dez anos entre os textos poderia levantar questionamen-
tos como: “não haveria um equívoco sobre as condições de enunciação entre o
corpus analisado por Perlongher (1986) e o corpus analisado por Santos e Pereira
(2016)?” (CRUZ, 2022, p.30). Nessa seara, respondemos, baseados em Trevisan
(2018), que a recuperação da história da sexualidade não é regular, mas dispersa
em situações de “altos e baixos”, momentos em que, maior ou menor grau, a ho-
mossexualidade como algo perigoso. Ainda, no campo dos estudos do discurso,
831
são considerados norteadores na seara do tema: o primeiro é o livro “O
negócio do Michê”, de Nestor Perlongher (1986), considerado a pri-
meira etnografia acerca da prostituição; o segundo é o artigo “Amores
e vapores: sauna, raça e prostituição viril em São Paulo”, de Ércio
Nogueira Santos e Pedro Paulo Gomes Pereira (2016), sobre o regime
de pigmentocracia vigente nas saunas paulistanas, que retoma as sinali-
zações de Perlongher.
Diante dos dados coletados pela observação das cenas fornecidas
pelos textos, elaboramos uma síntese que esquematiza as linhas de
orientação pelas quais os corpos dos michês e dos garotos de programa
são atravessados. Nesse sentido, percorremos o funcionamento enun-
ciativo dos traços interseccionais relacionados à idade, à classe social, à
raça e ao trabalho.
832
o recorte decenal em que a virilidade seria performada de forma mais
efetiva, isto é, a faixa etária entre quinze e vinte e cinco anos seria o mo-
mento de manifestação mais pontual de uma leitura da virilidade em
direção a sua perspectiva hegemônica, de uma aparente heterossexuali-
dade. Todavia, esse próprio recorte já carrega em si uma arbitrariedade,
porque apresenta como corolário o risco que os michês mais jovens
podem apresentar ao compatibilizar seus traços comportamentais com
o efeminamento.
Em contrapartida, coexistem outros dois agrupamentos etários em
que sujeitos podem ser categorizados. Por um lado, os michês com ida-
de inferior a quinze anos, os quais são desejados pelos clientes por conta
de sua jovialidade, mas ao mesmo tempo são interpretados como um
risco, uma vez que suas performances de virilidade abrem margens para
um lugar de abjeção. Por outro lado, os sujeitos com idade acima de
vinte e cinco anos são entendidos como os que melhor cumprem as
demandas de representação corporificada da virilidade, embora sejam
pouco quistos pela clientela, porque não apresentam a jovialidade al-
mejada. Portanto, há a regência de um processo de esquadrinhamento
dos corpos e de disposição tripartida entre eles, a partir da relação entre
jovialidade e o cumprimento da imagem de virilidade.
Kaye (2004) chama atenção para a sutileza estruturante das rela-
ções homoeróticas no século XX, a fetichização de sujeitos mais novos
e pobres. A partir da análise da construção discursiva do “pseudoho-
mossexual”, o autor elucida que estes eram os sujeitos detentores de
um lugar social privilegiado por conta de seu nível de poder aquisitivo.
Eram homens de classe média e classe média-alta, embebidos em rela-
cionamentos heterossexuais, acima dos 30 anos, entre outros caracteres.
Desse lugar enunciativo, institui-se uma dupla direcionalidade sobre o
posicionamento associativo desses sujeitos, pois poderiam categorizar a
si próprios e aos outros, mas também eram reféns da projeção modelar
em relação aos homens mais jovens.
No caso da prostituição masculina, essa configuração se traduz por
meio da procura dos michês mais jovens. Embora a certa advertência
833
sobre o risco de manifestação de efeminamento, Perlongher (1986) des-
creve que homens com idade superior a 30 anos procuravam os michês
mais novos como forma de ratificação dos corpos mais velhos como
desejáveis. A prática era parte do cotidiano e verificava-se por meio da
conquista dos clientes como clientes fixos, i.e., da recorrência de um
cliente com o mesmo michê. Assim sendo, os michês acima de vinte
e cinco anos se encontravam com clientes efêmeros, sem assiduidade
na rotina de sexo tarifado, enquanto os michês mais novos detinham
clientes fixos, o que sublinha o índice máximo de sucesso.
O traço etário também estabelece vínculo com a diferenciação em
classe social. Sua forma de manifestação se dá por meio do pressupos-
to de que todos os jovens integrados na dinâmica de sexo tarifado são
pobres, o que os comprime a submissão dos desejos do cliente-em-po-
tencial. Assim, além do aspecto de enaltecimento do corpo do cliente
enquanto alvo desejado, a busca pelos michês mais novos é assentada na
reprodução de uma lógica maniqueísta entre quem detém o poder eco-
nômico e quem deve se submeter a ele. Portanto, a organização da práti-
ca de sexo tarifado não tem apenas o viés econômico como um alvo, mas
também estruturada pelas diferenciações que o viés econômico propaga.
Por sua vez, a distinção entre classes sociais ecoa em direção a ou-
tro interseccional, implícito dentro da própria condição de um sujeito
pertencente a um grupo econômico, a distribuição dos espaços geográfi-
cos. Perlongher (1986) constata que o exercício da virilidade pressupõe
o rechaço a sua antonímia, a feminilidade e/ou o efeminamento, o que
funcionaria como um ponto negativado na corporeidade dos michês.
A valorização da virilidade atinge seu ápice quando esta é destinada ao
recorte geográfico das zonas de michetagem, logradouros em que os inte-
grantes devem apresentar uma imagem comportamental e visual conso-
nante a heterossexualidade, caracterizada pela cisgenericidade, pelo papel
de ativo sexual e pela evidência de pelos, músculos e dos órgãos genitais.
Embora a regência latente da versão unilateral sobre a virilidade, os
michês realizavam também os papéis sexuais de passivos. Inicialmente
destinados as zonas residenciais, a passividade integra funcionamento
834
atividade laboral de sexo tarifado, sendo arquitetada por meio da ela-
boração de um conjunto de subterfúgios que garantam a preservação
da imagem de virilidade e o atendimento dos desejos dos clientes. Em
outras palavras, alguns garotos de programa informam a Perlongher
(1986) que atuavam como passivos durante as relações sexuais após
uma negociação com o cliente. Todavia, não havia, nas práticas públi-
cas, o questionamento da virilidade do sujeito.
De que maneira os michês conseguiam exercer o papel de passivi-
dade sexual e preservar a imagem de si viril na comunidade discursiva
que integra? Em primeiro lugar, é preciso entender que os michês rear-
ranjam a lógica de funcionamento da virilidade, propondo um tipo de
“passividade viril”. Essa proposta se traduz por meio da elaboração de
um subterfúgio socioeconômico, pelo qual o aumento do preço do pro-
grama justificaria o remanejamento do papel sexual do michê. Segundo
Russo (2007), o preço ampara publicamente o possível esfacelamento
da imagem viril do sujeito, contornando um dos pontos referenciais da
prostituição masculina.
Em relação às motivações que conduzem os michês ao labor da
prostituição masculina, Kaye (2004) permite elucidar dois grupos, os
homens-subsistência e os homens-soldados. Em decorrência de um
cenário de desemprego e consequentemente da ausência dos aspectos
básicos para a sobrevivência humana (como a alimentação), os ho-
mens-subsistência integravam a prostituição como formas de angariar
recursos para fomentar o ceio familiar. Com interesses distintos do pri-
meiro grupo, os homens-soldados, em face das condições fisiológicas
(PRECIADO, 2014), psicológicas e financeiras em que voltavam das
guerras, não almejavam o sustento familiar ou qualquer objetivo mais
imediato. Ao contrário, adentravam a esfera da prostituição masculina
a fim de angariarem um cliente que fosse capaz de inseri-los no mundo
da aristocracia, o que findaria as condições pouco afortunadas pelas
quais chegavam às localidades em que viviam.
Essa necessidade é encrustada no traço interseccional de classe so-
cial, pois dialoga com a hipótese de que “quanto mais próximos da
835
pobreza, mais viril seria o homem (CRUZ, 2022, p.37). O maquinário
social e discursivo institui como condição de vida, na regência da ter-
ceira fase do capitalismo (ANTUNES, 2009), duas frentes de trabalho,
em que a pobreza estimula a inserção dos sujeitos na prostituição e
ratifica a divisão michê/cliente, mantendo as relações de poder dissimé-
tricas nos meandros de cada interação situadas entre os interlocutores.
Das ruas, passamos para as saunas paulistas, a fim de acompanhar
o funcionamento do processo de pigmentocracia. Segundo Santos e
Pereira (2016), o traço interseccional de raça estrutura as significações
sobre os corpos negros, dispondo-os como valorizados, rechaçados ou
em uma condição limítrofe. Os enunciados sobre negritude que cir-
culam pelas saunas indexam para a potência e a atividade sexual dos
homens negros, ao mesmo tempo em que correm o risco constante
de serem interpretados como “monstros sexuais”. De todo modo, situ-
am-se em uma linha tênue entre a valorização objetificante e a abjeção
patologizante-criminalizante.
Esses dois direcionamentos pelos quais os corpos negros podem
incorrer são mitigados pela instância midiática. Em produções porno-
gráficas (BIBIANO, 2019), somos apresentados aos “negros pauzudos”,
homens que, durante os atos sexuais, são valorizados pelo tamanho dos
órgãos genitais e um comportamento sexual considerado acima da mé-
dia. Em outra direção, aquém do ato sexual, são considerados como
desumanos e pervertidos. Em conjunto, as novelas (BELELI; NIETO
OLIVAR, 2011) também reiteram essa distinção ao apresentarem o ho-
mem negro como um sujeito pobre (articulações interseccionais que
intentam a negativação do corpo), discernível por ser um “monstro se-
xual” e/ou um “corruptor da vida sexual de outros personagens”.
Como forma de rearranjar os enunciados negativados acerca do
corpo negro, os garotos de programa mobilizavam a noção de “more-
no”. Essa subjetividade representa a tentativa de matização dos traços
positivados e negativados da negritude mediante a perfilação do tônus
muscular, a impressão de jovialidade, das posturas e do exercício de
um papel sexual. Isso significa que os garotos de programa precisam
836
se apresentar como os morenos sarados, jovens, com comportamento
indexadores à heterossexualidade e atuarem como ativos sexualmente.
O efeito reside na maior possibilidade de regulação da feminilidade/
efeminamento e maior possibilidade de êxito no processo de angaria-
mento de cliente.
Discursivamente, a mobilização da subjetividade étnica do more-
no representa uma movimentação discursiva produtiva e perniciosa.
Conforme Cruz (2022, p.34-35),
837
O jogo regrado ou a regra do jogo
A virilidade constitui o cerne da organização e estruturação das
práticas discursivas na prostituição masculina, demandando o orques-
tramento de uma imagem viril por parte de seus integrantes. Michês
ou garotos de programa, ambos são situados historicamente em di-
reção a uma leitura hegemônica, o que prevê um conjunto de traços
éticos e estéticos, condicionando a participação e a congregação na
comunidade discursiva dos sujeitos participantes da dinâmica de sexo
tarifado. Essa imagem viril é arquitetada pelos enunciados acerca dos
traços interseccionais, os quais, articulados, oferecem um conjunto
de esquemas de significação balizadores da concretização das trocas
tarifadas.
Com a breve análise de duas cenas da prostituição masculina bra-
sileira, verificamos a ocorrência de quatro direcionamento enunciati-
vos acerca dos traços interseccionais. Assim, idade, classe social, raça
e a dimensão de trabalho são ativadas, por um lado, para concretizar
um projeto hegemônico de representação da virilidade como sinôni-
mo da heterossexualidade. Por outro lado, os dados coletados nas ruas
e nas saunas, evidenciaram a construção situada de articulações dos
traços interseccionais, comprovando o viés de agência dos garotos de
programa em cumprir, aos seus modos, as demandas do mercado do
sexo.
Por conta do acirramento entre o cumprimento das demandas de
funcionamento da prostituição masculina e os agenciamentos realiza-
dos, concluímos que a incorporação dos sujeitos ocorre em um jogo
regrado. Sua característica explicita-se pelo entendimento acerca das
significações sobre os traços interseccionais, avaliando suas formas de
corporificação exitosa e validando a integração dos sujeitos. Em con-
comitância, o funcionamento apresenta, como implicitude, a execução
de rearranjos enunciativos de entremeio, capazes de recuperar as cono-
tações positivadas sobre o corpo viril e manter a salvo das conotações
negativadas.
838
Referências
AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.
839
MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel;
SALGADO, Luciana. Ethos Discursivo. 2 ed. São Paulo: Editora Cortez, 2008b.
Cap.1, p.11-29.
840
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
ABSTRACT: The present study aims to describe and analyze the conceptions
and manners in which the rapper Emicida acts in the context of antiracist
fights in Brazil. It plans to unfold the research by analyzing his songs and,
also, his discourses in public spaces, in order to make an understanding of this
150
Mestranda da Linha de Pesquisa 3: História, Política e Contato Linguístico, do
programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal
Fluminense (UFF). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordena-
ção de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), sob orientação
do professor-doutor Joel Windle.
841
artist’s actions through his speeches. It also aims to reflect on the development
of a Brazilian black identity stemming from an Afrodiasporic conception. In
addition, to understand “What does it mean to be black in Brazil?” from
Emicida’s rap music. Firstly, the investigation will be developed through
documental research, by reading specific literature about the themes and
from a theoretical decolonial perspective, focusing on studying the themes,
concepts, and research questions. Subsequently, it will proceed with the
analysis of the data from the documentary and his album called “AmarElo
- É tudo pra ontem”. The results of the research thus far are its theoretical
deepening and the completion of disciplines related to the area.
KEYWORDS: Emicida. Rap. Race. Decoloniality. Identity.
Introdução
Iniciarei por falar um pouco sobre a minha trajetória, considerando
que a metodologia narrativa permite uma recontextualização e ressig-
nificação por parte do pesquisador, fazendo ver as experiências como
acessíveis por meio das narrativas dos sujeitos. Assim sendo, é possível
considerar a narrativa como uma performance, em que as pessoas que
narram suas histórias relacionam os eventos da narrativa e se envolvem
em uma certa performance de quem são nessa experiência de narrar
(MOITA-LOPES, 2009, apud LOPES et al., 2018). A perspectiva da
narrativa como uma performance dá ênfase aos enunciados como ações
no mundo, em que contar sobre algo não é apenas uma descrição está-
tica da realidade, mas também é a alteração dela (WINDLE et. al., no
prelo).
Venho do interior do Rio de Janeiro, de uma cidade chamada
Cordeiro. Tenho uma família grande, formada pela família de minha
mãe, majoritariamente de pele branca, e a família de meu pai, formada
predominantemente por pessoas de pele negra retinta. Por isso, minha
pele é de um tom mais claro que a do meu pai, porém mais escuro que
o da minha mãe, o que, muitas vezes, fez com que eu me sentisse no
“meio do caminho” e “em lugar nenhum”.
Assim que terminei a escola, eu comecei a trabalhar em uma farmá-
cia como balconista. Nesta época eu era a única renda da minha família,
842
mas após alguns meses, meu irmão e minha mãe conseguiram outros
empregos o que me deu a possibilidade de mudar e trabalhar como
secretária em um curso de inglês em troca do término do curso. Lá, eu
fui reconhecida como uma boa aluna e chamada para dar aulas de inglês
para uma turma de iniciante. Após isto, eu continuei como professora,
que já sou há 13 anos. Acredito que ser professor é um espaço de cons-
tante performatividade, pois com cada turma e em cada escola, sou uma
pessoa diferente, ou seja, a minha performance muda de acordo com o
contexto em que estou inserida.
Como professora eu sempre trabalhei muito, às vezes em até três lu-
gares (entre cursos e escolas) ao mesmo tempo. Sempre que podia, usava,
em minhas aulas, as minhas paixões: livros, jogos de videogame, RPG151
e música. Depois de quatro anos lecionando, eu finalmente consegui
ingressar na Universidade Federal Fluminense no ano de 2013, para
cursar a graduação em Letras Português-Inglês, conquista que resultou
do governo feito pelo Partido dos Trabalhadores (PT), responsável por
investimento nas áreas sociais e diminuição de desigualdades. Durante
esse período, eu continuei trabalhando, algumas vezes em projetos com
remuneração em forma de bolsa, como o Programa de Universalização
em Línguas Estrangeiras (PULE)152 e Inglês Sem Fronteiras (ISF), ofe-
recidos na universidade.
No decorrer da graduação foi quando eu conheci o trabalho do ra-
pper Emicida e percebi que muitas de suas músicas falavam sobre como
eu me sentia. Trabalhava durante todo o dia para pagar as contas e me
manter na cidade de Niterói e nos estudos. Nesta época, tal qual em
outros momentos de minha vida, eu usava a música como uma ferra-
menta para me manter mentalmente saudável, tentando equilibrar cor-
po, mente e sentimentos através do que escutava. Por exemplo, quando
ele canta “Eu sei, sei cansa/ Quem morre ao fim do mês/ Nossa grana
151
RPG é um tipo de jogo em que os jogadores assumem papéis de personagens
e criam narrativas colaborativamente. Disponível em: https://bit.ly/3pYS6dJ.
Acesso em: 01 nov. 2021.
152
Disponível em: https://centrodelinguas.uff.br/pule/. Acesso em: 05 jan. 2022
843
ou nossa esperança?” na canção “Levanta e Anda”153, me ajudava saber
que eu não era a única pessoa a passar por aquele tipo de situação. Neste
caso, a arte dele influenciou a minha vida, assim como Volóchinov
(2019) mostra em seu trabalho com o Círculo de Bakhtin “[...]a arte é
imanentemente social: o meio social extra-artístico, ao influenciá-la de
fora, encontra nela uma imediata resposta interior. Nesse caso, não é o
alheio que age sobre o alheio, mas uma formação social sobre a outra.”
Outras canções do artista já me mostravam referências das quais
nunca havia escutado sobre, assim como na canção “Ismália”, que é ins-
pirada no poema do poeta mineiro, Alphonsus de Guimaraens. Além
disso, Emicida sempre foi alguém que fez muitas de suas canções em
colaboração com outros artistas, o que, consequentemente, fez com que
eu conhecesse mais sobre a cena da música brasileira e as pautas que
outras pessoas defendem como o feminismo negro ou a luta LGBTQ+
por exemplo. Apesar de músicas não fazerem parte de um ensino dito
formal, é possível ver o letramento acontecendo através das letras cria-
das pelo artista e pela relação que eu via com a minha própria vida.
Ainda assim, em meio aos trabalhos e correrias do dia a dia, cheguei
à Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da UFF, contexto que ini-
cia esse texto e em que me encontro hoje.
Como defendido por Lopes et. al. (2018, p. 683), “as histórias que
contamos sobre nós mesmos são sempre influenciadas por histórias de
outras pessoas.”, e a escolha do tema de minha pesquisa de mestrado
surgiu a partir da vontade de analisar como se dá a influência dos atos
de fala do músico Emicida nas pessoas que se identificam como negras
no Brasil. Para isso, é necessário comentar acerca do que se entende
por identidade e, mais especificamente, da identidade negra brasileira,
que tem se tornado uma discussão cada vez mais presente e necessária
em diferentes âmbitos acadêmicos e sociais. Para este propósito, usarei
a ideia de performatividade que é fundada em discussões levantadas
por Austin (1990), Derrida (1988) e Butler (1997) a luz de pensadoras
153
Disponível em: https://www.letras.mus.br/emicida/levanta-e-anda/. Acesso em:
08 mar. 2022.
844
como Melo (2022) e Muniz (2009). A escolha desta teoria foi feita jus-
tamente por acreditar que raça não é algo estático, mas sim construído,
um conceito que está em constante movimento.
Contextualização
Vivemos tempos incertos para dizer o mínimo. Desde que o atual
presidente assumiu o governo, nosso país tem passado por um verda-
deiro desmonte do que vinha sendo feito em governos anteriores. A
educação básica e superior sendo sucateada a todo momento, uma taxa
de desemprego avassaladora que atinge nosso país juntamente com uma
recessão econômica catastrófica, perseguição de pessoas negras, indíge-
nas e LGBTIQ+, sem falar em inúmeras outras atrocidades que viven-
ciamos nesses últimos anos. Moita (2020) nos mostra que:
845
ajudam a entender a razão de, apesar de estarmos em um governo dito
democrático, não é isso que vivenciamos quando nos deparamos com
o atual presidente atropelando a constituição da país e/ou liberando
o porte de armas ao passo que apoia a exclusão de grupos que estão à
margem da sociedade graças a abismos socioeconômicos fomentados
por nosso atual governo.
O rap hoje em dia, tem outros desafios diferentes dos que tínha-
mos nos anos 90 e até, arrisco a dizer, no início dos anos 2000. Nos
encontramos em um momento de recessão, depois de muitos brasilei-
ros terem conquistado um espaço social e econômico importante. Essa
mudança abriu caminho para que os negros ocupassem espaços outros,
desde shoppings, restaurantes, festas, até museus e universidades. Estas
questões são bem relacionadas por Moita
846
Dito isso, querer enxergar o rap como exatamente a mesma coisa
que foi nos anos 90, assim como o Teperman (2015), seria um erro.
O rap fala sobre o que as pessoas vivenciam, suas lutas e suas alegrias,
que estão diretamente ligadas ao contexto social em que se encontram.
Acredito que este estilo musical precisa ser reinventado, revisto, sem
esquecer o que um dia foi, mas percebendo que, assim como todos
nós, o rap também passou por mudanças consideráveis ao longo desses
últimos anos.
847
Derrida (1988) afirma que não há intencionalidade fora do dis-
curso, ela está sempre dentro do contexto. Somando a esta ideia, há o
processo de iterabilidade que é a repetição de algo até que isto se na-
turalize como normal. Esta repetição, porém, é sempre feita em outros
contextos, nunca exatamente da mesma forma. Além disso, temos a
citacionalidade, que é uma repetição feita ao trazer diretamente a voz
do outro. Tomemos como exemplo a expressão “cabelo de bombril”,
que compara o cabelo negro com a palha de aço, aqui referenciada pela
marca. Esta expressão, ao ser proferida repetidas vezes (iterabilidade),
faz com que a sociedade a internalize como algo natural, ocasionan-
do assim com que as pessoas que identifiquem seus cabelos como um
“cabelo bombril” acreditem que não tem cabelos bonitos (de acordo
com o padrão de beleza imposto pela sociedade). Esta fala desencadeia
efeitos como, por exemplo, o alisamento do cabelo (técnica que muda
a estrutura do cabelo para que ele pareça liso) ou a falta de apreço pelo
próprio corpo e imagem.
A partir destes pensamentos, pretendo trabalhar a ideia de perfor-
matividade, que tem por sua vez, duas faces distintas. Uma face desta
teoria é o discurso que é naturalizado através da repetição; a outra, é que
nesse repetir, essa repetição falha, o que possibilita a entrada do novo, a
transformação daquela crença, daquele valor. Esta transformação é algo
de muito valor para este trabalho, pois é por meio dela que se verifica
a modificação do que é ser negro, que nos possibilita criar uma nova
narrativa, de nos curarmos através da linguagem. A performatividade
permite que as pessoas negras possam agir de diversas formas, encenan-
do performances diferentes em contextos diferentes, desconstruindo a
ideia de que a pessoas negra precisa ser de uma forma única.
É subalterno ou subversão?
O hip hop é um estilo de música conhecido por funcionar de acordo
com a vida das pessoas que estão à margem da sociedade, tendo elas e
suas histórias como foco de suas letras e rimas. Este estilo de música tem
uma extensa trajetória e se modifica de acordo com as movimentações
da sociedade.
848
Autores como Teperman e Santos ressaltam a diferença entre as ge-
rações de rappers, separando-as entre a “velha escola”, que seriam artis-
tas da geração anos 90, anterior aos da “nova escola”, após os anos 2000.
Segundo Santos, uma das principais características que diferencia esses
dois grupos é de que “vários rappers da ‘nova geração’ tiveram acesso
à educação superior, ao contrário da realidade dos rappers dos anos
1990”, o que difere Emicida, formado em técnico de Design, e o Mano
Brown, que estudou até a oitava série (atual 9º ano). Esta mudança é
advinda do governo feito pelo Partido dos Trabalhadores (PT) no qual
foram implementadas uma série de políticas de ações afirmativas que,
segundo Santos, “[...] contribuíram ao surgimento de uma nova sensi-
bilidade sobre a negritude no país e o seu lugar social e simbólico”.
Além disso, outra importante característica que separa essas duas
gerações é o acesso à informação e a forma de veiculação de músicas au-
torais. Com o advento e o progresso da internet, a forma como a socie-
dade consome todas as coisas mudou. Atualmente, plataformas como
Spotify, YouTube e Deezer, por exemplo, recebem e distribuem músi-
cas feitas por artistas independentes e, junto a isso, redes sociais como
Instagram e Facebook divulgam diversos projetos através de suas plata-
formas. Logo, essa série de fatores faz com que artistas independentes
da “nova escola” não estejam limitados apenas a produtores fonográfi-
cos para que suas músicas circulem. Segundo Teperman (2015 c):
849
Ainda seguindo o pensamento do antropólogo (2015 b, p.41),
“se a expressão ‘nova classe média’ é precipitada ou imprecisa, é certo
que as transformações do Brasil nos últimos vinte anos bagunçaram
a identidade de classe no rap”. Neste momento, me encontro em um
ponto fundamental da minha pesquisa, no qual reconheço que todo o
estudo feito até aqui é crucial para que consigamos compreender o rap
no Brasil, porém, entendo que precisamos ter um novo olhar para os
rappers dos dias de hoje, lançando mão de uma visão engessada que te-
mos sobre estes artistas e entendendo que é preciso entender a sociedade
de hoje, da qual eles fazem parte.
O autor afirma em seu artigo para o jornal Nexo que “O proble-
ma de ‘fazer sucesso’ e ao mesmo tempo ‘ser contra o sistema’, am-
plamente tematizado pelo Racionais, é visto pela nova geração como
questão superada”. Mas seria mesmo possível fazer tal afirmação? O
próprio Teperman (2015 c, p. 82) afirma que o rapper Mano Brown,
do Racionais MC’s, teria se tornado, “em tom provocativo: mais branco
e tolerante”, o que retoma a premissa de que essa mudança seria uma
questão. Ora, quais seriam as regras para transitar entre duas classes
sociais sem mudar quem se é nesse processo? Seria isso possível? E, seria
a mudança tão significativa a ponto de dizermos que rappers são agora
mais uma parte da “nova classe média” e não esperar mais uma militân-
cia por suas “antigas” causas?
Acredito que o rap vai estar politicamente posicionado de alguma
maneira, assim como afirma Colima (2017):
850
criadores nas escolhas linguísticas precisas e na organização har-
moniosa de ideias. Isto evidencia a alta elaboração da linguagem
utilizada no rap. (p.28)
AmarElo
AmarElo é um CD no qual o rapper Emicida mistura diferentes
gêneros musicais, seja através de samples, instrumentos distintos ou
até mesmo parceria com outros artistas. Além disso, há também uma
grande quantidade de referências a tópicos distintos como cultura
negra, racismo, religião, entre outras coisas que abordarei aqui.
No site da produtora “Laboratório Fantasma”, fundada por Emicida
em 2009155, há uma breve explicação sobre o álbum AmarElo:
155
Conforme dito na linha temporal do próprio artista em seu site: http://www.
emicida.com.br/conheca?lang=ptbr
851
elo | entre o azul | e o amarelo), o artista busca – ao longo das 11
faixas – reunir heranças, referências e particularidades encon-
tradas na magnitude da música brasileira e aplicar a elas olhares
e aprendizados que acumulou desde o lançamento da sua pri-
meira (e clássica) mixtape Pra Quem Já Mordeu um Cachorro
por Comida Até Que Eu Cheguei Longe (2009). Usando o rap
como fio condutor, Emicida soma o clássico ao moderno em
uma incursão que ele ousa chamar de neo-samba, também res-
ponsável por elevá-lo ao mesmo patamar dos grandes mestres.
Produzido por Nave, AmarElo (volume 1) entra nas platafor-
mas de música pela Laboratório Fantasma e com distribuição
da Sony Music.156
156
Disponível em: http://www.labfantasma.com/amarelo/ acesso em 29/04/2022.
157
Disponível em: https://culturadoria.com.br/amarelo-e-o-universo-transmidia-
-de-emicida/ acesso em 28/04/2022
852
do documentário (AmarElo – É tudo pra ontem, 2020), dos podcasts
(AmarElo Prisma) e também de suas redes sociais.
Há uma preocupação de Emicida em tentar, através de narrativas
pessoais, construir um discurso que possa ter uma potência de construir
um novo imaginário de identidades. Como o próprio artista comenta
em seu site:
Principia
A primeira música do álbum, intitulada Principia, começa trazendo
o som do agogô, instrumento característico do Candomblé. Logo após,
há um coro de mulheres com participação de Pastoras da comunidade
do Rosário e no final da música há, também, a contribuição com uma
fala do Pastor Henrique Vieira.
Para analisar essa letra é importante pensar alguns critérios que
atravessam a canção. O primeiro deles são as referências à cultura negra.
158
Disponível em: http://www.emicida.com.br/noticia/10-Emicida-anuncia-ini-
ciativa-multiplataforma-AmarElo-Prisma?lang=ptbr acesso em 15/04/2022.
853
Essas referências se misturam com os elementos musicais e ajudam a
trazer o ouvinte para dentro da cultura que o artista quer mobilizar. O
coro de mulheres regido por um agogô, característico do Candomblé,
dialoga já com a primeira frase da música que fala sobre o “cheiro doce
da arruda”. A arruda é uma planta aromática muito utilizada nos rituais
do Candomblé para afastar maus fluidos e assim abre tanto a canção
quanto o álbum do autor. É como se nesses segundos o mesmo estivesse
deixando energias ruins de fora desse momento e, ao mesmo tempo,
trouxesse tanto quem conhece a cultura do Candomblé (de matriz afri-
cana) para dentro dessa segurança quanto quem não a conhece.
Essa canção tem uma série de referências religiosas de origem cristã
(para além do candomblé). Há, assim, um verdadeiro sincretismo reli-
gioso como podemos ver no trecho seguinte, o segundo verso da músi-
ca, em que após se referir a arruda o autor rima com “buda”.
Mais adiante, no verso “Invado cela, sala, quarto”, o autor ao se
referir a invasão de todos os lugares faz questão de marcar a cela. A
cela, nesse contexto, é não só o local onde Jesus passou seus últimos
momentos (e a letra, nesse trecho, faz referência a Barrabás em “Nações
em declive na mão desse Barrabás”) como também ao encarceramento
em massa no Brasil que tem como maioria a população negra.
No trecho seguinte da música, de Fabiana Cozza, a letra vai di-
zer que “tudo que bate é tambor” e depois “tudo é África” e por fim
“enquanto a terra não for livre, eu também não sou”. Essa última fala
remete a escravidão e dialoga com a seguinte que chama para a prática,
para a ação, o ouvinte. Na seguinte “Enquanto ancestral de quem tá
por vir, eu vou”, esse verso chama para si a responsabilidade de agir no
agora. É um chamado para a militância em alguma medida pois ela se
completa com a ideia de “quer que eu tire de tu a dor”. Tirar a dor do
outro, na prática, é um ato performado pelos ancestrais e nesse trecho é
interessante pensar sobre como o artista entende a sua responsabilidade
social para com a dor dos que vem adiante.
Ao voltar para Emicida, temos mais algumas referências a escravi-
dão e a cultura negra como “cana de açúcar” e “gueto”. Nesse trecho é
854
importante perceber como o autor enuncia que “A rua é nóis”. Quem
seríamos nós? Seguindo uma interpretação lógica desse trecho, se “no
caminho da luz, todo mundo é preto” e o “nóis” da rua é “todo mun-
do”, podemos interpretar que “todo mundo é preto”. A letra dá sinais
dessa interpretação ao dizer, no mesmo trecho, “não julgue o playboy”.
É uma marca de Emicida esse tipo de pensamento, pois essa não é uma
luta contra o outro, é uma luta por igualdade. Há um chamado por
empatia.
Ademais, o autor, além dos recursos musicais, traz uma linguagem
com algumas gírias e com marcações específicas da fala, julgada por
muitos, de pessoas que estão à margem da sociedade. Esse recurso pare-
ce ser utilizado com o propósito de, mais uma vez, trazer o ouvinte para
dentro do ambiente que ele planeja mobilizar. “Só no que nóis ta vendo
memo”, “tudo que nóis tem é nóis”, “um sorriso ainda é a única língua
que todos entende”, “simbora que o tempo é rei” ou ainda “tio, gente é
pra ser gentil” demonstram essa intenção.
Emicida, em Principia, faz diversos movimentos para trazer o ou-
vinte para dentro da cultura periférica ao mesmo tempo que tenta apre-
sentar um viés de empatia, compreensão e harmonia com os problemas
enfrentados pela sociedade (em especial pela negritude). A potência
desta canção se encontra justamente em um chamado para um ativis-
mo positivo, ciente do tempo e espaço que ocupa, sem perder de vista
as dificuldades que o sincretismo religioso pode gerar (assim como as
diversas posições políticas do mundo trabalhadas na canção).
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858
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
859
has been increasing in the last years. Universities are improving the contact with
indigenous cultures, epistemologies and cosmovisions. Indigenous students
have been contributing to show indigenous languages, including indigenous
variety of Portuguese. It is in this context that indigenous Portuguese comes
into conflict with academic Portuguese, required in academia, a conflict
largely generated by the lack of knowledge about indigenous realities and
languages. Considering this issue, this work discusses some characteristics
of indigenous Portuguese and analyzes two master’s dissertations written by
indigenous candidates, in order to understand how this variety appears in
academic texts. The analysis is based in the assumptions of Applied Linguistics
which problematizes concepts such as languages and identities, central to the
discussion presented here, and seeks to understand the meanings that speakers
themselves construct about their languages. It is expected that the discussion
would contribute to understand how indigenous students uses their languages
in academic texts. It is argued that Applied Linguistics has contributed a lot to
the research about indigenous languages, inclunding Portuguese.
KEYWORDS: indigenous Portuguese; indigenous languages; Applied
Linguistics; university education.
Introdução
Em 2016, a Assembleia Geral da ONU – Organização das Nações
Unidas – proclamou o ano de 2019 como o Ano Internacional das
Línguas Indígenas. As discussões empreendidas durante esse ano tive-
ram como resultado a Resolução A/RES/74/135 (UNESCO, 2020),
que decretou o período de 2022-2032 como a Década Internacional
das Línguas Indígenas (doravante IDIL 2022-2032). A UNESCO –
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
– ficou encarregada de coordenar e centralizar as atividades da Década
que tem por objetivo chamar a atenção para a situação de perigo em que
estão as línguas indígenas ao redor do mundo e propor ações para pro-
mover e revitalizar essas línguas. Neste sentido, vem sendo construído
um plano global de ação, com intensa participação dos povos indígenas,
com a cooperação de organizações indigenistas, universidades, dentre
outros aliados das causas indígenas.
860
Do documento ‘Declaración de Los Pinos [Chapoltepek] –
Construyendo un Decenio de Acciones para las Lenguas Indígenas’
(2020), que recomenda princípios, orientações estratégicas e procedi-
mentos a serem adotados na construção do plano global para a Década,
saiu o lema “Nada para nós sem nós”, reivindicando a centralidade e
protagonismo indígenas, em todos os assuntos de seu interesse no decê-
nio. Considerando essas orientações, foram criados grupos de trabalho
(GT), coordenados por indígenas, com o intuito de fazer o plano global
e tomar outras providências para a realização da IDIL 2022-2032.
No Brasil, sob a coordenação da professora indígena Altaci Rubim
Kokama, da Universidade de Brasília, representante dos povos indíge-
nas brasileiros no GT UNESCO, foi criado o GT Nacional que se
subdivide em GT Línguas Indígenas, GT Línguas de Sinais Indígenas
e GT Português Indígena. As reuniões dos GT’s iniciaram-se ainda em
2021, durante a pandemia, com o intuito de elaborar o plano de ação
para o contexto indígena do Brasil. Em seguida, esse plano foi apresen-
tado e discutido em encontros regionais, tudo ainda de forma remota.
Como o documento está sempre em construção, a ideia é que ele seja
aprimorado ao longo do decênio.
Para contribuir com as ações e discussões que vêm sendo realizadas
no âmbito da Década, este trabalho faz uma reflexão sobre o português
falado por povos indígenas, enfocando a contribuição de linguistas apli-
cados. Espera-se favorecer uma maior compreensão do significado do
português indígena para os povos indígenas bem como incentivar sua
promoção e valorização.
861
Em um levantamento não exaustivo, foram encontradas pelo
menos cinco formas de nomear o português falado por indígenas: 1.
Português indígena (ABRAM DOS SANTOS, 2018; FERREIRA;
AMADO; CRISTINO, 2014; GORETE NETO, 2012, 2018;
MAHER, 1996); 2. Português étnico (AMADO, 2015; BRAGGIO,
2015; COSTA; RAZKY; GUEDES, 2020; FERREIRA, 2005); 3.
Português intercultural (NASCIMENTO, 2012); 4. Português de con-
tato (BONIFÁCIO, 2019; CAZUZA, 2021; EMMERICH, 1984;
LUCCHESI; MACEDO, 1997; PACHECO, 2005); 5. Português
segunda língua (ABRAM DOS SANTOS, 2011, 2005; GORETE
NETO, 2005; KOGA; SOUZA; AMADO, 2010; LIMA E SILVA,
2012), dentre outras. Todas essas formas de nomear são legítimas, mas
os povos indígenas têm debatido qual seria a definição que melhor visi-
biliza a especificidade do português indígena e consensuaram que essa
será uma tarefa para os próximos dez anos.
Uma outra estratégia que vem sendo utilizada é o uso da constru-
ção “português + povo” com o intuito de demonstrar a diversidade des-
se português, que varia conforme a realidade sociolinguística e cultural
de cada comunidade. Desta forma, ao invés de português indígena, ou
correlatos, são ditos: português Pataxó, português Xakriabá, português
Maxakali, dentre outros.
No que se refere à definição, em primeiro lugar, é preciso conside-
rar a ambiguidade que engendra o uso do português pelos povos indí-
genas: de um lado, língua imposta pela violência do contato; de outro,
língua ressignificada e apropriada para a luta pelos direitos.
Um trabalho seminal, que nos ajuda a compreender o que é o por-
tuguês indígena, é a tese de doutorado da linguista aplicada Teresinha
de Jesus Machado Maher, defendida na UNICAMP – Universidade
Estadual de Campinas – em 1996. A autora, cujo trabalho inspirou e
continua inspirando muitos outros sobre essa temática, em sua pesqui-
sa, observou o uso que povos indígenas do curso de formação de profes-
sores da Comissão Pró-Índio do Acre faziam da língua portuguesa e in-
formou “Parece estar havendo, entre os professores-índios em questão,
862
um processo, não de mera assimilação da língua portuguesa, mas de
uma apropriação, antropofágica, desta língua exógena, com o objeti-
vo de marcá-los como não cariú159.” (MAHER, 1996, p. 37). Maher
(1996, p. 37) descreve “A emergência e algumas particularidades de
um Português Índio utilizado para este fim, bem como a utilização da
língua dominante para o estabelecimento de uma identidade indígena
pan-étnica”.
A pesquisadora afirma ainda que “embora a língua portuguesa não
seja, tradicionalmente, vista como símbolo de identidade indígena, os
professores índios do projeto “Uma Experiência de Autoria” vêm utili-
zando, em suas práticas discursivas, uma variedade específica desta lín-
gua, através da qual constroem e sinalizam indianidade.” (MAHER,
1996, p. 182). As características deste português índio, de acordo com
Maher (1996, p. 208-209), referem-se ao fato de, ao usarem essa língua,
os indígenas “comportarem-se, sócio pragmaticamente, de modo dife-
renciado” e ainda de exibirem “comportamentos lexicais, morfológicos,
sintáticos e semânticos também particulares quando interagem em por-
tuguês”. A autora ensina que “Ao moldar a língua dominante para se
enunciar, o índio dela se apropria.” (MAHER, 1996, p. 210).
Desta forma, a língua portuguesa apropriada, ressignificada, indi-
genizada mostra marcas da memória das lutas, da construção coletiva
de saberes, das línguas ancestrais, das culturas e cosmovisões de cada
povo, marcas estas que aparecem na estrutura da língua, na organização
textual, no léxico, no discurso, conforme informam também outras lin-
guistas aplicadas, como Gorete Neto (2005, 2021) e Abram dos Santos
(2005, 2018). O português indígena é a língua para a luta pelos direitos
indígenas, face ao não indígena, e mais uma língua para a produção e
circulação de identidades e saberes indígenas (HALL, 1992; MAHER,
1996).
Mais recentemente, os estudos sobre o português indígena vêm
apresentando novas perspectivas, especialmente devido ao fato de que
159
Cariú é o termo utilizado pelos indígenas pesquisados para definir o não indíge-
na (cf. MAHER, 1996, p. 37)
863
pesquisadores indígenas estão, em suas investigações, demonstrando o
seu ponto de vista a respeito dessa língua. Uma dessas pesquisadoras é
Eunice Tapuia (doravante RODRIGUES, 2018). Ao investigar o por-
tuguês em uso pelo seu povo, Rodrigues (2018) define:
864
que pode influenciar na maneira como o texto é escrito. Ao analisar as
referidas dissertações, meu objetivo é mostrar que, mesmo com os as-
pectos apontados, as autoras indigenizam o português acadêmico, com
o uso do português indígena.
Correa Xakriabá (2018), em sua dissertação de mestrado intitulada
O barro, o genipapo e o giz no fazer epistemológico de autoria Xakriabá:
reativação da memória por uma educação territorializada, defendida na
Universidade de Brasília (UnB), inicia seu trabalho subvertendo a lín-
gua portuguesa já no título, ao escrever jenipapo com a letra ‘g’. A au-
tora explica esse uso da seguinte forma:
TRECHO 1
Faço opção por escrever genipapo com G e não com J. A grafia
com G me remete à nossa relação com G do Gerais, e sempre
que vou me apresentar faço questão de dizer que só conhece
bem Minas quem conhece o Gerais. Internamente, na nossa
língua, também nos reconheceremos mais na escrita com G,
foi assim que aprendi a escrever na escola a palavra genipapo.
(CORREA XAKRIABÁ, 2018, p. 40, nota de rodapé 4).
TRECHO 2
Aqui, lançamos mão de dois conceitos importantes, um deles
– já anunciado – é o amansamento, que é um conceito nati-
vo que meu povo utiliza para denominar a escola. Ao invés de
usar o conceito de reapropriação que é muito utilizado na an-
tropologia, recorremos o amansamento porque é um conceito
865
elaborado a partir da resistência de amansar aquilo que foi bra-
vo, que era valente, portanto, atacava e violentava a nossa cultu-
ra. Fizemos esta escolha porque o conceito reapropriação, em-
bora possa trazer um sentido próximo, não expressa o impacto,
a violência do que foi a chegada e o propósito de implantação
das escolas nos territórios indígenas. (CORREA XAKRIABÁ,
2018, p. 137).
TRECHO 3
A categoria ‘Pesquisadores Pataxó’, a princípio, foi um termo
apropriado que utilizei para designar os Pataxó, conhecedores
da escrita ou não, cujo papel é pesquisar, conhecer, registrar, na
escrita ou na memória, os conhecimentos do universo socio-
cultural e histórico do povo Pataxó, para contribuir no forta-
lecimento da cultura Pataxó, seja nas atividades desenvolvidas
dentro da comunidade ou em outros espaços. A condição de
ser ‘um pesquisador Pataxó’ não surgiu na academia, surgiu na
aldeia mesmo, no desejo de saber mais e registrar sobre sua pró-
pria história, tendo a preocupação de refletir e repassar, a partir
de ações, para os outros mais novos. Para a pesquisa não se tem
um método pronto, é um processo que vai sendo construído na
866
medida da necessidade e da dinâmica social vivida pelo povo
Pataxó. Porém, uma coisa eu sei que é certo: primeiro, ir até os
nossos intelectuais, os mais velhos e os mais experientes, para
aprender o que eles têm para nos ensinar e, junto com eles,
construir o melhor para nós. Foi nesse processo que surgiu o
grupo de pesquisadores Pataxó e foi assim que aprendi a ser uma
pesquisadora Pataxó também, antes de entrar na universidade.
(BOMFIM, 2012, p. 58).
Considerações Finais
Neste artigo, apresentei uma reflexão sobre o uso que povos indíge-
nas fazem da língua portuguesa. Procurei apresentar algumas definições
e características do português indígena e compreender o significado des-
ta língua para esses povos. Para isso, analisei duas dissertações de mestra-
do de autoria indígena, com o intuito de vislumbrar como o português é
mobilizado pelas autoras. Foi observado que as pesquisadoras indígenas
subvertem o modelo padrão do texto acadêmico “dissertação”, através da
867
construção de sentidos que podem ser considerados não usuais para cer-
tos vocábulos, da (re)escrita de grafias, da elaboração de novos conceitos
e categorias de análise de forma a transparecer a epistemologia indígena.
Por um lado, esses aspectos desafiam e aumentam a responsabili-
dade das universidades no que se refere à abertura para o entendimento
e reconhecimento do português indígena. Por outro lado, a estratégia
colonial de silenciamento das línguas indígenas pode se repetir, caso o
português indígena, que deve ser considerado como língua indígena,
não seja valorizado e promovido em contextos acadêmicos.
Algumas alternativas podem ser buscadas com o intuito de melho-
rar a recepção e o entendimento sobre o português indígena. Uma delas
é ampliar o conhecimento sobre a realidade sócio, histórica, cultural e
linguística indígenas. Há ainda no país uma ignorância bastante grande
sobre os povos indígenas, e isso também ocorre nas universidades.
Uma segunda possibilidade é admitir que as línguas indígenas, in-
cluído aqui o português indígena, estão sempre em conflito e disputa
com a língua majoritária. Neste sentido, o texto acadêmico deve ser
compreendido como um território em disputa pelos povos indígenas.
Docentes não indígenas devem se atentar para este aspecto, devem cons-
truir interações menos assimétricas, elementos estes que poderão favo-
recer a utilização do português indígena pelo universitário indígena.
Uma terceira alternativa é a escuta atenta aos povos indígenas pela
universidade. A presença indígena na academia vem se consolidando
e, com isso, novas teorias, epistemologias e metodologias necessitam
ser cocriadas com esses povos, uma vez que construtos cristalizados e
eurocentrados, característicos de boa parte da produção acadêmica, não
são suficientes para o entendimento da nova realidade na qual a univer-
sidade está inserida.
Para além disso, a entrada e a permanência de indígenas na universi-
dade devem ser garantidas através de políticas específicas de acolhimen-
to aos povos indígenas e, por conseguinte, à suas culturas e línguas. Isso
significa não só oportunizar a entrada de estudantes indígenas, em varia-
dos cursos, mas também garantir o financiamento de cursos específicos,
868
de moradia, transporte, alimentação e de todas as demais condições para
a permanência do indígena enquanto dure seu estudo. Também é ur-
gente que concursos públicos específicos para docentes indígenas sejam
realizados, haja vista que são ainda raros os professores indígenas em
universidades públicas brasileiras e que, assim, estudantes indígenas não
têm tido a oportunidade de se verem representados nos seus docentes e
nem de verem suas línguas faladas por professores universitários.
Por fim, em se tratando de qualquer língua indígena, somente a
garantia da demarcação da terra é que possibilita a vitalidade destas
línguas faladas pelos povos indígenas. Desta forma, a luta pelo território
indígena significa a luta pela saúde, pela educação e, principalmente,
pela sobrevivência física desses povos. Sem a terra demarcada não existe
vida e, portanto, sem vida não existem línguas faladas.
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872
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
RESSIGNIFICAÇÃO E RESISTÊNCIA NO
SINTAGMA “DISTANCIAMENTO SOCIAL”:
UMA ANÁLISE DISCURSIVA SOBRE A LUTA
PELOS SENTIDOS EM TEMPOS DE COVID-19
NO BRASIL 160
873
como uma realidade material, compreendemos o discurso analisado como um
grito de socorro dos sujeitos que estão representados nas estatísticas da FAO
sobre o agravamento da insegurança alimentar no período pandêmico.
PALAVRAS-CHAVE: Análise de discurso. Covid-19. Desigualdade social.
Resistência e ressignificação.
874
máscaras, à higiene adequada e constante das mãos – evitando o toque
nos olhos, nariz e boca –, e também, ao distanciamento físico.
Essa última medida de proteção, de acordo com as orientações sa-
nitárias, é caracterizada pelo seguinte padrão: “Manter, pelo menos, 1
metro de distância entre si e os outros para reduzir o risco de ficar infec-
tado quando as outras pessoas tossem, espirram ou falam. Manter uma
distância ainda maior entre si e os outros, quando se encontrar num
ambiente fechado. Quanto mais longe, melhor”161 (OMS, 2020).
Frisarmos que o sintagma utilizado pela Organização Mundial de
Saúde, quanto ao necessário afastamento para evitar a contaminação e
a transmissão da Covid-19, é “distanciamento físico”. No Brasil, quan-
do tais medidas foram discursivizadas em documentos institucionais
oficiais162 e em meios de comunicação, o sintagma produzido é “distan-
ciamento social”163.
Um dos aspectos que emergiu nas práticas sociais no contexto da
crise sanitária foi o acirramento da luta de classes no âmbito da saúde
pública, da luta pela sobrevivência diante da possibilidade de contami-
nação pelo Coronavírus, especialmente, quando estão em jogo, nes-
sa disputa, os direitos fundamentais, a dignidade humana. Ao mesmo
tempo, esse acirramento abriu espaço para a retomada da própria com-
preensão da divisão material da sociedade no âmbito econômico, uma
vez que a crise da saúde pública global veio acompanhada de uma crise
econômica.
161
Disponível em:
<https://www.who.int/pt/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/advi-
ce-for-public?gclid=CjwKCAjwsNiIBhBdEiwAJK4khvZfIOkqnTophllk8PVy-
TGgcu-uRlAenpwJjQIcpjVLJ9GSG5J50XhoCiQoQAvD_BwE>.
162
A título de exemplo, podemos citar os seguintes documentos oficiais: Nota téc-
nica nº 04/2020 da Anvisa; informativos oficiais do Senado; Portaria Conjunta
nº 20, de 18 de junho de 2020, do Ministério da Economia/Secretaria Especial
de Previdência e Trabalho.
163
Para exemplificar o uso da expressão em pauta, remetemos o leitor às seguintes
notícias: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-53343977>;<https://g1.glo-
bo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/06/05/oms-divulga-novas-orienta-
coes-para-uso-e-fabricacao-de-mascaras-de-pano-contra-a-covid-19.ghtml>.
875
Sendo assim, a pandemia trouxe para os discursos em circulação
social discussões sobre vulnerabilidade em todas as esferas da vida hu-
mana, em especial, econômica, posto que impactou no acesso aos bens
de consumo mais básicos. Neste cenário, voltamos a falar sobre fome,
sobre insegurança alimentar, sobre aumento da miséria, sobre agrava-
mento de distâncias sociais das mais diversas ordens.
Diante de nosso objeto de análise, então, nosso olhar retoma a re-
lação distanciamento social e desigualdade social, tendo em vista, es-
pecialmente, o chamado Mapa da Fome das Nações Unidas como um
indicador da desigualdade e exclusão social de uma parcela (cada vez
maior) da população no acesso e fruição de direitos humanos básicos
para uma existência digna.
No final de 2021, a Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e Agricultura (FAO) publicou “Panorama de la Seguridad
Alimentaria y la Nutrición en América Latina y el Caribe: estadísticas y
tendendias” (FAO, 2021). Neste relatório, a ONU alerta para o severo
agravamento da fome164:
164
Para compreender a noção de insegurança alimentar, pedimos licença e trazemos
as definições da FAO: “ La inseguridad alimentaria moderada describe una
situación en la que la capacidad de una persona para obtener alimento está so-
metida a ciertas incertidumbres, y se ha visto obligada a reducir, a veces a lo largo
de un año, la calidad y/o cantidad de la comida que consumen debido a la falta
de dinero o de otros recursos. Por otra parte, la inseguridad alimentaria grave,
refiere a un escenario en que a una persona lo más probablemente se le acabó la
comida, padece hambre y, en su versión más extrema, lleva días sin alimentarse,
poniendo su salud y bienestar en gran riesgo” (FAO, 2021, p. 46, grifamos).
876
Entre 2019 y 2020, la prevalencia del hambre en América Latina
y el Caribe aumentó en 2 puntos porcentuales, lo que significa
que 13,8 millones de personas más sufrieron hambre que
en 2019. En el mismo período, el aumento de la inseguridad
alimentaria moderada o severa fue aún más pronunciado, con 9
puntos porcentuales. El 41% de la población de la región pa-
dece inseguridad alimentaria moderada o severa, lo que se
traduce en 267 millones de personas cuyo derecho humano
a la alimentación se ve afectado (FAO, 2021, p. V, grifamos).
877
Diante do que nos inquieta, então, em textos distintos165, já pro-
pomos pensar sobre os sentidos acerca da Covid-19, na medida em que
defendemos, a partir de nossas análises, que a pandemia pode, sim, pro-
vocar consequências distintas para cada polo de relações sociais dicotô-
micas, em uma sociedade cuja estrutura material é dividida em classes.
No presente trabalho, ao tomarmos como objeto de análise central a
referida expressão, propomos pensar sobre: como a luta pelos sentidos
pode ser compreendida a partir do sintagma “distanciamento social”?
Por fim, entendemos que neste exercício analítico emergem ques-
tões que evidenciam a relação entre Linguagem e Direitos Humanos (ou
fundamentais). O discurso mostra-se uma das arenas em que é possível
observar, compreender e analisar o modo como circulam socialmente
saberes acerca dos direitos mais elementares para a existência humana,
bem como seus processos de significação.
878
Esse é um dos enunciados que se propagou nas redes sociais166, sen-
do repetido a cada vez que as medidas de prevenção à disseminação e
contágio por Covid-19 eram repercutidas. Ao tomá-lo como objeto de
análise, buscamos compreender os processos discursivos que atribuem
sentido a uma classe social que, por sua vez, são parte do funcionamen-
to imaginário da sociedade brasileira e fazem emergir o caráter exclu-
dente dessa formação social.
Distinguindo compreensão de interpretação, conforme ensinamen-
tos de Orlandi (2012), ao nos aproximarmos do nosso objeto de análise,
atentamos para a primeira parte desta oração - “Distanciamento social
sempre existiu” (grifamos) - em que o sintagma, usualmente atrelado
aos discursos sobre a Covid-19, é utilizado no fio do discurso acompa-
nhado de uma sequência que traz um advérbio e um verbo (sempre e
existir, respectivamente), formando um enunciado de caráter afirmativo.
Tal formulação, assim proposta, indica uma determinada posição-sujeito
em relação às condições materiais de produção da sociedade brasileira.
O advérbio de tempo “sempre” que caracteriza/modifica o verbo
que o precede, “existiu”, sinaliza, pela leitura que fazemos, que embora
o sintagma tenha agora recebido visibilidade e repercussão quando rela-
cionado à crise sanitária, o sentido que também produz não se trata de
uma novidade na realidade social brasileira no que tange aos aspectos
sociais e econômicos. Nessa leitura, o termo “sempre” funciona no nível
intradiscursivo como um operador que reforça e intensifica a ideia de
que o “distanciamento social” entre os sujeitos brasileiros existe, ou seja,
trata-se de uma realidade material já vivenciada e já conhecida por uma
parcela da sociedade (apesar do índice de pobreza e de desemprego ter
aumentado consideravelmente em tempos de Covid-19).
166
O enunciado em análise circulou intensamente nas redes sociais no segundo
semestre de 2020 e, em outubro daquele ano, tornou-se notícia em diferentes
veículos eletrônicos de comunicação após ser publicado em uma rede social no
perfil de um sujeito famoso. Dessa forma, nosso objeto de análise encontra-se
online em uma conta privada nas redes sociais, mas em um contexto público de
circulação de dizeres através de meios de comunicação. Ressaltamos que não é
considerado, nos pressupostos da AD, o sujeito empírico que o publicou.
879
O advérbio marca, no fio do discurso, a existência passada e pre-
sente daquilo que é representado no/pelo sintagma precedente (distan-
ciamento social), por meio da retomada de um discurso que nega a
existência de diferenças sociais de classe. O uso do tempo verbal no
pretérito perfeito do modo indicativo, em “existiu”, complementa o
efeito de sentido sobre uma realidade concreta e factual em relação à
ação (existir), evidenciando a posição do sujeito enunciador.
Nessa perspectiva, “distanciamento social” move-se para outra ma-
triz de sentido que faz o sintagma funcionar discursivamente como pos-
sibilidade parafrástica para a expressão “exclusão social”, por exemplo.
Também, no eixo parafrástico, podemos pensar em possibilidades de
paráfrase como: distanciamento social/ desigualdade social/ exclusão
social. Instaura-se, portanto, uma relação metafórica entre os referidos
sintagmas. Ou, conforme Indursky:
880
esta que sustenta e reforça o imaginário e sentidos já instaurados pelos
elementos anteriores: esse é o Brasil que existe e sempre existiu, aqui
distanciamento social não é uma novidade trazida pela Covid-19, pois,
essa recomendação da OMS é uma prática que ocorre há muito tempo,
mas, por outras razões que são denunciadas nessa discursividade.
Dessa forma entendido, os efeitos de sentido que até hoje nos sub-
metem ao “distanciamento social” são os que silenciam a historicidade
da sociedade dividida em classes. Sentidos que circulam socialmente
dissimulando a desigualdade social estrutural e, no contexto da pande-
mia, buscam minimizar as diferenças de classe na prevenção e proteção
contra os riscos sanitários decorrentes da Covid-19 - e na sobrevivência
às crises sociais. E, então, ao observarmos práticas sociais e discursivas
como esta em análise, atentamos para o seu funcionamento como um
gesto de resistência, denunciando as diferenças de classe, que são deter-
minantes para a sobrevivência, para a proteção à saúde dos sujeitos das
classes vulneráveis.
Atentando para o texto como um todo, observando os elementos
verbais e não-verbais que o compõem, é apresentada a imagem de um
lugar desfavorecido economicamente cuja estrutura encontra-se destru-
ída, com tijolos e canos de saneamento aparentes, materializa a situação
vivida por parte dos brasileiros. E somada, portanto, ao nível linguís-
tico, a dimensão imagética reforça as questões sociais relacionadas à
pobreza, à desigualdade, à exclusão e ao abandono de alguns espaços
públicos por parte do Estado. E, repetimos, isto nos permite ler essa
discursividade em consonância com o relatório da FAO sobre segurança
alimentar e nutrição no período pandêmico.
Esse funcionamento discursivo ancorado na repetição remete-nos,
logo, às bases teóricas da AD, pois o sintagma em pauta, ao desestabi-
lizar o processo de saturação/regularização de sentidos por nós salienta-
do, torna-se outro167. Orlandi (2012) ao tratar das relações de sentido,
167
A esse respeito, vale retomar Pêcheux (2008 [1983]): “todo enunciado é intrinse-
camente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discur-
sivamente de seu sentido para derivar para um outro (a não ser que a proibição
881
acentua que é pelo funcionamento do interdiscurso que a exterioridade
é inscrita no próprio interior da textualidade. Nesse ponto, recorremos
a Indursky, ao refletirmos sobre a noção de memória no âmbito da AD,
quando a autora ressalta que
882
produção de sentido é uma questão de determinação ideológica, de
relações com a exterioridade, com o interdiscurso. O sentido, nessa
perspectiva a qual nos filiamos, não é apenas um produto da língua
enquanto estrutura, é efeito, um processo resultante da língua enquanto
estrutura, mas, também, como fato social que se realiza na interseção do
histórico e do ideológico.
Além disso, considerando os dados da FAO sobre insegurança
alimentar no período de 2019 a 2021, podemos ler esse sintagma e
compreender que uma parcela da população sobrevive à emergência
de saúde pública global e, também, à fome (ou vivendo a insegurança
alimentar). Entendemos, ainda, que o gesto de resistência em tela reto-
ma as relações de dominação/subordinação que estruturam a sociedade
brasileira.
Com nossa análise, compreendemos que confrontar o sentido de
“distanciamento social” como medida de proteção de saúde (saturado e
dominante) com o sentido de exclusão social (ressignificação, resistên-
cia e denúncia) mostra como a língua é, também, arena política para
a luta de classes, para a luta pela sobrevivência, para a luta pelos senti-
dos. Por isso, também lemos tais movimentos discursivos de repetição
e de ressignificação como um grito de socorro de sujeitos socialmente
invisibilizados.
Considerações finais
Neste gesto de análise, observamos, com amparo teórico em Orlandi,
“o fato de que há um repetível que retorna indefinidamente nessa pro-
dução de sentidos” (1990, p. 242). No movimento discursivo de ressig-
nificação do sintagma “distanciamento social” a partir de outro processo
discursivo e outra matriz de sentido, irrompem efeitos que evidenciam
a relação entre saúde e classe social, denunciando que a saúde pública
não deve ser significada de modo igual para toda a população brasileira,
pois o direito à saúde não é uma realidade material que se apresenta de
modo igual para todos (entre tantos outros direitos fundamentais). Para
alguns, pois, a crise sanitária foi/é vivida junto com a fome.
883
A repetição instaurada a partir do eixo polissêmico, como gesto
de ressignificação, resistência e denúncia, ao demarcar a luta pelos sen-
tidos, evidencia que distanciamento social produz sentidos diferentes
conforme a classe social dos sujeitos. Para classes sociais vulneráveis eco-
nomicamente, distanciamento social produz sentidos que vão muito
além da crise sanitária e, assim, podemos perceber que “é aí que os
sentidos se dividem inexoravelmente”, tal como propõe Orlandi (1990,
p. 239), uma vez que “podem ser muito diferentes se recortamos as
histórias em diferentes perspectivas do contar” (p. 239).
Assim, “distanciamento social” passa a remeter não apenas às
questões de saúde pública em jogo no cenário político atual, mas tam-
bém à desigualdade social em seus aspectos mais graves que limitam
o acesso aos direitos humanos elementares para a subsistência digna.
Considerando a crise humanitária decorrente da Covid-19, sobretudo
a fome como uma realidade material, compreendemos o discurso anali-
sado como um grito de socorro dos sujeitos que estão representados nas
estatísticas da FAO sobre insegurança alimentar.
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886
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
887
PALAVRAS-CHAVE: Avaliação. Formação de professores. Inteligibilidade.
Língua inglesa. Proficiência oral.
ABSTRACT: This study examines the production of the sound [ɫ] in 53 oral
production samples of in-service and pre-service English teachers with the
aim of suggesting improvements for the pronunciation assessment criteria in
the EPPLE (Proficiency Examination for Foreign Language Teachers) oral
test, as well as contributing to the phonological education of English teachers
in the Brazilian context. As a complementary source of data, a questionnaire
was administered to English teachers in order to obtain information about
their perceptions of the sound [ɫ]. Previous studies have indicated that
Brazilian English learners tend to substitute [w] for [ɫ] (BARATIERI, 2006;
RODRIGUES, 2014). However, this production pattern does not affect
intelligibility (JENKINS, 2000) and is also common in many varieties of
English (JOHNSON & BRITAIN, 2007; DURIAN, 2008). According to
the analysis of the oral production samples, which was conducted on the Phon
software, [ɫ] was substituted with [w] in 51% of occurrences. The analysis of
the data obtained via the questionnaire suggests that the teachers are unaware
of the main articulatory characteristics of the sound [ɫ].
KEYWORDS: Assessment. Teacher education. Intelligibility. English. Oral
proficiency.
1. Introdução
Este trabalho dedica-se a expor um recorte da pesquisa de mes-
trado intitulada “A flexibilização da pronúncia dos sons /θ/, /ð/ e [ɫ]:
implicações para o teste oral do EPPLE e para a proficiência oral do
professor de língua inglesa no contexto brasileiro”, a qual encontra-se
em andamento (CIALDINI, em andamento) sob a orientação do Prof.
Dr. Douglas Altamiro Consolo, da UNESP (campus de São José do
Rio Preto). Tendo em vista a extensão da pesquisa e os limites pré-es-
tabelecidos para a redação e a apresentação deste trabalho, optou-se
por apresentar os dados referentes a apenas um dos sons focalizados no
estudo supracitado.
A ideia de analisar a produção do som [ɫ] em falas de (futuros)
professores de LI (doravante LI) advém da observação da existência de
888
dificuldades entre aprendizes e professores brasileiros em relação à pro-
núncia desse segmento.
Esta investigação vem sendo conduzida no escopo do EPPLE
(Exame de Proficiência para Professores de Línguas Estrangeiras) e tem
como objetivos: sugerir aprimoramentos para os critérios de avaliação
das faixas de proficiência analíticas do aspecto “pronúncia” do referi-
do exame (OLIVEIRA, 2021)168, assim como contribuir para encami-
nhamentos para a formação fonológica do professor de LI no contexto
brasileiro.
O EPPLE se propõe a avaliar a proficiência linguístico-comuni-
cativa-pedagógica do (futuro) professor de LI nas quatro habilidades
linguísticas (compreensão oral, compreensão escrita, produção oral e
produção escrita), com o objetivo impactar positivamente as diretrizes
que norteiam os cursos de Licenciatura em Letras, uma vez que são evi-
dentes as lacunas na formação de professores de línguas estrangeiras no
Brasil (CONSOLO & TEIXEIRA DA SILVA, 2014).
Este artigo encontra-se organizado em sete seções. Nesta seção in-
trodutória, foram apresentados os objetivos da pesquisa, assim como
uma justificativa pela escolha do tema. As seções 2, 3 e 4 contêm a
fundamentação teórica que embasa este trabalho: as características do
som [ɫ], estudos anteriores que investigaram a produção deste som em
falas de aprendizes brasileiros de LI, a abordagem do som [ɫ] à luz da
inteligibilidade e do inglês como língua franca e a produção deste
segmento em variantes da LI. Em seguida, nas seções 5 e 6, apresentam-
-se a metodologia da pesquisa e os resultados obtidos, respectivamente.
Por fim, a seção 7 traz uma discussão baseada na análise dos dados.
889
variantes da LI consideradas como “padrão” (CARR, 2013). No tocante
ao português brasileiro, esse fenômeno é restrito à poucas localidades da
região sul do Brasil. Nas demais regiões do país, a realização deste fone-
ma em final de sílaba é predominantemente vocalizada, ou seja, como
[w] (COLLISCHONN & QUEDNAU, 2009).
Por se tratar de um alofone do fonema /l/, se faz necessário discorrer
sobre as características de ambos os sons. A consoante /l/ é produzida
por meio de uma articulação alveolar. Durante a sua produção, a ponta
da língua toca o cume posterior dos dentes superiores ou dos alvéolos,
obstruindo a corrente de ar na linha central do trato vocal, enquanto
o ar é expelido pelas laterais da língua. Portanto, esse som é deno-
minado “consoante lateral” (SILVA, 1998). Quando a esse processo é
acrescentada uma articulação dorsal, que corresponde ao levantamento
do dorso da língua em direção ao véu palatino, o fonema /l/ realiza-se
com o alofone [ɫ] (SILVA, 1998). Essa articulação dorsal denomina-se
“velarização”. No entanto, segundo Carr (2013) e Sproat e Fujimura
(1993), a articulação dorsal pode consistir em apenas uma retração e ao
abaixamento do dorso da língua, ao invés da velarização.
Em suma, a produção do fonema /l/ ocorre por meio de uma úni-
ca articulação – a alveolar –, enquanto a produção do seu alofone [ɫ]
envolve duas articulações – a alveolar e a dorsal, também denominadas
“primária” e “secundária”, respectivamente (SILVA, 1998).
Quanto à sequência das articulações, White, Gananathan e
Mok (2017) afirmam que a articulação secundária precede a articu-
lação primária. Porém, para Silva (1998), as articulações ocorrem
concomitantemente.
Frente à essas considerações, podemos ponderar que as peculia-
ridades envolvidas na produção do som [ɫ] favorecem a existência de
características inerentes a cada falante. Segundo Ladefoged e Johnson
(2011), por exemplo, é comum que alguns falantes dobrem o corpo da
língua para trás ao produzir esse segmento, o que provoca um apaga-
mento do traço consonantal (articulação primária).
890
3. Estudos anteriores: a produção do som [ɫ] por brasileiros
Baratieri (2006) e Rodrigues (2014) analisaram a produção da
consoante lateral velarizada [ɫ] entre aprendizes brasileiros de LI. Em
ambos os estudos, os dados foram coletados por meio de produções
controladas e examinados por meio da análise acústica.
O estudo de Baratieri (2006) contou com vinte participantes de
nível avançado. Os resultados obtidos a partir da análise de 2.134 itens
lexicais revelaram três padrões de produção: (i) totalmente vocalizado
em 35,5% das produções; (ii) não-vocalizado (isto é, equivalente à pro-
dução do som /l/ em início de palavras); (iii) parcialmente vocalizado
em 61,8% das ocorrências (ou seja, foram observadas ambas as articula-
ções primária e secundária, porém com a presença de arredondamento
dos lábios). Segundo o pesquisador, este último padrão de produção se
aproxima, mas não caracteriza a maneira como o som [ɫ] é produzido
pelos falantes nativos da LI, devido à presença do arredondamento dos
lábios.
Rodrigues (2014) analisou a produção do som [ɫ] em 288 palavras
produzidas por doze aprendizes de LI de níveis básico e avançado. Os re-
sultados gerais indicam a produção do som [ɫ] em 43% das ocorrências,
enquanto a sua substituição pela semivogal [w] foi observada em 57%
dos casos. Considerando os resultados de acordo com os níveis de
proficiência, a autora concluiu que: (i) os aprendizes de nível iniciante
apresentaram um maior índice de produções vocalizadas [w] (88%);
(ii) os aprendizes de nível avançado apresentaram um maior índice de
produção do som [ɫ] (78%).
891
da mesma língua materna. O LFC divide-se em duas categorias: Core
features (características essenciais para uma comunicação inteligível) e
Non-core features (características que não contribuem para uma comu-
nicação mais inteligível). A consoante lateral velarizada [ɫ] é um dos
três sons consonantais presentes no segundo grupo.
Segundo Jenkins (2000), é aceitável a substituição do som [ɫ] por
[w]. Além de se apoiar em evidências empíricas de que essa substituição
não compromete a inteligibilidade169, Jenkins (2000) fundamenta a sua
posição no princípio learnability-teachability. Esse conceito está relacio-
nado à viabilidade de aprendizagem caso um aspecto da pronúncia seja
ensinado em sala de aula. Além da demonstração da articulação do som
[ɫ] ser demasiadamente difícil para os professores, Jenkins (2000) a
considera pedagogicamente irrelevante, pois a sua substituição por [w]
está se tornando cada vez mais comum no inglês britânico devido à
influência do Estuary English. Trata-se de uma variante originária da
cidade de Londres, cujas características, dentre as quais se destaca a
vocalização do /l/, vêm se irradiando pelo país e ocasionando mudanças
na Received Pronunciation, a variante considerada como “padrão” na LI
(JENKINS, 2000).
Outrossim, a substituição de [ɫ] por [w] é comum na variante
African American Vernacular English (AAVE), do inglês americano, a
qual se encontra presente principalmente nas cidades de Nova York e
Philadelphia e nos estados de Ohio e Pennsylvania (DURIAN, 2008).
Austrália, Nova Zelândia e Ilhas Falkland são outras localidades nas
quais esse fenômeno é recorrente, conforme afirmam Johnson e Britain
(2007).
5. Metodologia da pesquisa
Nesta pesquisa, a produção do som [ɫ] em falas de licenciandos em
Letras foi analisada em 53 amostras de desempenho oral provenientes
169
Neste trabalho é adotado o conceito de inteligibilidade proposto por Munro e
Derwing (1995, p. 76, tradução minha): “a medida em que um enunciado de
um falante é realmente compreendido por um ouvinte”.
892
de dois corpora: (i) 29 gravações do teste oral do EPPLE170 referentes
à aplicação do exame em 2015 e em 2017. O tempo de cada gravação
varia entre quatro e oito minutos; (ii) e 24 gravações de aulas de uma
disciplina de LI de um curso de Letras de uma universidade pública
paulista. As aulas foram ministradas entre os anos de 2020 e 2021. Nos
trechos selecionados para transcrição e análise, cuja duração média é de
30 minutos, os alunos apresentam seminários na língua-alvo.
O software Phon (ROSE, 2020), disponibilizado gratuitamente
pelo projeto Talk Bank, foi utilizado para a transcrição e coleta de dados
das gravações. Dentre os principais recursos disponibilizados pelo Phon
destacam-se a realização de transcrição ortográfica, a geração automáti-
ca de transcrição fonética e a geração de relatórios acerca dos segmentos
produzidos.171
O reconhecimento da realização do som [ɫ] foi realizado de forma
exclusivamente auditiva. Como critério, estabeleceu-se que cada
segmento de fala fosse ouvido por, no mínimo, três vezes. Após esse
processo de análise, foram gerados, no software Phon, relatórios referen-
tes à produção do som [ɫ] no âmbito de cada corpus. Posteriormente,
as informações dos relatórios foram exportadas para o Excel, no qual
conduziu-se a junção dos dados de ambos os corpora e a geração dos
dados quantitativos.
Esta investigação ainda conta com a aplicação de um questioná-
rio que visa a geração de dados quantitativos e qualitativos acerca das
170
O teste oral do EPPLE é composto por 5 tarefas: na tarefa 1, o candidato fala
sobre as suas experiências acadêmicas e suas experiências como aprendiz de LI;
a segunda tarefa consiste em uma produção oral baseada em duas gravuras que
ilustram situações típicas de sala de aula; a tarefa 3 divide-se em compreensão e
produção oral: o candidato responde a questões de múltipla escolha após assistir
a um vídeo e, em seguida, emite a sua opinião sobre o assunto; a tarefa 4, por sua
vez, consiste numa simulação de uma situação típica de sala de aula: o candidato
deve fornecer instruções, a uma turma fictícia, sobre como realizar uma determi-
nada atividade; por fim, na tarefa 5, é solicitado ao candidato que esclareça uma
dúvida gramatical de um aluno fictício.
171
Maiores informações sobre o projeto Talk Bank e sobre o Phon encontram-se nos sites
https://talkbank.org/ e https://www.phon.ca/phon-manual/getting_started.html.
893
percepções de professores de LI em relação ao som [ɫ]. Por se tratar
de uma fonte complementar de dados, espera-se que esse instrumento
proporcione um enriquecimento das reflexões acerca da formação
fonológica dos professores de LI no contexto brasileiro.
O questionário é composto por 20 questões172 e é aplicado via
Google Formulários. Antes de responde-lo, é solicitado aos partici-
pantes que leiam e preencham um Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido.
Até o momento de escrita deste trabalho, obteve-se retorno de ape-
nas sete respondentes. Todos eles são professores de LI em exercício,
com tempo de experiência profissional que varia entre menos de cinco
anos e mais de 15 anos. Coincidentemente, dois respondentes do ques-
tionário também tiveram as suas falas analisadas nesta investigação.
6. Resultados
O gráfico 1, a seguir, ilustra a produção da consoante lateral ve-
larizada [ɫ] em todas as amostras analisadas nesta investigação. Foram
analisadas 3.077 ocorrências deste som.
Gráfico 1:
Fonte: A autora.
172
O questionário aborda os sons /θ/, /ð/ e [ɫ]. Porém, neste trabalho, serão apresen-
tados somente os dados obtidos das respostas às questões referentes ao som [ɫ].
894
De acordo com o gráfico 1, a produção do som [ɫ] como segmento
exclusivamente vocalizado foi constatada em 51% das ocorrências. A
sua produção de maneira igual ou semelhante às variantes “padrão” da
LI – Received Pronunciation e General American English – foi constatada
em 34% das ocorrências. Essas produções são consideradas “semelhan-
tes” às variantes padrão pois, embora a articulação primária tenha sido
detectada, também foi observado o arredondamento dos lábios, assim
como no estudo de Baratieri (2006). A sua realização como consoante
lateral /l/ foi observada em 1% das ocorrências de fronteiras de palavras,
ou seja, em ocasiões nas quais há a junção do /l/ em posição final de
uma palavra com um som vocálico em posição inicial na palavra se-
guinte, um fenômeno também recorrente entre os falantes nativos da LI
(LADEFOGED & JOHNSON, 2011). O reconhecimento do padrão
de produção desse som não foi possível em 14% das ocorrências.
Passa-se, agora, à interpretação dos dados obtidos por meio da apli-
cação do questionário.
Apenas dois respondentes, R3173 e R7, declararam nunca ter recebi-
do instrução formal sobre a pronúncia do som [ɫ].
No que diz respeito às suas percepções em relação à pronúncia do
som [ɫ], quatro respondentes afirmam não ter dificuldades ao pronun-
ciá-lo. Apenas R3 informa que nunca se atentou às características desse
som, ao passo que R5 admite ter dificuldades ao pronunciá-lo e, por-
tanto, acredita que não o faz com naturalidade.
Na última pergunta do questionário é solicitado que o respondente
discorra sobre a articulação do som [ɫ] a um aluno hipotético. Embora
trate-se de uma questão aberta, suas respostas encontram-se organiza-
das em um quadro devido ao emprego de uma metodologia segundo
a qual os dados qualitativos são transformados em dados quantitativos
(NUNAN, 1992).
173
Visando preservar o anonimato dos respondentes, atribuiu-se a cada indivíduo
uma sigla composta pela letra “R”, referente a “respondente”, e a um número,
referente à sua ordem de participação na pesquisa.
895
Quadro 1: Descrição da articulação do som [ɫ]
pelos respondentes do questionário.
R1 R2 R3 R4 R5 R6 R7
Articulação primária: a ponta da língua
toca o cume posterior dos dentes superiores X X
(SILVA, 1998)
Articulação primária: a ponta da língua
X
toda o céu da boca (SILVA, 1998).
Articulação secundária: levantamento do
dorso da língua em direção ao véu palatino
(velarização) (SILVA, 1998).
Articulação secundária: retração ou abaixa-
mento do dorso da língua (CARR, 2013;
SPROAT & FUJIMURA, 1993).
Sequência das articulações.
A língua se dobra (LADEFOGED &
X X
JOHNSON, 2011).
O ar é obstruído na porção central do trato
vocal (SILVA, 1998).
O ar escapa pelas laterais da língua (SILVA,
X
1998).
Não saberia como explicar. X
Resposta não aplicável. X X
Fonte: A autora.
896
É relevante destacar que R5 e R6, em suas respostas, expressam
suas dificuldades em relação à demonstração da pronúncia desse som.
R6 reconhece que não saberia fazê-lo, enquanto R5 revela que se esse
fonema é um desafio para ele. Cabe aqui uma observação importante:
ambos os respondentes são os que possuem o maior tempo de expe-
riência profissional declarada entre os participantes (mais de 15 anos).
Além disso, ambos declararam já ter recebido instrução formal sobre a
pronúncia desse som.
Coincidentemente, os respondentes R3 e R7 tiveram suas falas ana-
lisadas nesta investigação. Sendo assim, os dados obtidos a partir da aná-
lise das suas falas são correlacionados às suas respostas ao questionário.
Na figura 1, a seguir, é possível observar um resumo da produção
do som [ɫ] por R3.
Fonte: A autora.
897
No questionário, R3 declara nunca ter recebido instrução formal
em relação à pronúncia do som [ɫ]. Apesar de já ter tido uma curta
experiência (4 meses) de imersão em um país onde a LI é língua cor-
rente, esse respondente diz nunca ter se atentado às características dessa
pronúncia. Em relação à descrição das características articulatórias do
som [ɫ], R3 apenas diz que “a ponta da língua deve ir ao céu da boca”.
Na figura 2, a seguir, encontra-se um resumo da produção do som
[ɫ] na fala de R7.
Fonte: A autora.
898
segmentais observados nas suas falas caracterizam-se como ameaçadores
à inteligibilidade. A título de exemplo, R3 pronuncia a palavra bachelors
como [ˈbeɪʃəlɚz] em vez de [ˈbæʧəlɚz].
7. Discussão
Diante da análise das amostras de desempenho oral de (futuros)
professores de LI e da fundamentação teórica apresentada, conclui-se
que a substituição de [ɫ] por [w] não compromete a inteligibilidade
nas falas analisadas e não representa um erro de pronúncia, uma vez
que se trata de um fenômeno recorrente em variantes da LI. Isto pos-
to, é possível afirmar que há uma “flexibilização” da pronúncia desse
segmento. Desse modo, sugere-se que essa substituição não seja tratada
como um desvio segmental na avaliação da pronúncia no teste oral do
EPPLE.
Levando em consideração a análise dos dados obtidos por meio do
questionário, conclui-se que os professores de LI possuem um escasso
conhecimento sobre a articulação do som [ɫ]. Entretanto, é importante
esclarecer que o baixo número de respondentes é uma limitação que nos
impede de fazer generalizações.
Embora a BNCC (BRASIL, 2018) defenda um rompimento com
aspectos relativos à “correção” e proponha que os usos locais da LI não
sejam tratados como exceções, não se faz menos necessário o conheci-
mento, por parte do professor, sobre a produção do som [ɫ] nas varian-
tes “padrão”. A pronúncia do professor de LI é, na maioria das vezes,
a única fonte de insumo (oral) acessível aos alunos (CONSOLO &
BORGES-ALMEIDA, 2011) e, portanto, faz-se necessário que o pro-
fessor tenha o conhecimento sobre a produção dos sons nas variantes
da LI consideradas como “padrão” caso tenha de explicá-la aos alunos.
Considerando-se a fundamentação teórica, os dados e a discussão
apresentados neste artigo, recomenda-se que a fonética e a fonologia
da LI sejam enfatizadas nos cursos de Licenciatura em Letras tendo em
vista a perspectiva da inteligibilidade e a heterogeneidade da pronúncia
da LI.
899
Referências
BARATIERI, J. P. Production of /l/ in the English coda by Brasilian EFL learners: an
acoustic-articulatory analysis. Dissertação (Mestrado em Letras/Inglês e Literatura
Correspondente). Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2006.
CIALDINI, M. M. A flexibilização da pronúncia dos sons /θ/, /ð/ e [ɫ]: implicações para o
teste oral do EPPLE e para a proficiência oral do professor de língua inglesa no contexto
brasileiro. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada: Ensino e Aprendizagem de
Línguas). São José do Rio Preto: Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas –
Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP), em andamento.
900
NUNAN, D. Research methods in language learning. Cambridge: Cambridge University
Press, 1992.
ROSE, Y. Using Phon to analyze phonological and speech data: an overview. In:
FANGFANG, L.; POLLOCK, K.; GIGG, R. (Orgs.). Child Bilingualism and Second
Language Learning. Amsterdam: John Benjamins, p. 249-274, 2020.
SPROAT, R.; FUJIMURA, O. Allophonic variation in English /l/ and its implications
for phonetic implementation. Journal of Phonetics, v. 21, 1993, p. 291-311.
WHITE, D.; GANANATHAN, R.; MOK, P. Teaching Dark /l/ with ultrasound
technology. In: O’BRIEN, M; LEVIS, J. (Eds). Proceedings of the 8th Pronunciation in
Second Language Learning and Teaching Conference, Calgary, AB, August 2016. Ames,
IA: Iowa State University, 2017, p. 155-175.
901
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
902
the field of language. It revealed, however, from analytical categories, the
need for a continuous formative work of reading, writing, rewriting, activities
contextualized with the students’ experiences, for the possible strengthening
of their literate practices, which should reflect on the future exercise of their
profession, as literacy agents.
KEYWORDS: Academic literacy; Literary literacy; Teacher training;
Pandemic.
Considerações iniciais
O surto da Covid-19 afetou a saúde pública de forma assustado-
ra, causou muitos retrocessos, prejuízos econômicos, educacionais, so-
ciais, emocionais, culturais e milhares de mortes. Para conter o avanço
da pandemia, logo no início do ano de 2020, algumas medidas fo-
ram adotadas, como fechamento das unidades de ensino básico e as
universidades. O Ministério da Saúde decretou Emergência em Saúde
Pública de Importância Nacional, em fevereiro de 2020. A Portaria
do MEC nº 345/2020, de 17 de março de 2020, autorizou a subs-
tituição das disciplinas presenciais “por aulas que utilizem meios e
tecnologias de informação e comunicação, por instituição de educa-
ção superior integrante do sistema federal de ensino”. O parecer nº
05/2020 do Conselho Nacional de Educação (CNE), homologado pelo
Ministério da Educação (MEC), em 29 de maio de 2020, dispôs sobre
a “Reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de cômputo
de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária
mínima anual, em razão da Pandemia da Covid-19.”
Até o encerramento do segundo semestre letivo de 2021, seguindo
o que ocorreu em todas as universidades públicas brasileiras, estudan-
tes, professores, técnicos e colaboradores da Universidade Federal do
Tocantins (UFT) desempenharam suas funções de maneira remota. Para
desenvolver as aulas, professores se apropriaram de tecnologias, de am-
bientes virtuais de aprendizagem, como o Ava Moodle, Google Classroom.
Os planos de disciplinas foram preparados contemplando encontros
síncronos nas plataformas e atividades assíncronas, de modo geral.
903
Tendo em vista esse contexto pandêmico e complexo no âmbito do
ensino e da aprendizagem, investigamos as práticas de linguagem dos
estudantes de Pedagogia, a partir das interações nas aulas em sessões
virtuais na modalidade remota e da produção de vários gêneros acadê-
micos e literários. Faz-se necessário que os futuros docentes de Língua
Portuguesa ampliem seus domínios linguísticos para fins de usos pe-
dagógicos na sala de aula, no exercício futuro da função. Nesse senti-
do, esta pesquisa investiga como atividades de práticas de linguagem
podem contribuir para um possível fortalecimento de habilidades de
escrita e também para a ampliação do repertório literário dos estudantes
de Pedagogia, a partir de aulas virtuais durante a pandemia.
A complexidade do problema de pesquisa e das interações sociais
e as práticas de letramentos do professor formador trabalhadas com
os futuros professores de Língua Portuguesa em formação inicial na
licenciatura de Pedagogia, da UFT, Campus de Palmas, justificam
essa investigação sob o campo de estudo/metodologia da Linguística
Aplicada (doravante LA). Por mobilizarmos conhecimentos de fontes
diversas, assumimos uma abordagem investigativa da LA Indisciplinar
(MOITA-LOPES, 1998, 2006; PENNYCOOK, 2001). A pesquisa é
do tipo qualitativa e o procedimento adotado é o de análise descritiva
documental o qual, segundo Gerhardt e Silveira (2009, p. 37), “recorre
a fontes mais diversificadas e dispersas, sem tratamento analítico”.
904
Ainda, “o interesse pela linguagem a partir do enfoque de objetos de en-
sino construídos ou interações escritas instauradas, aspectos linguísticos,
pedagógicos e sociais, característicos dos objetos de pesquisa, são foca-
lizados no campo indisciplinar da LA” (SILVA; DINIZ, 2014, p. 340).
Em vistas da importância de se trabalhar práticas letradas no âm-
bito da escrita e de leitura em contexto de formação das professores
de língua materna, foram desenvolvidas propostas pedagógicas media-
das por gêneros discursivos, no segundo semestre de 2021, no curso
de Pedagogia (UFT/Palmas), na Atividade Integrante175 ‘Letramento
Acadêmico e Literário’, tendo 25 professores matriculadas, seguindo de-
manda do trabalho pedagógico que favorece as transformações nas prá-
ticas de ensino de linguagem, como apresentam Silva, Lima e Moreira
(2016). O objetivo do componente curricular era focalizar práticas de
linguagem, de leitura e escrita, na esfera dos letramentos acadêmico e
literário, trabalhando com os professores em formação inicial a leitura e
a (re)escrita de gêneros discursivos, buscando contribuir com um possí-
vel fortalecimento de habilidades de escrita e também para o aumento
do repertório literário, com efeito, mitigando eventuais defasagens de
aprendizagens provocadas pela pandemia.
Nesse sentido, cabe destacar a possível contribuição dos estu-
dos no campo da Linguística Aplicada (MOITA LOPES, 2006;
PENNYCOOK, 2001), que têm potencial de abrir campo para a busca
de soluções, possibilitar reflexões e construção de novos conhecimentos,
que podem contribuir com o desenvolvimento linguístico dos graduan-
dos, quanto aos usos da leitura e da escrita. Exercer domínio das práticas
letradas nos espaços acadêmicos, escolares e sociais é imprescindível para
a formação e atuação sólidas dos graduandos em Pedagogia, visto que,
as práticas letradas são produtos da cultura, da história e dos discursos.
O trabalho de fortalecimento das práticas letradas dos professores em
formação, que deve ser constante e de muitas mãos, favorece o domínio
175
Para cumprir a carga horária mínima exigida, os estudantes de Pedagogia devem
cursar disciplinas optativas e/ou atividades integrantes. Este componente curri-
cular de 60 horas-aula foi aprovado pela coordenação do curso de Pedagogia para
oferta em 2021.2 como complementação curricular acadêmica.
905
da escrita, como ferramenta tecnológica, de poder e ideológica, que as
nossas relações, (des)construindo identidade(s) e (des)legitimando for-
mas de dominação, nos seus diversos formatos e suportes.
Como não há práticas letradas neutras (STREET, 2014), é funda-
mental a potencialização dos usos das habilidades técnicas de leitura e
escrita pelos graduandos, sobretudo dos usos dessas habilidades para
atender às demandas sociais e culturais, o que caracteriza o letramen-
to, segundo Kleiman (2004) e Tfouni (2002). De acordo com Street
(2014), a natureza do letramento evidencia as formas que as práticas
sociais de leitura e escrita assumem em determinados contextos ou do-
mínios sociais, e isso depende, essencialmente, das políticas e ideologias
das instituições que propõem e exigem essas práticas.
906
No grupo do WhatsApp e na plataforma do Moodle, repassamos as
primeiras orientações sobre a organização pessoal de estudos, disponi-
bilizamos textos, esclarecemos a dinâmica da disciplina, a avaliação das
produções e os estudos da semana. Os encontros síncronos foram uti-
lizados para discussão teórica; leitura de textos literários; análise da pri-
meira versão da escrita das atividades propostas, com encaminhamentos
para a reescrita, quando necessário, apresentação dos aspectos de cada
gênero. Os momentos assíncronos eram destinados para a leitura de
textos e (re)escrita dos gêneros.
Nos encontros síncronos, discutimos aspectos conceituais sobre le-
tramento (SOARES, 2014), letramentos sociais (STREET, 2014), letra-
mento acadêmico (SILVA, 2017; MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010),
letramento literário (COSSON, 2014a; 2014b) e realizamos análise se-
mânticas, ortográficas e morfossintáticas pontuais a partir da primeira
versão da escrita dos graduandos. Nas primeiras interações, procuramos
deixar evidente a distinção de eventos de letramento e de práticas de
letramento, problematizando as nossas práticas letradas, que são atra-
vessadas por questões ideológicas, políticas e de poder. Utilizamos como
base Street (2012, 2014) para distinguir eventos e práticas letradas. Para
esse autor, eventos referem-se a qualquer ocasião que envolve a leitura e/
ou a escrita e a sua integração à natureza das interações dos participantes
e em seus processos interpretativos, como verificar horários, tomar um
ônibus, folhear uma revista, ler sinais para escolher a estrada, as aulas
síncronas, conversas no grupo do WhatsApp, entre outros. Já práticas de
letramento remetem a concepções ideológicas, culturais e sociais amplas
de modos particulares de pensar sobre a escrita e/ou a leitura, de se com-
portar diante delas e de realizá-las em contextos socioculturais, como as
propostas e a finalidade das escritas dos gêneros acadêmicos e literários
na disciplina em tela. As práticas incorporam os eventos.
Ao longo da disciplina, trabalhamos com a produção discursiva
dos gêneros acadêmicos (síntese, resenha), literários (mudando a his-
tória, memórias literárias) e acadêmico-literário (Perguntas de Leitura
Subjetiva, a partir de leitura de contos). Nos encontros no Meet, à
907
medida que íamos passando as atividades de escrita, fazíamos uma abor-
dagem e apresentação dos elementos macroestruturais de cada gênero.
Para a análise dos gêneros acadêmicos e literários, estabelecemos os se-
guintes critérios: adequação ao gênero, progressão temática, aspectos
gramaticais, originalidade, coesão e coerência (referenciação, paragrafa-
ção). Convém esclarecer que tomamos como referência para analisar a
adequação dos gêneros literários propostos os elementos narratividade,
enredo, espaço, tempo, personagens e literariedade.
908
universidade e fora dela e os aspectos formais e estruturais de alguns
gêneros acadêmicos com os estudantes de Pedagogia constituiu-se de
extrema relevância.
Para as análises, destacamos aulas, discussões e produções dos en-
contros virtuais e atividades assíncronas. Como parte da dinâmica do
encontro síncrono, sempre selecionávamos atividades dos estudantes
elaboradas nos momentos assíncronos para apresentarmos a análise na
sala virtual176 a partir das categorias, além de recomendarmos a re-
escrita, quando necessário. Uma síntese do texto ‘O que é letramen-
to?’ de Magda Soares foi a primeira atividade manuscrita que solicita-
mos. A figura 1 traz a produção de uma graduanda que devolvemos
para reescrita, visto que apresentava problemas ortográficos (acentu-
ação: ‘compara-lo’, ‘atraves’, ‘praticas’); de coesão por referenciação
(CAVALCANTE, 2013): repetição excessiva de ‘termo’; e de paragra-
fação: problemas de encadeamento sintagmático nos períodos longos.
Ao lado do manuscrito, trazemos a sua transcrição para facilitar a lei-
tura. Nela sublinhamos e negritamos alguns desses aspectos que foram
indicados para reescrita.
O livro de Magda Soares traz como ơtulo “O que é letramento” e discorre sobre esse
processo inevitável na vida de todo ser humano. O termo letramento é recente no ce-
nário da educação, desde seu surgimento até os dias atuais ganhou muitas definições
que se interessaram a defini-lo e compara-lo com outros termos, por isso podemos
reconhecer o termo letramento como o uso da escrita, que se envolve em praƟcas
sociais na escola podemos reconhecer o letramento como o contexto da criança no
mundo da leitura, atraves do folheamento de livros, contação de histórias e etc. Po-
de-se perceber o letramento como um processo disƟnto da alfabeƟzação, mas muito
necessário no processo de ensino e aprendizagem.
176
Pautado por uma atitude ética em LA, elaboramos um Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido, via formulário google, para que os futuros docentes autori-
zassem o uso de fragmentos de seus textos nas sessões virtuais e em eventuais pu-
blicações. Por e-mail, o artigo foi compartilhado com os estudantes que tiveram
seus fragmentos selecionados para esta análise para que elas fizessem observações.
909
Fonte: acervo do pesquisador (grifos nossos)
910
de preposição na sequência textual descrita, quanto à aspectualização
(CAVALCANTE, 2013) são apresentados na seguinte escrita de ou-
tra professora (grifos nossos): “Magda Soares, destaca um ponto muito
interessante que diz a respeito a responsabilidade e de uma pessoa ser
alfabetizada e não letrada”.
Para encaminhar a reescrita, destacamos alguns momentos das au-
las síncronas para apresentarmos regras e exemplos sobre concordância,
uso de crase e emprego de vírgula, de onde, aonde, no qual, do qual e
em que e de traz e trás. Para finalizar esta análise e indicação de sínte-
ses para reescrita, propomos a escrita coletiva de uma síntese sobre o
mesmo texto na sala virtual. Os estudantes iam discutindo, ditando as
sentenças e nós íamos escrevendo e sugerindo alguma alteração, even-
tualmente. Destacamos a seguir a produção coletiva, atividade muito
elogiada pelos futuros professores:
911
da intervenção que o professor formador realizou), houve o acréscimo
da quantidade e descrição dos capítulos do livro para atender a carac-
terísticas do gênero apresenta por Motta-Roth; Hendges (2010). Na
sequência da figura, apresentamos a transcrição dessa passagem textual:
912
e de verificar se realmente os gêneros discursivos foram produzidos a
próprio punho, adotamos como critério a ‘originalidade’. Sempre fazía-
mos uma busca por uma eventual apropriação de texto alheio. De todas
as produções, detectamos três cópias com trechos de texto plagiados.
A Figura 3 apresenta o recorte de um pedido de desculpas escrito na
sequência de uma reescrita de uma resenha (bem escrita, por sinal) por
uma professora.
913
perspectivas do letramento literário, numa interface ou composição
com outras manifestações artísticas, os chamados avatares da literatura
de caráter híbrido, que se retroalimentam, como o filme, desenhos ani-
mados, minisséries a partir do texto literário, entre outros, em variados
suportes potencializadores do ato de ler (COSSON, 2014a, 2014b;
LAJOLO, 2001; PETIT, 2009, CHARTIER, 1998, NECCHI, 2009).
Realizamos ainda a leitura de ‘obras das margens’, do ‘Sul’, que de-
nominamos de avatares da literatura infanto-juvenil, como “Robson
Crusoé”, de Daniel Defoe, em HQ; “Um garoto chamado Rorbeto”,
um rap narrativo de Gabriel, O Pensador; “O menino invisível”, obra
grafitada em muros em Brasília; “As tranças de Bintou”, de Sylviane
Diouf; “A bruxinha curiosa”, de Lieve Baeten; “Meninos carvoeiros”,
de Manuel Bandeira. O objetivo dessas leituras e das produções das
margens era fortalecer o pensamento crítico e a atitude dos estudantes
de Pedagogia, empoderando o Sul, haja vista que ‘estamos no Sul’, e
que devemos aprender a partir do ‘Sul’ e com o ‘Sul’ (SANTOS, 2010).
Consideramos esses textos como sendo ‘das margens ou do sul’ em
virtude de o formato, o gênero e temáticas de grupos oprimidos (HQ,
rap narrativo, literatura negra, exploração de vulneráveis, a reinvenção
de uma personagem que é símbolo de maldade, a bruxa) terem ocupa-
do por muito tempo uma posição secundária, marginal, em relação ao
cânone literário ocidental, europeu. O fortalecimento das minorias do
sul, o predomínio dos meios de comunicação de massa e a expansão de
variados suportes de veiculação textual, em curso nos últimos decênios,
vêm forçando “um reexame das fronteiras clássicas no âmbito do estudo
da cultura, o ‘multiculturalismo’ [...] desafia o modo como o Ocidente
vem concebendo sua identidade e articulando-a em um cânone de obras
de arte.” (EAGLETON, 2006, p. 358). Segundo o autor, “[o] resultado
foi a abrupta criação de um cânone ocidental estreitamento concebido,
recuperando as culturas execradas de grupos e pessoas ‘marginalizadas’”
(p. 358, grifos do autor).
Para a produção da primeira atividade, “mudando a história”,
selecionamos e discutimos os contos do “sul” “Nós matamos o Cão
914
Tinhoso”, do moçambicano Luís B. Honwana e “Nós choramos pelo
Cão Tinhoso”, do angolano Ondjaki. A narrativa de Honwana, pu-
blicada no ano de 1964, no contexto da luta pela independência de
Moçambique da opressão colonial portuguesa, denuncia o racismo, o
machismo, as mazelas da colonização, fazendo crescer um sentimento
anticolonial do povo moçambicano. Como produção textual, os estu-
dantes de Pedagogia mudariam o final da história, dando um final al-
ternativo, ao primeiro conto.
A atividade proposta favoreceu a produção de textos criativos e
encantadores. Os textos atenderam às características do gênero conto,
quanto aos aspectos microestruturais da narratividade, enredo, espaço,
tempo, personagens. Num viés autoral, há uma abundância de inven-
tividade, cuja literariedade enlaçou, sobretudo, modos de salvação do
Cão Tinhoso de morte certa. Algumas produções apresentavam pro-
blemas formais que, por intervenção do professor formador, eram en-
caminhadas para a reescrita. O fragmento a seguir é uma amostra de
uma sequência narrativa bem construída, na qual se situam os aspectos
estruturais do gênero em análise: personagens, narrador, espaço, tempo,
literariedade. As intervenções formais foram poucas para esta constru-
ção textual, destacadas na transcrição ao lado do manuscrito (grafia,
letra maiúscula em substantivos próprios).
915
Fonte: Arquivo do pesquisador (grifos nossos)
916
Tatiana Belinky; e “O valentão que engolia meninos e outras histórias
de Pajé”, de Kelli Carolina Bassani. Destacamos alguns dos títulos pro-
duzidos pelas cursistas: “Memória marcante”; “A sala”; “A rua da minha
casa”; “Lembranças de uma leitora”; “O terrível monstro da água”; “O
sonho de criança”; “Iniciação na vida acadêmica”; “Assim como o sol
se vai”; “Doces lembranças do meu tempo de criança”; “Recordando a
infância”; “Férias de julho”. Revisitar as cinzas das lembranças deixadas
pelas chamas de vivências passadas era uma forma de valorizar quem
ou o que os estudantes de graduação amavam, cativavam. Era uma
maneira de fortalecer o momento presente, pelo resgate de marcantes
lembranças.
No encontro virtual, na perspectiva do letramento literário, o pro-
fessor formador discorreu sobre a relevância do trabalho com as me-
mórias narrativas na educação básica. Como as crianças, por exemplo,
podem aprender nas rodas de conversas com os familiares mais velhos,
com a declamação de poemas e contação de histórias dos graduandos.
Disse também que as histórias narradas e vividas vão marcando e cons-
truindo nossa identidade. Nesse sentido, falou do objetivo da atividade
proposta como um momento de revisitarmos memórias do passado e
como elas podem nos ajudar a viver, provocando um sentimento agra-
dável, saudades, fortalecendo nossos projetos de vida, nos fazendo so-
nhar ou chorar outra vez. Afirmamos ainda que o jogo da memória,
que funda ou constrói a identidade, é feito de lembranças evocadas e
esquecimentos. A memória é a identidade em ação. As lembranças que
guardamos de cada época de nossa vida se reproduzem sem cessar e
permitem que se perpetue o sentimento de nossa identidade (Ricoeur,
2007; Candau 2011). Somos quem somos porque nos lembramos de
quem somos, parafraseando Izquierdo (1989).
Candau (2011, p. 98-99) afirma que
917
nessa demarcação. A lembrança da experiência individual resul-
ta, assim, de um processo de seleção mnemônica e simbólica
de certos fatos reais ou imaginários – qualificados de aconteci-
mentos – que presidem a organização cognitiva da experiência
temporal. São como átomos que compõem a identidade.
918
que, para muitos deles, futuros professores, a biblioteca escolar, a peda-
goga e a professora de português serão os meios, talvez os únicos, que
mediarão o contato com o livro literário.
O quadro 1 traz fragmentos de duas memórias literárias com abun-
dância em literariedade, com os jogos de ideias, de inventividade, apre-
sentado leveza ao narrado e intensidade ao vivido.
919
partir de suas impressões, fortalecendo as suas práticas letradas críticas,
sobre temas como feminicídio, exploração do trabalho infantil, maus
tratos de animais, tráfico de crianças. As perguntas foram retiradas e
adaptadas de um questionário aplicado em pesquisa doutoral do profes-
sor formador, no campo do letramento científico literário, para alunos
do ensino médio. As perguntas são sensíveis e provocam uma reflexão,
uma tomada de atitude em relação à leitura e escrita, às práticas le-
tradas e temáticas veiculadas nas narrativas, oportunamente, discutidas
nas sessões virtuais. Os contos lidos foram: “Crianças à venda – Tratar
aqui!”, de Rosa Amanda Strausz; “Biruta” e “Venha ver o pôr do sol”,
ambos de Lygia Fagundes Telles.
Das cinco perguntas do questionário, destacamos a última, cujo
objetivo era sensibilizar os estudantes de Pedagogia quanto ao papel
da literatura enquanto fator de humanização (CANDIDO, 2002). O
quadro 2 traz algumas das respostas dos futuros docentes, desvelando a
influência que a arte literária pode desempenhar no processo de apro-
priação das práticas letradas no âmbito da literatura.
920
3 A leitura nos leva a refletir sobre a temática através do olhar do
outro. Gera uma empatia que talvez não teríamos sozinhos.
4 É inegável que os textos contribuam na formação/construção do
ser humano, oportunidades para (re)fazer retomadas e amadu-
recer das ações e adotarmos novas práticas e comportamentos,
como: empatia, amor, respeito e outros.
5 Sim, pois abordam de uma maneira poética fatos do nosso coti-
diano e nos fazem olhar acontecimentos “comuns” do nosso dia a
dia sob outra perspectiva.
Fonte: elaborado pelo pesquisador (grifos nossos).
Considerações finais
As interações nas aulas virtuais parecem que contribuíram para o
enfrentamento do isolamento provocado pela pandemia. Os encontros
proporcionam momentos de diálogo, de compartilhamentos das pro-
duções próprias dos graduandos, de valorização da autoria das narrati-
vas, das escritas acadêmicas. O espaço virtual se constituiu como um
lugar de trocas enriquecedoras, de possível fortalecimento (emocional,
linguístico) da formação de professores em contexto de crise.
A apropriação de práticas letradas é um processo importante, quan-
to necessário para os graduandos em Pedagogia. “Todo professor precisa
ser um agente de letramento, na condição de que seja significativamente
921
letrado” (SILVA; DINIZ, 2014, p. 335). É fundamental que os futuros
professores, desde a incursão em eventos letrados na academia, tenham
familiaridade com uma quantidade maior de práticas letradas sociais,
visto que elas podem impactar os seus alunos, tornando-os mais huma-
nos a partir de leituras envolventes e atividades de escrita contextualiza-
das com as vivências dos alunos, como a produção proposta ‘Mudando
a história’ e ‘Memórias literárias’.
A abordagem mostrada neste artigo não tem quase nada de diferen-
te de outras que orientam a reescrita de diferentes gêneros. Certamente
essa prática se faz em muitos contextos de ensino de escrita e de outros
conhecimentos que são construídos por meio da escrita e da leitura.
Talvez, a potencialização, ampliação do repertório e apropriação do tex-
to literário pela leitura e escrita de gêneros solicitados possam se consti-
tuir como diferenciadores, no contexto da formação de professores em
um Curso no qual a leitura literária tem pouco espaço. Nesse sentido,
embora as atividades tenham sido pontuais, elas potencializam o tra-
balho com o letramento literário no curso de Pedagogia e na futura
atuação dos graduandos.
Os eventos e práticas letradas com os gêneros acadêmicos e li-
terários, se desenvolvidos ao longo do tempo, de forma sistemática e
contínua, na formação de professores, podem contribuir para o for-
talecimento e desenvolvimento de habilidades de escrita e de leitura
dos graduandos, com repercussão na aprendizagem dos estudantes da
educação básica.
Como evidência de um possível desenvolvimento linguístico dos
graduandos de Pedagogia no campo das práticas letradas acadêmicas e
literárias, destacamos: a) as intervenções nas escritas dos gêneros pro-
postos pelo professor formador e a devolutiva com melhorias na se-
gunda versão do texto, o que não significa que os estudantes vão dei-
xar de apresentar os mesmos problemas ou semelhantes na escrita, por
isso a necessidade de um trabalho contínuo de reescrita em qualquer
curso de graduação; b) a apropriação dos elementos macroestruturais
dos gêneros discursivos apresentados e elaborados; c) a participação dos
922
estudantes nas discussões sobre temáticas sociais conjunturais, como
feminicídio, violência, exploração, descolonização do sul; d) o desen-
volvimento de competências na escrita de gêneros narrativos a partir da
contextualização das experiências dos estudantes de graduação, como
as memórias produzidas, articulando aspectos socioemocionais e forta-
lecendo a identidade das docentes; e) a consolidação da compreensão
de que uma manifestação artística pode nos impactar, (re)direcionar as
nossas pensamentos e atitudes.
Nesse sentido, o trabalho desenvolvido pelo professor formador é
visto como um ensaio e uma proposta pedagógica de trabalho no âm-
bito do letramento que deve ser melhorada, aprofundada, na formação
de professores de Língua Portuguesa na Licenciatura em Pedagogia.
A experiencia mostrada poderá inspirar ações semelhantes, que têm
o potencial de contribuir com o desenvolvimento linguístico de pro-
fessores em formação inicial. Fortalecer o trabalho com os diferentes
letramentos, como o acadêmico e o literário, as leituras sem margens,
em um processo de escrita vai (produção inicial) e escrita vem (reescri-
ta), pode aperfeiçoar as práticas pedagógicas do professor formador e,
consequentemente, potencializar a profissionalização dos estudantes de
língua materna na futura atuação nos espaços escolares.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 345, de 19 de março de 2020. Brasília,
DF, 2020.
923
CHARTIER, R. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução Reginaldo
Carmelo Corrêa de Moraes. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo /
Editora UNESP, 1998.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
MOITA LOPES, L. P. da. (org). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São
Paulo: Parábola Editorial, 2006.
924
PETIT, M. A arte de ler: ou como resistir à adversidade. São Paulo: Editora 34, 2009.
SANTOS, B. de S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia
de saberes. In: SANTOS, B. de S., MENESES, M. P. (Orgs). Epistemologias do Sul.
São Paulo: Cortez, 2010, p. 31-83.
925
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
926
of these students, contributing to a better undestanding of the group that
constitutes the undergraduate course in focus. The research was developed
from the sociocultural perspective of Literacy Studies, linked to the area of
Applied Linguistics and based on the Bakhtinian conception of language. It
is a research with a qualitative-interpretative approach and a case study. The
research participants are recently joined the Social Sciences Course, in the
years 2020, 2021 and 2022. For data collection and generation, a research
questionnaire, field diary and documents provided by the academic secretary
were used. The results obtained show how these students evidence discursive
genres that are closer to their lives and reveal some of the literacy events that
they take part in academic and non-academic daily life.
KEY-WORDS: Literacy events. Lecture. Undergratuate.
Introdução
O que pretendemos tomar como objeto de estudo, nesta proposta,
são as experiências leitoras de estudantes ingressantes no curso de Curso
de Ciências Sociais (licenciatura), vinculados à Universidade Federal do
Norte do Tocantins.
Investigar as experiências leitoras dos estudantes ingressantes na
universidade pode favorecer o conhecimento de como se constitui o
grupo de estudantes matriculados no curso. Esse tipo de estudo pre-
tende visualizar práticas de leituras desenvolvidas pelos estudantes em
diferentes contextos sociais, no intuito de tornar evidente traços de
suas histórias de letramentos, quase sempre pouco visíveis aos olhos das
agências e agentes de letramento177.
Os modos como os estudantes ingressantes na universidade, aces-
sam materiais escritos para leitura acadêmica ou por fruição, seus luga-
res para ler, as pessoas que influenciam suas leituras, o que eles leem,
que autores apontam ter lido, quais memórias eles têm de seus pais ou
responsáveis quanto à mobiliação de textos escritos no lar, por exemplo,
177
Por “agência de letramento” compreendemos os espaços sociais onde o texto
escrito é um elemento relevante, tal qual a escola, a igreja, o local de trabalho etc.
(KLEIMAN, 1995).
927
são indagações ligadas à compreensão de letramento numa perspecti-
va “ecológica”, como expõe Barton (1994), com base na compreensão
de que o processo de se constituir letrado envolve interação com uma
multiplicidade de gêneros discursivos (orais, escritos e imagéticos) que
tomam parte em “práticas de letramento”178 mobilizadas por eles, liga-
das aos “eventos de letramento”179 que eles participam.
A noção de letramento aqui defendida parte de uma concepção
sociocultural, advinda do campo dos Estudos de Letramento, na qual
letramento é tido como um conjunto de práticas sociais de uso da es-
crita, num sentido mais amplo que as práticas escolares que envolvem a
linguagem escrita, ainda que estas estejam inclusas (KLEIMAN, 2010).
Nessa perspectiva, letramento é entendido como um “conjunto de
práticas sociais relacionadas ao uso, à função e ao impacto da escrita na
sociedade” (KLEIMAN, 2000, p. 19). Essa concepção de letramento,
conforme nos mostra a autora, funda-se na pesquisa de antropólogos,
historiadores, sociólogos que defendem que as práticas de uso da escrita
são determinadas culturalmente, com “modos específicos de funciona-
mento” que “têm implicações importantes para as formas pelas quais
os sujeitos envolvidos nessas práticas constroem relações de identidade
e poder” (KLEIMAN, 1995, p. 11). Essa compreensão de letramento
traz o entendimento de que o processo de tornar-se letrado é identitário
(KLEIMAN, 2010, p. 376).
Assim, podemos considerar que o ingresso do jovem ou adulto
numa instituição de ensino, como a universidade, é um marco em sua
história de letramento, dado que a pessoa passa a experienciar even-
tos e práticas de letramento distintos da vida ordinária, num contexto
178
A ideia de “prática de letramento” (HAMILTON, BARTON, 2000; KLEI-
MAN, 1995; STREET, 1984) está relacionada às maneiras culturais ligadas ao
evento onde a pessoa é participante. Assim, uma prática pode ser visibilizada
a partir do evento, por meio dos discursos que permeiam tal evento.
179
A noção de “evento de letramento” é compreendida aqui com base nas palavras
de Heath (1983, p. 196) – “um evento diz respeito à situação em que um por-
tador qualquer de escrita é parte integrante da natureza das interações entre os
participantes e de seus processos de interpretação”.
928
social diferenciado de outros contextos educacionais. Moss (1987, p. 46
APUD IVANIC, 1998, p. 7) aponta que o ensino superior é definido
por estudos relativamente isolados que ocorrem num processo autôno-
mo de ensino e aprendizagem, no qual os estudantes são encorajados
a construir pensamentos e formas de aprender “independentes”, num
espaço institucional tradicionalmente marcado por valores que todos
os estudantes ingressantes devem aprender – uma cultura institucional
acadêmica.
Ao tratar da questão identitária do estudante universitário, Ivanic
(1998) representa o momento de ingresso na universidade por meio de
uma metáfora baseada nas experiências vividas por Roach (1990 APUD
IVANIC, 1998, p. 8), descritas num artigo intitulado “Marathon”: “a
academia me fez sentir como um boneco de marionete, como um Alien
de outro planeta [...]”180. Tal fala traz indícios de que o momento de
ingresso no ensino superior, por vezes, é associado a uma fase da vida
ligada à mudança, dificuldade, sentimentos estranhos, crise de confian-
ça e à necessidade de descobrir as regras de um mundo não familiar
(IVANIC, 1998).
No momento de ingresso nesse espaço institucional, a não familia-
ridade dos estudantes com a cultura acadêmica está ligada aos conflitos
entre saberes advindos de mundos diferentes – o mundo das experiên-
cias vividas pelos estudantes ingressantes não é constituído pelos mes-
mos comportamentos e valores que compõem a cultura acadêmica. Isso
em razão de as histórias de letramentos dos estudantes se constituirem
parte de uma “cultura subjetiva” (BAKHTIN, 2010), construída no
âmbito do
929
evento singular do existir no seu efetuar-se pode constituir esta
unidade única (BAKHTIN, 2010, p. 43).
Caminhos metodológicos
Os caminhos metodológicos percorridos para a realização desta
pesquisa, de abordagem qualitativa e do tipo estudo de caso (NUNAN,
930
1995), envolveu a participação de estudantes ingressantes, entre os anos
de 2020, 2021 e 2022, no curso de Ciências Sociais – UFNT, locali-
zado na cidade de Tocantinópolis, estado de Tocantins, região norte
brasileira conhecida como Bico do Papagaio (parte da Amazônia Legal),
circunvizinha ao estado de Maranhão e Pará.
Este estudo, apreciado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Universidade Federal do Tocantins181, contou com a participação de
uma aluna bolsista PIBIC-CNPQ, por meio do desenvolvimento
do projeto intitulado: “Percepções leitoras de alunos ingressantes na
Universidade Federal do Norte do Tocantins”182. A partir da coleta de
dados jundo à Secretaria de Cursos e Secretaria Acadêmica da universi-
dade foi possível acessar documentos sobre o grupo de estudantes refe-
rentes, por exemplo, à matrícula, ao local de origem e moradia, forma
de entrada à universidade e outras informações pertinentes ao conheci-
mento do grupo.
Os dados da pesquisa foram gerados com uso de instrumentos
como diário de campo e questionário de pesquisa183. Vale destacar que
o desenvolvimento da pesquisa ocorreu entre o período pandêmico
(Covid-19) e o de retorno gradual ao modo presencial de aulas e, em
decorrência disso, muitos dos alunos participantes iniciaram suas vidas
acadêmicas durante esse período, marcado por formas de interação de
modo remoto, o que, por vezes, aumentou os distanciamentos entre
calouros, veteranos e docentes e dificultou o diálogo face a face com
os estudantes, por exemplo, no momento de apresentação da pesquisa.
Nessas condições, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE) foi enviado, por e-mail, aos estudantes e o questionário pode
ser preenchido on-line (via Google Forms) ou por meio de cópia im-
pressa, conforme as possibilidades de interação com eles no momento
181
CAE – 49235221.0.0000.5519.
182
Estudo realizado, entre 2021.1-2022.2, por Larissa R. F. da Costa, bolsista PIBI-
C-CNPQ e aluna do curso de Ciências Sociais/UFNT.
183
O questionário de pesquisa elaborado para este estudo teve como base o questio-
nário proposto por Vóvio (2007).
931
entre a oferta de aulas remotas e o retorno gradual às aulas presenciais
na universidade. A partir dos dados gerados, foi possível visualizar al-
gumas das formas de suas participações em atividades letradas, a seguir.
932
na qual ingressaram - região geográfica muito próxima ao local onde
nasceram, cresceram e experienciaram dimensões das “culturas do escri-
to”184 (GALVÃO, 2010).
De fato, os modos de ser no lugar de origem ou de residência, cozi-
nhar, falar, assim como o comportamento perante um texto escrito são
atividades vinculadas a maneiras culturalmente construídas, por meio
de práticas sociais naturalizadas numa comunidade, onde está posto o
que Bakhtin (2010) denomina como “cultura objetiva” – constituída
por elementos objetivamente válidos, imersos no domínio da cultura
a qual certos objetos pertencem - porém, é algo que está fora da expe-
riência subjetivamente vivida. A experiência vivida pode ser concebida
como parte do mundo da vida, algo construído no interior dos objetos
de uma sociedade já estruturada/institucionalizada.
Aparentemente em consonância a tal posicionamento, Jorge Larossa
Bondía (2002) traz a noção de experiência como algo intrinsecamente
ligado à linguagem, ao uso subjetivo das palavras. A experiência estaria
relacionada aos sentidos subjetivos atribuídos “ao que nos acontece”,
“ao que nos toca”. Fora do interior subjetivo do indivíduo e de sua pa-
lavra não há lugar para a experiência. O “saber da experiência”, segundo
o autor, é entendido como algo individual, subjetivo, particular que não
está fora de nós, e sim toma parte no nosso conjunto de valores, posi-
cionamentos, formas de estar no mundo, nas práticas ligadas às ativida-
des que tomamos parte. O saber da experiência se dá na relação entre o
conhecimento (socialmente validado) e as atividades vivenciadas.
Assim, podemos conceber que as histórias de letramentos são cons-
truídas com base nas experiências individuais com textos escritos, aces-
sados em distintos eventos letrados e “vias de entrada” às culturas do
escrito, tal qual informa Galvão (2010): a escola, a igreja, a família, a
biblioteca, o trabalho, a feira, o teatro, o cinema, manifestações cultu-
rais etc.
184
Compreendemos que a cultura escrita é o “lugar – simbólico e material – que
o escrito ocupa em/para determinado grupo social, comunidade ou sociedade”
(GALVÃO, 2010, p. 218).
933
No caso dos estudantes, eles informam que o lugar da cidade que
mais frequentam é “casa de familiares”. Para os estudantes, a instituição
familiar se constitui uma dimensão trazida por meio das memórias que
eles têm sobre as práticas leitoras de seus pais, por exemplo. Quando
crianças, os estudantes declaram ver seus pais lendo jornal, panfleto e,
principalmente, ensinando ou acompanhando crianças em tarefas esco-
lares. Nota-se, tal qual afirma Galvão (2010), a figura da família como
importante via de acesso a textos escritos.
Ao lado da instituição familiar, a escola é tida como a principal agên-
cia de letramento de nossa sociedade (KLEIMAN, 1995), relevante via
de entrada e circulação de materiais de leitura (GALVÃO, 2010) e isto
aparece implícito nas palavras escritas por um dos estudantes do grupo,
ao responder a seguinte pergunta do questionário de pesquisa: “você
lembra de autores da literatura que considera bons ou importantes?”:
Resposta escrita pela estudante de graduação no questionário de
pesquisa:
Maurício de Sousa [...] considero que seja a forma mais divertida de introduzir
as crianças a gostar de leitura, me lembro de ler na infância. Monteiro Lobato,
com as histórias do Sítio do pica-pau amarelo. Leituras, no início da construção
da personalidade, são importantes porque acabam sendo influentes na vida das
crianças e perduram até a vida adulta.
934
Uma das maneiras de a leitura na infância “perdurar” na vida adulta
diz respeito ao gosto da pessoa pela leitura. Ainda que a relevância da
leitura para as vidas das pessoas seja algo inquestionável nas afirmações
dos estudantes (predomina a ideia de que a leitura é essencial para o
desenvolvimento da pessoa), a expressão “gostar mais ou menos de ler”
aparece na mesma proporção que “gosto muito de ler”, indicando que
o gosto pela leitura é algo individualmente construído no mundo sub-
jetivo de cada um, a partir de textos escritos socialmente circulantes na
sociedade, num momento sócio-histórico específico, e está fortemen-
te relacionado à disponibilidade de materiais escritos e às experiências
construídas a partir do acesso a certos gêneros escritos.
Sem dúvida, a escola e seus agentes têm papel central na constru-
ção das experiências leitoras dos estudantes. A figura do educador da
escola/universidade aparece como o maior influenciador pela formação
do gosto pela leitura e das indicações de leitura desses estudantes. Os
professores e colegas de escola/faculdade são citados como as pessoas
que mais costumam conversar sobre o que eles leem. Por outro lado,
dentre as declarações, é pouco evidenciado os modos de participação da
família nas atividades leitoras desses estudantes.
Outras vias de acesso a textos escritos são apontadas como partes
das experiências leitoras dos estudantes, tais como a igreja (por meio da
participação em cultos religiosos), a visita à casa de amigos, participação
no comércio local (lojas e academia) e o contato com o objeto livro. A
leitura de livro figura dentre as atividades que os estudantes declaram
exercer no tempo livre. Na vida desse grupo de alunos, a disponibilida-
de de livros está predominantemente ligada ao espaço acadêmico – bi-
blioteca escolar e biblioteca universitária – e à internet, principalmente
por meio de downloads de livros digitais ou digitalizados.
Os estudantes citaram diversos autores e obras que conhecem e/
ou já leram. Os títulos de livros citados voltam-se majoritariamente à
literatura ficcional estrangeira, títulos escritos por autores como George
Orwell, Jane Austen e Agatha Christie figuram dentre as indicações.
Dentre os autores conhecidos por eles, os estudantes citaram diversos
935
autores da literatura brasileira, com predomínio de Machado de Assis.
Além de autores como Raquel de Queiroz, Eça de Queiroz e Clarice
Lispector.
Ainda que o ambiente urbano onde muitos deles vivem não favore-
ça a formação de leitores de livros, por não haver biblioteca (ou sala de
leitura) municipal pública, e a atual condição financeira dos estudantes
limite sua posse de livros (dado que a renda familiar predominante no
grupo é de um a menos de dois salários mínimos mensais), a internet
torna-se uma importante via de acesso a livros e outros materiais escri-
tos, uma maneira estratégica de “quebrar” fronteiras (físicas e finan-
ceiras, por exemplo) que podem limitar a participação dos estudantes
nos mundos do escrito. Via internet, os estudantes afirmam (além de
fazer download de filmes e livros) ler e-mails, ler no Twitter, Instagram,
Kindle e em sites onde circulam, predominantemente, gêneros escritos
jornalísticos – G1, Uol notícias e BBC.
Interessante notar que não foi citado nenhuma manifestação cul-
tural popular como um espaço para leitura de textos escritos, embora
diversas festas populares ocorram na cidade de Tocantinópolis e locais
circunvizinhos, onde os alunos vivem. Além disso, observa-se que não
foi mencionado a participação deles em espaços culturais, como cine-
ma, museu, teatro e clubes, o que nos leva a crer que tais espaços (ainda
que existissem fisicamente no local, como é o caso de um clube recre-
ativo privado - AABB) não aparecem, dentre os dados gerados, como
ausências significativas às suas experiências leitoras.
Por outro lado, percebe-se a presença dos ambientes acadêmicos
locais (escola e universidade) como agências propulsoras tanto da parti-
cipação dos estudantes em eventos diversos quanto da formação de lei-
tores. Embora tais agências não sejam as únicas envolvidas nos proces-
sos formativos do leitor, elas são altamente significativas na construção
da identidade leitora do estudante e, por conseguinte, na aproximação
do estudante a modos de argumentar e se comportar frente aos gêneros
escritos que permeiam os espaços nos quais as atividades estão centradas
no tipo de discurso acadêmico.
936
Práticas leitoras da/na universidade
As práticas leitoras “da” universidade (ou seja, aquelas socialmente
dominantes e legitimadas) são distintas de outras práticas de leituras
familiares aos estudantes, as que os estudantes carregam consigo à uni-
versidade, portanto, são práticas leitoras presentes “na” instituição de
ensino, ainda que não sejam reconhecidas nesse ambiente. (Elas são
práticas pertencentes ao que Street (1984) denominou como “letra-
mentos marginalizados”).
Tornar-se parte do mundo acadêmico é adentrar uma cultura di-
ferente, constituída por discursos acadêmicos e gêneros discursivos
acadêmicos, desconhecidos para os estudantes ingressantes no mundo
universitário. A leitura desses gêneros figura dentre os elementos da
cultura acadêmica e, portanto, o ato de ler pode se constituir ativida-
des de descobertas, mas também uma fronteira a ser atravessada, o que
significa que o estudante terá de ampliar suas experiências com textos
escritos, criar estratégias de estudo, dentre outras inúmeras demandas
que aparecem com caráter de urgência no início do percurso acadêmico
na universidade.
Esse cenário torna-se mais obscuro quando o estudante pertence a
um grupo minoritário. No caso de estudantes pertencentes às minorias
linguísticas (quer seja alunos imigrantes, como mostram Lea e Street
(2014), ou, no caso de alunos usuários de outra variante linguística que
não a “padrão/culta” e que, por vezes, se sentem distantes de diversas
dimensões das culturas do escrito), tomar parte nas atividades acadêmi-
cas exigidas para o estudante universitário passa a ser algo ainda mais
complexo.
Como inicialmente mencionado, o ingresso na universidade está
ligado a um processo identitário (KLEIMAN, 2010; IVANIC, 1998),
“o estudante de graduação precisa construir sua persona social no am-
biente acadêmico” (BEZERRA, 2015, p. 63). Mas, por vezes, esse pro-
cesso identitário com o mundo universitário, centrado na linguagem
acadêmica, é atravessado por realidades sociais, políticas e econômicas
que não favorecem. Para os estudantes provenientes de famílias sem ou
937
com pouca escolaridade (e com parcos recursos financeiros), o processo
identitário com o mundo acadêmico não é algo tranquilo – trata-se de
um processo de “aculturação” (KLEIMAN, 2010). O que está em jogo
é a negociação entre práticas ligadas às experiências do mundo da vida
e as práticas de linguagens “da” universidade, parte de um universo ob-
jetivo e estruturado.
O grupo de estudantes participantes deste estudo ingressou no
curso de Ciências Sociais-UFNT, majoritariamente, via SISU – ampla
concorrência. O acesso ao mundo universitário, para muitos deles, se
deu logo na primeira tentativa de entrada. Para parte significativa do
grupo, o ingresso na universidade representou um marco para a famí-
lia. Em diversos casos, o ingresso na universidade significou a entrada
da primeira pessoa da família a cursar ensino superior - oportunidade
que a maioria de seus pais/responsáveis não teve, pois muitos deles não
concluíram a segunda etapa do ensino fundamental.
No ambiente universitário, os estudantes se depararam com dificul-
dades diversas. A maior parte delas está ligada aos usos da “linguagem
acadêmica”, tal qual eles afirmam por escrito no questionário de pesqui-
sa. Segundo eles, esse tipo de linguagem “é um fator de dificuldade”. A
leitura de textos “da” universidade é um fator que motiva a afirmação
de que eles se depararam com “textos mais complexos”, em relação aos
gêneros escritos que já estão familiarizados.
Interessante notar a comparação, entre o momento anterior ao in-
gresso na universidade e o momento atual, evidenciada na escrita de
um estudante: “anteriormente, a falta da leitura contínua, o hábito de
ler estava esquecido. E, atualmente, falta tempo para dedicar à leitu-
ra, devido ao trabalho. Ler através do notebook ou celular atrapalha
um pouco, devido às restrições da visão”. Nas palavras dessa estudante
fica claro a pouca experiência leitora relacionada a certos gêneros escri-
tos, num momento de ingresso à universidade, e alguns dos percalços
enfrentados para o desenvolvimento da leitura de textos acadêmicos,
especialmente no momento pandêmico. (As leituras requeridas pelos
docentes no período pandêmico foram predominantemente realizadas
938
por meio de textos digitalizados, dado o acesso restrito à biblioteca nes-
se período).
Adentrar o ambiente universitário possibilita ampliação das expe-
riências leitoras do estudante, o que pode repercutir em mudanças de
comportamento/nas práticas discursivas, ainda que as condições não
sejam ideais – parte significativa dos estudantes afirma desenvolver suas
leituras (de livros ou textos digitalizados) com o uso de celular e alguns
conciliam trabalho remunerado e estudo na faculdade no período no-
turno, dentre outras situações não ideiais.
A palavra “tempo” é recorrentemente mencionada pelos estudantes,
no que tange às práticas de leitura que desempenham com fins acadê-
micos. Diversos estudantes informam ter tempo escasso para realização
de leituras de textos escritos demandados na universidade. Um ponto
relacionado à tal colocação diz respeito às horas dedicadas aos estudos
acadêmicos (em casa ou outros espaços) declaradas pela maioria dos es-
tudantes participantes da pesquisa - duas horas diárias, o que pode (ou
não) causar prejuízo ao bom desempenho acadêmico do aluno. Poucos
desses estudantes declaram estudar quatro ou mais horas diárias. Porém,
o tempo cronológico dedicado aos estudos (elemento que traz possibi-
lidade de construção reflexiva sobre as leituras realizadas) faz parte do
processo de imersão do estudante na cultura universitária, o que signi-
fica afirmar que a dedicação aos estudos traz implicações diretas à cons-
trução de experiências (incluindo as leitoras) e da identidade acadêmica.
Concordamos com Bezerra (2015, p. 65-66) quanto à importância do
939
individualmente ou em pequenos grupos, representa um dos meios que
permitirá ao estudante universitário amenizar fragilidades encontradas
nos anos iniciais nesse ambiente.
Ao observamos o relato de um dos estudantes: “a base da escrita é
a leitura, então, minha maior dificuldade foi no início, quando vim do
ensino médio para a faculdade, porque além de não ter muita base de
leitura, ainda tinham palavras que eu não conhecia [...]”, percebemos
algumas das fragilidades que muitos dos graduandos se deparam. A re-
lação entre as experiências leitoras/escritoras anteriores à universidade é
rememorada no momento de construção de novas experiências leitoras/
escritora. A leitura e a escrita são postas, pela estudante, como ativida-
des interrelacionadas (“a base da escrita é a leitura”) e ligadas a dificulda-
des com a linguagem – o uso de um novo vocabulário, provavelmente
voltado à área específica do conhecimento.
As experiências dos estudantes na universidade voltam-se a uma
variedade de gêneros acadêmicos imbricados no discurso acadêmico –
autoritário e organizado por diversas regras institucionalizadas. Uma
das regras lembradas e apontadas pelos estudantes diz respeito às nor-
mas para trabalho acadêmico propostas pela Associação Brasileira de
Normas Técnicas (ABNT). Tais normas são apontadas como elemen-
to impeditivo da escrita acadêmica, mas não são tidas como algo que
poderia dificultar a leitura de gêneros escritos acadêmicos, quanto à
compreensão das referenciações e das vozes presentes no texto escrito,
por exemplo.
Quanto à familiaridade/mobilização de gêneros discursivos acadê-
micos (por meio da leitura ou da produção escrita), o gênero mais infor-
mado pelos estudantes é a resenha crítica, seguido do diário de aula, o
diário de leitura e o artigo científico. O ensaio, o trabalho de conclusão
de curso (TCC) e o resumo expandido aparecem como gêneros menos
familiares a eles, portanto, gêneros menos lidos e/ou produzidos por
esse grupo de estudantes, no período inicial da graduação.
A indicação de gêneros discursivos acadêmicos, feita por estudantes
em fase inicial na graduação, traz algumas “pistas” sobre como tem sido,
940
até o momento, seus percursos de experiências leitoras na universidade.
Por vezes, o reconhecimento e/ou a diferenciação de gêneros discursivos
acadêmicos (e a própria noção do que vem a ser gênero textual/discursi-
vo) pode parecer estranho a eles, por ser algo inteiramente novo. A clara
proposição de atividades didáticas “a partir” de um determinado gênero
poderia favorecer e intensificar as experiências dos estudantes, tornan-
do os gêneros acadêmicos lidos e/ou produzidos algo mais familiar aos
graduandos.
Palavras Finais
É preciso que as experiências acadêmicas dos estudantes sejam
permeadas por sentidos – sentidos para ler, para escrever etc. As
experiências leitoras tornam-se carregadas de significados quando o
estudante compreende as razões pelas quais ele foi convidado a ler. Por
outro lado, a construção de experiências pertence ao mundo subjetivo
do estudante, por isto, ela não é algo que acontece externamente, como
assistir uma aula ou ler um texto descompromissadamente.
A experiência é algo que “nos acontece” internamente, razão pela
qual duas pessoas, numa mesma situação, não constroem a mesma ex-
periência (BONDÍA, 2002). Os modos como cada estudante constrói
sentido(s), em relação às suas práticas, são particulares/individuais. Para
uns estudantes:
941
multiplicidade de fatores: falta de tempo, excesso de informação, interes-
ses divergentes, dificuldades com a linguagem acadêmica ainda não supe-
radas, dentre outras razões que o estudante tem de aprender a “driblar”.
As maneiras de estudos fora da sala de aula, expostas pelos estudan-
tes participantes da pesquisa, revelam que a prática mais utilizada por
eles é a de “assistir vídeos on-line sobre o assunto estudado”. A leitura
de texto acadêmico indicado pelo docente aparece como segunda tática
mais utilizada por eles, embora eles tenham indicado que também leem
o texto e escrevem o que entenderam. Ou, “leem o texto duas vezes ou
mais”. E, num menor número de indicação aparece a prática: “leem o
texto uma vez e grifam trechos”.
Apesar de os estudantes terem declarado desenvolver tais práticas
de estudo, as leituras propostas no âmbito acadêmico nem sempre fa-
zem sentido ao estudante e, por tal razão, as práticas de leituras que eles
participam não se configuram experiências leitoras significativas para
eles. Diferentemente das experiências leitoras voltadas aos gêneros lite-
rários ficcionais indicados por eles, as experiências leitoras de gêneros
escritos acadêmicos podem ser vistas como algo não prazeroso, enfado-
nho, repleto por palavras desconhecidas pertencentes ao mundo objeti-
vo no qual os saberes de uma cultura dominante estão postos. Isso pode
levar o estudante a entender que tais práticas de leitura representam
um amontoado de informações aparentemente desconexas entre si, por
ocuparem espaço em distintos campos disciplinares.
Quando há pouco (ou ausência de) sentido relacionado às ativida-
des acadêmicas, o estudante sente dificuldades de se inserir no mun-
do acadêmico, de ampliar suas experiências leitoras e consolidar sua
identidade acadêmica. Esse pode ser o caso de alguns dos estudantes
que participaram desta pesquisa, ao revelarem incertezas quanto à per-
manência no curso de graduação e/ou a probabilidade de imersão na
pós-graduação num momento futuro. Isso denota que, para alguns, o
processo identitário acadêmico na universidade está, nesse momento
pós-pandêmico, fragilizado e demanda atenção por parte dos agentes
envolvidos.
942
Referências
BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2010.
GEE, J. P. Social linguistics and literacies: ideology in discourses. London: The farmer
Press, 1999.
943
_____. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: KLEIMAN,
A. (org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da
escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995. p. 15-61.
944
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
185
Mestranda em Estudos Linguísticos no Programa de Pós-graduação em Estudos
Linguísticos, na Universidade Estadual de Feira de Santana. Professora da rede
estadual da Bahia no Colégio Estadual Rui Barbosa.
carvalho.nah@gmail.com
186
Doutoranda em Estudos Linguísticos no Programa de Pós-graduação em Estu-
dos Linguísticos, na Universidade Estadual de Feira de Santana. Professora do
Instituto Federal da Bahia de Ciência e Tecnologia.
laysemarquesprof@gmail.com
945
como ferramenta pedagógica (JUNIOR; MONTEIRO, 2021) para o ensino
de Línguas. Os dados alcançados apontam que o uso da ferramenta padlet,
aliado ao trabalho de leitura numa perspectiva decolonial e intercultural crítica,
proporcionou aos estudantes uma prática transformadora, possibilitando-
os assumir posicionamentos, negociar pontos de vista e realizar interações e
diálogos com a referida obra.
PALAVRAS-CHAVE: Multiletramentos. Perspectiva decolonial e intercultu-
ral. Quarto de despejo.
946
Considerações Iniciais
O contexto educacional, sobretudo brasileiro, demanda reinven-
ção, considerando-se os processos culturais que o circunda. A conscien-
tização do rompimento de caráter homogeneizador, monocultural da
educação escolar e, ainda, da necessidade de construção de práticas edu-
cativas que contemplem a diferença, o multi e interculturalismo tem ga-
nhado adeptos. Entretanto, constitui-se desafiadora, uma vez que essas
concepções não são advindas das Universidades e do contexto acadêmi-
co, mas próprias de lutas dos grupos sociais discriminados e excluídos,
dos movimentos sociais, especialmente, os referidos às questões étnicas,
que constituem o espaço de produção multicultural (CANDAU, 2013).
Assim, espera-se que a sala de aula de Línguas seja também um es-
paço de oportunidades para construção de mecanismos sobre o enten-
dimento da realidade, a partir do re/conhecimento da própria cultura e
da cultura do outro; do respeito às diferenças de ordens diversas, dentre
elas as linguísticas; da tolerância; da participação crítica na sociedade;
da promoção de uma comunicação responsável e culturalmente sensí-
vel entre as pessoas (FREIRE, 1996; BORTONI-RICARDO, 2004;
MENDES, 2011). Soma-se a isso que as questões culturais, de gênero,
de raça, de classe, de crença e tantas outras, não podem ser ignoradas,
sob o risco de que a escola cada vez mais se distancie dos universos sim-
bólicos, das mentalidades e das inquietudes de crianças e jovens de hoje
(CANDAU, 2013).
Diante desse cenário, esta pesquisa adota como objeto de estudo a
obra “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, de Carolina Maria de
Jesus. Ademais, prevê como objetivo geral compreender como a cons-
trução de murais digitais favoreceu práticas sociais de linguagem que
permitiram aos estudantes assumir uma postura ativa e crítica nas aulas
de Língua Portuguesa, durante o ensino remoto no contexto pandêmi-
co, e, para tanto, almeja-se, especificamente, em uma perspectiva de-
colonial e intercultural apresentar considerações sobre a potencialidade
da utilização do padlet como ferramenta pedagógica para o ensino de
Línguas.
947
Com relação às naturezas das fontes para abordagem e tratamento
do referido objeto de estudo, optou-se em uma pesquisa-ação. O corpus
desta pesquisa foi obtido por meio de atividades direcionadas à produ-
ção de um mural digital no padlet, a partir do estudo da obra carolinia-
na, com estudantes do 2º ano do ensino médio, do Colégio Estadual
Rui Barbosa, localizado na cidade de Boninal, interior da Bahia. Para o
trabalho com a obra literária e a construção dos murais digitais, adota-
mos a concepção dialógica de linguagem com base na teoria bakhtinia-
na (BAKHTIN, 2003 [1952]). Na análise, são considerados os estudos
sobre multiletramentos (GRUPO NOVA LONDRES 2021 [1996];
AZEVEDO, 2021), as discussões sobre colonialidade e decolonialida-
de (WALSH, 2009, 2013; MALDONADO-TORRES, 2020) e inter-
culturalidade (FREIRE, 1996; STREET, 2007; CANCLINI, 2009;
CANDAU, 2013,2020).
948
acadêmicos, a discussão em torno da inserção de práticas de ensino
de línguas pautado nos multiletramentos é uma realidade há mais de
vinte anos, no entanto, com a homologação da Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2018) no Brasil, essa discussão chegou mais for-
temente nas escolas, e os multiletramentos têm sido considerados nos
currículos, motivando o trabalho com essa multiplicidade de linguagens,
semioses e mídias, além da diversidade cultural e linguística.
A proposta da Pedagogia dos Multiletramentos tem sido revisitada
por diversos pesquisadores que têm atualizado as discussões e pensando
os multiletramentos para outros contextos diferentes daqueles pensado
pelo Grupo de Nova Londres. Adotamos neste estudo as concepções
apresentadas por Azevedo (2021) a qual apresenta uma proposta de
multiletramentos em perspectiva decolonial, a fim de “sulear” as pes-
quisas em Linguística Aplicada.
Segundo Azevedo (2021, p. 76), com as reflexões produzidas pelos
integrantes do GNL, cresceu o interesse em dar visibilidade e presença a
temas e culturas que costumavam estar distantes da sala de aula. A auto-
ra enfatiza que os tipos de violência social (massacres de rua, lutas entre
gangues, silenciamento da voz de certos grupos sociais etc.) e os valores
das culturas minorizadas, entre as quais se encontra a cultura juvenil,
são temas que começaram a ter visibilidade nos espaços escolares. Para
a autora, “as visões de mundo e os valores axiológicos que constituem
tais culturas deixam de estar na “periferia” das práticas pedagógicas” e
passaram a assumir o “centro” das atenções, em um movimento de
diálogo.
Dar espaço às culturas juvenis é um meio para dar visibilidade a
um grupo social que, por vezes, pode ser calado pela opressão esco-
lar (AZEVEDO, 2021. p. 77). Nesse sentido, Azevedo (2021) desta-
ca ainda que, ao partir de um paradigma apoiado exclusivamente em
critérios técnicos e eurocentrados, estes limitam o papel constitutivo
dos grupos de estudantes na construção de saberes, o que impacta as
configurações identitárias e as relações sociais. Nessa discussão, a au-
tora apresenta seis critérios que podem orientar a prática da Pedagogia
949
dos Multiletramentos em perspectiva decolonial. Nestes critérios estão
incluídos:
950
aqueles outros que a modernidade tornou invisíveis (MALDONADO-
TORRES, 2009)
Nessa vertente, Canclini (2009) concebe a interculturalidade como
confrontação e entrelaçamento daquilo resultante das relações e trocas
dos grupos sociais. Outrossim, para Walsh (2001), a interculturalida-
de é um processo dinâmico e permanente da relação, comunicação e
aprendizagem entre culturas em condições de respeito, legitimidade
mútua, simetria e igualdade. Um intercâmbio que se constrói entre pes-
soas, conhecimentos, saberes e práticas culturalmente diferentes, bus-
cando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferença, seja de
desigualdade social, econômicas ou políticas, e as relações e os conflitos
de poder da sociedade não são mantidos ocultos e sim reconhecidos e
confrontados.
Por essa perspectiva, Walsh (2009) defende uma abordagem crítica
da interculturalidade, que se encontra enlaçada com uma pedagogia e
práxis orientadas ao questionamento, transformação, intervenção, ação
e criação de condições radicalmente distintas de sociedade, humanidade,
conhecimento e vida. A interculturalidade crítica está pautada não ape-
nas em lutar por transformações estruturais que envolvem questões de or-
dem política, social e cultural, mas “se preocupa também com a exclusão,
negação e subalternização ontológica e epistêmico-cognitiva dos grupos
e sujeitos racializados” (WALSH, 2009, p. 23), além de também se opor
criticamente às práticas que naturalizam relações assimétricas de domi-
nação, na medida em que não destacam as desigualdades e as diferenças.
A interculturalidade, pois, é vista não apenas como uma política
de fortalecimento dos saberes tradicionais, mas também como estraté-
gia de convivência com a diferença entre os povos, pautada pelos
princípios de respeito às diferenças, na perspectiva de construir um sa-
ber descolonizado que considere a heterogeneidade identitária entre as
pessoas (WALSH, 2009).
Dessa forma, ao traçar um diálogo com o pensamento de Freire
e Fanon sobre (des)colonização e (des)humanização, Walsh (2009,
p. 38) sugere o “re-existir e re-viver como processos de re-criação”,
951
propondo uma pedagogia de cruzamento que possibilita um “pensar
a partir de” e “pensar com”, ou seja, a partir da necessidade de assumir
com responsabilidade e compromisso uma ação dirigida à transforma-
ção, à criação e ao exercer projeto político, social, epistêmico e ético da
interculturalidade.
Almeida Filho (2010) destaca que o professor deve assumir uma
prática reflexiva contínua, não apenas para desenvolver-se profissional-
mente, mas também para contribuir na busca pela transformação em
alguma medida da realidade social na qual está inserido. Dessa forma,
assumir uma postura intercultural e decolonial exige a capacidade de
reconhecer, respeitar e valorizar a multiplicidade de perspectivas que os
alunos trazem com eles todos os dias para a sala de aula, considerando
que esses sujeitos fazem parte de outros espaços, para além do espaço
escolar.
952
uma postura ativa e crítica nas aulas de Língua Portuguesa, durante o
ensino remoto no contexto pandêmico.
O referido livro é uma obra da escritora brasileira Carolina Maria
de Jesus, lançado em 1960. A escritora era uma mulher negra, catadora
de lixo, semianalfabeta que com seus escritos, revelou a visão de dentro
da favela, retratando o cotidiano da exclusão e seu impacto sobre os
sujeitos que ali vivem. Carolina traz em seu diário uma escrita realista
e sensível, marcada por relatos do que viu, viveu e sentiu nos anos em
que morou na comunidade do Canindé, em São Paulo. Temas como
fome, violência doméstica, pobreza, racismo e invisibilidade social são
discutidos nesta obra a partir das experiências vividas pela autora.
A obra caroliniana é marcada por uma série de denúncias das ma-
zelas sofridas pela população que habitava/habita as favelas brasileiras.
Já no título da obra é possível verificar esse caráter da escrita enquanto
espaço de resistência e de denúncia social. O nome “Quarto de despejo”
é uma metáfora criada por Carolina. Conforme Bastos e Lima (2020, p.
78), “despejo é o local onde lixos são jogados. No caso da favela, o lixo
se refere às pessoas, aos pobres, que não cabem na cidade e são deposi-
tados na favela, como lixos. Assim, lixos e favelados se confundem na
luta diária contra a fome”.
Segundo Bastos e Lima (2020), apesar de ter sua obra traduzida
para dezenas de países e ter se tornado um sucesso editorial, o lugar
reservado a Carolina Maria de Jesus é o do “outro”. Para os autores,
a ênfase no termo favelada parece indicar a necessidade de não a in-
cluir como parte do cânone literário. A obra caroliniana acaba por
esbarrar em fronteiras de uma classe letrada elitista, o que faz com
que a autora permaneça desconhecida por grande parte da população.
Lélia Gonzalez (2020), destaca que mulheres amefricanas e amerín-
dias sofrem um duplo apagamento pois carregam o duplo caráter de
sua condição biológica (racial e sexual), fazendo com que elas sejam
mais oprimidas e exploradas em um estado capitalista patriarcal-racis-
ta dependente. Para a autora, esse sistema transforma “diferenças em
desigualdades, a discuriminação que sofrem assume um caráter triplo,
953
dada a sua posição de classe: as mulheres ameríndias e amefricanas
são, na maioria, parte do imenso proletariado afro-latino-americano”
(GONZALEZ, 2020, p. 146).
Assim, “Quarto de Despejo” é uma obra que, não só denuncia as
opressões por Carolina vivenciadas, mas, sobretudo, em razão de sua
própria existência, contesta a falta de reconhecimento da mulher negra
e pobre enquanto escritora (CORONEL, 2014, p. 276). A partir dessas
ideias, pode-se inferir que Carolina acaba por sofrer um certo apagamen-
to dentro do contexto literário. Isso acontece porque muitas instituições
privilegiam o cânone, garantindo a manutenção de um olhar coloniza-
dor para o ensino de literatura. Embora os documentos187 que norteiam
a elaboração dos currículos das escolas brasileiras sinalizem a necessidade
de se contemplar uma literatura que seja reflexo da diversidade cultural,
fazer uso dessa literatura que por muitos é tida como “marginal e perifé-
rica”, ainda se configura um desafio na Educação Básica.
Nesse sentido, a fim de um trabalho pautado na/para descoloni-
zação de saberes, apresentamos neste artigo algumas reflexões a partir
do trabalho realizado com a leitura da obra “Quarto de despejo: diário
de uma favelada”. As atividades foram planejadas à luz da pedagogia
dos multiletramentos, sendo pautadas nos quatro fatores que integram
essa pedagogia: a prática situada, a instrução explícita, o enquadramen-
to crítico e a prática transformada. Esses fatores foram considerados
dentro de uma perspectiva revisitada da epistemologia da pluralidade
(AZEVEDO, 2021). Para privilegiar as culturas juvenis e suas relações
com os novos gêneros digitais, optamos por trabalhar com o gênero
mural digital, utilizando a ferramenta padlet. O padlet (https://padlet.
com) é uma plataforma disponível na internet na qual pode-se criar
novos murais ou participar de um já existente, a partir de blocos de
conteúdo em conjunto com texto, arquivos de áudio, imagens, vídeos
e outros conteúdos por meio de linkagem. Nesta proposta, os murais
187
Documentos oficiais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997, 1998)
e a Base Nacional Comum Curricular (2018) apontam para a necessidade de um
trabalho literário que seja reflexo da diversidade cultural.
954
foram construídos a partir das relações dialógicas estabelecidas na/com
a leitura da obra.
Os murais digitais foram produzidos por estudantes oriundos de
diferentes espaços do território boninalense. Boninal é um municí-
pio brasileiro localizado na Chapada Diamantina, no estado da Bahia.
Segundo o último censo188, sua população estimada é de 13.695 habi-
tantes, com uma quantidade significante rural, incluindo comunida-
des remanescentes quilombolas. O Colégio Estadual Rui Barbosa, local
onde a pesquisa foi desenvolvida, é o único colégio de Ensino Médio
situado na cidade. A instituição atende estudantes dos mais diversos
espaços do território e de diferentes classes sociais, além de receber estu-
dantes de comunidades rurais das cidades vizinhas.
As atividades foram desenvolvidas em uma turma da 2ª série do ensino
médio, com 38 estudantes. O público participante das atividades é majori-
tariamente rural e quilombola. Azevedo (2021) tematiza a Pedagogia dos
Multiletramentos atentando para a heterogeneidade do espaço habitado.
Para a autora, “observar o espaço também possibilita confirmar a ação de
homens, mulheres, crianças e jovens, etc., mediada por variados instrumen-
tos, provoca, ao mesmo tempo, a produção do próprio espaço e a criação
de objetos culturais (AZEVEDO, 2021, p. 79). Abaixo temos um quadro
com a síntese das atividades que foram desenvolvidas nesta pesquisa-ação.
955
As atividades desenvolvidas buscaram acionar os conhecimentos
prévios dos estudantes e foram apoiadas em situações que dialogavam
com suas experiências, proporcionando momentos nos quais os edu-
candos estiveram imersos em práticas que apresentassem algo familiar.
Essa proposta está apoiada na prática situada, um dos fatores que inte-
gra a Pedagogia dos Multiletramentos. Nela, os sujeitos são imersos em
práticas que lhe sejam significativas, por isso está prevista a assunção
de múltiplos e diferentes papéis com base nas experiências de cada um
(AZEVEDO, 2021, p. 78).
O enquadramento crítico perpassou por todas as etapas da ativi-
dade. Para Azevedo (2021, p. 81) este fator se alinha plenamente às
proposições da decolonialidade. Seguindo essa lógica, buscamos com as
atividades desenvolvidas, mobilizar os estudantes para que, a partir das
interações dialógicas com a obra, pudessem assumir uma postura críti-
ca. Segundo Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020), analisar criticamente
sugere avaliação das perspectivas, dos interesses e dos motivos daqueles
envolvidos na construção de conhecimento, em que os aprendizes in-
terrogam os propósitos relacionados aos significados ou às ações, com
base na interpretação do contexto sociocultural.
A instrução explícita é um fator da pedagogia dos multiletramen-
tos que possibilita intervenções ativas por parte do professor mediador.
Como o trabalho com as múltiplas linguagens, modalidades e semioses
favorecem esforços colaborativos, a relação pedagógica deixa de ser uni-
direcionada (do professor para os estudantes), pois todos contribuem
na consecução das variadas tarefas (AZEVEDO, 2021, p. 78).
A combinação desses fatores possibilita o quarto componente, a prá-
tica transformada. Em aulas de Língua Portuguesa, a produção discursiva
e multissemiótica se configura, então, como um meio privilegiado para a
expressão dos jovens, principalmente quando o docente quer privilegiar
as culturas juvenis nas práticas pedagógicas (AZEVEDO, 2021, p. 79).
Abaixo faremos a análise de 6 comentários elaborados pelos estu-
dantes, extraídos do mural digital construído nesta atividade, a partir
das interações dialógicas com a obra.
956
Figura 01 - Comentário 01
Figura 02 - Comentário 02
957
Figura 03 - Comentário 03
Figura 04 - Comentário 04
958
os nossos modos de vida, a fim de romper paradigmas étnico-raciais,
político-econômicos, socioculturais e de gênero que nos foram impos-
tos como verdade absoluta pelos processos de colonialidade.
Figura 05 - Comentário 05
959
Figura 06 - Comentário 06
960
Considerações finais
As considerações feitas neste artigo buscaram edificar um arcabou-
ço teórico-metodológico que possa servir de meio para compreensão de
práticas educativas, pautadas nas mudanças da sociedade e nas formas
de comunicação. Dessa forma, os dados alcançados apontam que o uso
da ferramenta padlet, aliado ao trabalho de leitura numa perspectiva
decolonial e intercultural crítica, proporcionou aos estudantes uma prá-
tica transformadora, possibilitando-os assumir posicionamentos, nego-
ciar pontos de vista e realizar interações e diálogos com a referida obra.
A partir dessas reflexões iniciadas em contexto de sala de aula, os
estudantes podem começar também um movimento de reconstrução de
seus padrões de vida, modos de pensar, saber, existir e viver (WALSH,
2013). Nessa perspectiva, o estudante é considerado um indivíduo que
apresenta suas singularidades e identidades que precisam ser valorizadas
no processo de ensino e de aprendizagem, ao ocupar um papel cen-
tral em relação à construção de sentidos e à formação do pensamento
crítico.
A prática docente pautada nessa relação contempla tanto o conhe-
cimento produzido no âmbito institucional de educação como o oriun-
do da pluralidade de saberes, advindos da comunidade; viabiliza além
da aproximação escola-comunidade, a atuação dos alunos enquanto
emancipados em sua realidade local, seja pesquisando-a ou propondo
intervenções para modificá-la (GIROUX, 1997).
Em consonância com a perspectiva Intercultural e Decolonial no
ensino de línguas, o professor é visto como um mediador intercultural
(SERRANI, 2005). Esse professor mediador, segundo Kalantzis, Cope
e Pinheiro (2020), deve buscar para além de deslocar o foco do tradi-
cional, do texto escrito, para a diversidade de linguagens, sentidos e cul-
turas, para a heterogeneidade de fontes, autores e mídias, deve incluir
temas que infelizmente ainda provocam tensões, reações de intolerância
e discriminação, tais como as relações étnico-raciais, diversidade sexu-
al, questões de gênero, pluralismo religioso e relações geracionais, de
forma a suscitar um enfoque intercultural efetivo e trabalhar o ensino
961
de Línguas, numa perspectiva que promova a afirmação democrática, o
respeito mútuo, a aceitação da diferença e a construção de ambientes de
aprendizagem em que todos e todas possam se expressar na múltiplas
linguagens.
Referências
ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes. Dimensões comunicativas no ensino de lín-
guas. 6 ed. Campinas: Pontes Editores, 2010.
AZEVEDO, Isabel Cristina Michelan de. Articulação entre linguagem, discurso e cul-
tura na Pedagogia dos Multiletramentos: como os diferentes mundos da vida se fazem
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Foco, v.13, n.2, 2021. p. 75-85. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/
linguagememfoco/article/view/5565.10.46230/2674-8266-13-5565
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003
[1952/53].
962
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. ilustração
Vinicius Rossignol Felipe. - 10. ed. - São Paulo: Ática, 2014.
MENDES, Edleise. O português como língua de mediação cultural: por uma formação
intercultural de professores e alunos de PLE. In: MENDES, Edleise. (org.) Diálogos
Interculturais: ensino e formação em português língua estrangeira. Campinas, SP:
Pontes Editores, 2011, p. 137-158.
963
SERRANI, Silvana. Discurso e leitura na aula de língua. Currículo, leitura, escrita.
Campinas: Pontes, 2005.
964
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
965
PALAVRAS-CHAVE: multimodalidade, multiletramentos, imigração.
Introdução
A imigração hoje é uma das pautas mais importantes na agenda
global e tem se configurado como objeto de estudos em diversos cam-
pos das Ciências Humanas e Sociais. Em Roraima, os últimos cinco
anos têm sido marcados pela intensificação do fluxo migratório de
venezuelanos fugindo da crise social, política e econômica instaurada
na Venezuela nos governos dos presidentes Hugo Chavéz e Nicolás
Maduro.
Segundo a Agência da ONU para os refugiados (ACNUR), em
2018, 5 mil pessoas deixavam a Venezuela por dia, 94% da população
vivia na pobreza. Em 2019, 7 milhões de venezuelanos necessitavam de
966
ajuda humanitária, estima-se que 4,9 milhões de venezuelanos deixa-
ram o país de 2014 até março de 2020. Ainda de acordo com a ONU,
esse êxodo venezuelano teria ultrapassado 6 milhões de pessoas até o
final de 2020, não fosse a pandemia da Covid-19 ter alterado o fluxo
migratório.
A principal porta de entrada dos venezuelanos no Brasil é a cida-
de fronteiriça de Pacaraima, em Roraima, distante 215 quilômetros da
capital Boa Vista. Antes do fechamento da fronteira190, em março de
2020, devido à pandemia da Covid-19, dados da Operação Acolhida191,
coordenada pelas forças armadas em Roraima, apontavam que, diaria-
mente, cerca de 500 venezuelanos atravessam a fronteira com destino à
Boa Vista. Um total de 15 abrigos já foram construídos e estruturados
para receber e acolher essas pessoas. Nesses locais, são oferecidas refei-
ções, atendimentos básicos de saúde e um espaço estruturado para os
abrigarem, tirando-os, assim, das ruas.
Os números advindos da imigração expressam as mudanças e de-
mandas sociais e econômicas do estado. Setores da saúde, educação e
segurança pública são os que mais sentem as consequências da imigra-
ção. Na educação, atualmente, são mais de 6.000 alunos venezuelanos
matriculados na rede estadual de ensino192. Os imigrantes, além da si-
tuação de vulnerabilidade em que se encontram, precisam lidar com o
preconceito relacionado à língua, discriminação e xenofobia, já que a
população os culpa pela saturação dos serviços públicos e aumento da
criminalidade. Esse cenário gera uma gama de discursos e práticas so-
ciais que colidem entre si.
Nesse sentido, considerando as mudanças que a imigração vene-
zuelana provocou no cenário social de Roraima, inclusive no ambiente
190
A Venezuela reabriu oficialmente a fronteira com o Brasil no dia 24 de fevereiro
de 2022, após dois anos de fechamento por causa da pandemia da Covid-19.
191
A Operação Acolhida tem o objetivo de recepcionar, identificar, triar, imunizar,
abrigar e interiorizar imigrantes em situação de vulnerabilidade (desassistidos)
decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária. A operação é
conjunta, interagências e de natureza humanitária.
192
Dados da Secretaria Estadual de Educação de Educação de Roraima (SEED-RR).
967
escolar, este trabalho tem o objetivo de analisar como os sentidos são
produzidos semioticamente em um cartaz sobre imigração, exposto
em um local de ampla circulação de pessoas na cidade de Boa Vista-
RR. Para empreendermos esta análise, utilizamos a perspectiva da
Multimodalidade, considerando que todos os textos são multimodais
e apresentam vários modos de expressar sentido, e da Gramática do
Design Visual, empreendida por Kress e van Leeuwen (2006) aborda-
gem metodológica para a análise de imagens que se baseia no princí-
pios teóricos da Semiótica Social e da Gramática Sistêmico-Funcional
(HALLIDAY,1994), uma vez que o gênero analisado carrega diversos
modos semióticos de representação discursiva. Assim, de acordo com
Gualberto e Pimenta (2021) Gunther Kress aponta que qualquer análi-
se que se fundamente na Semiótica Social precisa
968
Multimodalidade e Multiletramento: um olhar para além do
texto verbal
Todas as pesquisas e estudos no âmbito da multimodalidade e do
multiletramento partem da premissa básica que não há textos mono-
modais, pois até os textos essencialmente verbais utilizam recursos vi-
suais como a formatação, por exemplo. De acordo com Dias (2015, p.
307) a multimodalidade, portanto, diz respeito aos “vários modos de
representação para expressar sentidos em textos de variados gêneros, na
modalidade oral e na escrita, por meio de affordances (potencialidades)”
dos diversos meios de comunicação. Os modos, por sua vez, referem-
-se a “um conjunto de recursos socialmente e culturalmente moldados
para a produção de sentido” (GUALBERTO e SANTOS, 2019, p. 10).
Assim, a multimodalidade é uma característica inerente a todos os tex-
tos, em que vários modos semióticos se articulam para construir e dis-
tribuir sentidos, a partir das práticas sociais e discursivas significativas
de cada contexto sócio-cultural.
Na Pedagogia dos Multiletramentos, o “multi refere-se a dois aspec-
tos principais da construção do significado”, o primeiro é a diversidade
social e cultural na construção de significados em diferentes situações
culturais, sociais e domínios, nos quais todos nós estamos envolvidos.
Os textos variam de acordo com os contextos sociais, e essas diferenças
estão cada vez mais significativas no modo como interagimos e cons-
truímos significados (KALANTZIS; COPE e PINHEIRO, 2020, p.
19). O segundo aspecto diz respeito à multimodalidade, pois os senti-
dos são produzidos cada vez mais multimodalmente, ou seja, o aspecto
textual está amplamente integrado ao oral, visual, sonoro, espacial, tátil
e gestual, devido à expansão dos novos meios de comunicação que de-
mandam uma integração dos modos de construção de significados e
representação.
Nesse sentido, Dias (2015, p. 312) argumenta que o foco de
uma pedagogia para os multiletramentos não está somente no modo
linguístico, mas em outros meios de comunicação para complementá-
lo, tendo em vista “seus layouts multimodais criados pelas affordances
969
das tecnologias”. Os alunos, enquanto público-alvo dessa pedagogia,
devem ser concebidos como sujeitos colaborativos, com uma tendência
a serem mais ativos na resolução de problemas pela lógica. As práticas
educativas dessa era moderna e digital devem oportunizar ao aluno o
desenvolvimento da competência comunicativa multimodal, que diz
respeito ao uso dos recursos semióticos como os gestos, sons, imagens
presentes na comunicação contemporânea.
Essas novas pedagogias, comprometidas com as questões linguís-
ticas e comunicativas que envolvem as intensas transformações sociais
da atualidade, devem buscar formar indivíduos capazes de encarar as
mudanças, compreender a diversidade, comunicar-se de maneira eficaz
em contextos variados, e de construir significados e participar deles em
uma ampla variedade de configurações culturais.
970
da Gramática Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994) da linguagem
verbal para a linguagem visual, com o objetivo promover uma análise
mais ampla de textos multimodais. Assim, as três categorias de aná-
lise da GDV considerando os significados propostos por Kress e van
Leeuwen (2006) são: representacionais, interacionais e composicionais.
Apresentamos abaixo uma imagem do gênero textual cartaz, o qual
estava fixado na entrada de um dos supermercados de uma grande rede
varejista em Boa Vista, capital de Roraima. Esta rede varejista é conhe-
cida por empregar um considerável número de imigrantes em seus es-
tabelecimentos, desde o início da intensificação do processo migratório
de venezuelanos para Roraima.
971
[...] os modos semióticos de escrita e comunicação visual têm,
cada um, seus próprios meios particulares de realizar o que po-
dem ser relações semânticas bastante semelhantes. O que na
linguagem verbal é realizado por palavras da categoria ‘verbos
de ação’, visualmente é realizado por elementos que podem ser
formalmente definidos como vetores. (tradução nossa)193
972
O processo simbólico é representado pelo pano de fundo branco,
o qual representa metaforicamente, um lugar indefinido, desconheci-
do, incerto, mas, ao mesmo tempo, algo positivo, simbolizado pela cor
branca, a qual tradicionalmente remete à paz e à bonança.
Os significados da metafunção interacional dizem respeito ao ali-
nhamento (ou não) dos participantes representados (PR) e os parti-
cipantes observadores (PO), aqueles que veem a imagem, ou seja, os
leitores. Nessa imagem analisada, o contato entre os participantes é im-
pessoal, pois o PR não estabelece contato do olhar direto com o leitor,
os participantes, ao olharem para o horizonte, de costas para o leitor,
ficam expostos ao olhar do leitor, o que é denominado de oferta.
Em relação à distância social, com o foco no tipo de enquadra-
mento utilizado, o plano é aberto (long shot), o que confere maior im-
pessoalidade entre o PR e o PO. A atitude, em que se focaliza o ângulo
adotado em relação ao posicionamento do corpo do participante repre-
sentado em relação ao leitor, nesse caso, o ângulo destacado é o oblíquo
que confere mais distanciamento entre participantes e leitores. A última
subcategoria de análise da metafunção interacional é o poder, a qual
está relacionada ao ponto de vista do leitor em relação ao participante.
Na imagem, o leitor observa os participantes no nível do olhar, o que
confere posição de igualdade de poder entre eles.
A metafunção composicional tem o foco nos recursos semióticos
que operam na composição da imagem como um todo: o verbal e o
visual. Na imagem, o valor informacional é identificado pela posição
dos elementos no centro/margem, o elemento verbal “E se fosse você?”,
no centro; e o elemento visual, os participantes caminhando em fila,
elemento visual, localizado na margem, com o objetivo de completar os
significados produzidos pelo elemento verbal.
Nesta imagem, a saliência, que define a relevância dos elementos
dando maior ou menor destaque a eles, está no elemento verbal “E se
fosse você?”, escrito em letras maiúsculas, na cor preta, fazendo contraste
com o fundo branco, é o elemento que possui maior destaque em toda
a composição da imagem. Nesse sentido, Kress e van Leeuwen (2006,
973
p. 202)194 destacam “os espectadores de composições espaciais são in-
tuitivamente capazes de julgar o ‘peso’ dos vários elementos de uma
composição, e quanto maior o peso de um elemento, maior sua saliên-
cia.” Portanto, a saliência em determinado elemento tem o objetivo de
atrair a atenção do leitor, ela é determinada pela localização, tamanho,
contraste de pano de fundo, contraste de cores. Dessa forma, a saliência
cria uma hierarquia de importância entre os elementos, fazendo com
que uns chamem mais atenção que outros.
Na imagem analisada, o aspecto da saliência é fundamental para o
objetivo comunicativo do gênero. Ele é o elemento que promove uma
interação mais “direta” com o leitor, uma vez que esta saliência é ex-
pressa em forma de pergunta, incitando o leitor a respondê-la ou re-
fletir sobre ela. Assim, o efeito discursivo dessa imagem é de interação,
provocando a empatia entre o leitor e os participantes representados na
imagem.
Nessa breve análise, a partir da GDV, podemos perceber o potencial
comunicativo dos textos multimodais, como textos que carregam no-
vas identidades e vários modos de representação para gerar e distribuir
sentidos. Essas representações são motivadas por interesses específicos,
uma vez que o“uso do signo visual nunca é neutro” (NASCIMENTO,
BEZERRA, HERBELE, 2011, p. 531), posto que é uma definição da
realidade social. Assim, o fato de este cartaz estar exposto em uma das
maiores empresas privadas da cidade, denota o engajamento social da
empresa frente à crise migratória e o comprometimento em combater
práticas discriminatórias contra os imigrantes, estimulando o acolhi-
mento destes.
194
Do original: The viewers of spatial compositions are intuitively able to judge the
‘weight’ of the various elements of a composition, and the greater the weight of
an element, the greater its salience.
974
Análise de imagens à luz da multimodalidade e
multiletramentos: uma proposta pedagógica para os anos
finais da educação básica
Considerando o que foi discutido até aqui acerca de textos mul-
timodais, multiletramentos, as categorias analíticas de significados da
GDV e o atual cenário sócio-cultural de imigração em Roraima, nesta
seção apresentamos uma proposta de análise de imagem a ser desenvol-
vida na aula do componente curricular Língua Portuguesa, com alunos
da educação básica, mais especificamente alunos do 9º ano, os quais
acreditamos terem um maior amadurecimento intelectual para esse tipo
de atividade.
Assim, essa proposta tem objetivo de:
1. Mostrar como texto verbal e o visual se articulam na construção
de sentidos em uma imagem;
2. Estimular os alunos a construírem textos multimodais a partir de
suas leituras e percepção de mundo;
3. Promover um pensamento crítico sobre o cenário local de imi-
gração e refúgio, fomentando a integração, a empatia e o acolhimento
aos alunos imigrantes.
Como bem sabemos, a era digital e novas tecnologias provocaram
impactos nos textos contemporâneos e na forma como nos comuni-
camos. Os alunos estão cada vez mais conectados, expostos a textos
multimodais e modos semióticos que se imbricam e se inter-relacio-
nam, seja na página, na tela do computador ou nos dispositivos móveis
(DIAS, 2018). Dessa forma, as “novas pedagogias” devem considerar
as mudanças que a sociedade atual vem sofrendo e seus efeitos práticos
sobre as novas tecnologias de comunicação. Devem promover o desen-
volvimento de aprendizes flexíveis e colaborativos, capazes de pensar de
modo divergente, capazes de se posicionarem criticamente em contex-
tos complexos e cada vez mais sujeitos a mudanças. Sujeitos que possam
transitar confortavelmente entre multiletramentos e terem uma postura
ativa e crítica diante de novas configurações sócio-culturais.
975
Nessa proposta, primeiramente, apresentaremos (com auxílio de
projetor) a imagem abaixo, que é um post retirado da rede social insta-
gram, da conta oficial da ACNUR Brasil, em seguida estimulamos um
debate sobre o tema. É importante destacar, nesse momento, a presença
de alunos imigrantes na sala, e enfatizar que o debate deve ser realizado,
acima de tudo, respeitando a opinião de todos.
976
Essas questões apresentadas perpassam pelas categorias de análise
da Gramática do Design Visual. Assim, podemos perceber que mesmo
a abordagem da GDV sendo tão ampla e complexa, podemos adaptá-la
de maneira exequível para a sala de aula e, assim, promover uma análise
de imagem mais significativa para os alunos.
Após a discussão coletiva, vamos propor que cada aluno produza
um post sobre imigração e refúgio, enfatizando a importância da recep-
tividade, acolhimento, da empatia, do respeito às diferenças, e de que
maneira é possível ajudar um imigrante recém-chegado.
Para desenvolver essa atividade, os alunos precisarão pesquisar
em diversas fontes como sites, blogs, jornais online, revistas, páginas
de redes sociais, e outros, o que os colocarão diante de vários textos
multimodais, levando-os a observar a composição, a construção de
sentidos e as representações destes. Além de aprofundarem seu conhe-
cimento sobre questões que envolvem o processo migratório, fazen-
do-os a refletir criticamente sobre um tema que é de relevância global
e local. Nessa perspectiva Kalantzis, Cupe e Pinheiro (2020, p. 27)
afirmam que
977
Considerações Finais
Cada momento da história nos impõe desafios diferentes. Hoje esta-
mos diante do desafio de lidarmos com o advento das novas tecnologias
e sua gama de novas práticas textuais. Os novos modos de comunicação
exigem de nós o desenvolvimento de uma “competência comunicati-
va multimodal” (NASCIMENTO, BEZERRA, HERBELE, 2011, p.
530) para atuarmos em um mundo em que o verbal está cada vez mais
sendo substituído pelo visual. Dessa forma, é premente a inclusão de
práticas de multiletramentos nas escolas, de modo que os aprendizes
sejam instrumentalizados para serem atuantes e protagonistas diante
das exigências comunicativas que o moderno exige.
Neste trabalho, vimos a potencialidade que os textos multimo-
dais possuem no sentido de construir e propagar sentidos, e que os
recursos semióticos nesses textos traduzem uma realidade socialmente
construída.
As duas imagens trazidas aqui tratam de um tema de extrema re-
levância social no atual contexto de Roraima e associar essa discussão
a práticas de letramentos é muito oportuno no sentido de promover
uma aprendizagem mais significativa e crítica aos alunos, tendo em vis-
ta uma formação colaborativa e cidadã. Conforme preconiza Kalantzis,
Cupe e Pinheiro (2020) e Dias (2015), os aprendizes de hoje traba-
lham de forma colaborativa, constroem de forma conjunta e continuam
aprendendo além da sala de aula usando as mídias sociais para expandir
seu conhecimento. Por meio de uma aprendizagem ubíqua, são capazes
de se autoavaliar criticamente, negociar diferenças e agir proativamente
com responsabilidade social para transformar a realidade.
Portanto, esse aluno demanda professores que sejam “designers de
ambientes de aprendizagem” (KALANTZIS, CUPE E PINHEIRO,
2020, p. 27) que também sejam colaborativos e gerenciem ambientes
de aprendizagem multifacetados, promovendo uma educação linguís-
tica crítica que de fato trabalhe os dois “multi” dos multiletramentos.
978
Referências
BEZERRA, F.; NASCIMENTO, R. G.; HEBERLE, V. M. Multiletramentos: iniciação
à análise de imagens Linguagem & Ensino, Pelotas, v.14, n.2, p. 529-552, jul- dez.
2011
979
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
OS CAMINHOS DE UM CONCEITO
ACADÊMICO: O MARCO LEGAL DOS
MULTILETRAMENTOS NOS PLANOS
NORMATIVOS E NAS PRÁTICAS DISCURSIVAS
DE EXTENSÃO ACADÊMICA NO BRASIL
195
Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia, Professora de Ati-
vidades da Educação Básica da Secretaria de Educação do Distrito Federal e
mestranda em Linguística Aplicada pela Unicamp.
980
PALAVRAS-CHAVE: normatividade; práticas discursivas; pesquisa acadêmi-
ca; formação de professores de línguas; Multiletramentos.
1. Introdução
Em uma perspectiva sócio interacionista Vigotskiana não há um
sujeito de linguagem não permeado em um sistema sociointeracional de
agenciamentos diversos para além de uma ethos crítica e argumentativa,
981
como aborda Duboc (2020), ou seja, um sujeito de cultura. Todo obje-
to linguístico implica na necessidade de imersão em práticas discursivas
culturais em determinado contexto sócio-histórico de aprendizagem,
no qual conceber habilidades e competências linguísticas sem conceber
em quais práticas processuais e interacionais dos diversos atores envol-
vidos nos múltiplos espaços, implica em uma abordagem unilateral e
hierárquica de uma ciência em detrimento de outras. Assim, o conceito
de aprendizagem envolto ao termo linguístico dos Multiletramentos,
suscita uma análise em torno da Pedagogia dos Multiletramentos, pro-
clamada nos estudos do Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020).
Parte-se de princípio solidário de Duboc, que a investigação da
“prática social, deveria ser o ponto de partida, com a definição e o es-
tabelecimento de práticas pedagógicas a posteriori. Qualquer estabe-
lecimento de uma prática pedagógica a priori é fadada ao fracasso.”
(DUBOC, 2020, p.2338)” Neste estudo ampliaremos como uma
premissa de pesquisa contemplando a ciência pedagógica pelo prisma
de Saviani(2000) da problematização da prática social inicial. Algo
contemplado nos processos de conhecimento apresentados pelo New
London Group, alicerçados na defesa por uma prática situada que expe-
riencia o novo. Assim, pesquisas interdisciplinares são imperiosas para
analisar esses fenômenos de linguagem que compõem em um mesmo
plano comunicacional elementos em forças e coerências talvez distintas
com os fenômenos educacionais, principalmente didáticos.
Assim, pode ocorrer uma assimetria entre objeto linguístico expres-
so na normativa federal perante as linguagens didáticas plurais do plane-
jamento docente. Movimentos inversamente proporcionais atendendo a
concepções divergentes de educação. Uma ambivalência potencial como
contemplada por Fairclough (2016) no qual a força textual de compo-
nentes prescritivos coexiste nos enunciados proposicionais no mesmo
campo documental. Para tal, é importante analisar para além do con-
texto precedente dos conhecimentos teóricos expressos, mas o contexto
situacional que envolve o processo de produção, antes mesmo da dis-
tribuição e consumo de determinados materiais linguísticos na cultura.
982
Este foco problematiza um possível uso animado dos termos aca-
dêmicos para camuflar autorias normativas em forças distintas, riscos a
pesquisas envoltas com o compromisso apenas nos legados tradicionais
teóricos e não contemplando perspectivas mais decoloniais na investi-
gação dos dilemas situados. Focalizar, a partir do prisma de especialis-
tas, marca presente em muitas linhas de pesquisa, podem corroborar
com a produção de discursos de culpabilização de sujeitos históricos
em detrimento de análises hermenêuticas, analisando amplos agen-
ciamentos políticos e acadêmicos relacionais ao ensino de línguas no
país, outro ponto sendo investigado e problematizado na pesquisa em
andamento do mestrado. Masscheilein(2014) e Simons(2014) alertam
para o domínio das perspectivas de narrativas de especialista na análise
dos fenômenos relacionados a pedagogia, no qual o distanciamento de
análise torna a construção do enunciado e das práticas discursivas, uma
convergência aos temas de conhecimento e objetos científicos e não
das problematizações didática vivenciadas no espaço escolar. De acordo
com Maher(2010) ao abordar os estudos de Wilkins(2010, p.35) muito
do fracasso em políticas linguísticas pode ser explicado “porque a sua
formatação fica a cargo de outsiders, os quais, embora quase sempre
muito bem intencionados, tem conhecimento apenas parcial da cultura
local e sua dinâmica social.” Existem significados interpessoais oriundos
da experiência no qual a problematização irá convergir com o conheci-
mento em instrumentalização como aponta Saviani (2000) e não como
subordinação como alguns núcleos apresentam ao defender para o en-
sino de línguas uma produção de designs superiores em um viés crítico.
O que implicitamente se apoia em um princípio de uma ethos solitária
e independente aos meios e culturas.
Os estudos linguísticos se apresentam em primazia à concepção de
pedagogia, apresentada em algumas linhas como uma prática de execu-
ção (por isso o enfoque comum na área pelo ensino e não contemplar
conceitos de aprendizagem) e não como uma ciência, tornando os es-
paços de capacitação profissionais docentes em escopos IN(formativos)
aos núcleos acadêmicos e não uma concepção de form(ação) contínua
983
as práticas situadas docentes em país tão plural e complexo como o
Brasil. Em minha pesquisa de mestrado parto em defesa da reflexão e
problematização de determinados termos na LA, a partir dos conceitos
de aprendizagem. Por isso, defendo a distinção de políticas de exten-
são de IN(formação) universitária, das políticas situadas na form(ação)
continuada dos ambientes educacionais, no qual formas e teorias estão
alicerçadas a perspectiva situacional e cultural. Assim nesta etapa quan-
titativa apoiada nas reflexões sistêmico funcionais de Fairclough(2016),
no qual qualquer enfoque na linguagem, implica em compreender os
usos discursivos em quadro tridimensional, para muito além do texto e
seus designs e composições, mas analisar as práticas discursivas e sociais.
“O discurso como política é não apenas um local de luta de poder, mas
também um marco delimitador na luta de poder, ideologias particulares
e as próprias convenções, e os modos em que se articulam são um foco
de luta.” (FAIRCLOUGH, 2016. p.99).
Para Maher (2010, p.37) “a representação é um processo discur-
sivo, um processo de significação culturalmente determinado e sócio-
-historicamente construído.” Para tal se torna necessário analisar para
além de enunciados, as identidades que são desenvolvidas nos proces-
sos de conhecimento coletivo. Aliado às contribuições dos constructos
analíticos dos Multiletramentos quanto a análise da espacialidade e a
sua relação com as práticas colaborativas acadêmicas de produção de
conhecimento. No qual, “espaços moldam fluxos, que são maneiras pe-
las quais nos movemos através dos espaços cujos significados são base-
ados em suas funções, projetadas por pessoas.” (KALANTZIS, COPE
E PINHEIRO, 2020, p.274). Assim o mapeamento estatístico do qual
apresentaremos um elemento parte do princípio que esse fluxo permite
possibilitar um direcionamento da nossa atenção em outras dimensões
menos lineares e mais dimensionais que permite contemplar a situa-
cionalidade e não a funcionalidade de determinado campo comuni-
cacional. Para tal, nos apoiaremos na estrutura das práticas discursivas
colaborativas e na intencionalidade dos estilos de eventos acadêmicos
984
das Universidades Públicas em todo o país. Não compreender o caráter
longitudinal com determinado contexto é assumir que qualquer traba-
lho de divulgação de tópicos acadêmicos se constitui em formação con-
tinuada, no qual separa as Universidades de um comportamento básico
imperioso na ciência educacional, investigar os dilemas plurais do seu
público alvo, que não são apenas os objetos linguísticos. Santos (2020,
p.09) alerta para o impacto deste distanciamento dos núcleos acadê-
micos a uma cidadania, não de um “megacidadão”, mas do comum
das práticas cotidianas, no qual “a política que deveria ser a mediadora
entre as ideologias e as necessidades e aspirações dos cidadãos, tem se
demitido dessa função Se mantém algum resíduo de mediação, é com as
necessidades e as aspirações dos mercados.” Street(2014) alertava para
a exploração do analfabetismo como uma retórica predominante do
discurso político e condicionador das práticas e eventos de letramen-
tos, em discursos de culpabilização de sujeitos a condições muito mais
amplas. Monte Mór (2015) apresentava a dupla dimensão que envolve
o conceito de crítica em planos diferentes. No qual há um “criticism”
não necessariamente vinculado a uma critique. Por isso a ambivalência
se torna um foco interessante nesse viés fronteiriço entre as duas áreas
de pesquisa.
985
Podemos perceber a ambivalência expressa por Fairclough (2016)
nesse fragmento presente no campo 5.1 denominado: A área de
Linguagens e suas Tecnologias. No qual o termo Multiletramentos
já aparece relacionado a um campo semântico vinculado a um viés
fortemente vinculado a um conceito de tecnologia em um populismo
tecnófilo. Como apropriação de recursos técnicos e um complemento
ao letramento valorizado. No qual vincula a sua concepção a uma nova
prática social dependente de novos ambientes midiáticos de apren-
dizagem. Assim, começa a oração declarando um duplo movimento
entre proposições e prescrições no mesmo enunciado. O que para a
Linguística Aplicada em tese não seria tão preocupante, é alarmante
para a ciência educacional perceber a prescrição tecnicista e que clara-
mente condiciona o interculturalismo a uma submissão a escrita da lín-
gua uno nacional considerava valorizada ao pluralismo linguístico em
modalidades e em interculturalidades. Como os letramentos poderiam
apagar uma valorização da escrita? Por qual razão é expresso em tom
prescritivo uma série de condicionamentos às práticas discursivas rela-
cionadas a presença da perspectiva, reduzindo a um uso e não premis-
sa pedagógica na organização do trabalho pedagógico em Linguagens?
Em uma disposição espacial fica claro a presença do termo como um
animador e não autor das práticas de conhecimentos relacionadas à di-
dática da língua portuguesa em sala de aula.
986
Quadro 1: Ambivalências entre normatividades
didáticas e proposições linguísticas.
987
Para tal, exploraremos o materialismo cibernético arquivado pelos
núcleos acadêmicos em torno da publicização de suas práticas discur-
sivas de produções científicas e de compartilhamento temáticos, cole-
tados em abril de 2022 parte de um projeto temático solicitado pela
Orientação. Em uma breve pesquisa recente no Google, em julho de
2022, em um simples cruzamento de parâmetros fechados encontrare-
mos a seguinte tendência. A predominância do pilar da multimodalida-
de ao pilar do multiculturalismo, ambas premissas interseccionadas dos
Multiletramentos. O segundo termo, tem o seu uso cultural muito mais
amplo do que o atrelado à perspectiva linguística. Então, acrescentando
o valor multiletramentos chegamos a esta performatividade, no qual o
termo letramento digital tem mais densidade de produção que o termo
multiculturalismo. Ambos abaixo do impacto do termo multimoda-
lidade na plataforma. O protagonismo do termo pode suscitar uma
defesa acadêmica ligada a práticas de ensino e a exploração de designs
discursivos como pontos de partida ao planejamento docente.
988
intenção, referência e estrutura relacionadas ao campo de produção de
determinado gênero publicitário.
989
No campo de referência percebemos na titulação de ambos os even-
tos, o protagonismo da expressão multimodalidade, no primeiro a um
viés de ensino de Língua Portuguesa e no segundo evento as práticas de
Interação como potencialidade para a educação. O diálogo a ser esta-
belecido são por lives em formato comunicacional streaming no qual o
caráter de profusão predomina e centraliza nos palestrantes e no controle
enunciativo. No primeiro evento uma especialista de conhecimento e
no segundo ocorre a presença de ambos os pólos, especialista e professo-
res atuantes na rede municipal, tornando a estrutura de ambos eventos
coerentes, uma especialista focada no ensino não necessariamente nas
aprendizagens e no segundo evento o foco claro na premissa da interação
para potencializar relações na educação, oportunizando o protagonismo
dos educadores em um contexto situado. No segundo flyer a professora
aparece em paralelismo ao especialista no campo central da imagem.
Por fim, analisaremos a performatividade do termo Multiletramentos
na composição temática de eventos de letramentos acadêmicos publiciza-
dos nas plataformas públicas nacionais universitárias em todo o país, dados
coletados em abril de 2021 durante o período de ensino remoto provocado
pela tragédia do coronavírus, no qual uma série de análises paralelas são
possíveis e instigantes para compreender os caminhos diversos e heterogê-
neos dos termos a depender da região e da intenção in ou formativa.
990
Percebe-se no gráfico a centralidade por práticas de divulgação aca-
dêmica pontuais e de baixa carga horária, no qual o foco é comparti-
lhamento de práticas de pesquisa científica e não atuação em práticas
sociais diante de dilemas de aprendizagem. Destaque para os seminários
como principal evento de letramento acadêmico para compartilhamen-
to entre pesquisadores sobre suas compreensões relacionadas à perspec-
tiva dos Multiletramentos. A região Nordeste se destaca em relação às
demais, apresentando ações em quase todos os tipos e gêneros discursi-
vos colaborativos em contraposição a região norte. Importante ressaltar
que bastava um seminário organizado pela Universidade para registrar
um S no seu espaço, assim, quando se aponta no gráfico, sinaliza que
o termo apresentado estava em estudos de 47% das Universidades, o
que não significa que os eventos anuais são parte contínua do debate.
A sensação pós pesquisa são de projetos pioneiros em alguns centros,
tanto nos Seminários como nos cursos de extensão.
O silenciamento universitário foi evidenciado no gráfico, mesmo
com a expressiva pesquisa acadêmica contemplando a perspectiva de
multiletramentos, quase não foram ofertadas lives das universidades so-
bre o tema. Para chegar a esses índices foi pesquisado se a Universidade
ofertou alguma live relacionada ao tema multiletramentos, ou até letra-
mentos no plural. Com destaque ao Sul (35% das universidades partici-
param) e o Nordeste (46% das Universidades participaram). Contudo,
quando buscamos referências a políticas menos transmissíveis e mais
interativas de mediação comunicação coletiva sobre o tema, os índices
foram desanimadores. Uma alta predominância de cursos de curta du-
ração e apenas medidas espaçadas de alguns pesquisadores em seminá-
rios e colóquios.
O termo multiletramentos é muito recente, mas a proporção de
citação em pesquisas em políticas extensivas sinaliza o comportamento
das Universidades de atrelar apenas como base de pesquisa e não como
base formativa a sociedade. Neste mapeamento inicial encontramos
práticas que dialogam diretamente com a BNCC, pois os poucos cur-
sos articulados e disponibilizados arquivados em nosso levantamento
991
priorizaram a abordagem multimodal ou até mesmo de um letramento
digital a abordagens que contemplam o multiculturalismo na compo-
sição dos eventos, o que talvez convidasse a pesquisa de conhecimento
a caminhar próximo dos seus públicos heterogêneos e plurais nos am-
bientes escolares.
Conclusão
O desafio que se apresenta é compreender que o processo de atri-
buir sentidos e significar não pode ser compreendido desprendendo o
ser do impacto do meio e das suas materialidades e apenas considerando
o discurso primário, em suas relações conscientes. O conceito de multi-
letramentos apresentado por Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) devota
ao design um duplo significado (substância e fluxo). A materialidade da
língua irá se reverter em um design disponível que ali será ressignifica-
do por sujeitos e irá compor culturas. Esse processo de representação é
único a cada posição do sujeito em suas configurações subjetivas, mas
há determinadas representações que são herdadas pelas tensões ao qual
se apresentam nos discursos culturais e históricos.
Pesquisadores defendem a divulgação científica ao público comum
como uma forma de mediar e equilibrar desvios intencionais no uso
desses conceitos, contudo um fato se apresenta como um desafio às
Universidades, o seu raio de profusão comunicacional e a sua não in-
tenção formativa nas práticas de pesquisa. Nesta abordagem é possível
perceber uma heterogeneidade de defesas compreensões por parte dos
núcleos acadêmicos em torno da concepção dos Multiletramentos, lon-
ge de ser uma performatividade homogênea e coesa.
As Universidades, sem recursos federais dificilmente oferecem for-
mações continuadas de longa extensão, encontramos apenas algumas
ações pioneiras, mas diante do global são exceções, o foco maior são
práticas situadas IN(formativas), vinculadas a pesquisas científicas e
práticas discursivas entre especialistas, que irão se converter em mini
cursos ou cursos de extensão, divulgadas a uma restrita comunidade. A
divulgação científica não necessariamente concebe o seu material para
992
o amplo entendimento e dilemas do cidadão docente no exercício didá-
tico e diantes dos dilemas situacionados, mesmo que assim conseguis-
sem, seria o suficiente para contrapor o discurso federal em normativas
e plataformas federais financiadas por verbas federais e consumida por
toda uma nação?
O intuito da pesquisa não é conceber causas determinísticas e si-
lenciar ou apagar sujeitos da análise, contudo é lançar problematização
a um espaço meso-social, no qual é preciso compreender para além de
sujeitos e suas relações locais, como a sociedade brasileira se organizou
dentro de um determinado período nas práticas formativas e quais de-
safios se apresentam a essas novas propostas assíncronas para mediar
a formação continuada no país em tempos tão complexos. Para tal é
preciso compreender uma certa dimensão realista crítica, não como
leis universais modeladoras de comportamentos humanos, mas um pa-
norama nacional de como estamos produzindo discussões ou não em
torno de problematizações sociais. A realidade não é algo constatável e
imutável, mas algo que apresenta discursos em estabilidades e hierar-
quias e é interessante perceber as tensões que se apresentam na cultura
e no design da formação continuada. Há uma multiplicidade de defesas
multimodais e de tecnologização dos gêneros discursivos em primazia a
abordagens interculturais dentro dos núcleos acadêmicos e respaldados
por um poder público que recentemente se empenhou por incorporar
nessas plataformas termos como literacia. A base fortemente defensora
de uma pedagogia ainda autônoma e meritocrática explora esse fluxo
acadêmico, no qual a ambivalência pode ser um caminho para uma
nova composição de designs para a políticas não meramente transmis-
síveis mas como compromisso a uma ação situada, no qual as formas
atuam em convergências a aprendizagens e não a ideologias behavioris-
tas e neoliberais.
Referências
DUBOC, Ana Paula; FERRAZ, Daniel; SOUZA, Lynn M. M. Pesquisas, políticas e
práticas educacionais em curso: conversa com Ana Paula Duboc e Lynn Mario Menezes de
993
Souza sobre heterogeneidade e normatividade. In: Trabalhos em Linguística Aplicada, v.
59 ou n.2 59, p. 2330-2355, set/dez. 2020.
994
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
DIFICULDADES, POSSIBILIDADES E
REFLEXÕES DE UMA PROFESSORA DE
INGLÊS ACERCA DO ENSINO REMOTO
EMERGENCIAL NA EDUCAÇÃO BÁSICA
196
Professora efetiva de Língua Inglesa (SEDUC-MT) e Mestranda do Programa
de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal de Mato
Grosso, raiane.pcampos@gmail.com
995
ABSTRACT: This article aims to present the experience of an English
language teacher from a public school in the basic education network of
the state of Mato Grosso in the context of the Covid-19 pandemic. The
theoretical/methodological basis used to substantiate my experience report
is a qualitative, interpretive, auto-ethnographic nature, Ludke and André
(1986) point out that this method has been widely used in research in the
field of education, the texts used as a foundation are by Moita Lopes ( 2006),
Flick (2013) and Ludke and André (1989), since English language teaching in
the context of public basic education must consider social, economic, cultural
aspects and, in the context of this research, add the reality of a pandemic that
emphasized the socioeconomic aspects and damage to education, investigating
and reflecting on the events of that period is relevant. Autoethnographic
research has as its main characteristic the non-dissociation of the researcher
and the research object, taking into account the author’s subjectivities, Ono
(2018) highlights that this procedure can make science something more
human and by reflecting and analyzing its own experiences will be more likely
to provide improvements in their context. The provisional data indicate that
emergency remote teaching presented several obstacles and anxieties regarding
the teaching-learning process. However, in the face of globalization and the
use of technology in all areas of human life, digital literacy is necessary. In this
way, the physical teaching space should promote digital literacy and new ways
of learning.
KEYWORDS: English language; Emergency Remote Teaching; Experience.
1. Introdução
O ano de 2020 iniciou com uma notícia infeliz, a pandemia cau-
sada pela Covid-19197. As medidas de biossegurança transformaram os
modos de trabalhar, estudar, interagir e realizar tarefas cotidianas. No
Brasil, assim como em outros países, a única alternativa possível para o
desenvolvimento das atividades escolares era o ensino remoto em cará-
ter emergencial, apesar da extrema relevância do espaço físico escolar,
naquele momento, o mais importante era preservar vidas. Em março de
2020, quando o ministério da saúde regulamentava a primeira quaren-
197
A Covid-19 é uma doença infecciosa causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e
tem como principais sintomas febre, cansaço e tosse seca.
996
tena visando conter a propagação do vírus, poucos imaginavam ser só o
começo de um árduo período que se arrastaria por dois anos.
Desse modo, no estado de Mato Grosso, as aulas na rede públi-
ca de ensino foram suspensas e após um período de planejamento e
formação continuada para os profissionais, teve início o ano letivo na
modalidade remota, vale destacar que as circunstâncias do referido con-
texto e o caráter emergencial impossibilitou uma formação completa,
crítica-reflexiva e de qualidade que possibilitasse o melhor proveito das
TDIC (Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação) no pro-
cesso educacional.
Desafios são uma constância no exercício da docência em escolas
públicas no Brasil, diariamente professores têm de lidar com discursos
que desvalorizam a profissão, escolas com estruturas precárias, falta de
recursos e materiais adequados, violência, crianças/adolescentes oriun-
dos de realidades tão difíceis que o processo de aprendizagem fica com-
prometido. No que concerne especificamente ao ensino de uma Língua
Adicional (LA), há o fato da carga horária reduzida que prejudica muito
o desenvolvimento das atividades escolares. No contexto pandêmico
todos esses obstáculos ganharam maior dimensão acrescidos de novas
adversidades, das quais trataremos adiante.
Tendo em vista as consequências da pandemia para a educação no
mundo todo, o objetivo deste texto é compartilhar uma experiência
com o ensino remoto de língua inglesa no contexto pandêmico em uma
escola pública, pretendendo contribuir para discussões, reflexões e es-
tudos da área.
2. Metodologia
O relato, apontamentos e reflexões aqui apresentados serão abor-
dados pelo método qualitativo-interpretativista de cunho autoetnográ-
fico. Estudos na área educacional, com frequência, buscam compreen-
der, analisar e investigar contextos específicos visando o processo e o
significado dos eventos ali ocorridos, ou seja, não buscam um resultado
997
definitivo quantificado, como apontam Ludke e André (1986) apud
Bodgan e Biklen (1982), o processo é mais importante do que o pro-
duto. “O interesse do pesquisador ao estudar determinado problema
é verificar como ele se manifesta nas atividades, nos procedimentos e
nas interações cotidianas.”, dado que o objetivo aqui é compreender e
ressignificar a experiência de lecionar inglês remotamente no contexto
pandêmico e por se tratar de um cenário ímpar o melhor caminho a se
tomar para a análise dos dados é o interpretativismo, pois “[...] na visão
interpretativista, os múltiplos significados que constituem as realidades
só são passíveis de interpretação. É o fator qualitativo, ie, o particular,
que interessa.” (MOITA LOPES, 1994, p. 332).
Com referência a autoetnografia é um método de pesquisa quali-
tativa com base na etnografia, seus aspectos reflexivos e subjetivos po-
dem acarretar resultados positivos para o contexto pesquisado, já que
diferente da etnografia, nessa abordagem pesquisador e pesquisado
são os mesmos, Ono (2018) argumenta que as reflexões e significados
construídos na utilização da escrita autoetnográfica podem favorecer o
crescimento profissional e intelectual do pesquisador, além de que “[...]
o processo autoetnográfico expande as possibilidades de se investigar
questões educacionais que não focalizem a busca por um padrão ou
uma verdade, mas as verdades localizadas e contextualizadas.” (ONO,
2018, p.57), ou seja, as experiências, emoções e significados atribuídos
pelo pesquisador/objeto de pesquisa são o foco central.
Dessa maneira, por se tratar de um relato de experiência, a autoet-
nografia se mostrou apropriada, além de possibilitar mudanças profis-
sionais, acadêmicas e contribuir para discussões referentes a um contex-
to tão ímpar ocorrido na educação mundial.
Isto posto, trago neste texto um relato de experiência de uma pro-
fessora de inglês da rede estadual mato-grossense de educação. O ensino
remoto em caráter emergencial foi instituído no período de agosto de
2020 a julho de 2021. O objetivo principal deste trabalho é a partir
da minha experiência como docente com o ensino remoto em caráter
emergencial em uma escola pública discutir, refletir e compreender as
situações, desafios e aspectos do ensino no contexto pandêmico.
998
3. O ensino remoto em caráter emergencial
As pessoas vivem em constante processo de mudança, sempre bus-
cando soluções práticas e rápidas, a tecnologia tem sido a grande res-
ponsável pelas mudanças mais significativas na vida humana. No âm-
bito educacional não poderia ser diferente, as crianças e adolescentes
aprendem de formas diferentes, por vezes, apresentam habilidades que
seus pais e avós não possuem. Um exemplo das novas demandas edu-
cacionais é o letramento digital. Rezende (2016) explica que estamos
diante de um “novo ethos”, vivemos a era digital e da informação, as
práticas de leitura e escrita foram modificadas, o acesso à informação se
tornou mais fácil e disponível.
999
processo de aprendizagem dos alunos. Celani (2008) afirma que educar
vai além do conhecimento específico da disciplina, “[...] pela função
moral da ação de educar, esse conhecimento tem de estar colocado à
disposição da sociedade mais ampla. Educar não é apenas um ato de
conhecimento; é também um ato político.” (CELANI, 2008, p.26).
O uso das tecnologias no processo de ensino e aprendizagem já era
algo demandado há algum tempo, porém, por vários motivos como
resistência por parte dos docentes na utilização de mídias e tecnolo-
gias, infraestrutura inadequada ou precária, fatores socioeconômicos
que inviabilizam a aquisição de recursos tecnológicos pelos discentes,
etc., vinha acontecendo de forma lenta e insuficiente, principalmente
nas escolas públicas. Então, o inesperado aconteceu, a pandemia da
Covid-19 impôs uma mudança radical para todos os professores, sem
meios termos, as aulas aconteceriam exclusivamente de forma remota e
em circunstâncias dramáticas.
Diante desse contexto, Voltero, Fioroto e Silva (2021) defendem
que fatores externos influenciam diretamente no trabalho do professor,
ou seja, além de adotar novas ferramentas de trabalho havia o elemento
emergencial que somado às novas adversidades tornaram o ensino re-
moto uma atividade laboriosa para muitos professores. Teoricamente,
professor e estudantes utilizariam uma plataforma e as aulas acontece-
riam de forma síncrona ao mesmo tempo que atividades seriam dispo-
nibilizadas virtualmente, contudo, na prática, não foi o que aconteceu.
Ensinar durante o período pandêmico na modalidade remota en-
volveu trabalhar com medo, emocional e psicológicos afetados nega-
tivamente pela doença que se alastrava, a crise econômica que acabou
intensificando a desigualdade social e a exclusão digital, em meio a
tudo isso, estavam, de um lado, os professores tendo que participar de
formações, utilizar recursos próprios para o desenvolvimento das au-
las, sobrecarregados de tarefas burocráticas e tendo que elaborar ma-
teriais didáticos para as aulas, do outro, estudantes, em sua maioria,
sem orientação ou acompanhamento da família para desenvolver as
atividades escolares, abalados psicologicamente, tanto pelo isolamento
1000
quanto por problemas financeiros, pessoais e emocionais causados pela
pandemia e excluídos digitalmente. Refletindo sobre isso, Andrade e
Mariano (2021, p.128) destacam que “O momento abre fendas para
o aumento da desigualdade de conhecimentos, ou seja, crianças com
estruturas familiar, com recursos financeiros, em que a família reconhe-
ce a importância da rotina da organização e cuidados com os materiais
apresentam melhor desempenho.”
O ensino remoto exigiu como fator substancial que professores
e discentes possuíssem acessibilidade digital, o que não aconteceu,
como mostrou uma pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos sobre
Política Educacional e Trabalho Docente da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), em parceria com a Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Educação (CNTE) intitulada Trabalho docente em
tempos de pandemia, de acordo com os resultados, um terço dos estu-
dantes não possuíam recursos para participar das aulas remotas, o que
resultou na baixa participação dos estudantes. No mesmo viés, Alves
e Oliveira (2021) constataram que 45% dos estudantes matriculados
na rede pública de ensino estadual de Mato Grosso não dispunham de
uma rede para acessar o espaço virtual.
Como apontado por Leite e Júnior (2020), as aulas de língua es-
trangeira em escolas particulares sempre distinguiram das escolas públi-
cas, apesar disso, a pandemia fez com que essa diferença se acentuasse
ainda mais, enquanto nas escolas particulares professores e alunos têm a
sua disposição todos os instrumentos para o desenvolvimento das aulas
síncronas, nas escolas públicas as aulas se dão, quase sempre, de forma
assíncrona como consequência do baixo poder aquisitivo dos estudantes.
Isso não quer dizer que devemos aceitar e replicar o discurso de que
um ensino inovador não pode acontecer no âmbito público, ao invés
disso é preciso compreender que no período pandêmico as condições
eram limitadas e continuar de onde paramos, o processo de mudança é
lento e começa quando reconhecemos e investigamos os artifícios pre-
sentes na sociedade que fomentam a exclusão digital para pensar e pôr
em prática políticas públicas de inclusão e equidade.
1001
Além disso, outro fator importantíssimo para o processo de ensi-
no-aprendizagem afetado pela pandemia foi a interação. Mesmo os que
tinham a possibilidade de interagir virtualmente alegavam dificuldades,
quiçá os que por falta de acessibilidade ficaram em casa isolados e sem
contato nenhum com colegas e professores. A BNCC (Base Nacional
Comum Curricular) defende a interação como elemento indispensável
para o processo de ensino e aprendizagem e a escola é de extremo valor
por ser um ambiente controlado onde as atividades são pensadas para
garantir êxito ao processo. Essa perspectiva de ensino-aprendizagem, o
sociointeracionismo, atrela o desenvolvimento humano ao contexto so-
cial/cultural e afirma que o indivíduo é influenciado pelo ambiente que
o cerca, tal perspectiva tem como base as teorias de Vygotsky, o mesmo
afirmava que a aprendizagem é um fenômeno social, ou seja, a interação
é indispensável para que o ser humano aprenda.
Dessa forma, entendo que o ensino exclusivamente de forma re-
mota evidenciou a importância da escola como espaço de aprendiza-
gem e interação, já que por meio das atividades propostas os estudantes
podem colaborar uns com os outros e ter a orientação dos professores
quando necessário, com isso, eles aprendem habilidades que vão além
dos conteúdos curriculares, tais como: aprender a compartilhar, respei-
tar diferenças, autocuidado, responsabilidade, cidadania, ter empatia,
colaborar/ajudar, etc.
1002
meios para assistir às aulas online e meu público nas aulas síncronas
era mínimo, tanto por problemas financeiros que impossibilitavam a
aquisição de aparelhos e internet como pela indispensabilidade dos es-
tudantes trabalharem para contribuir com a renda familiar, dessa forma,
muitos optaram pelo estudo de forma assíncrona, isto significava bus-
car e entregar uma vez por mês o material impresso na escola.
No primeiro ano de ensino remoto a participação dos alunos nas
aulas síncronas além de escassa, oscilava muito, a plataforma utilizada
pela rede de ensino, Microsoft Teams, não foi bem aceita pelos alunos,
que alegavam uma funcionalidade ruim no aparelho celular, visto que
muitos possuíam aparelhos antigos e com pouca memória, além da falta
de dados para trafegar pela internet, com isso a comunicação ocorria,
na maior parte do tempo, pelo aplicativo whatsApp que já era de uso
frequente por todos e beneficiado com dados ilimitados por diversas
operadoras de telefonia. Já no segundo ano, a plataforma escolhida foi
a Google classroom que se mostrou mais prática e acessível, o que causou
uma melhor participação dos alunos nas aulas. Porém, a meu ver, o
ensino remoto não foi bem visto pelo público estudantil, muitos recla-
mavam, diziam sentir saudade da escola, alegavam que não conseguiam
se concentrar nos estudos em casa e que as instruções e explicações dos
professores faziam falta. Sobre isso, a pesquisa de Médici, Tatto e Leão
(2020), feita com estudantes de escolas públicas mato-grossenses, evi-
denciou, além das diferenças do ensino remoto em escolas públicas e
privadas, o descrédito dos alunos pelo ensino a distância.
Apesar disso, a preocupação com os alunos que optaram pelo ensi-
no assíncrono era grande, receber uma apostila respondida não fornecia
um feedback satisfatório sobre o desempenho do discente, ademais, ha-
via o montante que desistiu de estudar. A pandemia e suas consequên-
cias foram avassaladoras para muitos alunos, problemas como fome,
saúde, desemprego, depressão, abandono familiar, violência doméstica
nunca atrapalharam tanto o acesso à educação como no contexto pan-
dêmico. Nesse sentido, corroboro com Santos (2020) quando afirma
que a pandemia não foi sentida da mesma forma por todos e que pes-
soas de grupos minoritários foram as mais afetadas.
1003
Ademais, enquanto professora, tive dificuldades para me adaptar a
ministrar aulas para “telas”, nas quais quase sempre nem via meu públi-
co, pois mantinham as câmeras desligadas, era inevitável a sensação de
solidão, a ausência do feedback instantâneo que temos quando estamos
em sala de aula, como expressões faciais e corporais, comportamento
nos dizem muito sobre o andamento da aula. Outro fator negativo foi
a sobrecarga de trabalho, apesar de estarmos em casa, o cansaço era
maior e era muito mais difícil se desligar do trabalho, não responder
uma dúvida enviada pelo WhatsApp, não atender uma solicitação da
coordenação ou editar um material, por exemplo, me percebi cheia de
funções burocráticas, a demanda de elaboração de materiais didáticos
aumentou consideravelmente, o que causava uma sensação de robotiza-
ção do trabalho e ausência de momentos para refletir e repensar minhas
práticas e planejamentos.
Diante de uma realidade tão delicada como a pandemia, o pro-
fessor foi bombardeado com diversas demandas e obrigações, além de
prover os próprios equipamentos de trabalho: energia elétrica, internet,
computador, etc. Tudo isso de sua residência, consequentemente, a pri-
vacidade da vida pessoal foi posta em xeque, se desligar do trabalho
passou a ser um problema para muitos professores, o lar que deveria ser
um local privado e de descanso virou sinônimo de trabalho e preocu-
pações, já que a nova modalidade de ensino em um cenário de pande-
mia mundial tornava as coisas mais difíceis. De acordo com Cipriano e
Almeida (2020), ao tratarem sobre a educação em tempos de pandemia
e seus impactos para a saúde mental de todos os envolvidos no processo
concluíram que
1004
Não posso deixar de evidenciar e valorizar o acompanhamento e
participação de uma pequena parcela dos discentes que, apesar das di-
ficuldades de uma nova modalidade de ensino e as suas demandas, se
fizeram presentes. No entanto, esses alunos não tinham todas as neces-
sidades supridas, faziam muito com o mínimo, fato que exemplifica o
quão diferente seria o cenário do ensino remoto se a acessibilidade di-
gital e outras necessidades básicas como alimentação e moradia fossem
direitos garantidos.
Em suma, ensinar durante a pandemia foi uma tarefa laboriosa
devido às incertezas e preocupações advindas do momento, porém de
muito aprendizado, por isso acredito ser de extrema importância re-
fletir, repensar e investigar tudo que ocorreu no âmbito educacional
durante esse período visando melhorias, adequações e/ou mudanças,
pois a obrigatoriedade do uso de tecnologias foi uma prova inegável da
necessidade de adequar as práticas educacionais.
5. Considerações finais
Tratar sobre o trabalho docente durante o período pandêmico, so-
bretudo a modalidade remota, não é um processo simples, olhar para
trás e pensar no que poderia ter sido feito melhor ou diferente é dolo-
roso, mas aprender é algo intrínseco à vida humana, estamos constan-
temente aprendendo, na profissão de educadores, acredito que estamos
em vantagem sobre isso, Freire (1996) afirma que ensinar exige reflexão
crítica sobre a prática, visto que “É pensando criticamente a prática de
hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática.” (FREIRE,
1996, p.39). Logo, o momento é de pensar, refletir e investigar para
que mudanças e melhorias sejam postas em prática, já que as evidên-
cias alertam para a urgência de promover multiletramentos no contexto
educacional, dentre eles, o digital.
A experiência também evidenciou a importância da participação
da família para um bom desenvolvimento acadêmico dos estudantes,
a falta de acompanhamento e orientação fez com que jovens e crianças
não conseguissem estabelecer uma rotina de estudos e realizar as tarefas,
1005
pois para a maioria dos discentes, a única orientação que recebiam era
dos professores, com a pandemia e os problemas financeiros acentua-
dos, muitos não dispunham de meios para manter uma comunicação
com os docentes, ou seja, a exclusão digital foi o principal vilão do en-
sino remoto insatisfatório. Sobre isso, Botelho e Leffa (2009) orientam
que apesar de ser um fato, o que se deve fazer é compreender os arti-
fícios utilizados pela sociedade para que a exclusão digital ocorra para
então buscar meios de superação.
Ademais, o ensino durante a pandemia mostrou que frequentar o
espaço físico da escola e a interação presencial com professor e colegas são
indispensáveis para a garantia de um bom processo de ensino-aprendi-
zagem na educação básica, dessa forma, entendo que ambos são primor-
diais para o desenvolvimento humano. Portanto, instituições e profissio-
nais da educação devem incorporar com mais frequência as tecnologias,
mídias e plataformas digitais ao contexto educacional através de uma
perspectiva crítica-reflexiva, nesse sentido, pactuo com Temóteo (2021)
quando defende que “Nunca foi tão necessário reconhecer a importância
da inclusão digital, nas instituições de ensino, e, para isso, devemos re-
querer a otimização no gerenciamento das políticas públicas para a edu-
cação, em nível federal, estadual e municipal [...].” (TEMÓTEO, 2021,
p.82). Isto é, as inovações e novas formas de aprendizagem proporciona-
das pela tecnologia não anulam a importância da escola e do professor
como essenciais ao processo de aprendizagem, ao contrário, reforçam a
importante missão de ambos para a promoção dos multiletramentos.
Referências
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ca do ensino remoto e sua inclusão na educação pública. In: LACERDA, Tiago Eurico
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nar, aprender e ressignificar a educação. 1. ed. Curitiba-PR: Editora Bagai, 2021. p.
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BOTELHO, Giberto; LEFFA, Vilson José. Por um ensino de idiomas mais includente no
contexto social atual. In: LIMA, Diógenes Cândido de (org.). Ensino e aprendizagem
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1006
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.
LEITE, Michele de Matos; JÚNIOR, Oseas Bezerra Viana. Primeiras reflexões sobre
pesquisa e práticas de ensino no contexto pandêmico atual. Anais VII CONEDU-
Edição Online, 2020. Disponível em: https://editorarealize.com.br/artigo/visuali-
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MOITA LOPES, Luiz Paulo da (Org.). Por uma Linguística Aplicada indisciplinar.
São Paulo: Parábola, 2006.
1007
ONO, Fabrício Tetsuya Parreira. Possíveis contribuições da autoetnografia para investi-
gações na área de formação de professores e formação de formadores. Veredas-Revista
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VOLTERO, Kelli Mileni; FIOROTO, Juliana; SILVA, Luciano Franco da. O agir
didático e os obstáculos de um professor de língua inglesa em contexto remoto. In:
PITOMBEIRA, Cátia Veneziano; MAKIYAMA, Simone; MENICONI (org.).
Linguística aplicada e ensino de línguas estrangeiras: reflexões, experiências e desa-
fios. Tutóia, MA: Diálogos, p. 85-110. 2021.
1008
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
1009
ABSTRACT: Special education in the Brazilian basic education scenario
is based on official documents (BRASIL, 1996, 2001, 2006a, 2006b).
Nonetheless, it is needed to expand the repertoire of materials that help in
the pedagogical practice in English for the visually impaired in the context of
a language school. Thus, this communication aims to report the experience
of a teacher in this context. The institution follows standardized material
and methodology that meet the needs of typical students, not meeting the
needs of students with visual impairment. Given this context, the teacher
made adaptations to contextualize content, such as making maps with relief
for geographic location and tactile material for working with prepositions.
The work with musical instruments, for instance, used strategies to introduce
the sounds of instruments through the online platform YouTube. The
adaptations described in this report were inspired by the work carried out
by Retorta (2017), Teaching English to the visually impaired: a handbook for
Brazilian teachers, who proposes a series of strategies for teaching English to
visually impaired students in Brazil. The use of these strategies combined
with the constant feedback from the student allowed reflection and constant
realignment of the methodology developed in the face of the challenges of
pedagogical practice with the public in question.
KEYWORDS: Pedagogical practice. Teaching of English. Visual impairment.
Inclusion.
1. Introdução
Embora a Educação Especial esteja amparada por documentos ofi-
ciais no cenário da educação básica brasileira, como a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), Diretrizes Nacionais
para a Educação Especial na Educação Básica (BRASIL, 2001), Saberes
e Práticas da Inclusão (BRASIL, 2006) e Ensaios Pedagógicos: cons-
truindo escolas inclusivas (BRASIL, 2005), educadores enfrentam
grandes desafios para pôr em prática a inclusão através da Educação
Especial na Educação Básica (AMORIM et al., 2018). Tais desafios se
acentuam levando em consideração as limitações impostas pelo ensino
de inglês para estudantes cegos (RETORTA, 2017). No contexto de
escolas de idiomas, em que se utilizam materiais didáticos e metodolo-
gia padronizados geralmente destinados às necessidades de estudantes
típicos, este desafio se torna ainda mais intenso.
1010
Nesse contexto, sentiu-se a necessidade de ampliar o repertório de
materiais que auxiliam na prática pedagógica em língua inglesa para
deficientes visuais em contexto de escola de idiomas com a finalidade
de multiplicar seu capital social e cultural e promover inclusão na escola
para que sejam bem-sucedidos em uma comunidade global baseada em
informação. Desta forma, esta comunicação visa relatar a experiência
de uma professora inserida neste contexto, bem como demonstrar pos-
sibilidades de inclusão para alunos com deficiência visual em escolas de
idiomas.
Para isto, fez-se necessário ampliar a compreensão a respeito da
Educação Especial e suas fases, eventos marcantes na trajetória da
Educação Especial no contexto brasileiro, bem como de possibilidades
práticas para a inclusão de alunos cegos.
1011
que se “adaptasse e não causasse nenhum transtorno” (p. 28). Dessa
forma, as escolas regulares passaram a aceitar estudantes com deficiên-
cia sem, contudo, realizar qualquer modificação em seu sistema. Só a
partir de 1990 é que se observa a ideia da Educação Inclusiva, apoiada
em um movimento global de inclusão social marcado pela Conferência
Mundial Sobre Necessidades Educativas Especiais, na Espanha em 1994
(UNESCO, 2022). Nasce então a Educação Inclusiva, com intuito de
se opor de forma crítica às “práticas marginalizantes encontradas no
passado, inclusive as da própria Educação Especial” (NASCIMENTO,
2014, p. 18). Constitui-se, então, uma forma mais intensa de legitimar
a inclusão de toda pessoa com deficiência na educação regular.
Nesse ínterim, observa-se uma anfibologia entre Ensino Inclusivo e
Educação Especial. Lima (2006) explica que embora o Ensino Inclusivo
contemple a Educação Especial, ambos não devem ser confundidos.
Enquanto a Educação Especial tem intrínseca à sua origem a proposta
de promover uma educação para todos, a Escola Inclusiva reivindica
o direito de todos os alunos estarem juntos e encontra-se baseada nos
direitos humanos.
1012
educação inclusiva no Brasil (UNESCO, 2022). No entanto, Corsini e
Casagrande (2016) ressaltam que só se observa mudança nas políticas
com a Lei nº 10.172/2001, do Plano Nacional de Educação, que pre-
coniza a formação de recursos humanos além de ambientes adaptados
a oferecer atendimento aos educandos especiais e a resolução CNE/CP
nº 1/2002 voltada à formação de professores para as especificidades da
pessoa com deficiência.
1013
mais especificamente, as adaptações efetivadas pela primeira autora de-
safiada, após 20 anos de docência, a ensinar uma estudante com defici-
ência visual, sob orientação da segunda autora.
A estudante Sara, perspicaz e altamente engajada com as questões
de inclusão de pessoas com deficiência visual, é chamada de influencer
por conta de seu perfil @olhardesarinha na rede social Instagram, onde
apresenta informação, curiosidades e dicas para auxiliar deficientes vi-
suais em tarefas do dia a dia. Sara tem como sonho aprender a falar
inglês e se tornar professora. Por isso, procurou uma escola de idiomas
em Blumenau/SC, onde reside, o que a trouxe ao contato da primeira
autora deste trabalho, professora e coordenadora pedagógica. Em um
primeiro momento após entrevista com a direção, muitas dúvidas sur-
giram em relação ao preparo da escola para recebê-la. A instituição faz
parte de uma franquia nacional e a matriz, localizada em outro estado,
foi contatada para verificar as possibilidades de receber a aluna e a exis-
tência de material adaptado. Todavia, a franquia não dispõe de material
adaptado, possui um método próprio majoritariamente visual, e por es-
tes motivos aconselhou a escola que orientasse a jovem a procurar outra
escola com uma metodologia mais flexível e adaptada.
Entretanto, a diretoria da unidade optou por fazer um teste, ofe-
receu à Sara a oportunidade de experienciar e auxiliar uma professora
da instituição a desenvolver uma forma própria de aprender através do
material da franquia, adaptando a metodologia às suas necessidades. O
material didático escrito foi enviado pela estudante à sua professora de
inclusão e traduzido para Braille, pois a estudante possui o equipamen-
to linha baile que promove a leitura e escrita de textos em Braille para
alunos com deficiência visual.
Neste contexto, a primeira autora recebeu Sara como sua estudante
e pode dizer abertamente que Sara tem a auxiliado muito a quebrar
barreiras que ela mesma não sabia que tinha. Uma dessas barreiras está
relacionada ao material didático e metodologia da franquia. Como pro-
fessores, principalmente no contexto de escola de idiomas, corremos
um grande risco, de acordo com Giesta (2007), de conferir ao livro
1014
didático o papel dominante na nossa abordagem teórico-metodológica.
Nessa experiência, o livro didático precisou retornar ao seu papel de
apoio, dando lugar a novas práticas inclusivas e adaptadas.
Como professora, a primeira autora tinha mais dúvidas que respos-
tas, pois nunca havia vivenciado situação semelhante. Buscou então o
auxílio da segunda autora, que indicou literaturas que pudessem ofere-
cer algum suporte, como o trabalho de Retorta (2017), e se apropriar
da literatura e conviver semanalmente com Sara, começou a vislumbrar
novos horizontes para sua práxis.
1015
mundo (SOUZA; DO NASCIMENTO, 2019). Inspirada pelo traba-
lho de Retorta (2017), confeccionou mapas com relevo para localização
geográfica e material tátil para o trabalho com preposições. Com mate-
riais simples que possuía à mão e sem muita experiência prática, buscou
proporcionar à estudante uma experiência mais completa e imersiva,
repleta de significados.
Na figura 1, são apresentadas as adaptações realizadas para a aula
na qual trabalhamos os países Itália, Índia e Tailândia e seus respectivos
gentílicos. Para este fim, os mapas foram impressos, contornados com
cola glitter para adquirir relevo. Desta forma, a estudante foi capaz de
conhecer o formato dos mapas e aprender vocabulário referente aos
nomes e gentílicos em inglês.
1016
Na figura 2, apresenta-se o material utilizado sobre preposições em
inglês. O objetivo era ensinar as preposições sem precisar da tradução.
O material adaptado foi feito com materiais simples como fita dupla
face e adesivos de folhas. A estudante demonstrou interesse pela ativi-
dade e a professora criou um jogo, no qual ela falava uma preposição
e a estudante apontava com as mãos a posição (em baixo, em cima, ao
lado). Outros jogos foram realizados: a professora misturava as folhas
e entregava a ela uma a uma e ela fazia o reconhecimento tátil mencio-
nando a preposição em inglês. Também, a estudante dizia um número
que correspondia a uma preposição misteriosa que somente a professora
sabia, que entregava a ela o papel com a preposição selecionada miste-
riosamente e ela deveria utilizá-la para criar uma frase em inglês.
1017
5.3 Recursos auditivos
Retorta (2017) enfatiza o uso de recursos auditivos para estu-
dantes com deficiência visual. Em uma aula sobre instrumentos mu-
sicais, a professora fez a descrição das imagens do material didático,
o que parecia não fazer muito sentido para a estudante. A partir das
práticas sugeridas por Retorta, a professora fez uso do YouTube para
conectar os instrumentos com os sons que cada um produz. Como
de costume, após a aula, ela solicitou à aluna feedback em relação às
atividades. A estudante relatou que, pela primeira vez, havia com-
preendido o que era uma bateria, achou curioso que é constituída de
várias partes e se surpreendeu ao poder escutar o som de cada parte
daquele instrumento separadamente e depois no contexto musical
em um solo.
6. Considerações finais
Há profissionais e instituições que acreditam que a presença de
um estudante com deficiência acarretará uma quebra na rotina escolar
(CUNHA, 2015). Se Sara e a direção da escola tivessem dado ouvi-
dos ao posicionamento da franquia, questionamos o que teria sido do
seu potencial. Blanco (2003) nos provoca a pensar uma escola onde é
possível não somente o acesso, mas a permanência de todos os alunos,
constituindo assim realmente uma educação inclusiva, uma sociedade
inclusiva, melhor e digna para todos (NASCIMENTO, 2014).
Isso não quer dizer que o caminho é fácil, mas em nosso caso, a
utilização de estratégias combinadas ao feedback sempre presente da es-
tudante permitiu a reflexão e o realinhamento constante da metodolo-
gia resultando em aprendizagem. Além de apresentar visível desenvolvi-
mento, as notas da estudante nas avaliações da escola, com os mesmos
instrumentos aplicados aos alunos típicos, foram excelentes com res-
postas na forma oral e escrita em formato digital. A estudante é capaz
de se comunicar de maneira excelente no nível básico e se prepara para
seguir ao nível intermediário de inglês.
1018
Tal desenvolvimento só foi possível pois a estudante teve a oportu-
nidade de tentar. E a professora recebeu a oportunidade de se desafiar,
de buscar conhecimento e de aprender sobre o mundo do deficien-
te visual. Sara nos tornou profissionais mais sensíveis, mais engajadas.
Gratidão à Sara por ter nos aberto os olhos para que pudéssemos enxer-
gar o mundo por seus olhos, o “olhar de Sarinha”.
Referências
AMARAL, L. A. Pensar a Diferença/Deficiência. Brasília: Coordenadoria Nacional
para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2001.
1019
GIESTA, L. C. Livro didático dedicado ao ensino de língua estrangeira na educação
infantil: noções de ensino e aquisição de vocabulário. 188 f. Dissertação (Mestrado
em Linguística Aplicada), Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007.
1020
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
1021
concerns to moral persecution and erasures, we base this analysis on the debate
about the right to literature by Antonio Candido (1995), in the epistemologies
of the South by Boaventura de Sousa Santos (2019), in the dialogic action
proposed by Paulo Freire (2021), in the ideological and autonomous literacies
according to Brian Street (2014) and, finally, in the identification and empathy
in literary reading from Lynn Hunt (2009). The methodology for this work
starts from the narrativization and epistemic reflection of the teaching practice
(CADILHE, 2017; 2020) of the Reading Circle, crossed by the analysis of the
work of the mobilized artistic-literary sphere, also considering the participation
of the students and the subjective and contexts in the development of the
activity. Reaffirming the commitment to an education in Human Rights that
seeks a culture of respect for human dignity, in a preliminary way, the work
demonstrates how linguistic education, literary and critical literacy and the
humanizing character of literature can broaden the critical view of students
and its position in the face of current conflicts.
KEYWORDS: Literary literacy; critical pedagogy; Human rights.
1022
com foco nos procedimentos e práticas empreendidas a partir da leitura
do “O Diário de Anne Frank”201. Do direito à literatura à perseguição
ideológica, das inquietações das juventudes às perseguições morais e
apagamentos, nos embasamos para esta análise no debate acerca do di-
reito à Literatura de Antonio Candido (1995), as epistemologias do Sul
de Boaventura de Sousa Santos (2019), a ação dialógica proposta por
Paulo Freire (2021), os letramentos ideológico e autônomo segundo
Brian Street (2014) e, por fim, a identificação e empatia na leitura lite-
rária a partir de Lynn Hunt (2009).
A metodologia para este trabalho parte da narrativização e da re-
flexão epistêmica da prática docente (CADILHE, 2020) do Círculo
de Leitura atravessada ainda pela análise da obra da esfera artístico-
-literária mobilizada, considerando ainda a participação dos alunos e
as implicações subjetivas e contextuais no desenvolvimento da ativi-
dade. Reafirmando o compromisso com uma educação em Direitos
Humanos que busque uma cultura de respeito à dignidade humana, de
forma preliminar, o trabalho demonstra como a educação linguística, o
letramento literário e crítico e o caráter humanizador da literatura po-
dem ampliar a visão crítica dos discentes e o seu posicionamento diante
dos conflitos atuais.
Nos encontrávamos semanalmente em 5 horas/aulas. Destas, pelo
menos uma era dedicada exclusivamente à leitura literária. A partir des-
sas aulas, no ano de 2019, desenvolvemos os círculos de leitura em
dois movimentos: as leituras individuais – com obras escolhidas pelos
alunos, fossem elas trazidas de casa, virtuais ou tomadas de empréstimo
na biblioteca da escola, com a recorrência cíclica bimestral, uma vez que
encerrávamos os bimestres com o seminário de apresentações e troca
de leituras –; e as leituras coletivas – com destaque aqui à adaptação da
obra de Anne Frank.
Para esta narrativa, foco nos procedimentos e práticas mobilizadas
a partir de “O diário de Anne Frank” com as duas turmas de 9º ano
201
Adaptação de Ari Folman, ilustração de David Polonsky e tradução de Raquel
Zampil, 2018.
1023
do ensino fundamental com que trabalhei durante os 2º e 3º bimestres
do ano letivo de 2019. As turmas compunham-se, em média, de 35
alunos, frequentes, de diferentes bairros da cidade, com idade média de
14 anos. Uma das turmas, de maneira geral, era mais comunicativa que
a outra, contudo ambas eram bem proativas. Os poucos alunos que se
recusavam a participar de alguma proposição logo foram percebendo
que isso não os distinguia como independentes ou indiferentes, mas os
excluía do conjunto da classe – acredito que foram percebendo que as
participações eram diferentes, ao modo de cada um, e que ambas eram
valorizadas.
Com o cuidado de não reduzir o letramento literário202 às estraté-
gias de leitura empenhadas a tal tipologia – sobretudo pelo viés de uma
literatura com um fim em si mesma, como por muitas vezes é tratada
no processo de escolarização –, não só busquei com que ela dialogasse
com outras atividades propostas, fossem elas direta ou indiretamente
ligadas à obra em questão, mas que pudessem colocar em evidência o
caráter humanizador das obras da esfera artístico-literária.
Em relação ao desenvolvimento deste círculo de leitura, foram pro-
gramadas 20 aulas exclusivas para apreciação do texto, distribuídas ao
longo do 2º e 3º bimestres, entre outras, talvez mais que vinte, em des-
dobramentos, que trataremos adiante. Por se tratar de um longo perío-
do de trabalho com a mesma obra, tentei empenhar práticas diversifi-
cadas de leitura – silenciosa, protocolada, compartilhada – alternadas e
que fossem provocativas, pelo menos na intenção, e também em acordo
com a tessitura textual.
Em tese, nossa viagem tinha uma rota, pontos breves de ancora-
gem e destinos possíveis, eu apenas os convidei à embarcação. Contudo,
os alunos de fato é que se colocaram como mediadores, eu me tornei
junto a eles um leitor colaborativo. Nossa bússola foi a curiosidade e o
202
Letramento literário, neste artigo, baseia-se na concepção da apropriação do
texto literário em suas diversas esferas, não distintas, mas complementares, da
experiência de leitura, do mergulho estético à apropriação crítica das temáticas
com vistas à reflexão tanto da interação texto-leitor quanto de uma percepção de
justiça social. (PAULINO; COSSON., 2004)
1024
empenho desses pequenos navegantes. A exemplo, tínhamos uma leitu-
ra compartilhada a ser feita em sala de aula por questão dos desdobra-
mentos aos quais eu me guiava, mas alunos argumentaram que havia
um sol lindo, diante daquele frio estranho/juizforano pela manhã, e que
se empenhariam em fazer leituras em um tom mais alto. E arcaram com
o compromisso leitor.
Explorávamos ao máximo os espaços da escola, além da própria sala
de aula, para fazermos a leitura: abaixo das árvores, nas escadarias, no
palco externo. O importante era haver o mínimo de confortabilidade
e a possibilidade de imersão na leitura, uma vez que “a coisa de sair de
sala” tem um ar transgressor, no entanto, efêmero, pois não se perde o
objetivo da leitura e aqueles mais dispersos vão percebendo aos poucos
que a “galera” está lendo, que o professor está lendo, que os funcioná-
rios que passam pelos corredores estão observando os alunos lerem. Ler,
neste espaço/tempo, é enturmar-se. Poderia ser receio também de, ao
voltar à sala, ver-se diante de uma provocação acerca da leitura e mais
uma vez não estar enturmado.
Ainda sobre as estratégias de leitura, a adaptação de “O Diário de
Anne Frank” preservava, em alguns momentos, longos trechos do di-
ário, limitando-se a alguma ilustração. Nesse tipo de trecho do texto,
eu priorizava a leitura silenciosa, seguida de conversas sobre as reflexões
feitas por Anne, tentando sempre partir dos elementos que chamaram
a atenção dos alunos. Foram raras as vezes em que tive que recorrer a
indagações pré-estruturadas, o que não significa que as participações
fossem sempre amplas, no entanto seu aumento durante o desenvolvi-
mento do círculo era perceptível, especialmente ao tratar de conflitos
familiares ou das reflexões mais subjetivas da protagonista.
Nas leituras protocoladas e compartilhadas, a participação dos alu-
nos era pré-estruturada, diretamente quando ao fim da aula escolhíamos
quem seriam os próximos leitores, divididos em narrador e personagens,
e indiretamente quando eu pedia alguma pesquisa prévia de conceitos
que seriam importantes para as próximas leituras, como holocausto,
nazismo, ou ainda, com uma frequência muito maior, questões que
1025
iam sendo levantadas durantes as leituras, como a que dá nome a esta
introdução: “Professor, como eles sabiam quem era judeu?”. Indagações
como essa iam moldando nosso percurso de leitura, pesquisa e relação
com o texto.
Além da leitura propriamente dita, mantínhamos um diário pesso-
al que eu apenas registrava frequência de escrita, não analisava ou lia o
conteúdo. Aquele era um espaço íntimo para o aluno. Eu me limitava,
neste exercício de escrita, a provocar reflexões que pudessem se mate-
rializar na escrita dos alunos. Essas reflexões iam desde questões mais
específicas do gênero discursivo diário pessoal a proposições reflexivas:
a exemplo, em determinado recorte lido na aula, eu questionava do que
Anne estava falando, se era uma reflexão subjetiva, se era um comen-
tário sobre o contexto vivido ou se era uma descrição da rotina, então
perguntava se eles percebiam diferenças na forma de registrar cada eixo
desses. Outra reflexão neste sentido, é que Anne reescreve seu diário
quando tem a esperança de que ele seja um registro daquele momento
histórico, daí ponderamos a relação entre público e privado, tanto no
diário dela quanto no diário dos próprios alunos.
Ademais a escrita do diário pessoal, também desenvolvemos outras
atividades, porém não com a dedicação necessária, pois o corpo docente
estava em luta contra o governo do estado e tivemos várias paralisações,
o que acabou limitando algumas propostas como a construção coleti-
va de um RPG baseado no Diário. Além disso, muitos temas foram
emergindo no decorrer da leitura – intolerância religiosa, machismo e
feminismo, sexualidade, direito à vida – foram tópicos para a produ-
ção textual argumentativa, comparando o contexto vivido por Anne
Frank e o atual. Embora não tenhamos conseguido levar a cabo o jogo
colaborativo, as várias práticas que acompanharam o processo formam
um conjunto propositivo riquíssimo: a leitura em si, as pesquisas, os
debates, os exercícios de fala e escuta, as escritas pessoais e as coletivas,
abstração empática.
Por fim, destaco a participação dos alunos que foram percebendo
que a aula acontecia porque eles se envolviam proativamente diante
1026
dos desafios da leitura, levantavam questões, propunham temas além
dos que eu julgava serem os mais importantes ou interessantes. Em
síntese, romperam a lógica silenciadora do conteúdo pelo conteúdo, do
comentário vazio que apenas reproduz sem reflexão e se apropriaram da
leitura e da escrita como instrumentos de liberdade e denúncia, seja no
âmbito subjetivo ou dos conflitos sociais. No apanhado geral do ano
letivo, percebo que as enumerações do cotidiano que apareciam na au-
tobiografia do 1º bimestre foram se aprofundando tanto em conteúdo
e reflexão quanto em realização estética, as opressões sociais e subjetivas
foram ganhando novas dimensões, seja na exposição fotográfica, seja
nas clássicas avaliações, seja no debate e cartazes de denúncia das violên-
cias contra as mulheres desenvolvido junto com as estagiárias do curso
de Letras.
1027
exemplo, estivesse limitado à recreação ou à instrução pela instrução.
Exatamente pelo fato de ser muito mais que isso, ou seja, a literatura
não é uma experiência inofensiva, que no contexto escolar ela gera con-
flitos, “porque o seu efeito transcende as normas estabelecidas” (p. 176).
Os conflitos existirão e são fundamentais na prática escolar. O que
não deve ser prática é a censura, como o movimento de pais, que em
nome de uma moral excludente, condenou a leitura da adaptação de “O
Diário de Anne Frank” – versão, inclusive, indicada pela UNICEF –
mas que, por outro lado, aceitaram uma outra versão em que trechos re-
flexivos de Anne sobre o corpo feminino e sexualidade foram retirados.
A questão que não se resolve com a exclusão da obra ou permuta por
outra versão é de fato mais complexa: Em tal ato, há uma preservação
da infância e da juventude ou a manutenção da lógica patriarcal sobre
os corpos femininos?
Como nos alerta Boaventura (2019), o não reconhecimento de uma
linha abissal e as exclusões, silenciamentos e violências que ela promove
pode nos levar a uma falsa caracterização dos conflitos sociais, ou ain-
da pode nos levar a um enfrentamento das opressões por vias em que
não seriam reconhecidas suas reais matrizes. Ou seja, acionar os Direitos
Humanos, tal qual foram concebidos, em um ideal de humanidade em
que todos seriam iguais perante a lei seria ignorar não só o limite desta
universalização homogênea como uma série de violências da estrutura so-
cial colonialista que são intrínsecas à dominação capitalista e patriarcal.
Uma importante distinção feita na análise de Santos (2019) é que
com o “fim” do colonialismo histórico “a linha abissal mantém-se sob a
forma de colonialismo de poder, de conhecimento, de ser, e continua a
separar a sociabilidade metropolitana da sociabilidade colonial” (p. 44-
45). Logo, teríamos exclusões abissais e não-abissais e daí a importância
de perceber que a dominação moderna é uma articulação global entre
elas. Portanto:
1028
princípio orientador a ideia de que as exclusões abissais e não-a-
bissais funcionam em articulação e que a luta pela libertação só
será bem sucedida se as várias lutas contra os vários tipos de ex-
clusões forem devidamente articuladas (SANTOS, 2019, p. 44)
203
Escola dos EUA censura “Maus”, HQ sobre o Holocausto vencedora do Pu-
litzer. Disponível em: https://veja.abril.com.br/ideias/escola-dos-eua-censura-
-maus-hq-sobre-o-holocausto-vencedora-do-pulitzer/. Acesso em: 05 mar. 2022.
1029
Não é aleatório que, de acordo com a BNCC, os mecanismos
reprodutivos e a sexualidade sejam objetos de conhecimento dos alu-
nos do 8º ano do Ensino Fundamental, uma vez que boa parte dos
adolescentes está vivenciando o período de puberdade, que segundo o
Ministério da Saúde tem seu início entre os 8 e 13 anos, para meninas,
e 9 e 14 anos, para meninos (BRASIL, 2018b, p. 429). Assim, orien-
tam as habilidades de Ciências sobre a temática: “(EF08CI08) Analisar
e explicar as transformações que ocorrem na puberdade considerando
a atuação dos hormônios sexuais e do sistema nervoso.”, “(EF08CI11)
Selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da se-
xualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética).” (BRASIL,
2018a, p. 351).
Seria justificável, a partir do trecho da obra destacado acima, proi-
bir a leitura do livro com o fundamento de que a sexualidade seria uma
tarefa exclusiva do âmbito familiar? Ou ainda que o trecho configure
sexualização ou pornografia? Se pensarmos que um dos contextos em
que houve contestação da obra no Brasil foi em um rede de educação
privada que atende à elite paulista, poderíamos pensar em uma exclusão
não-abissal, cujo intento é regulatório, pois em tese as exclusões que
permeariam aquele grupo social também mantém seus privilégios.
Quando analisamos a imagem que ilustra o trecho do diário, per-
cebemos que o incômodo está além do frágil véu de uma sexualização,
pois temos uma intensificação de que o teor da escrita é provocativo em
relação à estrutura patriarcal, primeiro por colocar Peter como um ig-
norante frente à complexidade do corpo feminino, segundo porque há
uma valorização desse corpo. Ao extrapolar a análise do próprio corpo,
enveredando por uma dimensão da sexualidade humana e de descober-
ta de si, não só por compará-lo ao corpo masculino de fotos ou pintu-
ras, mas também pelos desejos que permeavam sua pubescência – “Se
ela soubesse do desejo que eu tinha de beijá-la… [...] Tenho de admitir:
sempre que vejo uma mulher nua, entro em êxtase” (FRANK, 2018, p.
96-97). Anne estaria, aos olhares conservadores, “emancipando-se”, o
que é inadmissível, portanto, a regulação.
1030
Por outro lado, tal regulação não se limita ao núcleo elitista que o
reivindica, pois busca se impor enquanto norma social, seja através dos
discursos conservadores capilarizados em diversas esferas sociais que se
alimentam e perpetuam exclusões, seja através da influência do capital
que lhes dão entrada na máquina estatal, fazendo a manutenção do
círculo vicioso de opressões. Daí, então, a força conservadora de movi-
mentos como o Escola Sem Partido, Brasil Paralelo, Movimento Brasil
Livre, Escolas Abertas que se colocam como defensores de valores como
a família, religião e educação. No entanto, tais defesas não são plurais,
ou seja, buscam silenciar quaisquer expressões que difiram de suas or-
todoxias. Então, aquela exclusão que num primeiro momento parecia
ser não-abissal, e assim busca discursivamente se conservar, quando se
amplia a outras esferas sociais, aprofunda de forma violenta a sociologia
das ausências.
Do discurso de que sexualidade não é tema da escola, mas exclu-
sivo da formação familiar, acusando-o em vários contextos de “aula de
sexo”, corroboram não só com uma estrutura familiar não homogênea,
como não faz parte da realidade do Brasil profundo. Segundo os dados
da UNICEF, de 2017 a 2020, 180 mil crianças e adolescentes sofreram
violência sexual204, sem contar o fato de que o número é subestimado
em 10%, ou seja, 90% dos casos sequer foram notificados ou enten-
didos como abuso, sem contar, ainda, o período pandêmico em que
estes dados se ampliaram205 , sobretudo pelo fato das escolas terem sido
fechadas por razões sanitárias.
Neste outro cenário, está escancarada a linha abissal, pois a apro-
priação do outro se dá em usurpar-lhe o corpo, em ignorar sua huma-
nidade, em objetificá-lo. Estão em evidência não só os exercícios de
204
Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil.
Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/relatorios/panorama-da-violen-
cia-letal-e-sexual-contra-criancas-e-adolescentes-no -brasil. Acesso em: 16 mar.
2022.
205
Violência contra crianças aumenta durante a pandemia no Brasil. Disponível
em:https://agemt.pucsp.br/ noticias /violencia -contra-criancas-aumenta- du-
rante-pandemia-no-brasil. Acesso em: 16 mar. 2022.
1031
violência como os de silenciamento, que se encarnam, muitas vezes, em
uma experiência traumática. Teriam sido esses 180 mil violentados e
os outros tantos milhares, que não denunciaram as vítimas, se tivessem
lido o trecho que abaixo se reproduz:
1032
poucos descortinando sensos comuns, conflitando, às vezes, com posi-
cionamentos pessoais, geralmente religiosos, através da ação dialógica,
principalmente pela co-laboração e pesquisa.
Embora, para a maiorida dos discentes, a temática do holocausto
pudesse parecer distante ou ainda um fato histórico que não reverbera
em nosso tempo, o esforço analítico empenhado era de a todo momen-
to fazer relações com nossas vivências. Se nos fechássemos à temática
classificatória de inquietações das juventudes, indicada pelo PNLD,
manteríamos a invisibilidade da linha abissal, e então o empenho analí-
tico e de valorização simbólica do objeto em estudo seria inócuo. Assim,
buscamos o diálogo de três eixos – antissemitismo, imperialismo e tota-
litarismo – com as inquietações subjetivas de Anne, apoiados nas refle-
xões de Hannah Arendt.
Segundo a autora:
1033
eram mais profundos, pois Edith reproduzia ideologias de um sistema
que negava à mulher a emancipação humana.
Por fim, voltamos ao trecho que dá abertura a esta seção:
1034
sobre tudo, são seguros de si e de seus atos. Para nós, jovens, é
duas vezes mais difícil sustentar nossas opiniões numa época em
que os ideais são estilhaçados e destruídos, quando o pior lado
da natureza humana predomina [...]. (FRANK, 2018, p. 147)
1035
eram as mínimas possíveis. Havia uma, no entanto, que foi perdendo a
recorrência durante o desenvolvimento do círculo: “Você está falando
para mim ou com a gente?”.
Ainda, segundo Paulo Freire, “Para o ‘educador-bancário’, na sua
antidialogicidade, a pergunta, obviamente, não é a propósito do con-
teúdo do diálogo, que para ele não existe, mas a respeito do programa
sobre o qual dissertará a seus alunos. E a esta pergunta responderá ele
mesmo, organizando seu programa.” (2021, p. 116). Na cena de aula
aqui apresentada, eu não só não recorri ao roteiro para aula, como tive
de acrescentar a ele pontos muito importantes trazidos pelos alunos.
Um deles foi uma citação ao Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) que, posteriormente, levou-nos ao próprio ECA, ao Artigo 5º da
Constituição e à Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Embora Brian Street, analisando as perspectivas atuais dos letra-
mentos, apresenta avanços, chama nossa atenção a usos que sejam de
fato significativos. Neste sentido afirma que “A tarefa política, por
conseguinte, é complexa: desenvolver estratégias para programas de
alfabetização/letramento que lidem com a evidente variedade de ne-
cessidades letradas na sociedade contemporânea.” (STREET, 2014, p.
41). Em nosso contexto, a BNCC está em processo de implementação
nas escolas e mesmo que seu processo de construção não tenha sido
democrático – pelo menos tanto quanto o discurso oficial afirma – é
preciso atentar-se às estratégias que o reafirmam como normativa das
ações educacionais. Então, é importante complementar à contribuição
de Street as relações de contradição entre “educador-bancário” e “educa-
dor-educando” apresentadas por Freire. A BNCC está posta e o uso que
dela se faz tem relação direta com a concepção de educação de quem a
instrumentaliza.
Se pensarmos na relação do círculo de leitura proposto com a
BNCC, no contexto do ensino fundamental, das 10 habilidades espe-
cíficas de Língua Portuguesa, 7 delas estão contempladas nas atividades
desenvolvidas com os alunos, em síntese. No entanto, as mesmas habi-
lidades habitam trabalhos docentes com perspectivas que reproduzem
1036
as opressões, por mais que tal pareça contraditório, quando ainda não
se limitam exclusivamente às análises linguísticas e semióticas da escrita.
O que reforça, mais uma vez, as perspectivas apresentadas a partir de
Freire e Street.
Neste caminho, poderíamos relacionar, de alguma forma, a ação
antidialógica em contraste com a ação dialógica, proposta por Freire,
com as perspectivas de letramento autônomo e ideológico apresentados
por Street. Tanto a ação antidialógica quanto o letramento autônomo
pressupõem certa passividade em relação aos agentes do ato de educar,
sejam os docentes aprisionados aos programas, sejam os discentes limi-
tados a uma tábula rasa, além de objetivos que estão atrelados à manu-
tenção de ordens opressoras e excludentes,impostas via estado ou por
pressões conservadoras. Já, ao que pese em outra via, as ações dialógicas
e os letramentos ideológicos levam em consideração não apenas o con-
texto dos sujeitos envolvidos, embora seja elemento crucial e metodo-
lógico, mas buscam a valorização e emancipação de suas humanidades,
chamando atenção para o fato de que as práticas, as ações e as lingua-
gens/discursos estão intrínsecas a ideologias e políticas de dominação.
Como afirma Street:
1037
Apesar de não ter registros das conversas sobre a obra e não ter
acesso aos diários que os alunos desenvolveram, para finalizar esta seção
trago dois exemplos, que de longe representam a riqueza do que foi
desenvolvido criticamente com os alunos, mas que, de algum modo,
representam tanto a capacidade analítica do contexto, por exemplo,
distinguir fatos históricos e subjetivos, ou ainda verter-se em palavra
no mundo.
1038
variantes. E vamos percebendo que as contradições mais se aprofundam
do que se resolvem.
Além de uma pontual organização de atividades bimestrais, inda-
guei aos alunos se eles utilizavam redes sociais: a grande maioria faz uso
do instagram, alguns do tiktok e uma minoria do twitter. Em seguida,
perguntei quais eram os temas relevantes naquele momento. Fui fazen-
do anotações no quadro à medida em que iam falando, perguntando
os contextos o que achavam daqueles fatos, de forma bem informal.
Conversamos sobre Big Brother Brasil, em que não pude deixar de in-
dicar a leitura de 1984 de George Orwell, mas o coro maior se fez em
relação ao caso “Monark”206, trazendo para a discussão limites entre
liberdade de expressão e apologia ao nazismo. Alguns alunos menciona-
ram a leitura feita no 9º ano.
Quando fiz a proposição em 2019 da leitura do Diário de Anne
Frank adaptado, recém-chegado na escola, eu tinha dúvidas, não dá
importância da temática, mas se ela tinha de fato alguma ancoragem
no contexto de vivência dos alunos. Pela análise construída até aqui é
perceptível que questões relacionadas às inquietações da juventude en-
contravam maior ressonância e despertavam maior interesse, mas que
também o exercício reflexivo da influência do momento histórico – na-
zismo, antissemitismo, totalitarismo – em tais inquietações não pode-
riam ignorados, exatamente por serem base das forças opressoras que
afetavam a subjetividade da protagonista.
Na semana seguinte, a aula começa com uma manchete do jornal
local sobre uma pichação de apoio ao nazismo em uma das principais
avenidas da cidade207. Fui observando na fala dos alunos não só a fami-
liaridade com a temática, mas também o senso crítico diante do fato.
No entanto, notei ainda um certo distanciamento, como se fosse algo a
206
Disponívelem:https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2022/02/09/%E2%80%-
98Nazismo-passou-por-um- processo-de-norm aliza%C3%A7%C3%A3o-p%-
C3%BAblica%E2%80%99. Acesso em: 18 mar. 2022.
207
Disponível em: https://tribunademinas.com.br/noticias/cidade/22-02-2022/
pjf-repudia-pichacao-de-apoio-ao -nazismo-em-muro na-itamar-franco.html.
Acesso em: 1 mar. 2022.
1039
ser criticado ou repudiado, mas que não tem tanto impacto direto em
suas vivências.
Lynn Hunt, na obra A invenção dos Direitos Humanos, defenderá que
1040
Por fim, “Aprender a sentir empatia abriu o caminho para os direitos
humanos, mas não assegurava que todos seriam capazes de seguir ime-
diatamente esse caminho” (HUNT, 2009, p. 69).
Referências
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. trad. Roberto Raposo. São Paulo:
Companhia das letras, 2012.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: CANDIDO. Vários escritos. 3. ed. São
Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 235-263.
COSSON, Rildo. Círculos de Leitura e Letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014
FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Adaptação Ari Folman, ilustração David
Polonsky, tradução Raquel Zampil. 5 ed. Rio de Janeiro: Record, 2018.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 78 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.
HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. tradução Rosaura
Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
1041
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
1042
we will address the continuing education course for the Portuguese teachers
who work in the elementary education classes of Youth and Adult Education
(YAE), aimed at the collaborative construction of teaching materials to
be used by teachers in public schools in the municipality of Ilhéus (BA),
considering the practice of reading, writing, speaking and linguistic analysis,
focusing on the argumentation teaching and learning in basic education and
aligned with the general competence No. 7 of the Base Nacional Comum
Curricular (BNCC). This project assumes a theoretical and practical aspect.
In addition, it is inscribed in the intersection of the applied linguistics fields,
argumentation studies and teaching methodologies. Furthermore, face-to-
face meetings and remote moments were planned, considering collective
actions based on reflections carried out through themes selected according
to the needs of the teachers involved; the problematizations indicated by
them and by the trainers, the recovery of references and practices that can
collaborate with the actions implemented in the classroom. It is expected that
the theoretical study, the analysis of teaching and learning methodologies,
and the production of materials will support the development of proposals
for the argumentation teaching committed to the qualified learning of the
Portuguese, humanization, and the citizenship formation (emancipatory
education).
KEYWORDS: Youth and Adult Education. Argumentation Teaching.
Literacy.
Introdução
Este texto está apoiado na experiência desenvolvida a partir do pro-
jeto de extensão “Ensino de Argumentação na Escola” (ENARE), vincu-
lado ao Departamento de Letras Vernáculas e ao Mestrado Profissional
em Letras da Universidade Federal de Sergipe, sob a coordenação da
Dra. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Neste momento, as ações
romperam os limites do Estado de Sergipe, foram ampliadas e alcan-
çaram o Estado da Bahia, por meio da parceria entre UFS e UESC,
o ENARE também passou a ser projeto de extensão conduzido pelo
Centro de Estudos de Argumentação e Discurso (CEAD/UESC), sob a
responsabilidade do Dr. Eduardo Lopes Piris, contanto com a colabo-
ração de doutorandas, mestrandas e graduandas das duas universidades.
1043
O ENARE se apoia na perspectiva da argumentação na interação
e visa a promover a articulação de estudos que possam subsidiar as prá-
ticas pedagógicas destinadas ao ensino de argumentação e tem na pro-
blematização e na colaboração/cooperação os meios privilegiados para
compor o planejamento de ações didáticas que podem ser implemen-
tadas na escola.
Dentre as ações desenvolvidas pelo projeto, está o curso de for-
mação continuada destinado aos professores que atuam na educação
básica: educação infantil, ensino fundamental (series iniciais e finais) e
a modalidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA). O curso tem sido
sistematizado no formato de minicursos e/ou oficinas, com a orienta-
ção voltada para a elaboração de insumos educacionais, tendo como
foco o ensino-aprendizagem da argumentação na educação básica e
com alinhamento à competência geral n. 7 da Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2018).
A experiência vivida em 2021, aconteceu com ações de formação de
professores para o Ensino da Argumentação nas séries iniciais da educação
básica envolvendo Educação Infantil, Ensino Fundamental e Educação
de Jovens e Adultos (EJA), em formato essencialmente remoto, devido ao
momento em que enfrentávamos com a pandemia do Covid -19.
No ano de 2022, em parceria entre a UFS e a Secretarias de
Educação de São Cristóvão/SE, o curso de formação de professores al-
cançou os professores titulados em Pedagogia, Letras ou áreas afins, que
atuam nos anos inicias do ensino fundamental da rede pública muni-
cipal, com cronograma previamente definido e com atividades de na-
tureza teórico-prática, que promoveram a intersecção dos campos da
linguística aplicada, dos estudos da argumentação e das metodologias
de ensino hibrido, com encontros presenciais e momentos remotos.
Na Bahia, a parceria entre a UESC e a Secretaria de Educação de
Ilhéus tem suscitado o ensino de argumentação na escola em ações de
formação continuada destinadas a professores que atuam na Educação
de Jovens e Adultos, nas modalidades presencial e remota, voltado à
construção colaborativa de materiais didáticos a serem utilizados pelos
1044
professores em escolas públicas do município. Por entendermos, com
Pimenta (1997), que a profissão professor constitui uma identidade
mutável com base nas experiências vividas nos contextos de trabalho,
nos de formação continuada, nos pessoais etc., reconstruídas histori-
camente, assumimos que a reflexão em torno de práticas pedagógicas
consagradas culturalmente e renovadas em função das mudanças sociais
pode promover impactos no cotidiano e escolar e na identidade profis-
sional, pois permitem avaliar os valores mobilizados no agir educativo.
Nesse processo, são articulados os três tipos de saberes docentes
– decorrentes das experiências socialmente acumuladas, dos conheci-
mentos construídos ao longo do tempo, das ações pedagógicas – a fim
de possibilitar a articulação entre as práticas pedagógicas em curso nas
escolas e as renovações necessárias em função das necessidades sociais e
das exigências legais. Embora a discussão em torno dos saberes dos pro-
fessores venha sendo realizada há mais de quarenta anos mundo afora,
os processos formativos de professores tanto em São Cristóvão quanto
em Ilhéus nem sempre consideram esse tripé e são observadas ações
fundadas exclusivamente em informações decorrentes de estudos reali-
zados em nível superior, por vezes com pouca sensibilidade para os pro-
cessos de humanização que são tão necessários à formação de cidadãos.
Com base nesse contexto, para esta comunicação, nos debruça-
remos em algumas das experiências vivenciadas e nos conhecimentos
construídos ao longo das duas edições do ENARE, com ênfase nas dis-
cussões voltadas à educação de jovens e adultos, com o objetivo de con-
tribuir com as discussões relativas ao ensino de argumentação tomada
como prática social de linguagem. Nessa concepção, os sujeitos sociais
participam de atividades de linguagem que permitem defender opiniões
em meio de um processo interacional realizado a partir de uma proposta
de ensino situada, vivencial e não simulada. Assim, as reflexões reunidas
ao longo do projeto de extensão pretendem contribuir para a ressignifi-
cação da prática escolar, a fim de suplantar os limites das ações cotidia-
nas e vislumbrar novas possibilidades de o trabalho com a argumentação
acontecer por meio de práticas de letramento em turmas de EJA.
1045
2. Por que o ensino de argumentação na escola?
Na sociedade contemporânea, a oposição de ideias e a existência de
conflitos discursivos constituem as práticas sociais cotidianas devido a
distintas razões, entre as quais se encontram as relações de poder em que
uns subjugam outros, opressão que pode acontecer por motivos econô-
micos, de gênero, de sexualidade etc., e as violências da colonialidade
que impõem certos modos de pensar acerca a vida social (BRAGATO,
2016), por exemplo. Nessas circunstâncias, a dicotomia de ideias em
torno de temas como fé e razão, sagrado e profano, opressor e oprimido
pode gerar divergências de pontos de vista e espaço para haver uma
“reposta necessária tanto às falácias e ficções das promessas de progresso
e desenvolvimento que a modernidade contempla, como à violência da
colonialidade”, segundo Mignolo (2017, p. 13).
No entanto, as tensões geradas entre elementos contrários e dis-
cursos conturbados têm causado polarização de opiniões e gerado um
clima de intolerância e a divisão dos cidadãos em lados contrários,
o que pode inibir o professor a desenvolver esse tipo de trabalho na
escola. Durante a realização dos cursos vinculados ao ENARE em
2021 e 2022, diferentes professores manifestaram insegurança em ge-
rar divergências de opiniões dentro da classe por considerarem que
isso causaria problemas entre os integrantes da turma e até entre as
famílias.
Em seguimento às ideias de Mignolo (2013), entendemos que, em
lugar de a sala de aula valorizar a contenção disciplinar e de ideias, a
repressão de posições, bem como a discussão em relação aos direitos
e deveres, inventada pelos humanistas do Renascimento europeu, o
esforço dos professores pode estar direcionado a auxiliar os estudan-
tes a compreender a origem dos discursos de superioridade, sobretudo
quando tratam de questões de natureza cultural. Isso porque os modos
de agir em sociedade sempre dependem dos valores que sustentam as
diferentes visões, por isso é tão relevante criar oportunidades para que
sejam colocados em questão, que as crenças sejam explicitadas e que a
racionalidade seja exercida na relação dialógica.
1046
Sensibilizar os professores para esse tipo de necessidade, propor-
cionou aos participantes do curso voltar o olhar, por exemplo, para
a situação vivida com a pandemia da COVID-19, no último triênio,
o que ocasionou emoções variadas, como o medo da perda de pesso-
as queridas ou mesmo da própria vida, e a discussão acerca do valor
dos procedimentos sugeridos para evitar o contágio pelo vírus. Ou seja,
foi possível auxiliar os docentes a perceber que as práticas cotidianas
de linguagem constituem a base para argumentar e assumir posições
discursivas.
Particularmente, ao considerar os impactos da pandemia, os pro-
fessores, como outros especialistas, por exemplo, têm observado que a
adoção de mudanças nos hábitos, como o uso obrigatório de máscara
e o isolamento social, acirrou ainda mais a polarização de opiniões ge-
rada em torno da negação; que algumas práticas discursivas provoca-
ram a minimização da gravidade da doença, a subnotificação dos dados
epistemológicos, o boicote às ações recomendadas pela Organização
Mundial da Saúde (OMS); que o incentivo a tratamentos terapêuticos
sem validação científica foi reforçado por discursos proferidos por dife-
rentes sujeitos sociais, inclusive ligados ao campo da medicina; que as
tentativas de descredibilizar a eficácia da vacina foi uma das estratégias
argumentativas utilizadas por políticos brasileiros.
No campo educacional, especificamente, esse novo contexto so-
cial provocou altos índices de evasão escolar, levando a uma queda de
270 mil estudantes na EJA, segundo o Censo Escolar compilado pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(INEP), e algumas lacunas estão sendo consideradas irreparáveis no
aprendizado dos estudantes. Entre as recomendações da UNICEF em
relação ao cenário de exclusão escolar no Brasil durante a pandemia
(BRASIL, 2021), encontra-se a indicação de oferecer formação para
dirigentes escolares e docentes a fim de repensar o currículo e a organi-
zação dos tempos e espaços da escola.
Os transtornos econômicos, emocionais e sociais avolumaram
a dicotomia presente no país e ressaltaram a necessária preocupação
1047
de professores, coordenadores e gestores em lidar com a diferença e o
dissenso. Nesse sentido, o trabalho com a argumentação na educação
básica se apresenta como uma oportunidade para os cidadãos assumi-
rem sua posição ideológica ao defenderem pontos de vista, lutarem por
direitos e modificarem as situações existentes a fim de fortalecer a de-
mocracia por meio do exercício da cidadania. Esse esforço pode estar
alinhado às exigências encontradas nos documentos que orientam as
ações dos professores.
A Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), em particu-
lar, elenca competências específicas para cada área do conhecimento,
perpassando todos os segmentos da educação básica e define o termo
competência como “[...] a mobilização de conhecimentos, habilidades,
atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana,
do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL,
2018, p. 8). As competências estão associadas a cinco áreas do conhe-
cimento e visam a favorecer a comunicação entre os conhecimentos e
saberes dos diferentes componentes curriculares (BRASIL, 2010).
Embora tenhamos críticas à vinculação das competências e habili-
dades encontradas na Base aos processos de avaliação de larga escala que
ocorrem regularmente no Brasil (AZEVEDO; DAMACENO, 2017),
reconhecemos que esse documento incentiva o ensino da argumentação
desde a educação infantil até o ensino médio. Nele, a argumentação está
incluída entre as dez competências gerais para toda a educação básica,
com vistas a que o estudante aprenda:
1048
o trabalho em associação às práticas pedagógicas que visam a superar o
uso de estratégias de um sujeito consciente interessado em vencer o
oponente ou persuadir o ouvinte, para se constituir como um sujeito
social que se empenha em considerar as amplas questões que afetam a
vida de todos, para seja possível identificar meios de ação global, regional
e local (PIRIS, 2021). Para tanto, torna-se imprescindível possibilitar
aos estudantes a participação em situações argumentativas, tanto na
escola quanto fora dela, capazes de gerar argumentos que coloquem
pontos de vista e posições ideológicas em discussão.
Para tanto, as competências e as habilidades não são priorizadas,
mas o desenvolvimento de capacidades argumentativas tanto pelos es-
tudantes quanto pelos professores. A partir das reflexões de Azevedo
(2016; 2022), entendemos que, desde os estudos retóricos na Grécia
Antiga, temos exemplos de como “as capacidades podem se transformar
em função das interações com as circunstâncias, com os discursos, com
os conteúdos, com outras capacidades, são consideradas construções in-
ternas dos sujeitos que dependem das interações sociais” (AZEVEDO,
2022, p. 3).
Na visão de Azevedo (2016), essas capacidades argumentativas, por
estarem associadas à condição humana, à ação de linguagem e à expres-
são discursiva, promovem o desenvolvimento dos sujeitos em práticas
de linguagem argumentativas, ou seja, sobretudo quando acontecem
em um contexto argumentativo oriundo de situações sociais concre-
tas. Assim, para ensinar a argumentar, a aprendizagem é tomada como
um tipo de ação de linguagem realizado em um processo interacional,
por isso os eventos de letramento podem desencadear capacidades argu-
mentativas, bem como podem guiar as ações, os saberes e os fazeres dos
docentes, discentes e, quiçá, da comunidade escolar (FERNANDES,
2021).
Nesse sentido, a argumentação também pode ser tomada como um
esforço para construir a perspectiva de civilidade, uma maneira de se
resolver problemas relacionados a questões políticas, sociais e de con-
vivência, ou seja, ela é compreendida como um viés importante para
1049
resolver conflitos com o auxílio da palavra, sem precisar recorrer à força,
à violência (GRÁCIO, 2011). Dessa forma, a argumentação pode pos-
sibilitar aos indivíduos o desenvolvimento e/ou o aprimoramento do
senso crítico, do exercício da cidadania e, consequentemente, da luta
por direitos e por uma sociedade mais justa e igualitária.
Por considerarmos que é pela linguagem que interagimos discur-
sivamente, expressamos nossos pensamentos e nos relacionamos com
o outro, entendemos que nos constituímos como sujeitos quando es-
tamos inseridos em um ambiente social (VOLÓCHINOV, 2017).
Nessas relações, construímos nossa identidade e ainda desenvolvemos
capacidades comunicativas específicas que estão relacionadas às práticas
de leitura, de escrita e de oralidade.
Assumimos, então, que o trabalho com as práticas de linguagem,
quando ocorrem de maneira significativa, para que estudantes e profes-
sores, porque estão vinculadas a problemas sociais que são discutidos
entre todos os envolvidos, pode efetivamente colaborar com o ensino
de argumentação na escola. Isso requer que todos estejam dispostos a
participar de atividades que não se restringem a exercícios mecânicos
e repetitivos, mas que se constituem como ações sociais concretas, daí
a necessidade de se estabelecer uma relação coerente entre a área dos
estudos de letramento e a da argumentação.
Em particular, para lidar com a complexidade das situações atinen-
tes às interações vividas no cotidiano da EJA, que, atualmente, atende
a adolescentes, jovens, adultos e idosos, consideramos pertinente que
os cursos de formação de alfabetizadores estejam adequados às recen-
tes demandas desse segmento educacional. Para tanto, os professores
podem direcionar “[...] as práticas pedagógicas para uma ação em que
não apenas constatem os problemas, mas para que possam aprender a
resolvê-los em sala de aula” (BARBATO, 2012, p. 314) e fora dela.
A EJA, historicamente, vem sendo tratada como uma modalida-
de estigmatizada no âmbito educacional, em função do fracasso es-
colar identificado entre os estudantes matriculados nela. Ou seja, as
1050
dificuldades no acesso e na permanência na escola continuam gerando
altas taxas de analfabetos, devido à falta de domínio no uso da norma-
-padrão da língua portuguesa, e isso acaba afetando a vida daqueles
que, em algum momento, foram/são excluídos do sistema de ensino
brasileiro e afastando cada vez mais dos bancos da escola.
Trabalhar com a EJA é um desafio múltiplo ao professor, pois as
diferentes culturas pertinentes à variação etária e aos diferentes níveis
de aprendizado dos estudantes compõem a heterogeneidade das tur-
mas e se consolidam como um fator que torna o trabalho docente
ainda mais desafiador, exigindo do professor um empenho maior no
planejamento das práticas educativas, considerando também a elabora-
ção e a utilização dos materiais didáticos que podem compor a rotina
da sala de aula.
1051
servir como materiais didáticos destinados ao ensino-aprendizagem da
argumentação; (iii) colocar em diálogo os sujeitos que queiram partici-
par da construção de um novo modo de pensar que se desvincula, em
parte, das cronologias construídas pelo viés europeu e ocidental, em
busca de identificar novas bases para discutir os problemas que afetam
as sociedades afetadas pelo colonialismo; (iv) constituir-se como uma
referência aos professores comprometidos em colaborar com necessida-
des sociais e cumprir com as exigências legais definidas em diferentes
níveis (federal, estadual e municipal, prioritariamente).
Para tanto, três metas foram estabelecidas: (i) promover a formação
continuada de professores de todos os níveis de ensino da educação bá-
sica de maneira sistemática e sistêmica, quando possível; (ii) ampliar o
alcance do projeto ENARE para diferentes regiões do Brasil; (iii) iden-
tificar meios para o cumprimento com as exigências legais definidas em
diferentes níveis (federal, estadual e municipal) possa acontecer vincu-
lado ao trabalho com práticas sociais de linguagem.
Por se tratar de um projeto de natureza teórico-prática, que articu-
la conhecimentos oriundos de diferentes campos de estudos e pesqui-
sas, optou-se por uma abordagem sócio-histórico-cultural (LIBÂNEO,
2004; MAGALHÃES; OLIVEIRA, 2018) e decolonial (DUSSEL,
1980; MIGNOLO, 2017), que possibilita o desenvolvimento de mé-
todos de intervenção pedagógica que visam à emancipação dos sujeitos
(FREIRE, 1999; TONET, 2005). Assim, o desenho do projeto par-
te dos saberes da experiência (ver Figura 01), ou seja, das ações que
são identificadas em turmas dos anos iniciais do ensino fundamental,
para que sejam provocadas reflexões a partir de temáticas associadas
às necessidades dos docentes envolvidos, bem como problematizações
durante as formações. A recuperação de referências e de práticas que
podem colaborar com a legitimidade das ações que serão implemen-
tadas em sala de aula tem gera confiança entre os participantes e o
interesse pelos estudos mais aprofundados em torno da argumentação
(BEHRENS, 2007).
1052
Figura 1. Caderno de Projetos.
208
A metodologia de formação por meio de “cardápio de projetos” foi desenvolvi-
da no Programa Escola Que Vale (PEQV) e amplamente divulgada por Beatriz
Cardoso e Regina Scarpa. Segundo as autoras, essa proposta parte da “premissa
de que não é possível desenvolver um material único que se adapte a qualquer
contexto”, mas que a diversidade de soluções pode partir de práticas pedagógicas
conhecidas para a criação de novas propostas de ensino-aprendizagem, desde que
sejam oferecidas condições materiais e conceituais para isso acontecer (CARDO-
SO; SCARPA, 2002, p. 22).
1053
Os encontros formativos são articulados em três momentos distin-
tos e complementares: (i) tematização; (ii) problematização; (iii) inves-
tigação didático-metodológica. As ações formativas são decorrentes de
atividades favoráveis ao ensino da argumentação por meio de práticas de
linguagem, tal como é indicado na Base, mas tem como foco central as
interações entre os sujeitos, que precisam ser sempre contextualizadas,
fundadas em relações que acontecem em um espaço-tempo específico
e entendidas na historicidade de cada participante e das comunidades
envolvidas (KOZOULIN, 2013).
Durante a formação continuada de professores são utilizados re-
cursos elaborados especificamente pelo grupo do ENARE com intui-
to de contribuir com o estudo teórico – como o livro Ensino de argu-
mentação na educação básica e o Guia teórico-prático para professores da
educação básica (ver Figuras 02 e 03) –, de promover pensamentos/
sensibilidades/fazeres estritamente interconectados, de permitir a análi-
se de metodologias de ensino-aprendizagem e a produção de materiais
que subsidiem a elaboração de propostas de ensino da argumentação
comprometidas com o aprendizado qualificado da língua portuguesa
visando à formação integral dos estudantes para a cidadania em prol da
educação emancipatória.
1054
Figura 3. Guia teórico-prático para professores de educação básica.
1055
longo da vida escolar e contribuir para que os estudantes participem de
práticas argumentativas que ocorrem na vida, além das didático-peda-
gógicas, que ocorrem tanto em espaços públicos quanto privados.
Além desses recursos, são configurados, a cada edição dos cursos,
um conjunto de materiais didáticos elaborados com a contribuição das
reflexões realizadas em parceria com os professores participantes da for-
mação continuada. As sugestões de atividades contribuem para as práti-
cas pedagógicas acontecerem efetivamente em classe e estão organizadas
em práticas sociais de oralidade, leitura, escrita e análise linguística, que
são articuladas em Roteiros de Trabalho. Neles, as ações educativas são
detalhadas, visando a contribuir para a consecução de práticas argu-
mentativas apoiadas em gêneros discursivos, com o envolvimento de
diferentes sujeitos sociais. Também são elaborados Planos de Aula, que
auxiliam os professores a estabelecer relações entre as exigências legais
e as necessidades sociais, com destaque para os modos que favorecem o
desenvolvimento de distintas capacidades argumentativas.
1056
os conhecimentos, as atitudes e os valores em circulação na vida cotidia-
na, os professores e os estudantes “aprendem como pensar teoricamente
a respeito de um objeto de estudo e, com isso, formam um conceito
teórico apropriado desse objeto para lidar praticamente com ele em
situações concretas da vida” (LIBÂNEO, 2004, p. 122).
Nesse sentido, a capacidade de argumentar não é vista como con-
dicionada ou restrita apenas à compreensão de aspectos estruturais
relacionados ao discurso argumentativo, mas está embasada em uma
concepção de argumentação como prática social de linguagem, sobre-
tudo porque a degradação da vida humana é cada vez mais intensa na
sociedade contemporânea, gerando crise da produção material, crise de
valores etc., o que afeta todos os aspectos da vida em sociedade (éticos,
políticos, ideológicos, educacionais etc.) e, consequentemente, as for-
mas de sociabilidade (TONET, 2005).
Entendemos, assim, que possibilitar aos sujeitos sociais a defesa de
opiniões e a avaliação de pontos de vista, em um processo interacional,
situado, vivencial e não simulada (AQUINO, 2018), torna-se um meio
para as ações, apoiadas em necessidades, emoções e saberes etc., regis-
trarem as relações estabelecidas entre os objetos da vida, com os outros
sujeitos e as diferentes linguagens (LIBÂNEO, 2004).
Como os educadores envolvidos com a EJA têm o desafio peda-
gógico de motivar o diálogo entre os oprimidos para a superação dessa
condição, entendemos que os sujeitos escolares podem se tornar os ato-
res agentes de letramento, alinhados a uma educação libertadora, para
suplantar um ensino pautado no domínio mecânico de técnicas para
tornar os estudantes capazes de ler e escrever. Como o termo “agência”
em Linguística Aplicada, está apoiado em uma perspectiva teórico-crí-
tica, concebemos como um tipo de ativismo que possibilita aos sujeitos
construir posicionamentos acerca de um acontecimento social local, a
fim de colaborar com a consecução de práticas comunitárias. Esse tipo
de postura mobiliza as capacidades individuais na defesa de grupos ou
situações que merecem atenção, transformação e, por vezes, superação do
status quo (VIANNA; STETSENKO, 2019).
1057
Desse modo, o professor é comprometido a assumir um papel ati-
vo em favor daqueles que são menos favorecidos a fim de promover
conexões entre os mundos da vida, as concepções produzidas em di-
ferentes espaços sociais, sobretudo os não hegemônicos. Esse tipo de
comprometimento inter-relaciona os conhecimentos, os discursos, as
distintas linguagens, as atitudes de criação e recriação, para que seja
possível orientar as reflexões e acompanhar as ações que são realizadas
colaborativamente, enquanto são colocadas em diálogo as marcas iden-
titárias e as valorações axiológicas de cada grupo de estudantes. Assim,
os sujeitos escolares se tornam capazes de opinar, interagir, argumentar
quando desafiados, para concretizar um papel responsável pela constru-
ção histórica do conhecimento.
A partir das ideias de Freire (1999, p. 68), consideramos que “nin-
guém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se edu-
cam entre si, mediatizados pelo mundo”. Além disso, entendemos que
a convivência mútua, em diferentes espaços, possibilita a transformação
de todos os sujeitos implicados nas ações formativas/colaborativas, por
isso não apenas instigam a manutenção das ações de pesquisa e exten-
são, como motivam a manutenção de meios favoráveis a manter aberto
os meios para realizar novas partilhas e trocas acadêmicas e humanas.
Desse modo, pretende-se contribuir efetivamente com a reflexão relati-
va às práticas escolares, visando a suplantar os limites das ações cotidia-
nas e vislumbrar novas alternativas para a concretização da argumenta-
ção por meio de práticas sociais de letramento.
Referências
AQUINO, J. L. O ensino de argumentação em eventos de letramento. 2018. Doutorado
em Estudos da Linguagem Instituição de Ensino: Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, Natal, 2018.
1058
AZEVEDO, I. C. M.; DAMACENO, T. M. S. S. Desafios do BNCC em torno do
ensino de língua portuguesa na educação básica. REVEC, n. 7, 2017.
1059
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
MIGNOLO, W. Who speaks for the “Human” in Human Rights? In: BARRETO,
José-Manuel (ed.). Human rights from a Third World Perspective. Critique, History and
International Law. Cambridge Scholars Publishing, 2013. p. 44-64.
1060
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
1061
Several ordinances were responsible for structuring and expanding the
Program, culminating in ANDIFES Resolution 1/2019, which incorporated
the program to the National Association of Directors of Federal Institutions
of Higher Education. In view of this scenario, the initial objective of this
work is to situate the way in which the LWB-English Program was structured
at UFS, listing actions related to teaching and teacher training aimed at
internationalization. With the disengagement of the program from the
Ministry of Education, several adjustments were necessary to the program, so
that this paper also analyzes the changes and adjustments that were necessary
in the Nucleus of the Federal University of Sergipe (UFS), so that the actions
previously developed could have continuity. This is a case study qualitative
research, since it investigates the LWB-English at UFS in a holistic way,
pointing out the adjustments that were necessary for the Program to remain
in operation. As preliminary results, it is possible to identify the importance of
teacher training actions developed in the Language Nucleus, since they can be
considered as the pillars so that the entire team could keep in mind not only
the objectives of the program, but, mainly, the actions developed are related
to internationalization.
KEYWORDS: Languages without Borders; English language;
Internationalization; Teacher training; Language Teaching
Introdução
O Programa Inglês sem Fronteiras (IsF), promulgado em 2012,
em decorrência de uma parceria estabelecida com o Ministério da
Educação (MEC), teve como objetivo principal auxiliar os alunos do
Programa Ciência sem Fronteiras, com o desenvolvimento linguístico
necessário para que pudessem passar nas provas de proficiência requeri-
das nos programas de mobilidade acadêmica, nos quais estavam inscri-
tos (BRASIL, 2012).
A Universidade Federal de Sergipe (UFS) ingressou no Programa
IsF ainda em 2012, participando das discussões iniciais sobre diretrizes
e ações do Programa, nas quais duas questões eram frequentes: a in-
dependência do programa e a inclusão de outros idiomas. Esse último
item foi assegurado na Portaria nº 973, de 14 de novembro de 2014,
1062
que ampliou o Programa, a partir da inserção de mais seis idiomas:
alemão, espanhol, francês, italiano, japonês e português como língua
estrangeira (BRASIL, 2014). A sigla IsF permaneceu, mas agora se
referindo ao Programa Idiomas sem Fronteiras, que passou por nova
profunda modificação em 2019, quando foi oficializada a sua vincula-
ção à ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior). A partir de então, o Programa passou a
ser chamado de Rede Andifes IsF, mantendo os mesmos objetivos de
promover o desenvolvimento linguístico da comunidade acadêmica, a
partir de ações relacionadas ao processo de internacionalização do ensi-
no superior, e imersos em práticas de formação de professores que sejam
condizentes com os objetivos de internacionalização propostos pela IES
(BRASILIA, 2019).
A independência do programa pôde ser gradativamente percebida,
quando as ações de formação de professores começaram a ser mais in-
centivadas (a partir de 2014) e quando o Ciência sem Fronteiras che-
gou a seu fim, em 2017. Com o término do CsF, todas as ações do IsF
começaram a ser pautadas nas suas próprias necessidades e objetivos.
Assim, esses objetivos precisaram ser bem definidos, o que fez com que,
no edital de (re)credenciamento, o IsF começasse a exigir a apresentação
de políticas linguísticas no momento da submissão de suas propostas.
É nesse contexto que o presente artigo se insere, de modo a ser
possível fazer um estudo de caso sobre o funcionamento do NucLi da
Universidade Federal de Sergipe (UFS), destacando as ações de ensino,
internacionalização e formação de professores que vêm sendo executa-
das e de que forma foram adaptadas para alguns novos cenários, como
o rompimento com o MEC, a pandemia e o cenário pós-pandêmico.
1063
ser aplicadas apenas para os alunos que estavam em processos de mobi-
lidade acadêmica. As atividades relacionadas ao ensino de língua inglesa
foram percebidas, em 2013, com a disponibilização de senhas para o
curso do My English Online, com 5 níveis de cursos, destinados a alunos
dos níveis básico, intermediário e avançado.
O contexto de uma IES que não possui Centro de Línguas, como
a UFS, faz com que as ações desenvolvidas tenham uma receptividade
ainda maior, por se constituir, em muitos casos, como a única opor-
tunidade institucional e gratuita para o desenvolvimento linguístico.
Assim, na Universidade Federal de Sergipe, os cursos iniciados em 2014
fizeram com que houvesse um grande número de inscrições, o que ge-
rou longas listas de espera e um alto índice de finalização de alunos nos
cursos. Até 2017, no entanto, em decorrência da ligação do programa
ao CsF, o sistema de ranqueamento privilegiava alunos dos cursos con-
siderados como prioritários para os processos de mobilidade do Ciência
sem Fronteiras. A partir de então, todos os alunos passaram a ter as
mesmas chances na busca por uma vaga, e o sistema passou a ser mais
democrático, como era desejado pelo Núcleo Gestor do Programa e
todos os especialistas credenciados.
A inscrição nos cursos presenciais era realizada via sistema nacional,
com a possibilidade de geração de listas de espera, já que, até a finaliza-
ção do período de inscrição, todos os alunos que desejavam uma vaga,
conseguiam se inscrever. Em 2019, o IsF-Inglês da UFS tinha 6 profes-
sores bolsistas, e como cada professor ficava responsável por 3 turmas
de 25 alunos, cada, tínhamos um total de 75 turmas e 1.875 vagas, por
oferta. Com uma média de 5 ofertas anuais, a UFS disponibilizava,
para a comunidade acadêmica 9.275 vagas, distribuídas em 375 tur-
mas. Como cerca de 60% dos alunos finalizavam os seus cursos, o IsF-
Inglês da UFS teve uma média de 5.565 alunos com cursos finalizados,
todos focados na vivência acadêmica.
De acordo com os relatórios gerenciais do Núcleo Gestor do IsF,
a UFS, até 2018, conseguiu obter uma média de 140% de inscrições
(SANTOS; GOMES, 2021), o que dava, em algumas turmas, listas
1064
de espera de 100 alunos. Essa quantidade represada de alunos que não
conseguiam uma vaga sintetiza a necessidade urgente em termos mais
programas como o IsF e maiores investimentos, de modo que mais
vagas possam ser ofertadas. A orientação para a oferta de cursos que
privilegiassem os níveis de proficiência B1 e B2 não representavam a
demanda de IES que não possuem centros de línguas, já que um grande
número de alunos, que poderiam ser contemplados nos centros de lín-
guas, acaba procurando o IsF.
A sistemática de funcionamento dos cursos presenciais privilegia os
conteúdos acadêmicos, uma vez que apenas cursos disponibilizados em
um catálogo nacional podem ser ofertados. Nesse catálogo, os cursos
são divididos em 4 áreas (Inglês para fins específicos, Inglês para fins
acadêmicos, cultura e exames de proficiência). Entre os cursos dispo-
nibilizados, temos, até 2021, um total de 327 possibilidades de cursos
a serem ofertados, combinando nomes de curso, carga horária possível
(16, 32, 48 ou 64 horas) e nível de proficiência linguística (A1, A2,
B1, B2 ou C1). Entre os cursos mais demandados na UFS, destacamos
cinco: compreensão escrita – abstracts; Compreensão oral – palestras
e aulas; Produção escrita – parágrafos; Produção Oral – comunicações
acadêmicas e Produção Oral – debates, o que comprova o teor acadêmi-
co das aulas disponibilizadas para a sociedade acadêmica.
Após o cadastro dos cursos e inscrição, o ranqueamento era feito
pelo próprio sistema, e o acompanhamento era conduzido localmente
pelos coordenadores de cada NucLi, juntamente com a formação de
professores conduzida, o acompanhamento de evasão e as atividades
relacionadas ao processo de preparação de materiais.
1065
Figura 1: Fluxograma de acompanhamento de evasão, preparado pelo IsF-UFS
1066
sistema SIGAA, com três consequências diretas, por conta da mudança
de procedimentos. Inicialmente, é importante destacar que, quando do
uso do sistema de inscrição do MEC, ao se logar ao sistema, o aluno
apenas entrava em contato com os cursos disponibilizados para o nível
linguístico identificado como correspondente ao do discente, já que o
sistema reconhecia as notas obtidas no TOEFL ITP e no MEO, requi-
sitos para a inscrição nos cursos e ofertados regularmente e de forma
gratuita nas instituições. No SIGAA, esse procedimento foi modifica-
do, ficando o aluno responsável por anexar um comprovante de profi-
ciência no ato da matrícula, acarretando em um trabalho adicional ao
coordenador pedagógico, que agora precisaria conferir essa documenta-
ção, ou repassá-la aos professores das turmas.
Como segunda consequência, temos a contabilização no número
de inscrições, já que ao ser atingido o número de vagas disponibilizadas,
o sistema de inscrição fecha automaticamente. Assim, sem a existência
de listas de espera, não temos como saber a verdadeira procura por cur-
sos e não temos como substituir os alunos faltosos, o que gera aumento
no índice de absenteísmo, já que, anteriormente, com a falta na pri-
meira semana de aula, outros alunos eram chamados e a turma iniciava
com as vagas totalmente preenchidas. É comum termos alunos que se
inscrevem nos cursos assim que as vagas são abertas, já que elas são ra-
pidamente preenchidas, e, ao constatar que não podem frequentar, não
comparecem à aula, deixando aquelas vagas ociosas.
Uma terceira consequência foi sentida no acúmulo de trabalho, an-
teriormente feito de forma automática ou pelos professores bolsistas, e
que agora foi repassada para o coordenador pedagógico do programa.
Ao término de cada turma, no caso da UFS, o coordenador precisa ca-
dastrar cada presença e fazer relatórios individualizados de cada turma,
por terem sido cadastradas como ações de extensão, o que faz com que
seja necessário seguir os protocolos da IES. Somente após essas fases
concluídas, o certificado é gerado automaticamente para o aluno.
Com a pandemia, novos ajustes foram necessários, já que todas as
aulas foram migradas para o modo remoto, com aulas ministradas pela
1067
Plataforma da Microsoft Teams. Professores e coordenadores precisaram
aprender a utilizar o sistema e a organizar todas as aulas, utilizando fer-
ramentas digitais. Novos desafios foram somados, como a dificuldade
em oportunizar momentos de interação, a constatação de que a maioria
dos alunos não ligavam suas câmeras e a busca por maior participação
na aula, com o aluno utilizando o chat e sua voz. Outros desafios ti-
veram também que ser superados, como a instabilidade da internet,
não só dos alunos, como também dos professores, o acompanhamento
de discussões em pequenos grupos, a motivação dos alunos nessa nova
modalidade de ensino, e problemas de ruído, muitas vezes impossíveis
de ser previstos ou, até mesmo corrigidos, e que acometem professores
e alunos.
Mesmo com todos os problemas, novas práticas foram instauradas
e os resultados foram satisfatórios. Tivemos, durante a pandemia, na
modalidade remota, de 2020 a 2022, quarenta e três cursos de 16 horas
sendo ofertados, e, em todos, 25 alunos inscritos, o que perfaz um total
de 1.075 vagas disponibilizadas. Em virtude dos problemas menciona-
dos acima, apenas cerca de 40 a 50% dessas inscrições foram encerradas
com sucesso, ou seja, com a conclusão dos alunos nos cursos nos quais
estavam inscritos. Importante destacar, mais uma vez, que todos os cur-
sos foram retirados do catálogo de cursos e estavam focados na vivência
acadêmica e na preparação dos alunos para a internacionalização, na
medida em que foram trabalhadas estratégias para a compreensão e/ou
expressão escrita e oral, a partir de interações acadêmicas, abstracts, ar-
tigos e debates, por exemplo. Assim, os alunos podem estar preparados
para interações acadêmicas na língua inglesa, nas quais trocas científicas
podem ser estabelecidas, com resultados positivos para a UFS.
1068
o programa passou por um ajuste, para se adaptar à nova realidade,
quando da vinculação à ANDIFES; 3) de 2020 a 2022, quando o IsF
precisou se ajustar à nova realidade imposta pela pandemia, e 4) a partir
de 2022, quando do retorno às atividades presenciais.
O projeto de formação de professores instituído na fase 1 esta-
va baseado na leitura, fichamento e discussão de textos e workshops,
acompanhados de um processo de formação voltado diretamente para
a preparação de aulas, no qual os professores eram divididos em duplas
e cada dupla ficava responsável pela preparação dos materiais didáticos
para os cursos, previamente selecionados em reunião entre professores e
coordenadores. Os materiais eram, então, apresentados na reunião pe-
dagógica semanal, com uma sessão de feedback coletivo, na qual todos
eram convidados a contribuir com ideias ou tirar suas dúvidas. As aulas
eram ajustadas pelos professores e enviadas por e-mail para que pudes-
sem ser validadas e inseridas no drive local do Programa. Esse modelo
pode ser mais bem compreendido com a análise da Figura 2, a seguir, na
qual podemos encontrar o detalhamento das atividades.
1069
É importante destacar que a reflexão coletiva é incentivada no
Programa, não somente no momento das discussões dos textos lidos,
como também durante as aulas que são apresentadas para todo o grupo.
A partir desses momentos, observa-se que o grupo começa a teorizar
a partir de suas práticas e a praticar conforme suas teorias, conforme
defendido por Kumaravadivelu (2006), demostrando mais consciência
em relação às escolhas metodológicas feitas, com objetivos mais condi-
zentes com as necessidades de cada turma.
O IsF tem como diferencial o fato de ter suas atividades relacio-
nadas às ações e práticas de internacionalização da IES, o que pode ser
comprovado quando percebemos as relações estabelecidas entre o IsF e
as Relações Internacionais das instituições de ensino superior, e o teor
dos cursos ofertados. Os coordenadores do IsF, dessa forma, passaram
por um processo de estudo teórico sobre internacionalização e políticas
linguísticas e essas questões começaram, também, a fazer parte das dis-
cussões promovidas no processo de formação de professores desenvol-
vido pela UFS. As primeiras turmas, em consequência do, ainda, pou-
co contato teórico com o tema, por parte dos coordenadores, tiveram
uma quantidade menor de oportunidades de trocas nesse campo, mas,
paulatinamente, questões relacionadas à internacionalização do ensino
superior passaram a fazer parte da realidade do NucLi.
A fase b foi caracterizada por momentos de turbulência e insta-
bilidade, uma vez que todas as práticas tiveram que ser ajustadas, em
virtude da desvinculação ao MEC. Ao invés de 3 turmas, cada professor
passou a ter apenas 1, já que o valor das bolsas foi reduzido a quase
1/3 do que era anteriormente pago. Toda a parte conceitual do progra-
ma continuou a acontecer, mas a execução ficou comprometida pelos
ajustes que tiveram que ser feitos, como, por exemplo, o trabalho extra
dedicado para a análise do nível de proficiência dos alunos, durante a
inscrição nos cursos, as inscrições pelo SIGAA e o gerencialmente ma-
nual estabelecido e incrementado pelo uso de planilhas de excel.
A maior diferença na fase b foi percebida em consequência da redu-
ção no valor das bolsas, uma vez que a captação de professores bolsistas
1070
ficou mais difícil, e o nível de proficiência exigido foi afetado, já que,
no passado tínhamos professores com nível C1, ou discentes no nível
B2 que conseguiam, ao final de 1 ano obter o C1. Como um dos pré-
-requisitos para continuar no programa era conseguir se tornar C1 em
um ano, os professores investiam em seus projetos pessoais de desen-
volvimento linguístico. Com bolsas menores, a motivação intrínseca
ficou mais difícil de ser acionada e, com isso, foi inserido, no projeto
de formação, um momento dedicado ao desenvolvimento linguístico.
Durante todas as reuniões semanais, cada aluno tem que apresentar
o que conseguiu cumprir do seu plano de desenvolvimento linguístico,
relatando o que foi estudado e que habilidade foi trabalhada. Quando o
aluno não consegue, por ter tido uma semana mais atribulada, são feitos
novos acordos verbais para que, na semana seguinte, ele possa apresen-
tar o seu novo plano, sinalizando o que foi cumprido.
Com a pandemia, novos ajustes precisaram ser feitos, já que todas
as reuniões tiveram que ser feitas de forma remota, com todas as dificul-
dades inerentes a esse momento, como problemas de conexão, ruídos e
câmeras desligadas. Mesmo com os ajustes necessários, o modelo esta-
belecido na Figura 2 foi cumprido, com a constatação de que o peer ob-
servation foi mais intenso, já que, como não havia mais o deslocamento
para a UFS, os professores bolsistas começaram a assistir as aulas dos
outros e as sessões de feedback estabelecidas foram ricas e contribuíram
para a formação de professores autônomos e crítico-reflexivos, já que
eles começaram a procurar uns aos outros, pedindo ajudas e contribui-
ções. Em decorrência de todas as dificuldades inerentes a um período
pandêmico, a comprovação de proficiência para ingresso nos cursos foi
substituída por um sistema de autodeclaração, no qual o aluno passou
a se inscrever no nível em que se sentia mais confortável e os ajustes
eram feitos in loco, ou seja, os professores orientavam os alunos na troca
de turmas de níveis mais ou menos avançados. O resultado obtido foi
considerado de sucesso, já que poucas foram as trocas feitas.
Na fase d, a atual, estamos em busca de um retorno ao modelo ini-
cial, tentando incorporar algumas práticas adquiridas nos últimos anos,
1071
como o aumento no número de sessões de peer observation. Uma outra
mudança foi também inserida, na tentativa de incrementar o processo
de desenvolvimento linguístico dos alunos, a formação de grupos de
estudo com a English Teaching Assistant (ETA) da UFS. O projeto de
ETAs está vinculado à Comissão Fulbright e visa auxiliar o processo de
desenvolvimento linguístico nas IES brasileiras, com o envio de 1 a 2
estadunidenses que, durante 9 meses, desenvolverão atividades linguís-
ticas na universidade, focando na interculturalidade.
Atualmente, a equipe é composta por cinco professores bolsistas
e quatro professores voluntários. Os professores foram divididos em
duas equipes e, quinzenalmente, eles se reúnem de forma ora remota
ora presencial. Nesses encontros, a ETA trabalha de forma mais intensa
com uma habilidade linguística, privilegiando as habilidades de pro-
dução (speaking e writing), já que são as habilidades sinalizadas pelos
professores como as de maior dificuldade de desenvolvimento nos seus
planos individuais, sendo necessários momentos de interação síncronos.
Algumas considerações
O Programa Inglês sem Fronteiras foi criado com o propósito de
auxiliar alunos em processos de mobilidade acadêmica propiciados em
decorrência do Ciência sem Fronteiras. Várias foram as críticas vindas
por muitos membros da comunidade acadêmica, por não ter existido
um espaço específico para o plurilinguismo e a formação de professo-
res. O IsF, no entanto, passou por vários processos de reconfiguração e
ajustes, incorporando outros idiomas e adquirindo independência no
desenvolvimento de suas ações e dos espaços formativos que passaram
a ser construídos, a exemplo da Especialização em línguas estrangeiras
para a internacionalização, que está em fase de elaboração e será admi-
nistrada em rede.
A vinculação à Andifes fez com que a Rede IsF se reconfiguras-
se e alcançasse uma maior independência no desenho das ações a se-
rem realizadas. É importante destacar, no entanto, que os mesmos
princípios permaneceram inalterados, no que se refere ao foco dado à
1072
internacionalização, ao ensino de línguas e à formação de professores.
Os cases de sucesso do programa podem ser utilizados como exemplos
a serem analisados não somente por integrantes da rede, mas por qual-
quer especialista voltado para a formação de professores e que desejem
se aprofundar no contexto da internacionalização, trabalhando com te-
máticas acadêmicas.
A liberdade de ação da Rede foi fundamental para que os ajus-
tes pudessem ser feitos durante a pandemia da COVID19. Em mui-
tos contextos, como no da UFS, por algum tempo, o IsF se constituiu
como único vínculo que os alunos contemplados mantiveram com a
IES, já que as aulas permaneceram suspensas por alguns meses. Nesse
período, ficou mais evidente, para alunos, professores e coordenadores,
a importância do programa, pois não foram apenas aulas em língua
inglesa que foram disponibilizadas, mas espaços de trocas baseadas em
contextos acadêmicos, o que aproximou ainda mais os alunos às ques-
tões relacionadas aos contextos universitários.
Na UFS, o Programa se faz presente desde o ano de 2012, incialmente
apenas com ações do idioma inglês e posteriormente do francês, espanhol e
português para estrangeiros. Ao longo desse tempo, todo o trabalho de for-
mação de professores foi aprimorado e adaptou-se aos diferentes contextos,
desde bolsas maiores, pagas pela Capes, a bolsas bem menores, passando
por aulas presenciais e ao ensino remoto emergencial imposto em 2020.
Esse trabalho do NucLi tem oferecido a toda a comunidade acadêmica da
UFS cursos de inglês com vistas à internacionalização, com formação de
listas de espera, o que demostra o interesse do público por essas ações e
aponta para um potencial de expansão do programa nessa instituição.
Referências
BRASIL. Portaria nº 1466, de 18 de dezembro de 2012. Institui o Programa Inglês
sem Fronteiras.] Diário Oficial da União, seção 1, n. 244, de 19 de dezembro de 2012.
Disponível em: http://bit.ly/2lyrMzC. Acesso em: 01 jun. 2020.
1073
BRASIL. Ministério da Educação. Edital de Recredenciamento nº 29. Brasília, DF:
Ministério da Educação, 13 abr. 2017. Disponível em: http://isf.mec.gov.br/ima-
ges/2017/Edital_29_2017.pdf. Acesso em: 01 ago. 2020.
1074
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
1075
fractalized identity of the I-reader from the interrelationships between its
PARTS, represented by the fractals identified through participant observation,
semi-structured interviews, reading memorials, focus groups and descriptive
and reflective field notes. The metaphor of the analytical crystal also
enables the production of different interpretive images of the phenomenon
under study and its representation with the support of various resources,
encompassing both the production of verbal and non-verbal texts, giving the
teacher-researcher possibilities of expression of the results of research more
broadly and creatively.
KEYWORDS: complexity, fractalized identity, cristalization
Apresentação
Este artigo tem como objetivo apresentar o conceito de identidade
fractalizada a partir de um recorte epistêmico-metodológico da pesqui-
sa de doutorado que desenvolvo no âmbito da Linguística Aplicada209,
mais especificamente, no contexto da formação inicial de docentes de
línguas.
Epistemologicamente, o estudo se circunscreve ao marco ecotrans-
disciplinar da produção do conhecimento (BRONFENBRENNER,
1979; NICOLESCU, 1999; GALATI, 2017) e dos fenômenos rela-
cionados com a linguagem (VAN LIER, 2010), à luz do pensamento
complexo (MORAES, 2021; MORIN, 2015). A investigação conta,
ainda, com a cristalização (ELLINGSON, 2008; RICHARDSON; ST.
PIERRE, 2005) dos dados empíricos gerados pelos instrumentos de pes-
quisa empregados, a saber: memoriais de leitura (ABRAHÃO, 2011),
entrevistas semiestruturadas audiogravadas (COHEN; MANION;
MORRISON, 2005) e grupos focais (GATTI, 2005).
Desse modo, subdivido este texto em seis seções que tratam, respec-
tivamente, de uma introdução, contendo um breve panorama histórico
209
Doutorado pelo Programa Pós-Graduação em Linguística, do Departamento de
Linguística, Português e Línguas Clássicas, do Instituto de Letras da Universida-
de de Brasília. Área de Concentração: Linguagem e Sociedade. Linha de Pesqui-
sa: Língua, interação sociocultural e letramento, sob a orientação da Profa. Dra.
Mariney Pereira Conceição.
1076
acerca do tratamento atribuído ao construto da identidade; da apresen-
tação das bases epistemológicas que delineiam a noção de identidade
fractalizada; da noção de fractal e da concepção do construto identitário
sob a ótica do pensar complexo; da metáfora analítica por meio da qual
se cristalizam e se analisam os dados gerados no contexto da pesquisa,
e, finalmente, das minhas considerações finais. Ao final, disponho as
referências consultadas para a elaboração deste estudo.
Introdução
Historicamente, o entendimento sobre o que vem a ser a identi-
dade do ser humano experimenta um amplo processo de mudanças
estruturais que rompem com paradigmas tradicionais, deslocando sua
concepção seminal de uma configuração cêntrica e fixadora do Eu em si
ao seu entendimento como entidade fluida e dinâmica (HALL, 2003).
Dessa forma, salientam-se três perspectivas distintas do construto
identitário: a primeira refere-se ao sujeito do Iluminismo, um “indiví-
duo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão,
de consciência e de ação.” (HALL, 2003, p. 10), designando um Eu-
indiviso, homogêneo e estável, por consistir em essência inata e imutá-
vel ao longo da vida.
A segunda concepção consiste na do sujeito sociológico que, segun-
do o autor, apresenta a sua origem nas mudanças do mundo moderno
e na tomada de consciência da impossibilidade da existência de um
núcleo interior autônomo, homogêneo e autossuficiente, deslocando
a sua compreensão para a de um Eu-múltiplo que se refrata por meio
das suas relações com o Outro, dos valores, dos sentidos e dos símbolos
pertencentes a contextos socioculturais compartilhados.
Esse mesmo processo de fragmentação dá origem à terceira visão de
identidade, a do sujeito pós-moderno, em constante processo de forma-
ção e de transformação, segundo sejam as formas de representação ou
de interpelação dos sistemas culturais onde se inserem os indivíduos, o
que os leva a assumirem variadas e distintas conformações identitárias.
1077
Ainda de acordo com Hall (2003), a mobilidade do sujeito pós-moder-
no, facilitada e promovida pela globalização (WOODWARD, 2000)210,
imprime um caráter aberto às identidades, implicando novas articula-
ções identitárias, na sua pluralidade e na sua fragmentação inevitáveis.
Em meio a tantas articulações de variáveis pertinentes ao construto
da identidade, Norton (2000) propõe, desde uma perspectiva heurísti-
ca, uma visão mais abrangente desse construto, contemplando-o como
a maneira de entender as relações de cada indivíduo com o meio, segun-
do coordenadas têmporo-espaciais, e o modo como essas relações se (re)
constroem no decurso da sua vida.
Entendo que, na era da pós-modernidade, a noção em torno da
constituição identitária do ser humano reafirma e potencializa as ideias
de multiplicidade, de mutabilidade e de lugar de disputas ideológicas
e de poder (BAXTER, 2016; HALL, 2003), caracterizando-se, marca-
damente, não exatamente por sua fragmentação mas por um processo
de refração cada vez mais intenso, como resposta à própria celeridade
das mudanças ocasionadas pela globalização, que lhe exigem maior mo-
bilidade e fluidez na demanda por novas e constantes (re)adaptações a
contextos de vida cada vez mais complexos.
Nesse sentido, penso que os processos identitários, em realidade,
fractalizam-se, em um movimento de resposta do ser humano, por
meio da manifestação de seu self complexo (MERCER, 2011), a todo
um cenário global e local continuamente cambiante que lhe impõe
a necessidade vital de pulverizar-se em múltiplos e transitórios selves
(ROBERTS, 2000) sem, no entanto, perder-se de si mesmo.
Para que o meu leitor possa melhor compreender a noção de identi-
dade fractalizada, abordo, a seguir, as três bases epistemológicas a partir
das quais concebo esse construto.
210
De acordo com a autora, o processo de globalização caracteriza-se pelas intera-
ções entre fatores econômicos e culturais que suscitam mudanças nos padrões de
consumo, demandando tanto a construção de novas e globalizadas identidades
quanto a produção de efeitos de convergência e de divergência entre culturas e
estilos de vida.
1078
Condições iniciais epistemológicas
No âmbito do diálogo epistemológico que constitui as condições
iniciais da emergência da identidade fractalizada, entendida como um
sistema adaptativo complexo (SAC), saliento três abordagens: a primeira
é a da Transdisciplinaridade, no que tange à produção do conhecimento
científico ocidental, cujo objetivo, em linhas gerais, consiste na compre-
ensão do mundo presente e do sentido da vida, pressupondo a liberdade
entre as fronteiras disciplinares (GALATI, 2017; NICOLESCU, 1999).
Suas características principais englobam a abertura, o diálogo e a
reconciliação entre distintas áreas do saber e da expressão humanos,
incluindo-se a arte, a literatura, a poesia e a experiência interior de cada
indivíduo (FREITAS, MORIN, NICOLESCU, 1994), reafirmando a
multirreferencialidade, a multidimensionalidade e a indissociabilidade
entre indivíduo e conhecimento como traços imanentes do olhar trans-
disciplinar sobre os mais diversos fenômenos, entre eles, a constituição
identitária do Eu-humano, por exemplo.
A segunda abordagem refere-se ao tratamento ecológico dos fenômenos
relacionados com a linguagem, meio de expressão pelo qual estudo o fenôme-
no da identidade fractalizada. Nesta perspectiva, filio-me tanto à visão sistê-
mica de ecologia do desenvolvimento do homem (BRONFENBRENNER,
1979), o qual se define como um estado de mudanças constantes nas formas
como o indivíduo percebe e lida com os seus contextos, entendidos como
sistemas dinamicamente aninhados, interconectados em um gradiente de
níveis, quanto ao tratamento dos fenômenos linguísticos, que se caracte-
rizam, sobretudo, na atenção às relações, ao contexto, à emergência de pa-
drões, à sua qualidade, ao valor, à perspectiva crítica, à variabilidade e à
agência dos agentes neles involucrados (VAN LIER, 2010).
Por último, a complexidade, que emerge, sob o marco transdis-
ciplinar da produção do conhecimento, a partir da tessitura de pres-
supostos advindos de diversas perspectivas teórico-metodológicas, no
exercício de uma forma mais aprofundada de pensar e de compreender
o homem, a vida, o mundo, suas múltiplas inter-relações e suas im-
plicações (DITTRICH; LEOPARDI, 2015; LARSEN-FREEMAN;
CAMERON, 2008; MORIN, 2015).
1079
Em meio às articulações entre distintas áreas do saber, apresento,
a seguir, a noção de fractal e a relaciono com a ideia da fractalização
identitária do Eu-humano.
O que é fractal?
Termo cunhado pelo matemático francês Benoît Mandelbrot
(1924-2010), no ensejo de responder a indagações relacionadas com
a complexidade de determinadas formas da natureza, até então, não
solucionadas pela denominada geometria euclidiana (ou clássica)211
(SILVA; BORGES, 2016), o fractal designa uma estrutura de aspec-
to quebradiço, irregular, emaranhado, com padrões espaço-tempo-
rais (ABRAHAM, 1993), replicando-se de forma iterativa e recursiva
(LARSEN –FREEMAN, 2019), a partir de uma estrutura matriz, em
distintas escalas, desde o mundo macrofísico à sua expressão microfísica.
Disponho, a seguir, na Figura 1, a ilustração relativa à Curva de
Koch, denominação atribuída ao matemático sueco Niels Fabian Helge
von Koch (1870 - 1924), em razão da descrição de um dos primeiros
fractais de curvas, conhecido como o floco de neve de Koch, em que é
possível notar a replicação de inúmeros fractais, sinalizada pelo sentido
ascendente da seta à direita, a partir de uma dada estrutura, neste caso,
uma linha reta, abaixo da imagem.
Fonte: https://vicmat.com/la-dimension-fractal-la-curva-koch-la-longitud-las-costas-
gran-bretana/, adaptado. Acesso em: 29 jul. 2022.
211
A geometria das retas, das semirretas e dos segmentos de retas.
1080
Na sequência, ilustro outras manifestações fractais abundantemen-
te encontradas na natureza:
1081
complexo, em resposta às demandas das interações que estabelece com
o meio e com outros SACs (GLEICK, 1987).
Nesse processo, o fractal se replica iterativamente, conservando,
por um lado, características que são próprias à estrutura complexa ma-
triz (TODO), e por outro, apresentando especificidades (PARTES) em
razão das trocas de energia e de informação exercidas nas inter-relações
das que participa com diferentes agentes. Esse comportamento reflete
os seus atributos de autossimilaridade e de recursividade.
Em razão da dinamicidade implicada no referido processo, con-
cebo a constituição identitária do Eu-humano igualmente como SAC
emergente das inter-relações entre os seus diversos e distintos fractais
identitários, tema que, de forma breve, apresento na sequência.
1082
Figura 3 – Identidade fractalizada
Fonte: a autora
1083
O cristal analítico
No marco do arcabouço metodológico emergente da pesquisa que
desenvolvo, utilizo-me da cristalização no processo de análise dos dados
empíricos em razão da possibilidade da composição de uma variedade
de formas, de transmutações, de multidimensionalidades e de ângulos
de visão sobre o fenômeno estudado, possibilitando-me, como pesqui-
sadora, compreendê-lo de forma mais profunda, sem perder de vista as
suas especificidades e imbricações, rasgando as fronteiras configuradas
pelos instrumentos de pesquisa (RICHARDSON; ST. PIERRE, 2005),
postulado ecotransdisciplinar complexo contemplado, igualmente, pela
fundamentação teórica aqui apresentada.
Quanto aos benefícios para o trabalho do pesquisador, salienta-se
a sua liberdade de expressão, uma vez que o processo de cristalização
1084
Na sequência de imagens ilustrada acima, entendo cada feixe de luz,
indicado pelos números 1, 2, 3..., como representação da geração de
dados com o apoio de cada instrumento de pesquisa utilizado, configu-
rando as faces do cristal (A). Desse modo, os dados gerados se refratam
em seu interior, sendo, então, cristalizados por meio da análise realizada
à luz dos aportes teóricos e metodológicos que norteiam a proposta do
estudo levada a cabo, conforme sugere o apartado (B) na referida Figura,
gerando, como se observa em (C), imagens representativas do fenômeno
em questão, cuja interpretação, a partir de distintos ângulos de obser-
vação, auxilia-me na sua melhor compreensão (LOURENÇO, 2018).
Considerações finais
Neste artigo, apresentei um recorte epistêmico-metodológico da
pesquisa de doutorado que desenvolvo no contexto da formação inicial
de docentes de línguas. Nele, apresentei as três macrodimensões episte-
mológicas correspondentes à Transdisciplinaridade, no que diz respeito
à produção científica do conhecimento; à Ecologia, no tratamento dos
fenômenos relacionados com a linguagem, e à Complexidade, como
abordagem teórico-metodológica do fenômeno investigado, permitin-
do-me pensá-lo de forma relacional e mais aprofundada.
Em linhas gerais, explicitei, igualmente, a noção de fractal, apon-
tando a sua manifestação em diferentes formas da natureza e da consti-
tuição humana, assim como a minha interpretação acerca da sua função
como elemento-base da constituição e do comportamento da noção de
identidade fractalizada, entendida como SAC. Ao final, referi-me ao re-
corte metodológico da cristalização, por meio do qual analiso os dados
empíricos relativos a esse processo de emergência identitária.
Espero que o conteúdo aqui explicitado possa, de alguma forma,
instigar e inspirar novos trabalhos no campo da LA, em especial, no
marco dos estudos identitários sob as perspectivas transdisciplinar, eco-
lógica e complexa que venham a contribuir para a expansão do enten-
dimento acerca das manifestações que caracterizam a complexa gênese
ontológica do ser humano.
1085
Referências
ABRAHÃO, M. H. M. B. Memoriais de formação: a (re)significação das imagens-lem-
branças/recordações-referências para a pedagogia em formação. Educação, v. 34, n. 2,
Porto Alegre, p. 165-172, maio/ago., 2011. Disponível em: http://revistaseletronicas.
pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/8708. Acesso em: 03 jan. 2021.
1086
GLEICK, J. Caos, A criação de uma nova ciência. (trad.) Waltensir Dutra.16 ed., Rio
de Janeiro: Elsevier, 1989.
1087
RICHARDSON, L.; ST. PIERRE, E. A. Writing: A Method of Inquiry. In: DENZIN,
N. K.; LINCOLN, Y. S. (ed.). The Sage handbook of qualitative research. Thousand
Oaks, CA: Sage Publications, 2005. p. 959-978.
VAN LIER, L. The ecology of language learning: Practice to theory, theory to practice.
Procedia Social and Behavioral Scienses, v. 3, p. 2-6, 2010. Disponível em: https://
www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1877042810013790. Acesso em: 01 jan.
2021.
1088
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
1089
ABSTRACT: This paper aims to present the results of research on the
representational meanings of reading and competent reader attributed by
high school students of a Brazilian institution of the federal public education
network, in the discipline of Portuguese Language/Literature. This is an
interpretative qualitative research (CHIZZOTTI, 2006; MOITA LOPES,
1994), in the case study mode (STAKE, 1994), with a virtual ethnographic
basis (SANTOS; GOMES, 2013), in which the data generated with
the support of questionnaires (MARCONI; LAKATOS, 1999), written
verbal narratives (CLANDININ, 2006; LIEBLICH; PAIVA, 2008, 2019;
POLKINGHORNE, 1988) and audio-recorded open interviews (COHEN;
MANION; MORRISON, 2005; ROSA; ARNOLDI, 2006) ). The
triangulation (FLICK, 2009) of these data, in the light of the theoretical
framework characterized by the interface between the enunciative perspective
of Benveniste (1989, 1995) and categories of analysis of the Transitivity
system, from the perspective of the systemic-functional linguistics of Halliday
(1994, 1999) and Halliday and Mathiessen (1999, 2014), suggest the
emergence of three groups of representational meanings, predominantly of
an ascending nature, however, characterized by tangential aspects between the
top-down and interactive reader models, according to the paradigms listed
in the specialized literature. The research results point to the need for careful
attention, on the part of the teaching staff, regarding the complexity of the
formation of a reader, marked by imbrications that propell and inhibit such a
process, according to the way in which the articulation between the guidelines
of the Base National Common Curricular (BNCC), school reading practices
and the representational meanings of reading and competent reader given by
the students themselves.
KEYWORDS: Reading. Competent reader. Systemic-functional linguistics.
Introdução
Este artigo tem como objetivo apresentar os resultados de pesquisa
acerca dos significados representacionais inerentes às noções de leitura e
de leitor competente (bom leitor)213, em Língua Portuguesa, atribuídos
por um grupo de estudantes do Ensino Médio (EM) de uma escola
pública federal, situada na região centro-oeste do Brasil.
213
Neste estudo, não fazemos distinção entre os termos leitor competente e bom leitor.
1090
Sua realização se justifica por consistir na primeira etapa de um
projeto de extensão pedagógica, a ser desenvolvido no ambiente escolar,
voltado para a formação leitora desses estudantes em face das dificul-
dades de compreensão e de interpretação de textos, geralmente mani-
festadas por eles, e do desinteresse demonstrado, sobretudo, quando da
leitura de textos literários.
Teoricamente, este estudo se circunscreve ao marco da perspectiva
linguística dos estudos da significação (semântica), concebendo a pro-
dução de sentidos a partir da interrelação entre o homem, o mundo e
a linguagem.
Por ser um fenômeno próprio da condição humana, a significação
na linguagem se dá segundo a intervenção volitiva do indivíduo, premis-
sa que abre caminho para a necessidade de se pensar a questão da subje-
tividade nos estudos linguísticos, traduzida na problematização de “[...]
como o aspecto subjetivo da linguagem é representado por palavras,
membros de frases, formas gramaticais e pelo plano geral de cada lín-
gua.” (GUIMARÃES, 1995, p. 16) que, ao serem apropriadas pelo in-
divíduo, semantizam e fazem significar (BENVENISTE, 1989, 1995).
Nesse âmbito, portanto, apoiamos nosso marco teórico na interfa-
ce entre pressupostos da perspectiva enunciativa de Benveniste (1989,
1995) e a visão sistêmico-funcional da linguagem, de acordo com
Halliday (1994, 1999) e Halliday e Mathiessen (1999, 2014) que a en-
tendem como um sistema sociossemiótico complexo que compreende
“sistemas materiais, físicos, biológicos, imateriais, sociais e semióticos.”
(VIAN JÚNIOR, 2013, p. 133), os quais, articulados, desvelam as sig-
nificações atribuídas pelo homem na apreensão da sua relação com o
mundo e nas formas de expressá-la. Ademais, pautamo-nos na tipologia
analítica da léxico-gramática do Modo da Transitividade da Metafunção
Ideacional da linguagem, responsável pelo tratamento dispensado à ora-
ção como mensagem, isto é, como forma de representação do mundo e
das experiências humanas.
A investigação desenvolvida possui natureza qualitativa e interpre-
tativista (CHIZZOTTI, 2006; MOITA LOPES, 1994) e caracteriza-se
1091
como um estudo de caso (STAKE, 1994), de base etnográfica virtu-
al (SANTOS; GOMES, 2013). Os dados foram gerados com o apoio
de questionários de tipo aberto e fechado (MARCONI; LAKATOS,
1999), narrativas verbais escritas (NVEs) (CLANDININ, 2006;
PAIVA, 2008, 2019) e entrevistas abertas audiogravadas (COHEN;
MANION; MORRISON, 2005; ROSA; ARNOLDI, 2006). O cor-
pus, constituído de um total de 38 documentos (19 questionários e
19 NVEs) foi analisado por meio do método da triangulação (FLICK,
2009) entre esses três instrumentos.
Para melhor orientar o nosso leitor, subdividimos este texto em três
seções. Na primeira, apresentamos o marco teórico-metodológico em
que se fundamenta este estudo; na segunda, apresentamos e discutimos
os resultados alcançados e na terceira seção, tecemos nossas considera-
ções finais.
Marco teórico-metodológico
Um dos planos de organização da linguagem, entendida como a
faculdade de representar o real por meio de signos, consiste na “[...]
comunicação de significados, substituindo os acontecimentos ou as ex-
periências pela sua evocação.” (BENVENISTE, 1995, p. 30). Essa ação
realiza-se por meio do símbolo linguístico, “[...] elo vivo entre homem,
língua e cultura” (BENVENISTE, 1995, p. 32) que organiza o pensa-
mento de forma peculiar, isto é, de acordo com os sistemas estruturais,
organizacionais e funcionais de uma determinada língua que, neste es-
tudo, consiste na Língua Portuguesa como língua materna (LP/LM).
Nesse contexto, salienta-se o imanente papel da cultura, concebida
como tudo o que dá forma, sentido e conteúdo à vida e às atividades
humanas (BENVENISTE, 1995). Fenômeno inteiramente simbólico,
apresenta-se como uma complexa rede de representações, organizadas
por um código de relações e de valores profundamente impregnados
na consciência humana, conduzindo as atitudes em todas as formas de
ação realizadas pelo indivíduo (BENVENISTE, 1995), entre elas, as re-
lacionadas à sua formação leitora. No trabalho que aqui apresentamos,
1092
os dados pertinentes a esse âmbito da vida dos participantes foram ge-
rados com o apoio dos questionários de sondagem sociocultural, con-
templando as esferas familiar e acadêmica associadas à formação leitora
dos estudantes.
Já a noção de referência (FLORES, 2013), enunciado discursivo
que remete a uma situação “objetiva”, correspondente à categoria da
não pessoa (BENVENISTE, 1995, p. 282), consiste na própria signifi-
cação atribuída às noções de leitura e de leitor competente, temas ine-
rentes à relação dos colaboradores com a prática de aprendizagem no
meio escolar, e que foi analisada a partir dos dados primários gerados
pelas NVEs, correspondentes às atividades de produção textual a eles
solicitadas.
Com a finalidade de dirimir dúvidas e solicitar eventuais explicita-
ções atinentes aos dados gerados, utilizamo-nos, ao longo do procedi-
mento analítico, de entrevistas audiogravadas, com o apoio do aplicati-
vo WhatsApp, em função da praticidade comunicacional desse recurso
digital.
Por tratar-se de uma modalidade de enunciação escrita, filiamo-nos
aos deslocamentos teóricos propostos por Naujorks (2011) com relação
às instâncias do discurso, entendido como “[...] atos discretos e cada
vez únicos pelos quais a língua é atualizada em palavra pelo locutor.”
(BENVENISTE, 1995, p. 277). Dessa forma, assumimos com a autora
(NAUJORKS, 2011, p.87) que “[...] toda leitura procede de um locu-
tor que se propõe como sujeito” no exato momento em que se põe a ler
um texto, concebido como a materialidade da enunciação.
Em síntese, o primeiro deslocamento diz respeito à passagem de
locutor a sujeito na leitura, implicando uma dupla instância conjugada
entre as posições de locutor-leitor (aquele que lê), que emerge no exer-
cício da leitura do nosso corpus de pesquisa, e de sujeito-leitor (aquele
que se marca singularmente no ato de leitura), instância que se instaura
quando nos apropriamos dos enunciados das NVEs e também produzi-
mos sentidos ao construirmos conhecimento científico em nosso fazer
investigativo sob a influência do momento histórico que vivenciamos
1093
(NAUJORKS, 2011). Todo esse cenário se constitui à medida que
triangulamos os dados, balizando-os com a categorização circunscrita
pelos três modelos de leitura e de leitor competente, tradicionalmente
elencados pela literatura especializada, quais sejam, os modelos ascen-
dente, descendente e (socio) interacional (KLEIMAN, 2011; LEFFA,
1999).
O segundo deslocamento remete à (inter)subjetividade na leitura e
relaciona-se com as duas instâncias supracitadas visto que concebe o ato
de ler como ato enunciativo de um sujeito-leitor historicamente situa-
do. Nesse caso, ela se caracteriza pelo diálogo entre o eu-locutor-leitor
das pesquisadoras e os textos produzidos pelos colaboradores, conside-
rados, portanto, o tu com o qual estabelecemos uma troca, propondo-
-nos como sujeitos-leitoras, ao instaurar um sistema de referências, o
ele (NAUJORKS, 2011), isto é, os significados representacionais inves-
tigados, delineando, assim, o marco ao que se circunscreve a situação
enunciativa da pesquisa que relatamos neste trabalho.
O terceiro deslocamento trata da leitura como modalidade de
enunciação e destaca a questão da significação, da produção de sentido
a partir da atualização das unidades linguísticas que compõem o enun-
ciado. Nesse momento, abre-se espaço para o quarto deslocamento,
o da relação entre a forma e o sentido que, juntamente com o terceiro
deslocamento, viabilizam, a nosso ver, a proposta da interface entre o
pressuposto enunciativo de Benveniste (1989, 1995) da significação da
linguagem e a sua visão sistêmico-funcional, defendida por Halliday
(1994, 1999) e Halliday e Mathiessen (1999, 2014), suscitando, a nos-
so ver, a complementariedade entre esses construtos.
À luz da perspectiva enunciativa da leitura, compartilhamos com
Naujorks (2011, p. 99) a ideia de que as palavras são semantizadas por
meio das formas como se organizam e das relações que estabelecem
dentro de uma dada configuração sintática. Nesse sentido, compreen-
der um texto implica, primeiramente, a consideração da organicidade
como traço fundamental da língua, visto que as palavras encadeadas no
1094
enunciado apresentam um sentido como resultado do agenciamento214
e das circunstâncias contextuais do sujeito, características que se en-
trelaçam à visão de Halliday (1994, 1999) e de Halliday e Mathiessen
(1999, 2014).
No entendimento de Mathiessen (1999), a cognição humana é sig-
nificado, construído por meio de uma léxico-gramática. Em outras pa-
lavras, uma atividade metacognitiva de reflexão, de avaliação e de ação
que, neste trabalho, desvela-se, em sua totalidade, por meio da análise
dos dados gerados pelas NVEs dos estudantes participantes215.
Na visão de Halliday e Mathiessen (1999), em virtude da singula-
ridade das suas propriedades como um sistema sociossemiótico estrati-
ficado, a linguagem é capaz de transformar experiências em significado,
o que justifica a sua opção pela descrição desses processos representa-
cionais por meio de um modelo de gramática funcional que, no caso
deste estudo, circunscreve-se à Metafunção Ideacional e ao sistema ana-
lítico do Modo da Transitividade, que concebe a oração como mensa-
gem, isto é, como forma de representação do mundo e das experiências
humanas.
Resultados de pesquisa
No percurso enunciativo que realizamos como eu-reconstrutoras, le-
mos, descrevemos e analisamos a totalidade do corpus da pesquisa, tra-
tando de investigar as marcas da enunciação da categoria da não pessoa
(ele) deixadas na materialidade linguística (texto/enunciados verbais),
por meio da articulação orgânica entre os sentidos produzidos na di-
mensão semiótica da língua e as formas e os sentidos próprios do seu
214
Noção entendida como organização (relações sintáticas), isto é, as palavras es-
colhidas e ordenadas de acordo com a ideia que a frase exprime, o seu sentido
(BENVENISTE, 1989).
215
A respeito das considerações éticas desta investigação, um Termo de Consenti-
mento Livre e Esclarecido foi enviado a cada um dos participantes, antes do iní-
cio da geração dos dados, com o propósito de garantir-lhes o sigilo a respeito das
informações por eles fornecidas. Solicitou-se, igualmente, que cada colaborador
escolhesse um pseudônimo com o qual seria identificado no trabalho.
1095
domínio semântico, correspondentes, respectivamente, aos sintagmas
(agenciamento de palavras) e às ideias expressas pela frase (referência).
Paralelamente a esses procedimentos, assumimos a nossa posição
enunciativa do eu-produtoras de sentidos, apropriando-nos dos senti-
dos dos textos na busca pela significação de leitura e de leitor compe-
tente atribuída pelos participantes, discutindo e interpretando os resul-
tados alcançados.
Nesse sentido, os resultados obtidos com a triangulação dos dados
sugerem uma equivalência (45%) entre os significados representacionais
de leitura como processamento ascendente e descendente do texto, com
apenas 10% das referências analisadas apontando o que denominamos
tangenciamentos do modelo interacional, uma vez que a análise dos dados
desvela a presença de características desse significado representacional em
poucos relatos. É o que se ilustra no enunciado produzido por Amorim:
Fonte: as autoras
1096
Os gráficos sugerem a predominância do perfil decodificador de
leitor competente, grupo em que 42% do corpus analisado tangencia
traços de leitor descendente, isto é, o de atribuidor de sentidos ao texto,
perfil que se desvela com mais plenitude nos significados representacio-
nais atribuídos por 22% dos participantes. Vale salientar que 5% deles
não reconheceram a existência de um perfil competente de leitor em
função de conceber a leitura como uma experiência humana, vivencia-
da de modo muito particular por cada indivíduo, tal como sinaliza o
enunciado de Carolina: “[...] cada um pode desfrutar dela de maneira
única, não cabendo um julgamento externo.” (NVE, 27/04/21).
Com relação à leitura, as análises da léxico-gramática, realizadas
por meio do sistema da Transitividade, sinalizam a prevalência de pro-
cessos relacionais atributivos que a denotam como capacidade de deco-
dificação de símbolos, de reconhecimento e de interpretação da mensa-
gem extraída do texto. Entre os efeitos provocados por essa habilidade,
desvelados pelos processos mentais, encontram-se os da descoberta e da
ressignificação de informações. Os processos materiais analisados sinali-
zam a possibilidade da mudança, caracterizada pelo fluxo de ideias, e os
processos verbais evidenciam a valoração positiva do ato de ler. O gráfi-
co a seguir ilustra a distribuição percentual das ocorrências referenciais
dos processos analisados.
Fonte: as autoras
1097
Quadro 3 - Análise do Sistema da Transitividade (Leitor competente)
Fonte: as autoras
1098
Quadro 4 - Leitura e leitor competente: mapeamento categórico
Fonte: as autoras
Considerações finais
Conforme expusemos na seção anterior, os resultados de pesquisa
denotam significados representacionais de leitura e de leitor competen-
te ancorados em modelos que não pressupõem a participação crítica do
leitor no mundo.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018),
documento que determina as diretrizes que regem a Educação Básica
no Brasil, preconiza, no âmbito do Ensino Médio, o redimensionamen-
to da competência leitora trazida pelos estudantes, ao longo da sua vida
acadêmica, sinalizando o necessário imbricamento entre conhecimen-
tos, atitudes e valores culturais presentes nas interações que caracteri-
zam atividades humanas realizadas nas práticas sociais, como no caso
da leitura.
Dessa forma, em virtude dos resultados alcançados, questionamos
qual o tratamento que vem sendo atribuído à leitura no contexto esco-
lar em questão. Estaríamos ainda na esteira de uma tradição decodifica-
dora de leitura e de formação de um leitor competente? Se a BNCC, no
tocante ao Ensino Médio, prevê a realização de procedimentos rotinei-
ros de práticas crítico-reflexivas para que os estudantes tornem signifi-
cativo todo tipo de leitura que vierem a realizar, os resultados sugerem
1099
que ainda nos encontramos distantes do horizonte dessa realidade tão
complexa em que consiste o trabalho com a leitura e com a formação
do bom leitor no ambiente escolar.
Referências
BENVENISTE, E. O aparelho formal da enunciação. In: BENVENISTE, E.
Problemas de Linguística Geral II (tradução) E. Guimarães et al. Campinas: Pontes,
1989. p. 81-90.
1100
Continuum, 1999. Disponível em: file:///C:/Users/autra/Downloads/Halliday%20
%20Matthiessen%20(1999)%20Construing.pdf Acesso em: 9 abril 2022.
1101
STAKE, R. E. Case studies. In: N. K. Denzin e Y. S. Lincoln (eds.). Handbook of
qualitative research. London: Sage, 1994. p. 236-247.
1102
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
1103
ABSTRACT: The responsible and ethical act of reading-writing is an
inseparable social practice (FREIRE, 2019) through which historical subjects
express themselves in the world and participate in it in the relationship with
the other/s, considering that discursive spheres, being spheres of social use
of language, place the literacies produced there. In this bulge, ideological
literacy operates (STREET, 1984) since such discursive practices are inserted
in social arenas permeated by ideological, hierarchical and power relations
(STREET, 2004). In graduate courses, especially in master’s courses, students
feel disoriented when they need to prepare a research project, which demands
reading, synthesis of ideas, taking an enunciative position, dialogue with the
authors of that field, line and area (BAZERMAN, 2009), perhaps because
they have not yet participated in that disciplinary community (MOITA-
LOPES, 2013). In view of these introductory notes, this report intends to
present a possible, albeit incipient, reflection of master’s students from the
Postgraduate Program in Language Studies at a Federal University about their
processes of reading-writing the dissertation project, in order to elaborate of
their autobiographical narratives as the researchers’ responsive self-implication
(PROENÇA, 2015), still in training for and through research. In order to
do so, in addition to reviewing the literature in search of similar research,
especially those that focus on postgraduate students’ narratives, we reflect on
our practices of reading-writing the research project, in a dialogical approach
to language. We recognize, for now, the need to create pedagogical resources for
the inclusion, maintenance and training for the research of these postgraduate
students in their courses, often jettisoned in these practices without first
knowing the elaboration processes for academic research.
KEYWORDS: Academic literacies. Read-write. Research project.
Autobiographical narratives.
Palavras iniciais
Paulo Freire (2019) assume que o ato ético de ler-escrever é prática
social indissociável. Analogamente, Lillis e Curry (2010 apud FIAD,
2017, p. 86) também situam a leitura-escrita como prática social, ao
suscitar que
1104
prática sinaliza que usos específicos de linguagem – textos fa-
lados e escritos – não existem isoladamente mas estão ligados
ao que as pessoas fazem – práticas – no mundo material, social
(LILLIS; CURRY, 2010, p. 9).
1105
vigoram em espaços educacionais onde se oficializou um modelo domi-
nante de ler-escrever, valorizado socialmente, pois no interior da socie-
dade capitalista, posições de poder, status e conhecimento são associadas
aos sujeitos habilitados para o ler-escrever com formação no espaço es-
colar, enquanto os letramentos marginalizados, que acontecem a todo
momento, em diálogos cotidianos, sem pressões em relação ao escrever
conforme a norma padrão, são desvalorizados. Todavia, a aquisição de
competências associadas ao ler-escrever emerge em diferentes contextos
fora do campo de visão de um/a professor/a, do ambiente disciplinar
da sala de aula, das várias avaliações para medição da aprendizagem e/
ou de políticas educacionais, sendo a escola/universidade apenas um
espaço privilegiado. Assim, conforme compartilha Street,
1106
diferentes gêneros discursivos (BAKHTIN, 2011) desse espaço e com
a mobilização de conhecimentos provenientes da graduação, como re-
alizar fichamentos, escrever resumos e resenhas, buscar por referenciais
teóricos alinhados a sua área de pesquisa, adicionando a isso a inten-
sificação da escrita de artigos (que, na graduação, ocorre com menos
intensidade), bem como a construção do projeto de pesquisa e da futu-
ra dissertação. Os alunos sentem-se desorientados, principalmente no
momento de elaboração do projeto de pesquisa, pois demanda leitura,
síntese de ideias, assunção de uma posição enunciativa, diálogo com os/
as autores/as daquele campo, linha e área (BAZERMAN, 2009).
Logo, buscamos, neste artigo, apresentar uma reflexão possível,
mesmo que inicial, de duas mestrandas do Programa de Pós-Graduação
em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense (UFF)
acerca de seus processos de ler-escrever o projeto de dissertação de
mestrado, já que nossas pesquisas versam sobre letramentos acadêmi-
cos. Nosso objetivo é elaborar nossas narrativas autobiográficas, como
autoimplicação responsiva das próprias pesquisadoras (PROENÇA,
2015), ainda em formação para a e por meio da pesquisa. Assim, utili-
zamos a metodologia narrativa, por nos propiciar a reflexão de nossas
próprias práticas de ler-escrever o projeto de pesquisa, numa aborda-
gem dialógica da linguagem, baseada no Círculo de Bakhtin. Dessa for-
ma, a partir de nossas próprias experiências formativas, podemos pensar
nas vivências de outros futuros pesquisadores durante esse processo de
escrita.
1107
no qual a interação entre sujeitos - interlocutores - acontece, como na
universidade, onde há constante produção de conhecimento mediante
pesquisas corporificadas e divulgadas através de artigos científicos, dis-
sertações, teses etc.
Os gêneros discursivos podem ser subdivididos em primários e se-
cundários (BAKHTIN, 2011). Os gêneros primários são aqueles asso-
ciados às atividades cotidianas, sendo menos formais e mais imediatos
no atendimento a demandas comunicativas do dia a dia, como é o caso
de uma chamada telefônica. Por sua vez, os gêneros secundários corres-
pondem a uma reformulação dos gêneros primários, de tal modo que
adquirem maior complexidade, conectando-se a situações mais formais,
tal qual um projeto de pesquisa. À guisa de exemplificação, é possí-
vel que uma conversa ao telefone, na qual o sujeito desabafa com seu
amigo sobre as dificuldades experimentadas para equilibrar trabalho e
vida acadêmica, se transforme em tema de projeto de pesquisa, median-
te uma reflexão sobre os desafios da jornada dupla de ser estudante e
trabalhador.
Salientamos que os gêneros discursivos circundantes na academia
são diversos. Posto isso, o conhecimento e a capacidade de produção
dessa diversidade de gêneros favorecem o desenvolvimento de letra-
mentos acadêmicos, ou seja, participam do processo de introdução do
aluno nas práticas de escrita e leitura típicas do espaço universitário
(VIEIRA; FARACO, 2020).
O letramento acadêmico, segundo nos explica Fischer (2007, p.
45), pode ser associado “a outros contextos que envolvam ambientes e
práticas formais de escolarização (Ensino Fundamental, Ensino Médio,
Educação de jovens e adultos etc.)”. No entanto, essa dimensão do le-
tramento, na esfera universitária, comporta particularidades, como a
utilização de linguagens especializadas e contextualizadas.
Em consonância, Vieira e Faraco (2020), citando uma entrevista
concedida por David Russel, intitulada Letramento acadêmico: leitura e
escrita na universidade, indicam que para o linguista, o grau de especia-
lização da escrita e a necessidade de o estudante aprender novos gêneros
1108
ou formas são características que diferenciam escrever na universidade
de escrever na escola. Ademais, a escrita universitária possibilita o exa-
me, a manipulação, a síntese e a exploração de ideias.
A leitura, no que lhe concerne, possibilita a compreensão dos sen-
tidos mobilizados num texto e o aprimoramento do domínio da escrita
(VIEIRA; FARACO, 2020). Entendemos que a leitura auxilia a inter-
pretação das informações contidas em determinado escrito, a produção
de sentidos e de efeitos de sentido, para que assim possamos produzir
novos conhecimentos.
Quando lemos, também dialogamos com o autor do texto, com ele
concordamos ou discordamos. Nesse ponto, percebemos que há uma
relação espaço-temporal na qual há um eu em diálogo com um tu, isto
é, existe uma “recepção ativa do discurso de outrem [...]”, com a “incor-
poração do outro no diálogo, de modo que o outro passe a constituir
o sujeito emissor” (SCORSOLINI-COMIN, 2014, p. 250). Assim,
conforme salienta Bakhtin (2006):
1109
O sujeito academicamente letrado desenvolve uma visão crítica
de mundo. Ele consegue “dilatar os horizontes das próprias percep-
ções, horizontes dos muitos mundos abertos à inventividade humana”
(MARQUES, 2006, p. 12). Ainda, ser academicamente letrado indica
a abertura para constante busca pelo saber. É realizar descobertas a par-
tir da leitura-escrita coletiva, bem como estar aberto para ouvir novas/
outras vozes sociais e com elas dialogar. Dessa forma, compreendemos
que ninguém chega à universidade portando o letramento necessário
a essa esfera, todavia, torna-se letrado ao longo de sua vida acadêmica.
Boughey (2000, p. 4 apud ZONTA, 2018, p. 63) discorre sobre a pas-
sagem do indivíduo a sujeito letrado: “As pessoas se tornam letradas ao
observarem e interagirem com outros membros do discurso até que os
modos de dizer, agir, pensar, sentir e avaliar comuns àquele discurso se
tornem naturais para elas”.
1110
Federal Fluminense (UFF), bem como rememorar nossos processos de
elaboração do projeto de dissertação, documento fundamental para
participar do processo seletivo de admissão ao curso.
No edital POSLING, n.º 1/2022216 de mestrado, há a seguinte
orientação de elaboração do projeto a ser seguido:
1111
meu imaginário cursar um mestrado. Todas as instituições de ensino
estavam fechadas em razão do período de isolamento social, sem previ-
são de retorno presencial e algumas longe de pensar em ensino remoto.
Mesmo assim, abri o arquivo alguns dias depois e ainda que parecesse
impossível, uma esperança surgiu e decidi participar do processo seletivo.
Após 9 anos de conclusão do curso de graduação de Licenciatura
em Letras era esperado que eu já não me lembrasse de todas as referên-
cias bibliográficas solicitadas. Já tinha algum material separado, por-
que queria muito voltar ao mundo acadêmico, participar de grupos de
pesquisa e passar para o mestrado, mas nada que me preparasse para a
seleção, de fato. Após algumas semanas, atualizei o Currículo Lattes e
comecei a tentar entender o que seria o Projeto de Pesquisa. Entretanto,
ainda pensava se fazia a inscrição ou não, por não saber como começar
a escrever esse gênero do discurso.
Considero aqui o meu maior desafio para conseguir ingressar em
um curso de pós-graduação strictu sensu: a leitura-escrita exigida na ela-
boração do projeto. Percebi que faltavam conhecimentos para conse-
guir passar por essa etapa de modo produtivo. Eu não me lembrava
de nenhuma aula ou material da graduação que pudessem me auxiliar
naquele momento. Além disso, no final da graduação, só precisei fazer
um trabalho de conclusão de curso (TCC), falando de algum tema es-
tudado em alguma disciplina, mas não no formato de uma monografia
padrão. Então, pedi ajuda para seis amigas/os que já tinham passado
por essas experiências, pois precisava transformar as ideias que eu tinha
em forma de texto escrito acadêmico, conforme solicitado no edital do
programa, e não conseguia isso sozinha.
Com a parceria das/os amigas/os, pude iniciar aquele primeiro mo-
mento de escrita tão enigmático pra mim. Foram semanas de reuniões
virtuais com muitas horas de duração no Zoom, no Whatsapp, ao tele-
fone e até presencialmente. Realmente tive uma verdadeira ajuda com
as melhores aulas particulares que eu poderia ter. Assim, tive mais segu-
rança para fazer a inscrição no processo seletivo e coragem para as etapas
posteriores, pois todo esse processo de escrita foi inédito para mim.
1112
Ao passar pelas demais etapas, com sucesso, o projeto de dissertação
ainda caminhava comigo, pois escolhi um tema que poucos professores
poderiam orientar. Precisei fazer algumas adequações e mudar de tema
por três vezes, mas com a ajuda da minha orientadora, após um ano de
mestrado, conseguimos definir melhor isso e hoje já estou trilhando os
caminhos da escrita da minha dissertação, com dificuldades, mas devi-
damente orientada.
1113
de estudo, constituindo como aporte teórico-metodológico a análise
do discurso de Bakhtin e do Círculo, com o qual tenho afinidade. A
partir deste ponto, foi iniciado o meu processo de leitura-escrita para o
projeto de pesquisa.
Comecei buscando ajuda com essa amiga que havia me indicado o
programa, solicitando auxílio sobre como estruturar um projeto de pes-
quisa, tendo em vista que nunca havia construído esse gênero discursi-
vo anteriormente. Inclusive, nesse ponto, defendo que há uma grande
necessidade de que, desde a graduação, sejam criados espaços para a
leitura-escrita dos diferentes gêneros discursivos acadêmicos, a fim de
que não sejam um mistério para o aluno, ao longo de sua formação uni-
versitária. Dito isso, tendo recebido as devidas orientações, alavanquei
a busca por obras de Bakhtin e do Círculo, bem como pela bibliografia
de autores bakhtinianos, como Beth Brait e Carlos Alberto Faraco, que
poderiam enriquecer meu texto. Autores cujas obras eu poderia ler e, a
partir disso, arquitetar novos sentidos.
A sensação que constantemente me perseguia durante a produção
do projeto de pesquisa era a de que o que estava escrevendo nunca estava
bom o suficiente e que não sabia escrever conforme requer a academia.
A necessidade de adequação às normas de produção textual constituía
um entrave à minha escrita. Quais conceitos abordar em cada seção do
projeto de pesquisa parecia ser um enigma. Igualmente, constituía um
desafio tanto sintetizar as ideias para tornar clara a discussão que eu
gostaria de iniciar, quanto conectar os autores e textos relacionados a
minha pesquisa, bem como interpretar a informação lida em artigos e
livros, para produzir sentidos e enriquecer meu texto.
Atualmente, apesar de não ter prosseguido com o tema inicial,
devido à necessidade de adequação do meu tema à linha de pesquisa
da minha orientadora, percebo-me completamente implicada com o
assunto que pesquiso: o processo de orientação acadêmica para elabo-
ração da monografia.
Noto que, a partir do ingresso no Mestrado e o encontro de um
orientador, o processo de ler-escrever o projeto de pesquisa tornou-se
1114
muito mais fluido, pois o grupo de pesquisa no qual fui inserida, co-
ordenado por minha orientadora, possibilitou-me um espaço de dis-
cussão e diálogo de temas relevantes para o meio acadêmico, como o
trabalho pedagógico de orientar alunos em processo de construção do
trabalho de conclusão de curso (TCC) e a prática social de ler-escrever
na universidade.
Assim, a minha participação no referido grupo de estudos permi-
tiu-me, além do que já fora exposto, desenvolver o espírito investigativo
e a autoria; praticar a leitura-escrita acadêmica; ampliar a capacidade de
pesquisar, principalmente nos portais de relevo como Scielo e Capes;
conhecer autores que dialogam com meu tema de pesquisa; formular
argumentos sobre o assunto analisado etc. Todos esses aspectos estão
colaborando para a leitura-escrita do meu projeto de pesquisa, ainda
em fase inicial.
Ademais, o encontro de vozes em constante diálogo e de sujeitos
apontando para um mesmo objetivo de pesquisa realimenta as minhas
forças para continuar atuando nesse processo de leitura-escrita, desmis-
tificando a minha visão inicial de escrita como ato difícil de realizar,
como algo sobre o qual eu não tenho competência, já que os sujeitos
com os quais interajo compartilham dos mesmos sentimentos que eu.
Essa sensação de acolhimento/pertencimento corrobora para que a re-
dação do meu projeto de pesquisa caminhe.
A partir de nossas narrativas autobiográficas, pudemos compreen-
der que a escrita acadêmica demanda prática social situada, que se pro-
cessa pelo contato com os diversos gêneros discursivos dessa esfera de
produção. Vislumbramos que um dos pontos em comum entre nossas
reflexões é a concordância de que o diálogo com outros sujeitos implica-
dos na prática social do ler-escrever incentiva nossa escrita. Admitimos
que a produção textual, na academia, requer o enquadramento de nossa
escritura a convenções de escrita acadêmico-científica comuns a tal esfe-
ra discursiva, o que gera em nós a sensação de que escrever é um proces-
so frio, sem interlocução com o/s outro/s. No entanto, é pelo contato
humano, diálogo, compartilhamento e troca de saberes/experiências
1115
que, realmente, escrevemos sem a tensão gerada por prazos e normas
de escrita. Ademais, a sensação inicial, de ambas, frente à escrita do
projeto de pesquisa, é de que éramos inabilitadas para ler-escrever, por
não termos tido a oportunidade, durante a graduação, de produzir gê-
neros variados da esfera acadêmica no processo de pesquisar, elaborar,
investigar. Todavia, um dos fatores-chave para a potencialização de nos-
sa prática de leitura-escrita tem sido, além da participação em grupos
de pesquisa e contato com os gêneros discursivos, a própria orientação
acadêmica ora coletiva ou individual.
Considerações finais
Mesmo no mestrado, nível do ensino superior sobre o qual se es-
pera do estudante - pesquisador um maior grau de experiência com a
leitura-escrita, experienciamos dificuldades que nos travam quando de
frente à responsabilidade de escrever um artigo científico, um ensaio
e, principalmente, o trabalho que nos preparará para a qualificação - o
projeto de pesquisa da dissertação.
Admitimos que não chegamos à universidade com o tipo de letra-
mento requerido nesse espaço. Todavia, no contato com os gêneros dis-
cursivos da esfera acadêmica, através dos diálogos com os professores/
orientadores e por meio da participação em grupos de pesquisa, que
nos permite constante interação com outras vozes, conseguimos desen-
volver competência de leitura-escrita, fulcral para a produção textual
na academia e para desenvolvermos a capacidade de pesquisa, comuni-
cação e divulgação de resultados de nossas investigações, tornando-nos
responsáveis por aquilo que escrevemos, pois Bakhtin (2010) nos pro-
porciona entender que temos uma responsabilidade ética com a comu-
nidade para a qual nossa produção de saberes é veiculada.
Em suma, por ora reconhecemos a necessidade de criação de ex-
pedientes pedagógicos para a inclusão, manutenção e formação para a
pesquisa desses pós-graduandos/as em seus cursos, muitas vezes alijados
nessas práticas sem antes conhecer os processos de elaboração para a
pesquisa acadêmica.
1116
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2011.
FREIRE, Paulo. Cartas à Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis. 3 ed. São
Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.
LILLIS, T.; CURRY, M. J. Academic writing in a global context. The politics and
practices of publishing in English, Londres, Routledge, 2010.
1117
MARQUES, Mario Osorio. Escrever é preciso: O princípio da pesquisa/ Mario
Osorio Marques. -5. ed. rev. - Ijuí : Ed. Unijuí, 2006. Disponível em: http://www.
uece.br/posla/wp-content/uploads/sites/53/2019/11/TESE_JOSE%CC%81-
HIPO%CC%81LITO-XIMENES-DE-SOUSA.pdf. Acesso em: 03 ago. 2022.
MOITA-LOPES, Luiz Paulo da. Português no séc. XXI: cenário geopolítico e socio-
linguístico. São Paulo: Parábola, 2013.
1118
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
1119
PALAVRAS-CHAVE: Formação docente, língua inglesa, pandemia, ensino
remoto.
Introdução
A pandemia do vírus COVID-19, iniciada em 2020, obrigou estu-
dantes e professores a migrarem do ensino presencial para o ensino re-
moto emergencial, forçando instituições de diversos níveis a utilizarem
1120
ferramentas tecnológicas e recursos digitais para o ensino. O ensino
remoto, diferente de cursos on-line, precisou ser feito sem planeja-
mento prévio, com pouco preparo de professores para adequar e pro-
duzir materiais didáticos para esse novo tipo de contexto de ensino e
aprendizagem.
Ainda nesse contexto, é importante salientar que alguns aprendizes
tinham boas condições, como acesso à internet, equipamentos neces-
sários (computador, tablet ou celulares), mas muitos não dispunham
dessas facilidades, ou as possuíam com restrições ou ainda haviam aque-
les sem condição alguma para uso desses suportes tecnológicos. Além
disso, em muitas instituições, atividades práticas tiveram que ser sus-
pensas, tais como as práticas de laboratório, as pesquisas de campo e os
estágios supervisionados. Atrelado a esse cenário, têm-se ainda muitas
dificuldades enfrentadas, como por exemplo: o despreparo de docentes
para trabalho nessa modalidade de ensino, para o uso de recursos tec-
nológicos, para o desenvolvimento de atividades de envolvimento ativo
de alunos, para acompanhamento e avaliação da aprendizagem, dentre
outras (GATTI, 2020).
Erarslan (2021) aponta, além dessas dificuldades, outros desa-
fios como: conhecimento insuficiente de alunos e professores sobre
ensino e aprendizagem on-line, falta de familiaridade de professores
com plataformas de ensino e ausência de atividades variadas e ativas
para a promoção da interação entre alunos (BAILEY; LEE, 2020;
HUANG ET AL., 2021; NARTININGRUM; NUGROHO, 2020;
SEPÚLVEDA-ESCOBAR; MORRISON, 2020; SHAABAN, 2020
apud ERARSLAN, 2021, p.355).
O retorno das aulas presenciais no contexto educacional brasileiro
se deu de forma gradual, a partir do segundo semestre de 2021, com
a oferta das primeiras vacinas a serem aplicadas para a população de
maior risco, idosos e pessoas com comorbidades, além de profissionais
da saúde que atuavam na linha de frente do combate ao coronavírus.
Após a imunização dessa população, professores e profissionais da edu-
cação passaram a ser prioridade para que o retorno do ensino presencial
1121
fosse possível. Atualmente, todos os níveis de ensino da rede pública e
privada retomaram as aulas presenciais, tomando as devidas providên-
cias sanitárias.
Especificamente, em nosso contexto de pesquisa, uma universidade
pública do interior paulista, o ensino presencial foi retomado recente-
mente, em abril de 2022, após dois anos de ensino remoto emergencial.
Acreditamos que, após a experiência de uso de recursos tecnológicos
e digitais, durante o ensino remoto emergencial, docentes e discentes
passaram a ter um novo modo de lidar com os conteúdos desenvolvidos
em sala de aula.
Dessa maneira, neste artigo, trataremos das práticas voltadas para a
formação inicial de professores de inglês, no período pré, durante e pós-
-pandemia, no contexto do Centro de Línguas e Desenvolvimento de
Professores (CLDP) da UNESP, Araraquara. Para tanto, faremos uma
breve descrição do Centro de Línguas, abordando, posteriormente,
nossa compreensão sobre o ensino remoto emergencial e seus impactos
no processo de ensino e aprendizagem. Em seguida, traremos algumas
reflexões sobre as experiências vividas no período da pandemia.
1122
1) Oferecer à comunidade araraquarense e interna a possibili-
dade de ampliar e aprimorar seus conhecimentos em línguas
(inglês, alemão, espanhol, português como língua estrangeira,
francês, italiano e LIBRAS);
2) Criar oportunidades para futuros professores e coordenado-
res relacionarem teoria e prática durante a formação de profes-
sores de línguas estrangeiras;
3) Propiciar um espaço para o desenvolvimento de pesquisas
acerca do processo de ensino e aprendizagem de línguas, objeti-
vando o aprimoramento profissional e acadêmico dos bolsistas.
1123
principais recomendações dos órgãos locais e mundiais de saúde para
a prevenção da contaminação e disseminação da doença. Todas insti-
tuições de ensino, em nível global, se viram obrigadas a migrar para
a modalidade remota de ensino. Observou-se que a transição para o
ensino remoto emergencial impactou todos os contextos educacionais
mundialmente. Muitas instituições se viram despreparadas devido à
transição não-planejada e abrupta para o que se define como ensino
remoto emergencial.
Normalmente, diante desse contexto, notamos muitos termos sen-
do utilizados indistintamente, tais como ensino híbrido, educação à
distância, ensino on-line e ensino remoto emergencial. Para Angeluci
et al (2017 apud NASCIMENTO, 2021, p. 16), ensino híbrido pode
ser compreendido como uma “convergência dos modelos educacionais:
o presencial, em que o processo ocorre em sala de aula, como acontece
há tempos, e o modelo on-line, que utiliza as tecnologias digitais para
promover o ensino”. Já a educação ou ensino à distância, tal como prevê
o artigo 1º do Decreto lei nº 9.057 de 25 de maio de 2017,
1124
e não planejado. Além disso, entendia-se que, com o término ou me-
lhora das condições sanitárias na pandemia, o ensino presencial volta-
ria, abandonando o ensino remoto emergencial (ERARSLAN, 2021).
E assim, gradativamente, o ensino presencial foi sendo retomado,
com restrições sanitárias, nas instituições de ensino em 2021, com o
oferecimento de vacinas para a população de maior risco. Vimos que,
desde o início da pandemia, houve um crescimento de estudos e de
discussões em nível global sobre o uso e efetividade de recursos tec-
nológicos e digitais para o desenvolvimento de atividades de ensino e
aprendizagem (GREGOLIN, 2020).
Muitos foram os temas abordados em pesquisas, tendo como pano
de fundo a pandemia, apresentando não só resultados positivos sobre o
uso de tecnologias digitais e suas mídias, mas também, descrevendo a di-
ficuldade de alunos e professores no período. Por exemplo, Nascimento
(2021), destaca a valorização do professor como mediador do processo
de ensino aprendizagem, uma vez que, mesmo com a utilização das
diversas ferramentas de tecnologias da informação e comunicação, esse
profissional é primordial para atuar como mediador do ensino.
Denardi, Marcos e Stankoski (2021) defendem a noção do profes-
sor como tutor no processo de ensino e aprendizagem, “pois é ele quem
pode assumir o papel de guia dos alunos para a execução de tarefas de
forma ativa e com uma postura crítica (op.cit. p.117)”. Concordamos
com as autoras, que apontam que as tecnologias digitais não substituem
professores, mas podem ser alternativas para desenvolver diferentes prá-
ticas pedagógicas.
Erarslan (2021) ressalta em seu estudo sobre as diferentes temáticas
de pesquisas sobre o ensino na pandemia que, na perspectiva de docen-
tes, muitos não receberam formação teórica ou prática sobre o ensino
on-line. O autor assevera a importância de cursos de formação na pre-
paração de futuros docentes não apenas para o ensino presencial, mas
também para o ensino on-line. Ele prevê que, a médio e longo prazo,
tais cursos poderão tratar de tecnologias educacionais e ensino on-line
na formação de professores.
1125
Já com relação aos alunos, como resultado de sua pesquisa sobre o
ensino remoto de inglês em contextos de escolas de idiomas, escola pri-
vada e pública, Denardi, Marcos e Stankoski (2021, p.125) salientam
que “os aprendizes se tornaram mais responsáveis pela busca de conhe-
cimento, uma vez que tomaram maior consciência sobre o processo
de aprendizagem”. Diante dessas constatações, segundo Gatti (2020,
p.37-38):
1126
isolamento social, provocou rupturas com hábitos arraigados e
reflexões sobre o que é essencial e o que é supérfluo, bem como
demandou exercício de paciência, desenvolvimento de ativida-
des de modo diferente. O uso de recursos virtuais entrou em
foco e suas qualidades e seus problemas estão sendo experimen-
tados (GATTI, 2020, p. 39).
1127
formação docente, tal como preconizado por Schön (1983), Zeichner
e Liston (1996), Gil (2005), Vieira-Abrahão (2007), dentre outros.
(ROZENFELD; SALOMÃO; KANEKO-MARQUES, 2018, não
publicado).
Desde o ingresso do licenciando no CLDP, ressalta-se aos futuros
professores a importância de sua participação em todas as ações e ati-
vidades, pois, conforme mencionado, uma de nossas metas, além da
formação acadêmica, profissional e científica, é o incentivo à formação
sociocultural e humanística dos alunos de nossos cursos. As aulas de-
vem, assim, envolver os participantes do grupo de forma colaborativa,
priorizar o contexto dos aprendizes, suas práticas sociais, os valores de
sua comunidade e partir de uma visão crítica de aprendizagem da lín-
gua (LEFFA; IRALA, 2014).
Para que isso ocorra, além de participar das reuniões com seus res-
pectivos coordenadores de área, os futuros professores tinham reuniões
pedagógicas mensais, nas quais coordenadores e professores-bolsistas
discutiam questões teórico-metodológicas relevantes às línguas aten-
didas pelo Centro. Alguns dos temas tratados nessas reuniões e em
oficinas de formação pedagógica foram: professor reflexivo; abordagens
e métodos de ensino; ensino de gramática como habilidade; planeja-
mento de aulas e utilização da plataforma Moodle; a produção de uma
unidade didática: ensinando de forma significativa; modelos de leitura
e formação de professores: interligando teoria e prática em sala de aula;
validade, praticidade e confiabilidade: como elaboramos nossos instru-
mentos de avaliação; dentre outros.
Os materiais didáticos elaborados pelos professores-bolsistas fica-
vam disponibilizados na plataforma Moodle, utilizada como ambiente
virtual de aprendizagem. Seu uso possibilitou a familiarização do futuro
professor de línguas com recursos tecnológicos e digitais, favorecen-
do o estímulo ao letramento digital, atendendo às demandas sociais
que envolvem o uso desses recursos na atualidade (ROZENFELD;
SALOMÃO; KANEKO-MARQUES, 2018, não publicado).
Ressaltamos que, além dessas ações, desde 2014, organizamos
um evento anual para promover o encontro dos centros de línguas da
1128
universidade, em que coordenadores e professores-bolsistas podem tro-
car experiências e discutir suas práticas pedagógicas. Tal evento conta
com a participação de professores-pesquisadores de outras universida-
des e abre espaço para nossos professores-bolsistas apresentarem suas
experiências na forma de comunicação ou relato de experiência. São
oferecidas oficinas envolvendo questões específicas acerca das línguas
oferecidas no CLDP, ministrada por ex-bolsistas, bolsistas e pós-gradu-
andos. Na próxima seção, abordaremos as ações e atividades do CLDP
durante a pandemia.
1129
coordenadores dos três Centros de Línguas idealizaram uma oficina,
de duas horas de duração, intitulada: “Reflexões teóricas sobre a aula
de língua estrangeira: organizando materiais, analisando contextos, de-
finindo percursos”, ministrado pela coordenadora da área de alemão
e vice-coordenadora geral, oferecida de forma síncrona para todos os
professores-bolsistas e coordenadores das três unidades do CLDP. A
partir dessa iniciativa, surgiu a ideia de se oferecer um curso de for-
mação profissional para preparar nossos professores-bolsistas dos três
campus, antes que eles iniciassem suas aulas por meio do ensino remoto
emergencial.
O curso, intitulado “Formação de Professores-Tutores para o Uso
de TDIC no Ensino de Línguas”, foi coordenado por uma coordena-
dora de área com experiência em tecnologias, contando com o apoio de
três doutorandos, pesquisadores em questões sobre ensino e aprendiza-
gem de línguas. O curso teve 32 horas de duração, sendo desenvolvido
de forma síncrona e assíncrona, com o uso de um ambiente virtual de
aprendizagem, o Moodle. Dentre os conteúdos abordados na oficina,
temos: educação a distância, ensino remoto, tecnologias de informação
e comunicação (TIC) e tecnologias digitais de informação e comunica-
ção (TDIC), cibercultura, gamificação, abordagens-metodológicas de
ensino de línguas, planejamento de aulas e planejamento de curso.
Alves (2022) realizou uma pesquisa com três professores-bolsistas
da área de inglês do CLDP em Araraquara, na qual buscou-se apon-
tar quais as principais dificuldades no uso de recursos tecnológicos e
digitais e quais seus impactos positivos. Dessas participantes, uma era
ex-bolsista e as demais eram atuantes no CLDP no momento da coleta
de dados. Todas afirmaram que o curso de formação para o uso de re-
cursos tecnológicos e digitais contribuiu para prepará-las para a sala de
aula na modalidade remota. Quanto às dificuldades e anseios, podemos
afirmar que se pautavam mais em questões técnicas como: conexão de
internet, microfone e fones, câmera, a falta desses recursos ou o mau
funcionamento deles. Outro ponto levantado pelas participantes foi a
familiaridade com ferramentas digitais e como utilizá-las para o ensino.
1130
Já com relação aos aspectos positivos do ensino remoto emergen-
cial, foram apontados:
- a interação, por meio das ferramentas digitais que conheceram e
aprenderam a usar em suas salas de aula;
- o deslocamento, por não haver a necessidade de se deslocar até a
cidade-sede do CLDP, muitos alunos de outros campus da universidade
se inscreveram nos cursos;
- a descoberta, de novas formas de interação, de desenvolvimento
de conteúdos que atendessem às necessidades de seus aprendizes no
contexto remoto;
- o desafio, para buscar novas maneiras de ensinar e aprender na
modalidade remota (ALVES, 2022).
Notamos que, o embasamento teórico oferecido pelo CLDP para
o uso de tecnologias foi importante para que os professores-bolsistas
pudessem ser preparados para lidar com as especificidades do ensino
remoto. Podemos afirmar que, a experiência de se ensinar na modali-
dade remota (emergencial) possibilitou a descoberta de novas técnicas
e estratégias de ensino, bem como ferramentas digitais para uso em sala
de aula.
Tendo apresentado e discutido as ações e práticas do CLDP no
antes e durante a pandemia, na próxima seção, realizaremos um relato
das possibilidades viabilizadas em decorrência das experiências durante
o isolamento social e ensino remoto emergencial.
1131
pandemia. Poucas pesquisas têm como foco as implicações do ensino
remoto após o retorno das aulas presenciais.
Concordamos que, com o retorno presencial do ensino em todos
os níveis, “é provável que haja elevados graus de disposição e abertu-
ra por parte de toda comunidade escolar (estudantes, profissionais da
Educação, famílias) para introduzir, de vez, a tecnologia como instru-
mento pedagógico (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020, p.24)”.
Frente a essas considerações, o CLDP encontrou oportunidades de
expansão para atuar em outros dois campus da universidade, que não
possuem um Centro de Línguas próprio. As diretorias das duas uni-
dades (Franca e Bauru) se responsabilizam pelo apoio financeiro dado
aos professores-bolsistas e a seleção, coordenação e orientação desses
professores fica sob a responsabilidade do CLDP. Em uma das unidades
(Franca), foram oferecidos quatro cursos de línguas on-line síncrono,
sendo duas turmas de espanhol e duas turmas inglês, ambas de nível
básico, no segundo semestre de 2021. Em 2022, estão sendo oferecidas
oito turmas, sendo quatro de inglês e quatro de espanhol, de nível bá-
sico e intermediário.
Nos mesmos moldes, outra unidade universitária (Bauru) apresen-
tou demandas um pouco distintas da primeira parceria. A procura era
por cursos avançados de conversação para docentes e pós-graduandos
e por cursos de inglês de nível básico para a comunidade interna. Para
tanto, no primeiro semestre de 2022, foram oferecidas duas turmas de
conversação e duas turmas de básico que tem previsão de continuidade
no segundo semestre. Ressaltamos que essas parcerias só puderam ser
concretizadas devido à possibilidade de se manter as aulas on-line sín-
cronas com o uso do Google Meet (utilizado pela universidade).
Fora das parcerias com essas unidades universitárias, no primeiro
semestre de 2022, as aulas do CLDP, em Araraquara, se mantiveram
na modalidade on-line e síncrona, com apoio do ambiente virtual de
aprendizagem, Google Classroom, para envio de materiais, tarefas, ativi-
dades e comunicação entre professores e alunos. Mesmo com o retor-
no presencial das aulas e atividades de graduação e pós-graduação, o
1132
CLDP optou por manter as aulas on-line, pois para o retorno presencial
em nossa instituição, toda a comunidade acadêmica deveria apresentar
comprovante de vacinação, fazendo upload de uma cópia nos sistemas
de recursos humanos, graduação, administração ou pós-graduação.
Pensando em como membros da comunidade externa poderiam
frequentar o campus, optamos por manter as aulas on-line. Ao fim
do primeiro semestre, foi aplicado um questionário para os alunos de
cada curso oferecido para consultá-los sobre a preferência em manter
as aulas on-line ou voltar para o presencial. Das 17 turmas, oferecidas,
duas turmas não responderam ao questionário; três turmas optaram
por voltar presencialmente (dessas turmas, duas tiveram apenas uma
resposta, e uma teve três respostas, sendo todos vinculados ao campus
de Araraquara); e o restante, 12 turmas preferiram continuar na moda-
lidade remota. Dessas turmas, a maioria tem alunos de outros campus
e de outras cidades.
Entendemos que o ensino on-line permite a participação de um
número maior de alunos, para além daqueles vinculados ao campus de
Araraquara. Além disso, nossos professores-bolsistas foram preparados
para atuar em sala de aula on-line, desenvolvendo conhecimentos teó-
rico-práticos acerca de tal contexto e expandindo seu campo de atuação
no futuro.
1133
Alves (2022) apontou, em sua pesquisa, que foi possível chegar a
conclusões que evidenciam, apesar das dificuldades, resultados muito
positivos acerca do uso de recursos digitais no ensino de língua inglesa,
além de outros aprendizados e mudanças que o contexto pandêmico
trouxe para a educação como um todo.
Acreditamos que, dentre essas mudanças, temos a expansão do
ensino remoto, devido à familiaridade com as ferramentas de vídeo
chamadas e ambientes virtuais de aprendizagem, adquirida durante a
pandemia.
Referências
ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes. Dimensões Comunicativas no ensino de lín-
guas. 3ª edição. Campinas: Pontes Editores, 2010.
1134
BRASIL. Decreto-Lei n. 9.057 de 25 de maio de 2017, Regulamenta o art. 80 da Lei
nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional. Diário Oficial da União: República Federativa do Brasil. Brasília, DF ,
25 de maio de 2017. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/
Kujrw0TZC2Mb/content/id/20238603/do1-2017-05-26-decreto-n-9-057-de-25-de-
maio-de-2017-20238503. Acesso em: 11 ago 2022.
1135
NASCIMENTO, O.M. A Educação na Pós-Pandemia: desafios e legados. Revista
Faculdade FAMEN - REFFEN, v. 2, n. 1, 2021.p. 11-20.
1136
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
Uma aula de língua inglesa como língua estrangeira começa com um professor
diante de um grupo de alunos. Os atores desse processo, que provavelmente
pertencem a gerações distintas, têm características pessoais e de aprendizagem
diferentes. O que acontece entre eles nos quase 60 minutos pode resultar
em compreensão e afeto, provocar reações positivas e desenvolver conexões.
Ou exatamente o contrário. Certamente não há uma fórmula secreta para
atingir o resultado desejado, mas a busca pela melhor estratégia para ensinar
seguramente faz parte da lida diária de professores neste início do século XXI.
Nesse sentido, a arte de contar histórias, ou utilizando o termo comum na
atualidade, o storytelling, pode constituir uma ferramenta de grande valor.
Em outra vertente, vários autores (PRENSKY, 2012; BOLLER; KAPP, 2018;
FARDO, 2013) apontam a gamificação como metodologia ativa eficaz entre
alunos das gerações Z e Alpha. Nesse contexto, objetiva-se com esse trabalho
relatar uma experiência de storytelling gamificada de forma a demonstrar a
pertinência e as implicações da utilização destes elementos em aulas de língua
inglesa. Assim, com base metodológica na pesquisa-ação (THIOLLENT,
1986), foi desenvolvida uma proposta didática e aplicada com alunos da 8ª
série do Ensino fundamental de uma escola privada da cidade de João Pessoa,
Paraíba. Os resultados mostraram um maior engajamento e protagonismo dos
alunos envolvidos. Ademais, a experiência teve um alto índice de avaliação
positiva pelos participantes.
PALAVRAS-CHAVE: Storytelling. Gamificação. Inglês como língua estran-
geira. Pesquisa-ação.
217
Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); Licenciada
em Letras com habilitação em língua inglesa (UFPB) e Bacharel em Jornalismo
(UFPB); E-mail: tatiramalho@hotmail.com
218
Docente do Departamento de Letras e do Programa de Mestrado Profissional em
Letras (PROFLETRAS) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail:
laureniasouto@gmail.com
1137
An English as a Foreign Language class begins with a teacher before a group
of students. Those involved in this process, who probably belong to different
generations, have distinct personal and learning characteristics. What happens
between them within 60 minutes may mean understanding and affection,
induce positive reactions and develop connections. Or quite the opposite.
Certainly, there is no secret formula to achieve the desired result, but the
search for the best strategy to teach is surely part of the daily work of teachers
at the beginning of the 21st century. In this sense, the art of the narrative,
or to use the common term today, the storytelling, can be a valuable tool. In
another aspect, several authors (PRENSKY, 2012; BOLLER; KAPP, 2018;
FARDO, 2013) point to gamification as an effective active methodology
among students of generations Z and Alpha. In this context, the objective of
this work is to report a gamified storytelling experience in order to demonstrate
the relevance and implications of using these elements in English language
classes. Thus, with a methodological basis in action research (THIOLLENT,
1986), a didactic proposal was developed and applied with students from the
8th grade of Elementary School, in the city of João Pessoa, Paraíba. The results
displayed a greater engagement and students involved acted as protagonist in
the process. In addition, the experience had a high rate of positive evaluation
by the participants.
KEYWORDS: Storytelling. Gamification. English as a Foreign Language.
Action research.
1. Introdução
Aqueles que decidem ter a docência como trajetória de vida nor-
malmente a escolhem porque acreditam que podem fazer a diferença na
formação das outras pessoas e, consequentemente, melhorar o mundo
que as cerca. Independente da habilidade que tenham ou adquiram
com estudos ou experiência prática, em algum momento de suas carrei-
ras (ou em vários) questionam como conseguir que os alunos aprendam
tudo que eles têm para ensinar. Isso porque, geralmente, os professores
ministram aula tal qual foram ensinados, pois acreditam que se fun-
cionou para eles, também servirá para seus alunos. O problema é que
docentes e discentes não pertencem à mesma geração e, por isso, a fór-
mula para o ensino pode ficar bem distante daquela para o aprendizado.
1138
No Brasil, os alunos que agora estão nos últimos anos da escola per-
tencem à Geração Z (MCCRINDLE; FELL, 2021). Existe, ainda, um
número cada vez mais crescente de estudantes da Geração Alpha, a mais
recente descrita por psicólogos e pesquisadores sociais, que compreende
pessoas nascidas a partir do ano 2010. Para Prensky (2012), não há
dúvidas que, ao receber estímulos de vários tipos, esta nova geração
processa as informações de forma diferente das anteriores.
É nesse contexto que têm surgido diversas possibilidades
pedagógicas visando encontrar metodologias mais adequadas à realidade
vivida no século XXI. É notável que hodiernamente a tecnologia
exerce expressiva influência na vida das pessoas, especialmente após a
pandemia de Covid-19. Por isso, um primeiro aspecto a ser considerado
é a inserção, nas salas de aula, das Tecnologias Digitais de Informação
e Comunicação (TDIC) de forma consciente e planejada, visando
promover mais eficácia ao processo de ensino-aprendizagem.
Nessa direção, diversos autores (PRENSKY, 2012; BOLLER;
KAPP, 2018; SANTAELLA; FEITOZA, 2009) têm defendido a me-
diação do ensino, através da utilização de jogos (convencionais, digitais
ou on-line) bem como da gamificação, considerada por Alves (2015,
p. 119) “uma ferramenta de design instrucional” que pode apresentar
tarefas a serem executadas pelos alunos de forma a colecionar pontos e
receberem recompensas. Fardo (2013, p. 2), por sua vez, defende o uso
da gamificação no ensino “com a finalidade de tentar obter o mesmo
grau de envolvimento e motivação que normalmente encontramos nos
jogadores quando em interação com bons games”. Ademais, a gamifi-
cação pode aproveitar o conteúdo programático já existente no material
didático adotado, tornando-o mais atraente para os alunos, sem alterar
o cronograma previamente estabelecido.
Levando em consideração os aspectos previamente mencionados,
foi feita a seguinte indagação: como utilizar efetivamente a gamificação
como ferramenta instrucional para facilitar o ensino de língua inglesa
nos anos finais do ensino fundamental? A partir deste questionamento,
foi elaborada e aplicada uma proposta de intervenção em duas turmas
1139
do 8° ano do ensino fundamental de uma escola privada do município
de João Pessoa, capital do estado da Paraíba.
A proposta didática foi construída sob os pilares da storytelling,
através da construção de uma narrativa ficcional criada pela profes-
sora-pesquisadora, e dos preceitos da pesquisa-ação (THIOLLENT,
1986). Para tanto, foram utilizadas diversas Ferramentas Virtuais de
Aprendizagem (FVA) que serão descritas mais adiante.
Objetiva-se com este artigo, portanto, relatar os procedimentos e
resultados de uma experiência de storytelling gamificada, de forma a de-
monstrar a pertinência e as implicações da utilização destes elementos
em aulas de língua inglesa. Para melhor didatizar os conteúdos aqui
apresentados, este texto está estruturado em quatro seções, além destas
considerações introdutórias. A primeira diz respeito à fundamentação
teórica, em que são detalhados os princípios norteadores da pesquisa
sobre storytelling, gamificação e utilização de FVA. Em seguida, foi des-
crito o percurso metodológico da pesquisa-ação realizada e, na sequên-
cia, são apresentados e discutidos os resultados obtidos. Por fim, são
relatadas as considerações finais desta pesquisa.
1140
práticas pedagógicas mais eficazes devem promover sua participação ple-
na de forma que possam, gradativamente, explorar e expressar suas ideias,
além de praticar novas habilidades. Para tanto, existem diversas possibi-
lidades de aprendizagem ativa, entre elas a gamificação e o storytelling,
práticas usadas nesse estudo e que serão definidas no tópico a seguir.
1141
comunidades, em ambientes pedagógicos planejados”, potencializando
a aprendizagem ativa dos alunos.
Destarte, a proposta didática apresentada neste artigo foi baseada
nos princípios da gamificação através de uma narrativa ficcional rela-
cionada com o conteúdo didático e executada com FVA, conforme será
detalhado no próximo item.
219
https://kahoot.it/
220
https://nearpod.com/
221
https://www.classcraft.com/
222
https://www.storyboardthat.com/pt
1142
3. O percurso metodológico
A presente pesquisa se insere no campo dos estudos da Linguística
Aplicada, especialmente no que se refere à área de multiletramentos em
favor do ensino de inglês como língua estrangeira (English as a Foreign
Language – EFL). Trata-se de uma pesquisa-ação, de cunho interven-
cionista, e os dados gerados possibilitaram uma análise qualitativa
interpretativista.
A escolha por esta metodologia se deu pelo contexto em que os
participantes estavam inseridos: o estudo foi realizado ainda durante as
restrições provocadas pela pandemia de Covid-19, no período de ensi-
no que foi chamado de híbrido, em que parte dos alunos compareciam
às aulas de forma presencial e parte acompanhava de forma remota e
síncrona. Foi um momento de dificuldade para todos, tendo em vista
a necessidade de adaptação a esta nova realidade, além de lidar com
situações decorrentes da Covid-19. Os alunos estavam desmotivados
e os professores em busca da melhor estratégia de ensino que pudesse
alcançar todos os discentes. Assim, a pesquisa-ação foi preferida, pois
busca “engajar as pessoas diretamente na formulação de soluções para
os problemas que elas encontram em suas comunidades e vidas organi-
zacionais” (STRINGER, 2014, p. 31, tradução nossa223).
De igual maneira, Thiollent (1986, p. 24) esclarece que a pesqui-
sa-ação deve ter como objetivo contribuir para a resolução de proble-
mas centrais no dia a dia das pessoas “com levantamento de soluções e
proposta de ações correspondentes às ‘soluções’ para auxiliar o agente
(ou ator) na sua atividade transformadora da situação”. Por esse moti-
vo, a professora-pesquisadora, teve um papel fundamental na escolha
da intervenção proposta, consciente de não ser apenas “um usuário do
conhecimento produzido por outros pesquisadores, mas se propõe tam-
bém a produzir conhecimentos sobre seus problemas profissionais, de
forma a melhorar sua prática” (BORTONI-RICARDO, 2008, p. 46).
223
No original: “Action research seeks to engage people directly in formulating so-
lutions to problems they confront in their community and organizational lives.”
1143
A proposta de intervenção foi organizada da seguinte forma: os
alunos, divididos em equipes, deveriam seguir as pistas dadas para des-
vendar um crime, permeado de mistério e suspeitos. No primeiro dia
foram apresentados os elementos básicos que envolviam a história e as
regras da experiência foram negociadas.
Em seguida, as informações a respeito do crime eram passadas a cada
aula e dependiam do desempenho dos alunos nas equipes e nas tarefas
individuais. Durante quatro semanas, tempo que durou a intervenção,
as aulas foram classificadas por níveis: básico, médio e difícil, de acordo
com o conteúdo. Quanto mais assunto a ser visto no dia, mais elevado o
nível, cada um com uma pontuação e recompensa equivalentes, confor-
me mostra a figura 1, a seguir. Os alunos também eram pontuados quan-
do realizavam a leitura de algum texto ou respondiam perguntas, tanto
de forma voluntária, como através de sorteio. O último dia de aula da
semana, geralmente às sextas-feiras, era reservado para tarefas em grupos,
quando cada equipe deveria preparar e apresentar algum tema, projeto
ou atividade, de acordo com o conteúdo estudado durante a semana. As
apresentações visavam estimular a oralidade e aumentar a participação
efetiva dos estudantes durante o tempo da aula, desviando o foco do
professor, que passa a não ser o único detentor do conhecimento.
1144
Ao final de cada aula de nível básico e médio, eram feitas perguntas
a três alunos sorteados aleatoriamente, através do Classcraft de forma
a avaliar a compreensão geral da turma com relação ao que foi visto
naquele dia. Caso pelo menos dois alunos acertassem, a pontuação era
dada a todos os presentes. Ao contrário, havendo só um acerto, nin-
guém recebia pontos e o conteúdo daquele dia era revisado no início do
próximo encontro. No caso das aulas de nível hard (difícil), a avaliação
era feita por todos, utilizando uma FVA e, havendo resultado positivo
(percentual de acerto acima de 70%), além da pontuação correspon-
dente ao nível, as equipes vencedoras recebiam informações adicionais
(pistas extras) sobre o mistério a ser desvendado. Na seção a seguir serão
detalhados e discutidos os resultados da experiência realizada.
1145
A unidade trabalhada traz vocabulário sobre o tema de crimes e
tem como assuntos gramaticais a comparação entre Past Progressive e
Simple Past, bem como o uso dos Adverbs of manner. Por isso, a história
criada para dar suporte à gamificação girou em torno do personagem
Mr. West, que havia sido encontrado morto na sala de sua casa. No
primeiro dia da intervenção, os alunos receberam informações sobre
o enredo e alguns personagens que faziam parte da trama, conforme
ilustra a figura 3, abaixo.
1146
para o crime. Estas duas respostas foram dadas no último dia da
experiência, cada uma também valendo pontos para quem acertasse.
Ao final da quarta semana, a equipe que, somando todas as pontua-
ções individuais de seus integrantes, acumulou mais pontos, era dispen-
sada da segunda prova bimestral. Ademais, o aluno com maior pontu-
ação de cada equipe recebeu uma medalha de Star Student. A seguir, a
tela do Classcraft com o resultado final de um dos grupos.
1147
participantes deixaram seus comentários e/ou sugestões. O aluno A224,
por exemplo, afirmou que “foi uma maneira divertida e dinâmica em
sala, tanto que na sexta, dia da atividade em grupo, vinha só por causa
da aula de inglês”. Já o aluno B comentou que “ao mesmo tempo que
aprendi o assunto, eu me diverti muito com meus amigos tentando des-
cobrir quem era o assassino”. A competição foi vista de forma positiva,
pois como destacou o aluno C, a turma se esforçou para “descobrir o
caso e ganhar pontos para receber prêmios e tirar 10 na prova”.
Ao comentarem com sugestões de melhoria à atividade realizada,
das 25 respostas dadas, 11 (44%) afirmaram estar satisfeitos e não terem
nada a acrescentar para aperfeiçoar a experiência. No entanto, merece
destaque que 28% dos que deram sugestões se referirem ao aumento
das atividades em grupo. Acredita-se que este fato esteja relacionado
com o receio de alguns alunos de participarem de forma individual,
visto que esta prática, bastante presente nas metodologias ativas, não é
comum no modelo de aula tradicional, geralmente centrado na exposi-
ção do professor.
5. Considerações finais
Ao longo deste artigo, foram destacados as qualidades e o poder de
engajamento de metodologias de aprendizagem ativas, em especial a ga-
mificação e o uso do storytelling, tendo ainda exercido um papel consi-
derável o uso das TDIC como suporte na construção do conhecimento.
Conforme apontado anteriormente, a gamificação, como ferra-
menta de aprendizagem, oferece também a oportunidade de promover
o trabalho em equipe e a construção de andaimes (scaffolding), concei-
to proposto originalmente por Jerome Bruner, baseado nas teorias de
Vygotsky (BORTONI-RICARDO, 2008). Nesse contexto, o sucesso
das equipes estava baseado na pontuação de cada participante e, por
isso, os alunos com mais habilidade na língua inglesa se dedicaram a as-
sistir os menos experientes. Já a prática de storytelling, promove a criação
224
Os nomes foram omitidos para preservar a identidade dos alunos.
1148
de conexões entre os discentes e o conteúdo estudado, desenvolvendo
aprendizado significativo.
É importante destacar, ainda, que há indicativos de valorização da
inserção de FVA, especialmente de jogos digitais, e da gamificação no
contexto educacional, dado o crescimento do assunto em congressos
de professores, publicação de artigos e criação de Grupos de Trabalho
voltados para o tema. No entanto, as práticas ativas, em geral, são pouco
encontradas na ponta da cadeia da educação no Brasil, ou seja, nas salas
de aula da rede básica de ensino.
Enfim, tendo em vista as respostas dos alunos no questionário apli-
cado ao final da pesquisa realizada, acredita-se que a experiência desen-
volvida cumpriu seu papel de promoção de engajamento e aumento
da motivação para o aprendizado, levando professores e alunos a supe-
rarem as dificuldades encontradas no contexto anterior à aplicação da
proposta didática.
Referências
ALVES, Flora. Gamification: como criar experiências de aprendizagem engajadoras.
Um guia completo: do conceito à prática. 2.ed. São Paulo: DVS Editora, 2015.
BOLLER, Sharon. KAPP, Karl; Jogar para Aprender: tudo que você precisa saber so-
bre o design de jogos de aprendizagem eficazes. São Paulo: DVS Editora, 2018.
1149
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo:
Perspectiva, 2019
STYRING, James; TIMS, Nicholas. Metro. Vol. 2. Oxford University Press, 2017.
1150
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
225
Thais Sampaio é bolsista de mestrado na linha de Discurso e Letramentos no
Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ
e gostaria de agradecer ao fomento da CAPES, que financiou parcialmente a
condução deste estudo.
226
Matheus Lage é bolsista de mestrado na linha de Discurso e Práticas Sociais no
Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ
e gostaria de agradecer ao fomento da CAPES, que financiou parcialmente a
condução deste estudo.
1151
acadêmicas; e ii) as agentividades projetadas nesestudantes frente a fenômenos
da vida profissional, pública e privada tematizados nas atividades da unidade.
Para conduzirmos a investigação, realizamos uma análise de cunho documental
(FLICK, 2009) da unidade didática, interpretando nossas observações a partir
de teorizações produzidas no campo da filosofia da linguagem bakhtiniana, do
IFA(C) e do letramento crítico (FREEBODY, 2008; LUKE, 2012; TILIO,
2019). Esperamos que essa análise possa contribuir para uma tradução do
IFAC aos contextos de ensino superior latino-americanos, tensionando práticas
pedagógicas mais situadas.
PALAVRAS-CHAVE: Inglês para Fins Acadêmicos Crítico; Letramentos aca-
dêmicos; Material didático
1152
1. Introdução
Ao passo que o mundo pós-moderno tem operado sob a lógica do
neoliberalismo, os espaços e instrumentos educacionais têm condicio-
nado seus objetivos às economias de informação, de meios de comuni-
cação e de símbolos (SAVIANI, 2007). Nesse cenário político-econô-
mico, a educação — orientada, sobretudo, por critérios de eficiência,
eficácia e competência individual — é comoditizada como “um inves-
timento em capital humano individual que habilita as pessoas para a
competição pelos empregos disponíveis” (SAVIANI, 2007, p. 430), re-
sultando em uma formação neotecnicista voltada exclusivamente para
o mundo do trabalho. Com a subjugação da educação aos interesses
do mercado, educadorus227 e instituições atuam como prestadorus de
serviço que, ao comercializarem a educação como produto valorável, as-
semelham sues estudantes a potenciais clientes. No entanto, em última
instância, a educação serve à clientela formada por entidades do poder
público e privado, que encomendam cidadães nos moldes que melhor
atendem aos seus interesses.
Em meio a isso, o ensino de língua tem operado dentro de merca-
dos linguísticos internacionais de comercialização de línguas nacionais
para fins de expansão político-econômica (LAGARES, 2018). Nesse
sentido, “[é] compreensível, portanto, que línguas de elite e lucrati-
vas sejam cobiçadas, e que as línguas de comunidades desprivilegiadas
sejam ignoradas” (CANAGARAJAH, 2017, p. 16, trad. nossa). Das
línguas de maior proeminência nos mercados linguísticos, o inglês tem
atuado como a língua da ciência (LAGARES, 2018). Sob influência das
tendências neoliberais na educação, o ensino de línguas (sobretudo a
inglesa) é encarnado por um “espírito empreendedor” fecundo das ne-
cessidades do mercado, que orienta o ensino linguístico por capacidades
técnicas para o impulsionamento individual acadêmico, laboral e de
227
Neste artigo, fazemos uso da linguagem neutra para contemplar as identidades
de gênero dentro e fora do paradigma binário (feminino e masculino). Essa esco-
lha se estende às nossas traduções livres de citações diretas a textos originalmente
escritos em inglês.
1153
ascensão socioeconômica pessoal (CANAGARAJAH, 2017). Nesse ce-
nário, o campo de Inglês para Fins Acadêmicos (IFA) emerge como uma
área interdisciplinar dedicada ao ensino especializado de língua inglesa
orientando por demandas acadêmicas (HYLAND, 2006). Em sua ver-
tente tradicional, o IFA tem apresentado forte inclinação à comoditiza-
ção de subjetividades e da educação por uma ótica de sucesso acadêmico
medido pela economia de mercado (CHUN, 2009), operando por uma
lógica monológica e apagando fatores identitários, emocionais e afeti-
vos (BENESCH, 2001). Neste artigo, buscamos revisitar as fundações
teórico-metodológicas desse campo, suas idiossincrasias no contexto la-
tino-americano e uma revisão da sua vertente crítica (PENNYCOOK,
1994; BENESCH, 1993, 2001, 2009, 2013; MACALLISTER, 2016),
ao nos debruçarmos sobre as premissas do currículo e dos materiais
didáticos do curso de Inglês para Graduandos228 da Faculdade de Letras
da UFRJ.
Este artigo tem como objetivo investigar uma unidade didática
autoral, produzida no contexto do curso de Inglês para Graduandos
(IpG), um curso de Inglês para Fins Acadêmicos Específicos (IFAE)
voltado para o desenvolvimento de letramentos acadêmicos de estu-
dantes de Letras Português-Inglês, atualmente financiado pelo Núcleo
de Línguas FL-UFRJ do Idiomas sem Fronteiras229. Este estudo focaliza
228
A despeito de nosso posicionamento no uso da linguagem neutra ao longo do
artigo, ao nos referirmos ao título do curso cuja atividade pedagógica é parcial-
mente analisada aqui, ainda fazemos uso do masculino genérico por se tratar de
um nome oficial; algo merecedor de revisão futura.
229
Desde 2013, o curso de Inglês para Graduandos vem passando por diversas “ges-
tões” e apoios financeiros. Inicialmente foi vislumbrado pela então técnica de
assuntos educacionais (TAE) do projeto de extensão Cursos de Línguas Abertos
à Comunidade (CLAC FL-UFRJ) para contemplar uma exigência curricular da
graduação em Letras Português-Inglês de conhecimento oral e escrito da língua
inglesa. Assim, até 2019 o IpG funcionou com apoio financeiro e administra-
tivo do CLAC. Em meio à pandemia de COVID-19, entre 2020 e 2021, hou-
ve a oferta de dois semestres subsequentes de IpG (módulo de dois níveis) sob
a forma de disciplina optativa do Setor de Inglês da FL-UFRJ. Finalmente, o
módulo-único em análise neste artigo foi o primeiro no formato de curso no
âmbito do NucLi UFRJ da Rede Idiomas sem Fronteiras, com apoio financeiro
da própria FL-UFRJ.
1154
uma unidade didática do módulo-único do curso IpG, que foi minis-
trado por nós no segundo semestre de 2021, sob orientação do Prof.
Dr. Rogério Tilio e da Profa. Dra. Paula Szundy, do Departamento de
Letras Anglo-Germânicas da Faculdade de Letras (UFRJ). Para condu-
zirmos a investigação, realizamos uma análise de cunho documental da
unidade didática em questão, interpretando nossas observações a partir
de teorizações produzidas no campo de Inglês para Fins Acadêmico, do
letramento crítico e da filosofia da linguagem bakhtiniana. Ao longo
deste breve estudo, esperamos contribuir para uma tradução do IFA aos
contextos de ensino superior latino-americanos, tensionando práticas
pedagógicas mais situadas.
Na próxima seção, tecemos um diálogo entre as teorias que fun-
damentaram a concepção do curso de IpG e o design de seus materiais
didáticos. Na sequência, descrevemos de forma mais detalhada nosso
lócus de pesquisa e o nosso objeto de estudo. Além disso, propomos
uma reflexão sobre o nosso fazer investigativo enquanto professorus-
-pesquisadorus alinhades com a Linguística Aplicada Indisciplinar e,
a partir disso, delineamos os procedimentos analíticos envolvidos no
estudo. Em seguida, conduzimos a análise da unidade didática. Por fim,
concluímos o artigo com reflexões prospectivas para o curso de Inglês
para Graduandos, bem como para demais práticas pedagógicas e inves-
tigativas no campo de IFA(C) no Brasil e na América Latina.
1155
curriculares, de instrumentos de análise de necessidades e de materiais
didáticos (HYLAND, 2006; HYLAND; SHAW, 2016). Ao passo que o
IFA tem se tornado um campo mais teoricamente e empiricamente fun-
damentado, em diálogo interdisciplinar com variados campos de cons-
trução do conhecimento, surge um crescente ímpeto de responder, de
forma teórico-prática, às demandas contemporâneas de sujeitos consti-
tuintes das instituições de ensino superior. A exemplo de algumas das
questões proeminentes para o campo, Hyland e Shaw (2016) destacam
a interconectividade de contextos sócio-discursivos na esfera acadêmica;
a complexidade de práticas de linguagem envolvidas em tais contextos;
e os novos papéis que es estudantes — natives ou não-natives — têm de
assumir frente às novas práticas sociais acadêmicas.
Na América Latina, o IFE e o IFA encontram peculiaridades as-
sentes tanto nas distintas práticas sociais às quais a língua inglesa está
atrelada, quanto no perfil demográfico das dinâmicas sociais de seus
países. Em linhas gerais, Salager-Meyer et al. (2016) observam uma
predominância da linguagem verbal escrita nas práticas de IFE para
os países latino-americanos. Partindo desse escopo, o IFA está também
preocupado com a construção de cursos acadêmicos voltados para o
desenvolvimento de instrumentos linguísticos e retóricos que poderiam
instrumentalizar pesquisadorus para o engajamento em um diálogo in-
ternacional da ciência contemporânea que se materializa, sobretudo, em
língua inglesa (SALAGER-MEYER et al., 2016). Ademais, Martínez
(2011) sugere que caraterísticas demográficas das comunidades acadê-
micas latino-americanas — a saber, o compartilhamento de um mesmo
repertório cultural e linguístico230, e, portanto, uma maior afinidade de
necessidades específicas — sejam reconhecidas e potencializadas como
230
Evidentemente, não assumimos que os contextos latinoamericanos sejam homo-
gêneos e indistinguíveis, mas chamamos atenção aqui para o fato de o ensino de
IFA na América Latina orientar-se por práticas acadêmicas em língua inglesa que
dizem respeito à realidade local de acadêmiqueslatinoamericanes e não preveem
necessariamente sua atuação profissional/formação acadêmica em espaços inter-
nacionais. Práticas acadêmicas como leitura e publicação de resenhas, artigos
científicos, participação em fóruns, mesa-redondas e apresentação conferências
orais costumam ser o foco do ensino de IFA latinoamericano.
1156
fatores de vantagem. Em nosso lócus de pesquisa, o curso de Inglês para
Graduandos, aspiramos a uma prática de IFA informada pelas especi-
ficidades sociais, culturais, linguísticas, políticas e econômicas de estu-
dantes brasileires, nos subscrevendo, então, à vertente crítica de IFA.
Dentre os países latino-americanos, o Brasil tem se destacado na
ampliação teórico-prática da área de IFE, sobretudo devido aos esforços
da professora e pesquisadora Maria Alba Celani (SALAGER-MEYER
et al., 2016). Sua iniciativa de longa data, o conhecido Projeto ESP, foi
responsável por difundir no Brasil conhecimentos oriundos do IFE e
traduzi-los aos contextos locais, em diálogo com docentes e institui-
ções por todo o país (CELANI, 2009). Dentre os frutos científicos do
Projeto ESP, destacamos a solidificação do campo no Brasil e o esta-
belecimento de um terreno fértil para o desenvolvimento de práticas
pedagógicas para fins acadêmicos, no âmbito de cursos de graduação e
pós-graduação, projetos de extensão e programas nacionais.
Aportando em contribuições iniciais do campo de IFA, encontra-
mos um forte apreço por habilidades de estudo, entendidas em um pa-
radigma individual-cognitivo. Além disso, cursos e materiais didáticos
de IFA têm se subscrito ao modelo de socialização acadêmica, aspiran-
do à reprodução de padrões linguístico-comunicacionais hegemônicos.
Embora ambos esses modelos de habilidades e de socialização ainda
tenham espaço em práticas pedagógicas vigentes de IFA, professorus-
-pesquisadorus têm tensionado teoria e prática com vistas a práticas
pedagógicas voltadas para o trabalho com letramento(s) acadêmico(s)
(LEA; STREET, 2006; HYLAND, 2006). De modo geral, o modelo
de letramentos acadêmicos se ocupa da “construção de significado,
identidade, poder e autoridade”, trazendo para o primeiro plano “a
natureza institucional do que conta como conhecimento em qualquer
contexto acadêmico particular” (LEA; STREET, 2006, p. 369, trad.
nossa). Em meio às diferentes acepções de letramento(s) acadêmico(s),
Lillis e Scott (2007) discorrem sobre posicionamentos político-ideoló-
gicos atrelados aos usos desse sintagma. Em breves palavras, as autoras
defendem um uso de ordem epistemológica do termo “letramento(s)
1157
acadêmico(s)” — seja no singular ou no plural — que contemple o
caráter contingencial das práticas e convenções sociais e dos recursos de
linguagem para a negociação de sentido na academia.
Na contramão da suposta neutralidade e a-politicidade do IFA tra-
dicional (cf. BENESCH, 1993), a vertente crítica do IFA tem “amplia-
do as lentes das finalidades acadêmicas para levar em consideração o
contexto sociopolítico de ensino e aprendizagem”, sem abdicar do tra-
balho com demandas linguístico-discursivas pragmáticas (BENESCH,
2009, p. 82, trad. nossa). Assim, o IFA Crítico (IFAC) aprofunda as
preocupações do campo de IFA para contemplar teorias e práticas que
problematizam suas razões políticas (MACALLISTER, 2016). Benesch
(2009) enfatiza que apesar da variedade de contextos, metodologias e
pedagogias que subjazem essa vertente, es diferentes autorus de IFAC
compartilham de algumas premissas teórico-metodológicas: todes con-
cebem a língua/linguagem como discurso(s); todes se preocupam com a
relação entre teoria e prática — i.e., a práxis — de forma reflexiva; e to-
des situam a práxis nos contextos de discentes, docentes e instituições.
Partindo dessas premissas, no curso de Inglês para Graduandos, temos
advogado por uma estrutura curricular que situe a língua/linguagem
em práticas discursivas, que esteja apoiada em pesquisa, e que seja con-
cebida em colaboração com diferentes agentes envolvides no processo
pedagógico.
Em linhas gerais, o IFAC explora “os arranjos hierárquicos nas so-
ciedades e instituições em que o IFA se dá, examinando relações de
poder e suas relações recíprocas com variades agentes e materiais envol-
vidos” (BENESCH, 2009, p. 82, trad. nossa). Benesch (2013) estabe-
lece ainda um diálogo com o entendimento de Pennycook quanto ao
IFA e à Linguística Aplicada Crítica (LAC). Reconhecendo a dificul-
dade de situar o fazer do IFAC em algum campo disciplinar, Benesch
(2013) recorre à LAC como uma “forma de práxis anti-disciplinar”
(PENNYCOOK, 2001, p. 164), uma postura de contínuo questiona-
mento de teoria e prática, ao invés de como uma disciplina demarcada.
Ao propor uma teoria da linguagem pós-estrutural, Pennycook (1994)
1158
concebe a linguagem como um espaço de luta por legitimidade, ine-
rentemente atravessado por relações de poder. Sendo assim, Pennycook
(1994, p. 19, trad. nossa) propõe um IFAC que “evite a divisão con-
teúdo/linguagem, [que] evite o foco liberal um tanto insípido em ‘pro-
blemas sociais’, e [que] evite o utilitarismo pragmático de abordagens
baseadas em gênero.” A partir das leituras de Pennycook, o que Benesch
(2013) sugere é que o IFAC convide es estudantes “a examinarem suas
complexas relações e reações ao inglês acadêmico, incluindo possíveis
ambivalências, e a desenvolverem novos entendimentos à luz de seus
posicionamentos subjetivos” (p. 2, trad. nossa).
Juntamente com as teorizações de IFAC, lançamos mão dos estu-
dos em torno de letramento crítico. Luke (2012) traça um panorama de
teorias e práticas que confluíram nos entendimentos contemporâneos
de letramento crítico. O autor conclui que, apesar de nuances distintas,
há um relativo consenso de que letramento crítico refere-se a um pro-
gressivo engajamento informado com textos (lato sensu). Nesse sentido,
o letramento crítico pressupõe o entendimento de que a vida social não
é um elemento anterior às práticas discursivas; pelo contrário, são os
textos que “constituem materialmente as relações de poder, dão corpo
a essas relações e podem naturalizá-las e legitimá-las, tanto quanto po-
dem adaptar, desafiar e repaginá-las” (FREEBODY, 2008, p. 116, trad.
nossa). Portanto, podemos dizer que letramento crítico traduz-se em
um savoir-faire para lidar com textos de forma a “nomear e renomear o
mundo, vendo seus padrões, designs, e complexidades, e desenvolvendo
a capacidade de redesenhá-lo e remodelá-lo” (LUKE, 2012, p. 9, trad.
nossa); i.e., questionar o que é construído como verdade nos discursos
e conceber novas realidades.
Cabe ressaltar que as práticas pedagógicas críticas vigentes se subs-
crevem a acepções variadas de criticidade, se alinhando a esquemas
ideológicos distintos constituídos sócio-historicamente. Tilio e Szundy
(2021) recorrem a quatro acepções de criticidade observadas por
Pennycook (2004) — a princípio no contexto de práticas investigativas
no âmbito da LAC — para postular um entendimento de educação
1159
linguística crítica. No quadro abaixo, sistematizamos os diferentes en-
tendimentos de criticidade observados peles autorus e os aproximamos
da vertente crítica do IFA. Embora as diferentes acepções de criticidade
sejam subsequentes temporalmente, elas coexistem e, por vezes, se so-
brepõem contemporaneamente.
1160
No curso de Inglês para Graduandos, cultivamos um entendimen-
to epistemológico-ideológico-político de letramento(s) acadêmico(s)
crítico(s), i.e., como conhecimento(s) sócio-historicamente situado(s) e
inerentemente ideológico(s), que viabilizam a manipulação de diversas
linguagens, reconhecendo e desconfiando (d)as práticas sociais (não-)
convencionais que elas materializam. Nesse sentido, entendemos que
o(s) letramento(s) crítico(s) viabiliza(m) a prática problematizadora,
por meio da qual es estudantes assumem uma postura de ceticismo
frente aos discursos com os quais se deparam, questionando os significa-
dos que se pretendem naturais, verdadeiros e oficiais (PENNYCOOK,
2001; 2004).
1161
Figura 1 – Mapa de atividades acadêmicas circundantes da FL-UFRJ
1162
Como mencionado anteriormente, neste estudo, nos debruçamos
sobre a Unidade 0 do curso de módulo-único do IpG. Essa unidade
visava a problematizar as raízes históricas da universidade e o pragmatis-
mo laboral da academia voltada para as demandas definidas pelo merca-
do. Para atender a esses objetivos, a unidade incorpora e explora diver-
sos textos multimodais (a saber, vídeos institucionais acadêmicos, um
verbete enciclopédico, um artigo/ensaio de blog acadêmico, uma vi-
deorreportagem, vídeo-publicações testemunhais de veículo midiático
universitário, e resenhas em uma plataforma de avaliação universitária)
para situar a universidade contemporânea em face a questões sociais,
econômicas, políticas, históricas, culturais, identitárias etc., justapondo
variadas percepções subjetivas que são projetadas sobre a universida-
de contemporânea no Brasil e no mundo. Em última instância, es es-
tudantes são estimulades a refletir sobre sua experiência acadêmica na
UFRJ, por meio de uma análise sistemática e criteriosa, ao produzir um
comentário avaliativo a ser divulgado em uma plataforma acadêmica.
1163
autoria, assumimos o desafio de nos posicionarmos de dentro e de fora
desse material, entendendo que nossas premissas teórico-metodológi-
cas são constituintes de seu desenho pedagógico, mas não são por isso
eximidas de nosso compromisso autorreflexivo e autocrítico, em con-
cordância com a prática problematizadora da LAC (PENNYCOOK,
2004, 2006).
No decorrer da análise da unidade didática objeto deste estudo,
lançamos mão de uma investigação de cunho documental, posto que
a entendemos para além da “mera análise de textos”, ao enxergar do-
cumentos como “dispositivos comunicativos em vez de contêineres de
conteúdos” (FLICK, 2009, p. 236). Isso significa que entendemos nos-
sa unidade didática como um documento, não no sentido de registro
estático de informações, mas como um enunciado dialógico, em termo
bakhtiniano, um material discursivo inserido sócio-historicamente em
uma infinita cadeia dialógica pedagógica e extra-pedagógica. Por isso,
nossa unidade didática é repleta “de ecos e ressonâncias de outros enun-
ciados” (BAKHTIN, 2016 [1952/53], p. 59) que se inserem no largo
repertório de materiais didáticos, e que também intercalam enuncia-
dos alheios — os textos multimodais que são tematizados e explorados
pedagogicamente — que, por sua vez, carregam consigo ecos de suas
cadeias dialógicas específicas.
Nossa análise visa a interpretar a forma como a unidade foi mobi-
lizada para que o trabalho com letramento crítico fosse transversal ao
estudo de práticas letradas acadêmicas; e fenômenos da vida profissio-
nal, pública e privada tematizados nas atividades da unidade projetas-
sem posicionamentos agentivos nes estudantes. Para isso, lançamos o
nosso olhar sobre i) a seleção de enunciados que incorporam a unidade
didática, bem como as relações dialógicas que são estabelecidas entre
eles e discursos que extrapolam os limites do material didático; ii) o
acabamento discursivo que a unidade didática dá a esses enunciados
através de contextualizações, comandos e atividades pedagógicas; iii)
as atitudes responsivas des estudantes que são antecipadas / provocadas
pelo material didático em seus comandos e atividades.
1164
5. Observações práxicas sobre a unidade didática “The
academicinstitution”
Como dito anteriormente, a unidade didática em análise neste es-
tudo versa sobre as raízes históricas da universidade e o pragmatismo
laboral da academia, sob o título “The academicinstitution”. Para per-
corrermos nossa análise de forma dinâmica, disponibilizamos o acesso
digital à unidade didática231 e um breve panorama geral de suas seções
e respectivos objetivos específicos na Tabela 1 abaixo. Desse modo, ao
longo da análise, fazemos menção não sequencial ao material, de forma
a ilustrar nossas observações e comentários.
231
Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1J9SL_KeioHqfvAsiOENC-
d1Yh9c1UA84K/view?usp=sharing.
1165
Explorar avaliações sobre universidades em uma platafor-
ma acadêmica; Transitar de um contexto de percepções
4. Avaliando uma
acadêmicas sobre instituições de ensino superior situadas
instituição acadê-
no Norte global para instituições situadas no Sul global;
mica
Refletir sobre a própria experiência enquanto discente de
uma universidade brasileira.
Fonte: Autoria própria
232
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YRfw57PO9hM, acesso em
6 dez. 2021.
233
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tZK29NVcwVU, acesso
em 9 dez. 2021.
234
Disponível em: https://www.britannica.com/topic/higher-education, acesso em
9 dez. 2021.
235
Disponível em: https://www.dailysabah.com/feature/2017/03/04/what-is-a-u-
niversity-for, acesso em 9 dez. 2021.
236
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=v0hdsjKclvo, acesso em 13
dez. 2021
237
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ayF_laqwlTk, acesso em 13
dez. 2021.
238
Disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=ZX86F313Zkc; https://
www.youtube.com/watch?v=rnbnF8QAnsY; https://www.youtube.com/watch?-
v=g5-c0kwUL6I; https://www.youtube.com/watch?v=XkjOOGhat5g, acesso
em 16 dez. 2021.
1166
midiático universitário; na seção 4, analisam-se resenhas239 de institui-
ções acadêmicas internacionais do Sul global. Não obstante, é relevante
destacar que a seleção de enunciados tende a privilegiar em larga escala
percepções de universidade sob a ótica do Norte ocidental, sendo em
sua maioria oriundas dos Estados Unidos ou do Reino Unido.
Nesse sentido, o material retoma as premissas fundacionais da
universidade greco-romana, fortemente assentes em universidades do
Norte global, embora procure traduzi-las e repensá-las para o aqui-ago-
ra de sues estudantes-alvo; é o caso da caixa de reflexão final da seção
1 e da caixa de reflexão no início da seção 2 (sinalizadas com um ícone
de lâmpada). Entretanto, essa retomada de premissas não é eximida de
problematizações. A partir do verbete enciclopédico na seção 2, o mate-
rial direciona-se para uma discussão acerca das diferenças características
entre os sistemas de ensino superior em algumas nações de influência
internacional. É notável que destas nações apenas Rússia foge do eixo
ocidental, fora uma breve menção aos chamados “países em desenvol-
vimento”. Além de questionar esse espaço marginal a países indexica-
lizados em posição hierarquicamente inferior, o material promove um
debate em torno do artigo/ensaio do acadêmico turco entürk, explo-
rando uma desconstrução da suposta estabilidade do conceito ocidental
de universidade como imutável e homogênea. Embora seja discutível a
posição não-central dessa problematização no espaço da seção 2, procu-
ra-se levar es estudantes-alvo a indagarem sobre a legitimidade exclusiva
do modelo ocidental e Norte-cêntrico de academia, sobretudo no que
concerne seu acesso e seus objetivos.
Ainda, é importante atentarmos ao acabamento discursivo que o
material (em seus textos de contextualização, comandos e atividades)
dá aos enunciados que integra em sua composição. Embora trabalhe-se
com alguns vídeos promocionais ou publicísticos, dentre outros textos,
do Norte global, há um esforço para situá-los em um diálogo direto ou
indireto com práticas acadêmicas concretas do horizonte social des es-
tudantes-alvo. Pensando nos blocos de atividades 6, 7 e 8 apresentados
239
Disponíveis em: https://www.eduopinions.com, acesso em 21 dez. 2021.
1167
na seção 3, enfocam-se respectivamente a perspectiva docente, midiá-
tica e discente de questões sócio-identitárias da academia contempo-
rânea. O material reconstrói a sócio-história dos vídeos em questão e
de suas plataformas, para que seja possível contemplá-los pela via do
letramento crítico; i.e., mapear seus trajetos discursivos, reconstruindo
as dimensões micro e macro das relações de poder (PENNYCOOK,
2004), podendo desafiá-las e repaginá-las em suas problematizações
(LUKE, 2012; FREEBODY, 2008).
A fim de tensionar uma práxis de IFA em que e discente rea-
ja ativamente às demandas institucionais impostas unilateralmente
(BENESCH, 2001), o material didático estabelece um equilíbrio en-
tre vozes de autoridade da academia (e.g., instituições universitárias,
docentes e pesquisadores) e vozes de discentes de universidades. Essa
relação dialógica (BAKHTIN, 2016 [1952/53]) ocorre entre os textos
multimodais que apresentam definições para a universidade, seja ela em
sua concepção greco-romana ou nos distintos formatos contemporâ-
neos: ao passo que as origens históricas da universidade são traçadas e
problematizadas pela Dra. Edith Hall e pelo Dr. Recep entürk, respec-
tivamente. Nesse percurso, o papel da universidade contemporânea é
também (re)construído nas vozes de estudantes de cursos de graduação,
a exemplo das discussões acerca do vídeo WhyHigherEducation?, orga-
nizado pela LoughboroughUniversity. De modo similar, fatores identi-
tários — atravessados por questões de ordem afetiva, sócio-econômica
e ideológica — também são incorporados através de um diálogo insti-
tuição-alunado: a princípio, problemas estruturais de raça localizados
no bojo das universidades estadunidenses são introduzidos por veícu-
los midiáticos universitários e jornalísticos fazendo coro a figuras reco-
nhecidamente engajadas em atividades acadêmicas e burocráticas em
universidade; contudo, a discussão ganha novas nuances nas palavras
de graduandes e pós-graduandes que experienciam as desigualdades
estruturais — sejam elas pautadas em raça, gênero, sexualidade e/ou
faculdades psicomotoras.
Esse contraponto de vozes — que interagem em consenso ou dis-
senso — impelem es estudantes a responderem aos discursos construídos
1168
com base em suas próprias subjetividades. Nas atividades do bloco 8
que acompanham os vídeos testemunhais do The Chronicle ofHighe-
rEducation na seção 3, por exemplo, es estudantes escolhem interagir
discursivamente com a experiência acadêmica de ao menos une (pós-)
graduande presente nos vídeos. Essa escolha aponta para duas possibi-
lidades de exercício da alteridade (BAKHTIN, 2011 [1924-27]): por
um lado, e estudante pode optar por experienciar a vivência de outre
através dos enunciados que essuoutre constrói, possibilitando, assim,
que e estudante retorne seu olhar para si mesme, revisando suas práticas
sociais e sua ética; por outro lado, e estudante pode escolher lidar com
vivências similares às suas próprias, encontrando ne outre uma resso-
nância de suas próprias questões e preocupações, ajudando-e, portanto,
a posicionar-se no mundo de forma mais intencional e segura.
A unidade didática conclui as discussões propostas por meio
das atividades agrupadas na seção 4. Neste ponto do material, e estu-
dante é estimulade a revisitar todos os conhecimentos — disciplinares,
institucionais e sobre si mesme — construídos ao longo da unidade e
articulá-los em uma avaliação criteriosa da instituição de que faz par-
te. No decorrer do material, observam-se diversas instâncias em que
es estudantes-alvo são chamades a se posicionarem frente às questões
sócio-políticas que põem noções naturalizadas de academia ocidental
em cheque; a título de exemplo, podemos citar as caixas de reflexão que
demandam que estudantes tracem paralelos entre concepções mais ou
menos hegemônicas de convenções universitárias e suas próprias expe-
riências nesse espaço. Dessa forma, suas vozes são postas em primeiro-
plano, fazendo com que as demandas institucionais que condicionam
o seu sucesso na universidade não se sobreponham aos seus direitos
(BENESCH, 2001, 2013).
6. Palavras finais
Este artigo teve como objetivo investigar uma unidade didática
autoral, produzida no contexto do curso de Inglês para Graduandos.
Nossa análise se debruçou em duas dimensões do material pedagógico:
1169
i) a forma como a unidade encaminhou um trabalho transversal do le-
tramento crítico por práticas letradas acadêmicas concretas; e ii) a pro-
jeção de posicionamentos agentivos des estudantes frente a fenômenos
da vida profissional, pública e privada. De modo geral, observamos que,
embora a unidade didática ainda privilegie contextos acadêmicos loca-
lizados no Norte global — sobretudo em função da disponibilidade de
textos multimodais na língua-alvo em espaços digitais — o arcabouço
institucional, epistemológico e ideológico da universidade contemporâ-
nea foi submetido a práticas problematizantes, que propuseram deses-
tabilizar preceitos que se pretendem naturais, universais e atemporais.
Por fim, concluímos o artigo com vistas ao futuro do curso de
IpG, dada sua nascente nova gestão em um espaço próprio, o insípido
Laboratório de Letramentos Acadêmicos em Linguística Aplicada (Lab-
LA), vinculado ao PIPGLA-UFRJ. Esse espaço de pesquisa e ensino
ainda recente visa, dentre outros objetivos, a nutrir um solo para ensaiar
novas práticas pedagógicas de IFA(C) com especial ênfase em contextos
latino-americanos. Como bem observado em colocações deste estudo,
o contexto latino-americano, em especial brasileiro, de ensino de IFA
apresenta particularidades que devem ser mais adequadamente incor-
poradas ao design de currículos e materiais didáticos de seus cursos.
Assumimos que este é um trabalho indissociável de uma visão de lin-
guística aplicada indisciplinar (MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2019),
uma Linguística Aplicada Crítica (PENNYCOOK, 2004), que conti-
nuamente questione suas próprias práticas.
Referências
BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética [1924-27]. In: Estética
da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 3-192.
1170
BENESCH, S. Critical English for Academic Purposes: Theory, Politics, and
Practice. Londres: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers, 2001.
HYLAND, K.; SHAW, P. Introduction. In: HYLAND, K.; SHAW, P. (Ed.) The
Routledge handbook of English for academic purposes. Londres/Nova York:
Routledge, 2016, p. 1-13.
LEA, M. R.; STREET, B. V. The “Academic Literacies” Model: Theory and Applications.
Theory into practice, v. 4, n. 45, p. 368-377, 2006.
1171
LUKE, A. Critical Literacy: Foundational Notes. Theory Into Practice, ed. 51, p.
4-11, 2012.
MOITA LOPES, L. P.; FABRÍCIO, B. F. Por uma ‘proximidade crítica’ nos estudos em
Linguística Aplicada. Calidoscópio, v. 17, n. 4, p. 711–723, 2019.
1172
TILIO, R. Uma pedagogia de letramento sociointeracional crítico como proposta para
o ensino de línguas na contemporaneidade por meio de uma abordagem temática. In:
FINARDI, K.; SCHERRE, M.; VIDON, L. (Orgs.). Língua, discurso e política:
desafios contemporâneos. Campinas: Pontes Editores, 2019, p. 187-210.
1173
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
1174
language. The scope of this perspective in digital culture defended by Antunes
(2007; 2014), Costa (2011), Loureiro (2008) is necessary to bring digital
material to language training in the academic realm. In the language training
process, the student learns the normative system of the target language,
however, the question to be raised is how to provide a linguistic-grammatical
learning of Spanish as an additional language (AL) in the classroom context
so that students empower themselves to express themselves and interact
in both oral and written language (Miki Kondo, 2002). The teaching of
normative grammatical content has to respond to a broad aspect of language
appropriation as an instrument of communicative interaction in the target
language and aim to bring the student closer to the language system so that he
can achieve grammatical competence as something with meaning that allows
understanding and manage communication through the use and functioning
of language rules in a conscious and autonomous way (García García, 2001;
Gelabert et al., 2002; Martín Peris, 2004). Based on this approach, a reflection
is made on the issue of the role of grammar in the teaching/learning process
of Spanish LA in teaching practice. What is expected from this work is that
digital technological resources can promote a more significant teaching and
learning of the grammatical structures of the Spanish language.
KEYWORDS: Spanish language. Additional Language. Linguistic-
grammatical competence. Digital technological resource.
1. Introdução
Na esfera da língua espanhola como língua adicional (E/LA) o en-
sino do conteúdo sistêmico sempre suscitou um grande debate sobre
as vantagens e desvantagens de ensinar o componente gramatical nas
aulas, sobre até que ponto o ensino da gramática ajuda a desenvolver
a competência comunicativa dos estudantes de língua estrangeira, no
caso o espanhol. Sempre se debateu e se tratou o conteúdo gramatical
normativo e descritivo em todas as metodologias, visto que se apre-
sentam nos programas de ensino, nos materiais didáticos e na própria
prática pedagógica dos docentes.
Os professores de espanhol encontram no ensino e no desenvolvi-
mento do conhecimento sistêmico da LA um dos desafios fundamentais
na sua prática docente cotidiana. No processo de ensino/aprendizagem
1175
do conteúdo gramatical normativo e descritivo em espanhol, o estu-
dante aprende as normas, as regras e o funcionamento dos elementos
que fazem parte da língua, porém, em geral, fazem parte da gramática
tradicional da língua. A partir do aporte da cultura digital que está
presente nas diversas esferas da sociedade, rompendo fronteiras entre o
espaço físico e digital, dando espaço a um lugar híbrido de conexões às
mais variadas formas de informação, abre-se espaço e flexibilidade para
conviver com diferentes fluxos de informações e letramentos múltiplos,
ao que incluímos a gramática (ROJO, 2010. ROJO e MOURA, 2019).
As tecnologias digitais, cada vez mais inseridas no nosso cotidiano,
trazem enormes transformações e desafios para a sociedade. Entre as
transformações estão a alteração da relação espaço-temporal permitida
pelo ambiente virtual, assim como novas práticas comunicacionais e
novas relações sociais marcadas pelos recursos eletrônicos (CASTELLS,
2009. LEMOS, 2002). O avanço de novos recursos, meios disponí-
veis no ambiente on-line permite que se vislumbrem novas abordagens
educacionais, através de maior interação e colaboração entre alunos e
professores em comunidades virtuais no ciberespaço, fundamentadas
na organização de redes de aprendizagem.
Contrariamente a este viés tradicional, podemos relativizar a re-
levância do conteúdo sistêmico. A controvérsia sobre ensinar ou não
gramática dá lugar a duas interrogantes que segundo Antunes (2007;
2014) e Loureiro (2008) tem sido objeto de investigação no panorama
da metodologia de E/LE: como o ensino pode favorecer a aprendizagem
de una língua? E como elaborar/realizar atividades que conjuguem a
gramática com a comunicação? Como as metodologias ativas, a apren-
dizagem híbrida e a sala de aula invertida podem favorecer à aquisição
e a formação linguística de E/LE dos alunos?
De esta maneira, a questão consiste em como proporcionar uma
aprendizagem da competência gramatical, em espanhol como língua
estrangeira, que capacite os estudantes a que se expressem e, princi-
palmente, se comuniquem tanto na língua escrita quanto na oral em
língua estrangeira (KONDO, 2002). Sabe-se que os alunos adquirem
1176
os mecanismos da língua espanhola que se baseiam nos estudos nor-
mativos, gramática, já que se trata de um dos componentes que leva a
alcançar a competência comunicativa (PERIS, 1998).
Entretanto, durante o processo de ensino/aprendizagem da com-
petência comunicativa se incluem outras competências, e, a gramatical
recebe um destaque nas aulas. Por isto, se tem que refletir sobre como
tratar o componente gramatical como um elemento que permita com-
preender e manejar a comunicação e a interação e as regras de uso da
língua de forma consciente e autônoma.
1177
Este conhecimento se diferencia do “declarativo”, o conhecimento
metalinguístico sobre/da língua. Não todos os que falam uma língua
possuem um conhecimento declarativo sobre esta língua. Ao observar
os dois tipos de conhecimentos gramaticais nos deparamos com a ques-
tão do tratamento didático do componente gramatical na sala de aula
de língua estrangeira que nos leva como professores a deslocar o foco
do conhecimento declarativo em direção da aquisição da denominada
competência comunicativa.
Na atualidade, a controvérsia sobre ensinar ou não gramática deu
lugar a duas indagações que, segundo Antunes (2007; 2014) e Loureiro
(2008), têm sido objeto de investigação no panorama da metodologia
de espanhol LE: como o ensino pode favorecer a aprendizagem de una
língua? E como elaborar/realizar atividades que conjuguem a gramática
com a comunicação?
Estas questões não são tópicos deste trabalho, entretanto não se
pode pensar no ensino da competência gramatical pela prática docente
sem que se tenha em consideração que o código, o sistema e a estrutura
de uma língua devem receber uma abordagem que se transforme em
comunicação, ação e cultura. Em outras palavras, que a gramática se
insira contextualmente no processo de ensino/aprendizagem de ELA,
se transformando em um meio de intercambio e negociação de infor-
mações que leve os estudantes a produção e compreensão em espanhol.
Antunes (2014, p. 47) afirma que “A relevância dessa gramática
contextualizada está, exatamente, na decisão de não isolar os elementos
gramaticais de outros lexicais ou textuais, mas, ao contrário, ver a gra-
mática tecendo, junto com outros constituintes, os sentidos expressos”.
Como afirma a autora, o estudo da gramática requer a contextualização
de outros elementos que fazem parte da língua, como, por exemplo, o
semântico, o pragmático, o lexical etc.
No processo de ensino/aprendizagem de E/LA, os professores dão
muito prestígio ao ensino da gramática durante as suas aulas, oferecem
para os estudantes um conhecimento reflexivo das regularidades, regras
ou normas características da língua estrangeira que estão ensinando,
1178
levando os alunos a desenvolver a competência linguística240. Não obs-
tante, isto acarreta o detrimento do desenvolvimento das habilidades
discursivas, que é uma das destrezas na que os estudantes encontram
mais dificuldade em se expressar.
Na história das diversas metodologias de ensino de línguas adicio-
nais, a relação entre a língua estrangeira e a gramática sempre foi muito
próxima. Até os anos sessenta e setenta, os estudantes aprendiam regras
gramaticais e aplicavam estes conhecimentos em traduções diretas e in-
versas. Nos anos setenta, os métodos áudio orais e audiovisuais encaram
o ensino da gramática voltada para o desenvolvimento da habilidade
oral. Assim, na aula de língua espanhola, o professor se restringia a
utilizar os conteúdos linguísticos gramaticais ensinados na prática oral
previa. Os exercícios que eram propostos se tornavam repetitivos, posto
que se tratava de exercícios de repetição de estruturas linguísticas gra-
maticais aprendidas oralmente na forma escrita.
A partir do surgimento da gramática transformacional de Chomsky
(1957) ocorre um questionamento sobre os fundamentos teóricos dos
métodos áudio orais. Dentro da sua corrente, os alunos devem criar
a sua própria língua em um ato de comunicação seja oral ou escri-
to. Desde esta concepção de ensino/aprendizagem de língua se destaca
o enfoque comunicativo que propõe uma grande mudança na forma
de encarar a gramática. Para o enfoque comunicativo, a habilidade de
compor orações não é suficiente para que haja a comunicação. A co-
municação oral ou escrita só tem lugar quando é utilizada para realizar
una serie de conduta social como descrever, narrar, argumentar, entre
outras.
A partir desse enfoque, se aborda a escrita desde o princípio da
aprendizagem e não da aquisição da língua. Ademais, a expressão es-
crita não funciona só como reforço do aprendido da “fase” oral, o seu
ensino e aprendizagem parte do princípio de que é uma habilidade que
possui técnicas e estratégias próprias, diferentes da oral e que ao mesmo
240
A competência linguística se refere à competência gramatical, aos conhecimentos
metadiscursivos que o estudante possui sobre a língua que aprende.
1179
tempo interage ambas interagem entre si e com as demais habilidades
que fazem parte da competência comunicativa. No processo de ensino/
aprendizagem de uma língua meta as habilidades se interrelacionam e
integram (CASAÑ; VIAÑO, 1996; LOUREIRO, 2008).
Convém ressaltar que uma gramática contextualizada requer, tam-
bém e sobretudo, que as descrições que dela são feitas encontrem apoio
nos usos reais, orais e escritos da língua estrangeira/ adicional, nos textos
que se ouvem e se podem ler na imprensa, nos documentos oficiais, nos
livros ou revistas de divulgação científica etc. Implica, pois, ter como
respaldo o que, de fato, pode ser comprovado nos textos que circulam
aqui e ali pelo país ou países em que o idioma é língua de interação e
comunicação (ANTUNES, 2014). Esses recursos para o ensino da gra-
mática contextualizada permitem ao sujeito adquirir domínio da leitura
e da escrita, principalmente, apoiado em assuntos que fazem parte de
seu cotidiano.
No ensino da gramática, desde a perspectiva da competência co-
municativa incluem-se a competência linguística, a competência gra-
matical, a competência sociolinguística, a competência discursiva e
a competência estratégica (ANTUNES, 2007; 2014; LOUREIRO,
2008). Para a formação linguística-gramatical para a comunicação não
basta que os estudantes saibam um conjunto de regras e estruturas
linguísticas e gramaticais analisadas e organizadas conscientemente em
um sistema, necessitam saber como funciona e é usado o espanhol,
em uma grande variedade de contextos, níveis sociais e, inclusive, âm-
bitos profissionais, para se verificarem os diversos usos e funções da
linguagem.
Assim, a gramática explícita241, para um aprendiz, é importante, já que
é a encarregada de monitorizar e por tanto pode ser una aliada na hora de
se tratar os problemas que possam surgir como a fossilização, a interferên-
cia, entre outros, durante o processo de ensino/aprendizagem de língua,
241
Trata-se das regras e as estruturas da língua adicional analisadas e organizadas
conscientemente no sistema da língua pelo aluno.
1180
mas sem dúvida nenhuma quando um estudante se defronta com a forma
espontânea da LA ele vai abrir mão do seu conhecimento implícito242.
Quando um aluno se comunica na LA utiliza ambos os conheci-
mentos gramaticais – o explícito e o implícito. O aprendiz recorre ao
conhecimento explícito que possui da língua com a função principal
que é a de monitorar, quer dizer, controlar que as produções linguísticas
estejam corretas e se não for assim corrigi-las. Quando o aprendiz usa a
linguagem de forma natural, o conhecimento explícito joga um papel
secundário e é o conhecimento implícito da gramática que rege formal-
mente os usos da linguagem para a comunicação.
Sendo assim, a tarefa do professor de transformar as aulas de língua
espanhola em um espaço no que não só sejam oferecidas estruturas gra-
maticais e informações metadiscursivas sobre a língua, senão também
que sejam proporcionadas atividades de tipo processual – leitura e com-
preensão oral – e de tipo produtiva – expressão oral e escrita – que leve
a capacitar o aluno para a comunicação, desde o ponto de vista pedagó-
gico, isto se dá a partir do momento que se enfatize a importância no
processo de aquisição da língua. No enfoque comunicativo, a impor-
tância de dar para os estudantes expoentes nocio-funcionais para que
os capacitem para a comunicação, desenvolvendo as quatro destrezas
cumprem o objetivo de desenvolver as estratégias tanto de compreensão
quanto de expressão na língua espanhola.
Hoje em dia, depois de ter superado a ideia de que a aprendiza-
gem da gramática não levava a aquisição da LA, se assiste à recuperação
da gramática e a busca de aplicações que dê lugar a um processo de
aquisição más completo, eficiente e eficaz nas salas de aula, ainda que
existam carências metodológicas. Neste viés, a ensino da competência
gramatical na destreza escrita retoma o seu papel de monitorar a pro-
dução, porém tentando incorporar os diferentes tipos de processos e
competências243 necessários para o ensino e a aprendizagem de língua.
242
Trata-se do conhecimento gramatical que é de natureza intuitiva ou subcons-
ciente e não se encontra formulado como um corpus de regras.
243
Além da competência linguística ou gramatical, se acrescenta: a pragmática, a
1181
3. A aquisição da gramática nas aulas de E/LA
A competência gramatical ou linguística consiste em uma dentro
das competências que se insere no desenvolvimento das quatro destre-
zas do enfoque comunicativo. Entretanto, esta é a competência que
os professores mais dão ênfase nas aulas de línguas, seja porque estão
inseridos em uma tradição metodológica baseada no ensino gramatical,
seja porque tem uma dependência em utilizar materiais didáticos que
em sua grande maioria se baseiam na gramática244.
Apesar do surgimento das várias metodologias e enfoques ao longo
do tempo, todas contem a análise de perspectiva gramatical normativo. A
gramática se apresenta em todos os métodos, independente do enfoque
linguístico na que se inclua a concepção do que é saber uma língua.
Historicamente, se sabe que a gramática realiza a descrição e a explica-
ção de sistema da língua, que se ocupa dos elementos morfológicos e
sintáticos da língua e que deixa o léxico para a semântica e os sons para a
fonética (TORREGO, 1998, p. 14) “(…) según algunos gramáticos, la
gramática comprende sólo la Morfología y la Sintaxis; según otros, abarca
también el plano fónico, es decir, el de los sonidos y los fonemas. (…)”245.
Nesse enfoque, a informação nocional e meta-discursiva são os
inputs mais relevantes para se adquirir a competência gramatical ou lin-
guística. Neste viés o estudo gramatical apresenta um problema funda-
mental no momento de responder a uma concepção mais ampla em re-
lação ao ensino de língua, que não seja simplesmente a de um conjunto
de regras gramaticais de natureza nocional, senão que também seja um
instrumento de comunicação. A análise gramatical está no nível da sin-
taxe oracional e, por isso, renuncia a todos os elementos da língua que
implicam uma análise no nível do discurso ou do texto.
discursiva, a estratégica e a sociocultural.
244
Neste trabalho tratamos do conceito de gramática que a define como a argumen-
tação explícita de normas que respondem a um registro específico de uma língua
ou saber de caráter mais ou menos metódico sobre a língua.
245
Tradução nossa: “(...) segundo alguns gramáticos, a gramática compreende ape-
nas Morfologia e Sintaxe; segundo outros, abrange também o plano fônico, ou
seja, o dos sons e fonemas (...)”.
1182
Sabemos que ensinar gramática é mais que explicar regras e normas
morfossintáticas. Exige abordar aspectos discursivos e pragmáticos, e
isto não só por abarcar a taxonomia das novas correntes metodológicas
e linguísticas, senão porque o papel desempenhado pela gramática ob-
jetiva ser mais amplo que a visão histórica depois do enfoque comuni-
cativo e de competência comunicativa.
Dessa forma, o ensino da gramática se transforma em um compo-
nente a mais, indispensável como são indispensáveis o elemento prag-
mático, o discursivo, o estratégico e o sociocultural. A proposta do de-
senvolvimento da competência gramatical em que se tenha em conta a
comunicação para descrever e explicar a língua, quer dizer, para explicar
as regras e as normas do uso e do funcionamento, além das do sistema
e integre os diferentes níveis da língua para que resulte mais ajuda para
todos, tanto para quem se dedique ao ensino quanto para aqueles que
se dedicam à aprendizagem de uma língua estrangeira ou adicional, se
faz necessária no processo de ensino/aprendizagem.
O ensino de gramática na sala de aula de espanhol como LE se trata
de um dos elementos imprescindíveis e de grande influência no proces-
so de ensino/aprendizagem da língua estrangeira. Entretanto, a questão,
ao abordar o ensino linguístico e gramatical em língua estrangeira é: O
que é “a gramática” na aula de espanhol como LE? O trabalho com o
conteúdo gramatical na aula se vincula ao papel que o professor desem-
penha na sala de aula, em relação à sua concepção do que é gramática,
do que é saber uma língua e à concepção da sua prática docente no
ensino da língua.
Neste espaço de tantas interrogações, devem-se levar em considera-
ção os procedimentos de inferir as regras gramaticais que podem ocor-
rer a partir do uso e da reflexão sobre a língua (indutivo) ou explicá-las
primeiro para logo se passar à prática dos conteúdos linguísticos (dedu-
tivo). Ambos não são excludentes; os professores não devem descartar
a priori nenhum deles, devem-se ter em conta as vantagens e desvanta-
gens de se aplicarem cada um deles.
1183
Desta forma o ensino da gramática se transforma em um compo-
nente mais, indispensável, porém como são indispensáveis o elemento
pragmático, o discursivo, o estratégico e o sociocultural. A proposta
do desenvolvimento da competência gramatical em que se tenha em
conta a comunicação para descrever e explicar a língua, quer dizer, para
explicar as regras e as normas do uso e do funcionamento, além das do
sistema e integre os diferentes níveis da língua para que resulte de mais
ajuda para todos, tanto para quem se dedique ao ensino quanto para
aqueles que se dedicam a aprendizagem de uma LA, se faz necessária no
processo de ensino / aprendizagem.
A caracterização que Peris (2004) realiza destacam os componentes
gramaticais que respondam as necessidades atuais do ensino de E/LA
para os estudantes no Brasil. Primeiramente, a função da gramática é
facilitar a compreensão do sistema da língua de aprendizagem e dos seus
mais diferentes usos e para isto, os critérios que se deve levar em conta
na hora de selecionar os conteúdos são: a atualidade, o estado atual da
língua e dos seus usos; a descrição, o modo em que efetivamente usam a
língua os seus falantes nativos; a frequência, fenômenos mais frequentes
nos usos linguísticos; a relevância comunicativa, valores comunicativos
mais frequentemente associados às formas linguísticas.
Segundo o autor, ainda é preciso analisar se a gramática que recolhe
usos tanto orais quanto escritos, atendendo a sua adequação ao contex-
to, se se trata de fenômenos que pertencem aos diferentes níveis de des-
crição da língua, estabelecendo as necessárias relações entre eles, se utili-
za uma metalinguagem e uma terminologia adequada a possibilidade de
compreensão dos seus destinatários, e por fim se leva em consideração
o conhecimento implícito da gramática da língua materna que tem os
destinatários, que no nosso caso são brasileiros falantes de português.
Raya (2003) asserta que ensinar e trabalhar com este tipo de gramá-
tica implica elaborar atividades que requeiram a participação ativa dos
aprendizes, estes aprendizes têm que fazer algo com o input; além das
atividades devem por de manifesto a operacionalidade da regra ou da
forma que é o objeto de atenção, apresentando uma finalidade e uma
1184
contextualização claras e trabalhando com amostras da língua meta que
sejam verossímeis.
1185
consequentemente utilize os tipos textuais como descrever, narrar, ex-
por e argumentar.
O enfoque comunicativo propõe o princípio da aprendizagem da
língua. Além disso, a competência gramatical não funciona como re-
forço do que foi aprendido na “fase” oral, senão também o seu ensino
parte do princípio de que é uma habilidade que tem as suas próprias
estratégias que se diferenciam no registro escrito e no registro oral e que
ao mesmo tempo esta competência interage com as demais competên-
cias. Desta maneira, o ensino da gramática que foca para a interação e
a comunicação leva o estudante de LA a conhecer o funcionamento das
normas e das estruturas gramaticais do espanhol, adequando o seu uso
a vários contextos, níveis sociais e profissionais, sabendo como a língua
funciona nos diversos usos da linguagem.
Nesta perspectiva, a inclusão das tecnologias digitais, em especial, a
internet nos proporciona vários instrumentos que podemos utilizar nas
aulas de espanhol como língua estrangeira. Entretanto, tem que se levar
em consideração um novo conceito que nos acarreta o uso do suporte
internet que se trata da noção de Cibercultura (Kenski, 2007, p. 134)
se refere ao conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), práticas, ati-
tudes, modos de pensar e valores que se desarrolham no ciberespaço.
Ciberespaço, palavra utilizada pela primeira vez pelo autor de ciên-
cia ficção William Gibson, em 1984, na novela Neuromamcer, diz res-
peito aos novos suportes de informação digital e aos modos originais de
criação, de navegação no conhecimento e da relação social proporcio-
nados por eles (KENSKI, 2007). Para Kenski, a definição de tecnologia
está calcada em uma noção que “engloba a totalidade de coisas que a
engenhosidade do cérebro humano conseguiu criar em todas as épocas,
suas formas de uso [e] suas aplicações” (2007, p. 22-23). Assim se trata
do espaço que permite o fluxo de informações e não se refere ao mundo.
Deste modo, a globalização permite que o limite entre o tempo e
o espaço não exista como então. Hoje, graças as tecnologias, podemos
aceder ao contato com outras formas de viver, pensar, sentir, criadas
por povos distantes geograficamente. Em termos de pesquisa, podemos,
1186
ainda que não tenhamos enciclopédias impressas, ter acesso à informa-
ção de civilizações que já pereceram no tempo, por tanto se pode falar
da democratização da informação e do conhecimento.
Além de a internet ser una fonte inesgotável de material autêntico
oferece abundantes exercícios de correção automática (sobretudo dedi-
cados a gramática e vocabulário); proporciona una ferramenta para a
comunicação e interação entre as pessoas que pode ser sincrônica me-
diante os chats, os chats de voz, a videoconferência ou ainda as lousas
virtuais – comunicação em direto ou em tempo real – ou não sincrônica
mediante o correio eletrônico, os foros de debate, as listas de distribui-
ção de notícias ou os foros auditivos; pode funcionar como arquivo
de sugestões didáticas e como recurso para a formação continuada dos
professores.
1187
que a internet oferece uma quantidade imensa de material autêntico em
língua espanhola e tanto professores quanto estudantes têm facilidades
em acessá-lo e adquiri-lo.
A utilidade de este recurso se diferencia em função se faz um recor-
rido à rede para os estudantes ou para os professores. Para os estudantes
é um bom meio para que exercitem as suas destrezas decodificadoras,
tanto as escritas (leituras de webs baseadas em textos) quanto às orais
(ao escutar emissoras de rádio) ou para que revisem a gramática a través
de exercícios de correção automática, principalmente dedicados a gra-
mática e ao vocabulário.
Para os professores o recurso da internet funciona muito bem como
um arquivo de sugestões didáticas, onde se compartilha materiais e pla-
nos de aulas. As aulas preparadas têm vantagens quando se refere ao
fato de que são gratuitas, são excelentes para improvisar uma sessão e
também se classificam em função das necessidades dos estudantes, por
isso está bem pautada. Todavia apresenta uma questão a ser analisada
no que se refere às aulas, estas não foram desenhadas para um grupo em
concreto, específico, por tanto pode ser que a aula não funcione com o
nosso grupo. De aí que os professores têm que revisar, ajustar e comple-
mentar os materiais antes de levá-los para a aula.
Sabemos que a internet, para os professores, ainda pode oferecer
outra vantagem a de ser um recurso para a formação continuada docen-
te, una vez que é um recurso para que qualquer profissional, docente,
possa se manter em dia com tudo o que se refere a sua atuação como
docente de língua adicional. Em especial, os professores de espanhol
dispõem de foros de debates e listas de distribuição de notícias, se in-
formando sobre congressos e encontros, novidades bibliográficas e in-
clusive cursos de formação continuada tanto na modalidade presencial
como à distância.
De tudo que se relatou, a inclusão dos recursos digitais pode nos
proporcionar um novo viés na formação linguística dos estudantes em
ELA. Segundo Kenski (2007, p. 134) a internet nos traz vários ins-
trumentos das tecnologias digitais que podemos utilizar nas aulas, no
1188
nosso caso de espanhol, aportando novas metodologias para o ensino de
conteúdo gramatical. A inclusão das tecnologias leva em consideração
um conceito que nos acarreta o uso do suporte internet, que se trata da
noção de Cibercultura, que se refere ao conjunto de técnicas (materiais
e intelectuais), práticas, atitudes, modos de pensar e valores que se de-
sarrolham no ciberespaço.
Desta forma podemos propor aulas de língua espanhola, com inte-
ração professor-estudante e estudantes entre si através do planejamento
dos materiais que foquem no intercâmbio de informação e conheci-
mentos mútuos. Uma aula, em geral, traz o foco no estudante e nas suas
necessidades e expectativas linguísticas.
6. Considerações finais
O estudante de uma língua estrangeira ou adicional como o espa-
nhol, aprende as normas e o funcionamento dos elementos da língua no
processo de aquisição da competência gramatical que, em geral, fazem
parte do código escrito da língua. Por isto, a questão é como propor-
cionar uma aprendizagem da competência gramatical em espanhol para
que os alunos sejam capazes de compreender e manejar a comunicação
e as regras de uso da língua de forma consciente e autônoma.
“A língua não existe sem a gramática” (ANTUNES, 2007, p. 85),
realmente não existe. A questão a ser levantada e abordada é como fazer
os estudantes entenderem o que é gramática. Essa é uma das dificul-
dades do professor de língua, pois para os aprendizes o ensino de uma
língua adicional é diretamente relacionado à aquisição de norma, o que
não condiz com a realidade. Todavia, cabe somente ao professor mudar
esse pensamento e tirar o foco do ensino na norma.
A partir das diferentes contribuições gramaticais (normativa, des-
critiva, didática) se pode fazer uma reflexão sobre qual é a função da
gramática e, consequentemente, do desenvolvimento da competência
gramatical no processo de ensino/aprendizagem da língua, no caso o
espanhol, na aula de LE. Através de um ensino gramatical que extrapole
1189
as fronteiras das informações morfossintáticas e metalinguísticas no ní-
vel oracional e da inclusão do desenvolvimento de habilidades de orga-
nização discursiva/textual, o conteúdo sistêmico passa a ter relevância e
ser significativo para o aprendiz.
Além de proporcionar a aquisição consciente das regras e normas
dos elementos que constituem a língua, o que se propõe é que sejam
ensinados para os estudantes os aspectos da organização discursiva e
textual, além de que se reconheçam as estruturas concretas da língua
dentro das habilidades linguísticas. Muitos aspectos gramaticais podem
ser ensinados e adquiridos pelos alunos de forma inconsciente, melhor
dito, implicitamente através da integração com outras habilidades e
através da organização textual
Referências
ANTUNES, Irandé. Muito Além da Gramática: por um ensino de línguas sem
pedras no caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
CASAÑ, Pilar Gómez; VIAÑO, María del Mar Martín. La expresión escrita: de la frase
al texto. In: BELLO, Pedro. et al. Didáctica de las segundas lenguas: estrategias y
recursos básicos. Madrid: Santillana, 1996, p. 43-63.
KONDO, Clara Miki. Hacia una gramática para el uso no nativo: replanteamiento
y definición de la gramática pedagógica. Cuadernos del Tiempo Libre. Colección
Expolingua (E/LE 5). 2002, p. 147–165.
1190
LOUREIRO, Valéria Jane Siqueira. ¿Qué gramática necesita enseñarse a estudiantes
de E/LE en Brasil? In: Actas del Simposio Internacional de Didáctica “José Carlos
Lisboa”. Rio de Janeiro: Instituto Cervantes de Rio de Janeiro, 2008, v. 1, p. 538-547.
RAYA, Rosario Alonso. Cómo cambiar tu vida con la gramática. Algunos conse-
jos para tener éxito con los ejercicios gramaticales. In: XII Encuentro Práctico de
Profesores de ELE. Organizado por International House Barcelona y Difusión, Centro
de Investigación y Publicaciones de Idiomas, S.L., 2003. Disponível em: https://www.
encuentro-practico.com/pdf03/alonso.pdf. Acesso em: 15 de jun. de 2021.
ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola
Editorial, 2010. 128 p.
1191
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
(DES)CONSTRUINDO PRÍNCIPES E
PRINCESAS: A LEITURA MULTIMODAL DE
TEXTOS MULTISSEMIÓTICOS SOB UMA
PERSPECTIVA CRÍTICA DE ENSINO DE
LÍNGUA INGLESA
1192
PALAVRAS-CHAVE: multimodalidade- ensino crítico - livro
ilustrado- animação- inglês
1. Introdução
O ensino de línguas requer o desenvolvimento de uma noção am-
pla dos multiletramentos (BRASIL, 2018) que envolva novas formas de
explorar a leitura e interpretação de diversos tipos de texto, dentre eles
os multimodais. Livros ilustrados e versões desses em filmes animados
1193
constituem ricas ferramentas para o desenvolvimento da consciência
das escolhas feitas para criar significados em diferentes modos textuais,
sejam eles o verbal, o visual ou mesmo o acústico.
Como educadores de língua inglesa precisamos abrir espaços na
formação dos estudantes e professores em pré-serviço para perspectivas
linguísticas que abordem questões sobre estereótipos e situações sociais
padronizadas como, por exemplo, as ideologias patriarcais, heterogêneas
ou homofóbicas. Um campo propício para que os estudantes tirem suas
próprias conclusões e se posicionem em relação a essas temáticas encon-
tra-se nas narrativas dos contos de fada, particularmente nas representa-
ções das relações entre os gêneros feminino e masculino, mas também dos
heróis e heroínas domesticadas (CREW, 2002; CRANNY-FRANCIS et
al., 2003). Nesse sentido, Cranny-Francis et al (2003, p. 244-245)246
enfatizam que “[...] as crianças podem ser receptivas às perspectivas alter-
nativas como as que versam sobre posicionamentos sobre gênero.”
A partir do exposto, destacamos que ao utilizarmos livros e filmes
em atividades escolares ou em ambientes familiares (com acompanha-
mento de pais e responsáveis), outras alternativas de opiniões e resistên-
cia às narrativas padronizadas e hegemônicas podem surgir. A leitura
de narrativas clássicas dos contos de fadas em livros infantis bem como
de suas respectivas recriações em outras mídias, associadas às discussões
contemporâneas sobre a linguagem, permitem desconstruir dicotomias
binárias sobre gênero. Transpor as limitações impostas sobre formas de
pensar e expressar vêm recebendo atenção de linguistas dentro e fora
do país, a exemplo dos trabalhos de Constanty e Heberle (2022), no
Brasil, e de Unsworth (2013), no exterior. As primeiras analisam, sob
uma perspectiva crítica multimodal, livros ilustrados com foco em
personagens empoderadas, como a versão de Chapeuzinho Vermelho
intitulada Little Red (2016), de Bethan Wollvin. Unsworth (2013) pro-
põe reflexões teóricas sobre análises comparativas entre livros e filmes
como, por exemplo, o estudo do livro intitulado The Lost Thing, escrito
246
Cranny-Francis et al (2003, p. 244-245) [...] children can be receptive to alter-
native perspectives regarding gender positioning.
1194
e ilustrado por Shaun Tan (2000) o qual foi adaptado para um premia-
do curta-metragem.
A fim de lançar um olhar crítico sobre as representações dos perso-
nagens e de como elas são (des)contruídas em dois recursos semióticos:
o livro e a versão do filme, selecionamos o livro Prince Cinders, de
Babette Cole (1987), e a animação, com título homônimo, produzi-
da pela companhia de filmes Illuminated, dirigido por Derek Hayes
(2016). Tomamos por base uma investigação de caráter analítica e críti-
ca. Para tanto, seguimos a perspectiva sociossemiótica e buscamos am-
pliar a discussão sobre como os padrões da linguagem criam significa-
dos em diferentes mídias e contextos sociais.
Com esse propósito em mente, iniciamos por apresentar brevemen-
te a narrativa de Prince Cinders, passando a explorar o referencial teórico
que embasa o presente estudo. Em seguida, desenvolvemos a análise do
contexto e dos aspectos léxico-gramaticais por meio do sistema da tran-
sitividade e comparamos as representações dos principais personagens
nos dois recursos, tecendo uma análise crítica com base na Gramática
Sistêmico Funcional (GSF), de Halliday e Matthiessen (2004), e na
Gramática do Design Visual (GVD), de Kress e Van Leeuwen (2021).
Após a análise, passamos as nossas considerações finais.
1195
a fada, atendendo ao pedido de Cinders de se tornar grande e peludo
como seus irmãos, transforma o príncipe em um enorme macaco pelu-
do e, assim, ele parte para a festa de sábado à noite sem saber em que
havia se transformado.
Os cenários variam e transformam o Palácio em Discoteca, onde
ocorre o baile real, por exemplo, como também trazem uma parada
de ônibus. É nesse local que o príncipe, transformado em macaco, en-
contra a princesa Lovely Penny. Como esperado, de acordo com os ele-
mentos intertextuais que remetem à Cinderela, à meia noite, Cinders se
transforma e, voltando ao que era antes, foge. Essa última, feliz porque
achou que o rapaz a havia salvo do animal, deseja encontrá-lo. No en-
tanto, se em Cinderela há a perda de um sapato de cristal, em Cinders
há a perda das calças jeans do jovem príncipe.
Contrariando os padrões físicos representados no livro em que os
atributos big (grande) e hairy (peludo) estão relacionados aos homens
do reino de uma maneira geral, o príncipe é franzino. Isso torna a pro-
cura pelo portador das calças longa, mas não impossível, uma vez que
a princesa é determinada e parte em busca de seu príncipe. Ao encon-
trá-lo, Lovely Penny o leva para morar em seu castelo e pede a fada que
transforme os irmãos de Cinders em fadas do lar. A história termina
com a representação dos irmãos, grandes e peludos, voando com peque-
nas asas para fazer as tarefas domésticas do palácio.
A breve descrição da narrativa nos permite observar o tom humorís-
tico trazido pela autora, principalmente, por haver uma habilidosa arti-
culação entre o texto verbal e o visual. É essa relação intermodal que per-
mite descontruir representações hegemônicas conforme veremos a seguir.
1196
2021; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004; BÁRBARA; MACEDO,
2009). Essas escolhas (linguísticas e imagéticas) recebem influências
tanto do contexto cultural (cultura) como do contexto de situação (as-
pectos ou registros que fazem a diferença em como usamos a linguagem)
– ambos no nível extralinguístico (HALLIDAY, 1985; BÁRBARA;
MACEDO, 2009).
De acordo com Meurer e Motta-Roth (2002, p. 11) “[...] sobre o
que se fala, quem fala e como se fala – são definidores do contexto, ao
mesmo tempo que esses três aspectos dependem do contexto em que
uma determinada atividade humana se desenvolve mediada pela lingua-
gem”. Portanto, tem-se tantas variações de um mesmo conhecimento
quantas modificações são realizadas no modo de produzir um texto, os
participantes envolvidos e a forma de interação.
Partindo dessa premissa, adota-se o conceito de gênero proposto
por Halliday e Hasan (1989) que o associa ao contexto da cultura, en-
volvendo os aspectos mais amplos a partir do meio social e cultural que
o usuário está inserido. Já o contexto da situação, também conhecido
como Teoria de Registro, irá definir sobre o que se fala, as relações en-
tre os usuários e as formas textuais utilizadas, conhecidas como os três
significados realizados pela linguagem (EGGINS; MARTIN, 1997;
BÁRBARA; MACEDO, 2009), também chamados de metafunções.
As metafunções, por sua vez, e a ligação com as variáveis situacio-
nais de contexto social tem fornecido uma base teórica comum para
o desenvolvimento de gramáticas voltadas para diferentes recursos se-
mióticos, a exemplo da Gramática do Design Visual (GDV) de Kress
e van Leeuwen (2021). Os autores propõem que as imagens também
constroem três tipos de significados, expandindo e adaptando as noções
de metafunção da Gramática Sistêmico Funcional. Em linhas gerais,
temos o seguinte:
1197
b) os significados interpessoal/interativo: são recursos verbais e vi-
suais que constroem a natureza das relações;
c) os significados textual/composicional: são estruturas relaciona-
das com a distribuição do valor da informação ou destaque entre os
elementos do texto verbal e da imagem.
Por meio dessas três categorias é possível realizar leituras que envol-
vem, concomitantemente: a representação do mundo, a interação (entre
leitor/autor e participantes) e a organização da mensagem. No presente
estudo, enfocamos os significados ideacionais, da Gramática Sistêmico
Funcional, de Halliday e Matthiessen (2004), e representacionais, da
Gramática do design Visual, de Kress e Van Leeuwen (2021) os quais
exploramos a seguir.
1198
2004). O participante é o Ator que está expresso nos grupos nominais.
Nos casos de haver um participante para quem o processo está dire-
cionado, esse é denominado como Meta. Vejamos o trecho que segue
retirado do livro “Olívia tem dois papais”, o qual narra algumas ativi-
dades da personagem principal, Olívia, enquanto espera que um de
seus pais termine o trabalho: “Daí [ela] brincou de boneca [e conversou
bastante com papai Raul].” Nesse caso, “ela”, Olívia, é Ator, “brincar”
é o Processo, “de boneca” é a Meta ” (LEITE; SCHUBACH, 2010).
Por sua vez, os processos mentais transmitem processos sensoriais
e incluem verbos relacionados à percepção (ver e ouvir), sentimentos
(gostar) e pensamentos (saber e compreender). Essas frases podem ter
dois participantes: um que é humano ou assemelha-se ao humano,
como ocorre em livros ilustrados, e outro que é percebido, sentido ou
pensado pelo participante humano. O participante humano é chama-
do de Experenciador, enquanto o segundo elemento é denominado
Fenômeno. Vejamos o exemplo de Olívia em “Olívia tem dois papais
(papais)”: “[Ela] sentia um medo gostoso.” No exemplo temos “ela”
como Experenciador, “sentir” é o Processo Mental, “um medo gostoso”
é o Fenômeno.
Os processos relacionais, por sua vez, servem para classificar, ge-
neralizar e identificar aspectos das experiências e codificam estados de
“ser”, “ter” e “identificar”. No que se refere a narrativa, os processos
relacionais servem para apresentar os personagens e suas característi-
cas, mas são também importantes na descrição de locais e cenários. Por
exemplo, na primeira página do livro “Olívia tem dois papais”, a per-
sonagem principal é descrita como sendo a possuidora de um talento,
pois “[...] sabia exatamente como usar algumas palavras para conseguir
as coisas que queria.” Assim, o livro inicia com a seguinte informa-
ção: “Olívia tinha um talento muito especial.” A partir da descrição
do talento da menina há o desenvolvimento dos fatos que permeiam a
história. Essa enfoca as brincadeiras de Olívia e suas conversas com um
de seus pais, a fim de lhe chamar a atenção por meio do uso de palavras
habilidosamente escolhidas.
1199
O segundo grupo de verbos é formado pelos processos: verbal,
comportamental e existencial. Os processos verbais, expressam ações
verbais, tais como “dizer”, “falar”, “contar” e “perguntar”. Eles podem
ser reconhecidos pelo uso das aspas ou discurso indireto. Esse tipo de
processo está entrelaçado nas narrativas, pois os personagens estão en-
volvidos em algum tipo de interação ao longo da estória, e que poderá
ser colocada em evidência ou entre aspas. Os participantes dessas orações
são, normalmente, Dizente, Verbiagem, Receptor e Alvo. Tomemos por
exemplo parte do diálogo entre o pai Luís e Olívia: “Só me olhando,
filha, sem me atrapalhar? –o pai perguntava [...]”. Na oração, é possível
identificar que quem fala, ou seja, o Dizente, é o pai e ele o faz por meio
do Processo Verbal “perguntar”, enquanto “Só me olhando, filha, sem
me atrapalhar?” é a Verbiagem, em outras palavras, o que é dito.
1200
transacionais envolvem pelo menos dois participantes e contém um ve-
tor, conforme pode se observar na Figura 1 que segue. Já um processo
não-transacional ocorre quando a ação envolve somente um participan-
te e um vetor. Os processos de reação são indicados por um vetor for-
mado pela linha do olhar e são transacionais quando as pessoas olham
para algo que pode ser identificado, como na Figura 1, ou não-transa-
cionais quando o objeto do olhar não pode ser visto.
1201
verbal, que em livros ilustrados podem ou não aparecer (PAINTER et
al., 2013). Nesse sentido, um participante pode ser interpretado como
se estivesse falando, mesmo que o autor não tenha incluído a imagem
do balão.
Os significados circunstanciais são visualmente retratados em ter-
mos de cenário; podem incluir local e tempo. Por exemplo, na Figura
1, podemos visualizar o que parece ser um tapete no chão, quadros
e brinquedos que constroem a noção de um espaço doméstico, como
uma sala. Nesse caso, os detalhes do mundo ficcional estão disponíveis
mais prontamente para o leitor do que seriam na linguagem verbal247
(PAINTER et al 2013, p. 78).
Considerando a base teórica exposta, o estudo enfoca primeira-
mente os aspectos discursivos, com foco nos aspectos contextuais no
livro e no filme, passando a um olhar mais profundo dos significados
ideacionais e representacionais, conforme veremos na análise que segue.
247
“the details of the fictional world are available to the reader much more readily
than they would be through verbal language” (Painter et al 2013:78).
1202
Quadro 1- O contexto de situação e as Metafunções no livro infantil e no filme
1203
apresentam o personagem central e seus atributos. Ele veste jeans e tê-
nis, usa uma coroa sendo auxiliado por produtos e materiais de limpeza;
ao fundo pode-se um caldeirão dentro de uma lareira que remete o
leitor aos tempos das fábulas de bruxas, fadas madrinhas.
Trazendo o cenário da capa do livro para as categorias de análise da
gramática visual, de Kress e Van Leuween (2021), em especial para as
Estruturas Representacionais é possível ter acesso a intenção dos autores
ao reproduzirem as fábulas. Percorrendo o esquema, chegamos nas es-
truturas da Narrativa, que se subdividem em Processos e Circunstâncias.
Os processos dependem de um Ator; no caso, Prince Cinders o único
participante saliente, representado em uma ação Não-transacional (sem
interação com outros Atores) e realizando um processo material (fazer a
limpeza) (Ator-Meta), conforme a Figura 2 abaixo.
1204
Se, por um lado, a capa do livro permite aos leitores estabelecer
inferências com relação ao protagonista e uma breve comparação com
Cinderela, a orientação da narrativa contrapõe o Príncipe e seus irmãos
em relação aos seus atributos físicos, conforme se verifica na Figura 3.
1205
não são chamados de príncipes, o narrador os apresenta apenas como
“Brothers”, tendo sua função de parentesco com Cinders destacada. O
fato de serem “peludos” é evidenciado também por outras característi-
cas: um deles possui uma opulenta sobrancelha e todos possuem abun-
dantes cabelos.
Ao início da história, os leitores também tomam conhecimento que
os irmãos de Cinders costumam ir à discoteca do Palácio com suas na-
moradas princesas e que faziam o príncipe limpar, conforme texto ex-
traído das páginas 3 e 4: “They spent their time going to the Palace Disco
with princess girlfriends.” (“Eles passavam o tempo indo à Discoteca do
Palácio com suas namoradas princesas”). “They made poor prince Cinders
stay behind and clean up after them.” (“Eles faziam o pobre príncipe ficar
para atrás e limpar.”)
O texto visual presente na página 3 mostra os irmãos, cada qual em
um carro e com uma namorada, chegando à um local que tem em sua
parte superior um outdoor com luzes coloridas, das quais pode-se ler:
Royal Disco ou “Discoteca Real”. Já Cinders, representado na página 4,
aparece ajoelhado com uma pequena pá em suas mãos e limpa restos
de comida, como ossos e caroços de maçãs, além de tocos de cigarros e
latas de cerveja. Nesse sentido, e retomando a ação realizada por ele na
capa do livro, Cinders continua a ser o Ator de ação Não-transacional
(sem interação com outros Atores) e realiza o processo material (fazer a
limpeza) (Ator-Meta). Por outro lado, os irmãos do príncipe perfazem
processos materiais “Transacionais” em que agem em relação aos seus
carros (Ator-Meta) e tem ainda o acompanhamento de suas namoradas.
Na imagem presente na quinta página do livro, Figura 4, é possível
ver o príncipe sentado perto da lareira lendo uma revista. Na capa da
revista é possível ver, em destaque, seu título: “Macho Magazine” e a
representação de um homem barbudo, vestindo somente uma sunga, ao
mesmo tempo em que ergue os braços a fim de mostrar os músculos do
bíceps. O protagonista olha na direção de seu braço que está dobrado
a fim de ver sua musculatura e parece desapontado- fato evidenciado
pela boca semiaberta e os olhos arregalados. O texto escrito evidencia o
1206
desejo do protagonista de se tornar “grande” e “peludo”, conforme pode
se verificar a seguir: “When his work was done, he would sit by the fire and
wish he was big and hairy like his Brothers.” (“Quando seu trabalho esta-
va pronto, ele sentava ao fogo e desejava que ele fosse grande e peludo
como seus irmãos.”).
1207
Figura 5: Representação do padrão masculino de beleza no filme
1208
De uma maneira geral, a partir do recorte da orientação da narrati-
va em ambos os meios, impresso e fílmico, pode-se verificar que os as-
pectos ideacionais presentes nos modos verbais e visuais são habilmente
explorados para descontruir papeis de gênero fortemente atrelados aos
contos de fadas. Nesse sentido, Cinders executa tarefas domésticas, nor-
malmente atribuídas a mulheres- tal qual em Cinderela, mas isso não
exclui o desejo de ser forte e peludo como seus irmãos, ou seja, não há
exclusão de sua masculinidade em contraponto às tarefas que lhe são
conferidas. Além desse aspecto, o protagonista tem os sentimentos e
pensamentos expressos pelos processos mentais de “desejar” e “pensar”-
auxiliando na construção de um personagem sensível e empático− ca-
racterísticas ainda mais acentuadas no filme uma vez que o personagem
conversa com seu gato e, assim, expressa seus desejos. Os Irmãos, por
sua vez, são representados em função de sua forma física, sendo que a
versão fílmica acaba por construir personagens narcisistas e ainda mais
desagradáveis que os representados no livro, uma vez que há a exacer-
bação do corpo musculoso e a construção do “macho pegador” que
precisa decidir com qual das namoradas levará ao baile.
Finalmente, embora o presente estudo não tivesse tido por objetivo
enfocar todas as fases da narrativa, é importante destacar que a princesa
é agentiva, pois é ela quem desposa Cinders e o leva para morar em seu
castelo. Havendo, assim, uma clara mudança do padrão dos contos tra-
dicionais em que os príncipes costumam ser os donos dos castelos bem
como os responsáveis por desposar as princesas.
5. Conclusões
Ao analisar o contexto da situação e, mais especificamente, o cam-
po, buscamos salientar como uma importante implicação pedagógica a
necessidade de explorar esse elemento em um primeiro momento com
aprendizes, a fim de abordar os elementos intertextuais das obras. Assim,
os/as alunos e alunas podem trazer seus conhecimentos prévios a respei-
to de Cinderela para que os elementos básicos da narrativa e de suas ca-
racterísticas possam ser identificados e, de certa forma, comparados- já
1209
que a construção de um “Cinderelo” pode ser o aspecto que causa maior
estranheza, como também humor e leveza para promover a discussão de
papeis de gênero em sala de aula.
É importante destacar também que, apesar do caráter cômico
empregado pela autora e também usado no filme, a busca por pertencer
a algo, a algum grupo, a algum padrão físico, bem como a integração do
masculino e feminino (BETTELHEIM, 2010), mantem-se como o fio
condutor desse conto que, mesmo sendo escrito na década de oitenta,
continua atual. Dessa forma, concluímos enfatizando o relevante papel
dos contos de fadas, bem como de suas versões, para o caráter formador
de crianças e jovens como também a importância desses para uma abor-
dagem de ensino de línguas multimodal crítica.
Referências
BARBARA, L.; MACEDO, L. C. Linguística Sistêmico Funcional para a Análise de
Discurso: um Panorama Introdutório. Cadernos de Linguagem e Sociedade, v. 10,
p. 89-107, 2009.
CREW, H. S. Spinning New Tales from Traditional Texts: Donna Jo Napoli and the
Rewriting of Fairy Tale. Children’s Literature in Education, v. 33. p. 77-95, 2002.
EGGINS, S.; MARTIN, J.R. Genres and registers of discourse. In: T. VAN DIJK (ed.).
Discourse as structure and process – discourse studies: a multidisciplinary intro-
duction. v. 1., Sage Publications, 1997.
1210
HALLIDAY, M. A. K. An Introduction to Functional Grammar. Londres: Edward
Arnold, 1985.
KRESS, G.; VAN LEEUWEN T. Reading images: the grammar of visual design.
Londres, Nova Iorque: Routledge, 2021.
LEITE, M.; SCHUBACH, T. Olívia tem dois papais. São Paulo: Companhia das
Letrinhas, 2010.
MEURER, J.L. The three non-mystifying questions you can ask and explore in the
texts you bring to your EFL classrooms. APLISC Newsletter, n. 2, p. 3-4, 2001.
1211
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
1212
of scale and indexicality. Adopting a qualitative approach, it investigates
the internal and external circulation of the school document, respectively
analyzing (1) interviews with staff and students, and (2) news articles. The
analysis highlights how, along its text trajectories, the school document is
embedded within institutional, personal, and legal scales. Some actors value
it positively, regarding it as a symbol of the historical, cultural and social
advances in contemporary life, as well as a result of democratic practices on
the part of a school that understands education within the context of broader
social issues. Others, however, entextualize conservative discourses about
gender and sexuality, and extricate education from its social context.
KEYWORDS: gender; school uniform; text trajectories; scale; indexicality
1. Introdução
Vivemos em um momento de intensa produção discursiva e cir-
culação textual acerca de questões de gênero e sexualidade. Tanto no
Brasil quanto em outras partes do mundo, formas não-hegemônicas
de se viver têm circulado e ganhado visibilidade. Não surpreende que,
por outro lado, perceba-se também uma forte reação conservadora
(BULGARELLI, 2018), gerando fricção entre diferentes discursos em
competição na sociedade. Um exemplo disso foi o movimento Escola
sem Partido, que ganhou força a partir de 2014. Munido de argumen-
tos tecnocratas e em nome do combate a uma suposta doutrinação ide-
ológica nas escolas, o movimento fez circularem discursos de ódio aos
professores e, mesmo sem amparo legal, produziu perseguições e (auto)
censura (DIP, 2016; PENNA, 2017). Outro exemplo, que por sua vez
com frequência se articula a discursos baseados no Escola sem Partido,
é a “ideologia de gênero”. Esse slogan, que em seu uso conservador e
não-acadêmico se originou na Igreja Católica (JUNQUEIRA, 2017),
nessa acepção remete a “medos difusos de que as crianças aprenderiam a
ser gays e lésbicas em sala de aula e que os professores estariam tentando
destruir a família tradicional” (PENNA, 2016, p. 99). Esse discurso
enquadra como “ideologia de gênero” qualquer prática que questione
minimamente modelos tradicionais de gênero e sexualidade.
1213
Esse cenário transformou as escolas em palcos de fricção intensa e
conflitos visíveis. Um exemplo dessas fricções de diferentes discursos so-
bre gênero e sexualidade foi a polêmica iniciada quando, no final do ano
de 2016, o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, pôs fim à divisão biná-
ria do uniforme por gênero. Até essa data, a instituição federal fundada
em 1837 possuía dois uniformes: um masculino, com calça comprida
e camisa de botão, e outro feminino, com blusa com corte considerado
feminino e possibilidade de uso de saia em vez da calça comprida. Com
a nova portaria, as peças do uniforme permaneceram as mesmas, porém
deixaram de ser categorizadas por gênero. Assim, cada estudante passou
a poder utilizar quaisquer peças das que compunham o uniforme, inde-
pendentemente de gênero. Essa mudança foi amplamente noticiada e
discutida não só nos corredores do Colégio, mas também na mídia, nas
redes sociais e nas ruas. Até hoje, a comunidade escolar é questionada
pelo público externo sobre a possibilidade de os meninos trajarem saias
dentro da instituição.
Este artigo tem por objetivo analisar a circulação dessa portaria do
Colégio Pedro II, tanto dentro da instituição quanto na mídia. Na seção
a seguir, discuto as trajetórias textuais e o conceito de escala. Depois, na
seção 3, articulo a noção de escala a uma visão performativa do gênero e
da sexualidade. A análise do documento escolar é empreendida na seção
4. Na seção 5, teço minhas considerações finais.
1214
O segundo pressuposto é que a circulação textual não é uma mera
transposição de um objeto imutável. Como explica Blommaert (2009,
p. 567), “sempre que os discursos viajam pelo globo, o que é levado
com eles é sua forma, mas seu valor, significado ou função nem sempre
viajam junto a eles”. As trajetórias de textos envolvem, necessariamente,
práticas de entextualização. Bauman e Briggs (1990, p. 73) cunharam
esse termo para se referir ao “processo de tornar o discurso removível,
de transformar um trecho de produção linguística em uma unidade —
um texto — que possa ser retirada de seu contexto interacional. Um
texto, então, deste ponto de vista, é discurso tornado descontextualizá-
vel”. Trata-se de uma abordagem que valoriza o caráter processual dos
textos e de seus usos e apropriações. Cada vez que um texto é recon-
textualizado, seus sentidos são reconstruídos por “novos interlocutores,
com diferentes modos de interagir com os signos, com distintas his-
tórias de socialização, respondendo a demandas interacionais voláteis”
(FABRÍCIO, 2015, p. 71).
Um construto teórico-analítico que pode nos auxiliar a analisar as
trajetórias textuais é o de escala. Oriundo da geografia, o conceito de
escala originalmente dizia respeito a formas de ordenar a experiência
humana no espaço. Ao longo dos anos, essa concepção vem sendo com-
plexificada por diversos autores, entre os quais Carr e Lempert (2016),
que compreendem escala como uma atividade semiótica de perspectivi-
zação, com seus múltiplos processos não apenas de localização no tem-
po e no espaço, mas também de comparação, separação, classificação,
organização, hierarquização, institucionalização, repetição — processos
por meio dos quais construímos, por exemplo, noções de que determi-
nada coisa é parte de algo maior e distinto de outros elementos.
Os processos escalares se apoiam em um trabalho indexical248.
Primeiro, porque se orientam por ordens de indexicalidade, isto é, por
repertórios que norteiam a avaliação e a hierarquização das relações in-
dexicais (BLOMMAERT, 2005, p. 253). Segundo, o trabalho escalar
248
Por indexicalidade, entende-se a forma como os signos apontam para determina-
dos significados socialmente disponíveis (SILVERSTEIN, 2003).
1215
está ligado a uma ordem indexical. O conceito de ordem indexical,
cunhado por Silverstein (2003) e ampliado por Higgins (2007), se refe-
re a um repertório interpretativo das relativas estabilidades das relações
indexicais entre determinados signos e seus respectivos significados, que
se estabilizam e se tornam pressupostos a partir dos quais se formam
novos elos indexicais249. Graças a essas relativas estabilizações, atingidas
via repetição, uma saia é vista como apontando para uma identidade
feminina, à qual, por sua vez, associa-se indexicalmente uma série de
performances historicamente construídas e esperadas, como delicadeza,
emoção e fragilidade. Forma-se, assim, uma cadeia semântica social-
mente reconhecível e com algum grau de previsibilidade, a qual norteia
a interação dos sujeitos com os signos. A atividade escalar se apoia nes-
ses repertórios semânticos, que categorizam e valoram os signos — in-
clusive nossos corpos e nossas performances.
Além de nos auxiliar na análise das trajetórias textuais, o construto
de escala também pode contribuir para a reflexão sobre o gênero e a
sexualidade.
1216
reguladoras e só têm sentido graças às matrizes de inteligibilidade: reper-
tórios que nos orientam e fazem com que possamos dar sentido às per-
formances. A matriz hegemônica de inteligibilidade, que Butler ([1990]
2016, p. 258) chama de “matriz heterossexual”, por exemplo, “institui
como natural, normal e inquestionável a ligação linear e essencial entre
sexo biológico, gênero, desejo sexual e subjetividade” (BORBA, 2014,
p. 445). Assim, constitui-se uma ordem indexical que prevê que uma
pessoa nascida com um pênis se entenda como menino, encene perfor-
mances de masculinidade e se torne um adulto heterossexual; a relação
direta entre todos esses fatores é vista como algo natural.
A formação dessas matrizes de inteligibilidade só é possível graças a
um intenso trabalho escalar. Ele começa com a focalização em uma par-
te específica do corpo: a genitália da criança. Com base nessa genitália,
opera uma prática escalar de classificação: ao pênis equivale uma iden-
tidade masculina e, à vagina, uma feminina. A isso, seguem-se outras
tantas atividades de segmentação e categorização de senso comum: são
classificadas como “masculinas” ou “femininas” performances somáticas,
indumentária, interesses, profissões, papéis sociais, temperamentos etc.
Com a repetição e o atravessamento por relações de poder, essas
construções escalares se naturalizam, transformam-se em lógicas orien-
tadoras performativas, que podemos denominar lógicas ou modelos
escalares (cf. CARR; LEMPERT, 2016) — comumente chamadas de
matrizes de inteligibilidade na teorização queer. São esses modelos es-
calares que fazem com que certas roupas sejam comumente associadas
a determinado gênero. Essas relações nos mostram que o trabalho esca-
lar é também indexical. Nossas formas de falar, as coisas que dizemos,
nossas ações corporais e até mesmo nossas roupas são indexicalmente
associados a determinado gênero e a determinada sexualidade.
Quando uma escola tem uniformes fortemente ancorados em mo-
delos escalares de gênero tradicionais, a possibilidade de que as roupas
sejam, em alguma medida, tratadas de forma não-generificada naquele
espaço pode gerar estranhamentos. Passo, então, à discussão do caso do
Colégio Pedro II.
1217
4. Trajetórias textuais do documento escolar
O documento em questão, a Portaria Nº 2449/2016, assinada pelo
reitor da instituição, apresenta uma tabela com os itens do uniforme
escolar. Na versão anterior do documento, essa tabela (fig. 1) tinha as
primeiras linhas divididas em duas colunas: na primeira, era apresenta-
do o uniforme feminino, que trazia a saia como uniforme padrão para
as meninas a as calças compridas como opção alternativa; a segunda
coluna, com o uniforme masculino, apresentava um modelo diferente
de camisa e excluía a saia e a meia três-quartos para os meninos.
1218
A seguir, discuto algumas entrevistas realizadas com membros da
comunidade escolar.
Sequência 1251
250
Os nomes de todos os participantes da pesquisa foram substituídos por pseudô-
nimos.
251
Símbolos de transcrição: / caixa alta; // pausa longa; ::: alongamento silábico;
[...] trecho omitido; [ fala sobreposta; CAIXA ALTA tom de voz elevado; [ ]
observação do pesquisador.
1219
Alex projeta uma escala temporal de continuidade, recorrendo a
diversos descritores metapragmáticos no pretérito: “foram discutidas”
(10), “foram debatidas” (10), “haviam fazendo” (11), “estavam pedin-
do” (15). Essa temporalidade é reforçada por meio de vários alongamen-
tos silábicos, que contribuem para a construção de um sentido de longa
duração dos eventos citados: “te:::mpo” (6), “mu:::ito” (7), “passa:::r”
(7), “seto:::res” (8), “discuti:::das” (10), “enco:::ntros” (10). Os descrito-
res metapragmáticos são acompanhados por referências aos estudantes
da instituição: “os alunos” (10), “os estudantes” (15). Observa-se ainda,
na referência aos processos que precederam a publicação da Portaria, o
trecho “passa:::r por todos os seto:::res da comunidade escolar” (7-8),
que indexa práticas democráticas.
Esse conjunto de referências e descritores metapragmáticos articula
uma escala temporal que perspectiviza o CPII como uma instituição
democrática. Isso implica que, no relato de Alex, não se tratou de uma
decisão súbita ou arbitrária dos gestores da instituição. Ao contrário,
a mudança foi fruto de um longo processo democrático, no qual dife-
rentes segmentos da comunidade escolar tiveram voz, inclusive os pró-
prios alunos. Nas outras entrevistas realizadas ao longo da pesquisa, há
tanto falas semelhantes à de Alex, que compreendem a Portaria como
a culminância de discussões envolvendo a comunidade escolar, quanto
relatos de servidores que se viram surpreendidos pela publicação do do-
cumento, não tendo qualquer conhecimento prévio sobre esse processo.
Outro elemento que compõe a escala temporal é a afirmação de
que “muita coisa do uniforme tradicional se manteve” (16-17); segun-
do Alex, as alterações no uniforme previstas na Portaria “não fora:::m /
mudanças TÃO significativas assim” (15-16). Essa projeção escalar de
continuidade, articulada à narrativa de um longo processo democrático
envolvendo os/as estudantes, pode ser compreendida como um movi-
mento que Carr e Fisher (2016, p. 135) denominam desescalonamento
(de-escalation no original, em inglês), que consiste em “desintensificar”
o fenômeno “forjando conexões explícitas entre os sentidos humanos e
aquilo que a atividade escalar construiu como aterrador e alienígena”.
1220
Em outras palavras, trata-se de uma prática escalar que aproxima o fe-
nômeno do âmbito da normalidade, possibilitando a compreensão e o
estabelecimento de relações. Desse modo, Alex constrói o fim do uni-
forme binário, que muitos consideraram peculiar ou mesmo escandalo-
so, como algo menor, como ajustes pouco significativos diante de todos
os signos indumentários mantidos sem alterações. A ênfase na continui-
dade é uma estratégia de desescalonamento recorrente nas entrevistas.
Gostaria de discutir agora dois relatos sobre o teor do documento
e seus efeitos. Primeiramente, na sequência 2, apresento um trecho de
uma entrevista realizada com um grupo de servidoras lotadas na secre-
taria de um dos campi do Colégio.
Sequência 2
1221
servidor do campus. Ela cita a fala desse aluno, estilizando a voz em tom
de zombaria insolente: “Vou usar SAIA, hein! Vou usar saia” (13). Em
seguida, a servidora explica essa citação da fala do estudante, usando a
descrição metapragmática “tô te ameaçando” (14) para indicar o que,
na interpretação dela, esse aluno efetivamente fez.
Em contraste com esse tipo de uso da saia, Laura e Iva categorizam
os usos supostamente sérios e verdadeiros desse signo. Iva realiza essa pro-
jeção escalar ao utilizar os itens lexicais “REALMENTE” (3), “SÉRIO”
(6) e “SÉRIA” (7). A ênfase que ela usa ao pronunciar essas palavras se
repete ao citar a fala de um aluno hipotético em “QUEro uSAR” (4)
e “ME IDENTIFICO” (6), contribuindo para projetar um sentido de
seriedade. A servidora também cita o que diria a um aluno que quisesse
usar saia no Colégio: “Vem LÁ de FOra // já vestido assim” (6).
Para acentuar o contraste com os usos considerados jocosos, Laura
fornece exemplos do que seriam performances genuínas de transgene-
ridade. Ela faz referência a “demandas / REAIS / no Colégio, // tanto
quanto a nome social quanto à identificação do sexo::: que não o do
biológico” (10-11). A ênfase na predicação “REAIS” salienta o contras-
te dessas performances com aquelas consideradas brincadeiras252.
A esse respeito, Butler (2004, p. 214) nos lembra que
1222
indivíduos; consequentemente, estes deveriam expressá-la em todos os
contextos. No caso em questão, isso significa que uma vontade genuína
de usar saia seria a expressão de uma identidade feminina interior. Não
faria sentido, portanto, fazer questão de usar saia em um contexto (den-
tro da escola) mas se recursar a fazê-lo em qualquer outro, isto é, a sair
de casa já vestindo saia para ir ao Colégio.
Uma vez que as performances de gênero se dão sob a vigilância de
matrizes reguladoras, a quebra dessa congruência transcontextual ativa
mecanismos disciplinares que atuam na sustentação desses modelos es-
calares. Tais mecanismos funcionam de modo interescalar, tomando di-
ferentes formas. Em uma escala institucional, pode concretizar-se, por
exemplo, em um diretor ou inspetor respondendo que o aluno pode
ir de saia desde que vá de casa; em uma escala pessoal, pode gerar in-
satisfação por parte de outros membros da comunidade escolar, que
interpretam essa atitude como uma brincadeira e, portanto, como algo
inapropriado.
Isso não significa, obviamente, que a substituição de calças por
saias como forma deliberada de brincadeira não tenha de fato ocorrido.
São recorrentes nos dados tanto o incômodo com os alunos entrarem
no Colégio de calças e lá trocarem por saias quanto a insatisfação com
o uso de saias como brincadeira. Mesmo os alunos entrevistados cita-
ram esses acontecimentos, embora sem valoração negativa. Por outro
lado, na própria entrevista da qual foi extraída a sequência 2, em outro
momento uma das participantes pondera que o risco de violência no
transporte público e na rua a caminho do Colégio pode ser um fator
para que alguns desses estudantes optem por vestir a saia somente no
interior do campus.
A seguir, apresento um trecho de outra entrevista, no qual um estu-
dante transgênero da instituição fala sobre a importância dessa portaria.
1223
Sequência 3
1224
bem-estar pessoal, contudo, é relacionado à performatividade de gêne-
ro quando ele se refere à possibilidade de “ser reconhecido assim” (6).
Trata-se, então, de tornar inteligíveis e legitimar as performances de
gênero dos estudantes trans.
De todo modo, por quebrar um tabu, ou seja, desviar-se de um
modelo escalar naturalizado, a Portaria Nº 2449/2016 não ficou restrita
aos fóruns institucionais. Rapidamente, ela se alastrou pelos noticiários,
que discuto a seguir.
1225
múltiplas referências ao uso de saias não são por acaso. A tematização
do uso da saia por meninos está relacionada a valores indexicais dessa
peça de roupa. Sendo majoritariamente considerada um índice de fe-
minilidade (e, quando usada por homens, de homossexualidade), sua
possibilidade de uso por qualquer membro do corpo discente abala as
ordens indexical e de indexicalidade vigentes: ela abre espaço para que
esse signo deixe de ser interpretado necessariamente como um índice
de feminilidade e, ao mesmo tempo, a validação institucional das per-
formances de meninos que optem por vestir saias atua na construção
de uma ordem de indexicalidade alternativa. Esses abalos indexicais re-
presentam uma ameaça aos modelos escalares de gênero hegemônicos,
pois afetam as práticas de segmentação e classificação que sustentam as
condições de performatividade.
Gostaria de me deter sobre certos detalhes de algumas dessas man-
chetes. Na manchete (2), ao descrever o Pedro II como um “colégio
tradicional”, constrói-se uma escala temporal na qual se valorizam o
passado e sua influência sobre o presente. O fato de essa tradição ser ci-
tada sugere uma entextualização da Portaria Nº 2449/2016 como uma
ruptura escalar, de modo que o futuro projetado pelo texto seria inespe-
rado tendo em vista o passado-presente da instituição.
O texto (4) entextualiza o discurso da “ideologia de gênero”. Ao
entextualizá-lo, o autor desse texto opera uma prática escalar que situa
a Portaria Nº 2449/2016 para além do CPII ou mesmo dos uniformes
escolares. Por essa ótica, a Portaria estaria inserida em um conjunto de
práticas, espalhadas pelo espaço social e em efervescência na contempo-
raneidade, comprometidas com objetivos políticos mais amplos e ma-
léficos. A associação entre a Portaria e a suposta “ideologia de gênero”
aponta para uma ordem de indexicalidade que deslegitima qualquer
prática social de reconhecimento ou de valorização da diversidade se-
xual e de gênero, bem como de problematização de modelos escalares
patriarcais.
A manchete (5) noticia um fato resultante da publicação da
Portaria Nº 2449/2016: um protesto contra a medida organizado por
1226
responsáveis por estudantes da instituição. Ao citar os grupos organiza-
dores e apoiadores do ato, o corpo do texto menciona os grupos conser-
vadores Endireita Brasil, Brava Gente e Mães pelo Escola Sem Partido.
Essa informação já projeta uma escala que contextualiza o aconteci-
mento em uma sucessão de discursos e acontecimentos semelhantes:
os três grupos têm notório alinhamento a discursos e posições políticas
conservadores, que incluem a oposição aos movimentos feministas e a
pautas LGBTQIA+, bem como a defesa de se proibir a abordagem de
questões de gênero e sexualidade na educação básica. Observando as
continuidades e as repetições, vemos nesse protesto, então, mais uma
iteração dos discursos típicos desses grupos, cujas práticas se orientam
por ordens indexicais e de indexicalidade extremamente essencializadas.
Entre essas continuidades, está a inserção da questão dos uniformes
na categoria mais ampla da “ideologia de gênero”:
1227
culminância (ou uma nova iteração) de diferentes acontecimentos e de
uma discussão que se estendeu ao longo de dois anos, tal como descrito
pelo servidor Alex na sequência 1. O fato de o ponto de partida apre-
sentado ser uma manifestação de estudantes se opõe à classificação da
medida como autoritária no trecho (i), uma vez que a instituição teria
se colocado a escutar e a discutir sobre uma questão levantada pelos
próprios alunos.
Considerações finais
Em setembro de 2016, a reitoria do Colégio Pedro II, no Rio de
Janeiro, emitiu uma portaria atualizando normas para seu corpo discen-
te. Entre as alterações, estava a abolição da divisão do uniforme escolar
por gênero. Essa inovação institucional teve grande repercussão, geran-
do longas trajetórias para o texto do documento.
Nas entrevistas realizadas com servidores e estudantes do Colégio,
observei duas compreensões principais da entextualização da Portaria.
A primeira delas, presente no discurso de Alex, apresenta o documento
como a culminância de um amplo e democrático processo de rediscus-
são das normas institucionais. Esse trabalho escalar de mitigação de hie-
rarquias constrói Pedro II como uma instituição democrática, marcada
pelo diálogo entre gestores/as e comunidade escolar. Na circulação mi-
diática da Portaria, observam-se duas perspectivas. A primeira coincide
com o discurso institucional do Colégio, enquanto a segunda projeta
uma escala autoritária na qual a Reitoria, de forma autocrática, teria
decidido pela extinção do uniforme binário — em alguns casos, fala-se
até na imposição do uso de saias por meninos.
Quanto ao teor do documento, a análise da circulação interna da
Portaria assinala projeções escalares que o inserem em uma série de flu-
xos discursivos mais amplos, entextualizando uma ordem indexical que
relaciona educação, gênero e sociedade; a nova norma é tratada como
uma forma de respeito à diversidade. Já na circulação midiática, nota-se
uma grande fricção entre essa perspectiva e movimentos escalares que
isolam a escola de discussões mais amplas sobre gênero e sexualidade,
1228
estas apresentadas como inadequadas ao ambiente escolar, entextuali-
zando-se também o discurso da “ideologia de gênero”.
Mas por que o uso de saias é tão importante? Para estudantes
transexuais e discentes de gênero não-binário, a não-diferenciação dos
uniformes por gênero representa o fim da imposição de roupas que
indexam significados sobre um gênero com o qual os sujeitos não se
identificam, o que é em si uma forma de violência. Significa ainda um
reconhecimento de sua existência.
Mais do que isso trata-se de uma inovação que pode comprometer
toda uma lógica norteadora. A medida do Colégio Pedro II mostra o
caráter mutável das ordens indexicais e a consequente possibilidade de
novas indexicalidades.
Está em jogo, então, a sobrevivência de um sistema semiótico biná-
rio que naturaliza os gêneros e reifica um modelo escalar que sustenta
a ordem moral vigente e produz sofrimento humano. Nesse sentido,
embora seja impossível aquilatar a profundidade das ressignificações
produzidas pela portaria do CPII, ela certamente suscitou questiona-
mentos de compreensões extremamente calcificadas sobre gênero, sexu-
alidade e suas imbricações.
Referências
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que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: LPP/UERJ, 2017. p.
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SCHULTZ, Victor Brandão. “Aqui o menino usa saia mesmo?”: fricções escalares
em trajetórias textuais de um documento escolar. 2020. 193 f. Tese (doutorado em
Linguística Aplicada) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.
1230
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA
1231
audiovisual media is almost mandatory. However, disregarding the objective
of the language learning linguistic abilities can be better developed when
contextualized; thus, language learning configures what Gee (2003) calls
situated learning. This concept is based on a study about good video games
from which Gee (2003) extracts updated learning principles. Inspired by Gee’s
ideas, this article aims to design a framework for analyzing video games in order
to help teacher and students to contemplate video game as media that provide
expression of meaning and social practices and also as a simulation/portrait
of idealized (or not) realities. As multimodal media, video games can help
to situate and contextualize the teaching and learning namely of languages.
This scientific work is a qualitative research based on a bibliographic inquiry
which sought for the convergence among multimodality theories by Kress
and van Leeuwen (2001) and Cope and Kalantzis (2020) and visual literacy
approaches such as Yenawine (2017) and Tomaszewska (2016) in order to find
a common way to analyze the meanings in a video game. The convergence of
the approaches listed resulted in a framework based on Multimodal Grammar
built by Cope and Kalantzis (2020). This means that the recent studies on
multimodality are also connected to the diversity of the literacies needed
to make meaning and interpret meaning from multimodal media such as
video games. The framework can expand the experience with video games
far beyond the fun and entertainment and help teacher and students to find,
evaluate, interpret and use the meaning expressed in an electronic game.
KEYWORDS: video game, education, multimodality, literacy, languages.
1. Introdução
Na contramão das opiniões tradicionais que rechaçam a prática do
jogo eletrônico, Gilbert (2021) aponta que dois entre cinco indivíduos
no mundo jogam videogames; isso equivale a 2,69 bilhões de pessoas.
Esse mesmo autor constata que as pessoas jogam cerca de 7h por sema-
na, ou seja, quase uma hora por dia. A conclusão óbvia é que o jogo ele-
trônico é hoje parte da vida das pessoas. Com efeito, Zagal e Bruckman
(2008, s/p) acreditam que os jogos estão “inegavelmente afetando nossa
cultura, o modo como nos socializamos e comunicamos, e como en-
xergamos o mundo”. Assim, também é inegável a necessidade de um
olhar minucioso para o videogame enquanto “artefato cultural” (LIMA,
1232
2014), visto que o jogo não só representa os contextos sócio-históricos
de sua criação, mas molda e influencia formas de interação humana.
Muitos jogos eletrônicos são lançados apostando em ideias inova-
doras que, de alguma forma, representam a materialidade da vida em
sociedade. Por serem obras da mente humana, jogos poderiam ser fa-
cilmente classificados como “criações imaginárias” fundamentadas em
situações idealizadas ou irreais que mais afastam as pessoas da crueza
do mundo real do que as preparam para a vida. Será? Ian Bogost já
havia sinalizado que existe um discurso preconceituoso e infundado de
que “os videogames não possuem nenhuma função social ou cultural,
a não ser a distração, ou para a baixeza moral, na pior das hipóteses”
(BOGOST, 2007, p. VIII). Aparentemente, os discursos depreciativos
que desqualificam o videogame podem estar baseados não só no desco-
nhecimento sobre jogos eletrônicos e sua concepção criativa, mas tam-
bém na existência de crenças arraigadas sobre a pretensa “imaturidade
cultural” inerente aos jogos. Evidencia-se, na verdade, a marginalização
de um produto da ação humana que, massificado comercialmente, pa-
rece não impactar na vida dos milhares de jogadores ou gamers ao redor
do mundo. Talvez fosse mais fácil considerar essa inocuidade dos jo-
gos eletrônicos, a despeito da ideia de que uma mídia audiovisual com
grande apelo persuasivo (BOGOST, 2007) pudesse provocar muito
mais do que o prazer da distração. Tanto o cinema quanto as histórias
em quadrinhos trilharam o mesmo árduo caminho para serem, hoje,
aceitos e merecedores do escrutínio da ciência; aliás, foi além: ganharam
status de manifestação artística.
Devido a essa adesão massiva ao videogame, especialmente entre os
jovens, a sua ubiquidade não pode ser ignorada, muito menos seu im-
pacto em aspectos importantes para o desenvolvimento da sociedade,
como a educação. É partindo dessas ideias que este trabalho se propõe
a conceber formas de análise de videogames como recursos mediadores
de processos de ensino e aprendizagem e, assim, fornecer aos docentes
um instrumento metodológico para incentivar os estudantes a com-
preenderem os sentidos presentes nos jogos, para além do que é visível.
1233
Esta é uma pesquisa de caráter bibliográfico na qual reuniremos as mais
recentes teorias sobre letramento visual, expressão de sentidos e multi-
modalidade, para construir uma relação entre o videogame e sua capa-
cidade implícita ou explícita de retratar a sociedade em seus aspectos
artísticos, culturais, sociais, políticos e científicos.
1234
um movimento esperado, visto que o mundo pós-moderno é palco de
uma multiplicidade de canais de comunicação provocados pelos avan-
ços tecnológicos e midiáticos que potencializaram o que Cazden et al.
(2021) chamam de multiplicidade de textos. É essa “multiplicidade de
textos” que tem exigido da educação o que New London Group nomeou
de multiletramento (CAZDEN et al., 2021). Este conceito baseia-se,
de forma sumária, na ideia de que a geopolítica global mudou, e con-
sequentemente o papel da escola também. A diversidade linguística e
cultural é hoje uma questão central, e, como decorrência, o significado
do que é o letramento também mudou (CAZDEN et al., 1996), ou
seja, a educação precisa se mover do foco monomodal, homogeneizante
e assimilador (SERAFINI, 2012). Desta forma, Serafini (2012) assevera
que, no contexto atual, a monomodalidade não se sustenta, visto que
a “multiplicidade de textos” envolve uma multiplicidade de formas de
expressão, ou seja: a multimodalidade.
Os estudiosos da contemporaneidade, especialmente de 1990 até
os dias atuais, têm considerado a multimodalidade como um aspecto
essencial na produção de sentidos, isto porque, como afirmam Kress
e Van Leeuwen (2001), a chamada era digital equalizou os modos ao
mesmo nível de representação. De fato, a multimodalidade não é um
fenômeno novo, mas foi com os avanços tecnológicos e midiáticos que
os diversos modos de criação de sentidos superaram a soberania da mo-
nomodalidade. Neste momento, vale perguntar: qual modo é privile-
giado no foco monomodal?
Kress e Van Leeuwen definem o “modo” como “convenções produ-
zidas por meio de ação cultural” (KRESS; VAN LEEUWEN, 2001, p.
28). Para eles, os modos permitem a realização de discursos (isto é, ex-
pressar sentidos), todavia, por ser uma abstração, o modo manifesta-se
materialmente em uma mídia, por exemplo: um sentido planejado para
ser expresso no modo “imagem visual” pode ser materializado em uma
pintura a óleo. Embora as pessoas se maravilhem com as particularidades
dos diferentes modos: música, dança, fotografia etc., é a língua e o texto
escrito que detêm certo privilégio quando se pensa em representação
1235
de sentidos e comunicação. Obviamente existem razões históricas que
fundamentam essa preferência pela língua, mas Kress e Van Leeuwen
apontam, acertadamente, que “a prática comunicativa consiste em es-
colher os modos de realização que sejam aptos para os propósitos, au-
diências e ocasiões específicas” (KRESS; VAN LEEUWEN, 2001, p.
30), o que reforça a conclusão dos autores: “(...) nós duvidamos que a
língua seja o modo mais efetivo em todas as circunstâncias” (KRESS;
VAN LEEUWEN, 2001, p. 29). De fato, os indivíduos recorrem a di-
versos modos quando necessitam se expressar, quer seja para reforçar os
sentidos, quer seja para complementá-los. Por exemplo: é praticamente
impossível imaginar uma conversa entre duas pessoas sem a linguagem
corporal/gestual, a influência do espaço e a expressão oral. Todos esses
modos se combinam para que os sentidos representados sejam expressos
de acordo com os interesses dos indivíduos envolvidos. Nesse exemplo
simples, percebemos a multimodalidade reinante: uma conversa nunca
é apenas “fala”, ela envolve corpo e espaço. Para Kress e Van Leeuwen
(2001), o uso de vários tipos de modos semióticos (no exemplo ante-
rior, temos fala, gesto, espaço e corpo) na construção de um produto ou
evento semiótico (por exemplo, uma conversa entre duas pessoas sobre
um determinado assunto) é o que define a “multimodalidade”.
Por outro lado, Cope e Kalantzis (2020) definem a multimoda-
lidade como: sentidos que são renderizados em mais de uma forma
de sentido e motivados por funções de sentido compartilhadas. Estes
autores listam sete formas (texto, imagem, espaço, objeto, corpo, som e
fala) e cinco funções de sentido (referência, agência, estrutura, contexto
e interesse).
Cope e Kalantzis (2020) explicam o movimento dos sentidos entre
as formas, por meio da transposição, isto é, os sentidos movimentam-se
entre as formas reforçando, complementando ou até mesmo hierarqui-
zando significações. Assim, quando dizemos “Não!” com voz alta, ba-
lançamos a cabeça e erguemos o dedo, estamos transpondo o sentido
da negação entre três formas: a fala (dizer “não” expressa a ideia da ne-
gação), o som (a voz alta expressa veemência ou autoridade e reforça a
1236
negação) e o corpo (mover a cabeça e erguer o dedo reforça o sentido da
negação, demonstrando, talvez, a irreversibilidade da negativa). Se na
forma “som” a voz não se elevasse, seria possível ter outra compreensão
da negação. Este exemplo retrata como a multimodalidade é essencial
para a comunicação do dia a dia, mas, na era digital, ela se tornou a regra
na produção de artefatos midiáticos, por exemplo: a profusão de “me-
mes” nas redes sociais, a praticidade dos infográficos nas revistas eletrô-
nicas e a fascinação dos vídeos musicais desde o YouTube, o Instagram
até o TikTok. Esses produtos midiáticos evidenciam fortemente o uso
nos quais os sentidos são colocados, (COPE; KALANTZIS, 2020), ou
seja, a relação com a função do sentido. Para os autores, no entanto,
qualquer sentido produzido engloba todas as funções, podendo haver
uma possível atenção maior a uma ou outra função.
A proposta ousada, porém robusta, de Cope e Kalantzis (2020)
para tratar da multimodalidade é de extrema importância para a discus-
são aqui proposta. É partindo da concepção teórica desses autores que
propomos um olhar minucioso para a multimodalidade dos videoga-
mes e seus sentidos.
1237
Os videogames têm se tornado objeto de estudo de forma gradativa
nos últimos anos, embora permaneçam discursos que os caracterizam
como cultura de menor valor (BACALJA, 2018). O interesse emergen-
te nos jogos justifica-se por conta de sua massificação e grande apelo
comercial, o que tem incentivado estudiosos a analisar esse fenômeno
e suas consequências, especialmente para educação formal (BACALJA,
2018). A relação entre videogames e educação, contudo, nem sempre
foi harmoniosa, isso porque, como já foi mencionado neste texto, para
a maioria das pessoas os videogames não possuíam utilidade social. Um
dos estudiosos que enveredaram na tarefa de explorar as possibilidades
dos jogos eletrônicos para a educação foi James Paul Gee.
Gee (2008) acredita na compatibilidade entre a construção do co-
nhecimento científico no mundo real e a forma pela qual os jogos si-
mulam realidades nas quais os jogadores precisam desenvolver e utilizar
conhecimentos. O autor percebe os jogos como mundos nos quais as
variáveis interagem historicamente. Quando comparados com o am-
biente de aprendizado formal ou em uma simulação científica, os jogos
conduzem a uma experiência imersiva. Com efeito, se na escola, mui-
tas vezes, o estudante observa e aprende como um espectador, em um
jogo, o jogador é parte do mundo virtual, aprendendo e desenvolvendo
habilidades enquanto interage com o mundo simulado (GEE, 2008, p.
199). Percebe-se que o autor aponta para o afloramento de um novo es-
paço de aprendizado, cujas potencialidades têm sido pouco exploradas.
Bogost (2007) corrobora esta ideia ao destacar a capacidade expressiva
dos videogames e como eles exemplificam o funcionamento de ambos
os mundos: virtual e real.
Gee (2008) compara a maneira pela qual a ciência utiliza simu-
lações para compreender fenômenos naturais com as simulações do
mundo dos videogames, a fim de demonstrar como o jogo eletrônico
funciona analogamente a ambientes formais de aprendizado tradicio-
nais. No entanto, para o autor, é preciso levar em consideração como os
jogos funcionam, desenvolvem uma retórica e constroem as narrativas
que incentivam o aprendizado. Vale ressaltar que Gee (2008) menciona
1238
apenas a potencialidade do jogo para o aprendizado, contudo o autor
não sinaliza quais conhecimentos estão envolvidos nesse aprendizado.
Obviamente, é difícil estabelecer com detalhes a que esse aprendizado
se refere, isso porque jogos diferentes podem proporcionar diferentes
oportunidades de aprendizado. Todavia, o autor é enfático quanto ao
poder que o videogame possui para repensar a educação.
De fato, esta possibilidade foi aventada por Beavis e O’Mara
(2010), quando as autoras destacam que jogar videogames envolve o
uso de uma larga gama de práticas de letramentos, tanto as tradicio-
nais como as novas. É possível que as autoras se refiram ao letramento
formal, geralmente desenvolvido no ambiente escolar, quando citam
o letramento tradicional. Já o adjetivo “novas” pode estar ligado à am-
pliação do conceito de letramento, quando este passa a estar ligado “à
inserção do indivíduo em determinadas esferas da atividade humana”
(TERRA, 2013, p. 53). É nesse âmbito que se inserem as discussões so-
bre letramento visual, adotado aqui como o ponto do qual se irradiam
demais formas de aprendizado relacionado aos videogames. Bogost
(2011), ao discutir um tipo específico de jogo, relata que a presença
de texto, imagem e som é cuidadosamente incorporada ao restante que
envolve o sistema do jogo, isto porque, para o autor, o jogo deve refletir
as experiências humanas por meio da sua mecânica, ou seja, o jogador
compreende esses sentidos pela forma poética pela qual essas relações
sociais são apresentadas nos processos e códigos do jogo.
De qualquer sorte, ainda que para Bogost (2011) o sentido do jogo
esteja mais no processo (códigos e regras que são a base do jogo), é por
meio de uma tela que o jogador entra em contato com esses sentidos.
Cope e Kalantzis (2020), por sua vez, acreditam que nesse movimento,
em que o processo ou código computacional se torna imagem, existe
uma movimentação de sentidos. Dessa forma, é possível dizer que a
imagem não representa perfeitamente o que foi pretendido por meio
do código, já que ambos são formas de sentidos diferentes que buscam
transpor uma significação. Tampouco seria impossível para um jogador
interagir com o jogo apenas com a linguagem de códigos e processos
1239
do jogo: portanto, é preciso que a multimodalidade faça o seu papel e
os sentidos construídos pelos códigos se transponham em som, texto e
imagem.
Essa renderização de sentidos em mais de uma forma, como vimos,
é o que caracteriza a multimodalidade. O foco no visual do videogame
é mais uma provocação do que uma hierarquização da imagem sobre as
demais formas de sentido, visto que, como já sabemos, atualmente, a
monomodalidade não se sustenta. Para Tomaszewska (2016), no entan-
to, é com a imagem que o reinado do texto escrito começa a ser contes-
tado. A presença da imagem como forma significativa na comunicação
tem sido potencializada com as novas tecnologias, conforme declara a
autora: “A transformação da sociedade moderna e a clara dominação do
visual sob a influência das imagens e mídias visuais causam um impacto
significante ao moldar a nossa vida” (TOMASZEWSKA, 2016, p. 33).
Essa revolução, na qual o escrito deixa de ser hierarquicamente pre-
dominante, é descrita como “a virada visual”, mas daí surge uma preo-
cupação, já expressa por Serafini (2012): estamos preparados para lidar
com esses artefatos visuais? Tomaszewska (2016) chama a atenção para
o fato de que as imagens contemporâneas (sejam elas estáticas, sequen-
ciais ou em movimento) são trabalhos de designers que adaptam seus
projetos para as necessidades de uma mensagem visual. Essa mensagem
é resultado de numerosas interações socioculturais e manipulações ar-
tísticas que muitas vezes impedem uma análise objetiva do conteúdo.
Dessa forma, é preciso uma reflexão mais abrangente das imagens, le-
vando-se em consideração muito mais do que é visível.
Essa discussão é essencialmente importante para uma análise de um
videogame, visto que, sendo uma mídia multimodal, seus elementos
são elaborados e interconectam-se para expressar sentidos. Assim, em
um jogo como God of War, por exemplo, os elementos visuais buscam
evocar religiões panteístas da antiguidade, especialmente da cultura gre-
ga. Visualmente, o jogo apresenta uma adesão à estética imortalizada
pelos artistas clássicos e certa assimilação da descrição visual mantida
nas tradições orais. Por esta razão, houve grande queixa entre jogadores
1240
quando a imagem do deus Thor foi revelada pela empresa produtora
dos videogames. A representação visual de Thor que tem estado em
voga é a idealizada pela Marvel Comics Universe, devido à profusão de
filmes e séries lançados. É essa imagem do deus nórdico e sua significa-
ção que predomina na atualidade, mas essa é apenas uma representação
criada por determinados artistas para atender a interesses das mídias:
inicialmente os quadrinhos e posteriormente o cinema. Lógico que,
com um pouco mais de reflexão, podemos chegar a algumas conclusões
do porquê de o Thor da Marvel Comics Universe ser jovem, loiro e mus-
culoso, enquanto a tradição oral o descreve como um homem forte de
meia-idade e com longas barbas vermelhas. Compreender como essas
imagens atendem a determinados interesses e como elas podem expres-
sar sentidos é uma competência necessária na contemporaneidade. A
ideia não é criticar e rechaçar as representações visuais quanto a sua
veracidade com o que se considera “real” ou “original”, mas compreen-
der sua razão de ser, os sentidos que elas expressam e como elas podem
estar a serviço de ideologias maliciosas, homogeneizantes e até mesmo
preconceituosas.
Nesse panorama, o letramento visual faz-se fundamentalmente ne-
cessário. Como mais uma faceta do multiletramento, o letramento vi-
sual é, de forma sumária, a capacidade para entender os conhecimentos
transmitidos visualmente. Ele permite expandir as habilidades de inter-
pretação de dados visuais, seus usos críticos e criativos ao mesmo tempo
que se ajustam aos padrões legais e éticos de seu uso (TOMASZEWSKA,
2016). Já a Association of College and Research Libraries (ACRL, 2011)
considera o letramento visual como o conjunto de habilidades que capa-
citam o indivíduo a encontrar, interpretar, avaliar, usar e criar imagens
e mídias visuais efetivamente. Assim como a definição de Tomaszewska
(2016), a definição da ACRL também leva em consideração os fatores
culturais, éticos, estéticos, intelectuais e técnicos na produção e no uso
de materiais visuais. Neste sentido, uma pessoa letrada visualmente é
“tanto um consumidor crítico de mídia visual, como um contribuinte
competente para o corpo de conhecimento e cultura compartilhados”
(ACRL, 2011, p. 1).
1241
No intuito de fomentar o desenvolvimento do letramento visual,
Yenawine (2017) desenvolveu uma estratégia simplificada conhecida
como Visual Thinking Strategies (estratégias de pensamento visual, do-
ravante VTS), cujo objetivo é explorar o conhecimento de mundo de
crianças e adolescentes, ajudá-los a se engajar na apreciação da imagem
visual e desenvolver uma observação crítica com base em evidências. O
VTS, como é comumente chamado nos Estados Unidos, é largamen-
te popular nas escolas de ensino básico e muito utilizado na maioria
dos museus que recebem visitas de estudantes. Interessante para nosso
trabalho com videogames é a proposta de Tomaszewska (2016), isto é,
de uma estratégia que explora a tríade: forma, conteúdo e ideia. Para a
autora, estes três elementos podem ser detalhados nas seguintes ações:
ver, aprender, interpretar, comunicar e compreender. Logo, o processo
de desenvolver e aprimorar o letramento visual perpassa pelas etapas
apresentadas no Quadro 1.
1242
4. Metodologia: convergindo abordagens para análise de
videogames
Conforme foi dito neste texto, o videogame tem sido explorado
enquanto objeto da ciência muito recentemente. No presente trabalho,
determinamos como objetivo: conceber formas de análise de videoga-
mes como recursos didáticos e assim fornecer aos docentes um instru-
mento metodológico para incentivar os estudantes a compreenderem
os sentidos presentes nos jogos, para além do que é visível. Para isso, foi
necessária a adoção de uma pesquisa qualitativa de cunho bibliográfico a
partir da seleção e comparação de duas abordagens científicas centradas
na multimodalidade e duas abordagens científicas centradas no letra-
mento visual, desenvolvidas entre 1990 e 2020. Embora existam várias
posturas que tentam dar conta da multimodalidade, optamos pelo tra-
balho pioneiro de Kress e Van Leeuwen (2001) e pelo trabalho inovador
de Cope e Kalantzis (2020) sobre o desenvolvimento de uma gramática
da multimodalidade. A respeito das ideias adotadas sobre letramento
visual, selecionamos a postura detalhada e atualizada de Tomaszewska
(2016) e o VTS de Yenawine (2017). Em relação à interação entre vi-
deogames e educação concordamos com as ideias de Gee (2008).
É preciso compreender que tanto a multimodalidade quanto
o letramento visual são perspectivas que se ajustam acertadamente
para uma análise de um videogame. Isto se deve ao fato de, como
mencionado, o videogame ser uma mídia contemporânea em constante
atualização e que envolve diversos modos de sentido (imagem, texto,
som etc.). A atenção inicial nos videogames, contudo, é no visual, que
em grande parte proporciona a movimentação dos sentidos entre as
demais formas de sentido. Este movimento é característica basilar das
concepções de multimodalidade. As ideias de Kress e Van Leeuwen
(2001) sobre multimodalidade concentram-se nos seguintes aspectos
(stratum):
1243
Quadro 2 – Descrição dos strata
1244
gramática de Cope e Kalantzis (2020) abandona a característica norma-
tiva e prescritiva que comumente é associada ao termo; assim, a gramá-
tica da multimodalidade ou gramática transposicional (como os autores
a chamam) é, antes de tudo, um estudo dos padrões de similitude e dife-
renciação na construção dos sentidos. Nas palavras deles, esta gramática
é “a filosofia dos sentidos comuns” (COPE; KALANTZIS, 2020, p.
13). A ideia central da gramática transposicional é que as sete formas
de sentido (texto, imagem, objeto, corpo, espaço, som e fala) apoiam a
representação e a comunicação. Para os autores, essas sete formas mate-
rializam nossos pensamentos ou os recursos para o nosso pensamento,
por isso são tipos de ação e de trabalho físico ou mental. É possível
vislumbrar a multimodalidade nos videogames partindo desta perspec-
tiva. Enquanto mídia cujos sentidos nascem de códigos computacionais
ininteligíveis para os jogadores, o jogo transpõe-se na tela de forma mul-
timodal. Os sentidos são representados por texto, imagem e som, mas,
quando associamos a isso a ideia de simulação de um mundo real, o jogo
também transpõe sentidos no espaço, nos objetos, no corpo e na fala.
Percebe-se que a proposta, pelo menos, aponta onde os sentidos
estão e destacam que eles não existem apenas de forma monomodal.
Por conseguinte, Cope e Kalantzis (2020) demonstram como podemos
expressar e compreender os sentidos por meio de suas funções: referên-
cia, agência, estrutura, contexto e interesse. Analisar sentidos dentro de
uma perspectiva da gramática da multimodalidade envolve, de forma
resumida, as seguintes questões:
1245
um ponto de ônibus ou um videogame. Os autores asseveram que qual-
quer “coisa” que possua um sentido se expressa em todas essas funções,
podendo haver atenção maior para uma ou outra. Este fato é evidente
em um videogame que possui e faz referências; potencializa a agência
dos jogadores, dos desenvolvedores ou até mesmo dos grupos repre-
sentados nos jogos; é construído com base em processos computacio-
nais que simulam estruturas da realidade; sempre se relacionam com
sentidos ao redor dele, ou seja, a outros jogos, a fatos históricos ou a
realidades individuais e, evidentemente, possui um interesse agregado:
econômico, educativo, crítico, ambiental etc.
A amplitude da proposta de Cope e Kalantzis (2020) consegue
englobar até mesmo as estratégias desenhadas dentro de perspectivas
de letramento visual. Comparando as perguntas motivadoras propos-
tas por Tomaszewska (2016) e as que são desenvolvidas na gramática
transposicional, evidencia-se claramente uma convergência (Quadro 4).
1246
compreender as intenções existentes (explícita ou implicitamente) em
algum artefato de sentido. A crítica, porém, requer um pouco mais de
agência já que quem critica traz à tona seu conhecimento de mundo e
sua formação sociocultural.
Já a proposição de Yenawine (2017) configurada pela estratégia de
pensamento visual (VTS, sigla em inglês) é composta de três perguntas
que buscam explorar e ao mesmo tempo incentivar o letramento visual.
Partindo de pesquisas abrangentes sobre as experiências que as pessoas
tinham ao visitar museus e interagir com imagens visuais, nasceram as
três questões, que são feitas aos estudantes (ou qualquer pessoa a quem
se deseje aplicar o método) diante de uma imagem visual:
1247
preceitos propondo uma interação e uma ancoragem entre elas. Isto
porque, embora sejam convergentes, elas foram construídas epistemo-
logicamente de forma diferente.
Em se tratando especificamente de videogame e nossa proposta
com este trabalho, o Quadro 7 reúne as questões necessárias para que
se analisem essa mídia de forma a explorar sua multimodalidade e o
letramento visual:
1248
O Quadro 7, longe de ser uma estrutura definitiva, apresenta uma
proposta inicial para a análise de jogos eletrônicos como possíveis recursos
de aprendizagem. Acreditamos que, ao utilizar esta forma de análise, po-
dem-se extrair do videogame os sentidos atribuídos a ele em seu processo
de construção sociocultural, o que também não deixa de incluir aspectos
políticos, filosóficos e científicos. Um docente, ao utilizar o quadro, pode
enfatizar uma das funções do sentido e discuti-las com os estudantes em
sala de aula; ademais, não é preciso que o estudante/jogador se preocupe
com esse quadro como um exercício de fixação enquanto joga o videoga-
me. Pelo contrário, esse quadro apresenta uma orientação de como um
docente pode explorar um jogo diante da necessidade de abordar essa
mídia em sala de aula. Ainda, pressupondo a potencialidade dos jogos
na construção de sentidos e a popularidade deles entre os estudantes, a
proposição de diretrizes para contemplar um diálogo construtivo sobre o
videogame, entre professor e aluno, é, de fato, necessária.
5. Considerações finais
A proposta delineada neste trabalho procura facilitar o uso de vide-
ogames como recurso para o ensino e o aprendizado fornecendo as ba-
ses para discussões sobre os sentidos veiculados na referida mídia. Dessa
forma, buscamos tratar da carência de orientações de como discutir
videogames em sala de aula, sem recair em ideias preconcebidas de que
o jogo eletrônico não possui valor cultural na nossa sociedade. Aliás,
essa visão deturpada acaba por ignorar um dos aspectos mais importan-
tes da contemporaneidade: a multimodalidade que tem se fortalecido
com o advento de novas tecnologias digitais. Portanto, desconsiderar a
relevância dos diversos modos de produção de sentido, especialmente
os multimodais, é uma atitude incauta de qualquer pessoa que queira
entender, valorizar e aperfeiçoar a maneira pela qual interagimos com o
mundo, especialmente por meio da educação.
Enfim, vale ressaltar que este quadro ainda precisa passar por uma
utilização sistemática por docentes e assim levantar questões críticas que
podem tanto validar a utilização do quadro de análise de jogos quanto
demonstrar a necessidade de aprimorá-lo.
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Este livro foi composto em Adobe Garamond
sob os cuidados da Editora Radiadora
em janeiro de 2024.