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Linguistica Aplicada LIVRO Versão Final - 04!04!24

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Editora Radiadora

Av. Jovita Feitosa, 3255, Parquelândia


Fortaleza, Ceará, CEP: 60.455-410
+ 55 85 999442220
@editora_radiadora
radiadora@gmail.com
www.radiadora.com.br
Antonia Dilamar Araújo
Hylo Leal Pereira
Denise Teixeira Marques
Ana Karine Souza
(Orgs.)

LINGUÍSTICA APLICADA NA
CONTEMPORANEIDADE
Linguagem e sociedade em tempos
pandêmicos

Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB)

Anais do 13º Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada


6 a 11 de novembro de 2022

Fortaleza, 2024
Título: Linguística Aplicada na Contemporaneidade – linguagem e sociedade em
tempos pandêmicos
Organizadores: Antonia Dilamar Araújo
Hylo Leal Pereira
Denise Teixeira Marques
Ana Karine Souza

© Organizadores e autores, 2024


© Editora Radiadora, 2024

Conselho Editorial Acadêmico


Claudiana Nogueira de Alencar
Denise Almeida de Andrade
Diltino Livramento Moniz Ferreira
Pedro Rafael Malveira Deocleciano
Roberta Laena Costa Jucá

Coordenação editorial: Alan Mendonça [Editora Radiadora]


Projeto gráfico: Léo de Oliveira
Concepção de capa: Léo de Oliveira e Alan Mendonça
Imagem de capa: Eder H. Martins
Revisão: Organizadores e autores
Diretoria da Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB)
Gestão 2020-2022

Claudiana Nogueira de Alencar


Presidenta

Glenda Cristina Valim de Melo


Vice-presidente

Antonia Dilamar Araújo


1ª Secretária

Branca Falabella Fabrício


2ª secretária

Nukácia Meyre Silva Araújo


Tesoureira
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 17
1 A TENSÃO NO GÊNERO DRAMÁTICO: A ESTILÍSTICA 19
SOCIOLÓGICA NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA
Ádria Araújo Costa Godinho
Cristiane Dominiqui Vieira Burlamaqui
2 A BRANQUITUDE COMO CATEGORIA TEÓRICA E 41
ANALÍTICA NOS ESTUDOS DA LINGUAGEM: MAPEANDO
PESQUISAS REALIZADAS ENTRE 2009 e 2021
Adriana dos Santos Pereira
3 CONSTRUINDO UM MODELO DIDÁTICO PARA O ENSINO 57
DO GÊNERO CONTO
Alana Cerqueira Paranhos Capitó
Gustavo Lima
4 BILETRAMENTO E PRÁTICAS SOCIAIS: UMA 76
INVESTIGAÇÃO SOBRE MÉTODOS, MATERIAIS
DIDÁTICOS E INCLUSÃO
Aline Aquino Vieira
5 RELATOS DE EXPERIÊNCIA NO PIBIC COM O GÊNERO 92
JORNAL: A ABORDAGEM DIALÓGICA NA AULA DE
PORTUGUÊS
Aline Caroline Castro de Castro
Ana Paula Santos Pimentel
Cristiane Dominiqui Vieira Burlamaqui
6 CERZINDO TRAMAS E TEXTURAS: RESSIGNIFICAÇÕES 112
DE CONSTRUÇÃO DE SABERES E MEMÓRIAS EXPRESSOS
NOS TECIDOS ANDINOS FEITOS POR MULHERES
Ana Carla Barros Sobreira
7 ANALISANDO E DESCREVENDO RECURSOS DE CALL EM 129
LÍNGUA INGLESA NO ENSINO SUPERIOR:
OS CONTEXTOS DE PANDEMIA
Francisca Alyne Alves da Silva
Ana Cristina Cunha da Silva
8 AS EMOÇÕES COMO FORÇA MOTRIZ DE PROCESSOS 147
CRÍTICO-REFLEXIVOS NA FORMAÇÃO INICIAL E
CONTINUADA
Atos Edwin Pereira da Silva Lucas
Vitor Azevedo Abou Mourad
9 PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA DE GÊNEROS 157
ACADÊMICOS NO MESTRADO: A FORMAÇÃO DO
PROFESSOR PESQUISADOR
Beatriz Fernanda Fortunato
10 A ALTERAÇÃO DO VOLUME DE VOZ NA 179
FALA-EM-INTERAÇÃO EM SALA DE AULA
Blenda Lima dos Santos
Roberto Perobelli
11 POLITIZAÇÃO DA PANDEMIA: REPRESENTAÇÕES 199
DISCURSIVAS NAS REDES SOCIAIS
Caetano Silva Santos Viana Feitor
Cleverton Henrique Porificação dos Santos
Matheus Barreto de Mello
Cristiane Carvalho de Paula Brito
12 INTERNACIONALIZAÇÃO NO ENSINO SUPERIOR, 219
POLÍTICA LINGUÍSTICA E PLANEJAMENTO LINGUÍSTICO
Camila Hofling
Elaine Maria Santos
13 DIMENSÕES LEXICAIS DO TWITTER NAS 237
MANIFESTAÇÕES DE 7 E 12 DE SETEMBRO DE 2021
Aline A. Zamboni Milanez
Carlos Henrique Kauffmann
Maria Claudia Nunes Delfino
Patricia Pereira Bertoli
Tamires Dártora
14 INTERAÇÃO E AUTONOMIA EM MEIO REMOTO NA 256
APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA: O QUE
APRENDEMOS COM A DISTÂNCIA FÍSICA DURANTE A
PANDEMIA?
Carolina Morais Ribeiro da Silva
15 AÇÕES E IMPLEMENTAÇÕES PARA O DESEMPENHO ORAL 274
DA LÍNGUA INGLESA EM CONTEXTOS ACADÊMICOS
Catherine Echkardth da Silva
Gysele da Silva Colombo Gomes
16 RETRADUÇÃO COMO ATUALIZAÇÃO: O CASO ORWELL 288
Cynthia Beatrice Costa
17 ESTUDOS SOBRE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE 306
ÉTNICO-RACIAL NO TEMPO E NA MEMÓRIA
Daniane Rafaela de Oliveira
18 LETRAMENTO E MULTIMODALIDADE DO LIVRO 320
LITERÁRIO INFANTIL NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR
MEDIADOR DE LEITURA
Denise Giarola Maia
19 POSTURAS AFETIVAS EM CENÁRIO DE ATENDIMENTO 336
PEDAGÓGICO: A PRODUÇÃO DE AÇÕES AFILIATIVAS
APÓS A OCORRÊNCIA DO CHORO NA INTERAÇÃO
Deyvid Petri Ceccon
Carina Santos Lamas Couto
Igor José Sousa Mascarenhas
20 O QUE O(A)S PROFESSORE(A)S SENTEM QUANDO 349
ENSINAM A DISTÂNCIA? AFETIVIDADES, IDENTIDADES
E IDEOLOGIAS EM NARRATIVAS SOBRE O ENSINO DE
LÍNGUA INGLESA
Diogo Oliveira do Espírito Santo
Rafaela Santos de Souza
21 ENSINO-APRENDIZAGEM ON-LINE EM TEMPOS DE 369
COVID-19: EXPERIÊNCIAS EM AULAS DE GRADUAÇÃO E
DE PÓS-GRADUAÇÃO
Douglas Altamiro Consolo
22 ENSINO DE LÍNGUA INGLESA PARA ALUNOS COM 388
DEFICIÊNCIA VISUAL NA PERSPECTIVA DO LETRAMENTO
CRÌTICO E DOS MULTILETRAMENTOS
Douglas Edson de Araújo Ribeiro
23 NARRATIVAS DOS HOMENS INFAMES: REPRESENTAÇÕES 408
DE UM MIGRANTE CUJA VIDA NÃO “MERECIA” SER
VIVIDA
Eliane Righi de Andrade
24 CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO DA ARGUMENTAÇÃO 426
NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NUMA
CONCEPÇÃO EMANCIPADORA
Elionai Mendes Silva
Renata da Silva Posso
26 REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE INGLÊS NO EJA SOB 440
A PERSPECTIVA DA TEORIA SOCIOCULTURAL E DO
LETRAMENTO CRÍTICO
Emerson de Sousa Pereira Pessoa
Elizabete de Souza Lima
27 HATERS RACISTAS: UM ESTUDO SOB O OLHAR DA 459
ANÁLISE DE DISCURSO E DO LETRAMENTO CRÍTICO
COM ALUNOS DO ENSINO MÉDIO
Fabrício Oliveira Nobre
Beatriz Gama Rodrigues
28 A FASE DA PRÉ-TAREFA E O SEU PAPEL DENTRO DO 475
PLANEJAMENTO BASEADO EM TAREFAS
Fernanda Goulart
Rita Barbirato
29 PROTÓTIPOS DIGITAIS ERGÓDICOS SOB O VIÉS DOS 491
MULTILETRAMENTOS
Fernanda Victória Cruz Adegas
Vinicius Oliveira de Oliveira
30 A PROPOSTA DE INTERVENÇÃO SOCIAL NO GÊNERO 510
REDAÇÃO DO ENEM
Filipe Emanuel Da silva Henriques
Adilson Ribeiro de Oliveira
Denise Giarola Maia
31 EXPERIÊNCIAS INSPIRADORAS DE ENSINO E 530
APRENDIZAGEM DE INGLÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Gabriela da Cunha Barbosa Saldanha
32 GÊNERO MULTIMODAL TIRINHAS NO LIVRO DIDÁTICO 545
DE PORTUGUÊS DO 6º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL
Geane do Socorro Rovere Pinheiro
Fernanda Rocha Bonfim
33 LETRAMENTOS E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: 564
ARTEFATO MULTIMODAL NO CONTEXTO DO ENSINO
EMERGENCIAL REMOTO
Ilza Léia Ramos Arouche
34 A METHODOLOGICAL PATHWAY TOWARDS LANGUAGE 584
STUDY IN DOUGLAS BIBER AND KEN HYLAND’S
ACADEMIC REGISTERS
Janailton Mick Vitor da Silva
Deise Prina Dutra
35 BUILDING LANGUAGE STYLE THROUGH COLLOCATIONS 597
AND STANCE MARKERS: A CASE STUDY IN APPLIED
LINGUISTICS ARTICLES
Janailton Mick Vitor da Silva
Deise Prina Dutra
36 O DESENVOLVIMENTO DO INGLÊS POR CRIANÇAS: PARA 617
ALÉM DO LINGUÍSTICO
Joceli Rocha Lima
Felipe Flores Kupske
37 CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO EM FAIXAS DE PROFICIÊNCIA 637
NA PRODUÇÃO ESCRITA DE PROFESSORES DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA
José Ricardo de Oliveira Cunha
38 OS VÍDEOS CURTOS DAS REDES SOCIAIS IMPACTANDO 657
O APRENDIZADO DO PROCESSO ANAFÓRICO EM LIBRAS
NO PERÍODO PANDÊMICO
Josue Shimabuko da Silveira Júnior
39 EM BUSCA DE UM NOVO MODELO DE MATERIAL 672
DIGITAL: O PERCURSO GAMER
Juliana Vegas Chinaglia
40 ORALIDADE NA EDUCAÇÃO BÁSICA PARA OS ANOS 693
INICIAIS: ENTRE OS PCN E A BNCC
Leandro de Amaro Rodrigues
Maíra Sueco Maegava Córdula
41 ANÁLISE SEMIÓTICA SOCIAL E MULTIMODAL DAS 716
OBRAS DA “ESTANTE DIGITAL” DO PROGRAMA “LEIA
PARA UMA CRIANÇA”
Letícia Stefane Cunha Castro
Denise Giarola Maia
42 INTERSECÇÃO ENTRE RAÇA E GÊNERO NA ATUAÇÃO 737
DAS TRADUTORAS E INTÉRPRETES DE LIBRAS/LÍNGUA
PORTUGUESA NEGRAS
Luana Isabel Gonçalves de Lima
Kassandra da Silva Muniz
43 LEITURA E ESCRITA NA CULTURA ACADÊMICA: AS 756
EXPERIÊNCIAS DO PROJETO EXTENSIONISTA LPT
ACADÊMICO
Luanne Beatriz Fialho de Carvalho
Guilherme Reis de Souza Silva Ferreira
José Ribamar Lopes Batista Júnior
44 O ISF-INGLÊS E A INTERNACIONALIZAÇÃO EM MEIO AO 768
ENSINO REMOTO NA UFS
Lucas Natan Alves dos Santos
Rodrigo Belfort Gomes
45 O LUGAR DAS PRÁTICAS LETRADAS DE ARGUMENTAÇÃO 784
NA BNCC: CONTRADIÇÕES E POTENCIALIDADES
Luciano Novaes Vidon
46 AVALIAÇÃO EM LEITURA ENQUANTO INSTRUMENTO DE 805
POLÍTICA LINGUÍSTICA: REFLEXÕES NO ÂMBITO DO
ENSINO FUNDAMENTAL
Marcela Moura Torres Paim
Wagner Barros Teixeira
47 AS INTERSECCIONALIDADES E(M) ETHÉ DE VIRILIDADE: 820
UMA ANÁLISE DISCURSIVA DE DUAS CENAS DA
PROSTITUIÇÃO MASCULINA BRASILEIRA
Marcos da Silva Cruz
48 PRÁTICAS POLÍTICAS EMERGENTES DE 841
RESSIGNIFICAÇÃO DA NEGRITUDE - UM ESTUDO SOBRE
PERFORMATIVIDADE A PARTIR DAS LETRAS DE EMICIDA
Maria Clara Schaeffer de Souza
49 REFLEXÕES SOBRE O PORTUGUÊS FALADO POR 859
POVOS INDÍGENAS: CONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA
APLICADA
Maria Gorete Neto
50 RESSIGNIFICAÇÃO E RESISTÊNCIA NO SINTAGMA 873
“DISTANCIAMENTO SOCIAL”: UMA ANÁLISE DISCURSIVA
SOBRE A LUTA PELOS SENTIDOS EM TEMPOS DE
COVID-19 NO BRASIL
Mariana Jantasch de Souza
Naiara Souza da Silva
51 UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO DO SOM [ɫ] EM FALAS 887
DE LICENCIANDOS EM LETRAS: IMPLICAÇÕES PARA O
TESTE ORAL DO EPPLE E PARA A PROFICIÊNCIA ORAL
DO PROFESSOR DE LÍNGUA INGLESA NO CONTEXTO
BRASILEIRO
Mariana Melo Cialdini
52 PRÁTICAS DE LINGUAGEM DOS ESTUDANTES DE 902
PEDAGOGIA EM AULAS VIRTUAIS
Mário Ribeiro Morais
53 EXPERIÊNCIAS LEITORAS DE GRADUANDOS DE 926
CIÊNCIAS SOCIAIS
Miriam Martinez Guerra
54 A CONSTRUÇÃO DE MURAIS DIGITAIS EM PRÁTICAS DE 945
LEITURA DE “QUARTO DE DESPEJO”: UMA ANÁLISE NA
PERSPECTIVA INTERCULTURAL E DECOLONIAL À LUZ
DOS MULTILETRAMENTOS
Naiara Chaves de Carvalho
Layse Oliveira Ferreira Marques
55 “E SE FOSSE VOCÊ?”: UMA ANÁLISE DE REPRESENTAÇÕES 965
IMAGÉTICAS SOBRE IMIGRAÇÃO À LUZ DA
MULTIMODALIDADE E DOS MULTILETRAMENTOS
Naiara Gomes Lamarão
56 OS CAMINHOS DE UM CONCEITO ACADÊMICO: O 980
MARCO LEGAL DOS MULTILETRAMENTOS NOS PLANOS
NORMATIVOS E NAS PRÁTICAS DISCURSIVAS DE
EXTENSÃO ACADÊMICA NO BRASIL
Patrícia Pinho Andrade
57 DIFICULDADES, POSSIBILIDADES E REFLEXÕES DE UMA 995
PROFESSORA DE INGLÊS ACERCA DO ENSINO REMOTO
EMERGENCIAL NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Raiane F. Sombra Pires de Campos
58 VENDO O MUNDO ATRAVÉS DO “OLHAR DE SARINHA”: 1009
UM RELATO DE EXPERIÊNCIA DE UMA PROFESSORA DE
INGLÊS
Raquel Siqueira Buonocore
Cyntia Bailer
59 LETRAMENTO IDEOLÓGICO E AÇÃO DIALÓGICA EM 1021
CÍRCULO DE LEITURA NO ENSINO BÁSICO
Reinaldo da Silva Kreppke
60 LETRAMENTO E ENSINO DA ARGUMENTAÇÃO: UMA 1042
EXPERIÊNCIA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Renata da Silva Posso
Isabel Cristina Michelon de Azevedo
61 DO PROGRAMA ISF À REDE ISF: ENSINO, 1061
INTERNACIONALIZAÇÃO E FORMAÇÃO DE
PROFESSORES NO NUCLI-UFS DE INGLÊS
Rodrigo Belfort Gomes
Elaine Maria Santos
62 IDENTIDADE FRACTALIZADA DE DOCENTES DE 1075
LÍNGUAS EM FORMAÇÃO: UM RECORTE EPISTÊMICO-
METODOLÓGICO
Rosyanne Louise Autran Lourenço
63 LEITURA E LEITOR COMPETENTE: SIGNIFICADOS 1089
REPRESENTACIONAIS ATRIBUÍDOS POR ESTUDANTES
BRASILEIROS
Rosyanne Louise Autran Lourenço
Edgleuba de Carvalho Queiroz de Andrade
64 A LEITURA-ESCRITA PARA O PROJETO DE PESQUISA: 1103
NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS DE MESTRANDAS
Samanta Henriques Pinto
Yasmin Pereira de Oliveira
Jéssica do Nascimento Rodrigues
65 REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA 1119
O ENSINO E APRENDIZAGEM DE INGLÊS NO PERÍODO
PRÉ E PÓS-PANDEMIA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
Sandra Mari Kaneko-Marques
66 STORYTELLING E GAMIFICAÇÃO: RELATO DE 1137
UMA EXPERIÊNCIA NOS ANOS FINAIS DO ENSINO
FUNDAMENTAL
Tatiana Ramalho
67 LETRAMENTOS CRÍTICOS NA ARENA PEDAGÓGICA 1151
DE INGLÊS PARA FINS ACADÊMICOS: NOTAS SOBRE
UM MATERIAL DIDÁTICO DO CURSO INGLÊS PARA
GRADUANDOS (UFRJ)
Thais de Melo Sampaio
Gabriel Lucas Martins
Matheus Lage Nogueira da Silva
68 O MATERIAL DIDÁTICO DIGITAL EM LÍNGUA 1174
ESPANHOLA COMO LA COMO VIÉS PARA A FORMAÇÃO
LINGUÍSTICA DOCENTE
Valéria Jane Siqueira Loureiro
69 (DES)CONSTRUINDO PRÍNCIPES E PRINCESAS: A 1192
LEITURA MULTIMODAL DE TEXTOS MULTISSEMIÓTICOS
SOB UMA PERSPECTIVA CRÍTICA DE ENSINO DE LÌNGUA
INGLESA
Veronica Pereira Coutinho Constanty
Maura Bernardon

70 “AQUI O MENINO USA SAIA MESMO?”: A CIRCULAÇÃO 1212


DISCURSIVA DO FIM DO BINARISMO DE GÊNERO NOS
UNIFORMES DE UMA ESCOLA
Victor Brandão Schultz

71 O POTENCIAL DOS JOGOS ELETRÔNICOS COMO 1231


RECURSO PARA ENSINO E APRENDIZAGEM
Viktor Ernesto Silveira Silva
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

APRESEN TAÇ Ã O

Desde a instalação do primeiro programa de pós-graduação em


1970 até os dias atuais, a Linguística Aplicada no Brasil tem crescido
bastante. Abrangendo inicialmente questões como a aplicação da lin-
guística ao ensino de línguas, com a sua evolução, tem buscado romper
as fronteiras epistêmicas, bem como mudado seus interesses e foco para
envolver questões relacionadas à linguagem da vida real antes inimagi-
náveis, passando a ser considerada Linguística Aplicada indisciplinar
(Moita Lopes, 2006) ou interdisciplinar e transgressiva (Pennycook,
2006).
Ao completar 32 anos (1990-2022) e com o intuito de dar visibi-
lidade nacional para as pesquisas em Linguística Aplicada, a Associação
de Linguística Aplicada do Brasil realizou o 13º Congresso Brasileiro
de Linguística Aplicada – 13º CBLA, tendo por tema Linguagem-e-
sociedade em tempos pandêmicos, no período de 06 a 11 de novembro
de 2022, na modalidade presencial e on-line, na Universidade Estadual
do Ceará.
Após dois anos difíceis da pandemia de Covid-19, que afetou toda
a sociedade brasileira e mundial, em especial o setor educacional, no
13º CBLA discutiu-se pesquisas e produções científicas desenvolvidas
ao longo desse período nos diversos campos da Linguística Aplicada,
promovendo intercâmbio de conhecimentos e saberes entre pesquisa-
doras/es, professoras/es e profissionais interessadas/es/os na área.
Dos trabalhos apresentados na modalidade de comunicação oral no
CBLA resultou este volume que se constitui de 71 artigos de autoria de
linguistas aplicados das diferentes regiões do Brasil e compreende pes-
quisas sobre os mais variados eixos temáticos como letramentos e mul-
tiletramentos, formação de professores de línguas, práticas educacionais de
línguas e literatura, gêneros discursivos, relações étnico-raciais, de gênero e
sexualidade, discursos midiáticos, políticas e ideologias linguísticas, tradu-
ção e interpretação, tecnologias digitais e linguagem, artes e literaturas em

17
LA, afetos e emoções em LA, acessibilidade em LA, materiais didáticos de
línguas, aquisição de linguagem, trabalho docente em LA, saúde e LA, e
estudos da periferia e LA. Dessa forma, os artigos deste volume, inseridos
na LA Indisciplinar, tratam de questões atuais vinculadas à linguagem
sempre orientadas para a prática social situada, em que o fazer científico
compromete-se com as questões sociais.
Convidamos, portanto, os leitores a apreciarem as pesquisas cons-
tantes neste rico volume para conhecerem as temáticas, os novos enfo-
ques e metodologias que envolvem o ensino e aprendizagem de línguas,
bem como as demais pesquisas na área.

Antonia Dilamar Araújo


Hylo Leal Pereira
Denise Teixeira Marques
Ana Karine Souza
Organizadores/as

18
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

A TENSÃO NO GÊNERO DRAMÁTICO: A


ESTILÍSTICA SOCIOLÓGICA NO ENSINO DE
LÍNGUA PORTUGUESA

Ádria Araújo Costa Godinho (UEPA - Universidade do Estado do Pará)


Cristiane Dominiqui Vieira Burlamaqui (SEDUC_PA)

RESUMO: Apresentamos aqui os resultados da pesquisa realizada durante


o PIBIC, com alunos do 6º ano do ensino fundamental anos finais de
uma escola pública de Belém do Pará, o objetivo das atividades propostas
foi explorar aspectos estilísticos do texto dramático nas aulas de Língua
Portuguesa. Como referencial teórico-metodológico, optamos pela abordagem
dialógica do discurso, especificamente as reflexões de Bakhtin (1992; 2013) e
de Volóchinov (2019) sobre as concepções de gênero do discurso e estilística
sociológica. A pesquisa participativa, constituída pela observação inicial e
a intervenção didático-pedagógica, voltou-se à leitura e à produção textual
dos estudantes. As atividades desenvolvidas se deram, inicialmente, por meio
da leitura e comparação entre gêneros discursivos em circulação no campo
artístico-literário; na etapa seguinte, focou-se nos aspectos estilísticos que
convergiam e distinguiam textos narrativos de textos dramáticos para, ao final,
os estudantes produzirem uma pequena adaptação do gênero narrativo para o
dramático. A análise comparativa entre os diferentes gêneros discursivos, com
base em uma estilística sociológica, fez emergir a necessidade de explorar a
indissociabilidade entre a forma, o estilo e o conteúdo na produção de sentido
com a linguagem na esfera literária. As respostas dadas, pelos estudantes, a
cada etapa da intervenção didático-pedagógica, evidenciaram estilos na escrita
pautados nos diferentes gêneros e suas formas de dialogar com a realidade para
produção do conteúdo, e a percepção de seus interlocutores e do contexto em
sua volta para a composição textual.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero dramático; Estilística sociológica; Ensino de
Português; PIBIC.

ABSTRACT: We present here the results of the research carried out during the
Institutional Scientific Initiation Scholarship Program (ISISP), with students
from the 6th year of elementary school, the finalyears of a public school in the
city of Belém, State of Pará, the goal of the proposed activities was to explore
stylistic aspects of the dramatic text in Portuguese Language classes. As a

19
theoretical-methodological benchmark, we opted for the dialogic approach to
discourse, specifically the reflections of Bakhtin (1992; 2013) and Voloshinov
(2019) about the conceptions of discourse genre and sociological stylistics.
The participatory research, constituted by the initial observation and the
didactic-pedagogical intervention, turned to the students’ reading and textual
production. The activities developed took place, initially, through reading
and comparison between discursive genres incirculation in the artistic-literary
field; in the next stage, it focused on the stylistic aspects that converged and
distinguished narrative texts from dramatic texts so that, in the end, the
students produced a small adaptation from the narrative to the dramatic genre.
The comparative analysis between the different discursive genres, based on
a sociological stylistics, raised the need to explore the inseparability between
form, style and content in the production of meaning with language in the
literary sphere. The answers given by the students at each stage of the didactic-
pedagogical intervention showed writing styles based on different genres and
their ways of dialoguing with reality for the production of content, and the
perception of their interlocutors and the context around themselves for the
textual composition.
KEYWORDS: Dramatic genre; Sociological stylistic; Portuguese teaching;
ISISP.

Introdução
Apresentamos aqui os resultados de atividades didáticas realizadas
durante o projeto PIBIC1, desenvolvido com alunos do 6º ano do en-
sino fundamental anos finais, com o objetivo de trabalhar os aspectos
estilísticos em textos teatrais, que compartilham comumente com o
narrativo, durante as aulas de Língua Portuguesa (LP).
Os desafios enfrentados por professores e estudantes durante a pan-
demia da Covid 19, sobretudo nas escolas públicas brasileiras, tornaram
urgente a reflexão sobre como seria o retorno das atividades presenciais,

1
Projeto PIBIC “Ler e escrever nas escolas de Belém: abordagem dialógica da
linguagem no entrelugar das margens”, orientado pela profa. Dra. Cristiane Do-
miniqui Vieira Burlamaqui, desenvolvido no âmbito da Universidade do Estado
do Pará (UEPA), com apoio financeiro da Fundação Amazônia de Amparo a
Estudos e Pesquisas (FAPESPA), aprovado no Edital nº 020/2021-UEPA.

20
após um ano e meio de ensino remoto em que a grande maioria dos
alunos não tinha acesso às tecnologias digitais e o trabalho dos profes-
sores acabaram limitando-se aos cadernos de conteúdos, atividades e às
interações pelo aplicativo WhatsApp. Na escola em que foi desenvolvi-
do o projeto, foram sendo detectadas lacunas na formação escolar dos
estudantes, em especial no processo de aprendizagem da leitura e da
produção escrita.
Em uma turma do 6º ano do ensino fundamental anos finais, depa-
ramo-nos com estudantes com sérios déficits de leitura e da escrita, com
a escola pública em condições precárias e o livro didático como único
recurso às aulas de Língua Portuguesa. O cenário que as bolsistas e as
voluntárias do projeto PIBIC encontraram precisava de atitudes reflexi-
vas e estratégias pedagógicas que envolvessem os estudantes dialogando
sobre questões de seu interesse e, ainda, a possibilidade de fazê-los par-
ticipar das atividades de forma mais ativa.
O texto narrativo tem como característica um compilado de pro-
priedades de naturezas diversas que exigem do leitor restituir as relações
entre as formas do gênero, a materialidade linguística e o conteúdo na
produção dos sentidos associados à vida, isto é, aos aspectos extralin-
guísticos. Um diálogo que se estende sobre a cultura como fenômeno
sócio-histórico e a linguagem como forma material produto da intera-
ção social (VOLÓCHINOV, 2019 [1926]).
Viola Spolin (1979) e Garcia e Pires (2021) problematizam a in-
serção da linguagem teatral no ambiente escolar, apresentando meto-
dologias e orientações teóricas que dão corpo às argumentações sobre a
linguagem dramática e o teatro no ambiente escolar como meio de dar
vivacidade ao texto e envolver os estudantes em jogos dramáticos.
Diante de tais proposições, emergiu a questão desse estudo: como
poderia o trabalho com o gênero dramático aproximar arte e vida nas
aulas de português?
A fim de expor o percurso de investigação, este estudo se organizou
em cinco seções.A primeira seção, intitulada O gênero dramático na esco-
la: a linguagem dramática e o ensinode português, apresenta os aspectos do

21
gênero dramático e do teatro como recursos no ensino-aprendizado de
língua portuguesa. Na segunda seção, Estilística sociológica e gênero dis-
cursivo no ensino de língua materna, discorre-se sobre dois conceitos basi-
lares da teoria dialógica que fundamentam teórico-metodologicamente
esse estudo. A terceira seção, A experimentação da Sequência Didática
como metodologia, mostra os aspectos metodológicos da pesquisa de
campo, o lócus, os sujeitos que participaram da pesquisa e a sequência
didáticausada na organização das atividades e na produção escrita dos es-
tudantes. A quarta parte, A produção escrita dos estudantes, discorre sobre
os aspectos linguísticos-discursivos da escritados estudantes do 6° ano.
Por fim, nas Considerações Finais, retoma-se às ponderações apre-
sentadas ao longo das seções a fim de construir uma reflexão sobre o
que os gêneros narrativo e dramático podem proporcionar ao ensino de
Língua Portuguesa.

1. O gênero dramático na escola: a linguagem dramática e o


ensino de português
Atualmente, quando se fala em texto épico, por conta do seu passado
histórico, trata-se do escrito em versos (epopeias) e quando é escrito em
prosa, chama-se narrativo, mas todos os dois fazem parte da tipologia
narração (CARDOSO FILHO, 2011). Aristóteles, em Poética (1990),
apresentou a tripartição dos gêneros literários: épico, lírico e dramático,
consequentemente os distinguiu, caracterizando-os com seus próprios
traços inerentes. Apesardessa nova separação, é possível perceber alguns
traços compartilhados entre um e outro, como é o caso do texto narrati-
vo e do dramático. Nessa perspectiva, eles possibilitam a transformação
de um em outro (adaptação), sem perder o sentido geral da obra, mas
cada um modificando-a a partir das adequações estilísticas dos gêneros.
A apropriação do texto narrativo e do dramático pela esfera edu-
cacional é até hoje utilizada como material didático-pedagógico, viabi-
lizando a inserção da dramaturgia no cotidiano escolar. Outros aspec-
tos serão detalhados mais à frente como resultado do diálogo com os
autores.

22
O gênero dramático, surgido no século VI a.C, reapresenta os mo-
dos de vida, os interesses de grupos em disputa, os costumes, as tensões
sociais. Trata-se do registro das manifestações da vida cotidiana como
constitutiva da arte. Dessa forma, a arte teatral, materializada no tex-
to dramático, é condição essencial para a expressão em sua plenitude
(GOUVEIA; DE SOUZA; DE SOUZA, 2021). Portanto, o gênero
dramático caracteriza-se pela reunião de particularidades que dialo-
gam com diversos âmbitos de ordem individual esocial.
Para Martins e Barreiros (2008), o estudo do teatro serve como
estímulo à formação de leitores, auxiliando no desenvolvimento da ca-
pacidade crítica e na proficiência de leitura dos estudantes. Em vista
disso, os pesquisadores propõem o Folhas, um projeto no qual questio-
namentos focam em jogos teatrais, que promovem as práticas de leitura,
escrita e oralidade entre os alunos.
De acordo com Costa (2013), o trabalho com a linguagem do gê-
nero dramático pode ser articulado com outros ângulos dos estudos
linguísticos, tais como os gêneros textuais em geral, a análise linguística
e a intertextualidade, através da adaptação de textos narrativos parao te-
atro. A autora também aborda a avaliação esperada do professor, focada
no processo e não no produto isoladamente, possibilitando observar as
escolhas linguísticas e as estratégias sociodiscursivas empregadas pelos
estudantes em sua atividade de produção de sentidos coma linguagem.
No estudo realizado por Garcia e Pires (2021), as autoras propu-
seram a construção de material didático, a partir da produção de uma
sequência didática. Apoiadas na reflexão sobre o gênero crítica de teatro
e na conscientização da linguística crítica, o estudo focou na gramática,
especialmente, nos aspectos coesivo, avaliativo-argumentativo de subs-
tantivos e adjetivos. Dessa maneira, as autoras sustentam que com esse
material pode-se explorar outros aspectos linguísticos tais como o léxico
e a sintaxe.
O gênero dramático e o teatro nas escolas têm tido resultados e
divulgação que proporcionam reinscrever as práticas escolares a par-
tir de metodologias interativas e interdisciplinares, as quais emergem

23
do diálogo entre áreas do conhecimento e campos da atividade social,
como a Pedagogia do teatro.
Ainda assim, com este levantamento, observou-se um número re-
duzido de pesquisas desenvolvidas para o ensino de LP e, sobretudo,
para as séries do Ensino Fundamental. Isso pode ser compreendido
como o desconhecimento das possibilidades do emprego do gênero
dramático em sala de aula ou, ainda, a falta de divulgação dos trabalhos
desenvolvidos por professores com o gênero dramático e o teatro nas
aulas de português.

2. Estilística sociológica e gênero discursivo no ensino de


língua materna
Volochínov (2019[1926]) defende um outro método para os es-
tudos da obra literária, em que chama atenção para seu tratamento no
campo da estilística. O autor sugere a poética sociológica, em que
“Compreender essa forma específica [poética artística] da comunicação
social (...).” (VOLÓCHINOV, 2019[1926], p. 116) é um de seus obje-
tivos. Em outras palavras, sua tarefa é entender como o funcionamento
artístico se relaciona com a forma específica da comunicação social e do
enunciado poético - associação do texto com a situação social de interação
(contexto extraverbal).
A partir desse método sociológico da linguagem, Volóchinov
(2019[1926]) percebeu que o surgimento das palavras e sua or-
ganização na forma artística são motivadas pela avaliação social e
pelos objetivos comunicativos do indivíduo. Nesse sentido, a situação
extraverbal e essas avaliações são advindas do cotidiano social, em que
esse último se torna condicionante para o nascimento da palavra, pois
“a palavra é completada diretamente pela própria vida e não pode ser
separada dela sem que o seu sentido seja perdido.” (VOLÓCHINOV,
2019[1926], p. 117).
Um dos principais conceitos abordados, também, pelo escritor é
o da relação da entonação valorativa com o contexto extraverbal, em
que aquela é concebida como instrumento capacitador de extrapolar o

24
limite verbal da palavra. De acordo com Volóchinov (2019[1926], p.
123) “o falante entra em contato com os ouvintes justamente por meio
da entonação: a entonação é social [...]”. Em vista disso, a metáfora
entonacional - que trabalha com o subentendido, isto é, com aquilo
que não é dito, mas apresenta conhecimentos compartilhados entre o
emissor e interlocutor - e o gesto ganham forma, já que expressam não
apenas o estado emocional ou passivo do falante, mas sempre a relação
viva e energética com o mundo exterior.
Diante disso, toda palavra enunciada torna-se a expressão e o pro-
duto da interação social entre o falante, o ouvinte e aquele (aquilo) sobre
quem (ou sobre o que) eles falam. O sentido da palavra só é determi-
nado a partir da avaliação que é expressa por meio da valoração social.
Sendo assim, a palavra é como um quebra-cabeça que vai criando vida
no caminhar da comunicação social, realizada e fixada no material da
forma artística. Issoimplica nas escolhas estilísticas que o sujeito faz no
seu discurso, uma vez que são resultado de experiências de linguagem
em situações de interação, configurando, assim, a estilística sociológica.

2.1 Bakhtin: gêneros discursivos e a estilística


Em Os gêneros do discurso (2016 [1952-1953]), Bakhtin associa as
esferas das atividades humanas com a utilização da língua, afirmando
que esses campos abarcam um conjunto de gêneros discursivos. Dessa
forma, pode-se compreender que em tudo se encontra algum gênero
textual, inclusive, é por meio deste que o discurso é materializado
(FIORIN, 2012). Portanto, para que a palavra seja enunciada, é neces-
sária a utilização do texto oral ou escrito, que apresenta como um dos
seus elementos constitutivos o discurso.
Segundo Miotello (2007a, apud DIONÍSIO, 2011, p. 173) “o
texto é tomado como dado primário e ponto de partida de todas as
disciplinas de ciências humanas. A inter-relação entre o homem, o(s)
sentido(s), o signo, o texto”. Nessa perspectiva, somada à de Bakhtin,
pode-se considerar que o texto, enquanto material da linguagem, de-
sempenha sua função comunicativa e, enquanto manifestação verbal,
auxilia no desenvolvimento interativo entre os indivíduos.

25
Bakhtin (2013) também defende a importância da articulação en-
tre a estilística e a gramática, partindo de leituras e análises de textos.
O autor acredita que “toda forma gramatical é, ao mesmo tempo, um
meio de representação. Por isso pode e deve ser analisada, esclarecida e
avaliada de uma perspectiva estilística” (BAKHTIN, 2013, p. 24). A
proposta bakhtiniana considera o estudo dos elementos da estrutura
enunciativa (movimentação da palavra dita entre realidades), interes-
sando-se pelo estilo - manifestação não só individual, mas também que
considera a visão do autor/leitor - e seus componentes (expressividade
e dramaticidade).
Em outras palavras, o estilo está intimamente ligado ao enunciado,
que por sua vez trabalha com os gêneros discursivos, logo, a palavra é
determinada não só pela relação com o objeto, como também pelo esti-
lo do outro, sendo avaliada pelo mundo social. Nesse sentido, ofalante
seleciona a palavra que mais cumpre com as finalidades comunicativas,
apropriada ao enunciado e descarta outras que não convém à situação
da escolha, caracterizando seu estilo.

2.2 Diálogo entre a estilística sociológica, os gêneros discursivos e


o ensino de Língua Portuguesa
A partir do exposto, é essencial entender as possibilidades do tra-
balho com o gênero discursivo e no processo de ensino-aprendizagem
de Língua Portuguesa, tendo como orientador das práticas escolares a
estilística sociológica. É no gênero escolhido pelo professor e como
o mesmo será explorado nas aulas que garantirão a interação do alu-
no-leitor com o mundo exterior, com as ideologias em tensão na vida
social, as avaliações entonacionais para o desenvolvimento das práticas
de escrita, de oralidade e de leitura.
O estudo dos gêneros discursivos, a partir do texto escrito, impli-
ca num maior repertório de possibilidades de escolhas estilísticas que o
aluno pode fazer para se adequar a determinados contextos e situações
do cotidiano social, podendo ser uma ferramenta eficiente nas aulas.
(ROCHA, 2020).

26
Com base na perspectiva dialógica da linguagem concebida por
Bakhtin e o Círculo, pode-se identificar possíveis articulações entre os
conceitos acima apresentados e as práticas escolares. No que tange à
leitura, é apresentado ao aluno o enunciado poético, a entonação e a
metáfora entonacional. No que concerne à produção textual, o estu-
dante já estabelece uma relação entre seu arcabouço sociocultural com
as opções estilísticas recém-chegadas pela leitura do texto trazido pelo
professor, além de não excluir o trabalho com os elementos gramaticais
da língua. Tanto na produção de texto quanto na prática oral, o gesto de
expressividade se torna importante, uma vez que modela o estilo único e
próprio do aluno, traduzindo o jeito que ele enxerga o mundo.
Desse modo, percebe-se que cada prática explora diferentes habi-
lidades no desenvolvimento do discente. Com isso, os gêneros textuais
devem ser trabalhados em sala de aula numa relação interativa com o
aluno. Sendo assim, torna-se um meio da prática didático-pedagógi-
ca que visa capacitar o estudante no processo de desenvolvimento da
leitura, escrita e oralidade (ROCHA, 2020). Dessa maneira, o texto
aparece como aliado no repertório estilístico do aluno, na interação so-
ciodiscursiva, na produção de sentidos e no processo de ensino-apren-
dizagem da Língua Portuguesa de forma geral.

3. A experimentação da Sequência Didática como metodologia


A pesquisa foi realizada de forma participativa em Belém na Escola
Estadual Monsenhor Azevedo, em janeiro de 2022, com os alunos do
6° ano, em que se executou uma sequência didática (SD) com foco
no desenvolvimento dos traços do texto teatral em comum com a
narrativa.
Originalmente, a SD foi pensada pelos integrantes do grupo de
Genebra, no qual fazendo suas pesquisas, obtiveram como resultado a
formulação e aplicação dessas sequências didáticas que visavam atenu-
ar os problemas identificados na produção escrita dos alunos. Sob essa
perspectiva, Dolz, Noverraz e Scheneuwly (2004) a definem como um
compilado de atividades organizadas que trabalham com textos orais e

27
escritos, a fim de colaborar com o processo de ensino-aprendizagem dos
gêneros textuais e discursivos em sala de aula.
Para esses autores, é necessário que haja, por parte do professor,
uma análise dos textos que apresentará para a turma, visto que pre-
cisa entender “a função social, o contexto de leitura e produção, bem
como a estrutura organizacional e os aspectos linguísticos do gênero a
ser trabalhado’’ (GARCIA; PIRES, 2021, p. 278) para atender o grau
de escolaridade, a situação e as necessidades dos estudantes. Nesse
sentido, Dolz, Noverraz e Scheneuwly (2004) fazem um esquema,
dividido a SD em quatro fases, desde a produção inicial até a final, que
serão descritas adiante e como foram utilizadas neste trabalho.
De acordo com a orientação dos autores acima, a primeira fase re-
fere-se à apresentação da situação, em que se expõe o objetivo do projeto
da produção de um determinado gênero, levando em consideração as
condições de produção (para que se destina, a finalidade, qual a função
social, etc.).
Imagem 1: Apresentação da situação

Fonte: autoral.

28
Nesse momento, explanou-se para os alunos a proposta de se ex-
plorar o gênero dramático e discutir suas características e finalidades
na vida social, utilizando diferentes textos narrativos - e outros gêneros
textuais - na intenção de compreender e reconhecer os elementos da
narrativa e quais deles fazem diálogo com os traços do texto teatral,
além de que, ao final da SD, fossem capazes de produzir uma pequena
adaptação de um texto narrativo para um texto dramático.

Imagem 2: Produção inicial

Fonte: autoral.

A segunda fase é da produção inicial, em que é desenvolvida a pri-


meira produção para detectar os conhecimentos já adquiridos e, sobre-
tudo, as principais dificuldades dos alunos e, assim, pensar em como
ajustar as atividades a partir desse diagnóstico. Foi daí quese começou
a trabalhar com variados gêneros como a lenda, a fábula, a crônica,

29
os contos, entre outros (como mostrado na imagem acima). Dessa
maneira, todos os textos que iam sendo lidos em sala de aula eram
analisados pelos discentes por meio de perguntas que traziam reflexões
linguístico-estilísticas, para que os alunos reconhecessem os elementos
narrativos já explicados nas aulas. Essa etapa é importante, pois possibi-
lita não só que o professor conheça mais a realidade do aluno, como
também o julgamento crítico - baseado nas experiências sociais dos
estudantes com os gêneros.
Imagem 3: Percurso didático

Fonte: autoral.

É essencial destacar que haviam perguntas que comparavam os re-


cursos usados em um texto com um outro (como observado na imagem
acima), justamente para que o estudante identificasse que constituinte
era esse, como era utilizado, se ele existia no outro texto, se possuía a

30
mesma finalidade, etc. Com todas essas indagações, foi possível iden-
tificar os desafios linguísticos e gramaticais em comum enfrentados
pela turma, sendo o pontapé inicial para a (re)formulação das futuras
atividades.
Em seguida, têm-se os módulos ou oficinas como terceira fase. Essa
etapa se foca nas atividades de intervenção em relação aos problemas
detectados na produção inicial enfatizando as práticas linguísticas de
leitura, produção escrita e análise da língua. Em vista disso, recorreu-se
a outros textos narrativos como trechos do Auto da Compadecida,
de Ariano Suassuna, e do O Menino Narigudo, adaptação de Walcyr
Carrasco da obra Cyrano deBergerac.
Diante disso, os alunos tiveram o primeiro contato com o gênero
dramático nas aulas, identificando os traços em comum entre a narra-
ção e o teatro e, ao mesmo tempo, percebendo suas diferenças. Assim,
com as respostas das perguntas feitas em relação aos textos, pôde-se não
só orientá-los melhor sobre a questão gramatical, tomando como base
os seus próprios desvios (análise linguística), mas também discutir acer-
ca desses traços estilísticos dos textos narrativos e teatrais.

Imagem 5: Produção final

Fonte: autoral.

31
A última fase diz respeito à produção final solicitada pelo professor
a partir de uma proposta bem definida e que proporcionou aos estu-
dantes a prática de todos os conhecimentosadquiridos e trabalhados ao
longo das aulas. Desse modo, os alunos ficaram encarregados de pro-
duzir uma adaptação de um trecho da lenda Mani: a lenda mandioca,
que teve como fonte a Revista eletrônica Xapuri, para o texto dramático
com seus respectivos elementos estilísticos.
A partir disso, foram coletadas 14 respostas e produções das duas
últimas atividades da turma que possuía 36 alunos. No entanto, foram
selecionadas três respostas dadas às questões do terceiro módulo e a
produção final de três alunos, haja vista que somente esses estudantes
realizaram as duas atividades - o restante executou somente uma ou ne-
nhuma atividade proposta. A seção seguinte apresentará a análise com-
parativa dessas materialidades discursivas.

4. Produção escrita dos estudantes


Fundamentado na teoria dialógica e nas reflexões sobre o gênero
dramático na aulade Português, nesta seção analisou-se as respostas da-
das à terceira e oitava questões de uma das atividades e a produção
final de três estudantes do 6º ano do ensino fundamental. Na tercei-
ra e quarta fase da SD de leitura, compreensão e produção escrita,
as duas atividades levaram os estudantes a elaborarem discursos sobre
os gêneros.

4.1 Resposta às questões sobre o texto teatral “O menino narigudo”,


de Walcyr Carrasco
Abaixo, apresenta-se as oito indagações do texto teatral O Menino
Narigudo, de Walcyr Carrasco, que foi inserida no módulo, e conta a
história de Cirano, um menino que se achava feio e não acreditava em si
mesmo. O texto apresenta reflexões sobre a autoestima e a questão das
aparências (beleza) superficiais das pessoas.
Procurou-se saber, por meio dessa atividade, não só se os alunos já
haviam compreendido a estrutura formal do gênero dramático, por isso

32
houveram perguntas acerca datemática, mas também como conseguiam
transmitir seus conhecimentos de mundo e reflexões, levando em conta
a indissociabilidade da forma e do conteúdo na produção de sentidos.
Sendo assim, dessas oito, foram selecionadas duas questões (a terceira
e a oitava).
A terceira questão exigia a identificação da rubrica teatral (orienta-
ção do que o ator deve fazer na cena), o reconhecimento de um elemen-
to que já foi estudado. Os alunos A, B e C responderam:

1. Aluna A (12 anos): Cirano — (hesita) gabi… Cirano —


(tímido) eu preciso falar com você. gabi — (surpresa) Ahn?
Cirano - (decidido) Eu já disse que pago o sorvete. Cirano
— (sem jeito) puxa, gabi... eu vou ficar de bolso vazio. mas
tá legal, pago o sundae! gabi — (encantada) que lindo, cira-
no, que lindo! gosta de música? gabi — (gostando) poesia?
Você, fazer uma poesia pra mim? Gabi — (furiosa) sagui?
eu não tenho jeito de sagui coisa nenhuma!
2. Aluno B (12 anos): quando os Personageuesn vão Para sor-
veteria que, tamBem quando indica esta supresa ou furioso.
3. Aluno C (11 anos): (Timido), (Surpresa).

Percebe-se, a partir das respostas dos estudantes, que apesar de co-


meteram alguns desvios ortográficos mesmo copiando o texto, cada
aluno o transcreveu de maneira diferente. Isso quer dizer que cada um
respondeu utilizando escolhas estilísticas baseadas nos efeitos que gos-
taria de proporcionar ao leitor.
A aluna A retirou do texto diversos exemplos de situações em que
foi possível perceber a rubrica, evidenciando a sua competência de com-
preensão do que foi pedido e de reconhecimento do elemento no gê-
nero dramático. Por sua vez, o aluno B não transcreveu as partes em
que apareciam a rubrica, mas as trouxe em forma de uma explicação
discursiva, dando exemplos indiretos de onde se poderia encontrá-la
e sua função dentro não só do texto, mas também em contexto social.
Sob esse viés, ele depreendeu, ou seja, interpretou na sua perspectiva o
subentendido do texto a partir do gesto que a rubrica indica.

33
Já o aluno C, identificou e copiou dois casos em que havia a ma-
nifestação do componente textual teatral em questão. É válido ressaltar
que esse estudante não só transcreveu somente a orientação da ação
que a rubrica fornece, como também se preocupou em trazer o recurso
da pontuação do parênteses visando argumentar indiretamente que se
tratava desse elemento teatral e não de qualquer outro, apontando para
a indissociabilidade da forma e do conteúdo.
Na oitava questão, foi explorada a inferência e a compreensão glo-
bal do texto, já queos estudantes necessitavam realizar uma análise con-
textual para expor concepções acerca do questionamento: “Você acha
mais importante a beleza exterior ou a interior? Por quê?”. Obteve-se
como resposta dos alunos:

4. Aluna A (12 anos): mais inportante para min interior mes-


mo a pessoa sendo feia por fora por dentro e gentil carinho-
so(a) engraçado(a) e faz coisas boas e suas atitudes valiosas.
5. Aluno B (12 anos): não inporta se um Pessoa e Feia inporta
que ela tenha um Bom coração.
6. Aluno C (11 anos): eu acho mais importante a beleza inte-
rior, Porquê uma Pessoa Pode ser feia Por foramais Pode ser
bonita Por dentro.

Sobre os aspectos linguísticos, vale destacar as dificuldades em di-


ferenciar o uso dos fonemas “m” e “n”; o “e” (conectivo aditivo) e o “é”
(verbo ser); os usos dos “porquês” e, ainda, a grande dificuldade com a
pontuação.
No entanto, apesar das lacunas linguísticas, os alunos enunciaram
com base em sua avaliação social do que foi narrado. A interação entre
a situação apresentada no texto com o contexto extraverbal implicou
no uso do repertório sociocultural e na criação de seu estilo,isto é, na
seleção estilística dentre as possibilidades do sistema linguístico impres-
cindível na escrita e de seu conhecimento com a linguagem oral.
Dessa forma, a aluna A opta por enfatizar seu ponto de vista e
inicia sua respostacom a sentença “mais importante para mim”, em se-
guida ela utiliza o recurso da enumeração, apesar de não usar nenhuma

34
pontuação adequada, mas em compensação utiliza o conectivo aditivo
“e” como uma acumulativa para solidificar e justificar o motivo da sua
resposta (por dentro e gentil carinhoso(a) engraçado(a) e faz coisas boas e
suas atitudes valiosas.)
Já o aluno B escolheu manter-se “neutro”, haja vista que não deixa
indícios explícitos de sua voz enunciadora, sua entonação assume um
sentido (valor) de imparcialidade, dando a impressão de que sua posi-
ção é a do senso comum. Por fim, o aluno C, assim como a aluna A,
posiciona-se claramente como sujeito do discurso por meio do prono-
me “eu” e, ainda, reafirma sua opinião no verbo “acho”. Diferentemente
dos outros estudantes, ele optou por recorrer à conjunção explicativa
“porque” - mesmo não estando adequado à norma da língua - vi-
sando deixar claro o seu posicionamento. É possível até observar a
criação de uma aliteração pela repetição da consoante “p” (Porquê uma
Pessoa Pode ser feia Por fora mais Pode ser bonita Por dentro).
Diante disso, a primeira atividade explorou os recursos estilísti-
cos do texto teatral. São esses os elementos formais que o texto dra-
mático utiliza para aproximar o leitor da realidade e dos heróis nas
obras. Todavia, não se pode esquecer que, de acordo com Bakhtin e
Volóchinov, forma e conteúdo são indissociáveis na produção do sen-
tido. Em vista disso, essaatividade também colaborou em revelar como
o gênero teatral dialoga com as questões humanas - sociais, culturais e
subjetivas - fazendo com que os estudantes se identificassem com o que
estava sendo tematizado no texto.

4.2 Adaptação do texto narrativo para o dramático


Essa atividade se refere à última etapa da SD, ou seja, trata-se da
produção final dos alunos. Considerando todas as dificuldades detecta-
das nas outras tarefas, optou-se por orientara adaptação de um pequeno
trecho da lenda “Mani: A lenda da mandioca” para a estrutura do texto
teatral.

35
Imagem 5: Produção escrita e transcrição da adaptação produzida pelos alunos

Aluna A, 12 anos: EM UMA OLDEIA DE


INDIOS, NASCEU UMA
LINDA INDIAZINHA
COM CLARINHA.

Mani parecia esconder um


misterio, era uma menina
muito diferente do restante
das crianças, viviasorrindo e
transnitindo alegrias para as
pessoas da tribo.

A nãe inara (olhava sua filha


com adniração) - Ela e tão
linda!

Paje (sentindo algo diferen-


te na criança) - criança nis-
teriosa.

A india inara (lembrando


do paje) - Bem que ele fa-
lava, que ela seria especial e
misteriosa.; Com passar dos
tempos se observava.
Aluno B, 12 anos: tupi - A mani morreu como

inara - os Pais da mani re-


souverão enterrala na pro-
piaoca que ela morava

tupi - eles regaram a casa da


mn com água, mais tam-
Bem com muitas lagrimas,
devido a Saude de Mani.

36
Aluno C, 11 anos: Joara (Mãe): (vendo a
beleza de sua Pequena
indiazinha) - Veja como ela
e muito bonita, Pajé.

Pajé: (acenando com a


cabeça) - sim você está
certaJoara sua menina e
realmente linda.

João (Pai) - Mas como será


o nome da nossa filinha?
Joara (Mãe): - Ela vai se
chamar Maria.
João (Pai): Sim o nome
combina com ela.
Fonte: Pesquisa de campo realizada em Jan. 2022.

Baseados nessas produções dos estudantes, constata-se os desvios


da norma detectados nas atividades anteriores. Entretanto, a recorrên-
cia já foi menor, indicando que as aulas destinadas às reflexões linguís-
ticas, tendo como ponto de partida o próprio texto dos alunos (análise
linguística), tiveram efeito.
Apropriando-se dos recursos textuais do gênero dramático, todos
os alunos utilizaram o diálogo, isto é, apostaram na interação entre
os personagens, e as marcações teatrais. Posto isso, a aluna A iniciou
com uma marcação introdutória teatral, em que se pôde identificar o
espaço (lugar) da trama e o nome de uma das personagens, apesar desta
não possuir fala nessa cena. Verifica-se, ao longo do diálogo, que há as
indicações dos nomes dos outros personagens que realmente interagem
entre si. Ademais, a aluna se atentou a algumas marcações do texto
dramático como as rubricas e as pontuações (travessão, dois pontos),
além de repetir o adjetivo “misteriosa” para enfatizar essa característica
da índia Mani e poder, assim, construir um determinado sentido (valor)
específico dessa palavra a sua produção.

37
O aluno B trouxe o nome de três personagens, mas só dois conver-
saram. No entanto, não há indicação de quem são eles, como ocorreu
na produção da aluna A que diferenciou cada um (mãe Inara, suben-
tendido pela fala que é a mãe de Mani, e pajé). Percebe-se também que
não existem muitas marcações teatrais. Por último, o aluno C traba-
lhou com quatro personagens, devidamente especificados, presentes
na cena, porém só três dialogaram. Além disso, manifestou as rubricas
e as pontuações no corpo do texto, somado ao uso de diminutivos
como “indiazinha” e “filinha” para demonstrar maior expressividade
de afeto e, assim, proporcionar vivacidade à produção textual e ao
receptor.
Desse modo, os estudantes elaboraram suas produções textuais
finais não só com base nas aulas sobre o estudo do gênero dramáti-
co, como também nas suas vivências extraclasse. Por meio dessa última
etapa da SD, contatou-se que os alunos souberam adaptar sucintamen-
te um trecho de um texto narrativo para o dramático, usando os
recursos que o gênero teatral oferece e relendo a lenda através de suas
escolhas estilísticas para inserir o leitor na situação contextual e, assim,
assemelhar a dramaturgia ao cotidiano da vida, configurando a estilís-
tica sociológica.

Considerações Finais
Com base nas experiências que outros autores deixaram ao traba-
lhar com o gênero dramático em sala de aula, na associação com distin-
tos gêneros textuais e discursivos, na utilização da sequência didática na
abordagem do estudo do texto teatral, partindo dos traços compartilha-
dos com o narrativo e na aplicação da mesma, pretendeu-se responder
o que aproxima essa esfera artística-literária do aluno no ensino de LP,
partindo da perspectiva estilística sociológica de Bakhtin e Volóchinov.
Em vista disso, recorreu-se à tensão do gênero dramático, criada
a partir da comparação entre diversos outros gêneros trabalhados com
os estudantes do 6° ano, para no final produzir uma adaptação do tex-
to narrativo para o teatral e averiguar como os alunos absorveram as

38
informações a ponto de fazer uma releitura subjetiva do que compreen-
deram em conjunto com a sua bagagem sociocultural.
A partir da realização das atividades propostas pela SD, pôde-se
identificar as dificuldades linguísticas e trabalhá-las contextualmente
em sala de aula. Ademais, serviram, ainda, para verificar se os estudantes
haviam entendido a estrutura e os recursos do gênero dramático, além
de possibilitar a análise de como manifestaram seus posicionamentos
linguísticamente (escolhas estilísticas) e socialmente. Dessa maneira,
percebeu-se o desenvolvimento da atitude responsiva dos estudantes na
leitura, na compreensão e na produção escrita.
Portanto, os estudantes ao responderem os questionamentos e ao
produzirem as adaptações, levaram em conta a situação/contexto extra-
verbal, a entonação valorativa de cada palavra, que foi escolhida estra-
tegicamente, a fim de causar determinado efeito pretendido poreles, ou
seja, expuseram seu próprio estilo, por meio da seleção de palavras, de
pontuações, defiguras de linguagem, entre outros recursos apresentados
ao longo do artigo, o que acaba trazendo produtividade ao texto, na
medida em que cada marcação dessa assume sentido no texto, viabiliza
o leitor a entonar valorativamente, aproximando a forma da arte dra-
mática do conteúdo do cotidiano social.

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40
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

A BRANQUITUDE COMO CATEGORIA


TEÓRICA E ANALÍTICA NOS ESTUDOS
DA LINGUAGEM: MAPEANDO PESQUISAS
REALIZADAS ENTRE 2009 E 2021

Adriana dos Santos Pereira (UECE)

RESUMO: Vivemos em uma época na qual urge a necessidade de investigar,


visibilizar e questionar interseccionalmente temáticas diversas, em especial os
assuntos capazes de criar e manter bolhas sociais legitimadoras de determinados
conhecimentos e corpos por meio de estruturas hegemonicamente coloniais,
como a branquitude e os pactos que a envolvem. Assim, neste trabalho, realizo
um mapeamento de pesquisas da grande área Linguística, Letras e Artes,
mais especialmente do campo da Linguística Aplicada, que investigaram
a branquitude como categoria teórica e/ou analítica. Para isso, tomo o
Catálogo de Dissertações e Teses da CAPES como base para a verificação
de trabalhos desenvolvidos em programas de pós-graduação brasileira na
perspectiva das relações raciais com foco nas performances da pessoa branca
e em seus privilégios sociais. Com caráter descritivo-interpretativista, apoio-
me em considerações teórico-metodológicas de Moita Lopes (2013), Fabrício
(2006), Nascimento (2019) e Bonfim (2021) sobre língua/linguagem e em
pressupostos de Fanon (2008 [1952]), Guerreiro Ramos (1957), Schucman
(2012), Cardoso (2014), Bento (2016) e Piza (2016) acerca de questões
raciais. Embora já se identifiquem sutis avanços nos espaços acadêmicos com
relação à temática discutida, os resultados mostram que ainda há um longo
caminho a ser percorrido para embranquecer o tema das pesquisas nos estudos
da linguagem e interromper a escalada de opressões vivenciadas pelo negro-
tema.
PALAVRAS-CHAVE: Branquitude; Linguagem; Relações Raciais.

ABSTRACT: We have lived in an era in which it is necessary to investigate,


make evident and problematize intersectionally some diverse themes, in
special some topics that can create and maintain social bubbles that legitimate
certain knowledge and bodies through hegemonically colonial structures,
such as whiteness and the pacts that involve them. Thus, in this work, I carry
out a mapping of research in the large area of Linguistics, Letters and Arts,

41
more especially in the field of Applied Linguistics, in which is possible to
investigate whiteness as a theoretical and/or analytical category. For this, I take
the CAPES Catalog of Dissertations and Theses as a basis for the identification
of works developed in Brazilian graduate programs from the perspective of
racial relations, focusing on the performances of the white person and their
social privileges. With a descriptive-interpretative character, we have based
our study on theoretical-methodological considerations by Moita Lopes
(2013), Fabrício (2006), Nascimento (2019) and Bonfim (2021) on language
and on assumptions by Fanon (2008 [1952]), Guerreiro Ramos (1957),
Schucman (2012), Cardoso (2014), Bento (2016) and Piza (2016) on racial
issues. Although subtle advances can already be identified in academic spaces
regarding the discussed theme, the results show that there is still a long way to
go to whiten the theme of research in language studies and stop the escalation
of oppressions experienced by the blackness-theme.
KEYWORDS: Whiteness; Language; Race Relations.

1. Considerações iniciais
Como mulher branca, moradora da periferia, docente de Língua
Portuguesa da escola pública e doutoranda em Linguística Aplicada em
uma instituição também pública, compreendo que minhas escolhas não
se descolam do mundo social em que estou inserida, nem das indaga-
ções e responsabilidades que circundam os lugares de minha existência.
Portanto, como professora-pesquisadora, creio na necessidade urgen-
te de investigar, visibilizar e questionar temáticas diversas, em especial
àquelas capazes de criar e manter bolhas sociais legitimadoras de de-
terminados conhecimentos/corpos por meio de estruturas hegemoni-
camente coloniais que, como aponta Kilomba (2019), definem quem
sabe, quais saberes são validados, quem pode saber, o que se pode saber
e em quais espaços se pode adquirir tais saberes.
A branquitude2 e seus pactos, por exemplo, é um desses temas
que carecem de problematização e transformação, inclusive para mim

2
Destaco que as leituras sobre branquitude, iniciadas em 2021, foram fortemente
influenciadas pelo professor Marco Bonfim (UECE) e pela docente Geisa Mat-
tos (UFC). Gratidão!

42
(hoje, consciente de que racializar é um processo complexo e contínuo,
em nível ad infinitum de letramento racial crítico). Por muito tempo,
nós, pessoas brancas, dissertamos acerca de raça, racismo e questões
referentes a negras/os desconsiderando os entrelaçamentos ontológicos/
epistemológicos que privilegiam a branquitude e constroem uma at-
mosfera de superioridade intelectual em torno daqueles que detêm o
poder – geralmente homens brancos –, em distintas esferas da socieda-
de. A falácia da democracia racial e a invisibilidade de cor, enraizadas
no ideário brasileiro, violentaram (e continuam violentando) física e
simbolicamente indivíduos negros que são inferiorizados e, de modo
naturalizado, transformados em objetos de pesquisa.
Nesse sentido, realizo uma pesquisa bibliográfico-descritiva, de
caráter interpretativista, que objetiva mapear trabalhos sobre a bran-
quitude, como categoria teórica e/ou analítica, produzidos em progra-
mas de pós-graduação no Brasil, na grande área do conhecimento de
Linguística, Letras e Artes, especialmente na Linguística Aplicada. Para
isso, a perspectiva de Moita Lopes (2013), Fabrício (2006), Nascimento
(2019) e Bonfim (2021) – sobre língua/linguagem –, e os pressupostos
de Fanon (2008 [1952]), Guerreiro Ramos (1957), Schucman (2012),
Cardoso (2014), Bento (2016) e Piza (2016), – sobre relações raciais –,
são essenciais para esta pesquisa com foco na branquitude.

2. Branquitude e/na Linguística Aplicada


Inicialmente, é importante ressaltar que minha inserção e auto-
apresentação como pessoa branca não objetiva compactuar com a bran-
quitude neonazista, ou seja, com a ideia do branco como sinônimo de
raça pura/ariana. Esta, segundo a etnografia de Dias (2007), embora se
considere superior, sente-se ameaçada pela mistura inter-racial – com-
preendida por grupos extremistas como um verdadeiro genocídio –, e,
portanto, organiza-se em torno de um código preservacionista capaz de
garantir a própria sobrevivência por meio dos mais diversos e perversos
modus operandi. Não é deste lugar de sangue alemão que penso, falo e
atuo nos ambientes sociais onde convivo; no entanto, como partícipe

43
de uma branquitude que pretende ser crítica, reconheço as vantagens
que nos favorecem estruturalmente.
O posicionamento racial de universalidade que silencia corpos ne-
gros e evidencia a branquitude, entendendo esta como padrão a ser
seguido/almejado, colabora com a manutenção das desigualdades à
proporção que inviabiliza a compreensão da sociedade racista em que
vivemos. Consequentemente, os problemas são sempre delas/es (ne-
gras/os) e nunca nossos (brancas/os), visto que uma grande parcela da
população, consciente ou inconscientemente, acredita que não enxerga
cor, apenas seres humanos. Tais reverberações se materializam em prá-
ticas cotidianas por meio da linguagem e de suas multissemioses, as
quais, para além de representação e comunicação, atuam como arma
eficaz para implementar e manter relações de poder.
Nesse sentido, Kilomba (2019, p. 14, grifos do original) nos aler-
ta para o fato de que “por mais poética que possa ser, [...] através das
suas terminologias, a língua informa-nos constantemente quem é nor-
mal e quem é que pode representar a verdadeira condição humana”.
Nascimento (2019, p. 17) declara ainda que a linguagem, como um
fetiche ocidental marcado pelos ideais brancocêntricos greco-latinos, e
sua pseudoneutralidade no campo dos estudos linguísticos são vistas
como “uma marca de dominação e por onde também se dá a figu-
ra estruturante do racismo”. Assim, como professora-pesquisadora no
âmbito das linguagens e iniciante nas investigações sobre branquitude,
interessa-me averiguar se e como essas pautas ocorrem em pesquisas na
Linguística Aplicada (doravante LA).
Ressalta-se que a perspectiva que me acompanha extrapola as dis-
cussões da LA como subárea da Linguística, isto é, enveredo-me para
além de uma ciência que, em fase inicial, apresentava-se como um mo-
delo aplicacionista no processo de ensino e aprendizagem de línguas
(estrangeira e materna) e me ancoro em uma área com identidade e
foro próprio, pois vem amadurecendo e sendo reconhecida, nacional e
internacionalmente, devido à realização de pesquisas relevantes, porque

44
problematizam normas hegemônicas e se colocam abertas às novas for-
mas de produção do conhecimento. Moita Lopes (2013, p. 227) reforça
que “o estudo das relações entre linguagem e vida social, especificamen-
te, das relações entre linguagem e classe social, gênero, sexualidade, raça
etc., tem sido um grande tema [...] da LA”.
Ampliando a perspectiva (trans)(inter)disciplinar da LA, o profes-
sor-pesquisador negro Bonfim (2021, p. 165) nos convida à prática
de uma “linguística aplicada antirracista”, que “deve ser militante” na
seguinte direção:

[...] as/os linguistas aplicadas/os devem comprometer-se com a


militância política na e através da linguagem; devem colaborar
para a transformação das pessoas que são oprimidas e ainda tra-
tadas em pesquisas, principalmente em boa parte dos estudos
no campo aplicado, como “objeto” ou “informante”, lutando
para que estas pessoas tornem-se as próprias produtoras de saber
(BONFIM, 2021, p. 165).

Nesse viés, movimento-me em uma LA que se configura como área


mestiça e, consequentemente, espaço de (des)aprendizagem (MOITA
LOPES, 2013; FABRÍCIO, 2006) que me possibilita rever conceitos
engessados por muito tempo, os quais objetivavam um conhecimen-
to universal e desconsideravam os contextos de produção, circulação
e negociação de significados. É diante das emergências desse mundo
movente que Fabrício (2006, p. 46) advoga a favor de uma LA que se
envolve com as “metamorfoses que testemunhamos cotidianamente nos
mais variados contextos” e sobre as quais não devemos nos contentar
com explicações causais simplistas, visto que a relação existente entre
fenômenos linguísticos e sociais extrapola o domínio das verdades e
certezas.
Quanto aos estudos sobre a branquitude, o sociólogo e ativista
negro americano Du Bois torna-se precursor ao publicar, em 1920,
o ensaio As almas do povo branco, no qual muda o foco temático das
questões raciais, saindo das margens (negras/os) e investigando o centro

45
(brancas/os), considerada a identidade normativa (SCHUCMAN,
2012; CARDOSO, 2014). As vantagens raciais brancas também re-
percutiram nas pesquisas do filósofo e psiquiatra martinicano negro
Fanon, em especial no livro Pele Negra, Máscaras Brancas, de 1952, o
qual apresenta um estudo clínico, sob uma visão psicológica, das mar-
cas do colonialismo na relação entre brancas/os e negras/os. Estas/es,
são mantidas/os em situação de subalternidade ou de inexistência pe-
rante a esclerose do “branco [que] quer o mundo; ele o quer só para si.
Ele se considera o senhor predestinado deste mundo” (FANON, 2008
[1952], p. 117).
Especificamente, no Brasil, o sociólogo baiano negro Guerreiro
Ramos (1957, p. 171, 172) foi pioneiro ao discutir, em A patologia
social do “branco” brasileiro, a capacidade inesgotável da minoria bran-
ca3 de escrutinar o tema negritude, com os mais diversificados pro-
pósitos em pesquisas da Antropologia e Sociologia, e de julgar, “no
plano ideológico, [...] a brancura como critério de estética social”. A
negação da população branca brasileira quanto à própria ancestralidade
negra (com a crença de pureza racial), a tendência ao branqueamento
no país (como a propensão de autodeclarações de matizes mais claras
no censo) e a associação direta de acepções negativas à cor preta (como
nas expressões ovelha negra, a coisa tá preta e mercado negro) confir-
mam tal patologia, tão bem discutida pelo autor supracitado e que, até
hoje, os noticiários recheiam nosso cotidiano com seus sintomas e suas
consequências.
No que concerne à branquitude como categoria analítica, os es-
tudos surgem, no início do século XXI, com nomes importantes dos
quais destaco: i) a psicóloga negra Cida Bento (2016, p. 25), que nos
faz refletir sobre os pactos narcísicos, isto é, os acordos implícitos (re)
construídos por “brancos de não se reconhecerem como parte absoluta-
mente essencial na permanência das desigualdades raciais no Brasil”; ii)
a psicóloga branca Edith Piza (2016), que nos leva a questionamentos

3
Minoria no sentido estatístico quando se compara, quantitativamente, a popula-
ção brasileira que se autodeclara branca à negra/parda.

46
como o que significa ser branca/o, como essa identidade é construída
e por quais motivos existem uma constante nomeação de negras/os e
uma frequente neutralidade/invisibilidade de cor da pessoa branca; iii)
o cientista social negro Lourenço Cardoso (2014, p. 11), que nos pre-
senteia com uma pesquisa na qual “Vossa Excelência, o branco”, é a
figura central a ser investigada a fim de se descobrir por que “o branco
pensa o Outro e não em si”.
Portanto, compreendo a importância de extrapolar a abordagem
unilateral analítica da população negra, pois, conforme alerta Cardoso
(2014, p. 119), o “silenciamento, a omissão, a construção da branqui-
tude como ‘não questão-acadêmica’ fortalece a identidade racial do te-
órico branco como ‘perfeição’”. Além disso, o entendimento de que a
racialização ocorre na/pela linguagem por intermédio de distintos dis-
cursos, principalmente os que legitimam privilégios materiais (alimen-
tação, moradia, educação, emprego etc.) e simbólicos (beleza, inteligên-
cia, sucesso etc.), é fundamental para a concretização de uma linguística
aplicada antirracista, como orienta Bonfim (2021).

3. Aspectos metodológicos: onde mapear essa branquitude?


Temas que se interconectam às relações raciais, particularmente às
identidades negras, fazem-se presentes em distintas áreas do conheci-
mento há bastante tempo; no entanto, quando a questão se volta a
investigações em torno de brancas/os, pesquisas sistemáticas em progra-
mas brasileiros de pós-graduação datam do ano de 2000 e se concen-
tram nas Ciências Humanas, conforme indica o Quadro 1. Ao acessar
o Catálogo de Teses e Dissertações da Capes4 e inserir na busca o vocá-
bulo branquitude, o repositório apresentou 197 pesquisas, sendo 140
dissertações e 57 teses, distribuídas em cinco grandes áreas do conheci-
mento as quais estão identificadas no quadro seguinte.

47
Quadro 1 – Dados sobre pesquisas que abordam a categoria branquitude

Grandes áreas do Áreas de avaliação Dissertações Teses Ano


conhecimento inicial
Ciências Humanas Antropologia / Arqueologia 86 41 2000
Ciência Política e Relações
Internacionais
Educação
História
Geografia
Psicologia
Sociologia
Linguística, Letras Letras / Linguística 19 6 2009
e Artes Linguística e Literatura
Artes
Multidisciplinar Interdisciplinar 19 4 2017
Ensino
Ciências Sociais Arquitetura, Urbanismo e 13 5 2013
Aplicadas Design
Comunicação e Informação
Direito
Serviço Social
Ciências da Saúde Saúde Coletiva 3 1 2017
Educação Física
Fonte: elaboração própria com base no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes.

Como citado anteriormente, a maioria dos trabalhos aparecem na


grande área das Ciências Humanas (127), o que não configura surpre-
sa, considerando que as discussões acerca das relações raciais e da luta
antirracista iniciaram com os pioneiros sociólogos/filósofos Du Bois
(1920), Fanon (2008 [1952]) e Guerreiro Ramos (1957). Em 2000, no
Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano da
Universidade de São Paulo, foi defendida a primeira tese cujo objetivo
foi investigar o discurso acadêmico sobre as identidades raciais e de gê-
nero apontando a importância de questionar a brancura.
Quanto à grande área de meu interesse, Linguística, Letras e Artes,
há um número reduzido de 25 pesquisas, entre as quais se destaca a

48
dissertação de Simões (2009), da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, orientada pelo renomado linguista aplicado Moita Lopes
(2013, p. 238), que defende a necessidade de questionarmos a produ-
ção histórico-discursiva da masculinidade e da branquitude devido ao
apagamento e/ou à eliminação daqueles que não se adequam ao “consi-
derado natural e hegemônico”.
A fim de delimitar o material de pesquisa e chegar a um corpus com
trabalhos produzidos particularmente em programas de LA (embora
esta ainda seja considerada uma subárea da Linguística segundo a clas-
sificação da Capes), restringi a busca às áreas de concentração seguintes:
Estudos de Linguagem, Interdisciplinar em Linguística Aplicada, Letras
e Linguística. Desse modo, foram encontradas 5 dissertações e 2 teses
(ver Quadro 2).

Quadro 2 – A branquitude em pesquisas da grande


área de Linguística, Letras e Artes

Pesquisador/a Curso / Estado Objetivo geral da pesquisa


Thiago Simões Mestrado Interdisci- Compreender de que maneira os
(2009) plinar em Linguística membros de uma comunidade virtual
Aplicada / Rio de Ja- no site Orkut chamada Beleza Branca
neiro constroem discursivamente a identi-
dade racial branca.
Eliana Machado Mestrado em Letras / Investigar os discursos das mulheres
(2016) Minas Gerais brancas acadêmicas refletindo como
elas se posicionam em relação às suas
identidades sociais articuladas às suas
vidas profissionais acadêmicas.
Marivete Souta Mestrado em Estudos Investigar como as(os) alunas(os)
(2017) da Linguagem / Paraná brancas(os) e negras(os) expressam suas
identidades étnico-raciais por meio da
produção de textos autobiográficos, a
partir de uma intervenção pedagógica.

49
Pesquisador/a Curso / Estado Objetivo geral da pesquisa
Cardes Amancio Doutorado em Estudos Analisar a imagem do sujeito negro no
(2019) de Linguagens / Minas Brasil, produzida por autores brancos
Gerais ao longo dos séculos de escravidão e
após a abolição, para a criação e ma-
nutenção do ideário colonial e a nor-
matização da opressão pelo racismo.
Leda Doutorado Interdisci- Investigar como as ideologias de raça
Boaventura plinar em Linguística comparecem em conversas sobre ra-
(2020) Aplicada / Rio de Ja- cismo entre professoras em uma escola
neiro pública do Rio de Janeiro.
Mariana Veiga Mestrado em Linguísti- Analisar os discursos produzidos por
(2021) ca / Minas Gerais estudantes de uma escola pública para
construir uma compreensão a respeito
de como esses sujeitos se posicionam
sobre vida social, direitos humanos,
racismo, branquitude e opressões.
Daniela Mestrado em Letras / Investigar de que forma, na obra Ame-
Scheifler (2021) Rio Grande do Sul ricanah, os temas da branquitude e da
supremacia branca apareciem proble-
matizados pela personagem Ifemelu
no seu percurso migratório, ao deslo-
car-se da Nigéria aos Estados Unidos
Fonte: elaboração própria com base no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes,
destaques meus.

Dos 7 trabalhos produzidos e defendidos entre os anos de 2009


e 2021, em distintos programas de pós-graduação do país, na seção
seguinte, apresento um panorama da primeira dissertação desenvolvida
na área de LA.

4. Aspectos analíticos: o que objetivam as pesquisas?


Com vistas a compreender como a categoria branquitude, mais co-
mum em pesquisas da área de Ciências Humanas, foi mobilizada na LA
– uma ciência que foca nos problemas de uso da linguagem (e suas mul-
tissemioses) enfrentados pelas/os participantes do discurso nas variadas
práticas sociais –, exponho uma síntese da dissertação “SOS laboratórios

50
de engenharia genética”: a construção discursiva da branquitude em uma
comunidade do site Orkut, de Simões (2009).
Ao analisar a fragilidade da branquitude, “referente a um modo de
ser que tornou-se naturalizado com o triunfo do projeto emancipador
modernista”, a dissertação de Simões (2009, p. 11) é pioneira nessa te-
mática na LA do Brasil. Como indivíduo negro, que só teve consciência
crítica da própria racialidade na universidade – rodeado por brancas/
os –, interessou-se pela construção do discurso das identidades sociais,
em particular da identidade branca. Para compreender melhor o objeto
de estudo do pesquisador, apresento um trecho em que, de modo au-
tobiográfico, ele nos conta um pouco das experiências corpóreo-raciais
vivenciadas.

[...] nem sempre me considerei negro. Filho de mãe negra e


pai branco, durante boa parte da minha infância e adolescência
aprendi que seria mais fácil – e cômodo – para mim se me classi-
ficasse como branco ou moreno, apesar de um de meus colegas
no ensino fundamental – branco – me chamar de negro. Ao não
aceitar minha condição de negro, procurava fugir do racismo.
Moro desde a infância em um bairro de classe média-baixa na
cidade do Rio de Janeiro e durante o ensino fundamental e mé-
dio, estudei em uma escola particular (SIMÕES, 2009, p. 11).

Reconhecer-se, tornar-se, assumir-se negra/o ou branca/o é uma


etapa essencial para a imersão reflexiva e honesta nos estudos críticos
das questões raciais, como nos mostram Mattos e Accioly (2021) em
trabalho publicado recentemente, no qual, por meio de uma ousada
autoetnografia, alternam suas vozes e narram experiências pessoais que
se entrelaçam em torno dos corpos de uma mulher negra e de uma
mulher branca que vivem (e sentem) as consequências do racismo de
forma distinta. Para Simões (2009), esse fenômeno só foi possível ao se
descobrir como alteridade e entender as dimensões que interseccionam
tanto a negritude quanto a branquitude, como gênero e classe social.
O fato de ser um homem de classe média-alta e de frequentar lugares
privilegiados aparentemente o protegeu, por um tempo, dos grilhões do
racismo sistêmico contemporâneo.

51
Mantendo a narrativa em primeira pessoa, semelhante a “um na-
vegante [que] descreve detalhadamente sua jornada pelos mares em seu
diário de bordo” (SIMÕES, 2009, p. 16) e apoiando-se na análise crí-
tica do discurso, na semiótica social e nos estudos sobre letramentos e
sobre relações raciais no Brasil, o pesquisador mergulha em uma LA
que se faz mestiça/transgressiva a fim de analisar o modo pelo qual a
identidade racial branca foi discursivamente construída na comunidade
virtual Beleza Branca, do extinto Orkut, que há época possuía 3680 usu-
ários. Embora a descrição Comunidade destinada a todos os admiradores
da Beleza Branca, independentemente de raça, credo, religião, ideologia
etc. transmita uma aparente ideia de espaço virtual aberto a todas as
pessoas, a imagem de uma criança branca com olhos azuis e os trechos
de um texto do líder americano neonazista David Lane confirmam o
posicionamento racista da comunidade.
De natureza interpretativista e utilizando referências sobre questões
raciais, Simões (2009) analisou dados coletados entre setembro de 2008
e janeiro de 2009. Os textos apresentavam informações do/a i) perfil da
comunidade Beleza Branca, ii) perfil de uma participante branca bas-
tante ativa na comunidade e iii) discussão intitulada S.O.S engenharia
genética. Assim, por meio de teorias linguísticas e sociais, o pesquisa-
dor identificou itens lexicais, transitividade verbal, intertextualidade e
imagens que colaboraram com o objetivo pré-estabelecido. A seguir,
exponho trechos do corpus analisado (SIMÕES, 2009).

Aqui no RS [...] quem curte pele branquinha vai ter q torcer


para a engenharia genética começar a colocar em prática a ‘fa-
bricação’ de bebês brancos.
Realmente não tem mais volta, as garotinhas branquinhas aqui
mal saíram das fraldas e já estão agarradas num mulatinho ou
negrinho de olhos escuros...
Este fato, não só ocorre no RS, mais no pais, no mundo ao
todo. Nós mulheres que ainda preservam nossa beleza, vamos
ter trabalho rs (p. 111).
Minha avô [...] Ohh velha danada! Vive xingando as vizinhas da
rua dela: - Estas encardidas fdp!! Que ficam ouvindo musica de

52
padre logo de manha! (p. 123).
[...] mas acho que ainda não é o momento de nos importarmos
com os negros, temos que nos importa com nós mesmo (p. 126).
[...] esses brancos que querem ser negros nada mais são que alie-
nados da mídia? a mídia que visa destruir a identidade cultural
dos povos caucasianos (p.135).

Esses trechos, assim como as conclusões de Simões (2009), nos mo-


bilizam a reflexões críticas em torno de questões que necessitam da má-
xima urgência para indivíduos que vivem em coletividade, mas ainda
não compreenderam a rica diversidade que deveria nos unir indepen-
dentemente do fenótipo ou genótipo de cada uma/um. A defesa explí-
cita da supremacia de brancas/os pela comunidade Beleza Branca reflete
os ideais nazistas contemporâneos que propagam no mundo virtual (e
para além deste) planos de extermínio físico e simbólico da popula-
ção negra, a qual é desumanizada diariamente. Vale destacar também o
quanto essa pesquisa se liga aos achados de Dias (2007) e o quanto exige
de nós, brancas/os, que saiamos da zona de conforto/neutralidade em
que a suposta igualdade racial nos coloca.

5. Considerações finais
As enormes distorções que atravessam as identidades raciais se re-
fletem tanto nos lugares de vantagens que naturalizam a vida de pessoas
brancas como padrão quanto na apuração detalhada da vida de indiví-
duos negros para discussões sobre o racismo. Como doutoranda em LA
inserida em uma linha de estudos críticos e ciente de meu pertencimen-
to ao grupo opressor, o qual não é comumente tema de pesquisas, senti
a necessidade de investigar como a categoria branquitude é explorada
em dissertações e teses de programas de pós-graduação em Linguística,
Letras e Artes.
Mapear tais pesquisas é, acima de tudo, uma possibilidade de deso-
cultar a conveniente invisibilidade de cor que permeia a sociedade bra-
sileira em todas as instâncias. Tal cegueira nos faz normalizar que bran-
cas/os ocupem indiscriminadamente os melhores postos de trabalho,

53
as escolas/faculdades mais renomadas, os bairros com maiores índices
de desenvolvimento humano, os importantes espaços publicitários, os
papéis mais representativos em filmes/novelas, entre outros.
Nessa direção, o modo como os trabalhos são desenvolvidos mostra
que, normalmente, os sujeitos se engajam em práticas discursivas situ-
adas concernentes as suas realidades, seja em ambiente virtual ou real.
Por exemplo, os mais de 3600 usuários da comunidade Beleza Branca
(SIMÕES, 2009) compartilham (em prol de engajamento) crenças e
valores de superioridade racial branca defendidos pelo regime neona-
zista, os quais rememoram o holocausto, genocídio que assassinou mi-
lhões de pessoas ao longo da Segunda Guerra Mundial.
Embora os estudos críticos sobre a branquitude aliados a uma pers-
pectiva antirracista de LA ainda sejam escassos, as discussões iniciais
levantadas neste texto nos direciona a reivindicar: i) a compreensão
de que o processo de racialização é o primeiro passo para o indivíduo
situar-se em seus lugares de fala e ação; ii) a produção séria de trabalhos
acadêmicos que deem visibilidade e credibilidade ao assunto; iii) uma
literatura consistente e atualizada que ponha em xeque as certezas de
brancas/os. Assim, de modo sincero e ético, será possível enegrecer a
vida e embranquecer o tema das pesquisas para interromper a escalada
de opressão racial.

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54
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56
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

CONSTRUINDO UM MODELO DIDÁTICO


PARA O ENSINO DO GÊNERO CONTO

Alana Cerqueira Paranhos Capitó (UFPE)


Gustavo Lima (UFAPE)

RESUMO: Neste artigo, procuramos propor subsídios didático-metodológicos


para o agir didático com gêneros da ordem do narrar na escola a partir
da elaboração de modelos didáticos, sob a ótica da Didática das Línguas
(SCHNEUWLY E DOLZ, 2004; DOLZ, GAGNON E DECÂNDIO,
2009; SCHNEUWLY, 2009). O presente estudo foi desenvolvido no âmbito
do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/UFRPE) e
do Núcleo de Pesquisa em Discurso e Ensino (NUPEDE). A pesquisa contou
com duas etapas: uma pesquisa bibliográfica (GIL, 2010) e, em um segundo
momento, uma análise documental (LÜDKE e ANDRÉ, 2012). Esta pesquisa
visou responder, especificamente, aos seguintes objetivos: a) identificar as
dimensões ensináveis do gênero conto de modo a propor um modelo didático
do gênero; e b) criar um repositório digital para ampla divulgação do modelo
didático do gênero. A escolha do gênero conto deve-se ao fato de este ser
um gênero recorrente nos livros didáticos, mas cujas dimensões ensináveis
são quase sempre associadas à estrutura do gênero. O modelo didático aqui
proposto pretende ampliar essas dimensões e foi elaborado com base no
levantamento do estado da arte sobre o ensino do gênero conto e na análise de
exemplares autênticos do gênero conto e suas variações.
PALAVRAS-CHAVE: Modelo didático; gêneros textuais; conto.

ABSTRACT: In this paper, we seek to propose didactic-methodological


subsidies for the didactic action with genres of the narrating order in school,
from the elaboration of didactic models, through the perspective of Didactic
of Languages (SCHNEUWLY AND DOLZ, 2004; DOLZ, GAGNON
AND DECÂNDIO, 2009 ; SCHNEUWLY, 2009). This study was developed
within the scope of the Institutional Program for Scientific Initiation
Scholarships (PIBIC/UFRPE) and the Nucleus for Research in Discourse and
Teaching (NUPEDE). The research had two stages: a bibliographical research
(GIL, 2010) and, in a second moment, a documentary analysis (LÜDKE and
ANDRÉ, 2012). It specifically aimed to respond to the following objectives:
a) to identify the teachable dimensions of the short story genre in order to

57
propose a didactic model of this specific genre; and b) create a digital repository
for wide dissemination of the didactic model of the genre. The choice of the
short story genre is due to the fact that this is a recurrent genre in textbooks,
which teachable dimensions are almost always associated with the structure of
the genre. The didactic model proposed here aims to expand these dimensions
and was prepared based on a survey of the state of the art on teaching the short
story genre and on the analysis of authentic examples of it and its variations.
KEYWORDS: Didactic model; textual genres; short story.

Introdução
A proposição de tomar os gêneros textuais como objeto de ensino-
aprendizagem está atrelada à ideia de que língua é social e, como tal,
apresenta-se em textos, orais e escritos, que circulam na sociedade, com
funções específicas e que “surgem, situam-se e integram-se funcional-
mente nas culturas em que se desenvolvem” (MARCUSCHI, 2002,
p. 20). Ao considerarmos a perspectiva de gêneros textuais como ins-
trumento para mediar o processo de ensino-aprendizagem da língua e
das marcas discursivas que a constitui, é importante que encontremos
caminhos viáveis para ensiná-los. Nessa perspectiva, os modelos didáti-
cos podem funcionar como subsídios didáticos para o aprimoramento
e simplificação do saber. Apresentado como enfoque sanar carências de
aprendizagem, o modelo didático possui duas características: 1) ele é
destinado a orientar as intervenções dos professores; e 2) apresenta as
dimensões ensináveis, com base na criação de diversas sequências didá-
ticas (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 82).
Neste artigo, propomos subsídios didático-metodológicos para a
construção de um modelo didático do gênero conto5. A escolha desse
gênero deve-se ao fato de este ser um gênero recorrente nos livros di-
dáticos, mas cujas dimensões ensináveis são quase sempre associadas à
5
Essas pesquisas, realizadas entre os anos de 2016 e 2018, analisaram as capaci-
dades de linguagem contempladas nas propostas curriculares de Caetés e Gara-
nhuns, o processo de agrupamento e progressão de gêneros e a decomposição do
gênero como objeto de ensino nos livros didáticos de língua portuguesa adotados
pelos municípios de Caetés e Garanhuns.

58
estrutura do gênero. O modelo didático aqui proposto pretende am-
pliar essas dimensões e foi elaborado com base no levantamento do es-
tado da arte sobre o ensino do gênero conto e na análise de exemplares
autênticos de tal gênero e suas variações.
Adiante, apresentaremos conceitos importantes para a sistemati-
zação e estruturação deste trabalho, bem como para que pudéssemos
caminhar em solo firme ao lado de teorias importantes para o desen-
volvimento deste estudo. Para atingirmos o objetivo desta pesquisa, nos
fundamentamos em autores como Bakhtin (2003), Bronckart (1999),
Machado e Cristovão (2006), Machado (2010), Marcuschi (2002,
2008) e Schneuwly e Dolz (2004). Os pressupostos teóricos que serão
abordados a seguir são: a noção de gênero e seu ensino; noção de mo-
delo didático; e a análise de textos através dos três níveis da arquitetura
textual propostos por Bronckart (1999). A estrutura do artigo segue
a apresentação dos procedimentos-metodológicos e, posteriormente, a
análise e resultados dos dados, finalizando com as considerações finais.

Considerações acerca da noção de gênero e seu ensino


sistemático
De acordo com Bakhtin (2003), os gêneros do discurso (assim
denominados pelo autor) são vistos como uma elaboração feita pelo
campo de utilização da língua, dos seus tipos relativamente estáveis de
enunciados. Ou seja, o emprego da língua ocorre através de enuncia-
dos, orais e escritos, “falamos apenas através de gêneros do discurso”
(BAKHTIN, 2003, p. 282). Marcuschi (2008) destaca a importância
do gênero como uma parte que integra a estrutura comunicativa da
sociedade e, sendo assim,afirma que é impossível não se comunicar ver-
balmente por meio de gêneros. Pode-se dizer que os gêneros textuais
são formas para a nossa inserção na sociedade, para a ação no dia a dia.
Dolz e Schneuwly (2004) apresentam a noção de gênero “utili-
zada como meio de articulação entre as práticas sociais e os objetos
escolares, mais particularmente no domínio do ensino da produção
de textos orais e escritos” (DOLZ e SCHNEUWLY, 2004, p. 61). O

59
ensino-aprendizagem através dos gêneros textuais evita que as práticas
de linguagem tenham uma imagem fragmentária acerca da sua apro-
priação. Desse modo, os gêneros textuais são referências intermediárias
para a aprendizagem de língua, considerado como “um mega-instru-
mento” (DOLZ e SCHNEUWLY, 2004).
Ademais, segundo Marcuschi (2008, p. 173), “a vivência cultural
humana está sempre envolta em linguagem e todos os textos situam-se
nessas vivências estabilizadas simbolicamente”. Nesse sentido, podemos
observar a importância de o ensino de língua ser situado em contextos
reais da vida cotidiana.

Considerações sobre a noção do modelo didático e a sua


importância no ensino de língua portuguesa
O modelo didático, ou melhor, a sua construção “pode ser conside-
rada a explicitação de um conjunto de hipóteses fundadas sobre certos
dados, quando estes estão disponíveis” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004,
p. 180). Os modelos didáticos fornecem objetos potenciais para o en-
sino. De um lado, pelo fato da necessidade de seleção acerca da função
das capacidades dos aprendizes e, por outro lado, não se pode ensinar
o modelo como tal, “é por meio das atividades de manipulações de
comunicação ou metacomunicação a respeito delas que os aprendizes
têm acesso aos gêneros modelizados” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004,
p. 182).
Tardelli e Apostolo (2018) consideram o modelo didático como
algo provisório, cuja estrutura sofre alterações de acordo com a evolu-
ção do sistema educacional. Assim, Tardelli e Apostolo (2018) definem
o modelo didático como um produto de práticas históricas, sempre em
transformação. Ao conhecermos essas mudanças, podemos rever os mo-
delos já existentes e integrar, de forma satisfatória, as práticas escolares
passadas e atuais.
É importante destacar que, de acordo com De Pietro e Schneuwly
(2003), os modelos didáticos não fazem parte de um único nível de

60
elaboração. Esses autores defendem a existência de modelos intuitivos
ou implícitos e modelos explícitos ou complexos. O modelo implíci-
to funciona, segundo os autores, como “cópia e é apenas um pouco
mais desenvolvido que uma sequência didática dada” (DE PIETRO;
SCHNEUWLY, 2003, p. 18), resultado das limitadas dimensões do
gênero a ensinar. Sendo assim, é defendida, na proposta da engenharia
didática, a elaboração de modelos explícitos, os quais consideram ilimi-
tadas dimensões do gênero a ensinar e incluem as diversas variações do
gênero escolhido e, consequentemente, a produção da diversidade de
sequências didáticas (DE PIETRO; SCHNEUWLY, 2003).
Para finalizarmos esta seção, destacamos a relação entre sequência
didática e o modelo didático de gêneros. O modelo didático do gênero
tem como função organizar as características gerais sobre um determi-
nado gênero textual a ensinar. As sequências didáticas, por sua vez, se
baseiam no modelo didático e planificam as atividades e estratégias de
ensino. Esse processo foca no objetivo de levar os aprendizes a mobiliza-
rem os conhecimentos adquiridos durante a sequência para as diversas
situações comunicativas, orais ou escritas.

Considerações no que concerne a arquitetura textual


Bronckart (1999) propõe, para analisar textos que fazem parte de
diferentes gêneros, um modelo da arquitetura interna dos textos que
tem como foco a análise do folhado textual. Esse folhado textual é com-
posto: 1) pela infraestrutura global do texto, dividida em plano geral/
global do texto, tipos de discurso, sequências; 2) pelos mecanismos de
textualização, que são conexão, coesão nominal e coesão verbal; e 3)
pelos mecanismos de responsabilização enunciativa, compostos de mo-
dalizações e das vozes presentes no texto. Além disso, Bronckart (1999)
considera, para fins de análise textual, a importância de compreender o
contexto de produção do texto.
Na análise do folhado textual (BRONCKART, 1999), é iniciado
pelo primeiro nível, o da infraestrutura geral do texto, constituído pelo
plano global dos conteúdos temáticos, pelos tipos de discurso e pelas

61
sequências. O segundo nível de análise do folhado textual, de acordo
com Bronckart (1999), é a identificação de dois mecanismos que atri-
buem aos textos uma coerência global: os mecanismos de textualização
e os mecanismos enunciativos. Conforme Bronckart (1999), no tercei-
ro nível do folhado textual, são analisadas as modalizações, estas que
fazem parte das avaliações do enunciador sobre um ou outro aspecto
do conteúdo temático abordado no texto e que podem ser divididas
em: lógicas, deônticas, pragmáticas e apreciativas. Nesse mesmo nível
do folhado textual, as vozes explicitam as instâncias que assumem ou
se responsabilizam pelo que está sendo dito e também fazem parte dos
mecanismos enunciativos (BRONCKART, 1999).

Metodologia
A coleta de dados foi desenvolvida em quatro etapas e incluiu, ini-
cialmente, uma pesquisa bibliográfica (GIL, 2010) e, em um segundo
momento, uma análise documental (LÜDKE; ANDRÉ, 2012). Assim,
o presente estudo previa, na sua etapa inicial, o resgate de dados das
fases anteriores do projeto de pesquisa, a fim de identificarmos qual
gênero era priorizado pelos currículos e coleções de livros didáticos mais
adotadas nos municípios de Caetés e Garanhuns, situados na região
do agreste meridional do Estado de Pernambuco, o que nos levou aos
gêneros conto.
Em síntese, a coleta de dados consistiu inicialmente no levanta-
mento dos estudos já disponíveis na literatura científica sobre o gênero
conto. Partimos aqui da premissa de que esses estudos nos ofereceriam
subsídios teórico-metodológicos para a construção do modelo didático
desse gênero. De posse desses dados, realizamos, na etapa seguinte, a
coleta de 10 (dez) exemplares autênticos dos gêneros em diferentes su-
portes, os quais foram analisados com base nas categorias do folhado
proposto por Bronckart (1999). Por fim, com base nos estudos pré-
vios e na análise de exemplares autênticos desses gêneros, definimos as
suas dimensões ensináveis, de modo a construir o modelo didático do
gênero (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004).

62
ANÁLISE DOS DADOS

A Construção do modelo didático do gênero conto


Na construção do modelo didático também se faz necessária a aná-
lise de exemplares do gênero para que possamos identificar as dimen-
sões ensináveis e as características recorrentes importantes para o ensino
de língua. Esta seção contemplará uma análise de dez exemplares do
gênero conto a partir das categorias de condições de produção dos tex-
tos, de acordo com Bronckart (1999), os três estratos do folhado textual
(BRONCKART, 1999) observáveis nos exemplares do gênero conto e
o modelo didático.
Para a escolha na nossa pesquisa dos exemplares de conto, levamos
em consideração o acesso e a extensão dos contos, uma vez que não
tínhamos muito tempo para nos debruçarmos na leitura e na análi-
se de textos longos e, consequentemente, que apresentam uma maior
complexidade. Durante o momento da busca e do recorte dos contos
para o nosso estudo, contamos com a ajuda de uma das colaboradoras
da pesquisa, Karine Pereira dos Santos. Com base nos exemplares de
conto encontrados em blogs, revista e em coletânea de livros, montamos
um quadro com o título, o/a autor/a, a fonte e referência dos textos.
Observemos:

Quadro 1: Levantamento de exemplares do gênero conto

TÍTULO/ FONTE
(de onde/quando foi retirado? Informar referência
da revista, jornal, site, etc.)
Missa do Galo – Machado A Biblioteca Virtual de Literatura. Link de acesso:
de Assis http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://
www.biblio.com.br/conteudo/MachadodeAssis/mis-
sadogalo.htm. Acesso em: 25 de abril de 2021.
Dois corpos que caem – Palavras Rabiscadas. Link de acesso: https://mscamp.
João Silvério Trevisan wordpress.com/2008/11/27/dois-corpos-que-caem-
-joao-silverio-trevisan/. Acesso em: 25 de abril de 2021.

63
TÍTULO/ FONTE
(de onde/quando foi retirado? Informar referência
da revista, jornal, site, etc.)
O Gato Vaidoso – Montei- Conto Brasileiro. Link de acesso: https://contobrasi-
ro Lobato leiro.com.br/o-gato-vaidoso-conto-de-monteiro-lo-
bato/. Acesso em: 25 de abril de 2021.
A caçada – Lygia Fagundes Conto Brasileiro. Link de acesso: https://contobra-
Telles sileiro.com.br/a-cacada-conto-de-lygia-fagundes-te-
lles/. Acesso em: 25 de abril de 2021.
O homem que sabia javanês UNAMA. Acesso em: 25 de abril de 2021. Link de
– Lima Barreto acesso: http://www.dominiopublico.gov.br/down-
load/texto/ua000165.pdf. Acesso em: 25 de abril de
2021.
A moça tecelã – Marina Co- Página da Beatrix. Link de acesso: http://www.bea-
lassanti trix.pro.br/index.php/a-moca-tecela-marina-colasan-
ti/. Acesso em: 25 de abril de 2021.
Maria – Conceição Evaristo EVARISTO, Conceição. Olhos d’Água. 1° ed. Rio de
Janeiro: Pallas, 2016.
I – Mário Rodrigues RODRIGUES, Mário. Receita para se fazer um
monstro. 1° ed. Rio de Janeiro: Record, 2016.
Marília acorda – Natália POLESSO, Natalia Borges. Amora. Porto Alegre:
Borges Polesso Não Editora, 2015.
O amuleto – Renata Py Revista acrobata. Link de acesso: https://revistaacro-
bata.com.br/demetrios/conto/o-amuleto-um-conto-
-de-renata-py/. Acesso em: 16 de junho de 2021.
Fonte: Elaborado pelas bolsistas desta pesquisa

Como podemos observar no quadro acima, os exemplares de con-


tos é da autoria de diferentes escritores, situados em diferentes tempos
históricos: (01) O conto Missa do Galo escrito por Machado de Assis;
(02) Dois corpos que caem de autoria de João Silvério Trevisan; (03)
O Gato Vaidoso de Monteiro Lobato; (04) A caçada da escritora Lygia
Fagundes Telles; (05) O homem que sabia javanês escrito por Lima
Barreto; (06) A moça tecelã da autoria de Marina Colassanti; (07) Maria
produzido por Conceição Evaristo; (08) I escrito por Mário Rodrigues;
(09) Marília acorda de Natália Borges Polesso; e (10) O amuleto da

64
escritora Renata Py. Cada exemplar apresenta características particula-
res, porém, considerando os objetivos deste estudo, nos debruçamos em
suas características comuns, como veremos nos próximos parágrafos.
Através da análise dos contos, notamos o domínio discursivo fic-
cional e o contexto de circulação que se trata da esfera de circulação
Literária/artística. Os exemplares do gênero conto foram publicados
em blogs voltados para a produção/divulgação de literatura, em revis-
tas e alguns livros, estes suportes são caracterizados como ferramentas
para publicação e compartilhamento de outros gêneros também. No
conto, há a predominância do tipo de discurso narrativo, a primeira
ou terceira pessoa do singular e/ou do plural, também pode apresen-
tar outros discursos, como o descritivo a depender do foco da narra-
tiva, como observamos a caracterização (descrição) de personagens e
ambientes. As estruturas linguísticas do gênero são, na maioria dos
exemplos, simples, porém também podem apresentar uma linguagem
complexa. Podemos observar a predominância de organizadores tem-
porais, advérbios (de lugar, de tempo, de modo), conectivos. E nos
tempos verbais, a predominância do Pretérito perfeito e imperfeito do
modo indicativo.
As temáticas exploradas são direcionadas a temas que abordem si-
tuações que misturam realidade com ficção e apresentam acontecimen-
tos absurdos com mistérios, suspense e medo. As narrativas podem se
desenvolverem em torno de um acontecimento trágico, mas que têm
um final feliz. Além disso, podem apresentar situações realistas que te-
nham como objetivo divertir os leitores, que envolvem lembranças e
sentimentos ou que possuam a intenção de levar o leitor a refletir.
Na análise dos contos, identificamos as categorias das condições
de produção dos textos (BRONCKART, 1999) que influenciaram na
produção dos exemplares do gênero conto: o contexto de produção e o
conteúdo temático.
Segundo Bronckart (1999, p. 93), no primeiro plano, todo tex-
to resulta de um comportamento verbal concreto, “todo texto resulta

65
de um ato realizado em um contexto físico”, o contexto de produção.
Sendo assim, além dos lugares de produções que observamos nos exem-
plares dos contos, o lugar de produção pode ser livros, revistas, mural
da escola, sites de internet voltados para a produção/divulgação de li-
teratura, e-books, entre outros. Já o momento de produção pode ser
indeterminado ou está presente na modernidade. O produtor pode ser
um escritor que faz parte das esferas literária, acadêmica, entre outras.
Enquanto o público-alvo são leitores em geral, professores, estudantes,
crianças, adultos, entre outros.
No segundo plano a produção de todo texto, de acordo com
Bronckart (1999), marca atividades de uma formação social ou de in-
teração comunicativa, sendo esse o mundo social e o mundo subjetivo,
seu conteúdo temático. Isso refere-se ao conteúdo temático que trata o
lugar social, posição social do produtor, posição social do público-alvo
e o objetivo da interação. O lugar social é o da esfera literária, em de-
corrência disso, tem sua circulação em escolas, como a sala de aula e
sala de leitura, em espaços públicos como a biblioteca pública, o teatro,
clubes de leitura, cinema e entre outros. A posição social do produtor
é caracterizada de acordo com a ocupação no lugar social. A posição
social do público-alvo → Papel de aluno, papel de leitor, de professor,
ou de acordo com o lugar social. Enquanto o objetivo da interação pode
ser de transmitir histórias acumuladas pelo imaginário popular, uma
sequência de fatos ou acontecimentos diversos.
Na análise dos textos, seguimos os três níveis da arquitetura tex-
tual propostos por Bronckart (1999). No primeiro nível, o da infraes-
trutura, identificamos o plano global dos textos, os tipos de discursos
e dos tipos de sequências. No nível dos mecanismos de textualização,
fizemos o levantamento dos mecanismos de conexão, coesão nominal
e coesão verbal. E, no nível dos mecanismos enunciativos, identifica-
mos as modalizações e as vozes. A infraestrutura geral do gênero conto
apresenta estruturas organizadas em planificação geral do conteúdo
temático e os tipos de discursos, os quais são as sequências. Abaixo,
abordamos o quadro que mostra os três estratos do folhado textual do
gênero conto.

66
Quadro 2: Os três estratos do folhado textual no gênero conto

A INFRAESTRUTURA OS MECANISMOS DE OS MECANISMOS


GERAL DO TEXTO TEXTUALIZAÇÃO ENUNCIATIVOS
• Situação inicial, con- • Organizadores tempo- • Vozes de personagens,
flito (desequilíbrio), rais, advérbios (de lugar, vozes sociais;
clímax, desfecho, ele- de tempo, de modo), co- • Modalizações: deônti-
mentos da narrativa nectivos; cas; lógicas/epistêmi-
(personagens, tempo, • Pronomes pessoais, rela- cas; apreciativas; prag-
espaço, narrador); tivos, demonstrativos e máticas.
possessivos,
• Sintagmas Nominal;
• Predominância do Preté-
rito perfeito e imperfeito
do modo indicativo.
• Predominância do tipo de
discurso narrativo primei-
ra ou terceira pessoa do
singular e/ou do plural.

Fonte: Elaborado pelas bolsistas desta pesquisa

A planificação geral do gênero conto, ou melhor, organização do


conteúdo é feita a partir da situação inicial, conflito (desequilíbrio),
clímax e desfecho. Na situação inicial dos exemplares de contos, no-
tamos o momento em que a narrativa apresenta os elementos que nos
fazem compreender os contextos da narrativa, os quais, em sua maioria,
foram apresentados os personagens, o tempo e o lugar em narrativa
faz parte. No conflito, os contos apresentaram o momento em que as
ações narradas são marcadas pelo traço de complicação, um problema,
que leva o leitor ao clímax da narrativa. Já o clímax, foi caracterizado
pelo momento da tensão entre os personagens e/ou as suas ações. Os
contos apresentaram o desfecho marcado pela finalização da narrativa,
o desenvolvimento e conclusão da temática abordada. Nos tipos de dis-
cursos, observamos os elementos da narrativa, os quais são personagens,
tempo, espaço e narrador.
Ao analisarmos os exemplares do conto, nos mecanismos de

67
textualização identificamos a presença de organizadores temporais, ad-
vérbios de lugar, de tempo e de modo, assim como conectivos. Esses
elementos foram reforçados por segmentos de discurso da ordem do
narrar, organizados em sequências de descrição e de explicações. Nos
contos analisados, a introdução ou a retomada ocorre através de pro-
nomes pessoais, relativos, demonstrativos e possessivos ou de sintagmas
nominais. Além disso, observamos a predominância do tempo do pre-
térito perfeito e pretérito imperfeito do modo indicativo. Observamos
também o predomínio do discurso narrativo na primeira e/ou na tercei-
ra pessoa do singular e/ou do plural.
Em relação aos mecanismos enunciativos, o gênero textual con-
to apresenta vozes e modalizadores para respaldar, apoiar e justificar o
ponto de vista assumido pelos produtores, assim como as informações
que são levadas para o texto pelo escritor. Com base na seleção de vozes,
as vozes de personagens e as vozes sociais são introduzidas em forma
de discurso indireto e discurso direto, o emprego dessas vozes depende
das intenções, dos objetivos e dos estilos dos escritores, visto que cada
produtor os utiliza de acordo com o modo que ver como adequado para
introduzir a temática ao texto. O uso das modalizações varia também de
acordo com os objetivos, de acordo com as representações das situações
narrativas e da produção das representações narrativas que o produtor
quer causar para o determinado leitor sobre essa imagem que quer pas-
sar da história relacionada ao que estabelece entre o produtor e o leitor.
As modalizações identificadas, aos analisarmos o conto, foram lógicas,
apreciativa, deôntica e subjetiva.
As características apresentadas nos parágrafos acima são as que mais
são presentes nos contos, o que significa dizer que alguns contos não
apresentam todos os elementos, uma vez que gênero conto, assim como
os outros gêneros textuais, sofre modificações ao longo do tempo. Ao
realizarmos a análise dos exemplares, notamos que a principal mudança
entre os contos clássicos e os modernos está na temática. Os contos
modernos estão voltados para a representação das classes marginalizadas

68
da sociedade, como o negro e o homossexual. Assim, abordando temas
que estão sendo discutidos atualmente e que promovem a reflexão sobre
a voz dos excluídos, além de aproximar a ficção da realidade, visto que
apontam assuntos vividos no cotidiano, sem utopias e sem desfechos
encantados. Observamos também que os diálogos diminuíram nos con-
tos modernos. O conto Dois corpos que caem, de João Silvério Trevisan,
possui uma característica peculiar: não possui desfecho. O conto encer-
ra-se no clímax.
Portanto, identificamos as características ensináveis do gênero
conto e construímos o modelo didático, levando em consideração o
conjunto de operações de linguagem que devem ser mobilizadas pelos
alunos para que eles desenvolvam capacidades de linguagem (ação, dis-
cursiva, linguístico-discursiva). Essa etapa constitui-se, primeiramente,
do estabelecimento da correlação entre as características dos gêneros,
de acordo com os níveis de produção e análise propostos no modelo do
Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), e as operações de linguagem que
o produtor mobiliza para realizar a produção verbal e do levantamento
das características ensináveis do gênero, a elaboração do modelo didáti-
co e a sugestão de atividades.
O modelo didático elaborado em nosso estudo foi produzido com
base na análise dos dez exemplares dos contos. Isso implica dizer que,
se conduzirmos a pesquisa com mais exemplares e em um tempo maior,
poderíamos, talvez, apresentar ainda mais características possíveis de
serem levadas para as aulas de língua portuguesa. O modelo didático do
gênero conto poderá ser observado a seguir:

69
Figura 1: Modelo didático do gênero conto

Fonte: Elaborado pelos autores

Repositório digital de materiais didáticos


Em resposta ao objetivo b) criar um repositório digital de materiais
didáticos com novos exemplares autênticos de gêneros da ordem do
narrar, a partir da plataforma Wix, criamos um site do projeto de pes-
quisa para disponibilizarmos o modelo didático do gênero conto. Dessa
forma, podemos tornar mais acessível aos professores os possíveis mate-
riais que possibilitem o ensino de gêneros de forma explícita e sistemá-
tica nas aulas de língua portuguesa. Trata-se de um repositório que será
constantemente atualizado com materiais didáticos, textos científicos e
divulgação de eventos relacionados ao ensino de gêneros.
O site, nomeado Repositório Digital de Materiais Didáticos
para o Ensino de Gênero, está sendo organizado nas seguintes abas:
Início, Sobre, Contato, Citação, Fórum (assim como o site, em cons-
trução) e Membros (em construção). A aba Início é organizada por
artigos científicos, dissertações, teses, monografias, palestras e
conferências, eventos científicos, materiais didáticos e referências
para o ensino de gênero. O objetivo desse espaço é reunir, em um
único espaço, diversos referenciais teóricos e materiais didáticos

70
que já estão disponíveis em outros espaços, de forma a facilitar
o acesso dos professores, auxiliando-os, de algum modo, no agir
didático com gêneros na sala de aula.
Na parte Início do site, os professores e as demais pessoas que aces-
sarem o site poderão navegar através dos links vinculados a cada título
dos materiais. Exemplo, o professor que estiver navegando no site e cli-
car no título “O domínio dos acadêmicos de letras a análise linguística
em gêneros textuais” será direcionado ao local em que esse material está
disponibilizado. Os materiais presentes nessa aba foram coletados pelas
colaboradoras desta pesquisa, Camila Santos Ferreira e Karine Pereira
dos Santos, em repositórios digitais. Já a aba de Palestras e Conferências,
foram pesquisadas na plataforma do YouTube.
Além desse Início, o blog conta com a aba voltada às informações
sobre o próprio repositório. Esta aba, denominada Sobre, apresenta
um breve resumo sobre os demais projetos idealizados pelo professor
Doutor Gustavo Lima, idealizador e orientador deste estudo, os cola-
boradores envolvidos em cada etapa da pesquisa e atuais.
A aba Sobre o Blog aborda a história das pesquisas do PIC/PIBIC
desenvolvidas sob orientação do professor Gustavo Lima. Uma história
que envolve algumas pessoas, como Lucas Diniz, o primeiro orientan-
do do projeto idealizado pelo professor Gustavo Lima em 2016. Esse
projeto buscou analisar as capacidades de linguagem contempladas nas
propostas curriculares de dois municípios que compõem a região do
Agreste Meridional, a saber: Caetés e Garanhuns. A partir dessa pes-
quisa, houve o desenvolvimento de outras pesquisas, como as das cola-
boradoras Leidiane Raimundo e Delmira Yane, no período de 2017 a
2018. As pesquisas desenvolvidas nesse período analisaram o processo
de decomposição do gênero como objeto de ensino nos livros didáti-
cos de língua portuguesa e o processo de agrupamento e progressão
de gêneros no livro didático de língua portuguesa. A partir de 2018 a
2019, as pesquisas tiveram continuidade com Camila Santos e Jéssica
Florentino, que analisaram o agir de didático do professor de língua
portuguesa no ensino de gêneros. De 2019 a 2020, as pesquisas foram

71
desenvolvidas por Camila Santos e Alana Cerqueira, que focaram nas
ressignificações do professor de língua portuguesa acerca do agir didá-
tico com gêneros.
Na seção O que temos, é destacada a disponibilização de artigos
científicos desenvolvidos no âmbito do PIC/PIBIC e outros artigos
necessários para a apropriação da teoria de gêneros textuais. Como já
dito, as demais abas são direcionadas a monografias, dissertações
de mestrado e teses de doutorado que tratam da temática, além de
anais de eventos sobre os gêneros textuais nas diversas modalidades.
Na aba de materiais didáticos, ainda haverá a disponibilização desses
materiais, uma vez que serão postadas sequências didáticas desenvol-
vidas na disciplina de Didática e Avaliação, ministrada pelo professor
Gustavo Lima, no curso de licenciatura em letras na UFAPE. Essas
sequências didáticas ainda precisam da autorização dos alunos que de-
senvolveram cada uma e para serem publicadas no blog com a devida
referência aos produtores.
Na aba Quem Somos, é disponibilizado as informações sobre as in-
tegrantes do projeto de pesquisa e da produção do site, assim como do
orientador da pesquisa, o professor Gustavo Lima. O projeto é compos-
to por duas graduandas em letras pela Universidade Federal do Agreste
de Pernambuco, Alana Cerqueira e Andressa Maria, até então bolsistas
do PIC/PIBIC. O projeto conta também com duas graduadas em letras
pela UFAPE, Karine Pereira dos Santos, pós-graduanda em metodolo-
gia do ensino de língua inglesa e espanhola pela FAVENI, e por Camila
Santos que, atualmente, é mestranda em educação no Programa de
Pós-Graduação em Educação Contemporânea (PPGEduc) pela UFPE
(campus Caruaru) e pós-graduanda em metodologia do ensino de lín-
gua portuguesa, literatura e língua inglesa pela FAVENI.
Na aba de contato, disponibilizamos o e-mail de acesso para mais
informações. Além disso, criamos um espaço de Chat para mantermos
um canal de interação com os professores que assim quiserem buscar
mais informações sobre o repositório ou sobre os materiais disponibili-
zados, tirar dúvidas e até mesmo compartilhar materiais.

72
Com base na produção do blog, além da disponibilização do e-mail
para contato, foi necessária a criação de um perfil na rede social do
Instagram com objetivo de dar mais visibilidade ao blog, uma vez que
o Instagram é uma rede social bastante acessada pelos usuários e conta
com muitas ferramentas para a divulgação de informações sobre o pró-
prio blog. Assim como site, o perfil do Instagram está em construção e
tem o objetivo de ampliar o compartilhamento de produções e eventos
científicos e materiais didáticos da área dos gêneros textuais. Abaixo, é
possível observar a captura de tela do perfil no Instagram:
Retornando ao repositório, o blog se configura em um espaço cria-
do exclusivamente para disponibilizar diferentes materiais de ensino,
aprendizagem e de produção científica. O objetivo é possibilitar trocas
entre docentes, pesquisadores, compartilhamento de materiais didáti-
cos, acesso às produções pedagógicas elaboradas por professores, profes-
soras, pesquisadores e pesquisadoras que desenvolvam os seus trabalhos
com base na perspectiva do ensino de gêneros textuais.

Considerações finais
A análise de exemplares autênticos do gênero conto nos blogs, nas
revistas e nos livros apontou algumas dimensões ensináveis do gênero
com base nas categorias propostas por Bronckart (1999) para a infraes-
trutura geral do texto. A situação inicial marcada pelo conflito (desequi-
líbrio), clímax, desfecho; elementos da narrativa (personagens, tempo,
espaço, narrador). Os mecanismos de textualização identificados nos
exemplares dos contos foram os organizadores temporais, advérbios (de
lugar, de tempo, de modo), conectivos; Pronomes pessoais, relativos,
demonstrativos e possessivos; Sintagmas nominal; Predominância do
Pretérito perfeito e imperfeito do modo indicativo; Predominância do
tipo de discurso narrativo primeira ou terceira pessoa do singular e/ou
do plural; Os mecanismos enunciativos foram vistos como as seguintes
dimensões: vozes de personagens, vozes sociais; Modalizações deônti-
cas, lógicas/epistêmicas, apreciativas e pragmáticas.

73
A criação do repositório digital de materiais didáticos com novos
exemplares autênticos de gêneros da ordem do narrar, no caso, o conto,
foi finalizada, porém, está e estará sempre em processo de construção
e ampliação. Esse repositório é destinado a um processo permanente
de produção de material didático para professores dos mais diferen-
tes níveis de ensino acessarem e utilizarem os gêneros como objeto de
ensino-aprendizagem nas aulas de língua materna. A busca constante
por ferramentas e recursos que contribuam para o ensino de língua é
constante. Além disso, a procura dos professores por bases e referências
teóricas são recorrentes. Visando isso, o nosso blog também se propõe a
divulgação de eventos voltados para a perspectivas dos gêneros no ensi-
no de língua. Nesse sentido, o repositório atua como um espaço que ar-
mazena objetos de aprendizagem e materiais didáticos produzidos, de-
vidamente referenciados, para serem suportes ou ferramentas nas aulas.
Destacamos a importância da construção de modelos didáticos
(MDG) por colaborar com o desenvolvimento de capacidades de lin-
guagens. A partir deste estudo, esperamos oferecer subsídios didáticos
que possam contribuir significativamente para o desenvolvimento do
agir didático dos professores de língua portuguesa, atrelando a isso um
trabalho sistemático e produtivo com a leitura e a produção de gêneros
na sala de aula. O modelo didático construído pode ser considerado
uma ferramenta importante para a aprendizagem significativa, sendo
capaz de contribuir para o desenvolvimento dos alunos. Mais impor-
tante ainda, o conhecimento não é acabado, consequentemente, a pro-
dução do modelo didático também não pode ser visto como uma pro-
posta inalterável ao utilizá-lo no ensino de língua portuguesa.

Referências
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São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 261-306.

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74
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75
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

BILETRAMENTO E PRÁTICAS SOCIAIS:


UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE MÉTODOS,
MATERIAIS DIDÁTICOS E INCLUSÃO

Aline Aquino Vieira -UFRJ

RESUMO: Tendências contemporâneas para métodos de alfabetização,


ancoradas em estudos nacionais e internacionais, apontam que a instrução
fônica explícita é essencial para o desenvolvimento das habilidades de leitura
e escrita, o que vem sendo amplamente difundido em documentos oficiais
como a PNA e a BNCC. Por outro lado, apoiadores dos métodos globais para
a alfabetização, cujas práticas de ensino propõem a construção de significados
por meio da contextualização, alertam para o fato de que as habilidades
de decodificação isoladamente não bastam para a compreensão textual e o
desenvolvimento do letramento crítico.O presente estudo objetiva investigar
a utilização de um método misto de alfabetização em Inglês, no contexto de
uma escola internacional e bilíngue no Brasil. A metodologia de pesquisa
empregada consistirá na elaboração e na utilização de um material didático,
baseado no relato das necessidades dos professores alfabetizadores em Inglês
através de entrevistas semiestruturadas e pesquisa de campo. Será realizada a
triangulação dos dados pré e pós intervenção para a aferição dos resultados da
utilização do material didático que se propõe a aliar a instrução fônica explícita
à utilização de gêneros discursivos autênticos, textos literários e atividades
lúdicas e sensoriais, respeitando a diversidade e as preferências de aprendizagem
dos alunos em fase de alfabetização. Esta pesquisa fundamenta-se nas diretrizes
do Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA), visando a eliminação de
barreiras para a aprendizagem, na teoria sociocultural elaborada a partir dos
estudos de Vygotsky e Bakhtin e na psicogênese da língua escrita de Emilia
Ferreiro. Inspira-se sobretudo na pedagogia Freireana rumo a transformação
social.
PALAVRAS-CHAVE: Biletramento; Inclusão; Bilinguismo

ABSTRACT: Contemporary trends in literacy methods, anchored in national


and international studies, point out that explicit phonics instruction is
essential for the development of reading and writing skills, which has been
widely disseminated in official documents such as the PNA and the BNCC.
On the other hand, supporters of global methods for literacy, whose teaching

76
practices propose the construction of meanings through contextualization,
warn that decoding skills alone are not enough for textual understanding and
the development of critical literacy. The present study aims to investigate the
use of a mixed method of literacy in English, in the context of an international
and bilingual school in Brazil. The research methodology used will consist in
the elaboration and use of a didactic material, based on the report of the needs
of literacy teachers in English through semi-structured interviews and field
research. Triangulation of pre- and post-intervention data will be carried out
to measure the results of the use of didactic material that proposes to combine
explicit phonics instruction with the use of authentic discursive genres,
literary texts and recreational and sensory activities, respecting diversity
and learning preferences. This research is based on the Universal Design for
Learning (UDA) guidelines, aiming at eliminating barriers to learning, on
the sociocultural theory developed from the studies of Vygotsky and Bakhtin,
and on the psychogenesis of written language by Emilia Ferreiro. It is mainly
inspired by Freire’s pedagogy towards social transformation.
KEY WORDS: Biliteracy; Inclusion; Bilinguism

Introdução
A procura por escolas bilíngues e internacionais têm mostrado cres-
cimento no Brasil e na América Latina devido à promessa de maiores
oportunidades para o futuro e a globalização dos mercados, visão sobre-
tudo potencializada pelas tecnologias de informação e comunicação em
que o inglês é a língua de maior prevalência. Há que se refletir, contudo,
sobre a responsabilidade emancipatória atribuída ao inglês em um país
em que, em língua portuguesa, “mais de 2 milhões de alunos concluin-
tes do 3º ano do Ensino Fundamental apresentaram desempenho insu-
ficiente no exame de proficiência em leitura” (BRASIL, 2019, p. 10) e
em que “3 de 10 brasileiros entre 15 e 64 anos podem ser considerados
analfabetos funcionais”, representando 29% dessa população no ano de
2018 (p.13).
Em pesquisa realizada na América Latina, 68% dos executivos
apontaram o inglês como a língua mais utilizada para os negócios embo-
ra a população seja predominantemente hispanófona (CRONQUIST;

77
FISZBEIN, 2017, apud BRASIL, 2020). Tal tendência levou o
Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 2020) a normatizar a mo-
dalidade nas Diretrizes Nacionais para a Oferta de Educação Plurilíngue
no Brasil enfatizando a posição do Inglês enquanto língua de prestígio:

As demandas por normatização de educação bilíngue/multilín-


gue que chegam ao CNE se reportam essencialmente às chama-
das línguas de prestígio, com destaque para o inglês, haja vista o
seu caráter de língua franca na contemporaneidade. (BRASIL,
2020, p. 14)

É, contudo, de vital importância problematizar que a simples


inserção nesse cenário em que o inglês é a língua de prestígio para
transações comerciais e interações sociais não garante o acesso
igualitário ao conhecimento e as oportunidades. É ingênuo pensar na
valorização da diversidade linguística e cultural enquanto aceitação das
diferenças se é justamente o inglês a língua da economia, das produções
culturais em massa, da ciência e da tecnologia (Archanjo, 2015, p. 626).
Entendemos, portanto, o papel do inglês de forma crítica, enquanto
capital-simbólico (Bourdieu, 1984), que dá acesso, mas também atua
como um marco de desigualdade social.
As Diretrizes chamam a atenção para o fato de que 80% dos es-
tudantes brasileiros da educação básica estão matriculados nas escolas
públicas e que é preciso tomar medidas para que as desigualdades edu-
cacionais já existentes não sejam potencializadas pela impossibilidade
de acesso das classes trabalhadoras à educação bilíngue. Ressaltam que
existem práticas de ensino plurilíngue nas escolas públicas (BRASIL,
2020, p.14), ainda que haja grandes dificuldades como a falta de for-
mação continuada para professores, carência de recursos e alto número
de estudantes por turma (BRASIL, 2020, p.19).
Embora seja inegável o aumento da demanda pelo bilinguismo nas
escolas, a modalidade é privilégio de poucos, visto que as vagas ofereci-
das pelas escolas públicas bilíngues são escassas e o valor investido para
a matrícula em estabelecimentos privados de ensino é fora da realidade

78
esmagadora das famílias brasileiras. Segundo reportagem veiculada no
portal da Multirio (ALTOÉ, 2018), no ano de 2018 a cidade do Rio de
Janeiro abrigava 25 escolas bilíngues e atendia 7.605 estudantes, ofere-
cendo ensino em espanhol, inglês, alemão e francês, o que de acordo
com relatos de profissionais participantes do projeto contribui para a
diminuição da evasão escolar, maior interesse dos alunos e aumento da
autoestima. É preciso, portanto, que medidas sejam de fato implemen-
tadas para a ampliação da oferta de educação bilíngue e qualificação
docente na esfera pública do ensino.
Em linhas gerais, as Diretrizes Nacionais para a Oferta de Educação
Plurilíngue no Brasil discutem divergências quanto à aprendizagem si-
multânea ou posterior de uma das línguas, a prevalência de uma sobre
a outra e estabelece níveis de proficiência mínimos para serem atingidos
pelos alunos. Afirmam que a educação plurilíngue ou bilíngue “implica
menos o ensino da língua e mais o aprendizado da língua adicional
pelo uso estruturado em conteúdos e contextos culturais relevantes”
(BRASIL, 2020, p 16). Destacam a importância de uma aprendizagem
socioculturalmente contextualizada que remeta à multiplicidade de vi-
sões de mundo em detrimento do foco da aquisição da língua enquanto
processo mecânico (p.17).
No que tange metodologias para a alfabetização, há muito debate
quanto à eficácia dos métodos. Em países de língua inglesa, a oposição
entre whole language e Phonics resultou nas chamadas reading wars, en-
quanto no Brasil, conflito similar ocorreu entre construtivismo e métodos
‘tradicionais’ analíticos e sintéticos (SOARES, 2021a, p.42). Ferreiro;
Teberosky (1999, p.28) atentam para a existência de dois tipos de traba-
lho na literatura sobre aprendizagem da escrita “os dedicados a difundir
tal ou qual metodologia como sendo a solução para todos os problemas,
e os trabalhos dedicados a estabelecer a lista das capacidades ou das apti-
dões necessárias envolvidas nessa aprendizagem”, lamentando o fato de
que em sua visão “os êxitos na aprendizagem são atribuídos ao método
e não ao sujeito que aprende”(p. 30).
No cenário brasileiro contemporâneo, os métodos fônicos (Phonics)
para alfabetização têm sido privilegiados, sobretudo em contextos

79
bilíngues, devido aos resultados publicados por estudos internacionais,
como o National Reading Panel (NICHD, 2000), que concluiu que a
instrução sistemática por Phonics se mostrou a forma mais efetiva para
o ensino de leitura nos Estados Unidos.
Segundo a Política Nacional de Alfabetização (BRASIL, 2019,
p.16), “a maioria dos países que melhoraram a alfabetização nas últi-
mas décadas fundamentaram suas políticas públicas nas evidências mais
atuais das ciências cognitivas” que apontam para a alfabetização fônica
através do “ensino sistemático e explícito das relações entre grafemas
e fonemas” como a abordagem mais eficaz, fundamentando-se pilares
como a consciência fonológica, a consciência fonêmica, a fluência de
leitura, o vocabulário e a compreensão de textos (BRASIL, 2019, p.
16). Outros documentos elaborados a partir de iniciativas nacionais
como os relatórios Educação de Qualidade Começando pelo Começo
(2004) e Aprendizagem Infantil: uma abordagem da neurociência, eco-
nomia e psicologia cognitiva (2011) corroboram com a mesma visão
e foram utilizados pela PNA para justificar a difusão da metodologia
fônica. Porém, como aponta Morais (2020, p.70) é importante:

não “importarmos” e “generalizarmos” as evidências obtidas em


um idioma para outro. Em primeiro lugar, porque precisamos
considerar que as palavras das línguas variam quanto ao tama-
nho, à tonicidade, à variedade e à quantidade de sons vocálicos
e consonantais (e suas combinações) que tendem a apresentar.
Por outro lado, porque o grau de regularidade ou previsibilida-
de das relações som-grafia varia muitíssimo entre as línguas, e
isso certamente influi sobre quais tipos de reflexão metafonoló-
gica as crianças precisam fazer sobre “partes orais” das palavras
para compreender como as letras do alfabeto as notam.

Sendo assim, ao generalizar evidências científicas oriundas de ou-


tros contextos sociais e linguísticos é promovido o apagamento do su-
jeito que aprende, desconsiderando seu contexto social, seus aspectos
identitários, seus objetivos para a aprendizagem e as características de
sua língua. Segundo Soares (2021a, p.108):

80
pode-se considerar evidente a diferença entre o nível de pro-
fundidade da ortografia do inglês, de grande opacidade, e o da
ortografia do português brasileiro, de ortografia transparente ou
próxima da transparência, o que muitas vezes torna inadequada
a transferência direta, para a alfabetização de crianças brasilei-
ras, de resultados de pesquisas sobre a aprendizagem da língua
escrita por crianças inglesas, como com certa frequência tem
sido proposto.

Por mais que as evidências científicas apontem para a eficácia da


instrução fônica explícita, isso em nada diminui o papel do contexto e
das práticas sociais enquanto potencializadores da aprendizagem e da
formação crítica do sujeito.
Na abordagem estritamente fônica, a aprendizagem é mecanizada
e o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita são desassocia-
dos da promoção de letramentos restringindo o papel do aprendiz ao
de reprodutor de padrões sonoros isentos de significado. Freire (2016,
p.79-80) chama a atenção para esse modelo em que caberia ao professor
“encher os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que
são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engen-
dram” (p.79) e ao educando “a memorização mecânica do conteúdo
narrado. Quanto mais se deixem docilmente encher, tanto melhores
educandos serão”. A essa educação de depositantes e depositários, Freire
chamou educação bancária (p.80).
É de vital importância problematizar o fato de que as metodologias
fônicas em questão têm origem em países como os Estados Unidos,
Canadá e o Reino Unido, ou seja, foram desenvolvidas para falantes na-
tivos da língua e não foram pensadas para falantes de diferentes línguas
maternas, tampouco contemplam o contexto sociocultural brasileiro.
Ao concentrar-se exclusivamente no ensino da mecânica da leitura
e da escrita, restringindo-se a associação e junção de letras e fonemas,
sem considerar o uso social da leitura e da escrita, os métodos estrita-
mente fônicos não promovem as práticas de letramento essenciais para
a formação leitora. Para Soares (2021b, p.27):

81
Alfabetização e letramento são processos cognitivos e linguís-
ticos distintos, portanto, a aprendizagem e o ensino de um e
de outro é de natureza essencialmente diferente; entretanto, as
ciências em que se baseiam esses processos e a pedagogia por
elas sugeridas evidenciam que são processos simultâneos e in-
terdependentes. A alfabetização – a aquisição da tecnologia da
escrita – não precede nem é pré-requisito para o letramento, ao
contrário, a criança aprende a ler e escrever envolvendo-se em
atividades de letramento, isto é, de leitura e produção de textos
reais, de práticas sociais de leitura e de escrita”.

O método de Paulo Freire para jovens e adultos demonstra a


possível e necessária articulação entre alfabetização e letramento
enquanto processos distintos, porém simultâneos. Ao se utilizar de
palavras-geradoras pertencentes às esferas sociais dos aprendizes para a
manipulação de sílabas e construção de novas palavras, o método cria
uma ponte entre o aprendiz e o conhecimento, respeita sua identidade.
No momento em que palavras-geradoras como “tijolo”, “luta” ou “fave-
la” objetivam o engajamento e dialogam com a realidade social e o con-
texto sociocultural dos aprendizes, deixam de ser aglomerados de letras
e sons e passam a ter valor e significado (BRUNO, 2015 p. 14519),
promovendo, portanto, para práticas de letramento.
A crítica aos métodos fônicos não se trata de um rechaçamento a
todas as suas concepções e estratégias. Se empregadas de forma crítica
e associadas ao ensino contextualizado e voltado às práticas sociais, po-
dem ser aliadas ao aprendizado. Tomemos como exemplo as habilida-
des para o desenvolvimento da consciência fonológica, que objetivam o
preparo para a alfabetização, e são comumente associadas aos métodos
fônicos. Ao desenvolver tais habilidades, o aluno aprende a identificar
sons do ambiente, padrões sonoros, rimas e aliterações, a manipular os
sons da fala e a identificar palavras, sílabas, letras e sons. O letramento
é promovido quando o desenvolvimento dessas habilidades é pautado
nas práticas sociais, dialogando com o conhecimento de mundo e com
o contexto sociocultural do aluno, deixando de ser um processo vazio e
sem significado.

82
Independentemente da língua privilegiada na alfabetização bilín-
gue, o aprendizado de uma língua serve como base para a outra. Segundo
Alves (2012a.p.173), “a consciência das diferenças entre a produção do
aprendiz de L2 e o falar nativo é vital para a aquisição dos diversos as-
pectos de uma segunda língua (fonológicos, sintáticos, morfológicos,
dentre outros).” Na alfabetização bilíngue, o aprendiz lida com sons da
língua inglesa não pertencentes ao inventário fonológico do português
e é através da consciência metalinguística, por meio de comparações
e contrastes, que percebe as diferenças entre os sistemas sonoros para
então manipulá-los (ALVES, 2012a, p.171). Para Morais (2020, p.41):

ao usar a linguagem, as crianças tendem não só a tratá-la como


um meio para interagir com os outros membros da cultura ao
seu redor, pedindo ou fornecendo informações, expressando
sentimentos ou interesses, mas também pensando sobre a lín-
gua, analisando-a, tratando a própria linguagem como objeto
de reflexão.

Cabe ao professor, portanto, buscar referenciais metodológicos e


evidências científicas para promover reflexões acerca de quando e como
usar estratégias oriundas de abordagens a sua escolha para promover
criticamente o ensino e aprendizagem de seus alunos.
A missão do professor-alfabetizador bilíngue é de grande comple-
xidade devido à escassez de formação específica nos cursos de licen-
ciatura, a importação de evidências científicas sobre alfabetização de
contextos em que o inglês é a língua materna e a escassez de materiais
didáticos para alfabetização bilíngue no contexto brasileiro. Sendo as-
sim, faz-se necessária a investigação sobre suas crenças, dificuldades e
práticas visando a elaboração de materiais que promovam práticas de
alfabetização e letramento, com o emprego de gêneros discursivos au-
tênticos que dialoguem com os contextos de ensino dos alunos brasi-
leiros. A “didatização não precisa estar distante da realidade e cabe ao
professor estabelecer uma ponte que une e aproxima o conteúdo a ser
ministrado com a prática social real do uso da língua” (DELL’ISOLA,
2009, p. 103-104).

83
O presente estudo objetiva investigar a utilização de um método
misto de alfabetização em Inglês que contemple a instrução fônica ex-
plícita e a promoção de práticas sociais. A alfabetização bilíngue no
contexto brasileiro carece de investigações e problematizações e é ne-
cessário estabelecer um diálogo entre as abordagens de ensino, aliando
estratégias em busca da aprendizagem contextualizada através de situa-
ções comunicativas autênticas para a formação leitora.

Pressupostos teóricos
Para a investigação proposta, a concepção de língua adotada é a de
inglês como língua global, não privilegiando uma variante linguística
em detrimento da outra. Ainda que a alfabetização busque estabelecer
relações grafofonêmicas apropriadas ao repertório fonológico da língua
inglesa, esse estudo se opõe a visão de que o aluno deva tentar reprodu-
zir padrões sonoros nativos de um país anglófono e refuta a visão de so-
taque enquanto defeito a ser eliminado. Segundo Ferreiro e Teberosky
(1999, p. 260) “a suposta ‘pronúncia correta’ ignora as variantes diale-
tais, impõe a norma da fala da classe dominante (a norma real ou ideali-
zada) e, ao fazê-lo, introduz um conteúdo ideológico do próprio início
da aprendizagem da leitura”, portanto, é preciso combater estereótipos
depreciativos sobre o inglês não nativo.
A visão de ensino empregada se fundamenta na teoria sociointe-
racional elaborada a partir dos estudos de Vygotsky (1991, 2010) e
Bakhtin (1986, 1997, 1999) acerca da valorização dos saberes prévios,
da atuação do professor enquanto mediador na construção do conhe-
cimento e da aprendizagem escolar aliada às práticas sociais através da
dialogicidade bakhtiniana, pautada na concepção de linguagem socio-
-historicamente situada e mediada por gêneros discursivos.
No âmbito da alfabetização e do letramento, são tomados como
base os estudos de Emília Ferreiro e Teberosky (1999), quanto à psico-
gênese da escrita, e de Magda Soares (2021a, 2021b), crítica ao status
contemporâneo do método fônico de detentor absoluto de soluções
para alfabetização. Este estudo alinha-se à visão de Soares (2021a, p.

84
28), que aponta para a existência de três facetas principais de inserção
no mundo da escrita que são priorizadas ou desprezadas dependendo
da abordagem utilizada: a faceta linguística da língua escrita enquanto
sistema de representação gráfica dos sons, relacionada ao processo de
alfabetização; a faceta interativa da língua escrita, enquanto veículo de
interação entre as pessoas e a faceta sociocultural, relacionada aos usos,
funções e valores atribuídos em contextos socioculturais, ambas rela-
cionadas ao letramento. A contemplação das três facetas é, portanto,
fundamental para o desenvolvimento da leitura e da escrita enquanto
práticas sociais. Contudo, é preciso desconstruir a ideia de métodos
universais que assegurem o aprendizado de todas as crianças e cabe ao
professor a tomada de decisões em relação às estratégias que vai privi-
legiar ou refutar em sua prática docente (CARVALHO, 2015, p.45).
Recorremos a Paulo Freire (2016) e a sua visão crítica para uma al-
fabetização emancipadora, que vai além da decodificação e da codifica-
ção de palavras vazias que não dialogam com a realidade do aprendiz e
o eleva a posição de protagonista em seu aprendizado. A aprendizagem
descontextualizada sócio-historicamente e culturalmente da leitura e da
escrita se detém ao domínio da mecânica do processo e despreza a fun-
ção da língua enquanto prática social. É preciso contemplar os saberes
prévios, valorizar as identidades e estimular o pensamento crítico dos
alunos, peças centrais desse processo. A aprendizagem não deve ocorrer
de forma passiva. Metodologias e práticas de ensino devem contribuir
para a reflexão e para a construção em detrimento da memorização e da
reprodução conforme o modelo bancário apontado por Freire (2016,
p. 80):

Em lugar de comunicar-se, o educador faz ‘comunicados’ e de-


pósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacien-
temente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção ‘bancária’
da educação, em que a única margem de ação que se ofere-
ce aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e
arquivá-los.

85
Sendo assim, o professor-alfabetizador bilíngue não deve restringir
a aprendizagem a um processo mecânico de repetição e memorização
isento de significados socioculturamente construídos.
A alfabetização é um momento de transposição de inúmeras barrei-
ras. Ao contrário da fala, o desenvolvimento da leitura e da escrita não
acontece de forma natural (SOARES, 2021a, p.45) requerendo uma
instrução explícita e sistemática por parte do professor, mediador do
conhecimento. No contexto bilíngue, Alves (2012b, p. 219) ressalta:

a necessidade de um trabalho de explicitação dos aspectos fo-


nético-fonológicos que garanta muito mais do que uma mera
descrição dos sistemas de sons das duas línguas. É preciso um
ensino de pronúncia que aborde o sistema linguístico em uso,
de modo contextualizado, voltado para a realidade do aluno,
conforme a caracterização de instrução explícita.

Geralmente, é durante a alfabetização que as dificuldades escola-


res começam a ser percebidas, podendo estar relacionadas aos chama-
dos Transtornos Específicos da Aprendizagem, definidos pelo Manual
diagnóstico e estatístico de doenças mentais6 (DSM-V) da Associação
Americana de Psicologia7 (APA), como dificultadores do desenvolvi-
mento acadêmico, profissional e social, sobretudo ao trazer compro-
metimentos para a leitura, como a dislexia. Para prevenção e superação
de barreiras para a aprendizagem, as diretrizes do Desenho Universal
para a Aprendizagem8 (DUA) serão também consideradas, visando a
acessibilidade na alfabetização para alunos neurodiversos, refutando o
chamado ‘one size fits all’.

Nos ambientes de aprendizagem, como escolas ou universi-


dades, a variabilidade individual é norma, e não exceção, há
muita diversidade. Quando os currículos são desenhados
para uma média imaginaria, não se considera a variabilidade/

6
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders.
7
American Psychiatric Association.
8
Universal Design for Learning.

86
diversidade real entre os estudantes. Esses currículos fracassam
quando tentam proporcionar a todos os alunos oportunidades
justas e equitativas para aprender, já que excluem aqueles com
distintas capacidades, conhecimentos prévios e motivacionais
que não correspondem ao critério ilusório da média. (Sebastián-
Heredero, 2020, p.735)

O DUA baseia-se no princípio de que a diversidade é a norma e,


portanto, estratégias para o ensino devem ser diversificadas, bem como
os instrumentos de avaliação. “Cada contexto de ensino-aprendizado
é único, uma vez que depende de diversas variáveis, como a realidade
do ambiente de ensino e as características individuais de professores e
alunos.” (ALVES ; BARRETO, 2012b, p. 232). Busca-se, portanto, a
elaboração de material didático inclusivo.

Metodologia
A investigação proposta por essa pesquisa qualitativa, alinha-se ao
paradigma interpretativista e possui base etnográfica e natureza aplica-
da. Será realizada investigação acerca das abordagens e metodologias
para alfabetização, através de revisão bibliográfica, buscando problema-
tizar e ressignificar suas aplicações no contexto de uma escola interna-
cional no Rio de Janeiro.
Serão analisadas as crenças, dificuldades e práticas do professor-al-
fabetizador em inglês, utilizando como instrumento de coleta de dados
questionários, entrevistas semi-estruturadas e relatórios a partir de ob-
servações em sala de aula.
A partir dos dados coletados nessa primeira etapa, será elaborado
um material didático com metodologia mista para alfabetização e le-
tramento em inglês baseado em gêneros discursivos autênticos e temas
que dialoguem com o contexto brasileiro. Para contemplar os diferentes
perfis e preferências dos aprendizes e remover barreiras para o apren-
dizado, serão utilizadas as diretrizes do DUA, envolvendo estratégias
auditivas, visuais e cinestésicas para engajamento, representação, ação
e expressão.

87
Após a conclusão da elaboração do material didático, será iniciada
a fase de utilização do mesmo em sala de aula, visando a análise dos
resultados práticos em relação às expectativas e metas propostas em sua
idealização.
A partir dos dados gerados, visamos responder às seguintes pergun-
tas de pesquisa:

1 – A metodologia de alfabetização mista proposta foi capaz de atender


às necessidades apontadas pelos professores com resultados significati-
vos para o processo ensino-aprendizagem?

2 – O material didático desenvolvido dialogou com o contexto socio-


cultural dos alunos contribuindo para a promoção do letramento?

3 – Considerando a neurodiversidade, os princípios do DUA poten-


cializaram o processo de alfabetização e letramento no contexto de
pesquisa?

Considerações finais
Ainda que se distancie da realidade da maioria dos estudantes bra-
sileiros, a educação bilíngue em português e inglês é uma crescente de-
manda em todo país. Seja sequencial ou simultâneo, o processo de al-
fabetização bilíngue carece de maiores investigações, sobretudo em um
cenário em que metodologias disputam uma posição de maior prestígio
gerando controvérsias que muitas vezes se sobrepõem às necessidades
dos alunos.
Tendências contemporâneas para métodos de alfabetização, anco-
radas em estudos nacionais e internacionais, apontam que a instrução
fônica explícita é essencial para o desenvolvimento das habilidades de
leitura e escrita, o que vem sendo difundido em documentos oficiais
como a Política Nacional de Alfabetização. Por outro lado, apoiadores
dos métodos globais, cujas práticas de ensino propõem a construção de
significados por meio da contextualização, alertam para o fato de que as

88
habilidades de decodificação isoladamente não bastam para a compre-
ensão textual e o desenvolvimento do letramento crítico.
A escassez de materiais didáticos para alfabetização em inglês no
contexto brasileiro é um fator complicador, pois os recursos encontrados
em fontes internacionais quase sempre oferecem atividades estritamen-
te fônicas, privilegiando a repetição e a memorização, de forma descon-
textualizada e sem a utilização de gêneros discursivos autênticos. Sendo
assim, esse estudo objetiva investigar o emprego de uma metodologia
de alfabetização em inglês mista, através da utilização de um material
didático elaborado para o contexto brasileiro, que se alinhe à concepção
de linguagem enquanto prática social e que possibilite a construção de
significados além da mera decodificação de palavras vazias.

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91
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

RELATOS DE EXPERIÊNCIA NO PIBIC


COM O GÊNERO JORNAL: A ABORDAGEM
DIALÓGICA NA AULA DE PORTUGUÊS

Aline Caroline Castro de Castro (UEPA)


Ana Paula Santos Pimentel (UEPA)
Cristiane Dominiqui Vieira Burlamaqui (UEPA)

RESUMO: O presente trabalho é um relato de experiência do projeto


PIBIC e objetiva apresentar os resultados das atividades desenvolvidas com
alunos do 9º do ensino fundamental, com o gênero discursivo jornal. A
luz da teoria dialógica do discurso, concebida por Bakhtin e o Círculo, os
conceitos de gênero discursivo (BAKHTIN, 2016) e entonação valorativa
(VOLÓCHINOV, [1926] 2019) orientaram as atividades em diferentes
direções: para os aspectos que caracterizam o gênero discursivo, para a vida
e para as possibilidades de produzir sentidos com a linguagem na aula de
língua portuguesa. Como uma das etapas do projeto PIBIC, a proposta das
atividades com o jornal tinha a finalidade de incentivar a produção autoral
dos estudantes, assim foram organizadas em etapas, conforme proposto pelo
grupo de Genebra na sequência didática, com uma produção final. A proposta
de trabalho com o gênero jornal permitiu explorar a indissociável relação entre
um gênero em circulação em uma esfera da atividade humana e os sentidos
que esse gênero pode assumir quando deslocado para outra esfera, neste caso
o diálogo entre as esferas jornalístico-midiática e a educacional. A produção
escrita dos estudantes materializou sua forma de recepção das orientações para
a produção do jornal, a sua compreensão sobre o papel social de um jornal,
as experiências vivenciadas em seu grupo social e o seu olhar único sobre esse
processo interacional na sala de aula.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de Língua Portuguesa; Gênero Jornal;
Abordagem dialógica da linguagem.

ABSTRACT: This current study is a PIBIC project experience report and


it aims to present the results of developed activities with 9th grade students,
concerning the newspaper discursive genre. The Dialogic Discourse theory’s
light, conceived by Bakhtin and the circle, the speech genres concept
(BAKHTIN, 2016) and Evaluative Intonation (VOLÓCHINOV, [1926]
2019) guided the activities in different directions: to the characterizing

92
features of Discourse genre, to life and to the possibilities of producing
meaning through language in the Portuguese Language class. As one of
the stages of PIBIC project, the activity proposal with the newspaper was
intended to encourage the students’ authorial production, thereby, stages were
organized, as proposed by Genebra’s group in teaching methods, including a
final production. The work proposal with newspaper genre made possible to
explore the inextricable link between a genre circulating in human activities’
sphere, and the meaning this genre can take when displaced to other sphere, in
this case the dialogue between journalistic-media and educational spheres. The
students’ writing production materialized their way of receiving the guidelines
for the newspaper production, their comprehension of newspaper’s social role,
the experience lived in their social group and their unique perspective on this
interactive process in the class room.
KEYWORDS: Portuguese Language Teaching; Newspaper genre; Dialogic
Language Approach.

Introdução
O presente trabalho é um relato de experiência do projeto PIBIC e
objetiva apresentar os resultados obtidos com o gênero discursivo jor-
nal, desenvolvido com alunos do 9º do ensino fundamental anos finais,
na Escola Estadual de Ensino Fundamental Monsenhor Azevedo, loca-
lizada na periferia de Belém do Pará.
O prédio em que a escola Monsenhor Azevedo está instalada per-
tence à Paróquia de São Judas Tadeu, e durante muitos anos não foram
realizadas reformas. No segundo semestre de 2021, após luta e insistên-
cia da comunidade escolar, iniciou-se uma reforma que se arrastou por
meses, deixando os alunos expostos a poeira, entulhos, banheiros em
condições precárias e salas de aula sem ventilação.
A necessidade de naquelas condições desfavoráveis retomar as ati-
vidades presenciais após um ano e meio de ensino remoto, exigiu-nos
sensibilidade para perceber as lacunas que os estudantes traziam do pe-
ríodo que estiveram realizando atividades por meio de WhatsApp ou
respondendo os impressos compostos por conteúdo e exercícios entre-
gues a eles e devolvidos na escola, em algumas circunstâncias os impres-
sos eram deixados sem terem sido respondidos.

93
Foi nesse cenário que o processo de ensino-aprendizagem da língua
portuguesa foi transformando-se em um espaço de debates, relatos e re-
flexões sobre o conjunto de elementos que constituíam a vida daqueles
jovens no ambiente escolar e fora dele.
A luz da teoria dialógica do discurso, concebida por Bakhtin e o
Círculo, a proposta de trabalho com o gênero jornal permitiu explorar
a indissociável relação entre um gênero em circulação em uma esfera da
atividade humana e os sentidos que esse gênero pode assumir quando
deslocado para outra esfera, neste caso o diálogo entre as esferas jornalís-
tico midiática e educacional. Nesse sentido, os conceitos de gênero dis-
cursivo (BAKHTIN, 2016) e entonação valorativa (VOLÓCHINOV,
2019 [1926]) orientaram as atividades em diferentes direções: para os
aspectos que caracterizam o gênero discursivo, para a vida e para as
possibilidades de produzir sentidos com a linguagem na aula de língua
portuguesa.
Como resultado da intervenção, obteve-se a produção de quatro
seções do jornal redigidas pelos estudantes, as quais dialogam com sua
visão de mundo no entrelugar da escola e da vida cotidiana.
Para melhor apresentar o percurso do estudo, organizamos este ar-
tigo em quatro seções e as Considerações finais. A primeira seção intitu-
lada O jornal na escola: o ensino da língua portuguesa, apresentamos um
breve histórico desde a chegada da imprensa no Brasil e como passou
a ser meio de comunicação e uma fonte de informação, de costumes e
de valores sociais, até a sua incorporação pela esfera escolar. Na segunda
seção, Abordagem dialógica da linguagem: gênero discursivo e entonação
valorativa, debatemos os conceitos de valoração e gênero discursivo se-
gundo os estudos de Volóchinov (2019 [1926]) e Bakhtin (2016). Na
terceira seção, intitulada Percurso metodológico, apresentamos aspectos
relativos à pesquisa de campo bem como a materialidade analisada e
os sujeitos participantes da pesquisa. Na quarta seção, “Folha Teen”: o
protagonismo dos estudantes na produção do jornal escolar, analisamos a
produção escrita dos estudantes. E nas Considerações finais, consti-
tuímos parte de nossa trajetória com vistas às reflexões que permitem

94
compreender como o gênero discursivo na escola assume as formas e o
estilo da esfera de origem.

1. O jornal na escola: o ensino da língua portuguesa


A Corte Portuguesa, em 1808, além de trazer grandes transfor-
mações políticas, econômicas e sociais, trouxe também a imprensa.
Instalada como Impressa Régia, esta foi a primeira editora brasileira
vinda de Portugal e teve a finalidade, no início, de imprimir papéis di-
plomáticos, a legislação e impressos para a propagação de notícias. Na
Imprensa Régia foi editado também o primeiro jornal da história no
Brasil, que ficou conhecido como a Gazeta do Rio de Janeiro. O perió-
dico teve uma publicação sobre a alimentação para os migrantes, sobre
a família real portuguesa e sobre o próprio Brasil, que era tratado como
“paraíso terrestre” (MOLINA, 2015).
Já no ano de 1891, foi fundado o Jornal do Brasil, tendo como foco
marcantes notícias políticas e um interesse em publicizar as artes e a
literatura da época. É importante ressaltar que a liberdade de imprensa
no Brasil sempre esteve envolta por eventos conflituosos, no qual um
deles ocorreu em 1923, quando o paulista Adolfo Gordo, advogado
e político brasileiro, criou a Lei de Imprensa de cunho autoritário e
restritivo, assim como na década de 60, quando predominou o regime
militar, com os atos institucionais e outras medidas de censura. As pu-
blicações que tentaram ser independentes e que criticavam as medidas
político-econômicas nessas épocas sofriam fortes represálias como mul-
ta, perseguições e, até mesmo, a prisão e tortura de vários jornalistas e
colaboradores.
Somente em 1988, com a promulgação da Constituição cidadã
brasileira, a liberdade de imprensa começou a se firmar e passou a ser
assegurada e, por conseguinte, passou a ser proibida toda e qualquer
forma de censura política, ideológica ou artística. Tal fato contribuiu
muito, aliás, para o desenvolvimento da imprensa e da visão que se tem
de imparcialidade e credibilidade, sendo a principal fonte de informa-
ção da população brasileira. O jornal impresso foi, durante um século

95
e meio, o principal meio de comunicação e de formação da opinião
pública, e praticamente o único, pois antes da era analógica e depois
da digital, grande parte da sociedade brasileira obtinham informações
pelos jornais impressos e seu conhecimento de mundo e consequente
senso crítico vinham desses veículos de informações, que muito con-
tribuíram com o papel de aguçar o interesse sobre os fatos políticos,
sociais, culturais e econômicos do país e do mundo.
O gênero discursivo jornalístico e a abordagem dialógica da lingua-
gem no ensino, ganham maior relevância com a renovação do currículo
e das metodologias de ensino operadas pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais - PCN, em 1998 (BONINI, 2011).
Porém, antes dos PCN (BRASIL, 1998), ainda na década de 1980,
já estava em debate no meio acadêmico os objetivos do ensino de por-
tuguês e como este ensino poderia de fato operar as mudanças neces-
sárias à melhoria da educação brasileira. Problematizou-se, entre outras
questões, a abordagem comunicativa voltada à capacidade do estudante
se comunicar, o que ainda parecia limitar o debate sobre a realidade
social da linguagem às funções da linguagem e aos meios de comunica-
ção. Emergia desse debate, uma nova orientação centrada nas práticas
sociais de linguagem a serem trabalhadas nos três eixos: leitura, escrita
e análise linguística (GERALDI, 1993). O que mais tarde, vai orientar
o debate presente nos PCN (BRASIL, 1998) e, atualmente, na BNCC
(BRASIL, 2018).
A respeito da utilização do gênero jornal como prática social de lin-
guagem nas aulas de língua portuguesa, Oliveira (2012) problematiza:

O conceito de gênero discursivo de Bakhtin tem sido levado


à exaustão nas discussões sobre a necessidade de mudança de
postura no ensino da LP. Assim, em relação aos gêneros, mais
especificamente aos do jornalismo, temos feito ressalvas quanto
ao trabalho realizado pela escola na utilização do conteúdo jor-
nalístico sem a devida postura crítica, uma vez que se trata de
discursos produzidos em diferentes momentos sócio historica-
mente situados, determinados, justamente pelo campo de onde
emergem” (OLIVEIRA, 2012, p. 158).

96
Oliveira (2012) afirma ainda que na prática estamos assistindo a
uma pedagogia que considera os gêneros discursivos quase que apenas
no aspecto de organização textual e das normas linguísticas ou a uma
transfiguração em nome de uma didatização promovida pela escola.
Ora, o jornal protagoniza bastante esse aspecto de organização textual,
com a estruturação de colunas, notícias, classificados e mais.
No entanto, a utilização do jornal no ensino de língua foi pensa-
da concomitante a ideia de trabalhar os aspectos formais e estilísticos
que constituem o gênero jornalísticos vinculando as tensões sociais que
estão impressas na maneira como são selecionados os fatos a serem no-
ticiados e a entonação valorativa dada à forma de veicular ao grande pú-
blico. Perspectiva do trabalho do gênero na escola que tem como base
teórico-metodológica a abordagem dialógica da linguagem, ou teoria
dialógica como vem sendo conhecida no Brasil.

2. Abordagem dialógica da linguagem: gênero discursivo e


entonação valorativa
Bakhtin (2016, p. 11) inicia seu ensaio intitulado “Os gêneros do
discurso” afirmando que:

Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados


ao uso da linguagem, no qual compreende-se que o caráter e
as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos
da atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade
nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-se em for-
ma de enunciados, sejam eles orais, escritos, concretos e únicos,
proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da ativida-
de humana.

Ou seja, a linguagem não é usada em um vácuo social, enunciar é


de dizer algo à alguém em um contexto onde as relações são estabeleci-
das com base nas formas dos gêneros discursivos relativamente estáveis,
nos níveis formalidade e informalidade definidos com base nas relações
hierárquicas entre os interlocutores, no contexto de produção e nas pos-
sibilidades que o acervo linguístico e cultural social disponibiliza. Tais

97
implicações, como por exemplo o campo jornalístico, é constituído por
enunciados articulados para atingir determinado público alvo e orientar
ideologicamente a notícia de acordo com os interesses dos grupos no
poder.
Outro aspecto importante a ser citado sobre as propriedades dos
gêneros discursivos produzidos e em circulação nas grandes mídias são
os elementos que os constituem: o conteúdo temático, o estilo e a cons-
trução composicional. Estes três elementos juntos estão ligados no con-
junto de enunciados e são determinados pelas especificidades da esfera
de comunicação.
É importante destacar que a noção de enunciado é um dos conceitos
mais caros ao Círculo de Bakhtin, sendo concebida como a própria
unidade da comunicação discursiva, pois “aprender a falar significa
aprender a construir enunciados (porque falamos por meio de enun-
ciados e não por orações isoladas e, evidentemente, não por palavras
isoladas)” (BAKHTIN, 2016, p. 39).
O enunciado pode ser concebido a partir de três características fun-
damentais: a alternância dos sujeitos do discurso, a conclusibilidade
específica do enunciado, a expressividade. É, pois, na expressividade
dos enunciados, que o analista pode observar a entonação, a valoração/
avaliação social, o modo como as ideologias (oficiais ou do cotidiano)
refratam os modos sociais de perceber o mundo. Em outras palavras, os
modos como as avaliações sociais, construídas nos grupos sociais, refra-
tam-se nos signos são mais “visíveis” na expressividade dos enunciados.
Isso porque o aspecto da expressividade está ligado à posição axiológica
dos interlocutores em dada situação de interação frente aos objetos de
discurso e de sentidos, ao auditório da interlocução e seus discursos,
“A relação valorativa do falante com o objeto do discurso [...] tam-
bém determina a escolha dos recursos lexicais [temática], gramaticais
[estilo] e composicionais [conteúdo composicional] do enunciado.”
(BAKHTIN, 2016, p. 47).
Ademais, a expressividade está ligada à entonação que, para
Volóchinov (2019 [1926], p. 123, grifos do autor), “[...] sempre está no

98
limite entre o verbal e o extraverbal, entre o dito e o não dito”. É, portanto,
na entoação que se marca a acentuação valorativa dos falantes no enun-
ciado (SILVA, 2012).
A valoração é um elemento constitutivo-funcional do enunciado,
portanto os elementos da língua que compõem a estrutura desse res-
pondem à valoração. A funcionalidade do enunciado é, portanto, valo-
rativa, avaliativa. Desse modo, a valoração é um elemento que é tanto
constitutivo quanto funcional. Ademais, a valoração é índice social, que
é avaliativo, expressivo e axiológico do enunciado. Assim, todo enun-
ciado reflete e refrata certo recorte do mundo social, uma certa projeção
do mundo social, ou como Volochínov (2019) pontua em seu ensaio de
1926, “A palavra na vida e a palavra na poesia”, o enunciado é como um
cenário da vida social. Esse cenário é sempre um cenário social-avaliati-
vo, social expressivo e social-axiológico, porque traz, na sua natureza, na
sua organicidade, um tom que é avaliativo dessa projeção que se enun-
cia. A valoração determina as escolhas linguísticas e composicionais do
enunciado, e a valoração determina os sentidos do enunciado.

3. Percurso metodológico
Hernandes e Ventura (1998) afirmam que o jornal escolar se re-
vela um dos instrumentos mais apropriados para o desenvolvimento
da metodologia dos projetos didáticos. É por essas e outras qualidades
e características já enunciadas nas seções anteriores que o jornal foi o
gênero para compor as atividades realizadas junto aos estudantes do 9º
ano do ensino fundamental, em janeiro de 2022, o final do período
letivo de 2021.
Sobre o projeto didático envolvendo o gênero jornal, Bonini (2011)
argumenta que:

A relação privilegiada com essa metodologia (projeto didático)


deve-se à importância social do jornal, a sua tecnologia de relati-
vamente simples implementação, e às possibilidades de autoria
e protagonismo que ele oferece a alunos, professores e comuni-
dade escolar de modo geral. (BONINI, 2011, p. 150).

99
Antes da efetivação do projeto didático, era discutida previamente
em reunião cada etapa, como resultado dos debates tínhamos orienta-
ções e sugestões à organização das atividades na forma de sequência di-
dática com foco na produção de um jornal e de suas seções. Ocorreram,
ainda, reuniões de estudo de obras e ensaios de Bakhtin, de membros
do Círculo e de seus interlocutores no Brasil.
Oliveira (2012) traz um trecho dos estudos de Bakhtin/Volóchinov
que consegue se relacionar com o que os alunos abordaram no Caderno
de Esporte;

“Cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo


de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua pró-
pria maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no
conjunto da vida social. É seu caráter semiótico que coloca to-
dos os fenômenos ideológicos sob a mesma definição geral.”
(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2009, p. 33 Apud OLIVEIRA,
2012, p. 163).

Diante disso, a partir da sequência didática previamente discutida


dentre as bolsistas do projeto para aplicação em sala, percebeu-se uma
possível relação com o ensino da língua portuguesa por meio da discus-
são de gêneros jornalísticos em uma perspectiva dialógica de linguagem
conforme pensaram os membros do Círculo Bakhtiniano.

“A particularidade dos enunciados da vida consiste justamente


no fato de que eles estão entrelaçados por mil fios ao contexto ex-
traverbal da vida e, ao serem isolados dele, perdem praticamente
por completo o seu sentido: quem não conhece o seu contexto
da vida mais próximo não irá entendê-los.” (VOLÓCHINOV,
2019, p. 121).

Para Bonini (2003), embora os PCNs de Língua Portuguesa colo-


quem os gêneros da imprensa como um dos principais conteúdos dos
currículos escolares, sabe-se muito pouco sobre quais são e como são
esses gêneros. Logo, observou-se que os alunos conheciam pouco sobre
o jornal impresso e suas divisões.

100
O tipo de intervenção didático-pedagógica usada na pesquisa de
campo, na literatura educacional, é concebido como pesquisa partici-
pativa, em que o pesquisador além de observador também participa
interferindo no fenômeno social. O trabalho desenvolvido com a turma
de de 9° ano foi intitulado de “Jornal na Escola”.
Todavia, os encontros presenciais na escola tiveram que ser suspen-
sos e as atividades seguiram de forma remota pelo aplicativo WhatsApp.
Essa mudança se deu porque no mês de janeiro, período em que esta-
vam programadas as atividades com a turma, ocorreu um surto de gripe
e de Covid 19 entre alunos, professores e pesquisadoras, que fez com
que as aulas fossem suspensas por um determinado período e as ativida-
des seguissem de forma remota.
A sequência didática se estendeu por cinco semanas, foram uti-
lizadas quinze aulas de português para que a atividade proposta fosse
colocada em prática com a turma. O período vigente foi do dia 04 de
janeiro até 04 de fevereiro de 2022. Além disso, o objetivo inicial era de
planejar coletivamente a realização de um jornal sobre várias temáticas
que foi definido em conjunto com os alunos, com regras acordadas e
divisão de grupos para a ação.
As seções e as pautas (tema) foram definidas coletivamente, a partir
do debate nos grupos. Em seguida os grupos fizeram a apuração das in-
formações, debateram sobre como iriam abordar o assunto, quem iriam
entrevistar, quais fontes iriam pesquisar para se apropriar da temática.
Cada grupo produziu seu texto, analisando criticamente seu ponto de
vista levando em consideração seu público alvo (a comunidade escolar).
Em virtude disso, foi trabalho, primeiramente em sala, a Notícia,
um texto informativo que apresenta informações sobre determinado
assunto, foi explicado para os estudantes que uma notícia é composta
por duas partes: sendo a primeira a lide, que seria o primeiro parágrafo
do texto e que nele é feito o resumo da proposta do jornal. Também
foi trabalho em sala a abordagem do gênero Reportagem, também é
um texto informativo, mas que se difere da notícia, pois tem função de
transmitir claramente uma opinião. Foi apontado os componentes que

101
uma reportagem pode conter, são eles: a manchete, subtítulo, lide e o
corpo do texto.
Bonini (2003) argumenta que a outra necessidade de se ter um
conceito de gênero aplicável é o fato de haver, no jornal, textos que
correspondem a uma seção específica (editorial, sumário, cabeçalho)
e outros que estão dispersos, não tendo uma identificação direta com
uma seção.
Houve também a leitura e um breve debate sobre uma crônica,
um gênero que pode ser produzido e circular em diferentes esferas da
atividade social, artístico-literária ou jornalística-midiática como são
apresentadas as esferas na BNCC, e, contudo, resguarda características
sociocomunicativas das esferas onde é recepcionada.
O gênero Editorial foi apresentado como sendo aquele dedicado
à opinião do jornal. Dessa forma, ao ser levado tais gêneros aos alunos
explorou-se os aspectos temáticos, estilísticos e composicionais de cada
seção do jornal, para que nas aulas posteriores os estudantes pudessem
escolher qual o gênero e como iriam produzir seu texto. Em seguida,
os alunos iniciaram a parte prática da elaboração do jornal, eles tive-
ram dúvidas e sempre perguntavam para a professora e as bolsistas do
projeto. Para auxiliá-los na composição do caderno do jornal, foram
distribuídos layout de cada seção com espaços para imagens e textos.
Durante as aulas foi notado engajamento e o empenho dos es-
tudantes na produção do caderno. No entanto, quando as atividades
passaram a ocorrer de forma remota, aquele engajamento diminuiu, e
alguns alunos e alunas passaram a não responder às provocações e ativi-
dades enviadas pelo WhatsApp.

4. “Folha Teen”: o protagonismo dos estudantes na produção


do jornal escolar
A partir das explicações e orientações dadas nas aulas de língua
portuguesa quanto às seções que compõem o gênero jornalístico,
como dito anteriormente, foi proposta a execução de um jornal escolar
pelos alunos. Na turma com 35 alunos matriculados, 18 estudantes

102
participaram da atividade. Os grupos escolheram o tema que mais se
identificavam e passaram a produção das matérias de acordo com as se-
ções do jornal: Capa do jornal, cinco estudantes responsáveis; Caderno
de moda, seis alunos; Caderno de esporte, cinco alunos; e o Caderno de
reportagem, três alunos.

4.1 Capa do Jornal “Folha Teen”

Imagem 1: Capa do Jornal.

Fonte: Pesquisa de campo realizada em Jan. 2022

“Folha Teen” foi o título escolhido pelos alunos para o jornal.


Desde o título, nota-se as referências na constituição de um acervo
sócio-interacional que remete à cultura transnacional própria de socie-
dades globalizadas. O termo “folha” na esfera jornalística reporta-se ao
principal veículo jornalístico que figura nos livros didáticos e, ainda,
sempre citado como fonte pelas mídias de massa: o jornal Folha de São
Paulo. Por outro lado, o signo Teen, um estrangeirismo, incorporado ao
léxico dos jovens como sinal da hegemonia econômica, política e cul-
tural de umas das maiores potências capitalistas da atualidade, a cultura
norte-americana.

103
O título do jornal estabelece relações dialógicas com a cultura de
massa que se torna parte constitutiva do conhecimento de mundo dos
jovens alunos, remetendo de um lado a um veículo popular da esfera
jornalística e de outro a um estrangeirismo que representa as vozes jo-
vens autoras do jornal. Na capa, o leitor visualiza as manchetes anun-
ciando o conteúdo do jornal e remetendo aos cadernos.
A impressão do layout da capa do jornal distribuído aos alunos,
serviu de base para composição das sessões. As colagens de imagens
representando os cadernos e suas respectivas matérias, demonstra a cria-
tividade na seleção de elementos verbo-visuais destinados a despertar a
atenção dos futuros leitores.

4.2 Caderno de Moda: estética dos professores

Imagem 2: Caderno de Moda

Fonte: Pesquisa de campo realizada em jan. 2022

Com base nos conceitos de valoração e gênero discursivo, a análise


do caderno de moda propõem-se dialogar com as escolhas dos estudan-
tes considerando o que para eles seria interessante tratar nesta seção e
como fazê-lo. A escolha em entrevistar os professores a fim de tematizar
suas vestimentas e acessórios, é um importante registro do multifaceta-
do modo de experienciar o espaço escolar como um espaço social múl-
tiplo constituído por diferentes sujeitos e estéticas variadas.

104
Imagem 3 - Título da matéria no Caderno de Modas

Fonte: Pesquisa de campo realizada em jan. 2022

Na manchete “AESTHETICS DOS PROFESSORES”, observa-se


novamente o emprego de uma palavra da língua inglesa compondo o
sintagma nominal, e abaixo, um subtítulo na forma de um questio-
namento, estratégia para envolver o leitor pois presume-se que ele irá
buscar a resposta no texto da matéria.
A estética é para esses alunos a assinatura dos professores, isto é,
as roupas e acessórios dos professores imprimem uma identidade, cada
professor é único pelo que usa.
Posto isso, nota-se o olhar minucioso dos estudantes dos estudan-
tes ao que os professores usam e como essas escolhas vão revelando ao
longo da matéria os gostos, histórias de vida, crenças, espaços de lazer,
interesses e suas identidades socioculturais.

Imagem 4: Entrevista com a professora Cristiane, de Língua Portuguesa

Fonte: Pesquisa de campo realizada em jan. 2022

A matéria inicia informando o dia da semana, a data e a repórter:


“Na sexta-feira dia 14, a aluna Iasmim Mendes, da turma 902, entre-
vistou a professora de português”. As informações prestadas situam o

105
leitor em um tempo-espaço da escola e da vida cotidiana. A partir disso,
os autores selecionaram trechos da entrevista que julgaram ser capaz de
construir um universo narrativo em torno da questão-lide “O que os
professores usam que os tornam únicos”, subtítulo do caderno de modas.
Na entrevista, a professora conta que seus acessórios vêm de feiras de
artesanato, essa informação vem seguida de uma descrição do estilo da
educadora. Na produção textual é possível identificar os conhecimentos
de recursos linguísticos (alternância entre as pessoas do verbo quando
na ausência de pontuação adequada e verbos declarativos) na delimita-
ção das formas do discurso. As flexões dos verbos que se alternam em
primeira pessoa do singular e do plural delimitam o discurso direto e o
indireto; o emprego dos verbos dicendi (disse e brincou), ou elocucio-
nários, enunciam quem fala ou o modo como o interlocutor se expressa.
Mais duas entrevistas com professores compõem o Caderno. Cada
uma chama atenção para a estética singular, isto é, o estilo de cada pro-
fessora: os acessórios, as cores e estampas de roupas e como cada cada
elemento revela singularidades.
Ao final da matéria, um título chama novamente atenção: “DICA
FASHION”, parte esta que direcionada a dicas de moda para os demais
alunos da escola.

Imagem 5: Dica fashion

Fonte: Pesquisa de campo realizada em jan. 2022

106
O uniforme da escola é o foco dessa parte da matéria: “O nosso
colegio tem um uniforme um pouco peculiar, isso dificulta os alunos
a acharem acessorios pelos quais se identificam, por isso aqui (…)”, os
autores avaliam e indicam o uso de acessórios como alternativa para
criar o estilo mesmo que o objetivo da vestimenta seja uniformizar
(uniforme).
Os desvios são indícios de um processo de escolarização ainda com
lacunas no uso adequado da norma, sendo que no nível de escolarização
desses estudantes já se prevê conhecimentos suficientes sobre ortografia,
pontuação e acentuação.

4.3 Caderno de Reportagem

Imagem 6: Caderno de Reportagem

Fonte: Pesquisa de campo realizada em jan. 2022

107
No “Caderno de Reportagem” é possível destacar a entonação va-
lorativa nas escolhas estilísticas dos estudantes. No enunciado: “muitos
acreditavam que a nossa nova direta seria a nossa secretária Gerusa”, é evi-
dente a avaliação prévia feita pelos estudantes na forma de abordar o as-
sunto “a nova diretora da escola”. O enunciado seguinte: “Segundo ela,
ela foi bem recebida e não teve problemas em se estabelecer”, evidencia o
posicionamento da diretora frente ao impasse diante de sua nomeação,
considerando que expectativas haviam sido criadas pela comunidade
escolar, tal qual orienta o enunciado anterior.
Na entrevista com a merendeira, o enunciado introdutório “Como
na maioria das escolas públicas no Brasil, a escola Monsenhor Azevedo
enfrenta problemas com relação a merenda escolar”, também assume en-
tonação avaliativa, a matéria segue com o registro das perguntas e res-
postas dadas pela merendeira da escola.
A consciência individual é constituída no meio social, por meio de
ideologias adquiridas na interação verbal, portanto, a expressão indivi-
dual sempre será socialmente orientada, pois está baseada nas condições
sócio-históricas dos sujeitos.

4.4 Caderno de Esporte

Imagem 7: Cadernos de Esporte

Fonte: Pesquisa de campo realizada em jan. 2022

108
O caderno de esporte, dividido em duas partes, teve a assinatura
de quatro estudantes. A imagem posicionada acima a direita tematiza
a canoagem como esporte que requer procedimentos e o reconheci-
mento de suas peculiaridades. Os autores usam um estilo informal em
tom de conversa com o leitor. Eles alertam sobre os cuidados que se
deve tomar na prática do esporte, “Se você estiver praticando canoagem
pela primeira vez comece devagar (...)” e, continuam, “(...)aprenda o
básico tornará o esporte mais divertido desde o início você terá uma
ideia melhor se deseja investir (...)”. Em seguida, eles apresentam os
equipamentos necessários para a prática do esporte e utilizam imagens
que orientam sobre postura durante as remadas e a maneira correta de
posicionar as mãos durante a prática do esporte.
No segundo Caderno, posicionado à direita da imagem 7, os alu-
nos/autores tratam do futebol, contam que “O esporte é praticado por
duas equipes”, e “O Futebol chegou ao Brasil em 1894”. Eles descrevem o
que é preciso para praticar o esporte, comentam sobre alguns jogadores
conhecidos, como Neymar e Pelé, e depois destacam duas imagens no
Caderno. As escolhas feitas pelos alunos na composição de seus textos,
caracterizam-se pelo tom injuntivo, apresentando as características de
cada esporte, orientando sobre as regras, os equipamentos e a maneira
adequada de praticá-los.
Os autores demonstram conhecimento e posicionam-se veladamen-
te sobre preferências e pontos de vista sobre quem pratica o esporte: “O
futebol é jogado entre equipes, é proibido jogar homem contra mulher”,
seguindo “Mas é um esporte praticado também por mulheres”. Além
de introduzirem com uma conjunção adversativa o enunciado que trata
da presença feminina no esporte, eles não citam jogadoras mulheres
que praticam o esporte. Os alunos finalizam enunciando que praticam
e gostam do esporte, bem como o assistem quando transmitidos na TV.

Considerações finais
O jornal na escola é um gênero produtivo para problematização e
reflexão sobre a relação entre forma, estilo e conteúdo. A introdução ao

109
gênero jornalístico e suas características composicionais, estilísticas e
temáticas não podem ser trabalhadas apartados de sua dimensão social,
isto é, como forma de interação entre sujeitos situados em contextos so-
ciais. A história do jornal no Brasil se mistura à construção de uma so-
ciedade brasileira que se transforma a partir da apropriação dos valores
e costumes vindos do Ocidente com a família real e a corte portuguesa.
A produção escrita dos estudantes registra a compreensão que têm
do gênero e sua apropriação na esfera escolar. Os temas escolhidos dia-
logam com a esfera escolar, mas o estilo e a forma composicional são
índices de sua apropriação do gênero jornal.
As dificuldades enfrentadas durante o desenvolvimento da pesquisa
de campo servem como registros desse cronotopo pandêmico que ainda
não se tem a real dimensão de suas consequências na escolarização de
crianças e jovens oriundos das camadas populares.
Por outro lado, esse estudo permitiu às pesquisadoras bolsistas e às
voluntárias do projeto PIBIC, identificar as diferenças entre a apropria-
ção da norma pelo aluno e o conhecimento sociodiscursivo que cada
sujeito adquire na interação social.
Essas questões somam à percepção de formação escolar, na compre-
ensão de que o trabalho com o gênero discursivo é sempre indissociável
das formas de interação social em cada esfera da atividade humana.

Referências
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Tradução, Posfácio e Notas); Notas da edição russa: Seguei Botcharov. São Paulo:
Editora 34, 2016.

BONINI, A. Jornal escolar: gêneros e letramento midiático no ensino-aprendizagem de


linguagem. RBLA, Belo Horizonte, v. 11, n. 1, p. 149-175, 2011.

BONINI, A Os gêneros do jornal: o que aponta a literatura da área de comunicação


no brasil? Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 4, n. 1, p. 205-231, jul./dez. 2003.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.

110
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:
terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos parâmetros curriculares
nacionais/ Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1998.

GERALDI, J.W. Portos de passagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

HERNANDEZ, F.; VENTURA, M. A Organização do currículo por projetos de


trabalho. Porto Alegre: Artmed, 1998.

JORNAL NO BRASIL. Joca, São Paulo, 28 de abril. de 2017. Disponível em: https://
www.jornaljoca.com.br/conheca-a-historia-do-jornal-no-brasil/ Acesso em: 06 de abril
de 2022.

MOLINA, M. M. História dos Jornais no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
2015.

OLIVEIRA, N. A. F. O conceito de campo em Bakhtin e Bourdieu para a abordagem


dos gêneros jornalísticos na escola. Revista Educação e Linguagens, Campo Mourão,
v. 1, n. 1, p. 157-173 ago./dez. 2012.

PEREIRA, R. A; GREGOL, F. A. O estudo dialógico da valoração. Letras De Hoje,


56(3), 482-496. Disponível em: https://doi.org/10.15448/1984-7726.2021.3.40679
Acesso em: 06 de abril de 2022.

VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, rese-


nhas e poemas/ Valentin Volóchinov; org., trad., ensaio introdutório e notas de Sheila
Grillo e Ekaterina Vólkova Américo – São Paulo: Editora 34, 2019.

111
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

CERZINDO TRAMAS E TEXTURAS:


RESSIGNIFICAÇÕES DE CONSTRUÇÃO DE
SABERES E MEMÓRIAS EXPRESSOS NOS
TECIDOS ANDINOS FEITOS POR MULHERES

Ana Carla Barros Sobreira-IEL-UNICAMP

RESUMO: O registro do processo de colonização nas Américas e mais


especificamente nas regiões indígenas do altiplano boliviano, tem seus
principais registros à luz de uma visão hegemônica europeia. O império
Inca, de tradição oral, repassava seus conhecimentos através de contos épicos
orais, o que dificultou entre os estudiosos modernos, o entendimento de suas
leituras quanto a colonização. Os únicos registros escritos que chegaram até
nós, se referem as saltas andinas que, ainda hoje, são produzidas por mulheres
da Cordilheira dos Andes. Assim, este texto apresenta um recorte de uma
pesquisa de doutoramento ainda em fase embrionária, que busca analisar
as narrativas expressas nos artefatos produzidos por mulheres da região dos
Andes, na Bolívia, tentando entender através dos estudos do Letramento,
Antropologia Social, Semiótica Social e Teorias Decoloniais entre outras
linhas teóricas, qual a visão da colonização europeia nessa região, dessa vez
sob a ótica dos habitantes indígenas. Trata-se de uma pesquisa etnográfica, no
sentido tradicional do termo, e que tem na cartografia a base para a coleta e
análise dos dados. Através desse método, buscaremos entender o paralelismo
e as intersemioses dos modos semióticos apresentados nas narrativas que
podem estar evidenciadas na construção dos significados que tecem o
texto. Acreditamos que esta pesquisa, pode contribuir para uma (re)leitura
da História, como nós a concebemos, e para o desenvolvimento de novas
investigações no âmbito dos estudos do letramento, que não observem as
imagens apenas como representação da realidade, mas como mensagens que
constroem seus próprios significados.

Introdução
Este texto delineia os passos iniciais de uma pesquisa de doutora-
mento ainda em fase embrionária, sem resultados conclusivos e que
está sendo construída junto às mulheres tecedoras da Cordilheira dos

112
Andes no altiplano boliviano. Como se trata de uma investigação em
andamento, buscaremos guiar os leitores e as leitoras em um alinhavo
contínuo, objetivando tecer o texto da tese e ressignificar os olhares
que temos para as mulheres subversivas dos Andes bolivianos. Galeano
(1986, p.1) disse: “Quem escreve, tece. Texto vem do latim “Textum”,
que significa tecido. Com fios de palavras, vamos dizendo, com fios de
tempo vamos vivendo: os textos são como nós, tecidos que andam.”
Dessa forma, juntamo-nos às mulheres do altiplano que tecem seus te-
cidos e tramam suas histórias de vida com palavras e com bordados. E
em cada salta9 e em cada desenho eu, pesquisadora k`ara10, me enxergo
incentivada a construir minha própria trama em forma de texto escrito
como se existisse um tecido-papel que ainda está sendo costurado.
O lidar com as linhas, as canções, os cantos das mulheres, me le-
vam a refletir sobre a construção de memórias e saberes das mulheres
andinas. Eu me guio através dos estudos da Linguística Aplicada e suas
características transdisciplinares que tecem teias entre teorias e metodo-
logias. Durante a construção deste texto, começo a fazer escolhas, sigo
instruções, leio e releio, e, parafraseado Ingold (2012, p. 5), me vejo
em um mundo de fervura constante onde os bordados dos tecidos são
imagens que falam, ou talvez eu mesma esteja participando de algo ino-
vador para o qual ainda não despertei: o aprender a ver com as palavras,
o reaprender a ler com as imagens e com os bordados.
Trata-se de uma pesquisa etnográfica no sentido tradicional do ter-
mo, que está sendo construída a partir das sensibilidades afetivas que
vão além das palavras do humano, abrindo-se tanto para a materialidade
quanto para o toque (BELLACASA, 2009), envolvendo linhas, telares,
wichiñas11, mulheres, memórias e identidades. Com isso, vai surgindo
lentamente o bordado na tese que envolve as sensibilidades e as subje-
tividades em uma forma holística dentro e fora da semiosfera andina,
que talvez venha finalizar em uma tese-bordada, de leituras lineares, que

9
Tecido.
10
Estrangeira na língua Quéchua.
11
Osso de lhama usado para tecer.

113
segue um fluxo e que transita através das referências bibliográficas e dos
letramentos acadêmicos.

Fig.1. Senhora originária iniciando um tecido -Oruro-BO.

Fonte: Acervo da autora. Maio de 2022.

1. Um pouco de História
Quando os conquistadores espanhóis chegaram à América Latina,
os Incas haviam atingido seu apogeu como uma das maiores sociedades
da época no contexto da Abya Ayala12. As maravilhas arquitetônicas des-
sa civilização como Machu Pichu no Peru sobrevivem até nossos dias
e na Bolívia pode-se destacar diversos sítios arqueológicos como por
exemplo o Portal do Tihuanacu, a 70 km da capital La Paz e Puma
Punku, uma cidade em ruínas próxima a Tihuanacu, que apresenta
uma interessante obra de engenharia, formando blocos de pedra que se
encaixam. Pode-se destacar também o Forte de Samaipata, patrimônio
12
A propósito do termo Abya Yala Carlos Walter Porto-Gonçalves (2002, p. 1) de-
senvolveu um verbete na Enciclopédia Latino-americana explicitando o termo e
que pode ser consultado no link http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/a/abya-
-yala. Acesso em 30 de janeiro de 2022. A grosso modo trata-se de um termo
usado como sinônimo de América, ou de Continente Americano.

114
mundial da UNESCO13 a 120km de Santa Cruz de la Sierra, construída
a 2 mil metros de altitude, cidade dividida em duas partes, um local
de cerimônias e as residências da população que lá habitava. Um outro
sítio arqueológico a ser destacado é a cidade perdida de Inkallajata na
região do Lago Poopó na Bolívia, ainda por ser explorada.
Segundo Galvão (2011), a história da civilização Inca, apesar de
muito breve, foi intensa e brilhante. No entanto, mesmo fazendo parte
de nossa história como latino-americanos, pouco conhecemos acerca
do período de 1200 a 1500. O fato é que, nesse período, o interes-
se dos estudiosos se concentrava na Europa, que ainda vivenciava o
Renascimento, o Ciclo Medieval, enquanto que, no Sul Global, acon-
teciam eventos importantes na América pré-colombiana, que fugiram
aos olhos dos investigadores.
Acredita-se, porém, que a civilização Inca não conhecia a escrita
como nós a concebemos. As histórias desses povos que chegaram até
nós são contadas oralmente ou carregam em si as visões hegemônicas
dos colonizadores espanhóis. Para Desrosiers (1997) a escrita da história
andina está indissoluvelmente vinculada à visão dos espanhóis, e não há
textos que possam ser interpretados através de uma visão tipicamente
indigena.
Para Galvão (2011), as únicas fontes que temos disponíveis para es-
tudos mais aprofundados sobre o tema são os textos de Garciliano de la
Vega, que escreveu Historie des Incas, Rois du Peru, publicado logo após
a dominação espanhola, e o livro de Felipe Guaman Poma de Ayala,
Nueva Corónica y Buen Gobierno, que retrata, através de imagens, sua
visão indigena da colonização. Obviamente as histórias escritas pelos
colonizadores eram repletas de crenças e motivações hegemônicas e et-
nocêntricas, afinal, não podemos dispor de nenhum documento que
descreva os períodos da invasão espanhola do ponto de vista Inca.
Ocorre que muitos estudiosos das terras altas andinas como por
exemplo, De la Jarra, Silverman, Burns, Ferrell, Platt, entre outros,

13
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura.

115
estão conseguindo identificar uma forma propriamente andina de es-
crita. São registros escritos e guardados pelos Incas, os quais chegaram
até os dias atuais, apresentando textos multimodais em tecidos feitos a
mão por mulheres andinas, as Saltas, como também artefatos têxteis de
cordas de algodão ou fibras em forma de nós que expressam mensagens
diversas, os Khipus. O primeiro estudioso a encontrar significados na
leitura dos Khipus foi Leland Locke (1912), que conseguiu decifrar um
sistema numérico decimal, o qual indicava números de valores diferen-
tes, segundo um tipo de nó e de sua posição.

Fig.2. Khipus da região de Oruro-BO.

Fonte: Acervo da autora. Janeiro de 2022.

Os documentos coloniais descrevem os Khipus como sendo usados


para tarefas de registro e de envio de mensagens através do império Inca.
Até hoje já foram inventariados 923 Khipus em museus distribuídos por
toda a América do Sul, América do Norte e Europa, distribuídos em 88
museus. Existe também um projeto de base de dados dos Khipus ini-
ciado em 2002 que mantém informações sobre descobertas de Khipus
em uma rede central internacional. Segundo The Storage Engine, site do
Museu de História da Computação,

O povo Tiwanaku viveu na Cordilheira dos Andes na América


do Sul, ao redor do Lago Titicaca na Bolívia de hoje, de cerca
de 1200 a 1500 dC. As evidências sugerem uma cultura sofisti-
cada, adepta da cronometragem astronômica, arquitetura, agri-
cultura e ordem social. Fragmentos de cerâmica de Tiwanaku
datados de 400 anos dC, retratava um ancião ou xamã tribal

116
com o braço estendido horizontalmente.Uma série de cordas
atadas que hoje são conhecidas como quipu pendem do braço.
Antes da sociedade Tiwanaku, os arqueólogos descobriram o
quipu mais antigo conhecido feito há cerca de 4.600 anos em
Caral, na costa peruana (In. YOFFEE, 2022, p.1).

Vale observar aqui que, no início do século XVI, os espanhóis in-


troduziram, nas comunidades indígenas dos Andes, uma espécie de te-
celagem movida a pedal como também a lã de ovelha que antes não
eram utilizadas nos tecidos andinos. Proibiram certos desenhos nas
Saltas e nas vestimentas, buscando controlar o processo de significação
cultural dos tecidos na tradição andina. Uma parte importante porém
foi salva dos conquistadores porque eles nunca suspeitaram que, dentro
dos tecidos andinos, em sua essência, existiam informações codificadas,
as quais até hoje se mantêm vivas em certas regiões dos Andes.
Os Khipus ainda podem ser encontrados em muitas comunida-
des indígenas do altiplano boliviano e são usados em festas e rituais
juntos com as Saltas que são os tecidos feitos por mulheres. As nar-
rativas expressas tanto nos Khipus como nas Saltas transmitem uma
visão cosmogônica14 de linguagem, uma forma de ciência e de filosofia
orais centrada no perspectivismo ameríndio andino15. Segundo Souza
(2020), no perspectivismo holístico andino, a linguagem se constitui
por dois eixos: através da metaforicidade (metáfora) e da contiguidade
(metonímia). No âmbito linguístico, podemos sintetizar que a meto-
nímia assume a função de significante em que a parte é tomada pelo
todo, e a metáfora, por sua vez, é verificada entre dois significantes,
14
O termo cosmogonia é oriundo da Filosofia e se refere à teoria sobre a origem
do universo geralmente fundada em lendas ou mitos e ligada a uma metafisica.
Como as testemunhas não são evidentes, as teorias de formação do mundo as-
sentam-se na fé (cosmogonias religiosas) ou no cálculo (cosmologias astronômi-
cas. Fonte: Gregório (2020).
15
Quero destacar aqui que meu primeiro contato com as Saltas e os Khipus ocor-
reram durante minha permanência para o trabalho de campo de minha pesquisa
de mestrado que desenvolvi no âmbito do PPGEL na Universidade Federal de
Uberlândia. (UFU) O texto da dissertação está disponível no repositório institu-
cional da UFU no link https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/30461.

117
construindo uma substituição, e na cadeia um significante assume o
lugar do outro.
Dessa forma, refletindo a partir de uma visão holística de lingua-
gem, as imagens narrativas que se apresentam nos tecidos andinos, as
Saltas, vão além de uma representação da linguagem. Elas constituem a
própria linguagem, ou seja, já não nos deparamos com sistemas de re-
presentação, mas com a própria linguagem como semiose. No momen-
to da colonização espanhola, os tecidos andinos foram utilizados como
formas subversivas de mensagens culturais, que segundo Desrosiers
(1997, p.333),

A conservação de traços técnicos está vinculada provavelmente


à existência de um substrato simbólico que os espanhóis esta-
vam muito distantes de imaginar...ninguém pensava que alguns
elementos técnicos poderiam ter um peso ideológico próprio e
desempenhar assim um papel subversivo.16

Quanto ao papel subversivo das Saltas andinas, é importante ob-


servar aqui que as produções dos tecidos em sua maioria estão nas mãos
das mulheres. Quanto à constituição social e cultural, fica evidente o
domínio feminino na construção de identidades que perpassam as me-
mórias das mulheres que fazem parte das comunidades indígenas dos
Andes. Silverman (1998) desenvolveu um trabalho antropológico na
comunidade de Choquecancha, em Cuzco, no Peru, e observou todo um
repertório produzido nas Saltas sobre o mito de Inkarriy, que se dife-
renciava dos contos acerca do mesmo mito contado nas escolas. Muitos
antropólogos, como Arnold (1998) e Yapita (1998) que realizaram suas
pesquisas com mulheres tejedoras na região dos Andes, sugerem que
os tecidos nas mãos das mulheres têm o poder de expressar vozes ou-
tras que são equivalentes ao poder político da oratória nas mãos dos
homens.
16
La conservación de ciertos rasgos técnicos está vinculada probablemente a la
existencia de un substrato simbólico que los españoles estaban muy lejos de ima-
ginar…ninguno pensó que unos elementos técnicos podían tener un peso ideo-
lógico propio y desempeñar así un papel subversivo. (Tradução própria)

118
No contexto boliviano, as mulheres do altiplano participantes de
movimentos sociais desde os anos 2000, começaram a usar as Saltas
para carregar pedras para serem usadas como ferramentas de guerra. Os
tecidos da região de Oruro-BO expressam relações políticas e históricas
de toda a região, inclusive apresentando uma visão alternativa feminina
da constituição do Estado.

Fig. 3. Saltas andinas da região de Oruro-BO no altiplano boliviano.

Fonte: Acervo da autora. Maio de 2022

2. A pesquisa: entre teorias, conceitos e metodologias


O campo de estudos da Linguística Aplicada transcende a pro-
blemática do ensinar e aprender línguas e se inserem em um contexto
multidisciplinar que evidencia estudos em diversas áreas das Ciências
Humanas. Compreende-se que a Linguística Aplicada se constitui por
problematizar criticamente espaços de construção de conhecimen-
to, que se compromete com questões éticas buscando novos objetos
de pesquisa que proponham o diálogo interdisciplinar entre culturas,
pensamentos e epistemologias. O desenvolvimento de uma pesquisa
com sujeitos subalternos silenciados pela hegemonia nas Américas vem

119
descortinar espaços de opressão e silenciamentos, mas também espaços
de lutas e subversões.
Desse modo, do ponto de vista científico, a linha de pesquisa que
iremos adotar buscará revelar processos de construção de identidades e
manutenção de memórias sociais através da produção coletiva de teci-
dos feitos por mulheres na Cordilheira dos Andes, colocando em evi-
dência, no meio acadêmico, narrativas outras de mulheres relegadas ao
silenciamento. Quanto à relevância social, à convivência e às interações
vivenciadas no trabalho de campo de uma pesquisadora brasileira fora
do seu país, constitui uma forma de perceber testemunhos de mulheres
contra os processos colonizadores a que foram submetidas.
Vale ressaltar aqui que, ao estudar os desenhos nos tecidos andinos,
a teoria e a prática devem caminhar juntas. Isso porque, as vozes femini-
nas se revelam nas texturas dos tecidos. Por esta razão, faz-se importante
compreender os desenhos como imagens; imagens que dialogam e que
transmitem algo de suas autoras. E assim como evidencia Samain (2012,
p. 158), “[...] sem chegar a ser um sujeito, a imagem (os desenhos nos
tecidos) é muito mais que um objeto: ela é o lugar de um processo vivo,
ela participa de um sistema de pensamento”. Queremos com o trabalho
que, por ora propomos, nessa pesquisa, abrir algumas portas de co-
municação intercultural e de processos de tradução (BHABHA, 2005)
em termos teóricos e práticos, no âmbito dos estudos da Linguística
Aplicada.
Para tanto, considerando que a representação feminina nos tecidos
andinos se faz presente através de narrativas expressas em cores, con-
tornos, formas, textos multimodais e transmitem processos de cons-
trução de identidades e manutenção da memória cultural dos Andes,
é que propomos essa pesquisa. Os espaços, os meios de comunicação,
as visualidades e outros mecanismos utilizados pelas mulheres andinas
propõem uma pesquisa de caráter social e político que configura regis-
tros de histórias como uma política de memória. E, assim, buscaremos
estabelecer diálogos entre o campo da linguagem no qual se localizam
as pesquisas em Linguística Aplicada (LA) e a prática social, destacando

120
as pluralidades de linguagens que poderão ser observadas através das
interações semióticas. As práticas sociais situadas que são observadas
no contexto em que são produzidas os tecidos acrescentam às pesquisas
em LA combinações com áreas de conhecimento que buscam favore-
cer a compreensão social e histórica de tais práticas. Assim, segundo
Kleiman; De Grande (2015, p.13), essas pesquisas como “práticas so-
ciais situadas, variam segundo as instituições, os participantes e as rela-
ções de poder que as sustentam e, portanto, não são universais”.
A adoção de diversos conceitos e teorias para o desenvolvimento da
pesquisa refletem também o caráter multidisciplinar das pesquisas em
LA, o que implica considerar a multiplicidade de linguagens, modos
e semioses nos textos verbais e não verbais em circulação social, como
também observar a articulação dos modos semióticos nas construções
de sentidos dentro dos textos multimodais. Os estudos semióticos po-
dem possibilitar leituras mais aprofundadas como, por exemplo, a cons-
trução das narrativas nas saltas andinas orquestrada para a produção de
significados.
Através dos estudos da Semiótica Social, buscaremos ampliar o
olhar sobre as narrativas que circularam no período da colonização espa-
nhola nas Américas e como se transformaram (ou não) em seus diversos
constructos sociais. Sem dúvida, as narrativas cristalizadas que conhece-
mos e que expressam a visão dos colonizadores podem ser questionadas
se, ao realizarmos leituras dos processos de invasão territorial, tivermos
disponível outra visão desse período, agora através da cosmovisão indi-
gena. As Teorias Decoloniais preconizadas por Mignolo (2020) podem
nos levar a (re)descobrir a história, (re)inventá-la e (re)lê-la.
Quanto às construções de identidades e aos constructos memo-
rialísticos, buscaremos embasamento teórico nos estudos de Candau
(1998), Hall (1997) e Assman (2016), entre outros, visando a entender
na prática como são construídas as memórias sociais coletivas e como
chegaram até nossos dias através das produções das mulheres andinas.
Pode-se assim observar que o estudo que propomos evidencia a arti-
culação e o diálogo entre diversos campos teóricos, o que evidencia uma

121
pesquisa interdisciplinar entre a Linguística Aplicada, a Antropologia,
a Biologia, as Ciências Sociais, os estudos da linguagem e a Filosofia.
Quanto aos estudos da linguagem, destacamos os processos dialógicos
propostos por Bakhtin (2011), que propõe olhares para os diversos dis-
cursos e enunciados e as situações de heteroglossia desenvolvidas por
ele. Analisaremos as expressões coletivas de construção de memórias
e como elas são apresentadas nos tecidos que, segundo Palma (2021,
p.29), podem ser pensadas “[...] desde níveis internos (ou seja, afetando
os processos mais autobiográficos) até nos planos mais sociais”. Assim
consideramos que as mulheres andinas constroem suas próprias subje-
tividades ao se autorrepresentar através das produções dos textos nos
tecidos.
Quanto à metodologia da pesquisa, esta é de natureza etnográfica,
no sentido tradicional do termo, que, segundo Geertz (1973), busca
explicar o contexto em que as práticas sociais ocorrem ou ocorreram.
Contudo, para a realização da pesquisa, utilizaremos o método cartográ-
fico para a coleta e a análise dos dados. A cartografia foge aos métodos
rígidos de pesquisa e busca desenvolver práticas de acompanhamento
de processos, ou seja, busca uma filosofia da multiplicidade, eviden-
ciando que não há entrada nem saída que sejam corretas ou orientadas
em um caminho plural.
Vale observar aqui que a cartografia como método surge a partir
dos estudos de Deleuze; Guattari (2011) que, em seu livro Mil Platôs,
inserem a cartografia nos princípios do conceito de rizoma, ou seja, a
forma como se concebe a produção de subjetividades. O rizoma seria
aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversí-
vel, suscetível de receber modificações constantemente” (DELEUZE;
GUATARRI, 2011, p. 30). Nesse contexto, os princípios rizomáticos
descritos pelos autores vão além das articulações binárias de causa e
efeito e se contrapõem aos modelos demonstrativos-representacionais.
O desafio lançado pelo método cartográfico se refere à aceitação de
um pensamento aberto, sem pré-conceitos a tudo que possa aparecer
no momento da pesquisa, e o que aparecer deve ser considerado como

122
possibilidade de produzir novos conhecimentos que sejam pertinentes
e persistentes.
Dessa forma a cartografia supõe inevitavelmente o mergulho do
pesquisador no campo de investigação, esse mergulho implica “movi-
mentos de forças de intensidades e de afetos circulantes” (ESCOSSIA;
TEDESCO, 2012, p. 32). Presume-se assim que o funcionamento
da atenção do pesquisador durante a investigação concebe uma ação
corporificada em sintonia com o contexto da investigação, buscando
produzir o saber pelo fazer, ou seja, “produzir conhecimento é posicio-
nar-se e tomar posição no mundo” (SOUZA, 2020, p.1). Nesse aspec-
to é importante ressaltar que, quando nos propomos desenvolver uma
pesquisa etnográfica a ser produzida em trabalhos de campo, devemos
ter caminhos e possibilidades abertos a “tudo que nos surpreende, nos
intriga, tudo que estranhamos” (PEIRANO, 2014, p. 378). E, como
defende Malkki (2007), entender que a vida é um constructo contínuo
e acontece em seu decorrer.
As teorias de investigação que propomos utilizar nessa investigação
são válidas, mas fazem parte de um repertório de possibilidades que
não deixa de ser aberto, flexível, inseparável do contexto social em que
é produzido, ou seja, é uma prática social situada e sensível ao tempo.
E é assim que, ao nos prepararmos para uma pesquisa de campo, deve-
mos, como sugere Malkki (2007), nos preparar para a convivência com
a comunidade estudada, seu idioma, conhecer literaturas que tratam do
assunto a ser pesquisado, estudar os ensaios e teorias sobre o tema para
construir diálogos e intersecções.
Alinhado ao método cartográfico para a análise e a coleta dos dados,
utilizaremos a ferramenta SGVCLin, software desenvolvido pelo proje-
to ALib- regional do Paraná, que busca agilizar e otimizar o trabalho
dos estudiosos na tarefa de elaboração de ferramentas audiovisuais para
a coleta de dados e criação de bancos de dados para organização de ma-
terial linguístico coletado. Com essa ferramenta iremos armazenar da-
dos de MySQL, uma linguagem adotada pelo JAVA. Em linhas gerais,
a ferramenta apresenta uma interface intuitiva e de simples manuseio,

123
que permite o armazenamento de dados geolinguísticos para análise
posterior, criação de textos, criação de atlas e consulta ao banco de da-
dos já existente na plataforma e alimentado por outros pesquisadores. A
ferramenta ainda proporciona ao usuário a possibilidade de criação de
grupos de questões, geração de relatórios pautados em diferentes variá-
veis, criação de cartas e textos.
Para a validação da pesquisa, utilizaremos o processo de trian-
gulação, que é fundamental para a coleta dos dados. Os estudos de
Cresswell (2007) apontam estratégias que devem ser seguidas para fazer
uma triangulação de diversas fontes de informação de dados como,

Usar conferência dos membros para determinar a precisão dos


resultados, esclarecer os vieses que o pesquisador traz para o es-
tudo, apresentar informações negativas ou discrepantes que vão
contra os temas, passar um tempo prolongado no campo, usar
interrogatórios de pares para aumentar a precisão do relato e usar
um auditor externo para rever o projeto todo (CRESSWELL,
2007, p.200).

Dessa forma, a utilização de ferramentas, teorias e métodos outros


na pesquisa, facilitará a consulta das diversas bases de dados já existentes
trazidas por estudiosos de todo o mundo, como permitirá a constru-
ção de uma pesquisa ética que respeite a alteridade, os seres e o meio
ambiente.

3. Algumas (in)conclusões
É importante observar aqui que, sendo uma pesquisa de caráter
etnográfico sob a ótica social, podem surgir mudanças no decorrer
das investigações em relação às hipóteses formuladas e às perguntas
de pesquisa. Isso porque trata-se de uma pesquisa não objetiva que
requer do pesquisador um processo de autopercepção, autocrítica e
autorreflexão. Deve-se segundo Heath; Street (2008) levar, durante o
trabalho de campo, uma pergunta fundamental: O que está acontecendo
aqui? E levar em consideração também as limitações da pesquisa que

124
podem se constituir por um caminho sinuoso e não responder tão obje-
tivamente às perguntas de pesquisa como o pesquisador deseja.
Assim, temos como hipótese central deste trabalho que os tecidos
andinos agrupam um ciclo criativo muito mais complexo, o qual envol-
ve uma dinâmica genealógica mais extensa do que imaginamos princi-
palmente quanto à personificação do tecido, uma vez que as mulheres
tejedoras veem em suas produções um ato maternal de haver parido um
filho (wawa), e esse filho carrega consigo o espírito dos antepassados.
O ato de tecer, dessa forma, pode estar relacionado a (re)introdução do
novo ser na comunidade e, assim, todo o processo de criação se centra
na função de revitalizar o morto gerando uma nova vida. Propomos
assim, que talvez exista uma linguagem feminina típica da região do
altiplano e esta linguagem pode estar expressa nas iconografias, nas es-
truturas do tecido, nas cores e contornos. Estaríamos assim questionan-
do o próprio fazer semiótico de interpretação de mensagens, uma vez
que estamos diante de uma escrita com imagens, no qual o trabalho de
memória oral, a partir dos desenhos feitos por mulheres, são expressos
nas narrativas das Saltas.
Como hipóteses secundárias, estas foram construídas a partir de in-
tersecções entre os estudos da linguagem, da construção de identidade
e da manutenção da memória coletiva, que possivelmente podem estar
expressos nos textos imagéticos das Saltas andinas.
Finalmente formulamos a hipótese de que os tecidos andinos po-
dem fazer parte de um constructo mais amplo de significação que trans-
cende a interpretação de imagens e textos e pode nos levar ao entendi-
mento de novas formas de leituras por imagens. Poderão estar evidentes
redes outras nas estruturas dos tecidos e outras dinâmicas de relações
iconográficas que revelam uma lógica cultural e social típica da região
andina, a qual se entrelaça com outros signos icônicos como, por exem-
plo, o bélico e os troféus de guerra. Além disso, o contexto da produ-
ção dos tecidos, poderá revelar noções do sagrado e do espiritual com
relação a construção das tramas, isso porque as relações entre a mulher
tejedora e o tecido fazem parte de uma teia de significação que envolve

125
também a memória espiritual tanto da mulher tejedora como do tecido
que ela está construindo.

Figura 4. Localização da realização da pesquisa.

Fonte: Disponível em http://www.guiageo-americas.com/mapas/bolivia.htm. Acesso


em outubro de 2022.

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128
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

ANALISANDO E DESCREVENDO RECURSOS


DE CALL EM LÍNGUA INGLESA NO ENSINO
SUPERIOR: OS CONTEXTOS DE PANDEMIA

Francisca Alyne Alves da Silva (UNILAB)


Ana Cristina Cunha da Silva (UNILAB)

RESUMO: A pesquisa analisou a prática docente em uma disciplina de Língua


Inglesa para discentes de graduação em Letras-Língua Inglesa durante o período
de Ensino Remoto Emergencial (ERE) no ano de 2021, na Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), na cidade de
Redenção no estado do Ceará. A partir de um estudo de caso, foram realizadas
análises das aulas gravadas e dos materiais disponíveis em ambientes virtuais
de aprendizagem (AVAs), como o Google Classroom, foram feitas descrições e
lançadas hipóteses acerca das abordagens de ensino de idiomas assumidas pela
docente durante as aulas, que mostraram ser indispensáveis em um contexto
de ensino mediado por computador. Além dessa análise, um questionário
disponibilizado via Google Forms apontou que as crenças dos discentes sobre
o uso de recursos de CALL (Computer Assisted Language Learning) nas aulas
de Língua Inglesa mostraram-se diferentes quando comparadas aos resultados
de uma pesquisa similar realizada em 2018.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino-aprendizagem, Língua Inglesa, Ensino remoto
emergencial, pandemia, covid-19.

ABSTRACT: The research analyzed the teaching practice in an English


Language discipline for undergraduate students in English Language and
Literature course during the Emergency Remote Teaching (ERE) period in
2021, at the University for the International Integration of Afro-Brazilian
Lusophony (UNILAB), in the city of Redenção in the state of Ceará, Brazil.
Based on a case study, recorded classes and materials available in virtual
learning environments (VLEs) such as Google Classroom were analyzed,
descriptions were made and hypotheses were raised about the language teaching
approaches taken by the teacher during the classes, approaches which proved
to be indispensable in a computer-mediated teaching context. In addition to
this analysis, a questionnaire made available via Google Forms pointed out
that students’ beliefs about the use of Computer Assisted Language Learning

129
(CALL) resources in English language classes were different when compared
to the results of a similar survey carried out in 2018.
KEYWORDS: Teaching-learning, English language, Emergency remote tea-
ching, pandemic, covid-19.

1. Introdução
Na linguística aplicada, a aprendizagem de línguas mediada por
computadores (CALL) é designada como o campo de estudo que se
preocupa com a pesquisa e a prática de potenciais inovações tecnológi-
cas no ensino e aprendizagem de línguas. Bax (2003) questionou sobre
o futuro de CALL e afirmou que estaríamos caminhando para a nor-
malização. Com a crise sanitária da Covid-19, esse processo precisou
avançar rapidamente.
No Projeto Político Pedagógico (PPC) do curso de Letras-Língua
Inglesa na Unilab, está previsto que no percurso da graduação os estu-
dantes devem ser expostos a diversas metodologias integradoras do ensi-
no, fundamentadas no uso de tecnologias. Foi pensando no espaço ocu-
pado por tecnologias e recursos CALL dentro dessa Universidade que a
pesquisa de Silva e Lopes (2020) foi realizada, e as conclusões acerca do
uso e normalização de CALL no período da pesquisa apontaram que os
docentes de Língua Inglesa estavam no estágio 4 (medo/admiração) e
5 (normalizando) segundo a teoria de Bax (2003) e no que diz respeito
ao processo de normalização de CALL. Problemas como a realidade so-
cioeconômica da região em que a Instituição de Ensino Superior (IES)
está localizada, ausência de formações que capacitassem os professores
a utilizar os recursos de CALL em sala de aula, estigmatização desses
recursos CALL pelos discentes, e limitações na infraestrutura institucio-
nal foram alguns desafios para que a normalização não acontecesse de
forma plena e consolidada, segundo os pesquisadores.
Em razão da pandemia de covid-19, as discussões sobre o uso de
CALL então tomaram novos rumos. Devido ao momento de caráter
emergencial causado pelo distanciamento social, todas as instituições
de ensino tiveram que adotar recursos digitais obrigatoriamente, sem

130
tempo para percorrer gradativamente todas as fases de normalização
propostas por Bax (2003). Até mesmo as instituições que estavam em
situação de baixo letramento digital ou limitações de infraestrutu-
ra institucional tiveram que se adaptar ao modelo de Ensino Remoto
Emergencial (ERE).
Na UNILAB, o tempo levado para garantir formações de professo-
res sobre o uso de tecnologias de ensino e aprendizagem em AVA’s, as-
sim como a distribuição de dispositivos eletrônicos como tablets e chips
de internet para os alunos em situação de vulnerabilidade econômica
foi de 5 meses, período em que a universidade não funcionou para os
alunos, embora os demais setores - administrativo e pedagógico - traba-
lhassem normalmente. Esses investimentos somados à adoção do ERE
durante três semestres letivos, de fato, avançaram o processo de supera-
ção dos desafios para normalização de CALL nessa instituição, segundo
a pesquisa de Silva e Lopes (2020). A pesquisa assume a hipótese de
que a Fase Integrada (BAX, 2003) de normalização já havia chegado na
instituição de ensino.
Portanto, o presente artigo é um estudo de caso que tem como
objetivo analisar quais recursos CALL foram utilizados em uma disci-
plina de Língua Inglesa na adaptação ao contexto de ERE. Este artigo
contém registros de como foram ministradas as aulas da disciplina de
Língua Inglesa 4, ofertada no curso de Letras-Línguas Inglesa, investi-
gando quais foram as crenças dos discentes sobre o uso desses recursos.
Realizamos uma observação dos registros das aulas e atividades realiza-
das; com a análise desses dados, tínhamos o objetivo de identificar o
estágio atual de normalização de CALL que se encontrava a instituição,
bem como realizar um registro de como aconteceu esse processo, atra-
vés de um caso representativo.

2. Metodologia
A pesquisa teve como principal objetivo investigar como as aulas
de Língua Inglesa IV foram ministradas e como os recursos CALL fo-
ram utilizados na adaptação das aulas ao ERE. Também tivemos como

131
objetivo comparar as crenças dos participantes acerca do uso desses re-
cursos CALL, em comparação com crenças percebidas em uma pes-
quisa similar realizada na instituição em 2017-2019, para verificarmos
os avanços que aconteceram no processo de normalização de CALL
durante esse período.
Sendo o contexto da pandemia um cenário recente e excepcional,
um objetivo da pesquisa é explorar e registrar como esse contexto ocor-
reu nas aulas de Língua Inglesa nesse contexto. Portanto, para a realiza-
ção da pesquisa, escolhemos a metodologia de estudo de caso explora-
tório. O caso escolhido é a disciplina de Língua Inglesa IV, ministrada
durante a pandemia de covid-19, na modalidade de Ensino Remoto
Emergencial (ERE), na Universidade da Integração da Lusofonia Afro-
Brasileira (UNILAB), no segundo semestre de 2021. Optamos por esco-
lher um único caso como representativo para o contexto da instituição.
Para a realização dessa pesquisa, ocorreu uma análise das aulas vir-
tuais gravadas, bem como os materiais disponibilizados nos Ambientes
Virtuais de Aprendizagem (AVA’s), tais como SIGAA (Sistema de
Gestão de Atividades Acadêmicas) e Google Classroom. Essa observa-
ção de dados registrou e levou em conta todos os momentos em que
recursos CALL foram usados pela docente da disciplina e pelos dis-
centes. A organização desse material ocorreu em formato descritivo de
registro das atividades síncronas e assíncronas realizadas a partir ou com
o auxílio de recursos CALL. A organização do material também seguiu
o objetivo da atividade, de acordo com as quatro habilidades (leitura,
escrita, fala e escuta) e o papel do recurso CALL na proposta e, ainda, as
metodologias e abordagens de ensino adotadas pela docente.
Após a fase de observação e registro, a organização e conhecimento
dessas informações subsidiou a formulação de um questionário produ-
zido com o Google Forms, com perguntas objetivas e subjetivas que
tinham o objetivo de questionar as percepções dos alunos que cursaram
a disciplina de Língua Inglesa IV sobre a experiência de aprendizagem
que tiveram a partir do auxílio de recursos CALL. Para isso, as pergun-
tas foram norteadas a partir das seguintes questões: (1) entender quais

132
as crenças que os estudantes têm a respeito de CALL hoje em dia; (2) se
eles consideram que o ensino de Inglês com auxílio de recursos CALL
foi eficiente para a aprendizagem; (3) se o uso desses recursos foi efi-
ciente para o processo de ensino-aprendizagem durante a disciplina; (4)
quais dificuldades esses alunos enfrentaram em estudar inglês durante
a pandemia e; (5) se o desempenho dos alunos no desenvolvimento da
disciplina em si e das atividades foram influenciados por questões pes-
soais de saúde mental, considerando o contexto de pandemia.

3. Análise e descrições da disciplina


Esta seção tem o objetivo de descrever a fase de coleta de dados do
caso. Foram analisadas todas as 10 aulas da disciplina que aconteceram
durante o semestre chamado de PERÍODO LETIVO EXCEPCIONAL
(PLEX) e também as atividades assíncronas realizadas nos ambientes
virtuais de aprendizagem (AVA’s). Este capítulo está dividido nas se-
guintes subseções: 3.1. Registros de recursos digitais antes e depois da pan-
demia de COVID-19 e 3.2. O uso dos recursos CALL nas atividades.

3.1 Registros de recursos digitais antes e depois da pandemia de


COVID-19
Na pesquisa de Silva e Lopes realizada em 2017-2019 e que serve de
base para comparação neste artigo, uma entrevista com o Grupo Focal
(GF) formado por docentes que ministravam disciplinas de Língua
Inglesa na instituição em questão mostrou que todos docentes utili-
zavam recursos CALL, mesmo que ocasionalmente. Porém, esse uso
era comprometido por dificuldades com manuseio de equipamentos e
oscilação de rede de internet no campus da universidade. Além disso,
os docentes também afirmaram que muitos estudantes enfrentavam di-
ficuldades para ter acesso às smart tecnologias (SILVA; LOPES, 2020).
Segundo os registros de fala do GF, os professores sentiam inseguran-
ças quanto ao aproveitamento que faziam desses recursos: “Até porque
nossa geração gosta da novidade gosta da interação, mas eu não tenho
usado o suficiente, então eu me daria uma péssima nota.” (D12). Em

133
outra fala: “Eu confesso que gostaria de usar mais, mas não sei como.
Talvez, haja necessidade de uma formação” (D13).

Quadro 1: Registros de recursos CALL documentados a partir


das falas em entrevista com Grupo Focal realizada em 2017

AVA SIGAA
Aplicativos Duolingo
Sites da internet Google tradutor, YouTube, Facebook, blog, email.
Recursos físicos Data show, celular, notebook
Fonte: Silva e Lopes (2020)

Com o início das medidas de isolamento social, o semestre 2020.1,


que começou em março de 2020 e funcionou por somente duas sema-
nas, foi interrompido por 5 meses, e retomado no mês de setembro do
mesmo ano de forma remota, dessa vez valendo-se obrigatoriamente
de plataformas digitais no regime de ERE. O quadro abaixo apresenta
os recursos CALL utilizados na disciplina analisada, Língua Inglesa IV.

Quadro 2: Registros recursos CALL documentados por observação


das aulas gravadas e atividades assíncronas postadas no Google
Classroom da turma, durante o semestre remoto

AVA Google Classroom.

Aplicativos, programas e sites anchor.fm, gravador de tela, Whatsapp, word,


utilizados na realização de Google docs, stream yard, anchor.fm, Natural-
atividades assíncronas Reader, liveworkshets

Recursos de aula para explica-


Vídeos no YouTube, músicas, powerpoint
ções do conteúdo

Recursos físicos Celular, notebook

Repositórios de atividades
YouTube, Drive, Google Classroom.
assíncronas

Plataformas para aula online Google Meet, Discord

Fonte: Google Classroom da turma, registro pelas autoras.

134
Comparando o quadro 1 com o quadro 2, fica claro que a pande-
mia gerou um grande impacto em relação às aulas de Língua Inglesa.
Podemos observar claramente o aumento da quantidade e variedade de
recursos CALL utilizados nas aulas. Além disso, podemos observar tam-
bém substituições do recurso SIGAA, apesar do mesmo ser o ambiente
virtual de aprendizagem que a universidade oferece. Os professores no
GF em 2017 afirmaram que o recurso era insuficiente para seus objeti-
vos (SILVA; LOPES, 2020). Esse fator foi determinante para a escolha
do Google Classroom como AVA durante o curso. Os professores tam-
bém relataram no GF terem receio de usar CALL em sala de aula, pois
havia uma estigmatização do uso de CALL como evasão da sala de aula
pelos discentes: “porque isso ainda é visto como evasão do professor
de aulas presenciais” (D1). Muitos dos recursos que antes eram vistos
como “tapa buracos”, durante o período remoto foram os que media-
ram as aulas de modo indispensável.
A participação dos estudantes nos semestres realizados em ERE foi
possível devido à distribuição de tablets e chips de internet a estudantes
que não tinham acesso a essas tecnologias, projeto realizado nos meses
em que o semestre 2020.1 esteve parado/interrompido.

3.2 O uso dos recursos CALL nas atividades


A preocupação de como adotar inovações tecnológicas no ensi-
no sempre foi uma preocupação dos professores ao longo da história.
Como preconiza Leffa (2006, p. 6), ao discutir sobre a inserção do
computador como mediador de aprendizagem, “a evolução do homem
é caracterizada pelo desenvolvimento de instrumentos (...) são difun-
didos na sociedade; seu domínio torna-se necessário por um segmento
cada vez maior da população”. Nesse contexto, a escolha de recursos di-
gitais que possam efetivamente contribuir, motivar e desafiar os alunos
a produzirem conhecimento assume grande relevância.
Em relação aos uso desses recursos na experiência aqui exposta
destacamos, primeiro, o Google Classroom como mediador do engaja-
mento dos alunos durante os dias de aulas assíncronas. Semanalmente,

135
as atividades eram propostas aos alunos, como fóruns de discussão e
interação entre os estudantes sobre vídeos do YouTube ou livros on-line
sugeridos pela docente. Assim como os fóruns, a maioria das atividades
eram realizadas em colaboração e postadas no mural da turma para que
os estudantes mantivessem como parte da rotina de estudos a troca e
a construção de conhecimento em conjunto, conforme também reco-
menda Riedo (2022, p. 163): “as relações entre os estudantes em AVA
devem ser estimuladas através das ferramentas do tipo correio, fórum de
discussão, mural, bate-papo, entre outras”.

Figura 1: registro do fórum de discussão sobre o livro


“animal farm” da turma no Google Classroom

Fonte: Google Classroom da turma, registro pelas autoras.

Nesse contexto, destaco também a produção de podcasts. A inves-


tigação realizada por Reis (2012) já demonstrou que a tecnologia é um
recurso com grande potencial para aprendizagem de Língua Estrangeira
(LE). Nessa turma, a docente instruiu aos estudantes que trabalhassem
com o recurso de maneira colaborativa (GOMES, 2011), ou seja, os
estudantes tiveram que criar uma conta em plataformas de podcast, pla-
nejar, gravar, editar, publicar o arquivo de áudio e compartilhar com
os colegas de turma no AVA durante as aulas síncronas na plataforma
Google Meet, para gerar discussões entre todos.

136
Essa forma de utilizar o recurso podcast exige, na opinião de Gomes
(2011), um comprometimento maior dos estudantes, em contrário da
forma exploratória, quando o aluno utiliza como recurso de aprendiza-
gem um podcast já produzido e publicado na internet por outros.

Quadro 2: Registro do compartilhamento dos


podcasts dos alunos no mural da turma.

Fonte: Google Classroom da turma, registro pelas autoras.

Em relação à plataforma Google Meet, que foi essencial para o an-


damento das aulas on-line, esta já possibilitava o estímulo e a manuten-
ção da qualidade das interações possíveis em um modelo de comuni-
cação não presencial (HAMPEL; STICKLER, 2012); ela se mostrava
muito valiosa, principalmente quando consideramos o ERE, no qual
não foi opção o distanciamento físico dos envolvidos. Essa platafor-
ma possibilitava a interação mais próxima do presencial. De acordo
com Fonseca e Vaz (2020, p. 9), “o uso de plataformas como o Google
Meet possibilita o desenvolvimento de um processo de ensino e apren-
dizagem de forma mais colaborativa e efetiva”. Nas aulas desenvolvi-
das dentro dessa plataforma, as funcionalidades de vídeo e áudio, chat,

137
compartilhamento de arquivos, vídeos e links foram muito úteis no
decorrer das aulas síncronas.
Outra plataforma que possibilitou a interação imediata dos alunos
foi o discord. O recurso foi sugestão dos próprios alunos para a prática
de conversação em pares, no exercício da habilidade de speaking. Nessa
plataforma, eram criadas várias salas de bate-papo simultaneamente, e
em cada sala ficavam cerca de 2 ou 3 estudantes que conversavam sobre
um tópico de conversa sugerido pela docente, que neste momento ape-
nas monitorava. Em conversa com os alunos, a atividade de conversa-
ção por meio dessa plataforma foi avaliada de forma positiva pela turma
e, por isso, era repetida com frequência nas aulas síncronas.

Quadro 3: Registro das salas de conversação na plataforma Discord

Fonte: registro feito em forma de captura de tela por uma das autoras.

4. Desafios dos estudantes ao ensino de Língua Inglesa no ERE


Neste tópico descreveremos alguns resultados de um questionário
enviado aos alunos pelo Google form, intitulado “Feedback - Disciplina
de Língua Inglesa IV”. Dos 21 alunos que participaram da disciplina,
10 responderam ao questionário. No documento, fizemos perguntas
que direcionaram as seguintes questões: (1) se eles consideram que
o ensino de Inglês com auxílio de recursos CALL foi eficiente para a
aprendizagem e (2) quais dificuldades esses alunos enfrentam em estu-
dar inglês durante a pandemia.

138
Alguns aspectos, em especial, diferem o desenvolvimento dos es-
tudantes no contexto de ERE, tais como o estado de saúde mental de-
les - estresse, sentimento de impotência e tristeza frente ao isolamento
social, medo de perder parentes e amigos e preocupação com a situação
econômica do país foram os sentimentos normalmente percebidos em
estudantes universitários durante o período da pandemia de covid-19
(GUNDIM et al., 2021). Portanto, desejamos agora verificar em que
medida o estado de saúde mental dos alunos influenciou no desempe-
nho deles durante a disciplina.
Para entender este ponto, lançamos no questionário a pergunta
“No início do semestre, como você avalia o seu nível de animação/
motivação para a disciplina, considerando que a modalidade remo-
ta iria ser executada?”, que deveria ser respondida entre os níveis de
1 a 5, com a finalidade de medirmos se esse estado de motivação mu-
dou durante o decorrer do semestre. A resposta mostrou que 5 alunos
consideraram seu nível de animação/motivação em nível 3, ou seja, as
expectativas dos alunos sobre a disciplina parecem, portanto, incertas.

Gráfico 1: Expectativas dos discentes

Fonte: Google formulário, registro pelas autoras.

Os motivos para a incerteza dos alunos quanto à eficiência da mo-


dalidade de ERE em que a disciplina foi ministrada pode ser encon-
trada em outras perguntas do formulário. Na análise das respostas dos
alunos, podemos classificar alguns desafios que os estudantes narraram
repetidamente nas respostas.

139
(1) Os estudantes informaram ter receio com o ensino remoto emergen-
cial e desmotivação com problemas causados pela pandemia, preo-
cupação em participar da aula com a câmera e microfones ligados
- problema que também foi vinculado à falta de um local adequado
para assistir às aulas. Houve afirmações sobre alguns alunos se sen-
tirem confortáveis para participar da aula apenas no ambiente da
universidade. Ao responderem a pergunta do questionário “Pensou
em desistir alguma vez? Por quê?”, um estudante respondeu: “Sim,
estudar em casa não é nada fácil. Era comum o sentimento de des-
motivação e desinteresse em relação aos estudos por causa da pan-
demia”. Outro respondeu: “Sim, devido à falta de compatibilidade
com a modalidade de ensino à distância”. Podemos afirmar, então,
que o estado mental dos estudantes devido à pandemia influenciou
negativamente no processo de aprendizagem e no desempenho das
atividades propostas. Além disso, os estudantes sentiam dificuldade
na adaptação ao contexto ERE e, inclusive, confundiam esse con-
texto com a educação a distância (EaD).

(2) Limitação dos dispositivos (celular, notebook ou tablet) e oscilação


da rede de internet foram algumas das razões para que muitos alu-
nos da universidade desistissem de disciplinas de Língua Inglesa
on-line. Ao responderem sobre os motivos que eles achavam in-
fluenciar na desistência de estudar as disciplinas de Língua Inglesa,
um aluno respondeu: “Problemas de conexão, falta dos aparelhos
eletrônicos”. Outro respondeu: “problemas de conexão, problemas
pessoais e falta de diapositivos”. Durante as aulas síncronas, era
comum que os alunos justificassem que a oscilação da internet era
o motivo para não estarem interagindo ativamente; outros também
compartilhavam sobre a dificuldade de utilizar alguns recursos di-
gitais apenas com o celular e que não possuíam computador.

(3) Outro desafio que os estudantes mencionaram foi a preocupação


em participar da aula com a câmera e microfones ligados, problema

140
que também foi vinculado à falta de um local adequado para assistir
às aulas, houve afirmações sobre alguns alunos sentirem-se confor-
táveis para participar da aula apenas no ambiente da universidade.
Isso é observável nas respostas “o espaço de casa não era propício
para se concentrar, entre outros empecilhos”.

(4) A quantidade de atividades, avaliações e leituras que os estudantes


foram cobrados foi outra queixa que esteve nas respostas do formu-
lário, os estudantes sentiam-se sobrecarregados. “Grande acúmulo
de atividades e conteúdo, quase insustentável pelo número de dis-
ciplinas por semestre”, respondeu um estudante.

Fizemos também a pergunta “Qual foi o maior desafio para


acompanhar as aulas remotas?” para construirmos um dado geral so-
bre os desafios que os estudantes sentiram.

Gráfico 2: Feedback dos estudantes - Recursos,


atividades e o uso de recursos digitais.

Fonte: Google formulário, registro pelas autoras.

O processo de análise da percepção dos estudantes sobre o desem-


penho e o aproveitamento das atividades mediadas por recursos CALL
foi importante para entendermos uma questão mencionada na pesquisa
de Silva e Lopes (2020). A referida pesquisa anteriormente afirmou -
através do Grupo Focal com os docentes de Língua Inglesa - que havia,

141
por parte dos estudantes, uma estigmatização do uso de recursos CALL
como evasão dos professores da aula, quando não tivesse sido possível
para eles (os docentes) planejar a aula. Ao pensarmos nas crenças dos
alunos após a experiência com o ERE devido à pandemia de covid-19,
tivemos a hipótese de que essa crença teria agora mudado. A fim de
responder a essa pergunta, lançamos o seguinte questionamento: “Na
sua opinião, quais são os pontos positivos sobre o uso das ferramentas
e recursos tecnológicos durante a disciplina, como YouTube, Google
classroom, entre outros?”. Nos questionários enviados à turma, sobre
essa questão, as respostas mostraram, de fato, uma percepção positiva
dos estudantes sobre a experiência.
No geral, os estudantes afirmaram acreditar que o uso desses re-
cursos é efetivo e imprescindível para a aula; afirmaram também que o
uso dessas ferramentas é importante no contexto remoto como também
no contexto presencial de aprendizagem. Um estudante respondeu: “O
Google classroom foi e ainda é muito importante para o nosso aprendi-
zado, pois diferente do SIGAA ele está sempre disponível e é bem sim-
ples de lidar, contendo uma organização muito boa para quem não tem
muito tempo a perder ou tem uma agenda apertada”. Outro respondeu:
“O google classroom é uma ferramenta necessária, mesmo com retorno
das aulas no regime presencial”.
Ainda sobre as crenças dos estudantes sobre o uso de recursos di-
gitais, lançamos a pergunta “Na sua opinião, quais são os pontos ne-
gativos sobre o uso das ferramentas e recursos tecnológicos durante a
disciplina, como o YouTube, Google Classroom e outros?”. Para essa
pergunta, houve alunos que afirmaram não encontrar nenhum ponto
negativo no uso, outros não responderam pontos negativos, mas sim,
desafios que dificultavam o uso desses recursos, dos já mencionados
nesse artigo, a baixa qualidade da rede de internet e dispositivos mó-
veis foram mencionadas. Além desses, alguns estudantes afirmaram que
certas plataformas possuem certa complexidade no uso: “Certas plata-
formas, como o YouTube, apresentam um grau maior de complexida-
de no uso, o que pode atrapalhar os estudantes”. “Apesar de o uso de

142
recursos tecnológicos serem uma boa opção para se utilizar em sala, a
maioria dos alunos não possui ainda maturidade para fazer o uso delas.”
Esse ponto já havia aparecido na pesquisa de Silva e Lopes (2020) - os
estudantes não possuíam conhecimento de como usar as plataformas.
Porém, no decorrer da disciplina, todos os estudantes conseguiram, de
certo modo, superar esse desafio e participaram das atividades.
Quanto à avaliação dos estudantes sobre as atividades propostas,
esses dados servirão para pensar se as mesmas serviram ao objetivo de
desenvolver as habilidades de escuta, fala, escrita e leitura que tem a
disciplina. Como afirma Santos (2021, p. 9),

Quando discutimos questões relacionadas ao ensino de línguas


e ao uso das TDIC, estamos nos referindo não somente à dispo-
nibilização de computadores para os alunos da educação bá-
sica e superior e ao uso de aplicativos, mas, principalmente,
a promover a discussão sobre os efeitos e os impactos do
uso de dispositivos e recursos digitais durante o processo
de ensino-aprendizagem de uma língua, de modo que os do-
centes possam planejar suas aulas e incluir os recursos que mais
se encaixem aos objetivos propostos. Dessa forma, evitar-se-á a
instauração de um modismo descompassado tanto com as ne-
cessidades dos alunos quanto com o planejamento feito, as pos-
sibilidades de uso, os objetivos traçados e os efeitos esperados.

A disciplina propõe 10 atividades assíncronas, semanalmente, du-


rante 10 semanas, e essas atividades eram geralmente orientadas durante
as aulas síncronas e postadas no Google Classroom. Entre as atividades
de fala, havia gravação de vídeos, atividades de produção textual para
exercício da escrita, atividades de transcrição para exercício da escuta,
além de fóruns, entre outras propostas. Lançamos aos estudantes a per-
gunta: “Quais atividades realizadas nos momentos assíncronos, como
no Google Classroom, você considerou mais efetivas para sua aprendi-
zagem de Língua Inglesa?”. As respostas dos estudantes foram positivas
para as atividades de produção escrita e de leitura, propostas geralmente
a partir de vídeos no YouTube que abriam a discussão.

143
Gráfico 3: Avaliação das atividades assíncronas pelos estudantes

Fonte: Google formulário, registro pelas autoras.

Já as avaliações das atividades que aconteceram nas aulas síncronas


semanais, os estudantes aprovaram, principalmente, as atividades de
conversação no Discord e a produção de podcasts. Como já menciona-
do, na análise das aulas gravadas, a aprovação dos estudantes quanto a
esses recursos eram afirmadas por eles com frequência.

Gráfico 4: Avaliação das atividades síncronas

Fonte: Google formulário, registro pelas autoras.

144
5. Considerações finais sobre o estado de normalização de
CALL na UNILAB
Problemas como a realidade socioeconômica da região em que a IES é
localizada, ausência de formações que capacitassem os professores a utilizar
CALL em sala de aula, estigmatização dos recursos CALL pelos discentes
e limitações na infraestrutura institucional foram alguns desafios para a
normalização de CALL em dados de 2017, segundo a pesquisa de Silva e
Lopes (2020). Visto que o cenário da pandemia da COVID-19 mudou
completamente este cenário, neste artigo discutimos sobre os avanços na
superação desses desafios durante o período da pandemia de COVID-19.
De modo geral, dados já expostos nesse artigo demonstraram que
os estudantes não mais possuem a crença de que o uso de recursos CALL
servem como “tapa buracos” e avaliam o uso de CALL como impres-
cindível. A rapidez com que os professores da instituição precisaram
adquirir conhecimento sobre como utilizar CALL nas aulas obrigou
que os mesmos superassem de maneira abrupta dificuldades como as
mencionadas de contemporização e produção para as aulas. A institui-
ção também ofereceu cursos de formação aos professores. Todavia, a
instituição ainda carece de formações continuadas na área (NIZ, 2017).
Os entrevistados do GP já afirmavam utilizar CALL mesmo que
ocasionalmente, mas dada as limitações citadas anteriormente a fre-
quência em que esses docentes utilizavam CALL era comprometida.
Portanto, à medida em que esses desafios sejam superados, há a tendên-
cia de que os docentes adotem recursos CALL em suas aulas. Na seção
anterior, mostramos que essa frequência e quantidade do uso de CALL
apenas nas aulas da disciplina de Língua Inglesa é superior ao quadro
com a lista de recursos que informaram todos os docentes que partici-
param da pesquisa em 2017.
O estágio de normalização de CALL segundo a teoria de Bax (2003)
da UNILAB no ano de 2017 foi classificado nos estágios 4 medo de
admiração, e 5 normalizando. De acordo com os dados aqui expostos,
afirmamos com o estágio final 6 normalizado, quando a tecnologia já
se tornou integrada ao cotidiano e é vista como parte do processo de
ensino-aprendizagem.

145
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146
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

AS EMOÇÕES COMO FORÇA MOTRIZ DE


PROCESSOS CRÍTICO-REFLEXIVOS NA
FORMAÇÃO INICIAL E CONTINUADA

Atos Edwin Pereira da Silva Lucas – PUC-Rio


Vitor Azevedo Abou Mourad – PUC-Rio

RESUMO: O atual cenário no qual se encontram alunos e professores têm


ilustrado nuances de sofrimento, presentes não apenas hoje em suas práticas,
mas certamente potencializadas pelas adversidades e pelas incertezas do
momento de crise mundial que enfrentamos devido à pandemia de Covid-19.
Uma das formas de investigarmos as práticas pedagógicas de professores e
de alunos é nos debruçando sobre suas emoções, com o intuito de entendê-
las como força motriz de um processo crítico-reflexivo, que pode levar a
transformações sociais (FREIRE, 2020; HOOKS, 2017). Nesse viés, o
texto tem como propósito criar inteligibilidades (MOITA LOPES, 2006)
acerca de questões relevantes para a vida na sala de aula, fundamentando-
se nos princípios ético-crítico-reflexivos propostos pela Prática Exploratória
(MILLER et al, 2008; GRUPO DA PRÁTICA EXPLORATÓRIA,
2020) e na estreita relação existente entre ensino-aprendizagem e emoções
(ZEMBYLAS, 2004; BARCELOS, 2013). O trabalho para entender como os
afetos afetam a vida em contextos pedagógicos será construído em conversas
exploratórias entre alunos e professoras em formação inicial e continuada.
Nossos entendimentos sugerem que as emoções têm uma centralidade para as
diversas práticas sociais e fazeres pedagógicos dos participantes, contribuindo
para: (i) o entendimento das práticas das professoras e dos alunos participantes
das conversas exploratórias; (ii) a concepção reflexiva de ensino-aprendizagem
e; (iii) a possibilidade de análise crítica dos aspectos que os afetam positiva ou
negativamente.
PALAVRAS-CHAVE: Prática Exploratória; Emoções; Formação docente.

RESUMO: The current scenario in which students and teachers find


themselves has illustrated nuances of suffering, present not only today in their
practices, but certainly enhanced by the adversities and uncertainties of the
moment of global crisis that we are facing due to the Covid-19 pandemic.
One of the ways to investigate the pedagogical practices of teachers and
students is by looking at their emotions, with the aim of understanding

147
them as the driving force of a critical-reflective process, which can lead to
social transformations (FREIRE, 2020; HOOKS, 2017). In this bias, the
purpose of the text is to create intelligibility (MOITA LOPES, 2006) about
issues relevant to life in the classroom, based on the ethical-critical-reflexive
principles proposed by Exploratory Practice (MILLER et al, 2008; GRUPO
DA PRÁTICA EXPLORATÓRIA, 2020) and the close relationship between
teaching-learning and emotions (ZEMBYLAS, 2004; BARCELOS, 2013).
The work to understand how affects affect life in pedagogical contexts will be
built on exploratory conversations between students and teachers in initial and
continuing education. Our understandings suggest that emotions are central
to the various social practices and pedagogical activities of the participants,
contributing to: (i) understanding the practices of the teachers and students
participating in the exploratory conversations; (ii) the reflective conception of
teaching-learning and; (iii) the possibility of critical analysis of the aspects that
affect them positively or negatively.
KEY-WORDS: Exploratory Practice; Emotions; Teacher training.

1. Introdução
Historicamente, a educação brasileira tem uma raiz de caráter bas-
tante opressor e tradicional. Há muitos anos, preserva-se praticamente
o mesmo modelo de ensino, com foco voltado para a disciplina e para
as notas, definido por Freire (2020) como a educação bancária. Não é à
toa que, se compararmos fotos das salas de aula do século passado com
fotos mais recentes, não encontraremos muitas diferenças.
Nessa direção, é possível notar a influência das transformações so-
ciopolíticas no ramo educacional. Assim, é cobrado que as instituições
de ensino básico e superior guiem os alunos rumo a um futuro de su-
cesso e prosperidade, alinhando-se ao sistema e aos valores capitalis-
tas vigentes. Com isso, perde-se muito a oportunidade de o ambiente
de ensino-aprendizagem promover trocas e interações entre os agentes
envolvidos nesse processo. Com o foco nos conteúdos programáticos
das disciplinas, as emoções e as experiências dos alunos – e também
dos professores – costumam ser deixadas de lado. Fala-se muito pouco,
no espaço da sala de aula, sobre o que os agentes ali envolvidos estão

148
sentindo. E menos ainda se pensa a respeito dessas emoções e do porquê
de elas não serem tratadas em ambientes de ensino-aprendizagem.
Nessa direção, entendemos que olhar para as emoções de alunos e
de professores é um movimento fundamental para pensarmos as práti-
cas pedagógicas desses indivíduos, num processo crítico-reflexivo. Em
nosso caso, cujo foco é no contexto de formação – inicial e continuada
– de professores, é possível notar que a construção dessas emoções reve-
la valiosos entendimentos sobre os fazeres pedagógicos de tais agentes
sociais, dentro de suas realidades específicas.
Ademais, diante de um sistema educacional que privilegia a mera
transmissão de conteúdos e, consequentemente, sua memorização,
olhar para o nosso interior e também para o exterior, tanto nas nossas
expressões próprias, quanto no que nos cerca, é uma prática fundamen-
tal de resistência e de reexistência. Ao romper, mesmo que de forma
pouco chamativa, com o que é esperado e imposto, estamos construin-
do novas maneiras de ensinar e de aprender.
Dessa maneira, considerando uma postura crítico-reflexiva, a ati-
vidade docente pode ser entendida de outro modo, não mais aquela
tradicional que colocava o professor como uma entidade superior e que
sempre estava certa, mas sim como um ser em constante aprendizado.
O estudo acerca de nossas próprias emoções, crenças e identidades faz
parte do caminho para uma educação que prioriza o trabalho para en-
tender a qualidade de vida (MILLER et al., 2008).
Buscando refletir acerca das questões emocionais em sala de aula, é
fundamental, de início, destacar que a sala de aula é, por essência, um
espaço de muita emoção. Ao entendermos as emoções como perfor-
mances (ZEMBYLAS, 2004) em constante movimento, consideramos
de alta complexidade o estudo sobre o que sentimos e sobre como exte-
riorizamos nossa afetividade (NÓBREGA KUSCHNIR, 2003). Assim,
esta pesquisa não tem pretensão de definir e rotular o que os agentes
envolvidos no processo de ensino-aprendizagem sentem e pensam, mas
sim de investigar as origens dessas emoções, como elas refletem nossa
maneira de pensar e ver o mundo e como se relacionam às práticas de
alunos e professores.

149
Com isso, pretendemos, neste trabalho, criar inteligibilidades
(MOITA LOPES, 2006) acerca da vida em sala de aula, tendo em
vista os princípios da Prática Exploratória (GRUPO DA PRÁTICA
EXPLORATÓRIA, 2020; MILLER et al., 2008) e as contínuas re-
lações que são estabelecidas entre ensino-aprendizagem e emoções
(BARCELOS, 2013; ZEMBYLAS, 2004). Tais ideias surgem de con-
versas exploratórias entre alunos e professoras em formação inicial e
continuada, que possibilitaram significativas trocas e reflexões.

2. Fundamentação teórica
Ao olharmos e analisarmos o sistema educacional brasileiro, consta-
taremos, além de uma expressiva desigualdade, um modelo ainda mui-
to preso ao passado, em que, de maneira opressora (FREIRE, 2020),
ocorre a ‘‘doação’’ dos conhecimentos de um indivíduo, considerado
sábio, para os tidos como ignorantes. Assim, considerando uma postu-
ra, geralmente, autoritária dos professores, tais saberes são transmitidos
de maneira impositiva e afastada da realidade dos agentes envolvidos no
processo de ensino-aprendizagem.
Nesse sentido, tal visão e ação de/em sala de aula ‘‘reforça a sepa-
ração dualista entre o público e o privado, estimulando os professores
e os alunos a não ver ligação nenhuma entre as práticas de vida, os
hábitos de ser e os papéis professorais’’ (HOOKS, 2017, p. 29). Dessa
maneira, cria-se um muro – muito maior que os das instituições de
ensino – entre elas e o mundo ao redor, dificultando o estabelecimento
de relações, por professores e alunos, entre suas vidas, suas emoções e
suas identidades.
Em oposição à perspectiva bancária da educação, surge a educação
como prática da liberdade, que, ‘‘ao contrário daquela que é prática da
dominação, implica a negação do homem abstrato, isolado, solto, desli-
gado do mundo, assim como também a negação do mundo como uma
realidade ausente dos homens’’ (FREIRE, 2020, p. 98). Sendo assim,
propõe a possibilidade real de transformação social. No entanto, para
que isso aconteça, é necessário que o professor, de fato, esteja aberto

150
e disposto a adotar uma prática libertadora (HOOKS, 2017). Com
ela, aos alunos se oferece maior espaço para o desenvolvimento de suas
habilidades e de suas identidades. Para o professor, essa pedagogia tam-
bém traz benefícios e reflexões valiosas, visto que ‘‘toda sala de aula em
que for aplicado um modelo holístico de aprendizado será também um
local de crescimento para o professor, que será fortalecido e capacitado
por esse processo’’ (HOOKS, 2017, p. 35).
Nessa direção, pensando em uma educação transformadora
para alunos e professores, trazemos as vozes que construíram e con-
tinuam construindo a Prática Exploratória (GRUPO DA PRÁTICA
EXPLORATÓRIA, 2020; MILLER et al., 2008) ao destacarem a im-
portância de uma ação investigativa para/em sala de aula. Sendo assim,
a Prática Exploratória (PE) busca entendimentos para o que acontece
no ambiente em questão. Desse modo, professores e alunos são convi-
dados a, juntos, desenvolverem um olhar atento para as questões ao seu
redor. Assim, alguns princípios que orientam a maneira de pensar da
Prática Exploratória são:

Priorizar a qualidade de vida.


Trabalhar para entender a vida na sala de aula ou em outros
contextos profissionais.
Envolver todos neste trabalho.
Trabalhar para a união de todos.
Trabalhar para o desenvolvimento mútuo.
Integrar este trabalho com as práticas de sala de aula ou com
outras práticas profissionais.
Fazer com que o trabalho para o entendimento e a integração
sejam contínuos. (MILLER et al., 2008, p.147, grifos do autor).

No atual cenário político e social do país, esses princípios ganham


ainda mais valor, pois, considerando todas as dificuldades que existem
nos ambientes educacionais, criar estratégias para envolvimento dos
alunos, colocando-os como protagonistas e preocupando-se, verdadei-
ramente, com eles, é uma maneira de resistência e uma tentativa de se
alcançar a educação libertadora e transformadora.

151
Nesse sentido, ao destacar a importância de buscarmos entender
a qualidade de vida dos participantes de um grupo, a PE se mostra
preocupada com o que os indivíduos sentem e pensam, não restringin-
do o espaço da sala de aula aos conteúdos programáticos. Ademais, a
complexidade desse espaço pode ser percebida melhor ao destacarmos
a concepção tridimensional da sala de aula, ‘‘onde as dimensões social,
afetiva e cognitiva convivem em harmonia, fazendo deste contexto uma
unidade sistêmica’’ (NÓBREGA KUSCHNIR, 2003, p. 47). Dessa
forma, reconhecemos os vários fatores que estão em jogo dentro de
uma sala de aula.
Explorando de maneira mais aprofundada a dimensão afetiva,
Nóbrega Kuschnir (2003) pontua a necessidade de o professor (re)co-
nhecer as manifestações emocionais em sua sala de aula, passando a
conhecer melhor seus alunos, também no aspecto emocional, o que
possibilita uma construção diferenciada das relações coconstruídas no
grupo. Nessa perspectiva, a autora entende o afeto como ‘‘um construto
social que permeia e interage constantemente com as estruturas sociais
e cognitivas do contexto escolar’’ (NÓBREGA KUSCHNIR, 2003, p.
51), já que reconhecer os afetos positivos e negativos pode causar dife-
rentes efeitos nos grupos sociais.
Na Linguística Aplicada (LA), em sua abordagem contemporânea
e indisciplinar (MOITA LOPES, 2006), as emoções podem ser enten-
didas como resultado das interações internas e externas, sendo frequen-
temente geradas e mudadas, o que afirma seu caráter ativo. Além disso,
elas são construtos socioculturais (ZEMBYLAS, 2004), uma vez que
dependem do contexto em que estão inseridas, moldando-o e sendo
moldadas por ele. Dessa maneira, as emoções de alunos e professores
são construídas a partir do contexto em que esses agentes atuam e dos
valores de suas comunidades e grupos sociais.
Ademais, Zembylas (2004) considera as emoções como práticas
discursivas, compreendendo que ‘‘não são estados internos, mas são
sobre vida social; assim, as relações de poder são inerentes a conver-
sas sobre emoção’’ (p. 187), visto que tais relações determinam o que,

152
socialmente, pode ou não pode e quem pode e quem não pode ter
determinadas emoções.
Nessa direção, esta pesquisa, ancorada na concepção de Linguística
Aplicada Indisciplinar (MOITA LOPES, 2006), se debruça sobre a im-
portância de se falar em/sobre emoções no processo de formação inicial
e continuada de professores (de línguas), possibilitando, assim, trocas
e reflexões a todos os agentes envolvidos nesse processo contínuo e
constante.

3. Nossas conversas exploratórias


Este trabalho parte de conversas exploratórias – momentos coleti-
vos de partilha de aprendizagens e reflexões, sem roteiro determinado
– entre um grupo de então licenciandos em Letras e de professoras do
mesmo curso, na PUC-Rio. Com a proposta inicial de nos reunirmos
para um projeto de pesquisa sobre emoções na sala de aula, trilhamos
outros caminhos no grupo, batizado, carinhosamente, de ‘‘Letrados
Emocionados’’, reunindo, assim, alunos e professoras do curso de Letras
que estavam interessados na temática das emoções. Desde o início, o
propósito do grupo foi não ter propósitos muito definidos. A cada reu-
nião, nós, participantes, trazemos reflexões e experiências sobre nossas
vivências em ambientes educacionais, discutindo questões latentes na
formação inicial e continuada.
O grupo foi criado em 2021, em meio à pandemia de Covid-19 e
ao ensino remoto, carregado de desafios. Para nós, então licenciandos
no final da graduação, era o momento dos estágios obrigatórios, que,
devido ao contexto vivido, foram, também, remotos. Assim, nos sentía-
mos ocupando um entre-lugar: em alguns momentos do dia, estávamos
na posição de alunos na graduação; em outros, éramos estagiários na
educação básica. Nesse momento, com a nossa identidade de professo-
res em início de formação, ainda nos descobrindo na área, os encontros
com os ‘‘Letrados Emocionados’’ iam muito além de aconselhamentos e
confissões, mergulhando profundamente em nossas inquietações e sen-
timentos, um processo quase que terapêutico.

153
Nessa direção, quando bell hooks (2020) nos traz uma nova visão
sobre o amor e as demais emoções, ela reforça a importância do ‘‘falar
sobre’’, de expressarmos o que sentimos e de pensarmos por que senti-
mos. Segundo ela,

precisamos falar de nossa vergonha e de nossa dor corajosamen-


te para nos recuperarmos. Abordar o que nos feriu não é culpar
os outros; contudo, isso permite que os indivíduos que foram e
estão sendo machucados insistam no reconhecimento e na res-
ponsabilidade vindos de si próprios e dos que foram os agen-
tes de seu sofrimento, assim como dos que o testemunharam.
A confrontação construtiva ajuda em nossa cura. (HOOKS,
2020, p. 259).

À luz dessas ideias, podemos dizer que a coconstrução de reflexões,


como é o caso de nosso grupo, contribui significativamente em nossa
formação contínua enquanto indivíduos e professores, permitindo que,
no caso de afetos negativos, fossem entendidas as responsabilidades
próprias e do outro nesse processo.
Trazendo para o nosso caso, em 2021, tínhamos mais um fator que
trazia esses sentimentos mencionados por hooks: a aproximação do tér-
mino da graduação, momento que traz dúvidas sobre os próximos pas-
sos a serem dados. Assim, desassossegados, compartilhávamos angústias
e sonhos em relação à educação, mantendo o esperançar propagado por
Paulo Freire (1992) – o tipo de esperança que vai, de fato, atrás, moven-
do-se diante das adversidades. Nesse sentido, ‘‘talvez seja do esperançar
que precisamos em nosso dia a dia, pois é através dele que podemos nos
levantar e (re)construir a nossa prática para enfrentar a incerteza que
nos assola’’ (MOURAD; LUCAS; AMARO, 2021, p. 47), principal-
mente se considerarmos o contexto em que nosso país se encontra, com
pesquisas revelando um número crescente de desalentados.
Dessa maneira, nas conversas exploratórias, mesmo após a formatu-
ra na graduação, nós, recém-formados e professoras universitárias, refle-
timos sobre nossas práticas pedagógicas, pensando em como o processo
de ensino-aprendizagem pode ficar mais crítico e inclusivo, abrindo

154
espaço, também, para falarmos sobre como as situações cotidianas nos
afetam positiva e negativamente. Com efeito, buscamos estabelecer, nos
espaços em que estamos, relações pautadas na ética amorosa (HOOKS,
2020), ou seja, na ética que busca colocar em prática as dimensões do
amor: ‘‘cuidado, compromisso, confiança, responsabilidade, respeito e
conhecimento’’ (HOOKS, 2020, p. 130).

4. (In)Conclusões
Refletindo acerca das emoções em contextos educacionais, pude-
mos compreender a centralidade delas nas práticas sociais e pedagógicas
de alunos e professores, possibilitando uma percepção mais atenta e
apurada do que está acontecendo ao redor. Com esse olhar, acreditamos
que o professor pode sentir-se mais empoderado para desconstruir, em
alguma medida, a educação bancária e pouco reflexiva, aproximando-
-se, assim, de um processo de ensino-aprendizagem mais horizontaliza-
do, empático e preocupado com todos os envolvidos nele.
Nesse sentido, quando aos aprendizes, dentro de seus ambientes
específicos, é dado o espaço para a troca de reflexões e experiências,
há um ganho para todos os participantes. Assim, com as nossas con-
versas exploratórias, pudemos refletir, de maneira crítica e cuidadosa,
a respeito de inquietações que tinham grande significado para nós em
determinado momento e que, certamente, ressoam ainda em nossas vi-
das e práticas. Além disso, para as professoras, em contínua formação,
acreditamos que as conversas puderam trazer novos pensamentos sobre
a sala de aula, até pensando em seus próprios fazeres pedagógicos, de
maneira crítica.
Portanto, dar atenção às emoções, em ambientes pedagógicos, é
fazer com que os indivíduos – independentemente da posição que ocu-
pam – possam desenvolver maior sensibilidade em relação ao outro,
colocando em prática a ética amorosa de bell hooks, e a si mesmo,
buscando entender os próprios atos e discursos. Nessa direção, abre-se
espaço para que a educação seja, de fato, libertadora, não só diante do
sistema, que já é opressor, mas também diante de si próprio.

155
Referências bibliográficas
BARCELOS, A. M. F. Desvelando a relação entre crenças sobre ensino e aprendiza-
gem de línguas, emoções e identidades. In: GERHARDT, A. F. M.; AMORIM, M.
A.; CARVALHO, A. M. (Org.). Linguística Aplicada e Ensino: Língua e Literatura.
Campinas: Pontes, 2013. p. 153-186.

FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio


de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 74 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020.

GRUPO DA PRÁTICA EXPLORATÓRIA. Por que trabalhar para entender a vida na


sala de aula?: histórias do Grupo da Prática Exploratória. Rio de Janeiro: 2020.

HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2.ed. São


Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

HOOKS, B. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2020.

MILLER, I. K. et al. Prática Exploratória: questões e desafios. In: GIL, G.; VIEIRA-
ABRAHÃO, M. H. Educação de professores de línguas: os desafios do formador.
Campinas: Pontes Editores, 2008. p. 145-65.

MOITA LOPES, L. P. Por uma Linguística Aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola
Editorial, 2006.

MOURAD, V. A. A.; LUCAS, A. E. P. S.; AMARO, G. S. Prática Libertadora: expan-


dindo o mundo através da educação. Dignidade Re-Vista, v.7, n.12, jul 2021. p. 41-51.

NÓBREGA KUSCHNIR, A. O afeto e a sócio-construção do conhecimento na sala


de aula de língua estrangeira. Pesquisas em Discurso Pedagógico, Vol.2, No. 1, p.47-60,
2003.

ZEMBYLAS, M. The emotional characteristics of teaching: Teaching and Teacher


Education, v. 20, p. 185-201, 2004.

156
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA DE


GÊNEROS ACADÊMICOS NO MESTRADO: A
FORMAÇÃO DO PROFESSOR PESQUISADOR

Beatriz Fernanda Fortunato-UERJ

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo principal analisar como


ocorrem as práticas de leitura e escrita acadêmica em um mestrado acadêmico
em Letras de uma Universidade localizada no estado do Rio de Janeiro, através
das apreciações valorativas dos alunos. O estudo justifica-se pela necessidade
de entender os principais desafios encontrados por alunos do mestrado acerca
dos processos que envolvem as práticas de leitura e escrita e de que maneira
possíveis dificuldades irão refletir em sua formação acadêmica. A análise
empírica, assim como nossa base teórica serão pautadas nos trabalhos que
discutem a temática do Letramento e dos Novos Estudos do Letramento
(STREET, 1984; GEE, 1996, 2000, 2015; SOARES, 1998, 2006; KLEIMAN,
1995, 2008, 2012) e dos Letramentos Acadêmicos (STREET, 2014; LEA,
STREET, 1998; ZAVALA, 2011; FIAD, 2011; WILSON, 2019; COELHO,
2021). Serão utilizados como métodos de análise, também, os conceitos
baktinianos de cronotopia e exotopia, que orientarão o “olhar” do pesquisador
ao “outro” a partir das respostas dos alunos a dois questionários que serão
aplicados em dois momentos distintos. O estudo está em fase de elaboração
teórica e o primeiro questionário está previsto de ser aplicado em maio desse
ano. Após ter sido realizada a análise das respostas dos questionários espera-se
que sejam mapeadas as vivências e experiências dos alunos em suas práticas de
leitura e escrita acadêmica, reconhecendo aquelas que são mais recorrentes e
que produzem sentidos e causam algum impacto em suas vidas.
PALAVRAS-CHAVE: Letramentos acadêmicos; Formação acadêmica;
Gêneros Discursivos.

ABSTRACT: The main objective of this work is to analyze how academic


reading and writing practices occur in an academic master’s degree in Letters
at a University located in the state of Rio de Janeiro, through the students’
valuable appraisals. The study is justified by the need to understand the main
challenges encountered by master’s students about the processes involving
reading and writing practices and how possible difficulties will reflect on
their academic training. The empirical analysis, as well as our theoretical

157
basis, will rely upon works that discuss the Literacy and the New Literacy
Studies (STREET, 1984; GEE, 1996, 2000, 2015; SOARES, 1998, 2006;
KLEIMAN, 1995, 2008, 2012) and Academic Literacies (STREET, 2014;
LEA, STREET, 1998; ZAVALA, 2011; FIAD, 2011; WILSON, 2019;
COELHO, 2021). The baktinian concepts of chronotopy and exotopy will
also be used as analysis methods, which will guide the researcher’s “look”
to the “other” from the students’ answers to two questionnaires that will be
applied at two different times. The study is in the theoretical elaboration
phase and the first questionnaire is expected to be applied in May of this year.
After the analysis of the answers to the questionnaires has been carried out,
it is expected that the experiences of students in their academic reading and
writing practices will be mapped, recognizing those that are most recurrent
and that produce meanings and have some impact on their lives.
KEYWORDS: Academic literacies; Academic training; Discourse Genres.

Introdução
O ingresso ao mundo acadêmico é algo marcante. Proporciona ao
indivíduo a possibilidade de agregar conhecimentos valorosos no âmbi-
to cultural e familiar. Entretanto, para que o indivíduo seja partícipe do
contexto acadêmico, é necessário que o estudante se submeta às normas
privilegiadas pela academia e que as internalize. Caso isso não aconteça,
o aluno pode se sentir excluído de tais práticas. Por isso, chegando ao
mestrado, ao se deparar com a necessidade de escrever textos acadê-
micos, alguns estudantes – muitos já professores da educação básica
quando se trata das licenciaturas, se sentem despreparados e, por vezes,
desmotivados. Essa dificuldade do estudante decorre da inexperiência
com determinados gêneros, cujo domínio é, de fato, um comportamen-
to social, como lembram os ensinamentos de Bakhtin (1997).
O conceito de letramentos acadêmicos e dos Estudos do Letramento,
está embasado em autores como Street (1984, 2010, 2012, 2014),
Wilson (2017, 2019), Coelho (2021) Kleiman (1995, 1998, 2005), en-
tre outros importantes autores da área. De acordo com Kleiman (1995,
p. 19), “podemos definir hoje o letramento como um conjunto de prá-
ticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto

158
tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. Em
um escrito posterior, a mesma autora diz entender o letramento “como
as práticas e eventos relacionados com uso, função e impacto social da
escrita” (KLEIMAN, 1998, p. 181). Seguindo essa linha de pensamen-
to, podemos definir letramentos como as práticas sociais de leitura e es-
crita, levando em consideração a forma como tais práticas são colocadas
em ação e a maneira como tais práticas atingem a sociedade (SOARES,
2002).
A partir de observações e reflexões a respeito das práticas de letra-
mentos acadêmicos dos mestrandos e com base nas respostas obtidas a
partir de nossa pesquisa, intentamos realizar uma investigação dos dis-
cursos sobre a leitura e a escrita que subjazem à fala dos alunos. Desse
modo, é importante verificar o que os mestrandos pensam, sentem e
experimentam acerca de suas práticas de leituras e escritas para que,
dessa forma, possamos nos aprofundar nos conflitos com as práticas
de letramentos acadêmicos no âmbito do mestrado. A partir da análise
das experiências dos mestrandos poderemos explorar e nos aprofun-
dar no estudo dos discursos acerca da leitura e produção de gêneros
acadêmicos.
Com base nessa problemática, nosso estudo buscará perceber como
mestrandos de um programa de pós-graduação em Letras de uma uni-
versidade no Rio de Janeiro vivenciam e experimentam as práticas de
letramentos acadêmicos em um curso de mestrado. Os objetivos especí-
ficos desta pesquisa consistem em:ilustrar as experiências dos discentes
acerca da leitura e produção escrita de gêneros acadêmicos; identificar a
ocorrência das práticas de leitura e escrita acadêmicas em um mestrado
acadêmico; apontar quais são os textos/gêneros textuais cuja leitura e
escrita são mais exigidas pelos professores.-mapear as possíveis dificul-
dades encontradas pelos discentes na leitura e na escrita de textos aca-
dêmicos; analisar como os letramentos pregressos e os letramentos do
cotidiano contribuem para os letramentos acadêmicos dos estudantes.
Devido à limitação em relação ao número de páginas e ao fato de
nossa pesquisa ainda se encontrar em fase de desenvolvimento, para este

159
trabalho, optamos em fazer um recorte de nossa discussão teórica acerca
dos letramentos, onde realizamos um breve panorama sobre os estudos
de letramentos, abordando a definição de letramentos (STREET, 2010)
e apresentando os conceitos de práticas de letramento (STREET, 1984)
e eventos de letramento (HEATH, 1982, 1983). Em seguida, começa-
mos a tratar das definições que envolvem os letramentos acadêmicos
(LEA & STREET, 1998; WILSON, 2017, 2019; MARINHO, 2010;
FIAD, 2011; ZAVALA, 2010).Além de traçar um panorama histórico
dessas ideias, discutimos os usos sociais da leitura e da escrita no Ensino
Superior.

Letramentos
O fenômeno do letramento é um tema que recebeu significativa
atenção no Brasil a partir da década de 1990, graças às publicações de
autores como Angela Kleiman e Magda Soares, além de outros estu-
dos sobre o assunto. O movimento conhecido como Novos Estudos
de Letramento (NLS), baseado nos trabalhos de Shirley Heath, Brian
Street, David Barton e Mary Hamilton, para citar alguns dos nomes
mais conhecidos no Brasil, tornou-se conhecido como resultado de tais
obras.
O termo letramento, é derivado da palavra inglesa literacy (habili-
dades de leitura e escrita), é uma adição relativamente nova ao léxico da
Educação e das Ciências Linguísticas, surgindo na segunda metade da
década de 1980. O termo foi aplicado primeiramente nas publicações
de Kato (1986) e Tfouni (1988), mas somente a partir da metade final
da década de 1980 é que o uso e a circulação do termo letramento fo-
ram ampliados graças aos estudos de Tfouni (1995), Kleiman (1995) e
Soares (1998).
Devido à diversidade de práticas ou usos sociais da leitura e da es-
crita, que refletem nas diversas formas como as pessoas interagem com
elas, o termo “letramento” foi cunhado para descrever todas as com-
plexidades que caracterizam o sujeito da leitura e da escrita (SOARES,
2004; MARINHO, 2010). Como resultado, definimos letramentos em

160
consonância com o que Street (2010) define como um conjunto de prá-
ticas sociais que fazem uso da leitura e da escrita, práticas que se carac-
terizam por suas próprias complexidades e pode ser observada em uma
variedade de situações cotidianas. Goulart (2014) também comenta so-
bre a definição de letramento explicando que “o conceito de letramento
está ligado à inclusão dos indivíduos no mundo letrado, envolvendo-o
na participação social e política” (GOULART, 2014, p. 37).
Essa concepção de letramentos, que se sustenta no que Street
(1984) chama de modelo ideológico de letramento, nos interessa de
maneira singular. Street (1984) dissocia o conceito de letramentos do
processo de escolarização, associando-o a metodologias de socialização
mais amplas vinculados às instituições sociais. A concepção ideológica
está pautada nos significados que surgem do cotidiano de cada grupo
social, impedindo que seja interpretado de forma homogênea, como se
as diversas formas de escrita produzissem os “mesmos” significados e se
apresentassem da mesma forma para todos os grupos.
A opção pelo modelo ideológico proporciona um olhar mais sensí-
vel sobre as práticas de letramento, reconhecendo que elas irão variar de
um cenário para outro, pois o letramento é uma prática social, não ape-
nas uma habilidade técnica e neutra. Ou seja, esse modelo leva em con-
ta a singularidade dos letramentos em locais e tempos distintos. Nesse
sentido, os resultados da pesquisa de Heath (1982) demonstram que
cada comunidade tem sua própria concepção de letramento, sendo um
equívoco utilizar a concepção da classe média como paradigma univer-
sal nas sociedades contemporâneas. Essa falha se reflete na sala de aula
quando os professores ignoram as características de aprendizagem do
grupo social ao qual os estudantes pertencem, impedindo-os de receber
a educação de que necessitam.
Street (1984) formaliza o conceito de modelo ideológico de letra-
mento como uma crítica ao chamado modelo autônomo. De acordo
com o autor, o modelo autônomo considera que o letramento ocor-
re apenas em contextos institucionalizados de utilização das práticas
de leitura e escrita. Nesse modelo existe uma correlação direta entre

161
a utilização da escrita e o exercício da escrita formal. Além disso, o
modelo autônomo conclui associando letramento com as noções de
“desenvolvimento” e “civilização”, o que leva à errônea concepção de
que “não-letrados” ou “iletrados” poderiam ser rotulados como “não
desenvolvidos” ou “primitivos”. Street (1984) afirma que os dois mo-
delos não são conflitantes, mas coexistem; o modelo ideológico é o que
melhor representa a heterogeneidade das práticas de escrita e elucida as
relações de poder que são próprias da língua, seja ela falada ou escrita.
Uma das distinções fundamentais dentro da concepção dos
Letramentos é a entre os conceitos de evento e prática de letramen-
to. Esses conceitos servem como modelos analíticos, utilizados pelos
pesquisadores, para entender a diversidade da utilização e os sentidos
que são atribuídos por distintos grupos sociais às práticas de leitura e
escrita.
Para começar, Heath (1983) define um evento de letramento como
qualquer situação em que o texto escrito é algo que constitui a interação
entre os sujeitos. Essa concepção diz respeito aos aspectos mais visíveis
das atividades que envolvem as práticas de leitura e a escrita, ou seja, o
que vemos as pessoas fazendo quando utilizam essas ferramentas. Por
meio dos eventos de letramento, os pesquisadores podem distinguir a
oportunidade, o lugar e a maneira como os sujeitos leem, escrevem,
conversam sobre um texto escrito ou usam a palavra escrita para inte-
ração. Os eventos de letramento acontecem em uma variedade de am-
bientes sociais, podem assumir muitas formas e servem a uma variedade
de propósitos.
É possível nos aprofundarmos acerca dos sentidos que são
atribuídos aos eventos categorizando-os como práticas de letramento.
Street cunhou a expressão “práticas de letramento” em sua obra
clássica em 1984. O conceito permite uma análise e interpretação mais
aprofundada das práticas sociais que envolvem a escrita. Segundo Street
(2012), diferentemente dos eventos, as práticas de letramento não são
abertamente observáveis. Como resultado, é necessário que ocorra
interação com os sujeitos, para que seja possível ouvi-los e conectar os

162
eventos de letramento a outras atividades que eles realizam. Só assim,
os significados construídos naquela situação podem ser compreendidos.
Reforçando essa concepção, Magalhães (2012) afirma:

Para serem investigadas de forma adequada, as práticas de letra-


mento demandam a metodologia de pesquisa etnográfica, que
estabelece uma relação de convivência com o grupo pesquisado
durante um determinado tempo, possibilitando o registro dos
processos sociais do letramento: valores, atitudes, sentimentos e
relações sociais (MAGALHÃES, 2012, p.26).

São as práticas de letramento que irão significar aos eventos, pois


“referem-se a essa concepção cultural mais ampla de modos particulares
de pensar sobre a leitura e a escrita e de realizá-las em contextos cultu-
rais” (STREET, 2012, p. 77). Nesse estilo de análise, o pesquisador se
afasta do cenário imediato em que os eventos ocorrem para situá-los e
interpretá-los em contextos institucionais e culturais, bem como con-
frontá-los com relações de poder. Partindo do conceito de práticas de
letramento, intentamos compreender como os mestrandos vivenciam,
experimentam e atribuem significados as práticas de leitura e escrita que
lhe são exigidas no âmbito do mestrado acadêmico.
É válido ressaltar que, segundo os pesquisadores que compõem a
área dos Novos Estudos do Letramento, as práticas de letramento são
práticas sociais com significados específicos em diversas instituições
e grupos sociais. Ao contrário da ideia de um Letramento singular,
com a letra L maiúscula e no singular, Street (1984) sugere tratar de
letramentos, como plural ou vários letramentos, pois as práticas de
escrita são variadas. Como resultado é necessário considerar o letramento
como um tema plural, com variadas utilizações e sentidos em diversos
contextos culturais.
Além disso, Street (2014, p. 146-147) diz que “[...] existe variação
de letramento ao longo de toda uma gama de diferentes práticas, con-
textos e domínios. (É preciso) examinar o aspecto cultural do letramen-
to (para não) recriar uma lista reificada – aqui está uma cultura, aqui

163
está seu letramento; aqui está outra cultura, aqui está seu letramento”
(adendo meu). O risco, segundo Street (2012), é acreditar na hipótese
de que existe um ‘letramento’ único relacionado a uma ‘cultura’ única.
Utilizamos o termo Letramentos Acadêmicos no plural pois se trata de
uma dimensão distinta de práticas de leitura e escrita social, constituin-
do-se em um tipo particular de letramentos devido às particularidades
que são exclusivas à esfera acadêmica.

Práticas de letramentos próprias da universidade: Os


Letramentos Acadêmicos
Os estudos sobre os letramentos, especialmente aqueles sob o para-
digma dos Novos Estudos de Letramento, privilegiam o caráter social e
identitário o qual os letramentos possuem, devido ao fato as atividades
de leitura e escrita não serem pautadas apenas há assunção de habilida-
des ou modelos, mas se entrelaçam integralmente às ações e práticas de
leitura e escrita que os sujeitos desenvolvem em suas rotinas diárias, em
seus costumes e em suas experiências disciplinares (WILSON, 2017).
Sobre as práticas letradas próprias da universidade, os letramentos
acadêmicos, alguns pesquisadores (MARINHO, 2010; FIAD, 2011)
consideram a escrita acadêmica limitada ao ambiente universitário por-
que acreditam que há “usos específicos da escrita no contexto acadêmi-
co, usos que diferem de outros contextos, inclusive de outros contextos
de ensino” (FIAD, 2011, p. 362). Entende-se que as práticas de leitura
e escrita em contexto acadêmico se diferenciam de outros tipos não
apenas quanto aos gêneros produzidos nesse cenário (teses, dissertações,
monografias, artigos, ensaios, resenhas, resumos etc.), mas também
quanto às especificidades práticas acadêmicas com seus próprios usos.
No que concerne aos letramentos acadêmicos, as discussões giram
em torno das dificuldades que os discentes encontram quando são soli-
citados a realizarem leituras e produzirem textos próprios da esfera aca-
dêmica, se adequando a suas normas e convenções, conforme Wilson
(2008), Carlino (2009), Marinho (2010). As discussões também giram
em torno das inquietações que buscavam identificar os letramentos

164
acadêmicos como uma prática social, que auxiliasse na constituição de
identidades e de conhecimentos e contribuísse para a valorização de
grupos sociais outrora desprezados, de modo que novas maneiras de
sentir e ver o mundo fossem experimentadas, conforme Ivanic (1997),
Lea; Street (1998), Marinho (2010), Zavala (2010), Wilson (2013,
2017), Coelho (2021).
Lea e Street (1998; 2014) e Street (2010) examinam os fundamen-
tos dos letramentos acadêmicos no Reino Unido, com foco nas práticas
de escrita no Ensino Superior. De acordo com Lea e Street (1998), as
abordagens da escrita e da leitura do aluno em contextos acadêmicos
podem ser concebidas por meio da combinação de três perspectivas ou
modelos: habilidades de estudo ou habilidades cognitivas, socialização
acadêmica e modelo de letramentos acadêmicos.
Os letramentos acadêmicos, segundo o modelo de habilidades de
estudo, são compreendidos como uma gama de habilidades de leitura
e escrita desenvolvidas em um contexto particular e cognitivo (LEA;
STREET, 2014). Essas habilidades devem ser aprendidas pelos alunos,
pois são vistas como transferíveis para outras situações (LEA; STREET,
1998). Por conseguinte, habilidades adquiridas em âmbito de uma dis-
ciplina, podem ser reaplicadas em outra disciplina, sem considerar as
práticas letradas e dando pouca atenção ao contexto. Porém, como afir-
ma Fiad (2013), não há como separar os letramentos de seu contexto
pois:

algumas das práticas socioculturais de leitura e escrita ocorrem


em ambientes/eventos tão específicos que não há como os su-
jeitos produzi-las sem que estejam inseridos nessas práticas e
espaços, tanto como leitores quanto produtores dos gêneros so-
licitados (FIAD, 2013, p. 470).

Segundo Lea e Street (1998, 2014), o objetivo do modelo habili-


dades de estudo é instruir sobre aspectos estruturais da língua, como
estrutura gramatical, pontuação e ortografia, ao mesmo tempo em que
vê a escrita acadêmica como técnica e instrumento. As dificuldades que

165
os discentes apresentam em relação às práticas de leitura e escrita aca-
dêmica, são tratadas como algo que deve ser corrigido. Segundo Fiad
(2015), esse modelo não leva em consideração a trajetória de letramen-
to prévia do discente e, ao descobrir que esse estudante não dispõe dos
conhecimentos relacionados ao letramento acadêmico, passa a enxergar
o estudante apenas em suas dificuldades, como alguém que necessita de
aprendizado.
Dentro do ambiente acadêmico, por exemplo, há uma continuida-
de desse modelo de letramento, segundo o qual há habilidades indivi-
duais e cognitivas que os alunos precisam desenvolver para que possam
transferi-las para o contexto da universidade, não levando em conta os
processos e a história de letramento que cada um vivenciou antes de
ingressar na vida acadêmica (OLIVEIRA, 2017).
No modelo de socialização acadêmica, o trabalho do docente é
socializar os alunos na cultura acadêmica (LEA; STREET, 1998), pro-
curando fazer com que os alunos dominem e compreendam os regi-
mentos dos discursos existentes no âmbito acadêmico. Em consequên-
cia, caso tenham êxito nesta tarefa, obterão “modos de falar, escrever,
pensar, e interagir em práticas de letramento que caracterizem mem-
bros de comunidade disciplinar ou temática.” (LEA; STREET, 2014,
p. 479). Contudo, de acordo com essa concepção, o âmbito acadêmico
é visto como um espaço de homogeneidade onde apenas o fato de ter
conhecimento de suas normas, levará os alunos a estarem participando
de todas as suas práticas, de maneira ativa, fato que não acontece. Sobre
o modelo de socialização acadêmica, ainda que seja uma abordagem
mais sensível, Street (2010)apresenta diversas críticas, principalmente
sobre o fato de pensar o contexto acadêmico como homogêneo, e que
garante o acesso de todos os alunos de forma plena.
O modelo dos Letramentos Acadêmicos combina elementos das
outras duas abordagens, mas os supera devido ao seu entendimento
mais amplo acerca da natureza da escrita, ressaltando a produção de sen-
tidos, práticas institucionais, relações de poder e autoridade, o caráter
das convenções acadêmicas e questões de identidade (LEA; STREET,

166
2014). Lillis e Scott (2007), afirmam que essa perspectiva tornou visí-
veis dimensões que antes eram invisíveis ou desconhecidas.
A escrita acadêmica é reconhecida como uma prática social na con-
cepção do modelo dos letramentos acadêmicos dentro de um ambiente
institucional e disciplinar definido, e destaca-se a influência de fato-
res como poder e autoridade na produção textual dos alunos. Além
dos aspectos cognitivos da leitura e da escrita, o modelo de letramen-
to acadêmico mobiliza outros saberes. Ele se concentra na formação
de significados, onde são estabelecidas relações identitárias, de poder e
autoridade.
Sobre o modelo dos Letramentos Acadêmicos, Lea e Street (2014)
sustentam que:

O terceiro modelo, o de letramentos acadêmicos, tem relação


com a produção de sentido, identidade, poder e autoridade;
coloca em primeiro plano a natureza institucional daquilo que
conta como conhecimento em qualquer contexto acadêmico
específico. Assemelha-se, em muitos aspectos, ao modelo de so-
cialização acadêmica, exceto pelo fato de considerar os processos
envolvidos na aquisição de usos adequados e eficazes de letra-
mento como mais complexos, dinâmicos, matizados, situados,
o que abrange tanto questões epistemológicas quanto processos
sociais incluindo: relações de poder entre pessoas, instituições
e identidades sociais. Até o momento, tanto em nível univer-
sitário, quanto em nível fundamental e médio, os modelos de
habilidades e de socialização acadêmica têm guiado o desen-
volvimento de currículos, de práticas didáticas bem como de
pesquisas (LEA; STREET, 2014, p. 479)

Desta forma, o modelo de Letramentos Acadêmicos, avalia que


os letramentos dos sujeitos são um ato social, englobando a leitura e
a escrita. O que vai muito além da aquisição de uma técnica, enxer-
gando-as como uma parte do processo acadêmico de construção do
conhecimento.
Ao elaborarem os três modelos citados acima, Lea e Street (1998)
objetivaram entender de maneira os processos que envolvem a escrita

167
dos estudantes e todo processo de ensino-aprendizado no âmbito
acadêmico. Além disso é ressaltado que o letramento não é nada estático,
o próprio modelo dos letramentos acadêmicos possui características dos
outros dois modelos, ainda que a perspectiva dos letramentos acadêmi-
cos seja vista como a mais coerente, pois “leva em conta a natureza da
produção textual do aluno em relação às práticas institucionais, relações
de poder e identidades; em resumo, consegue contemplar a complexi-
dade da construção de sentidos, ao contrário dos outros dois modelos”
(STREET, 2010, p. 546).
Os modelos de habilidades e socialização acadêmica têm sido toma-
dos como base para o desenvolvimento de práticas pedagógicas, desde os
anos iniciais do Ensino Fundamental até auniversidade. O modelo dos
Letramentos Acadêmicos é proposto por Lea e Street (2014) como uma
nova perspectiva que vem a contrapor o paradigma dominante. Eles ar-
gumentam que esse modelo pode auxiliar no planejamento de projetos
de desenvolvimento curricular e instrução em ambientes acadêmicos.
No contexto brasileiro, Marinho (2010) afirma que existem diver-
sas pesquisas que discutem o ensino-aprendizado da leitura e da escrita
na Educação Básica, mas que as práticas de leitura e escrita de estudan-
tes do Ensino Superior não têm recebido a atenção que merecem. Essa
é uma das razões pelas quais a pesquisadora optou por focar esse nível
de ensino em sua pesquisa. Esses estudos apontam a desvalorização das
disciplinas oferecidas para trabalhar a escrita e a leitura no nível univer-
sitário, o que é um tanto inesperado diante das contínuas reclamações
dos docentes universitários de que seus alunos têm dificuldade de ler e
escrever textos acadêmicos.
Os docentes frequentemente se surpreendem ao se deparar com
estudantes que não estão familiarizados com a literatura e produção
de gêneros que embasam suas aulas e outros eventos singulares à esfera
acadêmica. Mesmo diante dessas dificuldades, os discentes adotam uma
atitude auto discriminatória, julgando indesculpável não dominarem os
gêneros discursivos. Predomina o modelo de déficit dominante, como
se pode observar. A forma como professores e alunos se enxergam (e

168
de que maneira se enxergam) é baseada em uma crença comum de que
se aprende a ler e escrever, independentemente do gênero, ocorre du-
rante a Educação Básica. Assim, caso o discente tenha cursado pelo
menos doze anos de escolaridade, com aulas obrigatórias de Língua
Portuguesa, e seja aprovado no vestibular, espera-se que tenha domínio
da leitura e da escrita.
Essa crença, por outro lado, não considera que esses alunos pro-
vavelmente estejam engajados nas práticas de leitura e escrita acadê-
mica, pois “os gêneros acadêmicos não constituem conteúdo e nem
práticas preferenciais nas escolas de Ensino Fundamental e Médio”
(MARINHO, 2010, p.366). Por conseguinte, ao invés de presumir
que os estudantes universitários ingressantes não sabem escrever e atri-
buir-lhes uma nota negativa, os professores devem considerar que “ao
entrarem na universidade, os estudantes são requisitados a escreverem
diferentes gêneros, com os quais não estão familiarizados em suas práti-
cas de escrita em outros contextos” (FIAD, 2011, p.362).
De acordo com Marinho (2010), essa dificuldade muitas vezes se
reduz à falta de conhecimento formal da linguagem, portanto, basta-
ria superá-la. Contrastando com essa concepção reducionista, Marinho
(2010) comenta, com base em Bakhtin (1997), que o domínio de gê-
nero é um comportamento social. Consequentemente, as dificuldades
enfrentadas pelos estudantes na produção de determinados gêneros no
âmbito acadêmico se devem à falta de experiência com esses gêneros.
Segundo a autora: “o domínio de um gênero depende da experiência,
da inscrição dos indivíduos nas esferas que os produzem e deles neces-
sitam” (MARINHO, 2010, p. 383).
Em resposta à falta de uma orientação específica, Street (2010) ela-
borou o termo “dimensões ocultas”, no qual alguns aspectos do pro-
cesso de produção textual, assim como os parâmetros utilizados por
aqueles com poder no meio acadêmico, permanecem em sua maioria
escondidos. Acerca dos aspectos que se encontram escondidos em re-
lação à leitura e à escrita, Wilson (2017) reforça que o movimento de
apropriação dos letramentos ocorre em um terreno conflituoso, cheio

169
de nuances e características específicas, independente de existirem ele-
mentos que normatizem as práticas de letramento, no âmbito acadêmi-
co. Desse modo, é necessário que os professores explicitem esses crité-
rios nas discussões em aula, deixando as exigências e convenções para
a leitura e escrita dos gêneros transparentes e acessíveis, para que os
discentes possam assumir uma posição autoral em relação às práticas de
leitura e escrita acadêmica.
Street (2010) defende que os gêneros acadêmicos não devem ser
identificados e classificados apenas com base em dimensões estruturais
e históricas, mas sim com base em suas “dimensões ocultas”. O autor
identifica a obrigação de explicitar o que é frequentemente tratado a
nível de hipótese, e propõe que essas dimensões sejam objeto de dis-
cussão entre professores e alunos, levando em consideração o gênero
em uso. Marinho (2010) também destaca o fato de ser necessário “des-
locar o aluno e o professor de determinados pressupostos, convenções
e acordos tacitamente estabelecidos, quando se realizam atividades nas
disciplinas de curso superior” (MARINHO, 2010, p. 377).
Para resolver os problemas discutidos, não basta especificar como
o gênero acadêmico está organizado linguisticamente, ou seja, não é
suficiente que os estudantes adquiram uma gama de estratégias textu-
ais, gramaticais, e os conceitos normativos próprios dos gêneros acadê-
micos. Antes disso, é preciso que ocorra a conscientização acerca das
condições relacionadas às produções textuais na academia. Sobre essa
conscientização Fiad (2011) afirma que “precisam ficar claros os mo-
tivos pelos quais algumas práticas são privilegiadas no domínio acadê-
mico em detrimento de outras, qual significado determinada prática de
letramento tem nesse domínio” (FIAD, 2011, p.363).
Ademais, os escritos de nível universitário e de Ensino Médio são
frequentemente atividades fictícias e fabricadas. Se a artificialidade for
reduzida, os alunos terão mais oportunidades de desenvolver a escrita,
bem como utilizá-la como ferramenta de aprendizagem e construção
do conhecimento, formando uma “relação mais positiva e produtiva
dos estudantes universitários com a escrita acadêmica” (MARINHO,
2010, p. 383).

170
Podemos, desse modo, compreender que o processo de ensino e
aprendizagem no nível superior está relacionado muito mais do que
apenas as práticas de leitura e escrita. Segundo Street (2014), o êxito dos
alunos nas práticas de redação universitária não depende apenas de suas
aptidões. Quando questionada sobre as características de um indivíduo
letrado, Fischer (2008) afirma que ser letrado academicamente:

[...] significa que um aprendiz tem um repertório de estratégias


efetivas para compreender e usar as diferentes linguagens, es-
pecializadas e contextualizadas, no domínio acadêmico. Ainda,
indica os papéis sociais (pelo menos desejáveis) de alunos e pro-
fessores, as finalidades de os alunos estarem neste domínio e
as relações estabelecidas com o conhecimento e com o saber.
(FISCHER, 2008, p 180–181)

Outro ponto importante que tange a perspectiva dos Letramentos


Acadêmicos é o fato de que, com a crescente expansão do Ensino
Superior no Brasil e em países em fase de desenvolvimento, foi possibi-
litado o acesso de grupos minoritários a universidade em decorrência a
ações de políticas públicas educacionais, o que antes era impraticável.
Em sua pesquisa acerca do letramento acadêmico no Peru, Zavala
(2010) confirma essa afirmação ao dizer que a expansão do acesso ao
ensino superior naquele país, que ocorreu e ocorre de forma muito se-
melhante ao que ocorre no Brasil, possibilita a admissão de pessoas de
grupos marginalizados como camponeses e indígenas; como resultado,
uma nova realidade emerge na universidade. Segundo a autora, essa
diversidade reflete as desvantagens que as minorias enfrentam ao in-
gressarem no ensino superior. Sobre tais desvantagens Zavala (2010)
afirma que:

as crianças de contextos minoritários, que aprendem a usar a


linguagem de maneiras diferentes daquelas que se ensinam na
escola, estão em desvantagem quando devem adquirir o tipo
de discurso expositivo e ensaístico que caracteriza o letramento
escolar (ZAVALA, 2010, p. 73).

171
Dentro da concepção de que os Letramentos Acadêmicos são con-
cebidos como prática social, não é possível desconsiderar que os âm-
bitos sociais em que vivem esses novos grupos emergentes ao Ensino
Superior, terão impactos em seus letramentos, pois reconhecem que
este não é um saber que pode ser ensinado e aprendido objetivamente,
mas está indissociavelmente ligado às vivências dos sujeitos. Assim, os
letramentos acadêmicos não devem ser concebidos como “habilidade”
que serve de critério para a classificar os estudantes, distinguindo os
bons alunos daqueles com algum tipo de déficit. Os Letramentos, por
outro lado, são um processo contínuo de construção de saberes que
acontece com o envolvimento dos sujeitos em práticas sociais. Zavala
(2010) corrobora com o que foi afirmado acima, ao dizer que:

O letramento acadêmico deveria cumprir um papel crítico e


não paliativo no ensino superior, o que implica combater os
discursos acerca da falta de lógica e de racionalidade nos apren-
dizes. […] Essa concepção sugere que estas novas formas de ex-
pressão levam um número de anos para se desenvolverem e que
necessitam ser ensinadas de maneira muito mais explícita do
que costuma fazer (ZAVALA, 2010, p. 91).

É comum que os docentes almejem que os estudantes ingressem


no Ensino Superior aptos para gerenciar o letramento exigido para esse
nível de ensino. Entretanto, não consideram o fato “de que a evolução
da escrita acadêmica no contexto de uma tradição intelectual e cultural
dominantes coloca obstáculos para estudantes de grupos minoritários em
sua vida acadêmica” (ZAVALA, 2010, p. 90). Essas minorias, descritas
pela autora, chegam às instituições com práticas sociais e linguísticas
distintas da maioria. Tal situação não implica que sejam páginas em
branco ou sem conhecimentos linguísticos ou culturais. Indica que,
os letramentos anteriores adquiridos fora do ambiente universitário,
nem sempre são valorizados pelas instituições. Conforme sugerido
por Zavala, é fundamental que esse conhecimento seja validado pela
comunidade escolar e que os letramentos acadêmicos sejam vistos como
meio para atingir esse objetivo.

172
Wilson (2019), seguindo a mesma linha de pensamento de Zavala,
enfatiza que a forma como os estudantes escrevem dentro da universi-
dade é influenciada por suas vivências com a língua, ou suas origens em
contato com novos letramentos; através das relações de poder decor-
rentes do peso do destinatário que irá avaliar a escrita dos estudantes.
Desse modo, percebemos que os letramentos estão intimamente ligados
às experiências diárias linguísticas próprias de cada âmbito social.
Em geral, os discentes não ingressam ao âmbito universitário sem sa-
ber escrever, eles se configuram como sujeitos letrados que estão inician-
do nas práticas de leitura e escrita de nível universitário. Desse modo é
importante que os docentes compreendam que os estudantes ao ingres-
sar na esfera acadêmica podem ser considerados como “[...] imigrantes
que enfrentam uma nova cultura, admite que isto é intrinsecamente um
desafio para qualquer um, que se trata de um processo de integração a
uma comunidade estrangeira e não uma dificuldade de aprendizagem”
(CARLINO, 2003, p. 20, tradução nossa)17. Sendo assim, é importante
que esses alunos se sintam acolhidos e que possam ser familiarizados
com as práticas de leitura e escrita próprias do âmbito acadêmico.
Os letramentos acadêmicos não são apenas a aprendizagem de téc-
nicas, mas sim um elemento fundamental para a construção de conhe-
cimentos e de identidades, pois auxiliam na criação de novas formas de
significar e de enxergar o mundo (ZAVALA, 2010). Segundo Zavala
(2010, p. 81), “as formas de escrita caminham juntas às formas de pen-
sar e as operações cognitivas envolvidas são, por sua vez, inseparáveis da
compreensão subjetiva e contextualizada que a pessoa faz de mundo”.
Ainda sobre o processo de construção de identidades na esfera
acadêmica Ivanic (1997) afirma que:

Escrever é um ato de identidade no qual as pessoas se alinham


a opções de individualidade moldadas socioculturalmente, con-
tribuindo para reproduzir ou desafiar os discursos e as práticas
17
“[...] inmigrantes que enfrentan una cultura nueva, admite que esto es intrínseca-
mente um desafío para cualquiera, que se trata de un proceso de integración a una
comunidadajena y no de una dificultad de aprendizaje.” (CARLINO, 2005, p. 20)

173
dominantes, e os valores, crenças e interesses por eles incorpora-
dos. (IVANIC, 1997, p. 104, tradução nossa) 18

Uma definição de identidade ligada às práticas de letramentos


amplia o escopo do que esperamos analisar nesse estudo, que são as
experiências dos mestrandos acerca das práticas de leitura e escrita aca-
dêmica, devido ao fato dos traços identitários permitirem pode indicar
como as identidades são formadas durante o processo de letramento
acadêmico dos estudantes (WILSON, 2009).

Conclusão
Para os propósitos da pesquisa, acreditamos ser apropriado observar
e analisar as experiências relacionadas às práticas acadêmicas de leitura
e escrita, através das respostas dos mestrandos ao questionário, para que
seja possível conhecer mais sobre suas vivências, os sentidos atribuídos a
essas práticas, suas expectativas, realizações e possíveis frustrações. Para
identificar as práticas de letramentos se faz necessário a ocorrência da
interação com os sujeitos, para ouvi-los e vincular os eventos de leitura e
escrita a outras atividades realizadas por eles. Desse modo, vamos abor-
dar as experiências dos estudantes sobre a leitura e a escrita acadêmica
como uma prática de letramentos acadêmicos.
Para dar prosseguimento a nossa pesquisa, nossos próximos passos
serão tratar sobre os aspectos teóricos que enquadram nossos pressupos-
tos metodológicos e instrumentos de pesquisa (MINAYO, 2010), além
de realizarmos a apresentação e a descrição dos participantes do estudo.
Em seguida, será feita a análise do estudo de campo que serviu de base
para a criação da pesquisa. Por meio dela, iremos compreender as ex-
periências dos alunos nas práticas de letramentos acadêmicos utilizadas
no Ensino Superior.

18 Writingisanactofidentity in whichpeoplealignthemselveswith socio-cultu-


rallyshapedpossibilities for self-hood, playingtheirpart in reproducingorchallen-
gingdominantpracticesanddiscourses, andthevalues, beliefs, andinterestswhich-
theyembody (IVANIC, 1997, p. 104).

174
Reiteramos a importância da escolha da temática desta pesquisa,
pois é fundamental tentarmos entender as dificuldades e os obstáculos
que os mestrandos encontram no que se refere às práticas de leitura e
escrita de gêneros textuais acadêmicos no âmbito do mestrado, bem
como, se a trajetória deles durante a graduação, teve influência em tais
dificuldades.

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LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

A ALTERAÇÃO DO VOLUME DE VOZ NA


FALA-EM-INTERAÇÃO EM SALA DE AULA

Blenda Lima dos Santos (Ufes)19


Roberto Perobelli (Ufes)20

RESUMO: Este artigo é fruto da pesquisa de Iniciação Científica


denominada “A alteração do volume de voz como postura afetiva na fala-em-
interação em cenário escolar” (no prelo)21, que integra o projeto de pesquisa
“Emoções-em-interação”, coordenado pelo segundo autor deste trabalho. No
subprojeto, examina-se a alteração do volume de voz, em especial o grito,
como postura afetiva na fala-em-interação em sala de aula, com o interesse,
também, de ir além de ideias a priori de que gritos necessariamente exibem
raiva ou descontrole emocional, por exemplo. Valendo-se da abordagem
teórico-metodológica da Análise da Conversa de base etnometodológica e
utilizando gravações audiovisuais que compõem o banco de dados do Grupo
Linguagem, Interação e Etnometodologia (GLIE), o mote da pesquisa
é entender como a ação de alterar o volume de voz se organiza em uma
determinada cena no contexto situacional de uma aula, visto que a análise
desse fenômeno pode contribuir para a compreensão das emoções, em
perspectiva interacional. Do corpus, recortou-se um momento em que alguns
gritos foram tornados relevantes pelos participantes e resultaram em ações
“con-sequentes” na interação. Assim, a partir do aumento do volume de voz,
objetiva-se compreender e descrever (de forma minuciosa, contextualizada e
não apriorística) as ações que estariam relacionadas a essa exibição e como os
participantes sinalizam suas interpretações a partir delas. A análise em voga,
então, leva a duas considerações possíveis, no referido contexto, em relação
ao fenômeno: i) evidencia engajamento com a agenda interacional em curso,
de modo a garantir que os participantes conquistem a ratificação de outro(s)
interagente(s) para esse engajamento; e ii) ressalta a demanda imediata por
afiliação do participante endereçado, uma vez que ele se mostra, de alguma
forma e por algum motivo, resistente às respostas oferecidas. Em resumo, a
presente análise ajuda a compreender melhor o fenômeno dos gritos em sala
de aula, de modo a se constituir como uma fonte empírica de informação para
os praticantes da sala de aula a respeito do fenômeno.
PALAVRAS-CHAVE: Alteração do volume de voz. Grito. Postura afetiva.
Fala-em-interação em sala de aula na modernidade recente.

179
ABSTRACT: This article is the result of the Scientific Initiation research called
“The alteration in voice volume as an affective stance in talk-in-interaction in
a school setting” (in press), which is part of the research project “Emotions-in-
interaction”, coordinated by the second author of this work. In the subproject,
the alteration of the voice volume, especially the scream, is examined as an
affective stance in the talk-in-interaction in the classroom, with the interest,
also, of going beyond a priori ideas about scream necessarily exhibit anger
or emotional out of control, for example. Using the Conversation Analysis
approach and using audiovisual recordings that make up the database of
the Grupo Linguagem, Interação e Etnometodologia (GLIE), the motto of
the research is to understand how the action of screaming is organized in a
certain scene in the situational context of a class, since the analysis of this
phenomenon can contribute for understanding emotions, in an interactional
perspective. From the corpus, a moment was cut in which some screams were
made relevant by the participants and resulted in “consequent” actions in the
interaction. Thus, with the increase in the volume of voice, the objective is to
understand and describe (in a detailed, contextualized and non-aprioristic way)
the actions that would be related to this exhibition and how the participants
give evidence of their interpretations from them. This analysis, then, leads to
two possible considerations, in that context, in relation to the phenomenon:
(i) it evidences engagement with the ongoing interactional agenda, in order
to guarantee that the participants win the ratification of other interactant(s)
for this engagement; and (ii) highlights the immediate demand for affiliation
of the addressed participant, since he is, in some way and for some reason,
resistant to the answers offered. In summary, the present analysis helps to
better understand the phenomenon of screaming in the classroom, in order
to constitute an empirical source of information for classroom practitioners
about the phenomenon.
KEYWORDS: Alteration in voice volume. Scream. Affective stance. Talk-in-
interaction in the classroom in late modernity.

Introdução
Em uma rápida busca na internet pelos termos “grito” e “sala de
aula”, é possível encontrar alguns blogs educacionais que entendem que
elevar o tom de voz em sala de aula se trata de descontrole emocional, in-
disciplina, irracionalidade, arbitrariedade e, deve, assim, ser controlada,

180
razão pela qual dispõem de tutoriais e estratégias para isso. Em um
dos blogs, afirma-se: “fato é que o grito, é sem dúvida uma agressão
emocional e psicológica, é muitas vezes seguidos de ofensa, que é um
tipo de agressão não bem-vinda em um lugar e principalmente em sala
de aula onde bom senso, e o equilíbrio é requerido”. (ALVES, [s.d.],
recurso on-line, negrito no original). Tais afirmações, generalizantes e
sem compromisso com a observação empírica da realidade, não levam
em consideração, por exemplo: (i) o momento em que o aumento de
volume de voz (e.g. grito) pode ocorrer; (ii) o que o provoca; e (iii) que
outras ações se desdobram naquela situação.
Em uma situação comunicativa, de maneira geral, ações empre-
endidas pelos atores sociais durante a interação estão relacionadas à
produção de demonstrações públicas a respeito de como estão com-
preendendo as ações uns dos outros. Tais ações são passíveis de escru-
tínio minucioso pela ótica da Análise da Conversa (AC), abordagem
teórico-metodológica assumida por esta pesquisa, pois ela parte do
âmbito interacional para analisar a organização da sociedade (SILVA,
ANDRADE, OSTERMANN, 2009). Assim, o interesse central da AC
é descrever a ação social por meio da “observação de dados de ocor-
rência natural dessa ação mediante o uso da linguagem” (GARCEZ,
2008, p. 22), e é comum a essa corrente voltar-se para uma ação do
cotidiano (bem como à visão do senso comum a respeito) e analisá-la
em minúcias. Para tanto, afirma-se que, na conversa, os participantes
se orientam à fala um do outro (e essa orientação se dá de forma se-
quencial e ordenada), uma vez que eles se valem de determinadas téc-
nicas para desempenhar as ações turno a turno (SILVA, ANDRADE,
OSTERMANN, 2009) – o que evidencia que a conversa é passível de
ser analisada.
Entre essas técnicas, inclui-se a alteração do volume de voz (e.g.
o grito), que é muito comum na interação humana. Em um espaço
diverso como a sala de aula e que possui algumas marcas interacionais
específicas, analisar esse fenômeno é relevante para buscar entender
o que ele significa para a organização social nesse contexto e para os

181
participantes envolvidos – trabalha-se, aqui, com a perspectiva êmica,
entendida como a perspectiva dos interagentes sobre as ações conforme
eles a demonstram (GARCEZ, 2008). A fala-em-interação em sala de
aula se constitui, de acordo com Del Corona (2009), como um tipo de
fala institucional devido a três pontos básicos: i) orienta-se para o cum-
primento do mandato institucional (deveres e metas dos participantes
em relação à instituição de que fazem parte); ii) restringe-se às contri-
buições aceitas (há limites e normas quanto às ações a serem implemen-
tadas no cenário em questão); e iii) envolve a inferência de enquadres
e procedimentos (refere-se a papéis e ações que são bem marcados em
contextos específicos).
Durante a observação dos dados, foram percebidas muitas situa-
ções de alteração de volume, mas uma boa parte delas não foi notada,
ou seja, não foi tornada relevante pelos próprios interagentes. Não obs-
tante, destaca-se o caso de uma série de gritos (que se configuram como
um tipo de alteração de volume) que foi tornada relevante em certo
momento e foi importante às ações subsequentes da interação. Desse
modo, tem-se trabalhado com a alteração do volume de voz a partir
do grito, e interessa, também, ir além de ideias a priori de que o grito é
uma forma de exibição de raiva, por exemplo.
Objetiva-se, portanto, a partir do aumento do volume de voz, com-
preender e descrever (de forma minuciosa, contextualizada e não aprio-
rística) as ações que estariam relacionadas a essa exibição e como os
participantes sinalizam suas interpretações a partir delas (seria exibição
de raiva? de autoridade? de empolgação? de engajamento? de desconfor-
to?). Em síntese, tem-se como mote entender como a ação de aumentar
o volume de voz se organiza em uma determinada cena no contexto
situacional de uma aula, pois a análise desse fenômeno pode contribuir
para a compreensão das emoções, em perspectiva interacional.
Ademais, segundo Ruusuvuori (2013), toda conversa é afeti-
va até certo ponto, já que aspectos emocionais podem ser percebi-
dos pelo tom de voz, pelas escolhas lexicais, pelas expressões faciais,

182
independentemente se serem ações corporificadas ou oralizadas. Tendo
em vista que esses aspectos se constituem como um recurso relevante
para a interpretação de uma ação, a exibição de posturas afetivas é outro
ponto considerado pela pesquisa. Nesta pesquisa, “postura afetiva” é en-
tendida como uma prática situada de demonstração de emoção impli-
cada na performance dos falantes através de recursos multissemióticos
(entonação, gestos, postura corporal, entre outros)22.

Os dados
O segmento interacional a ser analisado neste trabalho foi gerado
por Mascarenhas (2020). Em sua análise acerca das posturas epistêmi-
cas em sequências de ativação do conhecimento prévio em uma aula de
inglês, o pesquisador gravou, em instrumentos de áudio e vídeo, três
aulas que compuseram uma sequência didática sobre casa e moradia,
incluindo uma atividade de vocabulário com identificação das partes de
uma casa. Toda essa sequência gravada totalizou 1h32min56s de ma-
terial audiovisual, a partir do qual foram segmentados e transcritos de
acordo com parâmetros de transcrição da AC (JEFFERSON, 2004).
Segue, abaixo, o quadro com a distribuição dos vídeos observados:

22 Para uma compreensão mais aprofundada do conceito, recomenda-se a leitura de


Peräkylä e Sorjonen (2012).

183
QUADRO 1 – Distribuição dos vídeos

Nome do arquivo Evento Duração


VÍDEO_1_AULA_1 Sequência didática de Inglês 12min18s
VÍDEO_2_AULA_1 Sequência didática de Inglês 12min03s
VÍDEO_3_AULA_1 Sequência didática de Inglês 05min36s
VÍDEO_1_AULA_2 Sequência didática de Inglês 37min08s
VÍDEO_1_AULA_3 Sequência didática de Inglês 12min05s
VÍDEO_2_AULA_3 Sequência didática de Inglês 02min59s
VÍDEO_3_AULA_3 Sequência didática de Inglês 11min27s
Fonte: produção dos autores, a partir do banco de dados de Mascarenhas, 2020.

Ao se iniciar a transcrição, inicia-se, também, a análise dos dados.


Nesse sentido, o trecho escolhido, com 39s de duração, é uma parte
do VÍDEO_1_AULA_2, em que acontecia um momento da atividade
New vocabulary (fig. 1, a seguir). Nessa atividade, o professor convida
os alunos a oferecerem a tradução, em português, dos objetos que há
em um material didático criado e distribuído aos estudantes especifi-
camente para essa aula (trata-se de uma folha de papel A4 fotocopiada
que contém imagens de cômodos da casa e, ao lado das imagens dos
cômodos, alguns objetos típicos de uma casa). Na próxima seção, apre-
senta-se a análise da trajetória interacional que se dá durante a correção
da atividade.

Análise
No segmento escolhido para ser analisado neste trabalho, Flávio23
(FLA), dando continuidade a um trabalho de correção de atividade,
convida a turma a olhar para a segunda imagem da folha (“a segunda
aí ↑ó”, ℓ. 01). A seguir, destaca-se o ponto exato da seção “New vocabu-
lary” do material didático fornecido (cf. fig. 1) para o qual FLA convida
toda a turma a olhar e a transcrição do momento da aula em que esse
convite é feito:

Excerto 1

184
VÍDEO_1_AULA_2 [12m15s a 12m54s]24
01 FLA a segunda aí ↑ó
02 (.)
03 FEL °>fogão<°
04 (0,3)
05 FLA cooker.
06 (0,4)
07 IAG [ fogão ]
08 DAC [° banhei]ro°
9 (0,3)
10 FEL fogão
11 (.)

Fig. 1: Material didático distribuído na aula - Atividade “New vocabulary”

Fonte: Mascarenhas (2020)

24
Por se tratar de uma interação em sala de aula, com grande número de partici-
pantes, outras situações ocorreram paralelamente ao momento da pergunta do
professor e das respostas dos alunos. Em razão disso, as ações paralelas foram
descartadas da transcrição com objetivo de priorizar-se esse diálogo específico
em que há alterações de volume da voz dos participantes. Somente uma situação
de conversa paralela (cisma) foi registrada na transcrição por ter sido tornada
relevante pelos interagentes (cf. Excerto 3, mais adiante).

185
Após o convite de FLA para que os demais interagentes voltassem
sua atenção para a segunda imagem (ℓ. 01), ocorre uma breve pau-
sa (ℓ. 02) e, depois disso, Felipe (FEL) apresenta uma possibilidade
de resposta, ou o que também pode-se chamar de “resposta candidata”
(“°>fogão<°”, ℓ. 03). A pausa seguinte, de três décimos de segundo (ℓ.
04) pode ser indicativa de algumas possibilidades de “recebimento” des-
sa resposta. Uma possibilidade seria a de que FLA possa não ter ouvido
a resposta, pois FEL a emite em volume mais baixo (como é possível
perceber na transcrição pelo símbolo “ º ” presente antes e depois da
UCT25 enunciada) e de forma acelerada (como é possível perceber pelos
símbolos “>” e “<” antes e depois da mesma UCT). Outra possibilidade
seria a de que, mesmo tendo ouvido a resposta candidata, FLA estaria
abrindo espaços de oportunidade para que outros participantes tomas-
sem o turno e oferecessem outras respostas candidatas. Como isso não
acontece, FLA então lê a palavra que está ao lado (e um pouco abai-
xo, cf. fig. 1, no detalhe) do segundo desenho (“cooker.”, ℓ. 05). Essa
leitura após a resposta candidata de FEL começa a tornar um pouco
mais forte a segunda possibilidade (a de que FLA escutou, mas estaria
aguardando outras respostas candidatas), tornando, assim, mais fraca a
primeira (a de que ele não teria ouvido).
No entanto, mesmo após o convite para direcionar os olhares para
o segundo desenho (cf. ℓ. 01) e ler a palavra relacionada a esse desenho
(cf. ℓ. 05), ainda assim nenhuma outra resposta é proferida, e mais uma
situação de descontinuidade na sequência tem lugar (ℓ. 06). Essa pau-
sa também pode ser vista como uma oportunidade em que os demais
participantes precisariam decidir se e como tomariam o turno, já que
FLA não faz uma seleção do falante seguinte, o que permite então que,
se FLA não continua falando, qualquer outro possa iniciar um turno na
sequência. Isso fica evidente quando Iago (IAG) e Daniel Castanheiras
(DAC), após a pausa, tomam o turno ao mesmo tempo, resultando em
sobreposição de vozes. Com isso, é interessante observar como ambos

25
UCT é uma sigla que remonta à expressão Unidade de Construção de Turno,
conceito importante em AC.

186
oferecem respostas candidatas distintas. Enquanto IAG oferece uma
resposta semelhante à que FEL já havia enunciado anteriormente (“fo-
gão”, ℓ. 07), DAC se refere à segunda imagem do desenho geral da casa
(cf. fig. 2, a seguir).

Fig. 2: reapresentação de parte do material didático distribuído na aula (detalhe)

Fonte: Mascarenhas (2020)

Essa diferença de compreensão26, demonstrada pelas respostas di-


vergentes de IAG e DAC, permite afirmar que o referente utilizado

26
Na folha que foi entregue aos/às estudantes, havia centralizada a imagem de uma
casa, com quatro cômodos distintos, dispostos em duas colunas e duas linhas. A
imagem mais à esquerda e mais acima apresenta um quarto e a imagem ao lado,
mais acima e mais à direita, a de um banheiro. Já as figuras mais abaixo são uma
sala, mais à esquerda, e a cozinha, mais à direita. Considerando que, no ocidente
global, o fluxo de leitura segue um percurso da esquerda para a direita e de cima
para baixo, a segunda imagem, entre essas quatro, de acordo com a resposta de
DAC, era a do banheiro. Desse modo, sua resposta demonstra sua compreensão
de que a pergunta de FLA se referia à imagem central da folha, e não à imagem
mais ao lado com o subtítulo “New Vocabulary”.

187
por FLA ao falar “segunda” (cf. ℓ. 01) ainda não tinha sido recuperado
por todos os estudantes, e essa percepção pode ser importante para se
compreender o que acontece mais adiante na sequência. Após essa so-
breposição de vozes, nova pausa se instaura na interação (cf. ℓ. 09), e
FEL, em seguida, volta a oferecer a mesma resposta candidata que havia
fornecido anteriormente (“fogão”, ℓ. 10), só que dessa vez, em um tom
de voz mais alto que o anterior, que havia sido proferido em volume
mais baixo.
Na continuação da sequência, após uma micropausa (ℓ. 11), FLA
inicia um reparo, que, em se tratando do contexto situacional da sala
de aula, marca uma prática muito comum nesse cenário: a iniciação de
reparo, não como método para buscar uma informação desconhecida,
mas como método para ratificar (ou não) uma informação já conhecida,
pelo menos da parte de quem inicia o reparo (o professor, nesse caso)27.

Excerto 2 - continuação do excerto anterior


VÍDEO_1_AULA_2 [12m15s a 12m54s]
11 (.)
12 FLA fogã:::o?
13 (0,2)
14 DAC ba[ nhe ]iro
15 IAG [(FOI) ]
16 (1,1)
17 FEL é ([freezer) ]
18 ROM [é fogão. ]
19 (1,4)
20 IAG air fryer=
21 FLA =eu conheço- (0,7) fogão como ↑ó stove.

27 Para um aprofundamento sobre técnicas de reparo, recomenda-se a leitura dos


textos seminais da AC (SACKS et al., 2003 [1974]; SACKS et al., 1977), bem
como textos sobre o tema produzidos a partir de dados do português brasileiro
(GARCEZ; LODER, 2005; CONCEIÇÃO, 2008; LODER, 2008; SOUZA,
2018; LODER; GARCEZ; KANITZ, 2021, entre outros).

188
Diante do início de reparo de FLA (ℓ. 12), nova descontinuidade
se instala (ℓ. 13), para em seguida, novamente, os mesmos participantes
de antes, DAC e IAG inserirem suas contribuições em sobreposição de
vozes. Enquanto DAC volta a insistir em demonstrar seu entendimento
de que a pergunta a que FLA estaria se referindo à segunda imagem
da figura central da casa na folha fornecida (“banheiro”, ℓ. 14), IAG
responde ao início de reparo de FLA, confirmando que sua resposta era
mesmo aquela que ofereceu antes (“(FOI)”, ℓ. 15). É importante res-
saltar que, dessa vez, tanto DAC quanto IAG produzem suas respostas
com alterações prosódicas em seus turnos. O primeiro impõe ênfase
sobre a sílaba tônica da palavra que compõe o seu turno (ℓ. 14), e o
segundo produz sua resposta em uma UCT com a extensão de uma
palavra com volume mais alto, ou seja, “gritado” (ℓ. 15).
A partir dessa resposta, ocorre nova pausa, a maior até o momento,
com mais de um segundo de extensão (ℓ. 16). Essa pausa, pelo que é
possível observar, já pode caracterizar mais fortemente uma orientação
de FLA para demonstrar que as respostas fornecidas até esse ponto da
interação ainda não atendem corretamente ao que foi perguntado, isto
é, a tradução de cooker não corresponde a nenhuma das respostas já for-
necidas até então: não significa “fogão” nem “banheiro”. A partir dessa
constatação, também já não é mais possível inferir que FLA não tenha
ouvido as respostas, como foi levantado anteriormente28.
Na continuidade da sequência, FEL, demonstrando ter com-
preendido que as respostas oferecidas anteriormente estariam erradas,
apresenta então uma nova resposta candidata (“é (freezer)”, ℓ. 17), ao
mesmo tempo em que Romeu (ROM), em sobreposição, reafirma a
resposta já dada anteriormente pelos colegas (“é fogão.”, ℓ. 18). Essa
reapresentação de uma resposta já “testada” anteriormente pode ter
duas explicações: (i) ou é uma técnica de repetir uma resposta de modo
a mostrar para o professor que mais estudantes estão em conformidade
com a resposta do primeiro colega que a ofereceu, e assim, ratificar a
técnica de iniciação de reparo como um método para verificar se os
demais participantes estão certos de suas respostas; (ii) ou é uma técnica

189
de repetir a resposta com a demonstrada presunção de que talvez ainda
FLA não tenha ouvido os outros colegas dizendo “fogão”. Essa segunda
possibilidade também se destaca em razão das posições que os partici-
pantes ocupam na sala: FEL e IAG estão fora do enquadre da câmera,
no fundo da sala, em posição diametralmente oposta ao professor, en-
quanto ROM está sentado na frente da turma, na primeira carteira,
praticamente em frente à mesa do professor.
O silêncio de um segundo e quatro décimos de segundo, na se-
quência (ℓ. 19), marcam nova descontinuidade e novas oportunidades
abertas por FLA para o surgimento de novas respostas, que é o que
acontece quando IAG toma o turno novamente (“air fryer”, ℓ. 20). No
entanto, após terem surgido muitas oportunidades de oferta de respos-
tas candidatas, FLA toma o turno e inicia um movimento em direção a
prover uma resposta para a questão que tinha sido feita antes, eviden-
ciando que nenhuma das respostas candidatas anteriores correspondia
à correta tradução de cooker. O interessante é a forma como ele inicia
esse movimento, porque ele não oferece a tradução de pronto, mas ape-
nas, por enquanto, faz, de forma modalizada, uma observação acerca da
insistência dos demais participantes em tratar “fogão” como tradução
para cooker (“eu conheço- (0,7) fogão como ↑ó stove.”, ℓ. 21). Depois
dessa consideração, novas respostas candidatas ganham espaço na ten-
tativa de encontrar a palavra em português equivalente ao termo cooker,
em inglês:

190
Excerto 3 - continuação do excerto anterior
VÍDEO_1_AULA_2 [12m15s a 12m54s]

22 (0,5)
23 DAC RELÓGIO,
24 (0,5)
26 DAC é relógio.
27 FLA [°nã:::o°]
28 TAL [meu fi ]lho relógio é
29 ( ) (é cl[ock)] ➔ IAG FORNO
30 DAC >[que ] que ➔ IAG FORNO
31 cê falou?< ➔ IAG FORNO
32 (0,6)
➔ 33 IAG FORNO
34 (0,5)
35 RAF precisa gritar=
➔ 36 IAG =FORNO=
37 FLA =no caso
38 aí gente é a panela
39 (0,3)

Uma vez aberto um novo espaço de oportunidade para novas res-


postas candidatas (que não fossem “fogão”, conforme a explicação an-
terior de FLA - ℓ. 21) a partir da pausa (ℓ. 22), depois da qual DAC
apresenta uma nova resposta candidata (“RELÓGIO,”, ℓ. 23) em alto
volume, FLA parece continuar adotando a mesma técnica de deixar
espaço para novas respostas e sinalizando, com a não tomada de turno,
que as respostas dadas até então não estariam corretas. Mais uma pausa
acontece em seguida, e a resposta de DAC, que antes tinha sido “gri-
tada” (ℓ. 23), agora vem em volume não alterado (“é relógio.”, ℓ. 26).
Uma possível explicação para DAC ter feito essa nova tentativa re-
side em um problema de diagramação do material didático (cf. fig. 1,
apresentada anteriormente). O fato de a palavra “cooker” estar posicio-
nada um pouco mais abaixo e à direita do segundo desenho, ao mes-
mo tempo em que está um pouco acima da terceira figura, que é a de

191
um relógio, pode ter sido a fonte dessa nova resposta candidata. Nesse
caso, no entanto, talvez levando essa possibilidade em consideração,
FLA não tardou em afirmar que essa resposta não era uma possibilidade
(“°nã:::o°”, ℓ. 27). De igual modo, inclusive em sobreposição de voz
com o professor, Talia (TAL) também se mobilizou para desconsiderar
a resposta de DAC como uma possibilidade, e ainda fazendo a correção
de maneira direta (“meu filho relógio é ( )(é cl[ock)”, ℓℓ. 28-29).
Essa maneira mais incisiva de corrigir levou DAC, sobre a afirmação da
colega, a iniciar reparo (“>que que cê falou?<”, ℓℓ. 30-31), mas essa
ação não vai adiante.
Paralelamente, em um cisma29, IAG fornece uma resposta candida-
ta nova (“FORNO”, ℓ. 29) e o faz com insistência, aos gritos (cf. ℓℓ.
30, 31, 33 e 36). Essa insistência ganha a afiliação30 de Rafael (RAF),
que, ao produzir uma formulação para a ação implementada por IAG,
presta contas dessa ação, tratando-a como inevitável (“precisa gritar”,
ℓ. 35). Nesse sentido, é válido notar que esses gritos insistentes de IAG
parecem induzir FLA, então, a fornecer logo a resposta correta, que é
o que ele faz em seguida (“no caso aí gente é a panela”, ℓℓ. 37-38),
29
A noção de “cisma” em AC está relacionada à distribuição dos turnos em uma
conversa. De acordo com Sacks (et al. 2003 [1974], p. 28-29), “[c]om quatro ou
mais partes, introduz-se uma restrição possível para a tendência pela possibilida-
de de cisma. Se existe um interesse em reter, em uma dada conversa, algum dado
conjunto atual das partes (onde existem no mínimo quatro), então os meios do
sistema de tomada de turnos para implementar esse esforço envolvem ‘a disper-
são de turnos’, uma vez que qualquer par de partes que não esteja recebendo
ou tomando o turno ao longo de algumas seqüências de turnos pode encontrar
acessibilidade mútua para entrar em uma segunda conversa”.
30
Na interação, as ações dos participantes podem se afiliar ou não à postura ou
ao ponto de vista do falante. O interlocutor se afilia, por exemplo, quando de-
monstra apoio e endossa a postura exibida pelo falante corrente. Além disso,
chamam-se “ações afiliativas” as ações que se afiliam à postura; enquanto cha-
mam-se “ações desafiliativas” as ações que não se afiliam (COAN, 2021, apud
STIVERS, 2008, p. 31-57). Ressalta-se que as pesquisas em afiliação estão di-
retamente ligadas aos estudos sobre afeto e emoção. Por esse ângulo, a emoção
é compreendida, através de uma perspectiva social e não cognitiva, como uma
ação que envolve atores sociais, signos e ferramentas auxiliadoras, tais como: a
linguagem, os textos, gestos corporais, objetos e os espaços (COAN, 2021, apud
LEWIS; CRAMPTON, 2015).

192
suspendendo a trajetória anterior de abrir espaços de oportunidade até
que a resposta correta pudesse ser fornecida por algum estudante, e não
por ele.
Na continuação da sequência, o que se observa é o recebimento dessa
resposta por parte daqueles que haviam feito tentativas anteriormente:

Excerto 4 - continuação do excerto anterior

VÍDEO_1_AULA_2 [12m15s a 12m54s]

39 FLA [tá, de ] cozinhar [aí exatamente]


40 FEL [panela. ]
41 IAG [afe:: panela?]
42 (0,2)
43 JEF ( ) fogão?=
44 FLA =cooker.
45 (.)
46 IAG cara::ca:: tem que circular aqui↑
47 (.)
48 FLA fogão?
49 (0,8)
50 FLA stove.
51 (2,7)
52 FLA e forno,
53 (0,4)
54 FLA ↑oven.

A partir dos “recibos” emitidos pelos outros participantes, consta-


ta-se certo desapontamento com o fato de eles não terem conseguido
“adivinhar” o significado de cooker em português, como é o caso de
IAG (“afe:: panela?”, ℓ. 41). Além disso, FLA, nesse momento, então,
se ocupa de oferecer a tradução dos outros termos que os estudantes
haviam oferecido como possibilidade (ℓℓ. 48 e 50; ℓℓ. 52 e 54). Assim,
esse segmento de fala-em-interação se encerra com uma trajetória mar-
cada pelas demandas por atenção realizadas com alteração do volume
de voz que afetaram a sequência interacional de modo a modificar a

193
orientação dos participantes em relação aos recursos utilizados no início
e que foram abandonados no fim. Os gritos, nesse caso, foram respon-
sáveis por alterar o método adotado por FLA que, inicialmente, estava
voltado para não tomar o turno a fim de que surgissem espaços de opor-
tunidade em que os estudantes pudessem por si só, olhando as imagens
e formulando possibilidades, oferecer a resposta correta que correspon-
desse à tradução do termo em foco. Com a adoção de uma postura
insistente de IAG em produzir uma resposta candidata não correspon-
dente ao que foi tratado como esperado pelo professor, o método inicial
precisou ser abandonado, e outra forma de se cumprir a proposta foi
assumida, sendo, portanto, o próprio FLA a fornecer a resposta correta.

Considerações finais
A análise desses excertos leva, portanto, a duas considerações im-
portantes: (i) a alteração do volume de voz não é indício de descontrole
emocional ou desatenção na aula, mas evidencia engajamento com a
agenda interacional em curso, buscando conquistar a ratificação do ou-
tro interagente para esse engajamento; e (ii) ressalta a demanda imedia-
ta por afiliação do participante endereçado, uma vez que ele se mostra,
de alguma forma e por algum motivo, resistente às respostas oferecidas.
Em uma interação, alterar o volume de voz pode acontecer por
motivos variados e pode trazer consigo diversas interpretações. Nesta
pesquisa, focalizou-se o grito em certo momento de uma interação em
sala de aula. Tendo em vista o ambiente institucional no qual o grito se
deu, é possível que alguém o entenda como um caso de perda de auto-
ridade do professor, já que, institucionalmente, cabe a este o papel de
gerenciar a fala-em-interação em sala de aula, o que incluiria, portanto,
tratar os gritos como inapropriados31 no contexto situacional em foco.
Para além de avaliar “impropriedades” na sala de aula, remontamos à

31
Del Corona (2011) lembra que, como as interações institucionais se orientam
para o cumprimento de um mandato (que, por sua vez, implica um uma série de
práticas próprias), qualquer contribuição que não vá ao encontro deste pode ser
entendida como inapropriada ao contexto.

194
afirmação de Garcez e Lopes (2017, p. 67), segundo os quais “mais do
que simplesmente descrever como se organiza a interação numa tal sala
de aula, indagamos que oportunidades há para aprender, que evidências
haveria de que os participantes estão engajados (também) no trabalho
de aprender, e se aprendem”.
Do mesmo modo, neste trabalho, temos ainda o intuito de mos-
trar que certas posturas adotadas em sala de aula, em uma visada mais
aligeirada, poderiam permitir a interpretação de que se trata de indis-
ciplina ou desrespeito, mas, com o ajustar das lentes e um olhar mais
minucioso, é possível notar que os gritos também podem ser índices
importantes de engajamento e participação na sala de aula. Por meio
da análise, entende-se, portanto, que os gritos de Iago tratam de um
mecanismo interacional de engajamento do qual o discente se valeu
naquele momento da interação. Ademais, compreende-se que essa ação
se caracteriza como o trabalho do aluno de fazer-se ser ouvido pelo
professor e de dar sua resposta à pergunta feita. Em outras palavras, ele
estava apenas tentando participar da aula.

Referências
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Viçosa, Viçosa, 2018.

APÊNDICE – Convenções de transcrição


Indicação temporal de ausência de fala em segundos e décimos de
(1.8)
segundo
(.) Indicação de ausência de fala de até dois décimos de segundo
? Entonação ascendente
, Entonação contínua
. Entonação descendente
: Alongamento de som
- Interrupção na produção vocal
= Contiguidade entre duas linhas de turno de fala
↑ Alteração de timbre para mais agudo
↓ Alteração de timbre para mais grave
TRECHO Trecho de fala em volume mais alto que os do entorno
°trecho° Trecho de fala em volume mais baixo que os do entorno
trecho Acento ou ênfase em trecho de fala
(trecho) Indicação de que o transcritor teve dúvidas sobre o que ouviu
( ) Transcrição impossível
>trecho< Fala em ritmo acelerado
<trecho> Fala em ritmo desacelerado
[ Indicação de onde começa exatamente uma fala sobreposta

197
] Indicação de onde termina exatamente uma fala sobreposta
£ trecho £ Indicação fala risada
.h Expiração audível (e.g. risos)
.h Inspiração audível
FLA Indicação do turno de fala de um/a dos participantes (e.g. Flávio)
Fonte: Jefferson (2004), adaptado pelo GLIE e inspirado em Silva, Andrade e
Ostermann (2009).

198
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

POLITIZAÇÃO DA PANDEMIA:
REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS
NAS REDES SOCIAIS

Caetano Silva Santos Viana Feitor (Estudante Ensino Médio)


Cleverton Henrique Porificação dos Santos (Estudante Ensino Médio)
Matheus Barreto de Mello (Estudante Ensino Médio)
Cristiane Carvalho de Paula Brito (UFU)

RESUMO: Este trabalho discute resultados de uma pesquisa de iniciação


científica desenvolvida por estudantes do Ensino Médio, no intuito de
problematizar as (im)possibilidades dos dizeres instauradas na relação sujeito-
ciberespaço. Mais especificamente, objetivamos identificar representações
discursivas sobre o tema ‘a politização da pandemia nas redes sociais’.
Fundamentamo-nos em concepções bakhtinianas de linguagem, sendo
basilares para o desenvolvimento do estudo noções de dialogismo, enunciado,
alteridade, ideologia, dentre outras. Ancoramo-nos ainda em estudos da
Linguística Aplicada sobre práticas de linguagem no ciberespaço. O corpus
se constituiu de: postagens na rede social Twitter que abordavam o tema
selecionado; e do vídeo de pronunciamento do presidente do Brasil acerca
do início da pandemia. A fim de investigar o funcionamento discursivo
da politização da pandemia, elencamos, a partir de uma leitura inicial do
corpus, cinco eixos de análise que se constituíram em subtemas, a saber: i
) a pandemia; ii) o lockdown; iii) o tratamento precoce; iv) a vacina; e v) as
práticas religiosas. Para cada um desses eixos, foram delineadas representações
que apontassem os efeitos de sentidos dos enunciados produzidos no corpus.
As análises apontam que a produção e circulação dos sentidos no ciberespaço
incidem na construção de “verdades”, as quais, por sua vez, posicionam os
sujeitos, as instituições, enfim as políticas públicas de forma a (des)favorecer
certos grupos sociais. No caso do tema que aqui investigamos, nota-se que essa
incidência não apenas (des)vela ideologias em conflito, mas reverberou/a na
vida de milhares de brasileiros.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Pandemia, Twitter.

ABSTRACT: This work discusses the results of a scientific initiation research


developed by high school students, in order to problematize the (im)
possibilities of utterances established in the subject-cyberspace relationship.

199
More specifically, we aim to identify discursive representations on the theme
‘the politicization of the pandemic in social networks’. We are based on
Bakhtinian conceptions of language, being basic for the development of the
study notions of dialogism, enunciation, alterity, ideology, among others.
We also rely on the studies of Applied Linguistics on language practices in
cyberspace. The corpus consisted of: posts on the social network Twitter
that addressed the selected theme; and the video of the Brazilian president’s
speech about the beginning of the pandemic. In order to investigate the
discursive functioning of the politicization of the pandemic, we listed, from
an initial reading of the corpus, five axes of analysis that constituted sub-
themes, namely: i ) the pandemic; ii) the lockdown; iii) early treatment; iv)
the vaccine; and v) religious practices. For each of these axes, representations
were delineated to point out the effects of meaning of the utterances produced
in the corpus. The analyzes point out that the production and circulation of
meanings in cyberspace affect the construction of “truths”, which, in turn,
position subjects, institutions, and finally public policies in order to (dis)favor
certain social groups. In the case of the theme we investigated here, it is noted
that this incidence not only (un)veils conflicting ideologies, but impact/ed in
the lives of thousands of Brazilians.
KEYWORDS: Speech; Pandemic, Twitter.

1. Introdução
O trabalho em tela apresenta resultados parciais de uma pes-
quisa de Iniciação Científica do Ensino Médio desenvolvida pelos
três primeiros autores, sob a orientação da última autora do texto. A
pesquisa foi desenvolvida no âmbito do projeto “Tomada da palavra
na rede digital: (im)possibilidades de dizer(-se) na contemporanei-
dade”, o qual se propôs a: i) promover o engajamento do aluno da
educação básica em práticas discursivas que consideram a lingua-
gem em sua dimensão histórica, sociocultural e política; ii) mapear
e descrever os aspectos linguístico-enunciativos que constituem os
gêneros discursivos digitais (tais como comentários on-line, fóruns
virtuais, vídeos do youtube, dentre outros); iii) investigar represen-
tações discursivas (sobre si, sobre o(s) outro(s), sobre temáticas va-
riadas) construídas pelos sujeitos, ao tomarem a palavra, na rede

200
digital; iv) discutir as possibilidades de constituição de um lugar
autoral pelos sujeitos em seus modos de dizer(-se) na rede digital;
e v) problematizar as (im)possibilidades dos dizeres instauradas na
relação sujeito-ciberespaço.
A partir do referido projeto, e balizados por uma perspectiva enun-
ciativo-discursiva de linguagem, os bolsistas analisaram representações
discursivas sobre o tema politização da pandemia nas redes sociais,
em postagens no Twitter e no vídeo de pronunciamento do atual presi-
dente no início da pandemia.
Para explicitar o desenvolvimento da pesquisa, apresentamos, neste
texto, além desta introdução e das considerações finais, algumas noções
teóricas que fundamentaram a investigação; seu desenho metodológico;
e alguns gestos de análise.

2. Desenvolvimento da pesquisa: noções teóricas


A pesquisa se iniciou com a leitura e a discussão de textos teóri-
cos que fundamentaram a constituição e a análise do corpus. Para isso,
utilizamos a Plataforma Padlet para documentar os fichamentos dos
textos, os quais eram debatidos nas reuniões de orientação. Devido à
pandemia de COVID-19, os encontros remotos entre os orientandos e
a orientadora se deram de forma remota (via Google Meet), sendo tam-
bém utilizado o Google Drive, para reunir os conteúdos e documentos
desenvolvidos. Destacamos aqui alguns textos que foram pilares para a
inserção e apropriação de conceitos teóricos que foram, posteriormente,
mobilizados na constituição e análise do corpus.
Iniciamos com a leitura da obra de Martins (2004), que nos per-
mitiu discutir o ato da leitura como algo dinâmico e abrangente, que
ultrapassa as delimitações do papel e reivindica novas interpretações da
realidade. Ademais, o livro propõe uma representação da leitura que
transcende a linguagem verbal escrita, abrangendo o nível dos sentidos,
da emoção e do intelecto. O texto de Martins foi relevante no sentido
de refutar a noção de leitura como mera decodificação, além de ampliar
a visão dos bolsistas sobre texto e sentido.

201
Importante também foi o texto de Di Fanti (2003), que nos per-
mitiu uma entrada nas concepções bakhtinianas de linguagem, a partir
das noções de dialogismo, plurilinguismo e enunciação. Com Di Fanti,
aprendemos que a interação verbal se constitui no/pelo movimento
‘linguístico-ideológico-dialógico” da palavra, sendo que os enunciados
são (re)produzidos em uma “teia de discursos” que se comunicam entre
si. Todo dizer remete-se a um dizer já-dito, assim, a tomada da palavra
reveste-se de nuances e entonações histórico-sociais e ideológicas.
Nessa mesma esteira, discutimos o texto de Alves (2016), que dis-
corre sobre a multiplicidade dos enunciados concretos – unidade ne-
cessária à linguagem – na constituição da cadeia discursiva a partir da
teoria bakhtiniana. Desse modo, analisamos a origem do termo “enun-
ciado”, que é traduzido do russo “viskázivanie” e indica “transmitir, ex-
primir pensamentos/sentimentos em palavras”. Assim, a enunciação foi
interpretada como o ato de retirar a palavra da individualidade mental
do sujeito e expressá-la na extensa cadeia discursiva e dialógica, dan-
do vida ao discurso e às suas diversas formas de ressonância. Ademais,
Alves propõe a exploração das características semânticas, expressivas,
compositoras e éticas dos enunciados, o que aponta para a complexi-
dade destes.
A fim de refletirmos sobre a produção da linguagem no ambiente
virtual, discutimos o texto de Santos; Marques e Rodrigues (2019), que
analisa a manifestação da ironia como expressão de resistência aos dis-
cursos dominantes. Os autores exploram o jogo do dito e do não-dito
a partir da análise de comentários em uma postagem do perfil “Spotted
UFMG - VSF” no Facebook, em que usuários identificados como mu-
lheres instauram uma enunciação de resistência a um discurso machista
através da ironia, criando um campo de tensão e defesa contra os dis-
cursos dominantes característicos do patriarcalismo.
Ainda sobre a circulação e formulação de sentidos no ciberespa-
ço, discutimos o texto de Silva (2018), que toma como objeto de seu
estudo os memes, tidos como constituintes de discursos próprios que
possuem a faculdade de mobilizar grandes grupos nas mídias sociais

202
e disseminar informações capazes de influenciar comportamentos no
meio exterior. Ademais, com base na teoria de Fontanella, a autora ana-
lisa os princípios que condicionam os memes, os quais incluem os seus
conteúdos, as formas como esses se relacionam a uma “teia” de outras
produções já aceitas pelo público e o modo como referenciam o mundo
exterior. A partir disso, observamos a linguagem memética como uma
reprodução/réplica cômica dos assuntos e discursos presentes no campo
exterior, gerando formas relativas de interpretação e efeitos ideológi-
cos, e tomando de “mutações” conforme propagam-se no ciberespaço.
Vale ressaltar ainda que o teor crítico, político e ideológico dos memes
também foi analisado no artigo. Assim, interpretamos como o debate
político pode originar se a partir da construção dessa linguagem.
Por fim, citamos Viscardi (2020), que analisa as “verdades, mentiras e
fake news” publicadas no Twitter do atual presidente do Brasil à época
de sua eleição em 2018. A autora, com base nas teorias de Ernesto
Laclau e Chantal Mouffe, aponta o caráter populista do atual governo,
mostrando como discursos políticos entram de forma importante na
construção das figuras públicas como o próprio presidente. Viscardi
afirma que as novas tecnologias trouxeram inúmeras novas possibili-
dades de políticos se relacionarem com a sociedade, sendo que as redes
sociais, com suas ferramentas e dinâmicas de compartilhamento, con-
tribuem para a viralização e o estabelecimento de proximidade com os
usuários.
A partir desses estudos teóricos, os estudantes bolsistas puderam
pensar em possibilidades de temas que conversassem com o projeto de
pesquisa da orientadora. Passou-se, assim, ao recorte do corpus de aná-
lise e do caminho metodológico da pesquisa.

3. Percurso Metodológico
O percurso metodológico se iniciou com a seleção de um tema
para análise da tomada da palavra na rede digital. O tema escolhido foi
a politização da pandemia nas redes sociais. Nosso corpus se cons-
tituiu de 37 postagens na rede social Twitter que abordavam o tema

203
selecionado e do vídeo de pronunciamento do Presidente no início da
pandemia. Investigamos as vozes presentes nas instâncias enunciativas
e os mecanismos linguístico-discursivos, a fim de identificar represen-
tações discursivas e modos de tomada da palavra nesse contexto. Mais
especificamente, após a seleção do tema e, a partir dos objetivos do
projeto da professora orientadora, buscamos: a) identificar o embate
de vozes com teor político e partidário nas postagens relacionadas ao
combate da pandemia; b) investigar os indícios de polarização políti-
ca dos discursos relacionados à pandemia; c) explicar a manifestação
do conhecimento científico e acadêmico nas postagens do Twitter em
relação ao combate do coronavírus; d) observar o comportamento dia-
lógico presente nos discursos que se constroem em torno do contexto
pandêmico; e e) discutir o impacto dos “líderes de opinião” frente ao
combate da pandemia.
A fim de investigar o funcionamento discursivo da politização da
pandemia, elencamos, a partir de uma leitura inicial do corpus, 5 (cinco)
eixos de análise que se constituíram em subtemas: a saber: i) a pandemia;
ii) o lockdown; iii) o tratamento precoce; iv) a vacina; e v) as práticas
religiosas. Para cada um desses eixos, foram delineadas representações
que apontassem os efeitos de sentidos dos enunciados produzidos no
corpus. Vejamos cada um dos eixos a partir do recorte de nosso corpus.

4. Gestos de análise

4.1 Eixo 1: A Pandemia


Duas representações sobre a pandemia parecem predominantes no
corpus: i) a pandemia (não) é uma gripezinha; e ii) o governo (não)
atua seriamente no combate à pandemia.
A primeira representação pode ser depreendida do pronunciamen-
to do presidente da república, Jair Bolsonaro, no dia 24/03/2020, o
qual transcrevemos abaixo32:
32
O vídeo pode ser acessado no link https://www.youtube.com/watch?v=Vl_DYb-
-XaAE

204
Boa noite.
Desde quando resgatamos nossos irmãos em Wuhan, na China,
numa operação coordenada pelos Ministérios da Defesa e Relações
Exteriores, surgiu para nós o sinal amarelo que começamos a nos
preparar para enfrentar o Coronavírus, pois sabíamos que mais
cedo ou mais tarde ele chegaria ao Brasil. Nosso Ministro da Saúde
reuniu-se com quase todos os Secretários da Saúde dos Estados para
que o planejamento estratégico de enfrentamento ao vírus fosse
construído. E, desde então, o doutor Henrique Mandeta vem de-
sempenhando um excelente trabalho de esclarecimento e preparação
do sus para atendimento de possíveis vítimas, mas o que tínhamos
que conter naquele momento era o pânico a histeria e ao mesmo
tempo, traçar a estratégia para salvar vidas e evitar o desemprego
em massa. Assim fizemos, quase contra tudo e contra todos grande
parte dos meios de comunicação foram na contramão espalharam
exatamente a sensação de pavor tendo como chegar ao anúncio do
grande número de vítimas na Itália, um país com grande número
de idosos e com um clima totalmente diferente do nosso cenário
“perfeito” potencializado pela mídia para que uma verdadeira his-
teria se espalhasse pelo nosso país. Contudo percebe-se que de ontem
para hoje parte da imprensa mudou seu editorial, pede calma e
tranquilidade, isso é muito bom parabéns imprensa brasileira e é
essencial que o equilíbrio e a verdade prevaleçam entre nós. O vírus
chegou está sendo enfrentado por nós e brevemente passará nossa
vida tem que continuar os empregos devem ser mantidos o sustento
das famílias deve ser preservado devemos sim voltar à normalidade
algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem aban-
donar o conceito de terra atrasada e a proibição de transportes o
fechamento de comércio confinamento em massa o que se passa no
mundo têm mostrado que o grupo de risco é um dos das pessoas de
acima de 60 anos então por que fechar escolas raros são os casos
fatais de pessoas sãs com menos de 40 anos de idade 90% de nós
não teremos qualquer manifestação caso se contamine devemos sim
é ter extrema preocupação e não transmitir o vírus para os outros
em especial aos nossos queridos pais e avós respeitando as orientações
do ministério da saúde. No meu caso particular pelo meu histórico
de atleta caso fosse contaminado pelo vírus não precisaria preocupar
nada sentiria ou seria quando muito acometido de uma grande

205
gripe de uma gripezinha ou resfriadinho como bem disse aquele co-
nhecido médico daquela conhecida televisão enquanto estou falan-
do o mundo busca um tratamento para a doença o FDA americano
e o Hospital Albert Einstein em São Paulo buscam a comprovação
da eficiência da cloroquina no tratamento do COVID-19 nosso
governo tem recebido notícias positivas sobre esse remédio fabricado
no brasil largamente utilizado no combate à malária ao lúpus e
artrite acredita em deus que capacitará scientist as e pesquisadores
do brasil e do mundo na cura dessa doença aproveito para render
minha homenagem a todos os profissionais da saúde médicos, enfer-
meiros, técnicos e colaboradores que na linha de frente nos recebem
nos hospitais nos tratam e nos confortam, sem pânico e histeria
como vem falando desde o princípio, venceremos o vírus e nos orgu-
lhamos de estar vivendo nesse novo brasil e que tem tudo sim tudo
para ser uma grande nação estamos juntos cada vez mais unidos,
Deus abençoe nossa pátria querida.

É notável, no pronunciamento, a despreocupação do presidente


Bolsonaro quanto à pandemia. Conforme suas palavras, o coronavírus não
passava de uma “gripezinha”. Apesar dos dizeres terem sido proferidos no
início da pandemia, quando pouco ainda se sabia sobre o vírus, percebe-se
que a minimização dos efeitos desta foi corroborada nos inúmeros posicio-
namentos do chefe de estado sobre a situação sanitária no Brasil, como se
vê no Tweet 1, publicado, em 27 de fevereiro, pela Jovem Pan News:

Figura 1. Tweet 1

206
O fato de o presidente não demonstrar muita importância acerca
dos problemas enfrentados na pandemia se tornou motivo de chacota e
piada diante de outros governos do mundo, conforme vemos no Tweet
2, o qual mostra a publicação de um jornal alemão fazendo uma brin-
cadeira com o presidente por meio da imagem do vírus e da morte que
o aplaudem por suas atitudes:

Figura 2. Tweet 2.

No Tweet 3, vemos o questionamento do microbiologista Átila


Iamarino quanto à escassez de medidas eficazes, por parte do governo. Átila
ficou conhecido, durante a pandemia, por representar a voz da ciência nas
mídias sociais e pela denúncia de posturas negacionistas e anticientificistas:

Figura 3. Tweet 3.

207
4.2 Eixo 2: O lockdown
Um dos grandes motivos de politização da pandemia se deu em
torno da medida restritiva do lockdown, o qual pode ser representado
pelo enunciado: o lockdown (não) é eficiente e proveitoso.
No contexto pandêmico, Eduardo Bolsonaro, filho do Presidente
da República, se manifesta constantemente nas redes sociais, sobretudo
no Twitter, como um líder de opinião e influenciador de pontos de
vista. O Deputado Federal possui mais de dois milhões de seguidores
em seu perfil oficial, o que lhe oferece grande engajamento e repercus-
são em suas postagens na plataforma de tuítes. Por meio da análise do
conteúdo disseminado em suas redes, percebe-se que o filho de Jair
Bolsonaro gerou expressiva polarização política frente ao contexto pan-
dêmico. Vejamos o Tweet 4:

Figura 4. Tweet 4.

No Tweet 4, Eduardo Bolsonaro apresenta uma grande aversão à


prática de enfrentamento à Covid-19 que propõe o fechamento parcial
e/ou total dos estabelecimentos, o lockdown. Na primeira sentença da
postagem, o deputado segrega os termos “lockdown” e “distanciamento
social”, acenando que, em sua visão política, tais são totalmente exclu-
dentes. Nesse enunciado, Eduardo coloca-se como porta-voz de seus
seguidores ao deslegitimar a eficácia dessa estratégia de prevenção con-
tra o coronavírus. Seus dizeres ecoam dialogicamente no ciberespaço a
partir dos discursos de seus apoiadores, amplificando o embate de vo-
zes no Twitter. No segundo enunciado, o político “desmoraliza” o lock-
down, relacionando-o com os termos “condenação” e “confinação”. Tais
termos sugerem que a prática do lockdown é contrária à promoção da

208
liberdade pessoal e expressiva. Tal dizer produziu efeitos de sentido que
incidiram na polarização das vozes sociais no cenário de enfrentamento
à Covid-19, afinal um líder político expressa uma opinião sobre um
fato científico, influenciando também o ponto de vista de seus eleitores
sobre o assunto.
Vale ressaltar que a colocação de Eduardo expressa grande negacio-
nismo científico, uma vez que contraria o que é proposto e recomen-
dado pelos estudos científicos precursores do enfrentamento eficaz da
Covid-19. Em razão disso, a própria plataforma de tuítes restringiu a
circulação da postagem na timeline com a justificativa de violação das
regras da rede e devido à presença de informações impolidas e antagôni-
cas ao combate à Covid-19, como se observa no Tweet 5:

Figura 5. Tweet 5.

O youtuber Felipe Castanhari, que possui sete milhões de seguido-


res no Twitter, se manifestou nas redes sociais, usando a postagem de
Eduardo exposta acima.

Figura 6. Tweet 6.

209
No tweet de Castanhari, percebe-se resistência ao discurso de
Eduardo Bolsonaro por meio do uso da ironia. Essa estratégia discursiva
envolve o tom humorístico de modo a gerar oposição à voz expressada
pelo filho do Presidente. Ao dizer “Saudades de sair pra beber todas até
ficar assim” e repostar a fala do político, o youtuber o critica. Vê-se que
o silêncio é colocado como o ponto de deslocamento dos sentidos, per-
mitindo que estes se movam entre o dito e o não-dito. Em meio a esse
espaço de movimentação de “presença-ausência”, a ironia é produzida
e desenvolvida.
Em contraposição às vozes de crítica ao lockdown, apresentamos os
Tweets 7 e 8, em que o biólogo Atila Iamarino apresenta dados cientí-
ficos que contradizem a visão de Eduardo e seus seguidores e critica o
gerenciamento da pandemia por parte do Governo Federal (referencia-
do por “Brasília” no Tweet 8), de forma irônica no enunciado: “o Brasil
gerando até variante de coronavírus de lacinho”.

Figura 7. Tweet 7. Figura 8. Tweet 8.

4.3 Eixo 3: O tratamento precoce


Outro tema polêmico na pandemia foi o “tratamento precoce”.
Em nosso corpus, sintetizamos a representação sobre o tratamento pre-
coce pelo enunciado: “o tratamento precoce (não) é eficiente e (não)
pode conter o avanço do coronavírus”, o qual acena para o embate
de vozes colocadas em cena pelos diferentes sujeitos.
Conforme já mencionado, no contexto pandêmico, Eduardo
Bolsonaro, filho do Presidente da República, se manifesta constantemente

210
nas redes sociais, sobretudo no Twitter, como um líder de opinião e in-
fluenciador de pontos de vista. O Deputado Federal possui mais de dois
milhões de seguidores em seu perfil oficial, o que lhe oferece grande
engajamento e repercussão em suas postagens na plataforma de tuítes.
No Tweet 9, Eduardo se manifesta na defesa do tratamento precoce à
Covid-19, o qual teve sua eficácia negada pelos estudos científicos pro-
postos. Nesse Tweet, as colocações do deputado corroboram a represen-
tação de que “o tratamento precoce não é eficiente e não pode conter o
avanço do coronavírus”:

Figura 9. Tweet 9.

A postagem nomeia a medicação como “remédio do Bolsonaro”,


destacando isso em letras grafadas em caixa alta, em um fundo verde
que oferece destaque ao nome de “BOLSONARO”, o que pode ser
interpretado como uma tentativa de promover uma demonstração de
progresso aos seus seguidores. No Tweet 10, por sua vez, Eduardo de-
fende o tratamento pelo uso de remédios sem eficácia comprovada por
estudos relevantes e se expressa politicamente:

211
Figura 10. Tweet 10.

Nessa postagem, o recurso linguístico que mais chama atenção é o


uso de aspas realizado pelo deputado para referir-se ao termo ciência, o
que aponta para a desmoralização dos estudos experimentais, corrobo-
rando, assim, um discurso anticientificista. Ademais, sob interpretações
dialógicas dos discursos propagados em outras postagens de Eduardo,
a crítica lançada à ciência a partir do uso das aspas dialoga com a desa-
provação do político em relação ao lockdown.
Nota-se que a informação sobre Chapecó publicada pelo deputado é
falsa: um internauta responde ao tuíte do deputado, demonstrando que a
realidade observada em Chapecó é um reflexo da adoção de medidas res-
tritivas de fechamento por parte da prefeitura local (Figura 11), o que con-
corda com as mesmas indicações científicas criticadas em sua postagem.

Figura 11. Tweet 11.

212
No Tweet 12, Atila Iamarino comenta as mortes por COVID, que
deixaram vários órfãos no país; e no Tweet 13, o cientista (d)enuncia o
alto número de mortes no Brasil e a insistência no uso de medicamen-
tos ineficazes:

Figura 12. Tweet 12. Figura 13. Tweet 13.

4.4 Eixo 4: A vacina


O discurso sobre a vacinação, por sua vez, pode ser sintetizado no
enunciado: a vacina contra COVID-19 (não) é confiável.
Em um evento no dia 17 de dezembro de 2020 em Porto Seguro, na
Bahia, o presidente Bolsonaro fez alegações, sem fundamento ou base
científica, ao comparar eventuais efeitos colaterais das vacinas contra a
Covid-19 com “virar jacaré e Super-Homem” e “nascer barba em mu-
lher ou algum homem começar a falar fino”. Com base nesse discurso,
os usuários do Twitter reagiram, tratando ironicamente as colocações
do Presidente, o que gerou a produção de diversos memes, de modo a
marcar o embate de vozes. Vejamos os Tweets 14 e 15:

Figura 14. Tweet 14. Figura 15. Tweet 15.

213
No Tweet 14, a personagem Cuca do seriado “Sítio do Pica Pau
Amarelo” é usada para satirizar o discurso de Bolsonaro. Ao redigir
“Esperando a ANVISA dizer qual a probabilidade de quem tomar a va-
cina se transformar em jacaré…”, o internauta refere-se dialogicamente
às afirmações do Presidente em seu discurso na Bahia, demonstrando
uma aversão a suas colocações e apoiando a vacinação. No Tweet 15, a
personagem Cuca também atua como um objeto de ironia e resistên-
cia ao discurso de Bolsonaro. O internauta “Jacaré pós vacina” inicia
sua postagem com a frase “quem tomar a vacina pode virar jacaré”, a
qual indica uma citação do Presidente da República, mas sem referen-
ciá-lo. Essa postagem relaciona-se dialogicamente com uma gama de
outros tuítes sobre o tema e com o discurso anti-vacina proposto por
Jair Bolsonaro. Ao inserir a imagem da personagem Cuca, o internauta
também resiste às afirmações do Presidente e se apropria do discurso
científico em favor da vacinação.
Há de se ressaltar que, a partir do início de 2021, foi notório um
súbito apoio à vacinação contra a Covid-19 por parte do Presidente
da República e sua família, o que contraria seus discursos anti-vacinas
durante o ano anterior. Sob esse viés, os perfis oficiais de Jair Bolsonaro
e de seus filhos no Twitter passaram a compartilhar supostas realidades
de progresso na vacinação da Covid-19 no Brasil, usando apenas núme-
ros absolutos que desconsideram a relatividade populacional do país e
transparecem uma condição de “fim da pandemia”.
Tal condição de “fim da pandemia” se mostrou problemática, pois
incitou parte da população ao relaxamento das medidas de seguran-
ça ao coronavírus, o que destoa totalmente do proposto pela ciência
para o combate eficiente do contágio. Os Tweets 16 e 17 refletem esse
discurso.

214
Figura 16. Tweet 16. Figura 17. Tweet 17.

Em oposição aos comentários do filho do Presidente da República,


o biólogo Atila Iamarino ironiza e critica a resistência para a adesão e
para a compra de vacinas pelo Governo Federal. O biólogo apresenta
dados concretos sobre a vacinação e o lockdown e seus efeitos em Israel
(Figura 18) e, em mais uma de suas postagens, mostra um levantamen-
to de dados que aponta a polarização política na pandemia, partindo de
uma análise nos Estados Unidos (Figura 19).

Figura 19. Tweet 19. Figura 20. Tweet 20.

4.5 Eixo 5: Práticas religiosas


Em meio à pandemia do coronavírus, muitas pessoas procuraram
“abrigo” em suas religiões e crenças. Assim, as “práticas religiosas” con-
figuraram-se como tema que instaurou divisão de sentidos, a partir do

215
enunciado a fé cristã é uma arma no combate à COVID-19, como se
vê no Tweet 21:

Figura 21. Tweet 21

Nesse Tweet, Bolsonaro pede ao povo brasileiro que realize um je-


jum no dia 29/03/2021 e que faça orações para o país e a população:
“Aos que puderem, amanhã, 29/03/2021, teremos um dia de jejum e
oração pelo bem e pela liberdade de nossa nação”. Logo após a posta-
gem do presidente, o seu filho Eduardo Bolsonaro fez um retweet na
rede colocando em seu perfil o post feito pelo pai (Figura 22), consi-
derando a pandemia como uma “luta espiritual”: “A pandemia é uma
luta espiritual. bem-aventurada é a nação cujo Deus é o Senhor (Salmos
33:12)”. Percebe-se, nesses tweets, o apagamento de outros credos e re-
ligiões, bem como a desresponsabilização do Governo frente às mazelas
da COVID-19.

Figura 22. Tweet 22.

216
Considerações Finais
Esta pesquisa visou analisar o funcionamento discursivo do tema
a politização da pandemia nas redes sociais. Para isso, identificamos
representações discursivas em 5 (cinco) eixos constituídos a partir de
subtemas. No Quadro 1, sintetizamos nosso gesto de análise, no qual
procuramos ressaltar o conflito e embate de vozes postas em cena na
tomada da palavra no ciberespaço. Salientamos que as representações se
entrelaçam e que aqui foram separadas por razões didáticas:

Quadro 1. Síntese das análises

Eixos Representação
Pandemia “a pandemia (não) é uma gripezinha”

“o governo (não) atua seriamente no combate à


pandemia”
Lockdown “o lockdown (não) é eficiente e proveitoso”

Tratamento Precoce “o tratamento precoce (não) é eficiente e (não)


pode conter o avanço do coronavírus”
Vacina “a vacina contra COVID-19 (não) é confiável”

“o governo (não) tem atuado eficazmente na vaci-


nação contra a COVID-19”
Práticas Religiosas “a fé cristã é uma arma no combate à COVID-19”
Fonte: autores.

Cumpre dizer que, com essa pesquisa, intentamos contribuir para


a compreensão de como a produção e circulação dos sentidos no ci-
berespaço incidem na construção de “verdades”, as quais, por sua vez,
posicionam os sujeitos, as instituições, enfim as políticas públicas de
forma a (des)favorecer certos grupos sociais. No caso do tema que aqui
investigamos, nota-se que essa incidência não apenas (des)vela/velou
ideologias em conflito, mas reverbera/reverberou na vida de milhares
de brasileiros.

217
Referências
ALVES, M. P. C. O enunciado concreto como unidade de análise: a perspectiva me-
todológica bakhtiniana. In: RODRIGUES, R. H.; PEREIRA, R. A. Estudos Dialógicos
da Linguagem e Pesquisas em Linguística Aplicada. São Carlos: Pedro & João Editores,
2016. p. 163-177.

DI FANTI, M. G. C. A linguagem em Bakhtin: pontos e pespontos. Revista de Estudos


Linguísticos Veredas, v.7, n.1 e n.2, 2003.

MARTINS, M. H. O que é leitura? São Paulo: Brasiliense, 2004.

SANTOS, A. C.; MARQUES, G. G. B. S; RODRIGUES, S. G. C. A ironia como zona


de confronto entre diferentes vozes/dizeres em comentários do Facebook. Bakhtiniana,
São Paulo, v. 14, n. 1, p. 28-50, 2019.

SILVA, A. V. M. Memes, educação e cultura de compartilhamento nas redes sociais.


Artefactum – Revista de Estudos em Linguagem e Tecnologia, Ano X, n. 02, 2018.

VISCARDI, J. M. Fake news, verdade e mentira sob a ótica de Jair Bolsonaro no Twitter.
Trabalhos em Linguística Aplicada, n. 59.2, p. 1134-1157, 2020.

218
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

INTERNACIONALIZAÇÃO DO ENSINO
SUPERIOR, POLÍTICA LINGUÍSTICA E
PLANEJAMENTO LINGUÍSTICO

Camila Höfling (UFSCar)


Elaine Maria Santos (UFS)

RESUMO: As discussões que perpassam as questões relacionadas ao processo


de internacionalização das IES estão centradas não apenas em torno de
números relacionados a programas, projetos e editais de mobilidade acadêmica
docente ou estudantil, mas, principalmente, em torno da preparação e
sensibilização da comunidade acadêmica interna para a dimensão plurilíngue
e intercultural desse processo (KNIGHT, 2004), o que abre espaço para
temas como a Internacionalização Abrangente de Hudzik (2011), e como a
Internacionalização em Casa, de Beelen & Jones (2015). Percebe-se que o
processo de internacionalização da educação superior vem se alterando, uma
vez observadas as características passadas e as atuais de internacionalização. É
preciso, portanto, que tais conceitos sejam discutidos, entendidos e colocados
em prática e, a partir de discussões entre gestores e comunidade acadêmica
interna, as IES possam redirecionar e redefinir suas propostas educacionais,
reposicionando principalmente o papel das línguas estrangeiras/ adicionais,
que passam a assumir outros espaços institucionais, contribuindo para as
discussões acerca da construção das metas e objetivos de internacionalização,
ou seja, passam a assumir papel de destaque no planejamento estratégico
da instituição para a internacionalização e principalmente no planejamento
linguístico estratégico da mesma. As ações relacionadas ao ensino de línguas
estrangeiras/ adicionais precisam, dessa forma, estar vinculadas ao processo
de formação inicial ou continuada de professores de línguas, que irá preparar
os professores em pré-serviço, os especialistas e os professores em serviço para
esse contexto acadêmico multi/ plurilíngue e multi/ pluricultural, de modo
que as especificidades deste contexto sejam destacadas e estudadas, contexto
este que privilegia a vivência acadêmica de forma a praticar a empatia, o
entendimento mútuo entre usuários das línguas e o conhecimento da língua
e da cultura do outro. Nosso objetivo, portanto, é o de discutir essa relação
entre a internacionalização do ensino superior, a política linguística e o
planejamento linguístico da instituição.

219
ABSTRACT: The discussions related to the process of internationalization
of the higher education institutions are focused not only on numbers of
programs, projects and calls for faculty’s or students’ academic mobility, but
mainly on the preparation and sensibilization of the academic community for
the plurilingual and intercultural dimension of this process (KNIGHT, 2004),
what directs to themes such as Hudzik’s Comprehensive Internationalization
(2011), and Beelen & Jones’s Internationalization at Home (2015). We
have realized that the process of internationalization of higher education
has been modified, once observed the past and the current characteristics
of internationalization. It is fundamental, then, that such concepts must
be discussed, understood and put into practice and, from the discussion
among academic administrators and community, the institutions could
redirect and redefine their educational proposals, relocating mainly the role
of the foreign/ additional languages, which start adopting other institutional
roles, contributing to the discussions towards the construction of goals and
objectives of internationalization, that is, playing an important role within the
strategic planning of the institution for the internationalization, and mainly
within its strategic language planning. The actions related to the teaching and
learning foreign/ additional languages need, in this way, to be linked to the
process of language teachers’ initial or continued formation , that will prepare
pre-service and in-service teachers to this multi/plurilingual and multi/
pluricultural academic context, once the particularities of this context would
be emphasized and studied, favoring the academic life putting into practice the
empathy, the mutual understanding among language users and the knowledge
of the others’ language and the culture. Our objective, therefore, is to discuss
this relation among internationalization of higher education, the institutions’
language policies and their strategic language planning.

Introdução
Trabalhando com alguns conceitos: Internacionalização
Abrangente e Internacionalização em Casa
Antes de nos concentrarmos nas questões relativas à formação de
professores de línguas no contexto da internacionalização das IES, faz-
-se necessário buscar definições de políticas de internacionalização para
a educação superior que incorporem os contextos específicos de IES
brasileiras.

220
O Grupo de Pesquisa em Políticas Linguísticas e de
Internacionalização da Educação Superior (GPLIES33) do qual somos
pesquisadoras integrantes, desde 2020, tem como objetivo promover
estudos e pesquisa no universo de políticas de internacionalização e po-
líticas linguísticas, assim como estudos sobre ferramentas de ensino-
-aprendizagem de línguas que facilitem o processo de implementação
das propostas de internacionalização das IES.
Desse modo, baseado em estudos prévios formulados por Knight
(2004), Hudzik (2011), De Wit et al (2015), entre outros autores e
pesquisadores na área de internacionalização do ensino superior, o
grupo de pesquisas formulou uma definição de política de internacio-
nalização que busca acomodar diferentes contextos de IES, com suas
especificidades.
GPLIES, portanto, tomou como base o conceito mais abrangen-
te proposto por Knight (2004, p. 11)34: “Internacionalização, nos ní-
veis nacional, setorial e institucional, é definida como o processo de
integração das dimensões internacional, intercultural, ou global, nos
propósitos, funções e oferta da educação pós-secundária”; passando
pelo conceito de internacionalização abrangente/ transversal de Hudzik
(2011, p. 6)35: “Comprometimento, confirmado pela ação, em infundir
perspectiva internacional e comparativa através da missão da educação
superior de ensino, pesquisa e extensão”; perpassando pelo conceito
de De Wit et al (2015, p. 29)36, que ampliam a definição de Knight,

33
Grupo de Pesquisa no CNPQ: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogru-
po/9572177799231276. Coordenação: Waldenor Barros Moraes Filho (UFU) e
Denise de Paula Martins de Abreu e Lima (UFSCar).
34
No original: The process of integrating an international, intercultural or global
dimension into the purpose, functions or delivery of post-secondary education
(KNIGHT, 2004, p. 11).
35
No original: Comprehensive internationalization is a commitment, confirmed
through action, to infuse international and comparative perspectives throughout
the teaching, research and service mission of higher education. (HUDZIK,
2011, p. 6).
36
No original: Internationalization of higher education is the intentional process
of integrating an international, intercultural or global dimension into the pur-

221
reforçando a dimensão política de intencionalidade da internaciona-
lização: “processo intencional de integração das dimensões interna-
cional, intercultural ou global na finalidade, funções e provimento da
educação pós-secundária, de forma a melhorar a qualidade da educação
e da pesquisa para todos os estudantes e professores, e contribuir de
forma significativa para a sociedade”.
Segundo Knight e De Wit (2018), em um passado não tão distan-
te, a internacionalização era caracterizada principalmente como coope-
ração internacional, intercâmbio de estudantes, estudos no exterior, e
parcerias entre pesquisadores, entre outras características.
Entretanto, as discussões que perpassam as questões relacionadas ao
processo de internacionalização das IES estão centradas não apenas em
torno de números relacionados aos programas nos quais a IES participa,
ou em torno dos números de acordos de cooperação com instituições
estrangeiras, ou nos projetos e editais de mobilidade acadêmica docente
ou estudantil.
Para além desses números, tais discussões relacionadas à internacio-
nalização também devem ter como foco a preparação e sensibilização da
comunidade acadêmica interna para a dimensão plurilíngue e intercul-
tural desse processo (KNIGHT, 2004).
Tal contexto de sensibilização, portanto, abre espaço para se colo-
car em prática os processos de Internacionalização em Casa (doravante,
IeC), de Beelen & Jones (2015), que denominam como IeC a integra-
ção intencional das dimensões internacional e intercultural no currícu-
lo formal e informal para todos os estudantes dentro dos ambientes
de aprendizagem domésticos (grifo nosso). Para que o processo de IeC
aconteça, a instituição deve propiciar espaços significativos para que
gestores, professores e estudantes possam trabalhar colaborativamente
(AGNEW & KAHN, 2014).

pose, functions or delivery of post-secondary education, in order to enhance


the quality of education and research for all students and staff, and to make a
meaningful contribution to society. (DE WIT et al, 2015, p. 29).

222
O processo de IeC se caracteriza, portanto, como um movimento
de inclusão, criando oportunidades a uma maioria de indivíduos, que
não faz parte dos processos de mobilidade outgoing, de participar ativa-
mente do processo de internacionalização da instituição, tendo, assim,
uma melhor compreensão do outro (de indivíduos com suas línguas
e culturas). Esse processo de sensibilização faz com que se crie uma
atmosfera plurilíngue e intercultural, de compreensão e empatia, em
um movimento de criação de uma sociedade global, mais propensa a
começar uma discussão sobre a internacionalização do currículo e de
institucionalização de atividades de internacionalização.
Assim, considerando tais definições de internacionalização,
GPLIES define que

A internacionalização na Educação é um movimento articula-


do pelas comunidades acadêmicas e não acadêmicas, que busca
promover o compartilhamento de ideias, de culturas, de práti-
cas inovadores e de responsabilidades sociais, que se manifestam
de forma transversal nos diferentes setores de ensino, pesquisa,
extensão e gestão das instituições de ensino. Este movimento
envolve a solidariedade e a colaboração entre os parceiros nacio-
nais e internacionais de forma a permitir um posicionamento
decolonial e crítico, reposicionando as demandas locais diante
da necessidade de inserção em um contexto internacional.
(GPLIES, 2021)

Quando tomamos como contexto o processo de internacionaliza-


ção nas IES, seja IeC ou não, não há como separar tal contexto da
questão linguística, ou seja, da proficiência da comunidade acadêmica
nas línguas estrangeiras e também na valorização da sua própria língua
materna.
Segundo Spolsky (2004), a política linguística da instituição não
necessariamente precisa ser explícita ou organizada, podendo se con-
cretizar nas práticas cotidianas da comunidade. Por conta desse aspecto
é que, normalmente, a instituição não faz ideia de todos os processos
bottom-up (que partem dos indivíduos ou da comunidade para a gestão)

223
de ações linguísticas que ocorrem. Um exemplo claro de ação de po-
lítica linguística é a adesão, por parte das IES, ao programa Idiomas
sem Fronteiras (doravante, IsF). Abreu-e-Lima & Moraes Filho (2016),
indicam que

o IsF por si só se constitui como uma política linguística para o


país. Neste sentido, muito embora o NG (Núcleo Gestor) fosse
articulando as ações conforme as necessidades apresentadas pe-
los gestores governamentais e adequando às necessidades locais,
sabíamos que nossas ações influenciariam sobremaneira o que
seria ou não priorizado e que isso já se constituiria como a base
de uma política linguística. (2016, p. 42)

O ensino de línguas voltado para a Internacionalização do


Ensino Superior Brasileiro e o IsF
Em 2012, o Programa Inglês sem Fronteiras (IsF) foi institucionali-
zado, por intermédio da Portaria nº 1.466, de 18 de dezembro de 2012
(BRASIL, 2012), como um Programa governamental oficial, desenha-
do para dar suporte a um outro programa: o Ciência sem Fronteiras37
(CsF), que estava voltado para a promoção da mobilidade acadêmica de
alunos universitários para instituições estrangeiras. Naquele momento,
nascia uma primeira ação em prol do ensino de línguas voltado para o
contexto da internacionalização, mas sem um estudo anterior sobre as
necessidades formativas requeridas.
Com a ampliação do programa, em 2014, mais sete idiomas foram
inseridos no Programa, que passou a se chamar Idiomas sem Fronteiras,
permanecendo a mesma sigla, IsF38. Assim, além da língua inglesa, co-

37
Considerado o maior programa de mobilidade acadêmica brasileiro, entre 2011
e 2016, o CsF fomentou bolsas de estudos para estudantes universitários (em
nível de graduação e pós-graduação), bem como para pesquisas de pós-doutora-
mento e para docentes pesquisadores, para fora do país. Informações podem ser
obtidas em http://www.cienciasemfronteiras.gov.br/web/csf/o-programa Acesso
em agosto 2022.
38
O programa Idiomas sem Fronteiras, lançado em 2012 como Inglês sem Fron-

224
meçaram a ser pensadas ações para o alemão, espanhol, francês, italia-
no, japonês e português para estrangeiros (BRASIL, 2014). Apenas os
coordenadores e professores-bolsistas do IsF-Inglês recebiam bolsas do
MEC para desempenhar as suas atividades, entretanto, já se pensava no
estabelecimento de uma política nacional plurilíngue, com valorização
dos sete idiomas do Programa.
Duas datas importantes merecem destaque para essa análise sobre o
surgimento, nas universidades brasileiras, de uma necessidade formati-
va, vinculada ao IsF, pensando-se no contexto da internacionalização. A
primeira é o edital de (re)credenciamento das IES brasileiras (BRASIL,
2017) interessadas para integrar o grupo de instituições do IsF, uma vez
que, novamente, a associação entre ensino de línguas e internaciona-
lização tenha sido destacada. Neste edital, houve, portanto, a obriga-
toriedade em apresentar um rascunho de política linguística, e futura
promulgação da mesma, o que culminou em novos rumos para as dis-
cussões que já haviam sido iniciadas sobre o IsF e a internacionalização.
As universidades interessadas em participar do programa tinham
que, obrigatoriamente, criar uma comissão para discutir e organizar um
documento que representasse suas políticas linguísticas, contemplando
ações de ensino de línguas estrangeiras, colocando-as sempre no contex-
to do ensino acadêmico e da internacionalização. Importante destacar
que não se trata apenas de trabalhar inglês instrumental ou inglês para
fins específicos, já que, pensando-se em uma dimensão intercultural,
novos espaços formativos se faziam necessários.

teiras, foi renomeado em 2014, incluindo outras línguas estrangeiras, e des-


continuado em 2018, sendo incorporado pela Andifes (Associação Nacional de
Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), hoje concretizado na
Rede Andifes-IsF. Através de um Núcleo de Línguas (NucLi) nas instituições
credenciadas, o programa/rede oferta cursos gratuitos de línguas para propó-
sitos acadêmicos, para a comunidade acadêmica, além de ser um espaço para
formação de professores de línguas estrangeiras. O programa está hoje presente
em quase todas as universidades federais, estaduais, além dos institutos federais,
e tem sido um dos pilares no desenvolvimento de políticas linguísticas para a
internacionalização da educação superior. Informações disponíveis em: http://
isf.mec.gov.br/ Acesso em agosto 2022.

225
Os coordenadores pedagógicos do IsF eram também professores de
instituições de ensino superior brasileiras e já desempenhavam ativida-
des de formação de professores em seus respectivos currículos das licen-
ciaturas. No entanto, foi perceptível a necessidade em se buscar novos
conhecimentos e habilidades, que tivessem como foco não somente os
processos formativos, mas que incluíssem as demandas específicas da
internacionalização, e que se adequassem às políticas e planejamentos
linguísticos institucionais. Esses docentes, dessa forma, começaram a se
aprofundar nessas novas e desafiadoras temáticas, havendo, nos dias de
hoje, muitos trabalhos que articulam o ensino de línguas no contexto
da internacionalização, as conexões entre política linguística e planeja-
mento linguístico, as práticas formativas situadas nesse novo contexto
educacional e um aprofundamento teórico sobre LEME (língua estran-
geira como meio de instrução) e, mais fortemente, no EMI (English as
a medium of Instruction - Inglês como meio de instrução).
Entendemos a EMI como uma abordagem de ensino utilizada
para ensinar conteúdo específico tendo como ‘meio/modo de instrução’
a língua inglesa. O início do uso dessa abordagem EMI em contexto de
ensino superior brasileiro é difícil de ser apontado, levando em consi-
deração a forma esporádica, individual e não-oficial que tais cursos têm
sido/ são oferecidos nas IES, segundo Höfling e Zacarias (2017).
Segundo Macaro (2013), para se ter clareza quanto à implementa-
ção do EMI em uma IES, é necessário, por exemplo, que se considere
todos os interessados nesse processo. São eles: (1) os professores que irão
ministrar os cursos e disciplinas; (2) os estudantes que irão cursar tais
cursos e disciplinas, sejam eles estrangeiros em mobilidade acadêmica
ou estudantes da própria instituição; e (3) os gestores das políticas lin-
guística da instituição. Para que o processo ocorra, é preciso que haja
um consenso entre todas as partes envolvidas, quanto ao percurso e
planejamento de todas as ações que envolvem a implementação do EMI
na instituição.
Entretanto, restrições e impedimentos (ou, o que chamamos de
desafios) na inserção da abordagem EMI como política linguística

226
institucional já começam a aparecer no contexto de sala de aula, com
relação ao nível de proficiência na língua de instrução de professores
ministrantes e estudantes. Outros desafios que se colocam são referentes
às mudanças no sistema de avaliação, nas interações professor-alunos
em sala de aula, na linguagem técnica do conteúdo de uma disciplina
(vocabulário acadêmico), entre outras.
Para que tais desafios sejam superados, todos os interessados devem
cumprir seus respectivos papéis. Por exemplo, é imprescindível que haja
amparo institucional para os professores ministrantes com cursos sobre
a abordagem EMI, acompanhamento do desenvolvimento da profici-
ência na língua estrangeira tanto dos professores ministrantes quanto
dos estudantes, com todas as ações estampadas em uma política linguís-
tica clara sobre a instauração da abordagem EMI na instituição, para
que todos os interessados se sintam contemplados e dispostos a encarar
tal desafio. Höfling e Zacarias (2017) identificam com clareza a neces-
sidade de tal apoio:

Em algumas instituições públicas e privadas, o professor rece-


be benefício pecuniário para ministrar aulas em IMI, fato que
incentiva o uso da abordagem e valoriza o profissional que se
interessa em enfrentar o novo desafio. Seria ideal também que a
capacitação do docente estivesse prevista na política de idiomas
institucional e fosse efetivamente realizada. A prática docente
em inglês colabora para o aprimoramento linguístico do profes-
sor na língua alvo, promove a inserção do professor como pro-
fissional e pesquisador internacional e projeta os seus estudantes
e a sua instituição no âmbito internacional. Por essas razões, é
salutar que o professor receba gratificação e a devida atenção
por parte da instituição de origem. (2017, p. 258)

A segunda data importante que merece destaque para essa análise


sobre o surgimento, nas universidades brasileiras, de uma necessidade
formativa, vinculada ao IsF, pensando-se no contexto da internaciona-
lização, é o ano de 2019.

227
Em 2019, o IsF passou por nova reestruturação, em decorrência
do desligamento do Programa junto ao MEC, que, de patrocinador,
tornou-se apenas um parceiro. Ao ser ligado à ANDIFES (Associação
Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior),
o programa passou a se chamar Rede Andifes de Especialistas Idiomas
sem Fronteiras, Rede Andifes Nacional de Especialistas em Língua
Estrangeira Idiomas sem Fronteiras, ou Rede Andifes IsF (BRASÍLIA,
2019). No teor da nova resolução, as mesmas preocupações educacio-
nais são encontradas: foco na internacionalização, no ensino de línguas
estrangeiras e na formação de professores.
É importante destacar que na Resolução de 2012, não havia
nenhuma menção às questões ligadas à formação de professores, já que
o programa surgiu para dar suporte ao CsF. No entanto, a partir de
2014, mesmo que timidamente, a formação de professores passou a
estar presente nos documentos oficiais, já que o programa começava
a se organizar em prol das suas próprias necessidades e, com o fim do
CsF, em 2017, todas as premissas que davam suporte ao IsF passaram
a ser regulamentadas a partir das necessidades do próprio Idiomas sem
Fronteiras. Era o fortalecimento de uma identidade, que já havia sido
iniciada em 2012.
Como dito anteriormente, os coordenadores do IsF, à medida em
que foram se inteirando do Programa e percebendo as particularidades
e as necessidades associadas, para que questões acadêmicas pudessem
ser trabalhadas, em língua inglesa, em suas necessidades acadêmicas,
passaram a investir tempo de pesquisa nas temáticas associadas às prá-
ticas desenvolvidas no IsF, podendo ser perceptível o crescimento de
pesquisas sobre Internacionalização, IsF e ensino de línguas, bem como
em política linguística, planejamento linguístico e EMI.
Apesar de ser um tema bastante recorrente em outros contextos
educacionais e que já vem sendo estudado há muito tempo, as pesquisas
e artigos sobre o inglês como meio de instrução no contexto univer-
sitário tiveram um incremento mundial no período de 2002 a 2014,
com destaque para textos publicados na Europa, já que esse continente

228
vivenciou um aumento de 1000% nesse tipo de pesquisa, com mais de
800 mil programas disponíveis (WÄCHTER; MAIWORM, 2014). Ao
pesquisar no site de busca de periódicos da CAPES sobre ‘English as a
medium of instruction’, é possível encontrar um total de 2.780 artigos,
entretanto, quando associamos com a palavra ‘Brazil’, esse número cai
para 17. Ao usar o termo em português, ‘Inglês como meio de instru-
ção’, encontramos apenas 43 textos, com somente 17 artigos associados
ao termo ‘Brasil’.
O EMI está totalmente interconectado com as necessidades do
IsF em auxiliar as IES na busca por ações que possam auxiliar a inter-
nacionalização, tomando como ponto de partida o ensino de línguas
estrangeiras. No entanto, é notório o quanto ainda são necessários in-
vestimentos para que essas ações sejam difundidas e as práticas sejam
compartilhadas. Da mesma forma, as pesquisas em formação de profes-
sores no contexto do EMI e do IsF ainda precisam de um incremento,
de modo que seja possível identificar os pontos de interseção que li-
guem o ensino de línguas, a internacionalização e as questões acadêmi-
cas. Teorias e definições abrangentes, voltadas para o ensino de línguas
estrangeiras podem não dar as mesmas respostas, o que pode aconte-
cer somente com o diálogo estabelecido entre especialistas, a partir de
eventos acadêmicos e artigos publicados. Nesse contexto, precisamos
situar o espaço a ser ocupado pelas discussões que envolvem o ensino
de línguas, o contexto universitário e o processo de implementação de
políticas e planejamentos linguísticos.

Políticas e Planejamentos Linguísticos no contexto do Ensino


Superior Brasileiro
Ao discorrermos sobre as portarias que deram sustentação ao
Programa IsF, que, em 2019, foi reconfigurado em Rede Andifes IsF,
foi destacado o edital de (re)credenciamento de 2017 e a exigência pela
elaboração e publicação de políticas linguísticas (PL). Para esse proces-
so, foi necessário, inicialmente, buscar o entendimento do significado
e importância de uma política linguística em uma instituição de ensino

229
superior, de modo a ser possível compreender os espaços que foram
ocupados nas IES brasileiras, quando da publicação desses documentos.
Para Spolsky, a política linguística pode ser compreendida com um
conjunto de regras que passam a ser obrigatórias nas instituições de
ensino, de modo que questões relacionadas a uso e forma da linguagem
são detalhadas (SPOLSKY, 2012, p. 3). Partindo desse pressuposto, ao
definirmos ações voltadas para a internacionalização pautadas em ques-
tões linguísticas, é imprescindível que a noção de língua e linguagem
seja compartilhada pela comunidade, bem como as línguas que rece-
berão ações e os objetivos propostos, conforme orientação encontra-
da no documento sobre Política Linguística para internacionalização
do ensino superior, elaborado por um grupo de especialistas ligados à
Associação Brasileira de Educação Internacional (FAUBAI), criada em
1988.

Entendemos política linguística como a tentativa sistemática,


deliberada e teoricamente informada de solucionar problemas
de comunicação de uma comunidade por meio do estudo de
várias línguas ou dialetos adotados localmente, além do de-
senvolvimento de uma política de seleção e uso dessas línguas
(ABREU-E-LIMA et al., 2017, p. 6).

Foi nesse contexto que o IsF incentivou as IES a reunirem seus es-
pecialistas na preparação de suas políticas linguísticas. No entanto, mui-
to do que foi observado foi uma corrida pela publicação de Resoluções
que regulamentaram as PL institucionais, sem um maior envolvimento
da comunidade acadêmica como um todo, ou preocupação prática na
sua implementação. As questões referentes ao ensino de línguas e à for-
mação de professores precisavam ter sido pensadas no momento dessa
elaboração, o que não ocorreu em todas as IES.
Com a constatação de que muitas das atividades previstas não foram
executadas nas universidades que passaram a ter suas políticas linguís-
ticas, chegamos à conclusão de que é necessário que dois passos sejam
tomados, de forma estratégica: a reformulação das PLs já aprovadas,

230
ou elaboração de políticas, nas IES que ainda não a possuem; e a cons-
trução de planejamentos linguísticos, capazes de, a partir das métricas
desenhadas, prazos estipulados e detalhamento de processos, colocar
em prática tudo que foi idealizado nas políticas linguísticas. Assim, para
Calvet (2002), devemos chamar de política linguística “um conjunto de
escolhas conscientes referentes às relações entre língua(s) e vida social e
de planejamento linguístico, a implementação concreta de uma política
linguística” (CALVET, 2002, p. 133).
Política e planejamento linguísticos precisam ser construídos de
forma a se ter uma unidade teórica e prática, já que a “política linguís-
tica está diretamente vinculada ao planejamento linguístico, razão pela
qual é importante tê-la como parte dos planos de internacionalização”
(ABREU-E-LIMA et al., 2017, p. 6). Não há como se pensar em pla-
nos de internacionalização sem que uma política e um planejamento
linguístico tenham sido anteriormente delineados, aprovados e ampla-
mente divulgados. De nada adianta termos políticas linguísticas insti-
tucionais se não temos um planejamento linguístico que facilite a sua
execução, conforme já destacado por Souza e Pereira (2016).

É fato que a política nada é sem o planejamento que efetive a vi-


vência da comunidade, em sentido local, seu conhecimento, sua
valorização e seu respeito pela sociedade em geral, considerando
que o mundo linguístico é indissociável do mundo como um
todo, isto é, de todos os demais aspectos da realidade humana
(2016, p. 174).

O mesmo questionamento precisa ser novamente feito: de que


modo as questões relacionadas ao ensino de línguas e ao processo de
formação de professores estão sendo trabalhados de forma específica
para o contexto de internacionalização? Se precisamos compartilhar o
entendimento que temos sobre língua e linguagem antes de pensarmos
em elaborar um PL, não temos que, igualmente, pensar nas nossas prá-
ticas formativas, em um processo que busca promover ações linguísti-
cas específicas para a internacionalização? Precisamos, urgentemente,
levantar essas reflexões e convidar nossos pares para o diálogo.

231
As pesquisas em ensino de línguas e as especificidades exigidas
pelos projetos de internacionalização
As inquietações acadêmicas aqui compartilhadas foram e são obje-
tos de reflexão e debates nas rodas de especialistas que trabalham com
o ensino de línguas no contexto da internacionalização. Algumas dessas
discussões foram promovidas no GPLIES - Grupo de Pesquisa sobre
Políticas Linguísticas e de internacionalização da Educação Superior,
formado em 2020, sob a coordenação do Prof. Dr. Waldenor Barros
Moraes Filho, da UFU, e a Profa. Dra. Denise de Paula Martins de
Abreu e Lima, da UFSCAR. O grupo dispõe, atualmente, de 20 pes-
quisadores e 08 estudantes. Trata-se de um grupo interinstitucional,
que conta com integrantes de dez instituições, a saber: UFBA, UnB,
UFSCar, UFU, UFS, UEMS, IFSP, IFSULDEMINAS, UFPR e USP,
e que tem como objetivo

promover estudos e pesquisas no universo de políticas de in-


ternacionalização e políticas linguísticas, processos de gestão e
acompanhamento do planejamento estratégico para ações de
internacionalização e planejamento linguístico, assim como fer-
ramentas de ensino-aprendizagem de idiomas que facilitem o
processo de implementação das propostas de internacionaliza-
ção nas instituições de ensino superior. Com a ampliação das
iniciativas governamentais para internacionalização e ensino de
idiomas nas universidades brasileiras, como o CsF, IsF e PrInt,
as universidades investiram na constituição de políticas de inter-
nacionalização e políticas linguísticas institucionais. Entretanto,
somente a constituição dessas políticas não garantem a imple-
mentação das mesmas. O GPLIES se dispõe a estudar como
essas políticas foram organizadas, verificar as necessidades e es-
truturas já existentes nas IPES, bem como estudar formas de
planejamento e implementação dessas políticas (DESCRIÇÃO
DO DIRETÓRIO DE GRUPOS DA CAPES).

Conforme já explicitado anteriormente, o grupo trabalha es-


pecificamente com Políticas Linguísticas, ensino de línguas e

232
internacionalização e suas ações são divididas em 3 linhas de pesquisa:
Linha 1: Ensino e Aprendizagem de Línguas para a Internacionalização;
Linha 2: Políticas e Práticas de Internacionalização; e Linha 3: Políticas
e Práticas Linguísticas para a Internacionalização. As análises promo-
vidas no GPLIES são importantes para as discussões aqui propostas,
principalmente no que se refere às inquietações trazidas pela Linha 1.
Para os especialistas ligados a essa linha de pesquisa, é preciso pensar
no processo de formação de professores e de ensino-aprendizagem de
línguas no contexto e especificidades da internacionalização, mas o que
se percebe é a repetição no uso de teorias e termos associados ao ensino
geral de línguas estrangeiras. A mensagem que é passada, então, é a
de que se os procedimentos e o processo formativo são os mesmos, as
especificidades do ensino acadêmico não são levadas em consideração.
Poucos teóricos se preocupam em diferenciar os contextos educa-
cionais, o que faz com que tenhamos que buscar uma teorização pró-
pria, que se incorpore ao cânone teórico utilizado nas pesquisas com os
processos de ensino-aprendizagem de línguas. Esse gap teórico vem sen-
do registrado nos eventos nos quais o GPLIES participa, como é o caso
desse Simpósio Temático, do CBLA, bem como da sessão coordenada
que foi promovida pela CLAFPL, de 15 a 17 de setembro de 2021, com
o GT: Formação de Professores no contexto de ensino-aprendizagem de
línguas estrangeiras/ adicionais para a internacionalização; e também no
I Encontro brasileiro sobre Internacionalização e inovação em estudos
linguísticos, literários e formação de professores de línguas, ocorrido no
período de 18 a 22 de outubro de 2021, no qual foi apresentado o GT
06: Ensino e Aprendizagem de línguas em contextos plurilíngues com
foco na internacionalização.
Somente com discussões como essas promovidas pelo GPLIES é
que conseguiremos definir melhor nosso objeto de estudo, uma vez que
as práticas mais corriqueiras são aquelas que o associam ao estudo de
línguas como fim específico, com predominância do trabalho com lei-
tura instrumental.

233
Algumas considerações (que estão longe de serem consideradas
finais)
Quando pensamos em internacionalização do ensino superior, es-
tamos nos distanciando cada vez mais da visão simplista de outrora, que
colocava a internacionalização praticamente como sinônimo de mobili-
dade acadêmica. Noções como a valorização da dimensão intercultural
(KNIGHT, 2004), internacionalização em casa (BEELEN; JONES,
2015) e internacionalização abrangente (HUDZIK, 2011) estão cada
vez mais presentes no nosso dia a dia. Não podemos mais pensar na
internacionalização como algo intangível e para poucos, e sim com foco
nas trocas culturais e acadêmicas promovidas pela instituição, que passa
a envolver toda a comunidade acadêmica em direção a esse novo cená-
rio de respeito e trocas.
Ações coordenadas, como os ciclos de palestras e discussões pro-
movidos pelo GPLIES são fundamentais, pois precisamos pensar nas
práticas e técnicas a serem utilizadas, a partir de conceitos muito es-
pecíficos, como, por exemplo, definir o que é ensinar no contexto da
internacionalização e quais as principais preocupações que projetos de
formação de professores devem ter, para que a internacionalização possa
ser percebida por toda a comunidade.
Nas nossas discussões, ao tentar definir o que é/ não é internacio-
nalização, aproximamo-nos de discussões sobre EMI e EAP (English for
Academic Purposes - Inglês para propósitos acadêmicos). É importante
destacar, no entanto, que apesar do EMI ser importantíssimo para a
internacionalização dos currículos, ele não pode ser visto como sinô-
nimo geral de internacionalização, pois nossas práticas são muito mais
amplas e não podem ser alocadas em algumas caixas fechadas e isoladas.
Não basta, no entanto, somente participar de eventos e discussões. Toda
uma teorização precisa ser feita, de forma conjunta, uma vez que há
muitos teóricos e pesquisadores na área de linguística aplicada inseri-
dos em contextos cujos processos de internacionalização vêm ocorren-
do há muito tempo. Sendo assim, o momento é agora, ou corremos
o risco de deixar que decisões sobre questões linguísticas envolvendo

234
a internacionalização sejam tomadas por gestores cujos conhecimentos
não envolvem as questões linguísticas e não se concentram na problema-
tização em torno da formação de professores, uma vez que não há inter-
nacionalização sem que se discuta o ensino e a aprendizagem de línguas.

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236
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

DIMENSÕES LEXICAIS DO TWITTER NAS


MANIFESTAÇÕES DE 7 E 12 DE SETEMBRO
DE 2021

Aline A. Zamboni Milanez, PUC-SP


Carlos Henrique Kauffmann, PUC-SP, GELC
Maria Claudia Nunes Delfino, PUC-SP, Fatec-PG
Patricia Pereira Bertoli, UERJ
Tamires Dártora, PUC-SP

RESUMO: O Sete de Setembro é a data que celebra a independência do Brasil


do colonialismo de Portugal. Num momento de incerteza que se instaurou no
mundo, em virtude da Covid-19 e suas demandas, o brasileiro vive também um
período de bipolaridade política, em que esquerda e direita parecem guerrear,
sobretudo virtualmente. Prometendo se tornar um novo marco dessa divisão,
o “sete de setembro” se tornou “hashtag” nas mídias sociais, utilizado por
representantes da direita e da esquerda em 2021. Este trabalho assume que as
mídias sociais refletem a identidade social do indivíduo e devem ser integradas
a pesquisas sobre análise do discurso, análise de sentimento, pensamento
crítico, sociedade e cultura, entre outros (FUCHS, 2014; MILLER, 2016;
RÜDIGER; DAYTER, 2020). Uma variedade de métodos com big data já foi
aplicada na análise de tuítes como mídias sociais em diversos contextos sócio-
históricos, como análise em grande escala de emoções (WENBO et al., 2012),
movimentos sociais (TINATI et al., 2014) e agitações civis (PROCTER; VIS;
VOSS, 2013). Este trabalho dá luz a duas lacunas significativas na literatura
prévia, uma relativa à escassez de estudos empíricos e uma segunda que diz
respeito à escassez de estudos baseados em grupos antagônicos representando
o mesmo assunto. Sendo assim, o presente trabalho apresenta uma análise
multidimensional lexical (BERBER SARDINHA, 2017), isto é, em que cada
tweet é mensurado em várias dimensões simultaneamente, e empírica a partir
de big data, baseada em uma grande amostra representativa da população de
tuítes veiculados com relação às manifestações pró e contra governo nos dias
7 e 12 de setembro de 2021. A extração de fatores, através de uma análise
fatorial, é interpretada em dimensões de variação lexical, identificadas por
meio dos campos temáticos subjacentes à coocorrência do léxico mais saliente
(BERBER SARDINHA; VEIRANO PINTO, 2019).

237
PALAVRAS-CHAVE: análise multidimensional lexical, big data, mídias
sociais.

Title: LEXICAL DIMENSIONS OF TWITTER POSTS ABOUT


SEPTEMBER 7th & 12th PROTESTS IN BRAZIL

ABSTRACT: September seventh is the day Brazil celebrates its independence


from Portugal’s colonialism. At a moment full of worldwide instability due
to Covid-19 and its demands, Brazilians also live in a moment of political
polarity, in which left and right seem to be in a war, especially online. With
the promise of becoming a landmark of this division, the ‘September seventh’
has become a “hashtag” in social media, used by representatives both from
right and left in 2021. This study takes into consideration that social media
reflect the individual social identity and must be connected to research about
discourse analysis, sentiment analysis, critical thinking, society and culture,
among others (FUCHS, 2014; MILLER, 2016; RÜDIGER; DAYTER,
2020). A variety of methods with big data has already been used on tweets
analysis in many social historical contexts, such as large-scale emotion analysis
(WENBO et al., 2012), social movements (TINATI et al., 2014) and civil
protests (PROCTER; VIS; VOSS, 2013). The present research highlights
two meaningful gaps in the previous literature, one concerning few empirical
studies and the other about the lack of studies based upon antagonic groups
representing the same subject. Thus, our research is based upon a lexical
multidimensional analysis (BERBER SARDINHA, 2017); in other words,
each tweet is simultaneously measured by many dimensions. Therefore, it is an
empirical study from a big data perspective, based upon a large representative
sample of the tweets population concerning the demonstrations in favor
and against the government on September 7th and 12th in 2021. The factor
extraction, through factorial analysis, is interpreted into dimensions of lexical
variation, identified through their thematic field beneath the cooccurrence of
the most salient lexis (BERBER SARDINHA; VEIRANO PINTO, 2019).
KEY-WORDS: lexical multidimensional analysis, big data, social media.

Introdução
Na tentativa de mobilizar simpatizantes pró-governo durante as
comemorações da independência do Brasil em 2021, apoiadores do
presidente da República propuseram uma manifestação pública que

238
pretendia envolver todo o país. Convites para a participação do público
e exaltações à manifestação foram feitos pelas mídias sociais, especial-
mente pelo Twitter. Em reação à manifestação, surgiu outra, a de 12 de
setembro, proposta por grupos opositores à primeira, utilizando-se da
mesma plataforma e para os mesmos fins.
O objetivo deste trabalho é analisar tuítes contendo ‘hashtags’39 que
se referem aos dois movimentos surgidos por efeito do 7 de Setembro,
verificando seus léxicos de forma simultânea nas várias dimensões dis-
cursivas dos participantes, por meio da análise multidimensional lexical
(BERBER SARDINHA, 2017). Assim, este estudo encontrou suporte
teórico em pesquisas sobre o uso de mídias sociais para fins políticos,
como as de Baker e McEnery (2015), Boulianne et al. (2020), Clarke
e Grieve (2017) e Sloan e Quan-Haase (2017). O trabalho também
encontra-se fundamentado pela Linguística de Corpus (BERBER
SARDINHA, 2004), o que abre caminho para a fundamentação teó-
rico-metodológica da Análise Multidimensional (AMD), proposta por
Biber (1985; 1988), desenvolvida por autores como Berber Sardinha
(2020) e Berber Sardinha, Kauffmann e Acunzo (2014). Mais especi-
ficamente, este estudo seguiu os passos da Análise Multidimensional
Lexical (AMDL), proposta por Berber Sardinha (2020), a fim de des-
vendar as dimensões discursivas de variação lexical, identificadas por
meio da interpretação dos campos semânticos subjacentes à coocorrên-
cia do léxico mais saliente em cada polo dimensional.

Fundamentação
As mídias sociais são espaços virtuais desenvolvidos principalmente
para a comunicação entre usuários, mas também servem para a divulga-
ção comercial e política. O Twitter está entre as mídias sociais mais po-
pulares. Em termos relativos, as “mídias sociais são usadas por uma em
cada três pessoas no mundo, com provável aumento de popularidade

39
Termo utilizado em mídias sociais para indexar uma expressão anteposta com o
símbolo ‘hash’ (#), que se torna um hyperlink agrupando outras publicações com
a mesma marcação.

239
em 2020, devido ao distanciamento físico, face à pandemia da Covid-
19”40 (RÜDIGER; DAYTER, 2020, p. 1).
O uso de plataformas sociais pode ser considerado tanto uma nova
maneira de socialização, quanto um novo espaço de demonstração das
identidades dos usuários e de grupos de pessoas que se identificam,
afetando o mundo de forma econômica, social e linguística. As mu-
danças causadas por essa nova maneira de interação têm sido alvo de
diversas pesquisas. Sloan e Quan-Haase (2017), por exemplo, editaram
uma coleção de 38 artigos sobre metodologias para coleta, desenho e
armazenamento de dados advindos de mídias sociais, pesquisas sobre
abordagens quantitativas e qualitativas para a análise dos dados e ferra-
mentas de pesquisa e análise. Já Rüdiger e Dayter (2020) editaram uma
coletânea com oito trabalhos baseados em Linguística de Corpus com
mídias sociais, relacionando-as a tópicos como a formação de comuni-
dades, variação linguística de subgrupos e o papel das imagens nas co-
municações. Há também pesquisas como a de Clarke e Grieve (2017),
que identificaram três dimensões de variação linguística relacionadas ao
grau de interatividade, antagonismo e atitudes presentes na linguagem
dos usuários, em um corpus composto por mensagens do Twitter de
teor racista e sexista. Em outro estudo, os mesmos autores (CLARKE;
GRIEVE, 2019) analisaram a variação estilística da conta de Twitter de
Donald Trump entre 2009 e 2018, pois, durante sua campanha para
a presidência dos Estados Unidos, Trump usou a plataforma para se
comunicar com seus partidários, detectando o quão conversacional, de
campanha eleitoral, engajado e de aconselhamento foi o discurso de
Trump naquele período.
Por sua vez, Baker e McEnery (2015) analisaram postagens do
Twitter por beneficiários de auxílios governamentais no Reino Unido,
coletando um corpus de tuítes com menções à série-documentário de
TV britânica Benefit Street, que tem como foco os moradores de uma

40
Do original: This means that social media platforms are used by one in three
people in the world, with popularity likely having surged in the face of the 2020
COVID-19 pandemic confining many users to their homes.

240
rua reconhecidamente desfavorecida na cidade de Birmingham, cujos
moradores recebem benefícios públicos. Eles identificaram os discursos
do pobre ocioso, do pobre como vítima e o rico que fica mais rico, re-
forçando a consolidação das mídias sociais, especificamente o Twitter,
como fonte para a obtenção de corpora e temáticas acerca do discurso
da atualidade. A plataforma Twitter, como visto, relaciona-se com a po-
lítica conforme atua como veículo da informação emitida por políticos
renomados, como o ex-presidente americano Donald Trump (CLARK;
GRIEVE, 2019) e o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (COSTA;
BERNARDI, 2021).
As mídias sociais são também consideradas como uma espécie
de “câmara de eco” por servirem como meio de propagação de ideias.
Boulianne et al. (2020) investigaram a relação de mídias sociais, es-
pecialmente o Twitter, com movimentos políticos de extrema direita.
Boulianne et al. (2020) destacaram o papel de mobilização popular da
mídia e a existência de um elo entre as mídias sociais e o populismo,
por propagar as informações em grupos específicos. De fato, as mídias
sociais da era digital facilitam esse processo de agrupamento ideológico
homogêneo, criando redes de comunicação onde não há conflitos de
interesse, apenas o “nós” e o “nosso”.
As mensagens publicadas em mídias sociais interessam pesquisas
na área da Linguística de Corpus (LC), por ser uma área que estuda
grandes quantidades de dados de origem natural, ou seja, da língua
em uso. Para a LC, a língua é um sistema probabilístico e as escolhas
lexicais dos falantes revelam os padrões da fala e, consequentemente,
as intenções do falante (BERBER SARDINHA, 2004). Os dados são
processados por programas computacionais que auxiliam na coleta e na
análise quantitativa dos dados. Nesta pesquisa, foi coletado um corpus
a partir de dois hashtags diferentes, com o uso da ferramenta Snscrape
para Python – que pesquisa conteúdos de mídias sociais, como perfis e
hashtags, e retorna os itens descobertos que são relevantes. Além disso, os
dados foram etiquetados e processados por programas computacionais
para a análise fatorial, componente chave da Análise Multidimensional,
à qual os dados foram submetidos.

241
Análise Multidimensional
A associação de uma abordagem estatística à análise linguística per-
mite a caracterização da língua a partir de várias dimensões que podem
descrever aspectos diferentes dentro de um mesmo texto. Proposta por
Biber, em 1985, a Análise Multidimensional parte da seleção de carac-
terísticas linguísticas a partir de padrões de co-ocorrência revelados por
uma análise fatorial exploratória, o que propicia a descrição de grandes
quantidades de dados linguísticos em diferentes registros. A interpreta-
ção dos grupos de características identificadas na análise fatorial identi-
ficar a função comunicativa por elas compartilhadas, designando cada
‘dimensão’, que são descritas como ‘parâmetros subjacentes de variação
linguística’41 (BIBER, 1985, p.338).
Com essa abordagem, o autor investigou a variação na língua ingle-
sa (LI) confrontando textos de variados registros para delinear as carac-
terísticas linguísticas típicas de cada registro. Ele obteve uma descrição
abrangente da LI e esclareceu como os vários registros variam em di-
mensões. A coocorrência de características linguísticas ocorre de forma
sistemática “porque atendem a alguma função comunicativa comum e
a interpretação da dimensão funcional subjacente às dimensões é uma
hipótese que deve ser confirmada através da análise qualitativa dos tex-
tos que compõem um corpus”42 (BIBER, 1988, p. 91).
Recentemente, Berber Sardinha propôs um novo modelo para
a Análise Multidimensional apresentada por Biber em 1988, ba-
seado na interpretação semântica de variáveis lexicais – a Análise
Multidimensional Lexical (AMDL), cujo objetivo é encontrar dimen-
sões discursivas, identificadas por meio da interpretação dos campos
semânticos subjacentes à coocorrência do léxico mais saliente. O autor

41
underlying parameters of linguistic variation
42
a cluster of features co-occur frequently in texts because they are serving some
common function in those texts. At this point, micro-analyses of linguistic fea-
tures become crucially important. Functional analyses of individual features in
texts enable identification of the shared function underlying a group of features
in a factor analysis.

242
investigou o uso dos adjetivos American e Brazilian, bem como seus
colocados – palavras que ocorrem perto do nódulo – para identificar
os parâmetros de representação de identidade nacional e cultural pe-
los quais os EUA e o Brasil são representados nas produções textuais
em inglês a partir do século XIX disponibilizados pelo Google Books
(BERBER SARDINHA, 2019; 2020). Nessa perspectiva, a AMDL,
ora empregada, considera como variáveis (unidades de análise) apenas
as palavras ou multipalavras de conteúdo (substantivo, verbo, adjetivo e
advérbio) para a identificação das dimensões de variação.
O estudo de Berber Sardinha, descrito acima, e outros (BERBER
SARDINHA, 2016;
2017; DELFINO; FONSECA DE ARAÚJO; BERBER
SARDINHA, 2018; KAUFFMANN, 2020) inspiraram este estudo,
que tem por objetivo promover um panorama discursivo presente nas
postagens do Twitter em torno das manifestações do Sete de Setembro,
em 2021, que opuseram manifestantes contra e a favor do governo.

Metodologia
A primeira etapa do estudo foi a coleta dos tuítes da plataforma da
rede social Twitter, por meio de programas que operam no sistema ope-
racional UBUNTU. A plataforma GitHub e o extrator Snscrape foram
utilizadas associadas a um script específico. Foram coletados 30.086
tuítes, sendo 14.815 que utilizaram a hashtag 7desetembrovaisergigan-
te e 15.271 que utilizaram a hashtag 12desetforabolsonaro. Os tuítes
foram salvos em formato JSON e compuseram o corpus deste estudo,
sendo chamando de 7_12_9, em referência aos dias (7 e 12) e ao mês
(9) quando essas manifestações foram realizadas. Cada tuíte carrega
inúmeras informações, como textos, imagens e emojis. Porém, neste
estudo decidiu-se apenas utilizar os textos para análise.
A partir desses dados, foi realizada a AMDL. A parte estatística que
envolve a AMDL é dividida em três partes: pré-processamento do cor-
pus, análise fatorial inicial e análise fatorial final. No pré-processamento,

243
o corpus 7_12_9 foi etiquetado pelo programa TreeTagger, que faz a
etiquetagem automática das palavras, unificando-as por lemas ou for-
mas canônicas, que reúnem as flexões nominais e verbais de mesma ori-
gem lexical. Os textos foram normalizados por 1.000 palavras, para que
textos de tamanhos diferentes pudessem ser comparados. Em seguida,
as variáveis foram selecionadas a partir do seu valor de comunalidade43.
Na análise fatorial inicial, as contagens normalizadas das variáveis
selecionadas do corpus 7_12_9 foram processadas no programa SAS. A
análise fatorial indicou nove fatores, que produziu nove grupos de va-
riáveis e respectivas cargas fatoriais. Escores individuais dos fatores por
texto foram gerados com base na soma das cargas fatoriais padronizadas
de cada variável integrante do fator. Isso possibilitou a análise qualitati-
va dos textos e a consequente interpretação dos fatores em dimensões de
variação, recebendo diferentes rótulos de natureza discursiva.
Análises de variância (ANOVAs) também foram feitas sobre os es-
cores médios das nove dimensões em cada texto do corpus, para iden-
tificar a diferença significativa entre os textos (p < 0,05) quando uma
dimensão é tomada como variável independente, e também para ve-
rificar sua influência na variação lexical encontrada, calculando-se os
valores de R².

Resultados e discussão
Os nove fatores extraídos da análise fatorial rotacionada foram in-
terpretados em termos de dimensões de variação lexical discursiva, con-
forme visto a seguir.

Dimensão 1- Ação política x Demonização da imprensa

Quadro 1: Distribuição das variáveis no fator 1 (corte em 0,38)


Positivas: apoiar 0,58; pensar 0,57; perder 0,54; entender 0,53; político 0,52; amigo

43
Comunalidade é a proporção de variabilidade de cada variável que é explicada pelo fator. Quanto
maior a comunalidade, maior será o poder de explicação daquela variável pelo fator. Em estudos de
AMD considera-se retirar variáveis cuja comunalidade esteja abaixo de 0.15 (Delfino, 2021)

244
0,52; precisar 0,52; depois 0,51; coisa 0,51; sempre 0,51; sair 0,51; acontecer 0,51;
conseguir 0,51; tempo 0,51; nunca 0,50; próximo 0,49; parte 0,49; hora 0,49; golpe
0,49; esquerda 0,49; ainda 0,48; voltar 0,48; pedir 0,48; gente 0,48; volta 0,48; de-
fender 0,48; país 0,48; enquanto 0,47; acreditar 0,47; apenas 0,47; haver 0,47; favor
0,47; pouco 0,46; tentar 0,46; achar 0,46; direita 0,46; mostrar 0,46; ajudar 0,46;
estado 0,46; lado 0,45; muito 0,45; tanto 0,45; esperar 0,45; pessoa 0,45; deixar 0,45;
derrubar 0,45; tirar 0,44; colocar 0,44; assim 0,44; governo 0,44; maior 0,44; tomar
0,43; lembrar 0,43; conta 0,43; democracia 0,43; então 0,43; mesmo 0,43; mundo
0,43; passar 0,43; amanhã 0,42; história 0,42; força 0,42; cara 0,42; momento 0,42;
também 0,42; usar 0,42; antes 0,41; casa 0,41; ficar 0,41; mudar 0,41; chamar 0,40;
saber 0,40; hoje 0,40; chegar 0,40; parar 0,40; aqui 0,40; ditadura 0,40; certo 0,39;
frente 0,39; falar 0,39; real 0,39; começar 0,39; preciso 0,39; existir 0,38; público 0,38
Negativas: lixar -1,06; salvo -0,94; cultura -0,91; contexto -0,88; conivente -0,86;
record -0,83; satanista -0,79; descente -0,79; aposta -0,75; rodrigar -0,69; tremer
-0,67; jornal -0,66; jornalismo -0,59; passaporte -0,54; vôlei -0,54; escutar -0,52;
urubu -0,51; comando -0,48; grosso -0,45; contagem -0,45; filmar -0,42; cruz -0,41;
tirania -0,39
Fonte: Elaborado pelos autores

O quadro 1 apresenta as 136 variáveis lexicais carregadas no fator 1.


O polo positivo congregou lemas verbais identificados com conteúdos
políticos ou manifestações, tais como apoiar, pensar, perder, entender e
precisar. Simultaneamente, ocorreu léxico de cunho político, como por
exemplo político, golpe, esquerda e país. Assim, tal polo foi intitulado
Ação política.
Em oposição ao polo positivo, no fator 1 encontram-se agrupados
no polo negativo termos associados à imprensa, como cultura, record,
jornal, jornalismo e filmar, ao mesmo tempo que um grupo de palavras
com prosódia negativa, como lixar, conivente, satanista e urubu. Esse
polo recebeu o nome de Demonização da imprensa.

Exemplo da Dimensão 1 (positivo): Ação política


“Eu quero que vá tomar no cú quem está tentando boicotar a manifestação
do dia 12!/”Ain mas a esquerda vai tomar a manifestação\” ; (...) não é
para defender candidato de esquerda, de direita, ou de centro, é para defen-
der a democracia.”, #12setforabolsonaro

245
Dimensão 1 (Negativo): Demonização da imprensa
“#RecordTV#BandJornalismo#7deSetembroVaiSerGigante
#doriagenocida#Fantastico#GloboNews#ISTOEGENTElLIXO
#JornalNacional#CPIdaPandemia#jornalhoje”

Dimensão 2: Crítica ao Judiciário x Terceira via

Quadro 2: Distribuição das variáveis no fator 2 (corte em 0.38)


Positivas: corte 0,96; prender 0,83; constituição 0,79; tribunal 0,78; cumprir 0,76;
justiça 0,76; supremo 0,76; ordem 0,71; crime 0,70; constitucional 0,69; ministro
0,67; ilegal 0,63; toga 0,63; instituição 0,62; opinião 0,62; permitir 0,62; prisão 0,61;
inquérito 0,60; processo 0,60; decisão 0,60; expressão 0,57; federal 0,56; deputado
0,54; antidemocrático 0,54; advogado 0,53; rasgar 0,52; agir 0,52; juiz 0,52; proibir
0,50; roberto 0,50; artigo 0,50; ameaça 0,49; moral 0,49; criminoso 0,48; investigar
0,48; preso 0,46; censura 0,44; ataque 0,43; forma 0,43; congresso 0,42; impedir
0,40; mandar 0,39; senador 0,38; violento 0,38
Negativas: terceiro -0,58; turno -0,55; subir -0,52; branco -0,50; galera -0,50; arre-
pender -0,48; burro -0,46; adeus -0,45; ideia -0,43; louco -0,43; foto -0,42; melhor
-0,40; domingo -0,38
Fonte: Elaborado pelos autores

No quadro 2 observa-se as 74 variáveis carregadas no fator 2.


Nas variáveis do polo positivo estão concentradas palavras relativas
ao universo jurídico, como corte, constituição, tribunal, justiça e
supremo. Entre os principais lemas verbais estão prender, cumprir,
permitir, rasgar, agir e proibir e investigar. A análise dos tuítes que
marcaram os maiores escores no polo indica que existe um teor crítico
e negativo voltado para instituições e tribunais do Judiciário brasilei-
ro. Considerando esse viés discursivo, o polo foi rotulado Crítica ao
Judiciário.
Já o polo negativo apresenta um conjunto mais difuso de palavras,
fazendo referência a eleições (e.g. terceiro, turno e branco). O teor dos
tuítes mostra um discurso de estímulo ao comparecimento à manifesta-
ção de 12 de setembro. O polo foi interpretado como Terceira via.

246
Exemplo Dimensão 2 (positivo): Crítica ao Judiciário
“O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, afirmou que “decisão da Justiça se
cumpre”, (...) Alexandre de Moraes, do STF https://t.co/RpdC7sW hd”, #12setforabolsonaro

Exemplo Dimensão 2 (negativo): Terceira via


“Por baixo desta máscara não há só carne... Por baixo desta máscara há uma ideia, ... E ideias
são à prova de bala! #12SetForaBolsonaro#DomingoForaBolsonaro”, #12setforabolsonaro

Dimensão 3: Anseio democrático x Linguagem abusiva

Quadro 3 – Distribuição das variáveis no fator 3 (corte em 0.38)


Positivas: união 1,04; democracia 0,81; defesa 0,77; direto 0,74; objetivo 0,73; di-
ferença 0,72; comum 0,70; discutir 0,69; reunir 0,68; foco 0,64; importante 0,61;
aderir 0,61; independente 0,58; unir 0,58; amplo 0,57; centro 0,55; valor 0,52; mo-
vimento 0,52; ideologia 0,51; diferente 0,51; atar 0,49; presente 0,47; marco 0,44;
social 0,41; oposição 0,40; decidir 0,38
Negativas: vagabundo -0,63; corno -0,57; traidor -0,57; FALSO -0,53; mito -0,53;
mentiroso -0,52; cornar -0,51; comprar -0,51; gado -0,50; bando -0,50; bandido
-0,49; mentir -0,48; confiar -0,47; imbecil -0,47; miliciano -0,47; boca -0,46; aguen-
tar -0,45; quanto -0,45; carta -0,44; sentir -0,44; culpa -0,44; conhecer -0,42; enga-
nar -0,41; medo -0,40; chifrudo -0,40
Fonte: Elaborado pelos autores

O quadro 3 exibe as 65 variáveis carregadas no fator 3. O polo po-


sitivo apresenta um vocabulário marcado pela política, com viés que o
alinha às ideias democráticas, como união, democracia, defesa, comum,
sendo rotulado de Anseio democrático. Já o polo negativo da dimensão
apresenta várias palavras depreciativas empregadas para descrever adver-
sários políticos. Assim, esse polo foi definido como Linguagem abusiva.

Exemplo Dimensão 3 (negativo): Linguagem abusiva


“Quanto vocês querem apostar que os cornos, quer dizer bolsominion, vão usar um chifre
igualzinho a esse no dia 7? Eles copiam tudo dos istadus unidus. Esse chifrudo aí da foto
vai pegar (...)#BolsonaroCorno #bolsonarochifrudo”, #12setforabolsonaro

247
Dimensão 4: Cenas das manifestações x Processo eleitoral

Quadro 4 – Distribuição das variáveis no fator 4 (corte em 0.38)


Positivas: ônibus 0,80; esplanada 0,77; bloqueio 0,77; cidade 0,73; polícia 0,64;
postar 0,61; divulgar 0,58; porto 0,57; tocar 0,52; reagir 0,51; caminhoneiro 0,48;
robô 0,48; show 0,48; link 0,46; ligar 0,46; dose 0,45; linha 0,44; encontrar 0,44;
careca 0,44; seguidor 0,43; solto 0,43; quebrar 0,41; seguinte 0,40; pequeno 0,38;
total 0,38
Negativas: voto -0,68; pauta -0,60; candidato -0,58; votar -0,57; partido -0,53;
respeitar -0,52; concordar -0,52; juntar -0,52; eleito -0,52; inimigo -0,52; simples
-0,51; política -0,51; democrático -0,50; merecer -0,49; incompetente -0,49; impor-
tar -0,48; corrupto -0,46; vergonha -0,43; eleitoral -0,43; populista -0,43; campanha
-0,42; motivo -0,42; eleitor -0,42; desgoverno -0,41; gomar -0,39; escolher -0,38
Fonte: Elaborado pelos autores

O quadro 4 apresenta as 62 variáveis lexicais que carregaram no


fator 4. Entre as variáveis que compõem o polo positivo estão palavras
que descrevem acontecimentos vinculados à manifestações de rua, tais
como ônibus, esplanada, bloqueio, cidade e polícia. A partir de tal in-
terpretação, o polo da dimensão foi nomeado Cenas das manifestações.
No polo negativo há diversas palavras ligadas à eleição e a processo
eleitoral, como voto, candidato e votar. Por essa razão, foi denominado
Processo eleitoral.

Exemplo Dimensão 4 (positivo): Cenas das manifestações


“Para quem não tem caminhoneiros no whatsapp e só se informa por tv, quero dizer que
Brasília está lotada de caminhoneiros e carros, p bloqueio não impediu o povo de carro de
chegar a Esplanada. Tá lindo!#7deSetembroVaiSerGigante”, #7desetembrovaisergigante

Dimensão 5: Ufanismo patriótico

Quadro 5 – Distribuição das variáveis no fator 5 (corte em 0.38)


Positivas: pátria 0,91; amar 0,88; abençoar 0,77; luta 0,77; deus 0,76; orgulhar 0,75;
orgulho 0,72; independência 0,70; lindo 0,67; nação 0,66; jamais 0,65; filho 0,63;
amarelo 0,63; acima 0,61; hino 0,61; patriota 0,60; comunismo 0,60; homem 0,58;
coração 0,57; lutar 0,57; vermelho 0,57; guerra 0,53; feliz 0,53; criança 0,53; futuro
0,52; emanar 0,52; livre 0,51; jesus 0,50; gigantesco 0,49; esperança 0,48; rumo 0,48;

248
desistir 0,48; patriotismo 0,47; verde 0,47; terra 0,47; levantar 0,47; família 0,47;
contar 0,46; gazeta 0,45; neto 0,44; proteger 0,43; liberdade 0,43; gigante 0,41; his-
tórico 0,41; vida 0,40; bandeira 0,39; setembro 0,39; olho 0,38
Negativas: resposta -0.47; jornalista -0,45; petista 0,41
Fonte: Elaborado pelos autores

O quadro 5 lista 56 variáveis que carregaram no fator 5, distri-


buídas de forma desigual, com 52 no polo positivo e apenas 4 no polo
oposto – número este considerado insuficiente para a elaboração de
uma interpretação robusta do polo negativo. Assim, considerando ape-
nas o polo positivo, que contém diversas palavras associadas a ideias
ligadas à pátria e a outros símbolos, tais como pátria, luta, deus, orgulho
e independência, a dimensão foi batizada de Ufanismo patriótico. O
exemplo a seguir é o de um tuíte com escore relevante nessa dimensão.

Exemplo Dimensão 5: Ufanismo patriótico


“(...) Brasil acima de tudoDeus acima de todos ◻◻◻◻◻◻ Porém, se a Pátria amada
For um dia ultrajada Lutaremos sem temor ◻◻◻#Brasil #DeusNoControle
#Dia7VaiSerGIGANTESCO#Dia07VaiSerGIGANTE#7deSetembroVaiSerGigante

Dimensão 6: Convocação pública x Ofensa

Quadro 6 – Distribuição das variáveis no fator 6 (corte em 0.38)


Positivas: manifestante 0,91; marcar 0,73; apoiador 0,68; grupo 0,65; policial 0,64;
militar 0,59; janeiro 0,589; confirmar 0,58; vídeo 0,56; trabalho 0,56; comparti-
lhar 0,55; mulher 0,54; local 0,54; ação 0,51; criticar 0,5; armar 0,48; avenida 0,47;
convocar 0,46; invadir 0,46; violência 0,45; partir 0,44; manifestar 0,44; data 0,43;
presença 0,42; organizar 0,42; rede 0,41; lotar 0,42; apoio 0,41; onde 0,40; participar
0,39; assistir 0,38; tipo 0,38
Negativas: bolsa -0,63; eleição -0,60; erro -0,54; aceitar -0,50; canalha -0,47; maia
-0,45; acordar -0,44; reeleito -0,44; renunciar -0,43; sujeito -0,42; ladrão -0,41; divi-
dir -0,4; bastar -0,38
Fonte: Elaborado pelos autores

O quadro 6 mostra que o polo positivo apresenta um léxico com o


foco voltado para os participantes e locais das manifestações, e.g.: mani-
festante, apoiador, grupo, policial e militar. Ao mesmo tempo, emergem

249
lemas verbais mobilizadores, tais como marcar, confirmar, compartilhar,
criticar e armar. O polo positivo foi denominado Convocação pública.
No polo oposto da dimensão, há um núcleo de palavras utilizadas para
ofender adversários políticos, como erro, canalha, sujeito, ladrão e mer-
da, associados a termos como bolsa, eleição, aceitar e maia. A dimensão
foi intitulada Ofensa.

Dimensão 6 (positivo): Convocação pública


“@helderbarbalho para impedir a participação dos policiais militares na manifes-
tação do dia 7Setembro, determinou que TODOS os policiais de FOLGA estejam de
prontidão nas unidades militares a partir das 8h (...) #7deSetembroVaiSerGigante”,
#7desetembrovaisergigante

Dimensão 7: Problemas do país

Quadro 7 – Distribuição das variáveis no fator 7 (corte em 0.38)


Positivas: inflação 1,12; fome 1,07; desemprego 1,03; crise 1,00; gasolina 0,91; dólar
0,89; econômico 0,86; morto 0,77; quase 0,73; economia 0,70; caos 0,65; morte 0,60;
população; 0,60; morrer 0,59; incompetência 0,59; problema 0,58; governar 0,55;
destruir 0,53; pandemia 0,52; aumentar 0,52; preço 0,52; meio 0,51; milhão 0,49;
jogar 0,48; continuar 0,46; trabalhar 0,46; vacina 0,46; caro 0,44; governador 0,40
Negativas: senhor -0,44; morar -0,42; inclusive -0,41
Fonte: Elaborado pelos autores

A dimensão 7 apresenta apenas um polo preponderante. Das 36 va-


riáveis que carregaram no fator 7, apenas as 32 do polo positivo foram
consideradas. Os termos com maiores cargas representam dificuldades
enfrentadas pelo o país: inflação, fome, desemprego, crise e gasolina. A
dimensão foi nomeada Problemas do país. O exemplo abaixo representa
esta dimensão.

Exemplo Dimensão 7: Problemas do país


“Boa tarde. 580 mil mortos Desemprego recorde Gasolina 7 reais Dólar a 5 e vrau Mais
de 10 milhões passando fome Mais 50 milhões insegurança alimentar Vacinas atrasadas
Inflação Mas não vou pedir FORA BOLSONARO - porque o MBL está pedindo. (...)
#12setforabolsonaro

250
Dimensão 8: Crítica à conduta política x Sentimento popular
Quadro 8 – Distribuição das variáveis no fator 8 (corte em 0.38)
Positivas: combate 0,85; combater 0,83; estimação 0,75; lava 0,74; petismo 0,724;
aliar 0,634; desculpa 0,61; corrupção 0,58; pano 0,55; livrar 0,53; interessar 0,50;
entregar 0,50; abandonar 0,50; chino 0,48; código 0,47; honesto 0,46; trabalhador
0,46; parir 0,44; rabo 0,44; bolso 0,44; chifre 0,41; protestar 0,39; inteiro 0,39; ca-
ráter 0,39; único 0,39
Negativas: popular -0,6; desespero -0,59; ouvir - 0,47; derreter -0,45; absurdo -0,44;
fala -0,43; fechar -0,41; seguir -0,41; ontem -0,39
Fonte: Elaborado pelos autores

O quadro 8 apresenta 49 variáveis lexicais em dois grupos opostos.


No polo positivo há lemas como combater, aliar, livrar, interessar, entre-
gar, combinados com termos como combate, lava, petismo, desculpa,
corrupção; e foi rotulada de Crítica à conduta política. No polo negati-
vo, a dimensão foi rotulada de Sentimento popular por apresentar pa-
lavras que expressam reações emocionais por parte da população, como
popular, desespero, absurdo e coragem, ocorrendo simultaneamente
com os lemas verbais ouvir, derreter, seguir, tornar, dormir.

Exemplo Dimensão 8 (positivo): Crítica à conduta política


“@direitaunida1 @levindooficial @BetinaSz @lhrdlhrd @partidonovo30
@joaoamoedonovo O BolsoPetismo tem desculpa pra tudo. E por meio de manifestação
Bolsopetista vai rolar? Kkkk piadaBora pro impeachment do
BolsoFraude.#12SetForaBolsonaro”, #12setforabolsonaro

Dimensão 9: Conspiração da mídia x Responsabilidade institucional


Quadro 9 – Distribuição das variáveis no fator 9 (corte em 0.38)
Positivas: mídia 0,92; imprensa 0,86; militante 0,78; hipócrita 0,63; matar 0,63; pes-
quisa 0,62; comunista 0,61; narrativa 0,61; esquerdista 0,60; contrário 0,59; deses-
perar 0,54; imagem 0,54; lixo 0,54; chorar 0,50; esquerdo 0,46; odiar 0,45; nordeste
0,45; roubar 0,45; sistema 0,44; velho 0,42; mentira 0,40; verdade 0,38
Negativas: amor -0,70; alto -0,55; semana -0,54; cometer -0,53; pedido -0,53; res-
ponsabilidade -0,53; forte -0,49; planalto -0,43; nota -0,42; chance -0,41; institucio-
nal -0,41; senado -0,41; recuar -0,38
Fonte: Elaborado pelos autores

251
O quadro 9 lista as 41 variáveis que carregaram no fator 9. O polo
positivo apresenta léxico ligado a uma imagem caricaturizada e negativa
do opositor político, com palavras como mídia, imprensa, militante e
hipócrita, associados aos lemas verbais matar, desesperar, chorar e odiar.
Por essa razão foi denominado Conspiração da mídia. No polo oposto,
estão termos que promovem apoio ou de posicionamento neutro em re-
lação aos poderes da República, como amor, pedido, responsabilidade,
planalto, nota, chance, institucional e senado, ao lado de verbos como
cometer, recuar e preparar. O polo foi rotulado de Responsabilidade
institucional.

Dimensão 9 (positivo): Conspiração da mídia


“#ProvaNaIlha Isso o lixo da @tvglobo não mostra a #GloboNews lixo e uma pá de jorna-
listas Nutellas e comunistas (...) segura aí mídia PODRE e suja! A #GloboLixo e as outra
emissoras de TV comunistas! #7deSetembroVaiSerGigante

Dimensão 9 (negativo): Responsabilidade institucional


“Para Carlos Ayres Britto, que foi ministro do STF entre (...) crimes de responsabilidade. E aí,
@ArthurLira_? Se ficar inerte, tb cometerá crime de responsabilidade.#12SetForaBolsonaro

Em síntese, podemos dizer que o discurso dos tuítes acerca das


manifestações do feriado da Independência, de forma a compreendê-lo
como expressão das forças políticas atuantes no cenário brasileiro em
setembro de 2021, está representado nas 09 dimensões explicitadas até
aqui. Todavia, para avaliar a importância desses resultados cabe verificar
em que medida as diferenças ou tendências identificadas nas dimensões
conseguem explicar a variação linguística encontrada no corpus empre-
gado nesta pesquisa. Essa avaliação é realizada por intermédio dos testes
de ANOVA e equivalentes, como o GLM, baseado no modelo linear
generalizado.
Os testes ANOVA apontam para dois discursos políticos claramen-
te discerníveis entre si, uma vez que todas as dimensões, com exceção da
Dimensão 6, mostraram um valor de p abaixo de 0,05, ou seja, tais dife-
renças têm valor estatisticamente significativo. Quanto à relevância das
diferenças para explicar a variação linguística encontrada, nota-se que

252
as principais dimensões a serem destacadas são as dimensões 5 e 2, que
correspondem primeiramente a Ufanismo patriótico (R² = 34,85%),
seguida da polarização Anti-Judiciário x Terceira via (R² = 4,56%), ou
seja, são os principais temas emergentes no corpus pesquisado.
Os mesmos testes apontam para uma consolidação de duas posições
políticas a partir das dimensões encontradas: um polo pró-Bolsonaro e
outro, anti-Bolsonaro. O discurso concentrado no polo pró-Bolsonaro
pode ser descrito como expressão de um ufanismo patriótico que divul-
ga cenas de suas manifestações e uma pauta contra o Poder Judiciário, a
mídia e a classe política, com frequência por meio de linguagem abusiva
e ofensa. Em contraste, o discurso encontrado no polo anti-Bolsonaro
poderia ser descrito como expressão de uma terceira via que enxerga
vários problemas no país, mas defende uma pauta ligada à responsabi-
lidade institucional, ao processo eleitoral e ao anseio democrático, por
meio da ação política e da convocação pública.

Considerações finais
O feriado da Independência havia perdido o sentido cívico-militar
de mobilização popular quando Bolsonaro e apoiadores propuseram,
em 2021, utilizar a efeméride para manifestações a favor do presidente.
A essa manifestação do dia 7, contrapôs-se a manifestação do dia 12,
como reação política proposta por grupos com visão divergente à posi-
ção bolsonarista. Infelizmente, como os partidos de esquerda optaram
por não se manifestar, não foi possível analisar e comparar a posição
política expressa pela esquerda brasileira no período estudado.
Nesse contexto, o presente trabalho apresentou uma análise mul-
tidimensional lexical (BERBER SARDINHA, 2020) de uma amostra
representativa de tuítes veiculados com referência às manifestações pró
e contra Bolsonaro, mensuradas sob várias dimensões simultaneamen-
te, subjacentes ao embate retórico nas mídias sociais entre duas posições
políticas contrárias. A AMDL revelou nove dimensões, destacando os
principais temas tratados.

253
Essa polarização é capaz de explicar quase 40% da variação lexical
pesquisada, com destaque ao apelo muito forte de uma dimensão de
ufanismo patriótico da parte de apoiadores de Bolsonaro. Os outros
60% dos tuítes não permitem ser explicados unicamente pelo tipo de
posição política do texto expresso pelas dimensões, que detectaram a
coocorrência estatística complementar dos polos dimensionais. Todas
as outras dimensões somadas não chegam a explicar 5% da variação
encontrada, o que nos leva a supor que a variação do corpus é pou-
co determinada pela posição política adotada pelo produtor de tuítes
políticos.

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255
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

INTERAÇÃO E AUTONOMIA EM MEIO


REMOTO NA APRENDIZAGEM DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA: O QUE APRENDEMOS COM A
DISTÂNCIA FÍSICA DURANTE A PANDEMIA?

Carolina Morais Ribeiro da Silva- UFC

RESUMO: Diante da necessidade em se reprogramar espaços de prática para


as habilidades linguísticas de aprendizes de inglês, durante a pandemia da
covid-19, este trabalho investigou duas turmas de nível A1 da Casa de Cultura
Britânica da Universidade Federal do Ceará. Foram utilizados um questionário
on-line (INST1), composto por 23 perguntas, aplicado às turmas investigadas,
as interações no ambiente virtual google classroom (INST2) e um diário de
observação das interações síncronas no google meet (INST3). Os dados foram
analisados à luz da teoria fundamentada nos dados (TFD) e discutidos de acordo
com os estudos sobre autonomia, teorias de aprendizagem de língua estrangeira
e os estudos sobre interação, baseados na teoria sociocultural. Aplicando o
método da comparação constante (MCC), os incidentes lexicais (IL) foram
extraídos dos instrumentos, o que reforçou a contribuição do acesso a recursos
digitais como vídeos, buscadores, filmes e livros para uma célere compreensão
da língua. Dentre os IL referentes ao fenômeno do uso do ambiente virtual para
promoção da autonomia dos alunos, o incidente flexibilidade emergiu pelo uso
de recursos virtuais nas aulas, uma vez que a sala de aula invertida foi utilizada
durante o semestre, resultando na promoção da autonomia dos aprendizes, pois
estes assistiram às aulas em turnos mais convenientes, tornando-se responsáveis
por seu processo de aprendizagem. O incidente autonomia emergiu como
indicador dos fenômenos ligados ao uso da sala de aula invertida e da oferta de
insumo em momento anterior aos encontros síncronos. 78,6% dos estudantes
consideravam-se aprendizes autônomos, levando-se a compreender o processo
de aquisição da autonomia como atividade a ser aprimorada, uma vez que este
atua diretamente com a interação. 100% dos respondentes afirmaram que a
interação com os colegas auxilia sua aprendizagem, declarando sentirem-se
prejudicados pela privação desta em meio físico, apesar de pontuarem como
positiva a flexibilidade alcançada no estudo individual.
PALAVRAS-CHAVE: Interação, Inglês como língua estrangeira, Autonomia,
Metodologias Ativas.

256
ABSTRACT: Due to the need to reprogram practice spaces for the language
skills of English learners, during the covid-19 pandemic, this research
investigated two A1 level classes at the Culture House language institute at
the Federal University of Ceará. As instruments of data analysis, there were an
online survey (INST1), consisting of 23 questions applied to the investigated
classes, the interactions in the virtual environment google classroom (INST2)
and the observation diary of synchronous meetings through google meet
(INST3). Data were analyzed in the light of Grounded Theory (GT) and
discussed according to studies on autonomy, theories of foreign language
learning and studies on interaction, based on sociocultural theory. Applying
the constant comparison method (CPM), lexical incidents (IL) were extracted
from the instruments, which reinforced the contribution of access to digital
resources such as videos, search engines, movies and books for a quick
understanding of the language. Among the IL referring to the phenomenon of
using the virtual environment to promote students’ autonomy, the flexibility
incident emerged through the use of virtual resources in classes, since the
flipped classroom was used during the semester, which started to promote
the autonomy of students, as they attended classes in more convenient shifts,
becoming responsible for their learning process. The autonomy incident
emerged as an indicator of the phenomena linked to the use of the flipped
classroom and the provision of input prior to the synchronous meetings.
78.6% of the students considered themselves autonomous learners, leading
them to understand the process of acquiring autonomy as an activity to be
improved, since it is acting directly with interaction. 100% of the interviewees
affirmed that the interaction with colleagues helps their learning, declaring
that they feel harmed by the deprivation of this in the physical environment,
although they point out the flexibility achieved in the individual study as
positive.
KEYWORDS: Interaction, English as a foreign language, Autonomy, Active
Methodologies.

Introdução
A pandemia delineou novas formas de interação nas esferas de en-
sino de línguas estrangeiras. No contexto do ensino de língua inglesa, a
distância física proporcionou o uso de metodologias ativas de ensino, em
que alunos ocuparam um lugar de destaque, exercendo sua autonomia

257
e protagonismo durante o processo de aprendizagem. Durante o ensino
remoto emergencial (doravante ERE), as aulas passaram a ser lecionadas
on-line e, para que as quatro habilidades linguísticas em língua estran-
geira pudessem ser trabalhadas (produção oral e escrita e compreensão
oral e escrita), fez-se necessário o uso de recursos digitais que viabilizas-
sem não somente a apresentação do insumo sobre os conteúdos, mas
também questões relacionadas à forma de se trabalhar (como atividades
em duplas ou individuais, atividades complementares para a prática da
compreensão auditiva ou produção escrita e atividades que envolvessem
outras habilidades linguísticas).
A noção de metodologias ativas começou a ser discutida na década
de 1980, em que houve oposição às metodologias tradicionais que evi-
denciavam a transmissão de conhecimentos em um movimento unila-
teral professor-aluno. Em métodos de ensino mais tradicionais, como,
por exemplo, o método da gramática-tradução, o professor ensinava as
regras gramaticais e os alunos deviam traduzir textos para aprender a
língua-alvo. (LARSEN-FREEMAN, 2000). Em oposição aos métodos
mais tradicionais, as responsabilidades do processo ensino-aprendiza-
gem são divididas entre professor e aluno, e o aprendiz desenvolve, além
da língua-alvo, a capacidade de autoaprendizagem (MOTA; ROSA,
2018). Essa autoaprendizagem emerge não somente do estudo e da in-
vestigação por parte do aluno, mas também da atividade interativa em
sala de aula. Swain (1985) afirma que aprender uma língua estrangeira
é mais eficaz quando a língua aprendida é utilizada de forma interativa.
De acordo com Ellis (1993), ao interagir em sala de aula, o aprendiz
consegue praticar a língua e verificar sua compreensão, uma vez que se
encontra imerso em um contexto de fala real. O papel do aluno, de pas-
sivo, passa a ativo. Outra mudança de comportamento em sala de aula
pode ser vista no papel do professor, que passa “de transmissor do conhe-
cimento para monitor, com o dever de criar ambientes de aprendizagem
repletos de atividades diversificadas.” ( MOTA; ROSA, 2018, p. 263).
Há diversas definições para as metodologias ativas. É importante
salientar que, o que torna uma metodologia ativa é o fato de o processo

258
de aprendizagem ser um processo ativo, ou seja, o aprendiz precisa pro-
tagonizar esse processo. Brown (2007) define essa aprendizagem ativa
como um processo em que os alunos decidem sobre aspectos de sua
aprendizagem. Para Bakir (2011), essa autorregulação da aprendizagem
provoca não somente o pensamento crítico do aluno, como também
sua criatividade.
As metodologias ativas possuem fortes laços com a psicologia cog-
nitiva, em especial com os conceitos de metacognição e socioconstruti-
vismo. A metacognição reforça “a importância da reflexão e da autono-
mia do aluno no processo de aprendizagem” (MOTA; ROSA, 2018),
já o socioconstrutivismo faz com que o aprendiz seja visto como “um
participante ativo na construção do conhecimento”(FIGUEIREDO,
2019, p.61). Com isso, temos que, além de prática linguística, a prática
de uma língua é uma prática social, sendo a interatividade o fator que
provocará a aprendizagem do aluno.
Um dos pilares que sustentam a aprendizagem a partir da interação
social baseiam-se nos estudos de Vygotsky (2005), em que o indiví-
duo aprende a partir da sua interação com outros indivíduos, no caso
de uma sala de língua estrangeira, com seus colegas e com a interação
com o próprio meio. A aprendizagem é possibilitada por essa interação,
uma vez que gera novas experiências e essas experiências levam à novas
realidades que podem ser vividas e exploradas dentro do contexto do
próprio indivíduo.
Acreditamos que a aprendizagem significativa ocorre no intervalo
da chamada Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), assimilan-
do o conhecimento real e o potencial, sendo o primeiro aquele que o
aprendiz consegue aplicar sozinho e o segundo aquele que é aplicado
mediante auxílio dos outros. Esse intervalo poderá ser analisado com
maior cautela através da aplicação da Sala de Aula Invertida, uma vez
que a valorização do protagonismo do aprendiz poderá trazer resultados
positivos do que concerne a aplicação dos conhecimentos adquiridos
durante as aulas, seja por meio das videoaulas, seja por meio dos encon-
tros síncronos com uso de plataforma de videoconferência.

259
A sala de aula invertida (BERGMANN; SAMS, 2012) propõe uma
inversão não somente das atividades clássicas de sala de aula e de casa,
como também uma mudança de papéis de professores e alunos. Inverter
a sala de aula de línguas significa oferecer insumos para que os aprendi-
zes aprendam estrutura, vocabulário e pronúncia de forma autônoma,
utilizando o momento de sala de aula para a prática das quatro habilida-
des linguísticas, focando na interação entre os aprendizes. A orientação
para a aplicação da sala de aula invertida é que o professor prepare o
material didático a ser utilizado na fase de insumo e disponibilize-o
aos seus alunos antes da aula. Um exemplo são as videoaulas, em que o
professor grava sua aula, além de orientar referências e exercícios para
que os alunos façam após assistirem o vídeo. No encontro presencial, os
alunos já saberão o conteúdo, que poderá ser praticado em sala.
Essa prática foi realizada com as turmas investigadas neste trabalho.
A sala de aula invertida foi aplicada às turmas através da disponibiliza-
ção de aulas gravadas (aulas assíncronas) e outros materiais didáticos
como exercícios do livro didático e vídeos curtos com dicas de pronún-
cia, gramática e vocabulário. Para que as metodologias ativas fossem
aplicadas de forma dinâmica aos alunos, diferentes abordagens foram
aplicadas, de acordo com a necessidade de cada uma das turmas.
As pesquisas sobre estudos de língua baseada em tarefas, em inglês
task-based language teaching (TBLT) contribuem para a aplicação de
metodologias ativas em meio remoto. A abordagem baseada em tare-
fas promove a autonomia do aprendiz, uma vez que, após realizar a
tarefa com seus colegas, o aprendiz torna-se capaz de realizar a tarefa
em outros momentos, sozinho. De acordo com Smith; González-Lloret
(2020), com o intenso uso das tecnologias digitais no ensino de inglês,
a abordagem do ensino de língua baseado em tarefas (TBLT), transfor-
ma-se em ensino de língua baseado em tarefas mediado por tecnolo-
gias digitais, no inglês, technology-mediated task-based language teaching
(TMTBLT).
Jenkins; Purushotma; Weigelet al (2009), afirmam que os estudan-
tes acabam por se envolver com tecnologias de maneiras diferentes e

260
muitas vezes mais sofisticadas do que as encontradas na escola. Esse
envolvimento pode ser percebido durante as aulas totalmente remo-
tas, no período de distanciamento social. Os alunos utilizaram diversos
recursos digitais para auxílio próprio durante o semestre. Ao se falar
em TMTBLT, falamos em uma abordagem na qual os pesquisadores
voltam seu foco para as mais diversas possibilidades de uma ferramenta
tecnológica, ou de um recurso digital, no ambiente em que esta ferra-
menta se encontra e nas tarefas específicas ou tipos de tarefas que pro-
movem o uso da língua-alvo.
Este trabalho investigou as interações ocorridas no ambien-
te virtual google classroom de duas turmas de nível A1 (básico), da
Casa de Cultura Britânica, instituição de ensino de língua inglesa da
Universidade Federal do Ceará. À luz da TMTBLT, compreendemos os
processos de aquisição da autonomia dos aprendizes de inglês em am-
biente virtual. Assim como as tarefas propostas no uso da TBLT, com
uso de atividades mais tradicionais, como proposto por Ellis (2009) ou
atividades mais autênticas, que levaram em consideração o contexto real
de comunicação (LONG, 2016).

Percurso metodológico
O percurso metodológico desta investigação foi traçado a partir da
escolha da Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), de Strauss; Corbin
(2008) buscando a aplicação do Método da Comparação Constante
(MCC), em que categorias relacionadas aos fenômenos investigados
emergem dos dados provenientes dos presentes instrumentos de inves-
tigação. A partir do uso do MCC, estes fenômenos foram comparados
e contrastados até seu esgotamento, o que reduziu os primeiros fenô-
menos, chamados de incidentes lexicais individuais (ILI) a incidentes
lexicais comparados (ILC), resultando em categorias globais de análise
(SILVA, 2019). Nesta seção, apresentaremos o contexto da pesquisa,
seus participantes, os instrumentos de análise e o método analítico dos
incidentes localizados nos instrumentos aplicados.

261
A pesquisa foi realizada com aprendizes de nível básico (A1) de
língua inglesa, regularmente matriculados na Casa de Cultura Britânica
(CCB), da Universidade Federal do Ceará. No contexto da pandemia
do novo coronavírus, as aulas passaram a ser ministradas na modalidade
remota em 2021. As aulas foram ministradas pela professora responsá-
vel pelos procedimentos de geração de dados, caracterizando a pesqui-
sa como pesquisa-ação de abordagem qualitativa e natureza aplicada.
Foram, no total, 52 alunos matriculados nas duas turmas mencionadas.
O uso dos dados utilizados neste trabalho foi mediante assinatura do
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), disponibilizado
de forma digital, através da ferramenta google forms. O TCLE foi redi-
gido de acordo com a norma operacional no 001/2013, a qual rege a
organização do sistema CEP/CONEP, e seus procedimentos de acom-
panhamento da pesquisa que envolvem seres humanos no Brasil.
Para o gerenciamento das aulas em modalidade integralmente re-
mota, foi utilizada a plataforma Google Classroom. Para cada uma das
duas turmas, foi criada uma sala própria. Apesar das salas serem espe-
cíficas para cada turma, o conteúdo programático foi o mesmo, já que
todas as turmas são de nível A1 e utilizam o mesmo material. As meto-
dologias ativas, mais especificamente, a estratégia da sala de aula inverti-
da (flipped classroom), foi utilizada nessas turmas e por isso, o ambiente
virtual (AV) de cada turma foi necessário para disponibilizar as aulas
gravadas pela professora da disciplina, bem como fóruns de discussão e
outros materiais fundamentais para a oferta de insumo aos alunos.
As aulas ocorreram duas vezes na semana, em dias alternados: se-
gundas e quartas ou terças e quintas. De acordo com a CCB-UFC, caso
essas aulas não fossem suficientes para o preenchimento da carga ho-
rária semestral, aulas extras poderiam ocorrer às sextas-feiras. Durante
o semestre, as aulas extras ocorreram de forma assíncrona, não sendo
necessários encontros síncronos fora dos horários e dias estabelecidos.
Para a análise da aplicação da sala de aula invertida, bem como
a interação entre os aprendizes, os alunos receberam o insumo (aula

262
gravada pela professora) em um dia (ou segunda ou terça, a depender
da turma), e no dia seguinte de aula, durante o encontro síncrono cha-
mado webconference (quarta ou quinta, a depender da turma), os alunos
se reuniram para a realização de um momento de prática do insumo
previamente ofertado. Após assistirem à aula gravada, foi solicitado aos
alunos que resolvessem o caderno de exercícios (workbook), em que
atividades de gramática, pronúncia e vocabulário foram previamente
realizadas. Estas atividades foram corrigidas no dia do encontro síncro-
no. Além da correção do workbook, a professora da disciplina mediou
dinâmicas de conversação, em que os alunos interagiram em contextos
reais de fala.
Para esta investigação, foram utilizados um questionário on-line
(INST1), composto por 23 perguntas, aplicado às turmas investigadas,
as interações no ambiente virtual google classroom (INST2) e um di-
ário de observação das interações síncronas no google meet (INST3).
Os dados foram analisados à luz da teoria fundamentada nos dados
(TFD) e discutidos de acordo com os estudos sobre autonomia, teorias
de aprendizagem de língua estrangeira e os estudos sobre interação, ba-
seados na teoria sociocultural. Neste questionário os alunos puderam
narrar suas experiências em relação às metodologias ativas aplicadas du-
rante o semestre. Este questionário não foi de caráter obrigatório, mas
obteve alcance de 53,8% de respondentes das duas turmas investigadas.
O método a ser aplicado para extração dos incidentes lexicais, se-
jam os individuais (ILI), sejam os comparados (ILC) foi o método da
comparação constante (CHARMAZ, 2009). A terminologia referente
aos incidentes fundamenta-se no estudo de Silva (2019), fazendo a dis-
tinção entre duas categorias distintas de incidentes, os incidentes lexi-
cais individuais (ILIs), que designam os fenômenos que emergiram de
forma isolada nos três instrumentos. As categorias que emergiram após
a aplicação do MCC designam os fenômenos relacionados aos objetivos
desta investigação.

263
Análises e resultados
A fim de investigar a contribuição dos recursos utilizados nas aulas
remotas de língua inglesa para o desenvolvimento linguístico dos apren-
dizes da língua de nível básico, utilizamos um questionário diagnóstico
aplicado aos alunos ao final do semestre letivo de 2021.1. Este questio-
nário foi instrumento de geração de dados I, (doravante INST1). O
INST1 possui 23 perguntas que buscavam identificar as facilidades e di-
ficuldades dos alunos em relação às tecnologias digitais, bem como a me-
todologia adotada (sala de aula invertida). O questionário também bus-
cou investigar como se deu a interação entre estudantes em meio remoto
e de que forma essa interação interferiu na aprendizagem dos estudantes.
Com um total de 28 respondentes, 53,8% dos alunos matricula-
dos nas duas turmas de A1 da professora no semestre citado, todos os
respondentes declararam que leram e concordaram com o Termo de
consentimento livre e esclarecido (TCLE). O projeto, aprovado pelo
comitê nacional de ética em pesquisa (CONEP), tem parecer favorável,
de número 4.979761.
Os respondentes ao questionário encontravam-se matriculados em
duas turmas de nível iniciante de língua inglesa, (A1). Sendo, 53,6% dos
respondentes alunos da disciplina “Estrutura e Uso da Língua Inglesa
I”, ofertada exclusivamente aos alunos de graduação da Universidade
Federal do Ceará, e 46,4% dos alunos que responderam encontravam-
-se matriculados na disciplina “Inglês A1-S1”, ofertada a toda a comu-
nidade (alunos ou não da universidade).
Dentre os respondentes, 42,9% dos alunos afirmaram que esta
disciplina simbolizava seu primeiro contato com um curso de língua
inglesa, sendo 57,1% já familiarizados com aulas de inglês em cursos
livres. Com isso, temos que mais da metade dos respondentes já tiveram
algum contato com curso livre de inglês, conhecendo algum tipo de
metodologia de ensino de língua inglesa.
Podemos relacionar a presença da língua inglesa sentida pelos apren-
dizes em ambientes virtuais à possibilidade de aplicação da TMTBLT,

264
uma vez que aplicativos, jogos e recursos digitais fazem-se presentes na
vida dos aprendizes. Tarefas que envolvam a pesquisa em meio digital
ou uma visita guiada a um museu, por exemplo, podem contribuir po-
sitivamente para a prática de estruturas linguísticas e vocabulário em
língua inglesa.

As tecnologias para a aprendizagem de línguas precisam ser


baseadas em pesquisas teoricamente fundamentadas, levando
também em conta o contexto de ensino e aprendizagem. Essa
ideia deve ser complementada com pesquisas sobre como as
possibilidades dessas tecnologias interagem com tarefas e ativi-
dades de uma forma que maximize o benefício das novas tec-
nologias transformadoras. (SMITH; GONZÁLES-LLORET,
2020, p.5, trad. nossa)

Ao perguntarmos sobre a afinidade dos alunos com a modalidade


remota de ensino, 57,1% dos respondentes demonstraram gostar do
ensino remoto, enquanto 42,9% afirmaram não gostar. Este resultado
revela pontos positivos e negativos expostos pelos alunos nas justifica-
tivas de suas respostas. Dentre eles, destacamos a modalidade remota
como ambiente que favorece a autonomia dos aprendizes. Essa autono-
mia pode ser alcançada através da flexibilização dos horários de estudo
pelos estudante, favorecida pela aplicação da flipped classroom, em que
as aulas com o insumo a ser ofertado aos alunos eram disponibilizadas
em formato de videoaula, de forma assíncrona, e as aulas síncronas eram
momentos de interação entre a turma para a prática dos conteúdos ex-
postos e praticados individualmente via videoaula. Por outro lado, a fal-
ta de contato e de uma interação presencial com os colegas fez com que
os respondentes afirmassem não gostar do ensino remoto. Os alunos
responderam que preferem estar com outras pessoas. Como afirmou o
aluno X: “A falta de contato com colegas e professores presencialmente
torna o ensino infelizmente mais chato e difícil de assimilar.”
No que concerne a interação entre aprendizes, uma das perguntas
teve por objetivo saber de que forma a aprendizagem da língua parecia

265
mais prazerosa para eles, se individualmente ou em grupo. O gráfico
abaixo representa as respostas dos alunos:

Gráfico 1: Resposta dos alunos à pergunta sobre


interação e aprendizagem de inglês.

Fonte: Dados da pesquisa (2021)

De acordo com os resultados, 78,6% dos respondentes afirma-


ram que é mais prazeroso aprender inglês em grupo e 21,4% prefe-
rem aprender individualmente. De acordo com as respostas, a interação
permite que haja a prática da língua-alvo, além de aprender com os
próprios colegas, até mesmo no momento em que eles tentam com-
preender o que os outros falam. Essa interação é pilar fundamental na
teoria sociocultural de Vygotsky, em que é a partir da interação que o
indivíduo consegue compreender o outro e o mundo ao seu redor. A
construção do conhecimento ocorre, primeiramente, no meio externo,
ou seja, socialmente.
Ao perguntar sobre a familiaridade que os alunos tinham em rela-
ção às tecnologias digitais, 96,4% afirmaram ter algum conhecimento
sobre o uso de tecnologias digitais. Isto nos indica que o uso de ferra-
mentas on-line na modalidade remota pode ocorrer de forma fluida,
uma vez que os alunos já possuíam o conhecimento técnico acerca das
tecnologias utilizadas. Obtivemos também o total de 92,9% de alu-
nos que já utilizavam a internet para estudo/trabalho. Ao perguntar
sobre os usos que os alunos faziam da internet, 64,3% responderam que

266
utilizam para trabalho, 92,9% responderam que utilizam para estudos
e entretenimento. 89,3% afirmaram que utilizam para navegar em suas
redes sociais. 35,7% responderam que utilizam para e-commerce e ape-
nas 3,6% responderam que utilizam a internet para fins de edição/pro-
dução musical criação de peças de design. O gráfico abaixo demonstra
o percentual de cada resposta:

Gráfico 2: Respostas sobre os usos que os alunos fazem da internet.

Fonte: Dados da pesquisa (2021)

De acordo com os alunos,dentre as principais vantagens do uso


da internet para as aulas de língua inglesa, temos o acesso a recursos
digitais como vídeos, atividades, buscadores, filmes, livros que con-
tribuem para um melhor entendimento da língua inglesa. O ambien-
te virtual proporciona também maior celeridade no que concerne a
busca por palavras ou imersão na cultura. Há também a flexibilidade
nos horários, em que aos alunos é permitido assistir às aulas gravadas
nos horários mais convenientes para si, além de permitir também que
eles assistam às aulas quantas vezes quiserem. Mais uma vez observa-
mos a flexibilidade como ponto positivo do uso da internet para as
aulas de língua inglesa. Essa flexibilidade é fruto do uso das metodo-
logias ativas, o que, consequentemente, promove a autonomia dos
aprendizes, já que estes tornam-se responsáveis por seu processo de
aprendizagem.

267
Ao serem questionados acerca de sua autonomia nos estudos de
inglês, os alunos responderam à pergunta “Você considera a autono-
mia importante para o processo de aprendizagem de língua inglesa?”.
96,4% dos alunos responderam que sim, enquanto que apenas 3,6%
respondeu que não.

Gráfico 3: Percentual de respostas sobre a importância


da autonomia para a aprendizagem de inglês.

Fonte: Dados da pesquisa (2021)

Ao serem perguntados se eles se consideravam aprendizes autôno-


mos, tivemos os seguintes resultados:

Gráfico 4: Percentual de respostas sobre aprendizes autônomos.

Fonte: Dados da pesquisa (2021)

268
De acordo com os estudantes, 78,6% se consideram aprendizes au-
tônomos, 3,6% não se consideram aprendizes autônomos, 7,2 % res-
ponderam “mais ou menos”, bem como 3,6% respondeu com “meio
termo”. 3,6% respondeu que “Me considero, mas levando em conta as
respostas anteriores, após a aula online da professora, teria que continu-
ar estudando pelo computador. Isso me incomoda. Diferentemente se a
aula fosse presencial e você utilizasse o computador para se aprimorar.”
3,6% respondeu que acredita que possa melhorar, principalmente no
inglês. Estas respostas nos levam a compreender o processo de aquisição
da autonomia como atividade a ser aprimorada. Os alunos afirmaram
sentirem falta da interação em sala de aula, mas pontuaram como fator
positivo a flexibilidade para estudarem sozinhos, buscarem conteúdos
on-line e utilizarem ferramentas que facilitem o aprendizado em casa.
Após comparar e contrastar os dados provenientes dos três instru-
mentos de análise, sendo o INST1 o questionário disponibilizado por
meio do google forms, o INST2, as interações entre os alunos em suas
turmas virtuais no google classroom e o INST3, o diário de observação
das interações síncronas, redigido pela pesquisadora após cada encontro
(aula síncrona), tivemos uma lista de incidentes lexicais que apontavam
para o uso das tecnologias digitais como ação de promoção da autono-
mia dos aprendizes de língua inglesa, mesmo com as dificuldades apre-
sentadas por eles, como a dificuldade de prática de produção oral em
ambiente virtual, em que alguns consideravam o momento de encontro
nas aulas síncronas insuficiente para a prática oral.
Aplicando o método da comparação constante (MCC), os inci-
dentes lexicais (IL) foram extraídos dos instrumentos 1,2 e 3, o que
reforçou a contribuição do acesso a recursos digitais como vídeos, bus-
cadores, filmes e livros para uma célere compreensão da língua. Dentre
os IL referentes ao fenômeno do uso do ambiente virtual para promo-
ção da autonomia dos alunos, destacamos o incidente flexibilidade, o
qual emergiu pelo uso de recursos virtuais nas aulas, uma vez que a sala
de aula invertida foi utilizada durante o semestre, resultando na pro-
moção da autonomia dos aprendizes, pois estes assistiram às aulas em
turnos mais convenientes, tornando-se responsáveis por seu processo

269
de aprendizagem. Observamos na figura 1 os fatores que justificam a
emergência do IL flexibilidade a partir da triangulação dos dados gera-
dos dos INST1, INST2 e INST3. Nela, é possível perceber que o IL
flexibilidade emergiu devido à presença do uso de recursos virtuais du-
rante as aulas (síncronas e assíncronas), pela disponibilização das aulas
gravadas e pela liberdade que os aprendizes tiveram para manipular as
gravações, sendo possível controlar a velocidade da aula, pular partes
que já eram de conhecimento dos alunos e assistir outras vezes, caso ne-
cessário, além de pausar a aula para resolver algum exercício específico
ou buscar outros recursos visuais midiáticos que contribuíssem para um
melhor entendimento do assunto.
Outro fenômeno ligado ao IL flexibilidade foi o não-deslocamento
para o ambiente de sala de aula físico, possibilitando o comparecimento
de alunos às aulas com maior frequência. No INST3 observamos que
a frequência dos alunos nas aulas síncronas era quase total, salvo casos
em que os próprios alunos justificavam a ausência ou apresentavam
problemas de conexão com a rede de internet.

Figura 1: Mapa conceitual do IL Flexibilidade

Fonte: Elaborado pela autora

O incidente autonomia emergiu como indicador dos fenôme-


nos ligados ao uso da sala de aula invertida e da oferta de insumo em
momento anterior aos encontros síncronos. 78,6% dos estudantes

270
consideravam-se aprendizes autônomos, levando-se a compreender o
processo de aquisição da autonomia como atividade a ser aprimorada,
uma vez que este atua diretamente com a interação. 100% dos respon-
dentes afirmaram que a interação com os colegas auxilia sua aprendiza-
gem, declarando sentirem-se prejudicados pela privação desta em meio
físico, apesar de pontuarem como positiva a flexibilidade alcançada no
estudo individual. Observamos, na figura 2, os fatores que justificam a
emergência do IL flexibilidade a partir da triangulação dos dados gera-
dos dos INST1, INST2 e INST3. Para que este IL fosse alcançado, a
comparação e o contraste entre os instrumentos mostraram que a sala
de aula invertida foi responsável pelo desenvolvimento de uma consci-
ência da responsabilidade de aprendizagem por parte dos alunos, pois,
caso não assistissem à aula antes do encontro síncrono, sua participação
acabaria sendo nula ou aconteceria de forma superficial, uma vez que
era necessário fazer os exercícios recomendados ao final da aula antes
do encontro ocorrido através da ferramenta google meet. Essa prepa-
ração para os encontros possibilitou aos alunos melhor organização de
seus estudos, responsabilidade para com seus estudos e antecipação na
resolução de problemas (inclusive para atividades de conversação, com
estruturas que foram trabalhadas nas aulas gravadas e, depois, nos en-
contros síncronos, com os colegas).

Figura 2: Mapa conceitual do IL Autonomia

Fonte: Elaborado pela autora.

271
O uso de tarefas criativas, como por exemplo, a criação dos vídeos
finais (Final project), em que os alunos deveriam gravar um vídeo cur-
to, de, no mínimo, um minuto, apresentando sua autobiografia, com
vocabulário e estruturas linguísticas utilizadas durante o semestre, con-
tribuiu para a aquisição da autonomia, pois, durante o processo, os
alunos expressaram a necessidade de regravação de seus vídeos, uma
vez que, ao assistirem suas produções, identificavam erros de pronúncia
(auto-feedback). Os alunos afirmaram ensaiar antes da gravação, o que
caracteriza o uso de rehearsal das estruturas que eles roteirizam, promo-
vendo maior autonomia na hora da realização e finalização da tarefa.

Considerações finais
Diante do contexto das aulas remotas emergenciais, este trabalho
apresentou os resultados da investigação acerca das interações ocorridas
no ambiente virtual google classroom de duas turmas de nível A1 (básico),
da Casa de Cultura Britânica, instituição de ensino de língua inglesa da
Universidade Federal do Ceará. À luz da TMTBLT, compreendemos os
processos de aquisição da autonomia dos aprendizes de inglês em ambien-
te virtual, resultado do uso das metodologias ativas nas aulas de inglês. Os
resultados da investigação apontam para o uso das tecnologias digitais nas
aulas remotas como elemento de promoção da autonomia dos alunos,
bem como a ocorrência de maior flexibilização das formas de ensinar e de
aprender a língua inglesa. Entendemos que a distância física trouxe diver-
sos benefícios não somente para a aprendizagem de inglês, como também
para as formas de se ensinar a língua inglesa. Os recursos multimidiáticos
ganham um papel de destaque na promoção da autonomia e a aplicação
de metodologias ativas, como a sala de aula invertida, possibilitou o auto-
feedback e uma maior participação dos alunos nas aulas remotas, realizadas
de forma síncrona. A partir dos incidentes encontrados, os quais aponta-
ram para as duas categorias supracitadas, verificamos a importância das ta-
refas criativas, como a produção de vídeos para reconhecimento de erros e
prática da produção oral através do rehearsal, ou seja, do ato de ensaiar suas
falas previamente e da necessidade de alguns aprendizes de regravar seus ví-
deos, após a identificação de erros de vocabulário, gramática ou pronúncia.

272
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273
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

AÇÕES E IMPLEME NTAÇÕES PARA O


DESEMPENHO ORAL DA LÍNGUA INGLESA
EM CONTEXTOS ACADÊMICOS

Catherine Echkardth da Silva – UERJ 44


Gysele da Silva Colombo Gomes – UERJ 45

RESUMO: O presente estudo46 tem como objetivo apresentar resultados


parciais de uma investigação de iniciação científica acerca dos estudos de Zona
de Conforto (COLOMBO GOMES, 2004; 2006; 2018), da qual participam
professores em formação inicial, quatro bolsistas de iniciação científica³ e
uma professora pesquisadora. O projeto tem como objetivo mapear a fluência
de alunos, nos primeiro e segundo períodos da faculdade de formação de
professores, bem como promover a reflexão e a conscientização acerca da
influência de cada indivíduo a fim de possibilitar o desenvolvimento ou
aprimoramento da sua fluência e, consequentemente, da sua proficiência. Tais
medidas visam contribuir para o aprimoramento da competência profissional
do professor num espectro micro e macro. O estudo, que se iniciou em agosto
de 2020, tinha previsão de término em julho de 2022 e vem sendo realizado
através de encontros virtuais na plataforma RNP. A pesquisa fundamenta-se
nos pressupostos teóricos da sociolinguística interacional, que fornece grandes
contribuições no que tange a trabalhos sob a interação e a competência sócio-
discursiva de professores em formação inicial. A geração de dados ocorre por
meio de observação participativa e notas de campo que serão analisados à luz,
principalmente, dos estudos da polidez (BROWN & LEVINSON, 1987), da
face (GOFFMAN, 1974) e da Zona de Conforto (COLOMBO GOMES,
2004; 2006; 2018). Os principais dados foram gerados em aulas vídeo gravadas
em duas turmas de língua inglesa. Os entendimentos parcialmente alcançados
contribuíram para a organização de um curso de extensão como uma forma de
implementação de “ações e implementações para o desempenho oral da língua
inglesa em contextos acadêmicos”.
PALAVRAS-CHAVE: Zona de Conforto; oralidade; língua inglesa.

ABSTRACT: This study aims to present the partial results of an undergraduate

44
Graduanda em Letras (Inglês/Português) pela UERJ/FFP. E-mail: silva.catheri-
ne@graduacao.uerj.br.

274
scientific initiation research about Comfort Zone studies (COLOMBO
GOMES, 2004; 2006; 2018), in which teachers in initial training, four
undergraduate scientific initiation scholarship holders and one research
teacher participate. The project seeks to map out the fluency of students in the
first and second periods of the teacher training college, as well as to promote
reflection and awareness about the influence of each individual in order to
enable the development or improvement of their fluency and, consequently,
of their proficiency. Such measures aim to contribute to the improvement of
teachers’ professional competence in a micro and macro spectrum. The study,
which began in August 2020, was scheduled to end in July 2022 and has been
carried out through virtual meetings on the RNP platform. The theoretical
framework was based on interactional sociolinguistics, which provides great
contributions with regard to work on the interaction and socio-discursive
competence of teachers in initial training. Data generation occurs through
participatory observation and field notes, analyzed in the light, mainly, of
politeness studies (BROWN & LEVINSON, 1987), of the face (GOFFMAN,
1974) and of the Comfort Zone (COLOMBO GOMES, 2004; 2006;
2018, 2022). The main data were generated in video lessons recorded in two
English language classes. The partially achieved understandings contributed
to the organization of an extension course as a way of implementing “actions
and implementations for the oral performance of the English language in
academic contexts”.
KEYWORDS: Comfort Zone; orality; English language.

1. Introdução
Com a necessidade do distanciamento devido à COVID-19, as au-
las na UERJ passaram a ser remotas, dessa forma, a partir de agosto de
2020, o grupo de pesquisa “Estudos da Zona de Conforto” (GPEZC),
composto por uma professora pesquisadora da UERJ/FFP e quatro bol-
sistas PIBIC, enfrentou um novo desafio: investigar como e por que de-
terminados alunos se mantinham em um estado de estagnação, no qual
evitavam o uso da língua inglesa nas interações, a fim de protegerem sua
face (GOFFMAN, 1974). Assim, fez-se necessário que os integrantes
desse GP se debruçassem sobre uma questão acerca da formação de
professores de língua inglesa. Trata-se de uma questão inquietante e

275
preocupante, pois como professores de inglês em formação inicial po-
dem não ser fluentes no idioma no qual estão se instrumentalizando
pedagogicamente para exercerem o magistério? O fio condutor dessa
investigação é o conceito da Zona de Conforto que se alicerça nos tra-
balhados de Colombo Gomes (2004; 2006; 2018) acerca da permanên-
cia ou do êxodo da ZC.
Movido pelas observações das aulas de uma turma de primeiro
período, o grupo propôs-se a alcançar quatro objetivos: (i) mapear a
fluência dos alunos dessa turma; (ii) investigar como as emoções e o
trabalho de face poderiam influenciar a fluência e a interação dos alu-
nos da turma; (iii) observar as atitudes e características dos indivíduos
na turma que se mostravam estagnados na ZC; e (iv) identificar quais
ações promoviam a permanência ou o êxodo na ZC. Pautadas por esses
objetivos, propomos as seguintes questões de pesquisa: “Como são cate-
gorizados os professores em formação inicial na FFP- UERJ no que tange à
fluência em LI?”; “De que forma as emoções (MATURANA, 1998; 2002)
e a face (GOFFMAN, 1964; 1972) podem influenciar a permanência ou
o êxodo da ZC?”; “Quais são as características de um indivíduo na ZC?”;
e, por fim, “Quais ações promovem o êxodo ou a permanência na ZC?”.
O trabalho do GPEZC já vinha sendo realizado com o mapeamen-
to da fluência de alunos em formação inicial desde 2017. Portanto, já
possuía registros e dados de alunos nos primeiro e segundo períodos da
Faculdade de Formação de Professores (alunos de 2019.1 em diante) e
planejava propor ações mais contundentes, entretanto, devido à pande-
mia, tais ações foram realizadas de forma remota, o que, de certa forma,
reduziu o impacto desejado. Todavia, apesar das dificuldades em im-
plementar as ações do projeto, buscou-se propor uma oportunidade da
prática da oralidade da língua inglesa aos participantes, além da obten-
ção de dados para o enriquecimento dos estudos de Zona de Conforto.
O presente trabalho é um recorte de uma pesquisa de natureza
qualitativa (DEZIN; LINCOLN, 2006, LINCOLN; GUBA, 2006,
ERICKSON, 2014) e de cunho interpretativista (MOITA LOPES,
1996), cujos principais instrumentos são a observação de campo, a

276
transcrição de aulas, entrevistas e questionários. Entretanto, durante o
período emergencial, nesta investigação as observações de aulas vídeo-
-gravadas em encontros em plataformas digitais, as notas de campo das
bolsistas e diários reflexivos coletados dos participantes em encontros
após a volta ao presencial na fase pós-pandêmica.

2. Fundamentação teórica
A concepção de Zona de Conforto (ZC), fundamentada por
Colombo Gomes (2004; 2006; 2018) está relacionada à dificuldade
dos alunos e professores de se expressarem oralmente na língua inglesa,
temendo uma pronúncia não assertiva e, consequentemente, quaisquer
tipos de julgamentos direcionados à sua face (GOFFMAN, 1974). O
conceito técnico de ZC é definido como “o estado consciente no qual
o falante, cujo uso dessa língua é diferente do básico, faz uso mínimo
de estruturas, não corre o risco de cometer erros e possa proteger sua
face (cf. GOFFMAN, 1974) ao se comunicar na língua em questão”
(COLOMBO GOMES, 2018).
Para entender o conceito da ZC é necessário compreender os con-
ceitos de face (GOFFMAN, 1974) e de proteção à face, os de poli-
dez e os atos de ameaça à face (BROWN; LEVINSON, 1987) e os de
emoções (MATURANA, 2002). Manifesta-se, então, a preocupação da
preservação e da manutenção da face (GOFFMAN, 1974). Além disso,
utilizar-se-ão estratégias de polidez para permear as relações sócio inte-
racionais (BROWN & LEVINSON, 1987), intrinsecamente relaciona-
das à emoção e à necessidade de continuar ou sair da Zona de Conforto.
O conceito de face é definido como “o valor social positivo que
uma pessoa efetivamente reivindica para si mesma através da linha que
os outros pressupõem que ela assumiu diante de um contato particular”
(GOFFMAN, 1974). Por linha, entende-se “um padrão de atos verbais
e não verbais com qual ela [a pessoa] expressa sua opinião sobre a situa-
ção, e através disto sua avaliação sobre os participantes [do encontro],
especialmente ela própria”.

277
No que tange à preservação da fachada (facework), podemos afirmar
que o objetivo é neutralizar possíveis incidentes (chamados de ameaças)
e assim obter a manutenção da fachada, evitando o que chamamos de
defacement, ou seja, a perda da face. Consideramos proteção defensiva
o ato de proteger a própria face, e de proteção protetora, o de proteger
a face alheia. São exemplos do facework o processo de evitação e o pro-
cesso corretivo.
Brown & Levinson (1987) propuseram, através dos estudos da
polidez, as noções de face positiva e face negativa, sendo a primeira
“a autoimagem consistente e positiva ou ‘personalidade’ (crucialmente
incluindo o desejo de que essa autoimagem seja apreciada e aprovada)
reivindicada pelos interactantes”, ou seja, a necessidade de ser admira-
do, valorizado e respeitado. Por outro lado, temos a “a reivindicação
básica de territórios, de preservação pessoal, de direitos a não-distração
– i.e. de liberdade de ação e liberdade de imposição”, como a necessida-
de de não ser limitado no que tange às suas ações. Em sua concepção,
quaisquer atos de fala ameaçam pelo menos uma das quatro faces de um
encontro: a face positiva do falante e a do ouvinte ou a face negativa do
falante ou do ouvinte.
Em relação às emoções, de acordo com Maturana (2002), elas (as
emoções) são “as diferentes disposições corporais dinâmicas que espe-
cificam os diferentes domínios de ações onde nós, os animais, nos mo-
vemos” e que “na medida em que diferentes emoções constituem do-
mínios de ações distintas, haverá diferentes tipos de relações humanas
dependendo da emoção que as sustente, e será necessário observar as
emoções para distinguir os diferentes tipos de relações humanas, já que
estas as definem” (2002, p. 67). Portanto, devemos levar em considera-
ção como as emoções podem afetar as ações de acordo com o contexto
e a necessidade, o que é imprescindível para os estudos da ZC.

3. Aspectos metodológicos
Os estudos sobre a Zona de Conforto caracterizam-se como uma
pesquisa qualitativa, de cunho interpretativista etnográfico. A pesquisa

278
qualitativa explora a organização social usando exemplos concretos ba-
seados nos dados dos quais a teoria e os conceitos emergem, os quais são
apresentados através de dados. Erickson (1998) sugere que a pesquisa
qualitativa identifica as principais ocorrências nos dados e as descreve
em termos funcionais, que se relacionam com o contexto social mais
amplo.
O método qualitativo de pesquisa coleta dados e faz mudanças
tanto na teoria quanto nos conceitos. Por isso, os estudos evoluem à
medida que mais dados são coletados. A qualidade é o foco desse tipo
de pesquisa, que tem como objetivo detalhar ocorrências diárias e com-
preender o que os participantes e observadores pensam sobre esses even-
tos (ERICKSON, 1998). Para o design deste estudo, foram utilizadas e
analisadas notas de campo, observação; no retorno às aulas presenciais
foram solicitados diários dos alunos participantes, que serviram para
identificarmos como os participantes se conscientizaram do patamar
linguístico que alcançaram e como essa conscientização alterou seu pa-
tamar de fluência.
De acordo com Moita Lopes (1994), considera-se pesquisa de
cunho interpretativista aquela que tem como objetivo investigar os pro-
cessos relacionados à produção e à compreensão linguística. Sua na-
tureza etnográfica está relacionada com o foco no contexto social da
perspectiva dos participantes, considerando a visão deste e não só a do
observador (o pesquisador externo).
É de suma importância, no que tange à pesquisa interpretativista
etnográfica, levar em conta a visão daqueles que participam da pesquisa
a fim de investigar o contexto social, visto que a linguagem representa
uma ponte entre a interpretação do participante e do pesquisador.
Considerando a crise resultante do período pandêmico d de 2020,
o contexto da investigação foi virtual, em aulas que ocorreram em uma
universidade estadual, mais especificamente numa faculdade de forma-
ção de professores, no campus de São Gonçalo, com a turma de Língua
Inglesa I. Com a necessidade de encontros remotos para a realização das
aulas, houve uma significativa alteração em nosso design metodológico,

279
pois pudemos observar que os alunos usavam a instabilidade da internet
e ruídos externos a seu favor, evitando respostas mais longas e diretas e
ganhando tempo na hora de falar. Os participantes focais do presente
estudo são três alunos, a quem denominamos “Zeus”, “Ares” e “Hera”,
alunos de primeiro período, cujos nomes reais foram preservados por
questões éticas.

3.1 Procedimentos metodológicos


As aulas vídeo-gravadas realizadas na plataforma RNP, ministra-
das pela professora das turmas de Língua Inglesa I durante os primei-
ros períodos emergenciais da UERJ/FFP. Os semestres letivos tiveram
duração menor por conta da pandemia. As aulas ocorreram de forma
síncrona e assíncrona e nos encontros síncronos dos dias 02, 09 e 13 de
outubro de 2020 foram observadas e analisadas as interações dos alunos
participantes.
Antes da gravação, a professora regente solicitou a autorização de
todos para que as aulas fossem gravadas e analisadas posteriormente.
Após a anuência de todos, a docente informou que um termo de livre
consentimento para participação na pesquisa deveria ser preenchido e
assinado. Em seguida, a docente informou que iniciaria a gravação e
que formularia o pedido de autorização para a vídeo-gravação.
A observação fora distribuída entre as quatro bolsistas, de forma
que cada uma analisasse um grupo dos alunos visando verificar quais
deles demonstrariam estar ou não na Zona de Conforto.

3.2 Os participantes
Conforme mencionado anteriormente, os três alunos observados
pela bolsista Catherine foram Zeus, Ares e Hera. Para que a professora
da turma conhecesse a fluência e a acuidade linguística dos alunos, todos
alunos da turma, na primeira aula, receberam a solicitação de que fosse
gravado um vídeo de auto apresentação, contendo informações sobre
a história de aprendizagem da língua inglesa de cada um e a descrição
do texto usado na primeira aula versando sobre interculturalidade e

280
decolonialidade. Os vídeos poderiam ter no máximo seis minutos e de-
veriam ser enviados para a professora antes da aula da semana seguinte.
Segundo sua gravação, Zeus, 23 anos, já tinha estudado inglês em
um curso de idiomas e possuía certificado de proficiência do Michigan.
Em seu vídeo de apresentação para a disciplina, o aluno demonstrou
segurança ao utilizar a língua inglesa para se apresentar, narrar sua tra-
jetória de aprendizagem de língua inglesa, resumir e argumentar em
defesa dos tópicos contidos no texto trabalhado pela professora.
Assim como Zeus, Ares 19 anos, já tinha estudado inglês em um
curso de idiomas, porém não possuía nenhum certificado de proficiên-
cia. Em seu vídeo de apresentação para a disciplina, o aluno demons-
trou habilidade ao utilizar a língua inglesa para se apresentar e narrar
sua trajetória de aprendizagem de língua inglesa. Entretanto, ainda que
já tivesse cursado mais de seis anos em uma escola de idiomas, teve mui-
ta dificuldade para resumir e argumentar em defesa dos tópicos conti-
dos no texto trabalhado pela professora.
Hera, 19 anos, nunca tinha estudado inglês fora da escola. Foi pos-
sível perceber que no vídeo enviado para a professora, a aluna leu du-
rante toda a gravação. Na leitura, a aluna apresentava entonação, pro-
núncia e prosódia adequadas. Todavia seu olhar foi desviado da câmera
durante toda a gravação.

4. Análise de dados e discussão


Para apresentação da análise, estabelecemos as características da fala
que mais descreviam a atitude de proteção à face positiva e negativa dos
alunos. Dessa forma, foram estipuladas as seguintes categorias: (i) If
I’m not wrong; (ii) Sorry, teacher, I can’t hear what people are saying;
and (iii) May I speak Portuguese?. Todavia, destacamos, neste estudo, a
análise do desempenho de Zeus.

4.1 If I’m not wrong


Ainda que para Brown & Levinson (1987) todo ato de fala seja
ameaçador para e pelo menos uma das quatros faces envolvidas em uma

281
interação, percebemos na interação de Zeus a predominância do ato
de ameaça a sua face positiva realizado pelo aluno. Compreendemos
que Zeus estava realizando uma troca verbal e que era de seu interes-
se expressar uma opinião ou a forma como o aluno entendia o que
era explicado em aula, entretanto, se levarmos em conta o uso de dis-
claimers para as três vezes seguidas em que o aluno interagiu com a
professora, entenderemos que suas ideias foram parcialmente expressas
devido ao medo de errar como é o apresentado intervalo da aula entre
17:30 a 18:10 do dia 09 de outubro de 2020 nos excertos a. (contador
da gravação 17:37:11-17:39:02) , b. (contador da gravação 17:43:32-
17:43:51) e c. (contador da gravação 17:56:03-17:57:01). A interação
observada inicia-se com a pergunta de um aluno na aula às 17:30, mas
o primeiro trecho analisado de Zeus é iniciado às 17:37:11.
a. 17:37:11 a 17:39:02
Aluno não identificado: Professor, if the head of this phrase is an adjective, it is a noun
phrase?
Teacher: Who can help our friend? (…) please (…) Anyone?
Zeus: Teacher, if I’m not wrong (…) I don’t know if it’s correct to say it, but er, er…Well,
you said the head of a noun phrase is always a noun phrase. (…) Right? Is it correct?
Teacher: Go ahead, (nome do aluno), make your point.
Zeus: “The decolonial perspective presents”... , noun phrase: the decolonial perspective;
head perspective; (…), sorry…
Teacher: Come on, keep on explaining, (nome do aluno),…
Zeus: That’s all…

b. 17:43:32 a 17:43:51
Zeus: I’m afraid to say it, sorry, teacher…
Teacher: (Nome do aluno), just say what you were writing on the chat to me… it’s correct!
Zeus: predeterminer...(?)

c. 17:56:03 a 17:57:01
Hera: Eu acho, I think it, I agree, but I’m not sure.
Teacher: Does anybody agree with the assertion on the board?
A professora pede novamente a Zeus para falar o que ele escrevera no chat. Zeus desliga a
câmera para responder.

Numa interação, o poder do ouvinte e do falante é o grau com


que um pode impor seus próprios planos e sua face à custa dos planos

282
e da avaliação do outro. Para Brown & Levinson essa noção de poder
é importante, uma vez que essa variável tem impacto na escolha das
estratégias linguísticas referentes à polidez positiva. Ou seja, fazendo o
uso dos disclaimers if I’m not wrong e I don’t know if it’s correct to say,
Zeus busca mitigar a agressão a sua auto imagem ao apresentar previa-
mente uma “desculpa” para caso cometa algum erro em sua resposta. Ao
fazer uso dessa estratégia, Zeus fala perde o controle de sua intonação,
não apresenta prosódia, nem desenvolve uma explicação completa. Seu
desconforto é expresso mais firmemente ao desligar a câmera assim que
informa que não tem mais nada a falar (that’s all...). O que percebemos
com isso é que na luta pelo poder da preservação de sua face, Zeus perde
a oportunidade de interagir na língua estrangeira e é mantido na ZC
(COLOMBO GOMES 2004, 2006, 2018) mesmo sendo um falante
proficiente como demonstrou em sua gravação.

4.2 Sorry, teacher, I can’t hear what people are saying


A expectativa da professora em relação a Ares era de que sua parti-
cipação em aula seria, no mínimo, frequente, devido a sua performance
na gravação requisitada. Não obstante, Ares não interagiu oralmente na
aula em nenhuma dos encontros síncronos gravados. Sua câmera era
mantida desligada do início ao fim da aula. No término do semestre, a
professora perguntou se o aluno poderia conversar com ela por chat e,
para sua surpresa, o aluno ligou a câmera. Quando questionado o moti-
vo por não ligar a câmera ou falar durante as aulas, Ares respondeu em
inglês: “I’m awfully sorry, Gysele. During classes I can’t hear what people
are saying, that’s why I just pay attention to what you are sayin’…, read all
the texts and do all exercises assigned”.
Novamente, observamos uma das características pertinentes à
permanência na Zona de Conforto, o uso o processo de evitação
(GOFFMAN, 1974; BROWN; LEVINSON, 1987). Ao evitar expor
sua face com o processo de evitação, Ares emprega a estratégia de apru-
mo (GOFFMAN, 1974) para suprimir e esconder qualquer tendência
de ficar com sua fachada (face)envergonhada durante o encontro com

283
os outros. Com isso, o aluno se mantém no mesmo patamar linguístico,
por apenas usar sua competência interacional na língua inglesa em mo-
mentos em que não se sente ameaçado ou julgado, ao invés de expandir
sua habilidade oral.

4.3 May I speak Portuguese?


As maiores tentativas de êxodo da ZC são sempre realizadas por
Hera. Em todos os intercâmbios (exchange – sequências de atos co-
locadas em movimento por uma ameaça reconhecida à fachada),
Hera não hesita em fazer uso da língua materna para compor sua fala.
Inicialmente, a aluna costumava fazer pausas longas em sua fala espe-
rando que a professora ou qualquer aluno, em especial Zeus, completas-
se suas ideias. Ao perceber que a professora a encorajava a continuar a se
expressar, mesmo alternando entre língua materna e língua alvo, Hera
passou a se esforçar mais ainda e a ter uma participação importante nas
aulas. Quando estava explicando algum conceito ou se tivesse alguma
dúvida que desejava elucidar e não soubesse como se fazer entendida
em inglês, Hera não hesitava e perguntava: “May I speak Portuguese? A
aluna nem ao menos esperava a autorização da professora, usava a pala-
vra em português e continuava em inglês, mas expressava sua ideia com
clareza. No encontro do dia 13 de outubro, verificamos na gravação
oito tomadas de turno realizadas pela aluna num intervalo de trinta e
três minutos. Entendemos dessa forma que a percepção e o desejo de se
comunicar de Hera foram certamente algo que a impediam de perma-
necer na Zona de Conforto.
Num olhar geral sobre as aulas, pudemos observar que, muitas ve-
zes, os alunos usavam a instabilidade da internet e ruídos externos a seu
favor, evitando respostas mais longas e diretas e ganhando tempo na
hora de falar. Zeus, por exemplo, respondia apenas quando a professora
lhe dirigia a palavra ou quando nenhum outro aluno fazia menção de
responder à pergunta proposta. Em outros momentos, permanecia quie-
to, sem questionar o conteúdo ou tirar possíveis dúvidas. Muitos dos
alunos respondiam no chat a resposta completa, em outros momentos
devolviam apenas respostas curtas e monossilábicas, deixando evidente

284
como a noção do ritual da interação é uma aliada na promoção do
êxodo da ZC. “Hera”, por sua vez, mostrava-se interessada em assistir e
participar da aula e mesmo recorrendo de forma frequente à sua língua
materna, assegurava-se de praticar a oralidade na língua inglesa.

5. O processo de mapeamento da fluência dos professores de


língua inglesa em formação inicial
A fim de categorizar em relação à fluência os professores em for-
mação inicial de acordo com o projeto, durante o período deste recorte
da pesquisa, foi criado o “Quadro de referência de uso de línguas para
professores em formação em interações orais”. Ele é fruto da observação
e da análise das características da ZC, as quais influenciaram diretamen-
te em sua construção, que segue em constante desenvolvimento. Foi
dividido, inicialmente, em básico, intermediário e avançado, com nove
estágios de fluência e foi utilizado como parâmetro de mapeamento na
análise de fluência dos alunos. Após novas observações em aulas presen-
ciais, o quadro deverá ser refinado ou reestruturado.

6. Considerações finais
O principal objetivo da presente investigação era de proporcio-
nar uma visão mais aprofundada sobre os estudos sobre a Zona de
Conforto, propostos por Colombo Gomes (2004; 2006; 2018; 2022) e
desenvolvidos pelo grupo de pesquisa “Estudos da Zona de Conforto”,
composto por quatro bolsistas PIBIC e uma professora orientadora.
Buscamos, neste recorte de pesquisa, alcançar os objetivos apresentados
na introdução e fomos guiadas por quatro perguntas de pesquisa que
respondemos nos parágrafos subsequentes.
No que se refere à primeira questão de pesquisa, “Como são catego-
rizados os professores em formação inicial na FFP- UERJ no que tange à
fluência em LI?”, pode-se destacar a proposta do “Quadro de referência
de uso de línguas para professores em formação em interações orais”,
desenvolvido pelas bolsistas PIBIC através de observações de campo
e a inspiração no “Quadro Europeu Comum de Referência para as

285
Línguas”. No quadro, os alunos são categorizados entre básico, inter-
mediário avançado, com três subcategorias cada um, as quais descrevem
brevemente quais competências e habilidades os alunos apresentam de
acordo com cada classificação na formação inicial. Ainda sendo refina-
do, a versão inicial do quadro foi publicada em um artigo na RBLA em
2022 por Colombo Gomes.
Em relação à forma como as emoções (MATURANA, 1998; 2002) e
a face (GOFFMAN, 1964; 1972) podem influenciar a permanência ou o
êxodo da ZC, acreditamos que é a partir da tentativa de manter ou proteger
sua face que os alunos deixam de exercitar a oralidade dentro de sala de
aula, visto que temem sofrer ameaças, seja à sua face positiva ou negati-
va (BROWN & LEVINSON, 1987). Podemos destacar características
como inaptidão, receio de errar, de ser julgado e criticado e a insegurança
como possíveis empecilhos, os quais promoverão a permanência na ZC e
dificultarão o êxodo dela. Entretanto, não foi possível, nesta etapa, verifi-
car como as emoções influenciou a permanência ou o êxodo na /da ZC.
Destacamos que nessa turma em particular, observamos que as ca-
racterísticas de um indivíduo na ZC não diferem daquelas já apontadas
nos estudos de Colombo Gomes (2004; 2018; 2022).
Em relação às ações promovedoras do êxodo ou a permanência na
ZC, destacam-se a proposta, feita pela professora, de formas de expres-
são aos alunos da maneira que eles se sintam mais confortáveis, como
foi observado através dos diários promovidos pela professora durante
as aulas de Língua Inglesa I e II aos professores em formação inicial. A
reflexão e a conscientização de que é necessário abandonar uma postura
mais cautelosa em função de adotar outra, mais confiante e crítica, apa-
recem como aliados na busca pelo êxodo da ZC.
Por fim, é fundamental considerar que ainda há muito a ser desen-
volvido, visto que a investigação sobre os estudos da Zona de Conforto
deve ocorrer em fluxo contínuo a fim de acompanhar como a ZC se
configura ao longo do tempo, como diferentes professores em forma-
ção se comportam e quais estratégias para o êxodo da ZC estão sendo
desempenhadas de acordo com os cenários propostos. Além disso, é

286
necessário supervisionar a evolução dos alunos analisados visando do-
cumentar seus resultados.

Referências
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Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

COLOMBO GOMES, Gysele da S. A promoção do êxodo da Zona de Conforto


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ing at a state university in Brazil. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 22, p.
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CUNHA, GUSTAVO XIMENES; OLIVEIRA, ANA LARISSA ADORNO


MARCIOTTO. Teorias de im/polidez linguística: revisitando o estado da arte para
uma contribuição teórica sobre o tema (Theories of linguistic im/politeness: revisi-
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MATURANA, Humberto. Uma abordagem da Educação atual na perspectiva da


Biologia do conhecimento. In: Maturana, H. Emoções e linguagem na educação e na
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MOITA LOPES, L. P. Pesquisa interpretativista em lingüística aplicada: a lingua-


gem como condição e solução. DELTA, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 329-383, 1994.

287
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

RETRADUÇÃO COMO ATUALIZAÇÃO: O


CASO ORWELL / RETRANSLATION AS AN
UPDATE: THE ORWELL CASE

Cynthia Beatrice Costa (UFU)

RESUMO: Por meio da tradução e da retradução, uma mesma obra literária


multiplica-se, apresentando-se e reapresentando-se em outras línguas, a
culturas estrangeiras, perante novas safras de leitores. A retradução pode ser
entendida como um processo de atualização contínua, à medida que gerações
distintas de tradutores releem, reinterpretam e reescrevem um mesmo texto
de partida, mais ou menos influenciados pela fortuna crítica acumulada e por
traduções anteriores e, o que é mais importante, envoltos pelos parâmetros
socioculturais e político-ideológicos de seu tempo – parâmetros esses que
levaram Animal Farm, de George Orwell, a ser retraduzido recentemente por
Paulo Henriques Britto não mais com “revolução” no título, mas como o mais
literal A fazenda dos animais. Extraindo exemplos da tradução das palavras
rebellion e revolution dessa e de outra atualização orwelliana, a tradução de
2021 do romance distópico 1984 realizada por Lenita Maria Rimoli Pisetta,
o objetivo deste breve estudo é abordar a retradução como geradora de
diversidade literária e de abertura infinita a interpretações de um mesmo texto.
PALAVRAS-CHAVE: Tradução literária; retradução; interpretações literárias;
atualização literária.

ABSTRACT: Through translation and retranslation, the same literary work is


multiplied, presenting and re-presenting itself in other languages, to foreign
cultures, before new generations of readers. Retranslation can be understood
as a process of continuous updating, as different generations of translators
reread, reinterpret and rewrite the same source text, more or less influenced
by the accumulated critical legacy and by previous translations and, what is
more important, surrounded by the sociocultural and political-ideological
parameters of their time – such criteria led George Orwell’s Animal Farm to
be recently retranslated by Paulo Henriques Britto, no longer with “revolução
[revolution]” in the title, but as the more literal A fazenda dos animais. The
present analysis tests the hypothesis of retranslation as renovation by extracting
examples of the words “rebellion” and “revolution” as they appear translated
in Britto’s version and in another Orwellian update, the 2021 translation of

288
the dystopian novel Nineteen eighty-four performed by Lenita Maria Rimoli
Pisetta. The aim is to address retranslation as a generator of literary diversity
and infinite openness to new interpretations of the same text.
KEYWORDS: Literary translation; retranslation; literary interpretations; li-
terary update.

No início de 2013, a editora Penguin publicou uma nova edição de


Nineteen Eighty-Four, de George Orwell, com tarjas pretas na capa co-
brindo o título e o nome do autor. O design assinado por David Pearson
insinua que, caso a distopia descrita ali se concretizasse, o livro seria
certamente censurado. Esse gesto editorial ousado marcou um retorno
da obra orwelliana que só foi se intensificando na última década. No
Brasil, traduções de seus dois textos de ficção mais celebrados, Animal
Farm, de 1945, e Nineteen Eighty-Four, de 1949, figuraram na lista
dos livros de ficção mais vendidos de 2018 a 2021 (PUBLISHNEWS,
2021, n.p.).
Em meio a autocracias à moda do século XXI, combinadas a um
cenário político polarizado e a uma pandemia que obrigou pessoas a
passarem mais tempo sob o olhar vigilante das câmeras, a obra distópica
de Orwell voltou à baila como visionária e até mesmo perigosamen-
te realista. Isso, combinado à entrada da obra do autor em domínio
público em 2020 – 70 anos após sua morte –, desencadeou um boom
de novas traduções brasileiras. Do primeiro livro, entre aquelas com
o título A revolução dos bichos, temos a mais antiga de Heitor Aquino
Ferreira (publicada anteriormente pela Globo, hoje pela Companhia
das Letras), lançada em 1964, e uma quantidade impressionante de
retraduções entre 2021 e 2022,47 totalizando mais de duas dezenas.

47
Além de traduções independentes publicadas por meio da Amazon e de outras
plataformas, há ao menos 20 lançadas por editoras de todo o país. Entre os
tradutores, encontram-se: Marina Colasanti (FTD, 2021); Luisa Geisler (Amo-
ler, 2021); Alexandre Barbosa de Souza (Via Leitura, 2021); Renan Bernardo
(Excelsior, 2021); Petê Rissatti (Biblioteca Azul/Globo, 2021); Fernanda Abreu
(Arqueiro, 2021); Daniel Lühmann (Aleph, 2021); Renata Russo Blazek (Mon-

289
Nineteen Eighty-Four, por sua vez, foi retraduzido ao menos 10 vezes –
com o título numérico 1984, pelo qual o livro é conhecido no Brasil
– de 2021 até o momento.48 Alguns tradutores ficaram encarregados
pela tradução dos dois livros, como Renan Bernardo (Excelsior, 2021)
e Alexandre Barbosa de Souza (Via Leitura, 2021).
Algumas retraduções de Animal Farm adotaram um título diferente
daquele pelo qual a novela alegórica era mais conhecida no Brasil. A
tradução de Leonardo Castilhone (Martin Claret, 2021) foi publica-
da com o título A fazenda dos bichos. Já as traduções de Sandra Pina
(Melhoramentos, 2021), Fábio Bonillo (Autêntica, 2021), Gustavo
Guimarães (Dying Tree Books, 2021), Denise Bottmann (L&PM,
2021) e Paulo Henriques Britto (Penguin Companhia, 2021) foram
publicadas com o título mais literal A fazenda dos animais. A altera-
ção foi divulgada com orgulho pelas editoras e comentada na imprensa
como uma superação de uma visão herdada da ditadura. Como co-
menta Dirce Waltrick do Amarante sobre a consolidada tradução de
Ferreira: “O ano era 1964, e nada como um livro contra o comunismo
para referendar o golpe militar em curso. O tradutor da versão brasileira
era um tenente, Heitor Aquino Ferreira, secretário do general Golbery
do Couto e Silva” (AMARANTE, 2020, n.p.).
Mudam-se os tempos, mudam-se também as traduções. Partindo
dessa premissa, a reflexão apresentada aqui procura relacionar o fenô-
meno da retradução ao da atualização usando como exemplos escolhas
tradutórias das palavras rebellion e revolution encontradas na tradução A
fazenda dos animais: um conto de fadas, de Paulo Henriques Britto, e em
1984, tradução de Lenita Maria Rimoli Pisetta realizada para a editora
tecristo, 2021); Claudio Blanc (Troia, 2021); Eric Novello (Farol, 2021); Fer-
nanda Consenza (Tordesilhas, 2021); André Czarnobai (Intrínseca, 2021); Jeo-
safá Fernandez Gonçalves (Serra Azul, 2021); Laura Folgueira (Literate Books,
2022); Maria Inês Moll (Autografia, 2022); Rogério W. Galindo (Antofágica,
2022); e Gisele Eberspächer (LVM, 2022).
48
Entre as novas traduções, estão as de Heloisa Jahn e Alexandre Hubner (Com-
panhia das Letras, 2019); Alexandre Boide (Darkside, 2022); Luís Gonzaga
Fragoso (Vozes, 2022); Aline Storto Pereira (Aleph, 2021); Bruno Gambarotto
(Biblioteca Azul/Globo, 2021); e Antonio Xerxenesky (Antofágica, 2022).

290
Martin Claret em 2021. Foram escolhidas essas traduções por seu diá-
logo com a contemporaneidade e pela abundância de paratextos. Como
pontos de referência de traduções passadas, são adotadas a tradução A
revolução dos bichos de Ferreira na edição da Companhia das Letras de
2007 e a clássica tradução 1984 da Companhia Editora Nacional, rea-
lizada por Wilson Velloso em 1954, em edição de 1991.

Retradução como atualização


Assim como a tradução inicial desempenha o importante papel de
introduzir uma obra literária em uma nova língua, apresentando-a a
uma cultura estrangeira, as traduções subsequentes da mesma obra –
aqui chamadas de retraduções – assumem a responsabilidade de reno-
vá-la de tempos em tempos, conferindo-lhe “novo fôlego”, como afirma
Luana Ferreira de Freitas:

A tradução, assim como a crítica, renova o texto literário; os


leitores idealmente mais atentos de literatura, o tradutor e o
crítico, conferem um novo fôlego à obra, ainda que o objeto
seja somente tangenciado, constituindo uma tentativa de abar-
car esse todo jamais abarcável; daí a validade de novas traduções
de textos literários. (FREITAS, 2007, p. 2)

Como pondera Freitas, uma única tradução talvez não dê conta


de um texto literário. A literatura permite variadas interpretações por
parte de leitores, críticos e tradutores, constituindo-se “como contínua
possibilidade de aberturas, reserva indefinida de significados” (ECO,
1991, p. 47); uma nova tradução pode, portanto, enfatizar um ângulo
não explorado anteriormente. Além disso, a retradução permite atuali-
zar, atendendo a necessidades, competências, gostos e posicionamentos
ideológicos que se transformam com o tempo (GAMBIER, 1994).
O caso notável das traduções brasileiras de Orwell nos anos 2020
confirma o desejo de atualizar, renovar: em conjunto, as dezenas de
tradutores que trabalharam e ainda estão (provavelmente) trabalhando
mantêm viva sua obra e colaboram para novos olhares sobre um mesmo

291
material, já influenciados por traduções anteriores, pela fortuna crítica da
obra e pela própria experiência do mundo ocidental ao longo dos mais de
70 anos desde o lançamento de seus livros. Um exemplo palpável desse
acúmulo de influências é a edição da Companhia das Letras da nova tra-
dução de Animal Farm, que possui um ensaio visual, o prefácio original
do autor, um posfácio assinado por Marcelo Pen, uma exibição de capas
publicadas ao longo de 75 anos e sete ensaios críticos de estudiosos de
renome, como Northrop Frye, Raymond Williams e Daphne Patai. A ge-
nerosidade de paratextos (cf. GENETTE, 2009) demonstra o peso de se
retraduzir um livro que já foi lido, relido, reeditado, pensado e repensado.
Há ainda, evidentemente, o aspecto comercial da retradução. É ní-
tida a busca de editoras brasileiras para publicar Orwell assim que sua
obra entrou em domínio público – ou seja, assim que deixou de ser
necessário pagar direitos autorais pela publicação.

Orwell relido
Uma controvérsia central relativa à obra ficcional de George Orwell
(1903-1950), escritor inglês nascido na Índia, diz respeito a quais se-
riam os governos totalitários reais que ele retrata em suas alegorias como
tão cruéis e tirânicos. O autor parece ser disputado em um cabo de
guerra ideológico: “Polemistas intelectuais da esquerda e da direita in-
vocavam com frequência o nome de Orwell, às vezes tratando-o quase
como um objeto de necromancia política”49 (RODDEN, 1989, p. 1).
Muito já se estudou sobre o real posicionamento do escritor, po-
rém, e hoje se sabe que seu desapontamento com os comunistas deriva
de sua experiência na guerra, quando teve a impressão de que a União
Soviética não apoiaria uma revolução proletária na Espanha, portan-
to traindo um princípio básico da esquerda marxista (cf. ORWELL,
2013). Em seu prefácio à edição ucraniana de 1947 de Animal Farm, o
próprio autor declarou:
49
Esta e outras traduções foram feitas por mim. Trecho original: “Intellectual po-
lemicists on both the Left and Right have freely conjured with Orwell’s name
sometimes treating him virtually as an object of political necromancy”.

292
Na verdade, nunca tive opiniões políticas claramente defini-
das. Tornei-me pró-socialista mais por desgosto com a maneira
como os setores mais pobres dos trabalhadores industriais eram
oprimidos e negligenciados do que devido a qualquer admira-
ção teórica por uma sociedade planificada. [...] Assim, em mea-
dos de 1937, quando os comunistas obtiveram o controle (ou o
controle parcial) do governo espanhol e começaram a perseguir
os trotskistas, eu e minha mulher nos vimos em meio às vítimas.
[...] E assim compreendi, mais claramente que nunca, a influ-
ência negativa do mito soviético sobre o movimento socialista
ocidental. (ORWELL, 2020, p. 15-17).

Está declarado, como se vê, que Orwell se considerava socialista,


mas sua obra criticava o stalinismo em específico. Ao longo das déca-
das pós-Segunda Guerra, no entanto, o mundo foi se transformando, e
hoje a maioria dos estudiosos tende a julgar a reflexão orwelliana como
cabível a qualquer tipo de governo autoritário, o que também explica o
boom experimentado por sua obra nos anos recentes, concomitante ao
retorno de representantes da direita populista a governos ocidentais. À
sombra de eleições presidenciais do continente americano no decorrer
dos anos 2010, na chamada “onda conservadora” em que a direita ven-
ceu em países como Argentina, Brasil, Chile, Estados Unidos e Peru,
popularizaram-se memes na internet remetendo a Nineteen Eighty-Four
como uma referência para entender o cenário sociopolítico atual, tais
como: “[o livro] não era para ser um manual de instrução” e “era para
ser uma advertência, não um guia”. Isto é, denunciando um suposto re-
alismo que não se esperaria de um romance distópico, vendo nele uma
coincidência assustadora com a realidade.
Assim, com os reposicionamentos ideológicos pelos quais o
Ocidente foi passando, a visão sobre as alegorias orwellianas foi igual-
mente se transformando. O espectro da sua crítica abriu-se e hoje
abrange não apenas variadas formas de tirania estatal e militar, como
também a opressão do capitalismo selvagem, o poder da mídia, a vigi-
lância constante e a manipulação dos fatos (ou “pós-verdade”50), entre
50
Em 1984, o protagonista Winston Smith trabalha no Ministério da Verdade,

293
outros tantos tópicos prevalentes na vida contemporânea. Por isso, são
justificadas novas tomadas de decisão nas traduções de sua obra.
Para analisar brevemente a possível mudança nas estratégias de tra-
dução, os próximos tópicos focam-se nas palavras rebelião e revolução,
uma ideia nascida do posfácio de Pen sobre A fazenda dos animais, em
que ele escreve sobre o título pelo qual a mesma obra ficou mais conhe-
cida no Brasil, A revolução dos bichos:

Assim, no Brasil, recebemos a obra com o famoso título A revo-


lução dos bichos, deslocando o foco do fruto do ato para o ato em
si, do espaço para a ação. [...] A questão adquire maior interesse
quando se considera que a palavra “revolução” não aparece no
original, mas apenas “rebelião”, fato que levou Ferreira a trocar
esta por aquela algumas vezes [...] Entre as versões de que tenho
conhecimento, apenas a brasileira leva a “revolução” no título,
enquanto a espanhola emprega “rebelião” (Rebélion en la gran-
ja), enquanto a maioria mantém-se mais próxima ao original
(La ferme des animaux, Farm der Tiere, La fattoria degli animali,
Ferma animalelor, Djurfarmen etc.). (PEN, 2020, p. 153-154).

Pen aponta, assim, para o fato de que “revolução” (referindo-se a re-


volution, palavra de mesma raiz latina em inglês) não aparece em Animal
Farm. No entanto, em Nineteen Eighty-Four aparece muitas vezes, o que
possibilita entender a concepção que Orwell tinha dessas duas palavras,
como se verá adiante.
Como consideração prévia, é relevante delinear de que significados
dessas palavras parte a análise a seguir. Todas (rebellion e rebelião/revo-
lution e revolução) vêm do latim (rebellio/revolutionem). E as definições
atuais dicionarizadas nas duas línguas são bem próximas.

que ironicamente é responsável por manipular informações. Essa ironia é lem-


brada hoje em debates sobre o uso discursivo, por parte de políticos, e a recepção,
por parte de eleitores, da chamada “pós-verdade”, que “nasce atrelada ao gesto
político [...] Guiado pela ideologia, o sujeito é inclinado a ser seletivo no que
toca as suas crenças, admitindo como verdadeiras as informações que conferirem
reforço discursivo à sua posição ideológico-histórica” (SIEBERT e PEREIRA,
2020, p. 243).

294
Em inglês, segundo o dicionário Cambridge,51 rebellion seria uma
“ação violenta organizada por um grupo de pessoas que estão tentando
mudar o sistema político em seu país”52 ou uma “ação contra aqueles
em posição de autoridade, contra as regras ou contra a maneira norma-
lizada e aceita de comportamento”.53 No Merriam-Webster, a primeira
acepção é “oposição a uma autoridade ou dominância”,54 e a segunda,
“enfrentamento aberto, armado e geralmente malsucedido, ou resis-
tência a um governo estabelecido”.55 Em português, as definições são
similares. No dicionário Houaiss, consta em primeiro lugar “oposição a
autoridade ou poder dominante” e depois “insurreição contra autorida-
de ou ordem estabelecida, ger. com manifestação armada”. No Aulete,
constam as definições “insurreição contra a autoridade e a ordem esta-
belecidas na tentativa de substituir uma e outra; insurreição; revolta”
e “oposição ou resistência por qualquer meio moral” (portanto, não
necessariamente subentende uma ação física).
Já revolution e revolução possuem nos dicionários uma quantida-
de muito maior de acepções, pois a palavra é adotada nos campos da
astronomia, física, geometria e medicina para identificar tipos de movi-
mentos. Para a presente discussão, é preciso focar no sentido figurado.
Revolution aparece no dicionário Cambridge como “uma mudan-
ça na forma com que um país é governado, em geral para um sistema
político diferente e com frequência por meio do uso da violência ou
guerra”.56 O Merriam-Webster lista as seguintes explicações: “uma mu-
dança repentina, radical ou completa” e “uma mudança fundamental

51
Foram usadas as versões on-line de todos os dicionários citados.
52
Tradução de: “Violent action organized by a group of people who are trying to
change the political system in their country”.
53
Tradução de: “Action against those in authority, against the rules, or against
normal and accepted ways of behaving”.
54
Tradução de: “Opposition to one authority or dominance”.
55
Tradução de: “Open, armed, and usually unsuccessful defiance of or resistance to
an established government”.
56
Tradução de: “A change in the way a country is governed, usually to a different
political system and often using violence or war”.

295
na organização política”.57 Revolução, por sua vez, quer dizer “grande
transformação, mudança sensível de qualquer natureza, seja de modo
progressivo, contínuo, seja de maneira repentina” e “alteração brusca e
significativa de alguma coisa, esp. de natureza político-social”, confor-
me consta no Houaiss. Em uma de suas definições, é colocada como
sinônimo de rebelião: “movimento de revolta contra um poder esta-
belecido, feito por um número significativo de pessoas, em que ger. se
adotam métodos mais ou menos violentos; insurreição, rebelião, su-
blevação”. A Revolução Russa é citada como exemplo do seguinte uso:
“conjunto de acontecimentos históricos que têm lugar numa socieda-
de e que envolvem ger. o país inteiro, quando parte dos insurgentes
consegue tomar o poder, e mudanças profundas (políticas, econômicas,
sociais) se produzem na sociedade”. No dicionário Aulete, no âmbito
político, é listada a seguinte definição: “qualquer transformação social
através de meios radicais”.
O que se pode depreender dessas definições é que rebelião diz res-
peito a algo bem mais específico que revolução. A rebelião é em geral
entendida como uma ação ou um posicionamento contra uma determi-
nada ordem estabelecida. A revolução, por outro lado, tem um sentido
bem mais amplo – trata-se de uma mudança marcante, generalizada
– e pode ser assim definida a posteriori, ou seja, após uma grande mu-
dança, diz-se que houve uma revolução. Por isso é o termo usado para
Revolução Francesa, Revolução Russa, Revolução Cubana etc. Uma re-
belião pode ou não levar a uma revolução e, após uma revolução, pode
ser que ainda haja rebeliões daqueles que se colocam contra o novo
regime instaurado.
A seguir, são feitas breves análises dessas palavras nos textos de par-
tida e suas traduções.

Animal Farm e a rebelião


A alegoria da novela de Orwell é simples e efetiva: em uma fazenda,
57
Traduções de “a sudden, radical, or complete change” e “fundamental change in
political organization”, respectivamente.

296
os animais explorados por seres humanos decidem se rebelar e conquis-
tam sua independência; com o tempo, porém, os líderes da rebelião
mostram-se tão opressores para com seus iguais quanto eram os seres
humanos que derrubaram, e os princípios que levaram à rebelião clara-
mente se perdem. Como escreve Pen em seu posfácio à edição de Britto,
a novela possui chaves de leitura:

Orwell toma ao pé da letra, como ponto de partida, as palavras


de Marx, ainda que seja para subvertê-las no plano da alegoria,
diante dos acontecimentos históricos, trata-se de uma alegoria
satírica, embora também possa ser pensada como um roman
à clef, cuja chave, em geral facilmente auferida, conecta cada
personagem e cada evento da trama, quer seja a figuras históri-
cas, quer seja a acontecimentos da História, quer seja a grupos
sociais específicos. (PEN, 2020, p. 140).

O interessante é que, embora se possa ligar as personagens de


Animal Farm às várias figuras históricas envolvidas na Revolução Russa,
essa não é a única interpretação possível, pois o enredo espelha algo
comum: basta imaginar qualquer situação em que oprimidos se tornam
opressores uma vez que detêm o poder. A chave de leitura existe, mas é
menos fechada do que de início se imaginou.
Está no uso da palavra “revolução” a maior controvérsia quanto à
tradução de Ferreira, realizada em plena instauração do governo militar
no Brasil. “Revolução” é adotada no título (A revolução dos bichos) e em
alguns trechos da novela como tradução de rebellion, que Britto traduz
por “rebelião”. Quanto ao título, em entrevista o próprio Britto disse
que pretendia manter o já canônico A revolução dos bichos, mas aceitou
a sugestão da editora após ler o posfácio de Pen: “Deu-se conta de que o
novo título [A fazenda dos animais], além de tirar o ‘ranço’ da época dos
militares, faz menção direta ao espaço da ação” (AMARANTE, 2020,
n.p.).
Como também comenta Amarante (2020), o uso de “revolução” a
princípio não é problemático como tradução da palavra rebellion, pois,

297
como se viu, essa é mesmo uma de suas acepções. No contexto dos
anos 1960 é que parece reforçar a propaganda anticomunista, especial-
mente no título. No corpo do texto, nota-se a diferença de uso pelos
tradutores:

Tabela 1: Tradução de rebellion

Orwell Ferreira Britto


That is my message to Esta é a mensagem que vos Esta é a minha mensagem
you, comrades: Rebel- trago, camaradas: rebe- para vocês, camaradas:
lion! I do not know when lião! Não sei dizer quando Rebelião! Não sei quando
that Rebellion will come, será esta revolução, pode virá essa Rebelião, talvez
it might be in a week or ser daqui a uma semana em uma semana, talvez
in a hundred years, but ou daqui a um século, mas em cem anos, mas sei,
I know, as surely as I see uma coisa eu sei, tão cer- com tanta certeza quanto
this straw beneath my to quanto vejo esta palha sei que estou pisando na
feet, that sooner or later sob meus pés: mais cedo palha que vejo sob meus
justice will be done. Fix ou mais tarde, justiça será pés, que mais cedo ou
your eyes on that, com- feita. Fixai isso, camara- mais tarde a justiça será
rades, throughout the das, para o resto de vossas feita. Tenham isso como
short remainder of your curtas vidas! meta, camaradas, duran-
lives! (ORWELL, 2007, p. 14) te todo o resto das suas
(ORWELL, 2008, p. 5) curtas vidas! (ORWELL,
2020, p. 29)
And so, almost before E assim, antes de se darem Foi assim que, quase sem
they knew what was hap- conta, a Rebelião vence- se dar conta do que estava
pening, the Rebellion ra. Jones fora expulso, e a acontecendo, os animais
had been successfully car- Granja do Solar era deles. realizaram com sucesso
ried through; Jones was (ORWELL, 2007, p. 22) sua Rebelião; Jones fora
expelled, and the Manor expulso, e a Fazenda do
Farm was theirs. Solar lhes pertencia.
(ORWELL, 2008, p. 12) (ORWELL, 2020, p. 38)

298
Old Benjamin, the don- O velho Benjamim, o O velho Benjamim, o
key, seemed quite un- burro, nada mudara após burro, parecia não ter mu-
changed since the Rebel- a Revolução. Executava dado nem um pouco com
lion. He did his work in sua tarefa da mesma for- a Rebelião. Trabalhava
the same slow obstinate ma obstinadamente lenta do mesmo modo lento e
way as he had done it in como o fazia nos tempos obstinado como sempre
Jones’s time, never shrink- de Jones. Não se esquivava trabalhara no tempo de
ing and never volunteer- ao trabalho normal, mas Jones; nunca se esquivava
ing for extra work either. nunca era voluntário para do trabalho, mas também
About the Rebellion and extraordinários. Sobre a nunca se oferecia para fa-
its results he would ex- revolução e seus resulta- zer hora extra. Jamais ma-
press no opinion. dos não emitia opinião. nifestava opinião alguma
(ORWELL, 2008, p. 19) (ORWELL, 2007, p. 29) a respeito da Rebelião e
suas consequências.
(ORWELL, 2020, p. 46)
This is what came of re- Isso era o que advinha do Era nisso que dava uma
belling against the laws desrespeito às leis da na- rebelião contra as leis da
of Nature, Frederick e tureza, diriam Frederick e natureza, diziam Frederi-
Pilkington said. Pilkington. ck e Pilkington.
(ORWELL, 2008, p. 25) (ORWELL, 2007, p. 36) (ORWELL, 2020, p. 54)
The three hens who had As três galinhas que ha- As três galinhas que ti-
been the ringleaders in viam liderado a tentativa nham liderado a tentativa
the attempted rebellion de reação sobre os ovos de rebelião pelo caso dos
over the eggs now came aproximaram-se [...] ovos então se apresenta-
forward […] (ORWELL, 2007, p. 70) ram [...]
(ORWELL, 2008, p. 56) (ORWELL, 2020, p. 91)
Fonte: Elaborada pela autora (grifos nossos)

A comparação entre as duas traduções à luz do texto de partida


levanta diversas questões, nem todas pertinentes à presente discussão.
Uma diferença chamativa está nas traduções de Fix your eyes on that, que
Ferreira traduz obscuramente como “Fixai isso”, enquanto Britto traz
para um vocabulário corrente, usando “Tenham isso como meta” – o
que, considerando-se a fala dos coaches e gurus do momento, beira a
sátira.
No que diz respeito ao uso de “rebelião”, percebe-se a regularidade
ao longo do texto de Britto, ao passo que Ferreira muda o termo confor-
me o contexto, promovendo uma quebra na rede de significantes e no

299
sistematismo textual (cf. BERMAN, 2012). Na fala inicial do Major,
de incentivo aos seus “camaradas” (por si só, uma referência explícita ao
modo de tratamento dos comunistas), Ferreira traduz Rebellion primei-
ramente como “rebelião” e, na segunda ocorrência, como “revolução”.
No segundo exemplo exposto na tabela, porém, ele usa Rebelião com
a inicial maiúscula, assim como está Rebellion no texto de Orwell. No
terceiro par de menções, quando se fala do burro Benjamim, Ferreira
retoma “revolução” na primeira ocorrência com a inicial maiúscula e, na
segunda, com minúscula, enquanto Orwell e Britto adotam maiúsculas
nos dois casos (Rebellion/Rebelião). Nas outras ocorrências citadas, as
variantes de rebellion (rebelling e attempted rebellion) viram, respecti-
vamente, “desrespeito” e “tentativa de reação” na tradução de Ferreira,
esvaziando a ironia de se rebelar contra uma suposta lei da natureza (hu-
manos oprimindo animais) e de as galinhas se rebelarem contra aqueles
que um dia as instigaram à rebelião. Na tradução de Britto, o uso de
rebelião em todos esses casos reforça o motif e recria a ironia.
Com o uso profícuo de “camaradas” entre os animais e tantas ou-
tras possíveis relações entre Animal Farm e a Revolução Russa,58 é difícil
imaginar que o uso de “rebelião” como tradução de rebellion tenha um
grande impacto na chave de leitura. Mas, na apreensão ideológica do
texto, talvez. Rebelião sugere a insurgência contra um poder opressor, e
por isso possa ser talvez mais facilmente entendida como algo positivo.
Revolução, por sua vez, é um termo mais amplo e flexível, usado para
abarcar um conjunto radical de mudanças. Nesse sentido, o uso regular
de “Rebelião” e “rebelião” por parte de Britto renova o texto de Orwell
em português brasileiro em dois sentidos: aproxima-o do texto de par-
tida, mantendo as várias repetições do mesmo vocábulo, e permite ao
leitor ponderar sobre as rebeliões citadas ao longo da novela como uma

58
É bem palpável a relação entre personagens e personalidades históricas. Como
é amplamente aceito entre estudiosos e leitores, o Major seria Marx; Napoleão,
Stalin; Bola de Neve, Trotsky, e assim por diante. No entanto, como já foi dito,
isso não significa que o texto possa ser lido apenas assim. As mesmas personagens
podem ser relacionadas a outras figuras ou simplesmente a ideias, a depender da
leitura.

300
rebeldia à ordem estabelecida – tanto à ordem dos humanos quanto à
ordem estabelecida posteriormente pelos próprios animais.

1984 e a ode à Revolução


A simplicidade interpretativa de Animal Farm, com sua chave de
leitura, é menos manifesta em Nineteen Eighty-Four, um texto mais lon-
go e minucioso que é também alegórico, mas que se permite relacionar
a uma gama maior de cenários e exibe uma distinta capacidade de pre-
dição do futuro – embora o ano de 1984 possa não ter se passado na
Inglaterra tal como descrito no livro, muitos dos elementos contidos
nele parecem mais realistas do que nunca, a começar pela presença mas-
siva de câmeras por toda parte. Muito da força desse romance distópico
vem do quão completo é o retrato sociopolítico criado por Orwell. Sua
distopia é verossímil: “Orwell conseguiu traçar um quadro vívido e re-
flexivo de toda uma sociedade, do encanamento aos centros de poder”59
(STRUG, 1984, p. 333).
No que diz respeito ao uso de “revolução” e “rebelião”, Nineteen
Eighty-Four traça um quadro bem diferente de Animal Farm, no qual,
como se viu, a palavra usada é sempre rebellion. Em Nineteen Eighty-
Four, lemos com frequência a palavra Revolution para se referir à gui-
nada que levou ao estabelecimento do atual governo do Grande Irmão,
isto é, como uma transformação gloriosa do ponto de vista da classe
dominante. Rebellion é sempre empregada para se referir a uma possí-
vel desobediência a essa nova ordem estabelecida; como leitores, como
seguimos o ponto de vista de um rebelde, Winston Smith, tendemos a
torcer pela rebelião. Ou seja, aqui Orwell imprime uma acepção mais
positiva para a palavra rebelião, como uma tentativa – ainda que mal-
sucedida – de enfrentamento da opressão. Enquanto em Animal Farm
a rebelião se completa, mas não liberta necessariamente a população
da opressão, em Nineteen Eighty-Four a desejada rebelião é oprimida; a
Revolução ganha da rebelião.
59
“Orwell has managed to give a vivid and thoughtful picture of an entire society,
from its plumbing to its centers of power”.

301
Contrapondo o texto de partida e as traduções em algumas de suas
ocorrências:

Tabela 3: Rebelião em 1984

ORWELL VELLOSO PISETTA


(ORWELL, 1991, p. 52)
The sexual act, successful- Executado com êxito, o O ato sexual, bem realiza-
ly performed, was rebel- ato sexual era rebelião. do, era rebelião.
lion. (ORWELL, 2013, p. 67) (ORWELL, 2013, p. 113)
(ORWELL, 2013, p. 78)
Rebellion meant a look A rebelião revelava-se A rebelião significava
in the eyes, an inflexion num olhar, numa inflexão olhar nos olhos, imprimir
of the voice, at the most, da voz; no máximo, num uma inflexão na voz; no
an occasional whispered cochicho ocasional. máximo, sussurrar ocasio-
word. (ORWELL, 2021, p. 69) nalmente uma palavra.
(ORWELL, 2013, p. 80) (ORWELL, 2021, p. 115)
Until they become con- Não se revoltarão en- Até tomarem consciência
scious they will never quanto não se tornarem eles nunca vão se rebe-
rebel, and until after they conscientes, e não se lar, e só depois de terem
have rebelled the cannot tornarão conscientes en- se rebelado eles poderão
become conscious. quanto não se rebelarem. tomar consciência.
(ORWELL, 2013, p. 81) (ORWELL, 1991, p. 70) (ORWELL, 2021, p. 117)
Sometimes, too, they talk- Às vezes, falavam também Outras vezes, também,
ed of engaging in active de se dedicar à rebelião eles falavam em se engajar
rebellion against the Par- ativa contra o Partido, sem em uma rebelião ativa
ty, but with no notion of a menor noção de como contra o Partido, mas sem
how to take the first step. dar o primeiro passo. ideia de como dar o pri-
(ORWELL, 2013, p. 175) (ORWELL, 1991, p. 143) meiro passo.
(ORWELL, 2021, p. 226)
Physical rebellion, or any A rebelião física não é A rebelião física, ou
preliminary move towards possível no momento, qualquer movimento
rebellion, is at present nem qualquer preliminar preliminar na direção da
not possible. de rebelião. rebelião, não é atualmen-
(ORWELL, 2013, p. 240) (ORWELL, 1991, p. 196- te possível.
197) (ORWELL, 2021, p. 303)
Fonte: Elaborada pela autora (grifos nossos)

Vê-se, nessa comparação, que embora a tradução de Velloso seja


dos anos 1950 – uma década antes da publicação de A revolução dos

302
bichos de Ferreira –, seu uso de “rebelião” como tradução de rebellion
e suas variantes está quase sempre presente, com uma exceção no caso
de “Não se revoltarão enquanto não se tornarem conscientes, e não
se tornarão conscientes enquanto não se rebelarem”, em que ele adota
“revoltar-se” como tradução de to rebel e quebra o paralelismo da frase.
Na tradução de Pisetta, rebelião e suas variantes são mantidas em todos
os casos, bem como se nota um claro esforço de manter a pontuação (e
cadência do texto), confirmando a mesma tendência já vista na tradu-
ção de Britto, de a retradução aproximar-se do texto de partida, uma
hipótese levantada por Berman (cf. BERMAN, 1990).
Em seu posfácio, Pisetta (2021, p. 454) observa que na distopia
orwelliana as obras de autores britânicos clássicos estão em uma es-
pécie de processo de tradução para se adequarem ao espírito do parti-
do dominante. Nesse sentido, o processo de retradução de obras como
Animal Farm e Nineteen Eighty-Four não é tão diferente, pois procuram
se adequar ao espírito de seu tempo – a diferença é que, contrariamente
ao projeto de empobrecimento literário do Grande Irmão, elas tendem
a enriquecer e ampliar a experiência literária.

Considerações finais
Neste breve estudo, examinou-se como a retradução promove uma
atualização ideológica ao mesmo tempo em que procura se aproximar
do texto de partida. Trata-se de um movimento paradoxal de afasta-
mento do contexto de partida em direção ao contexto de chegada ao
mesmo tempo em que se realiza um texto mais próximo ao texto de
partida.
As palavras rebelião e revolução podem ser ou não sobrepostas em
seu significado; na obra de Orwell, o emprego é semelhante ao que se
vê no dicionário atual: rebellion relaciona-se a uma insurgência contra
o poder vigente, enquanto revolution diz respeito a uma transformação
político-social generalizada. A escolha tradutória nas ocorrências dessas
palavras foi usada como exemplo. No caso de A fazenda dos animais
de Britto, esse impacto é evidente na escolha da editora de publicar o

303
posfácio de Marcelo Pen, que abertamente critica o uso de “revolução”
na tradução de Ferreira. Com relação ao 1984 de Pisetta, rebellion e suas
variantes foram sistematicamente traduzidas como “rebelião” e suas va-
riantes em português, mantendo uma potencial apreensão positiva da
rebelião que nunca acontece.
Apesar de ser ingênuo negligenciar seu aspecto comercial, é pos-
sível também entender a retradução como uma prova da riqueza do
texto literário. Por ser multifacetada, a literatura se permite ser lida
por variados ângulos, bem como ser renovada ao longo do tempo, em
um processo de ganhos, não de perdas. As muitas retraduções não se
substituem entre si, mas somam-se e contrapõem-se umas às outras,
conduzindo à multiplicação do texto de partida em variadas facetas e
gerando uma tensão bem-vinda entre possíveis interpretações.

Referências
AMARANTE, Dirce Waltrick do. Novo título de ‘A Revolução dos Bichos’ é pulo do
gato, afirma tradutora. In Folha de S. Paulo, 19 de dezembro de 2020. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/12/novo-titulo-de-a-revolucao-
-dos-bichos-e-pulo-do-gato-afirma-tradutora.shtml>. Acesso em 25/07/2022.

BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Trad. Marie-Hélène


C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. Florianópolis: PGET/UFSC, 2012.

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305
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

ESTUDOS SOBRE CONSTRUÇÃO DA


IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL NO TEMPO E
NA MEMÓRIA

Daniane Rafaela de Oliveira60

RESUMO: Este artigo resulta de um conjunto de textos teóricos refletidos


sobre as temáticas do neoliberalismo, da modernidade, cronologia racial, da
construção de memória entre outras, as quais serão inseridas aqui de modo a
relacioná-las ao tema de relações étnico-raciais na sociedade e desenvolvimento
de suas identidades. Esta contribuição tem como objeto de estudo as relações
étnico-raciais, e o objetivo do trabalho é analisar a construção da identidade
étnico-racial no tempo e na memória por meio de algumas teorias importantes
para a compreensão do desenvolvimento social. Trata-se de uma pesquisa
de abordagem qualitativa de cunho exploratório. Vale ressaltar que não há
neste artigo o desvelamento de verdades essenciais e generalizações sobre o
fenômeno de pesquisa em questão, mas a utilização dos textos teóricos para o
movimento de soma de forças para problematizar relações existentes matizadas
por discursos e fatos que naturalizam o racismo no Brasil e no mundo, os
quais sustentam a enganosa democracia racial.
PALAVRAS CHAVES: Identidade, racismo, tempo, memória.

STUDIES ON THE CONSTRUCTION OF ETHNIC-


RACIAL IDENTITY IN TIME AND MEMORY

ABSTRACT: This article results from a set of theoretical texts reflected on the
themes of neoliberalism, modernity, racial chronology, memory construction,
among others, which will be inserted here in order to relate them to the theme
of racial-ethnic relations in society and development of their identities. This
contribution aims to analyze the construction of ethnic-racial identity in time
and in memory through some important theories for the understanding of
social development. It is a research with an exploratory qualitative approach.

60
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, Programa de Pós-Gra-
duação Interdisciplinar em Linguística Aplicada, e-mail: danianeoliveira2020@
gmail.com

306
It is worth mentioning that this article does not reveal essential truths and
generalizations about the research phenomenon in question, but the use of
theoretical texts for the sum of forces movement to problematize existing
relationships nuanced by discourses and facts that naturalize racism in Brazil
and in the world and support deceptive racial democracy.
KEYWORDS: Identity, racism, time, memo

1. Introdução
A construção da identidade étnico-racial no tempo e na memória
é um tema de suma importância para compreendermos a formação das
estruturas sociais, assim como para fazermos questionamentos de como
os conceitos estabelecidos e justificados acontecem em todas as áreas da
convivência humana. Fazer análise da performance das relações étnicas
no Brasil, na contemporaneidade, ou em outro momento da história, fa-
z-nos ver além das aparências e perceber que muitas vezes por trás de uma
convivência aparentemente harmoniosa pode ocorrer relações racistas.
Buscamos corresponder a perspectiva interdisciplinar de uma Teoria
Racial Crítica que foi descrita por Ferreira (2015) como um estudo que
se estende para além das fronteiras disciplinares a fim de analisar raça e
racismo no contexto de outros domínios, como a sociologia, história,
psicologia entre outros. Permitindo, assim, uma abrangente e multi-
facetada análise de como a raça, o racismo e a (des)igualdade racial se
manifestam, este estudo traz reflexões de diferentes autores sobre como
o tempo e a memória podem gerar posicionamentos raciais.
Desse modo, concebendo a linguística como ciência aberta à his-
tória, enfatizando a relevância crítica do tempo e do espaço para a
compreensão da vida humana e dos modos de teorizar da Linguística
Aplicada, contemplando a vida social, cultural, política e histórica, este
trabalho dialoga com teorias que podem levar a uma profunda compre-
ensão de formas de investigação da sociedade.
A contemporaneidade vem trazendo à tona temáticas para a discus-
são e reflexão dos lugares impostos às pessoas em suas especificidades.

307
Manifestações em prol das minorias sociais vêm sendo frequentes nos
diversos âmbitos sociais e reflexões importantes são colocadas em pauta
como as questões relacionadas a gênero, raça, sexualidade, educação
entre outros. Diversos grupos socioculturais, hoje, estão nos cenários
públicos em tentativas de diálogo e negociação. A configuração dessas
lutas muda de acordo com cada contexto, articulando-se com diversas
construções históricas e político-culturais de cada realidade.
Em relação aos movimentos antirracistas, especificamente, desde
suas primeiras décadas do século XX, havia uma forte marca pela luta
de movimentos sociais negros e indígenas em prol de seus direitos e,
também, contra o racismo, o preconceito, a discriminação étnico-racial,
a exclusão social e a posição subalterna a que negros foram relegados na
história brasileira e na memória nacional. No século XXI, muitas ideais
que colocam o negro em evidência são desenvolvidas, mas, apesar de
todas as lutas e dos movimentos, ainda é preciso pensar a construção da
identidade negra no tempo e na memória.
O amparo legal para revisão da atuação do negro e do índio na
história brasileira e memória nacional, com a finalidade de combater
o preconceito e a discriminação étnico-racial e de gerar a conscienti-
zação da sociedade sobre as contribuições das culturas e etnias para a
formação do povo brasileiro, aconteceu a partir de 1980, em especial
com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, que fez da educação e da história importantes instrumentos
de promoção da sujeicidade histórica e da cidadania ativa dos negros e
indígenas brasileiros (ALVES; CARVALHO; COELHO, 2018).
Apesar de todas as lutas e movimentos, ainda vivemos em uma so-
ciedade que não contempla os negros com os seus benefícios, pois existe
e sempre existiu a prática do apagamento da população negra, mesmo
que seja evidente a participação ativa dessa população na construção
histórica da sociedade. A realidade ainda é de exclusão da população
negra! O acesso aos benefícios produzidos por essa mesma população
sempre foi muito difícil (PEREIRA, 2013).

308
A distribuição da ilusão de uma realidade sem racismo continua
sendo real na sociedade. Esse tipo de racismo, além de não contribuir
em nada com a população negra, também deslegitima sua história e
memória de lutas. O racismo aversivo é uma manifestação racista que
pessoas bem-intencionadas que veem a si mesmas como educadas e pro-
gressistas estão mais inclinadas a exibir (DIAGELO,2020).
De acordo com Lima (2018), existe uma dicotomização racial no
Brasil herdada do colonialismo resultando em valores, sociabilidades,
políticas – ou falta delas – na sociedade brasileira. Esta dicotomização
é orientada pelo racismo, gerando relações sociais e institucionais, di-
vidindo a população entre brancos (descendentes de europeus e, logo,
da “raça superior”) e as outras “raças inferiores” (negros e indígenas).
Baseando-se nisso, é preciso, então, levar a discussão sobre as relações
raciais à sociedade e desenvolver uma contribuição para a diminuição
das diferenças sociais relacionadas à raça.
A partir dessas observações preliminares o presente trabalho pre-
tende, com caráter provisório e inicial, oferecer algumas aproximações
à problemática das relações étnico-raciais no tempo e na história, mos-
trando como a memória social pode ser um grande fator para a cons-
trução de uma sociedade mais justa e igualitária, uma vez que, a questão
para muitos pesquisadores das ciências sociais tem sido tanto a possi-
bilidade de inaugurar “um novo paradigma social e político” quanto
“epistemológico” (SANTOS, 2004).

2. Construído o mal-estar contemporâneo


O mal-estar contemporâneo tem sido constituído pelas imposições
do capitalismo no mundo, e essas são baseadas nas relações de domi-
nação. A modernidade é produzida pelo capitalismo contemporâneo e
dominada pelo princípio do desempenho, pois sua temporalidade não
é a da experiência, do conhecimento, da felicidade. Nesse âmbito, ela
é institucionalmente organizada, e este é “o atributo mais eminente
da dominação” – o que corresponde a um encolhimento do “espaço
de experiências” na vida social e da liberdade; liberdade de acesso ao

309
passado e ao futuro como construção de uma subjetividade democrática
(MATOS, 2008).
Quando pensamos no mal-estar contemporâneo, é importante ava-
liarmos a posição que o neoliberalismo ocupa na vida social, uma vez que
ele pode ser pensado como forma de vida: conjunto de práticas que forjam
o sentido da existência. De acordo com Dardot e Laval (2016), o neolibe-
ralismo pode ser entendido como “racionalidade”. Logo, esta racionalidade
neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrên-
cia como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação.
Segundo Dardot e Laval (2016), a definição do neoliberalismo
pode ser descrita como um conjunto de discursos, práticas e dispositi-
vos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo
o princípio universal da concorrência. Os autores citam Foucault e sua
definição de racionalidade política como uma racionalidade “governa-
mental”. No entanto, a noção de governo não é restrita à instituição
‘governo’, mas à forma como é regida a conduta dos homens no interior
de um quadro e com instrumentos de Estado.
As reflexões sobre o neoliberalismo de Dardot e Christian (2016)
podem dialogar com as ideias de Bauman (1997) sobre o sonho de pu-
reza, pois ambas transmitem posições sobre o individualismo e sobre as
práticas orientadoras de modos de ser, dizer, pensar, perceber, valorar e
fazer. O referido autor (1997) traz o sonho da pureza e o coloca como
um ideal a ser conquistado, algo que precisa ser preservado e protegido
contra o considerado impuro. Ainda segundo Bauman (1997), há um
conceito social de que aquilo que não é representado como pureza deve
ser varrido da ordem estabelecida pelas condições da modernidade, ou
seja, deve ser retirado do contexto social.

A pureza é um ideal, uma visão da condição que ainda preci-


sa ser criada, ou da que precisa ser diligentemente protegida
contra as disparidades genuínas ou imaginadas. Sem essa vi-
são, tampouco o conceito de pureza faz sentido, nem a distin-
ção entre pureza e impureza pode ser sensivelmente delineada
(BAUMAN, 1997, p. 13).

310
Consoante Bauman (1997), com sua visão de direção política e so-
cial da significação da pureza, percebemos uma corrente que nos leva às
numerosas corporificações da “sujeira”, a qual é capaz de minar padrões
e fazer com que determinados seres humanos sejam concebidos como
um obstáculo para a apropriada organização do ambiente. Em outras
palavras, é outra pessoa ou, mais especialmente, certa categoria de outra
pessoa que se torna “sujeira” e é tratada como tal (BAUMAN, 1997).
O modelo de pureza de uma determinada ordem apresenta sua própria
sujeira que precisa ser varrida. Ou seja, aquilo que foge à ordem de de-
terminadas construções deve ser eliminado, retirado para não interferir
na limpeza.
De acordo com Nogueira (2006), no Brasil há uma expectativa
geral de que o negro e o índio desapareçam, como tipos raciais, pois
o processo de branqueamento constituirá, em uma noção geral, a me-
lhor solução possível para a heterogeneidade étnica do povo brasileiro.
Dessa forma, existe um movimento de purificação de raças pautado na
tentativa de criar uma nova ordem, um novo começo. Bauman (1997)
ainda argumenta que essa mudança no status da ordem coincidiu como
advento da era moderna.

Essa grave mudança no status da ordem coincidiu com o ad-


vento da era moderna. De fato, pode-se definir a modernidade
como a época, ou o estilo de vida, em que a colocação em ordem
depende do desmantelamento da ordem ‘tradicional’, herdade
e recebida; em que ‘ser’ significa um novo começo permanente
(BAUMAN, 1997, p. 20).

Assim, percebemos que as mudanças trazidas pela modernidade,


tais como a mentalidade ocidental − de ordens econômica, científica,
social e religiosa − produzem ordens e desordens, sendo que as desor-
dens devem ser varridas. Para Bauman (1997), a modernidade produ-
ziu a aniquilação cultural e física dos estranhos e do diferente com uma
destruição criativa, ou seja, demolindo, mas ao mesmo tempo cons-
truindo; mutilando, mas corrigindo.

311
Todas as sociedades produzem estranhos (BAUMAN, 1997). Para
tanto, são pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo moral ou esté-
tico do mundo e que geram a incerteza, logo, dando origem ao mal-estar
de se sentir perdido. De acordo com Bauman (1997), foi o Estado que
soube a importância de a ordem aparecer; aliás, sua constituição foi uma
guerra de atrito empreendida contra estranhos e diferentes. Em consequ-
ência, estratégias antropofágicas (assimilação) e antropoêmica (exclusão)
foram usadas para causar a destruição dos estranhos e diferentes.
Ainda para o citado autor (1997), o projeto moderno fazia a pro-
messa de liberar o indivíduo da identidade herdada, porém sem uma
firme posição contra a identidade. O referido projeto só transformou
a identidade em realização, tornando-a uma tarefa individual e da res-
ponsabilidade do indivíduo. A identidade do indivíduo foi lançada
como um projeto; o projeto social e a ordem individual, ambas vistas
como projeto, estavam inteiramente ligadas.
Compreender tais conceitos discutidos até aqui e relacioná-los a
questões raciais é importante para a construção do entendimento de
que as identidades são elementos políticos e históricos, constituídos a
partir de vivências mediadas pelas organizações sociais. Com Gaspar
(2020), aprendemos que o racismo estrutural pode vir de uma cultura
organizacional e atinge a comunicação da organização, envolvendo a
necessidade de entendimento ou negligência de demandas de sujeitos
que compõem ou se relacionam com a organização.
Nesta seção, foram pontuados os conceitos pertinentes à consti-
tuição do mal-estar contemporâneo sob uma ótica sócio-histórica.
Complementarmente, a próxima seção visa a traçar uma análise dos as-
pectos que envolvem raça e memória social, bem como seus propósitos
na construção da identidade étnico-racial.

3. Raça e memória social


Pollak (1989), ao falar sobre memória, cita Maurice Halbawachs,
cuja análise da memória coletiva enfatiza a força dos diferentes pontos

312
de referência que estruturam nossa memória e que se inserem na me-
mória coletiva a que pertencemos, tais como patrimônio arquitetônico
e seu estilo, as paisagens, as datas e personagens históricos, as tradições
e costumes, certas regras de interação, o folclore e a música e até mesmo
as tradições culinárias. O autor (1989) também pontua que, na tradição
metodológica durkheimiana, diferentes pontos de referência − como
indicadores empíricos da memória coletiva de um determinado grupo,
estruturados por hierarquias e classificações, uma memória que na defi-
nição sobre o comum a um grupo e aquilo que o diferencia dos outros
− transmitem o pertencimento e as fronteiras socioculturais.
Ainda de acordo com Pollak (1989), Maurice Halbwachs cita, além
da seletividade de toda memória, o processo de “negociação” para con-
ciliar memória coletiva e memórias individuais, pois para uma memória
ser beneficiada com a memória dos outros, não basta que eles tragam
seus testemunhos, mas é necessário a concordância dessas memórias e a
existência de pontos de contato, de modo que a lembrança trazida por
outros seja reconstruída sobre uma base comum.

Esse reconhecimento do caráter potencialmente problemático


de uma memória coletiva já anuncia a inversão de perspectiva
que marca os trabalhos atuais sobre esse fenômeno. Numa pers-
pectiva construtivista, não se trata mais de lidar com os fatos
sociais como coisas, mas de analisar como os fatos sociais se
tornam coisas, como e por quem eles são solidificados e dota-
dos de duração e estabilidade. Aplicada à memória coletiva, essa
abordagem irá se interessar, portanto, pelos processos e atores
que intervêm no trabalho de constituição e de formalização das
memórias. Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginali-
zados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de
memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas
minoritárias e dominadas, se opõem à “Memória oficial”, no
caso a memória nacional. Num primeiro momento, essa abor-
dagem faz da empatia com os grupos dominados estudados uma
regra metodológica5 e reabilita a periferia e a marginalidade. Ao
contrário de Maurice Halbwachs, ela acentua o caráter destrui-
dor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional.

313
Por outro lado, essas memórias subterrâneas que prosseguem
seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imper-
ceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos
e exacerbados. A memória entra em disputa. Os objetos de pes-
quisa são escolhidos de preferência onde existe conflito e com-
petição entre memórias concorrentes (POLLAK, 1989, p. 4).

Segundo Peralta (2007), é recente a dedicação das ciências sociais


com a base social da memória. Durante muito tempo, essa base foi
negligenciada, no entanto, apesar do desinteresse pelo assunto ao longo
do século XX, é no século XIX que a memória torna-se objeto de inves-
tigação científica. De acordo com a autora, Hobsbawm e Ranger são
os representantes mais notabilizados por uma perspectiva de estudo da
memória que procura, especialmente, analisar quem controla ou impõe
o conteúdo da memória social e de que forma esta memória socialmen-
te imposta serve aos propósitos atuais dos poderes instituídos.
Pollak (1989) reflete sobre a existência das lembranças de uns e zo-
nas de sombra e “não-ditos” de outros. Esses “não-ditos”, caracterizados
como tipologia de discurso e de silêncios, são moldados pela angústia
de não encontrar uma escuta, pelo sentimento de angústia de ser puni-
do por aquilo que se diz ou de se expor a mal-entendidos.
Ao refletir sobre a memória, é importante relacioná-la, mais espe-
cificamente, à afro-brasileira, a fim de examinar a importância desta
para a construção ou reconstrução de um povo. Ferreira (2013) escreve
sobre a existência de um projeto do colonizador de “apagar” a memória
do colonizado para que ele seja o dominado. Ademais, menciona que
várias foram as ações para o sucesso desse projeto, entre eles: as formas
de esquecimento.

Sabe-se de um projeto do colonizador de ‘apagar’ a memória


do colonizado para que este, despido do passado, identidade se
tornasse alvo fácil de dominação. Várias foram as ações para o
sucesso desse projeto, desde as voltas em torno a uma “árvore do
esquecimento”, até a proibição de cultos do candomblé e das de-
mais manifestações culturais de herança africana que surgiram

314
durante o período escravocrata, como a capoeira (FERREIRA,
2013, p. 14).

Ferreira (2013) ressalta que narrar as memórias, o “banzo”, a dor,


as lutas dos antepassados é um movimento de resistência, uma resistên-
cia contra o apagamento, contra o “desmemoriamento”, além de uma
atitude de sobrevivência diante das condições reservadas pela sociedade
pós-colonial ao povo retirado de suas terras, submetido ao ritual da
“árvore do esquecimento” e escravizado por mais de 400 anos em terras
estrangeiras. Isso mostra a força das memórias no discurso e como estão
integradas às ações cotidianas.
Conforme exposto, entendemos que a memória pode contribuir
com a visibilidade da história de um povo e a construção de uma iden-
tidade, ponto que desde o século XX vem sendo objeto de investigação
científica. Em sequência, na seção seguinte, apontaremos os aspectos
pertinentes ao tempo − particularmente a cronopolítica − e as relações
de poder no percurso histórico.

4. Cronopolítica do tempo racial


Nesta seção, analisamos a discussão geral da cronopolítica proposta
por Charles W. Mills (2020) em conexão com o conceito de “mapas
do tempo”, de Eviatar Zerubavel, usando exemplos religiosos e secula-
res familiares para ilustrar o conceito. Importante mencionarmos que à
época, incontroversamente racializada da modernidade branca, forne-
ceu então o foco principal.
Mills (2020) descreve cronopolítica como aquilo que tem a ver com
as várias maneiras diferentes em que as relações de poder e materiais
entre grupos afetam as relações entre esses grupos com o mundo em
seus aspectos especificamente temporais. Os mapas de tempo podem
ser desenhados nos níveis macro, meso e micro, abrangendo a época,
a contemporaneidade e o dia a dia. Assim, nossa navegação no mundo
e nossas maneiras de dar sentido ao que estamos fazendo no mundo
dependerão em parte desses mapas e de como eles nos permitem nos
localizar no tempo intersubjetivo de nosso grupo.

315
De acordo com o autor, o conceito de mapas de tempo é impor-
tante para a cronopolítica porque ajuda a identificar mapeamentos do
presente e do futuro projetado também. Ou seja, não apenas onde o
grupo social em questão tem sido em sua memória, mas para onde está
indo. Além disso, Mills (2020) relaciona questões sobre modernidade,
política e religião aos aspectos temporais.
O autor ainda (2020) explica que na clássica teoria racista, “raça”
significava subseções naturais da raça humana, demarcada por causali-
dade teológica ou cultural ou biológica (ou, às vezes, de combinações
entre elas), localizados em hierarquias de habilidade cognitiva, propen-
são característica, valor estético e inclinação espiritual. Isto é, a raça
superior foi considerada mais inteligente, mais virtuosa, mais bonita,
e mais desenvolvida espiritualmente do que a raça ou raças inferiores
(MILLS, 2020). Desse modo, o autor define teoria racista como:

A teoria racista acrítica, também conhecida como teoria racis-


ta, está, portanto, comprometida com (i) a realidade da raça
e (ii) a existência de uma hierarquia entre as raças. E isso his-
toricamente elaborou mapas de tempo raciais com base nisso,
embora seus os contornos têm variado de acordo com a teoria
de fundo (teológica / cultural / biológica / combinatória) sen-
do pressuposta. Pense, por exemplo, quão diferente a suposta
temporalidade subjacente será para a teologia teorias de origens
poligênicas (as raças inferiores não brancas como resultado de
criação sobrenatural separada, seja divina ou diabólica) versus
secular teorias de origens monogenéticas (as raças inferiores não
brancas como aquelas mais humanos primitivos mais próximos
dos ancestrais símios da humanidade em uma escala social evo-
lutiva darwinista) (MILLS, 2020 p. 7).

Ao citar a modernidade, Mills (2020) volta-se para a conexão com


as temporalidades não apenas religiosas, mas seculares. Para o autor, a
branquitude, na modernidade, emerge como a categoria racial hege-
mônica, projetando a brancura ao invés de voltar através dos tempos. E
o ponto mais importante apontado pelo autor (2020): a brancura não

316
é monopolística. Distinções intra-europeias são feitas e mapeiam um
ranking “racial” interno, assim o teórico (2020) lembra que o racismo
se tornou a ideologia política mais importante da modernidade com a
sociopolítica europeia, incluindo o liberalismo. Dessa forma, o racismo
não permanece isolado, mas molda todas as ideologias reconhecidas,
sendo um erro teórico representar políticas como o liberalismo, o
conservadorismo e o socialismo como “sem raça”.
Mills (2020) escreve também sobre como as pessoas são represen-
tadas quanto à raça, de modo que representações importantes colocam
pessoas consideradas “de cor” como inferiores.

Considere algumas das figuras mais importantes do cânone oci-


dental e as maneiras pelas quais as pessoas de cor aparecem em
seus pensamentos como exemplificando uma temporalidade in-
ferior. Hobbes (1996: cap. 13) caracteriza os nativos americanos
como “selvagens” incapazes de deixar o estado de natureza e
iniciar a transição temporal para a sociedade e tempo históri-
co. Voltaire (1877) especula que os negros são tão divergentes
da humanidade regular (branca), tão claramente inferior, que
devem ser o produto de uma criação separada, uma linha do
tempo diferente (MILLS, 2020, p.12).

Por fim, Mills (2020) coloca a necessidade de uma cronopolítica


racial de oposição, guiada não pela raça como racismo, mas pela raça
como um reconhecimento da estruturação racial do mundo moderno e
a necessidade concomitante de justiça racial corretiva.

5. Considerações finais
O presente trabalho nos remete a teóricos essenciais para enten-
dermos, de uma forma mais complexa, as relações étnico-raciais pre-
sentes nos diferentes contextos sociais. Consideramos que, conforme
entendemos os movimentos desenvolvidos na construção da memória
social, nas relações econômicas e políticas − as múltiplas temporalidades
e espacialidades entrelaçadas aqui pontuadas − estaremos mais aptos a

317
refletir sobre a complexidade e a relevância de nosso dizer-fazer quando
a pauta legitima o combate ao racismo.
Abrir-se às reflexões das humanidades e das Ciências Sociais, nas
quais a pesquisa em Linguística Aplicada está situada, nos ajuda a com-
preender que as teorias aqui discutidas mostraram que as mudanças
relacionadas à vida sociocultural, política e histórica devem ser consi-
deradas na prática de pesquisa e, além disso, que a questão racial pode
estar ligada a diversas teorias.

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319
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

LETRAMENTO E MULTIMODALIDADE DO
LIVRO LITERÁRIO INFANTIL NA FORMAÇÃO
DO PROFESSOR MEDIADOR DE LEITURA

Denise Giarola Maia (IFMG-campus Ouro Branco / UFMG-FALE-Poslin)

RESUMO: O contato com a Literatura deve ser incentivado e iniciado ainda


cedo, com o adulto lendo livros com o bebê, a fim de lhe introduzir a escrita.
Contudo, a representação nos livros infantis se dá ainda pela tipologia, pela
cor, pelo desenho ou pela colagem, que são indispensáveis para construção e
compreensão da narrativa, bem como para o enriquecimento da experiência
estética das crianças, convidando, assim, o leitor a explorações, brincadeiras
e descobertas. Considerando que o mercado editorial tem produzido livros
diversificados, com a proposta de impulsionar a prática social da leitura
na primeira infância; este artigo busca romper com uma visão canônica
e tradicional de leitura para uma perspectiva do letramento multimodal
(KRESS, 2010; KRESS; VAN LEEUWEN, 1996, 2016 e 2021). Portanto,
é objetivo desta pesquisa de pós-doutorado (Poslin/UFMG) discutir que
conhecimentos da Semiótica Social e da Multimodalidade podem contribuir
para a formação do pedagogo quando atuando em situações de mediação de
leitura. Para isso, vem sendo feita uma revisão bibliográfica e, posteriormente,
será elaborado um manual, em formato de e-book e em uma linguagem mais
acessível, dirigido a esse público alvo. Espera-se que esse material sirva de apoio
durante a etapa de preparação dessas situações de leitura, de maneira que as
intervenções planejadas previamente pelo professor favoreçam o letramento
literário e multimodal de bebês e das crianças.
PALAVRAS-CHAVE: Livro infantil; mediação de leitura; letramento;
multimodalidade.

ABSTRACT: Contact with Literature should be encouraged and started


at an early age, with the adult reading books with the baby, in order to
introduce him to writing. However, representation in children’s books is still
given by typology, color, drawing or collage, which are indispensable for the
construction and understanding of the narrative, as well as for the enrichment
of children’s aesthetic experience, thus inviting the reader to explorations,
games and discoveries. Considering that the publishing market has produced
diversified books, with the proposal to boost the social practice of reading in

320
early childhood; this article seeks to break with a canonical and traditional
view of reading to a multimodal literacy perspective (KRESS, 2010; KRESS;
VAN LEEUWEN, 1996, 2016 and 2021). Therefore, the objective of this
postdoctoral research (Poslin/UFMG) is to discuss what knowledge of Social
Semiotics and Multimodality can contribute to the formation of the pedagogue
when working in reading mediation situations. For this, a bibliographic review
has been carried out and, later, a manual will be prepared, in e-book format
and in a more accessible language, aimed at this target audience. It is hoped
that this material will serve as support during the preparation stage of these
reading situations, so that the interventions previously planned by the teacher
favor the literary and multimodal literacy of babies and children.
KEYWORDS: Children’s book; reading mediation; literacy; multimodality.

Introdução
A criação artística e literária é uma necessidade do ser humano.
Inventar e contar histórias é uma prática milenar que remonta a um
período da história em que as condições de vida eram muito precárias
e as pessoas resistiam a essa realidade bruta. Assim, por meio das nar-
rativas ficcionais, era possível elas imaginarem um mundo onde todos
os obstáculos poderiam ser resolvidos por meios sobrenaturais, dando
esperança ao grupo. Ademais, em linguagem simbólica e pela tradi-
ção oral, os contos transmitiam às gerações seguintes as experiências
e os saberes que a humanidade ia acumulando. Portanto, o direito à
Literatura significa dar ao indivíduo acesso a esse patrimônio cultu-
ral (CANDIDO 2004). As histórias elaboradas em diferentes épocas
e lugares são herança deixada por aqueles que nos antepassaram e que
compartilham conosco seus conhecimentos sobre o mundo, sobre si
mesmos e sobre o outro; suas vivências e seus sentimentos (medo, ale-
grias, afetos) (MACHADO, 2002).
Logo, o contato com a Literatura deve ser incentivado e iniciado
ainda cedo, preferencialmente já no período de gestação, com o adulto
cantando cantigas, canções de ninar, parlendas, etc.; contando e lendo

321
histórias para o bebê61. É pela linguagem que os adultos lhe apresentam
o mundo. Quando seus responsáveis conversam com ele, apontam e
nomeiam objetos e seres, fazendo-o conhecer o mundo ao qual perten-
ce. Além dessa função de designação, a linguagem também cumpre a
função de representação. Então, quando livros são oferecidos aos bebês
e às crianças (bem) pequenas, isto é, quando os adultos leem em voz
alta, apresentando-lhes outra modalidade da linguagem, a escrita ou
“linguagem narrativa” (AMICHE ET AL, 2009, p. 18-19); esses pe-
quenos se deparam com uma representação escrita dos objetos e dos se-
res do mundo, ou seja, as letras que grafam determinada palavra não é o
referente em si, mas está no lugar dele. Contudo, na maioria das vezes,
também a representação nesses livros se manifesta de maneira ilustrada,
por meio de um outro modo de comunicação e representação.
Nesse sentido, no mercado editorial, encontram-se muitos livros
infantis, inclusive, pensados exclusivamente para uma determinada fai-
xa etária, como, por exemplo, para os bebês. São os livros de pano, de
plástico, cartonado e com as bordas arredondadas, ou seja, livros fabri-
cados com material resistente e que facilitam o manuseio da criança.
Tudo isso com a proposta de inseri-la nessa prática social da leitura e de
possibilitar sua formação.
De fato, é inegável que a escuta de textos literários possa aproximar
os bebês e crianças (bem) pequenas do universo literário e do prazer que
pode envolver o ato de ler, fazendo que essa prática se torne um hábito;
bem como estimular a aquisição da linguagem, ampliando o vocabulá-
rio e os significados das palavras e das frases; como também enriquecer
sua imaginação, estimular seu raciocínio, concentração e memorização,
e aprender algum conteúdo. Aliás, a Literatura Infantil se posiciona
entre dois campos: o artístico e o pedagógico (COELHO, 1991).
A história da Literatura Infantil mostra que os primeiros textos li-
terários destinados à criança foram publicados no final do século XVII,

61
Há vários autores que, sob o olhar da Psicologia, Pedagogia e Linguística, discu-
tem a importância da leitura na Primeira Infância, como, por exemplo, Evélio
Cabrejo-Parra, Yolanda Reyes, René Diatkine, Eva Martinez, entre outros.

322
quando Charles Perrault, na França, e no século XIX, quando Jacob e
Wilhelm Grimm (os irmãos Grimm), na Alemanha, e Hans Christian
Andersen, na Dinamarca, começaram a compilar e reunir, em coleções,
narrativas da tradição oral (CANTON, 1999). Esses autores ficaram
conhecidos como os responsáveis por tornar esses contos pertencentes
à narrativa primordial em textos literários que, logo, foram destinados
às crianças e, até hoje, continuam fazendo parte do que vem a ser uma
Literatura Infantil (COELHO, 1991).
Essas coleções continham contos populares que visavam apresentar
às crianças e também às mulheres certas moralidades da época, ensi-
nando-lhes regras de etiqueta e de comportamento (CANTON, 1999).
Assim, surgia uma preocupação com a formação desse público infantil
que, até então, não era visto como diferente do adulto (ZILBERMAN,
2003)62. Ainda hoje, a Literatura Infantil permanece muito associada
a essa finalidade pedagógica, em que as histórias são pretextos para a
aprendizagem de conteúdos escolares e o aprimoramento e domínio da
língua.

Problematizando os critérios de seleção do livro literário


infantil para bebês e crianças (bem) pequenas
Apresentada essa síntese da importância e do papel da Literatura
Infantil, é necessário pontuar algumas questões acerca do que foi dito
até agora. Nota-se que há, por parte da crítica Literária Infantil e dos
trabalhos de alguns importantes pesquisadores, que tive acesso (até o
momento) e que discorrem sobre os benefícios da Literatura na pri-
meira infância, uma centralização na escrita, no código da linguagem
verbal. Logo, esse é um primeiro aspecto que deve ser questionado.
Desde 2018, estou responsável por ministrar as disciplinas de
Literatura Infanto-Juvenil I e II63 no curso de licenciatura em Pedagogia
62
Uma abordagem mais aprofundada a respeito da história da família e do sur-
gimento da noção de infância, bem como sua essa relação com a Literatura e a
escola, pode ser encontrada em Zilberman (2003).
63
De acordo com a atualização da grade curricular e do PPC em 2021, essas duas

323
do Instituto Federal de Minas Gerais - campus Ouro Branco. Durante
as discussões em sala de aula, ouvi diversas vezes as estudantes relatarem
com certo entusiasmo suas experiências com a leitura de livros infantis
de Literatura durante os estágios e residência pedagógica. Contavam
seu encantamento ao observarem os alunos conseguirem reunir as letras
e ler as palavras no texto.
Desse modo, a fala dessas estudantes me inquietava, pois me parece
haver uma redução do livro infantil literário a um mero instrumento
para auxiliar educadore(a)s na alfabetização, sem que se leve em con-
ta outros aspectos e papéis relevantes desse objeto cultural, como, por
exemplo, o enriquecimento da experiência estética das crianças, a partir
de livros que tenham uma linguagem trabalhada artisticamente e re-
cursos como ilustração, material e formato (abas, dobras, texturas) que
convidam a explorações, brincadeiras e descobertas.
De fato, o processo de alfabetização está estreitamente relacionado
ao processo de formação de leitores e escritores. A Literatura, geral-
mente, é denominada como a arte da palavra, então, ler ou ouvir um
texto literário é uma entre outras possibilidades de o bebê e a criança
(bem) pequena entrarem em contato com uma modalidade muito es-
pecífica da língua que é a da palavra escrita, conforme já mencionado.
Consequentemente, nesse contato, ela pode descobrir aspectos muito
importantes dessa modalidade, entre eles: que a organização das pala-
vras no texto escrito é permanente, que elas podem ser pronunciadas de
muitos modos, mas possui uma única grafia, ou seja, que fala e escrita
são sistemas diferentes e autônomos, entre outras. Assim, o texto (ver-
bal) literário pode potencializar essas descobertas, como, por exemplo,
quando um poema brinca com a sonoridade, grafia e sentido das pala-
vras ao usar recursos como os parônimos, as aliterações, as assonâncias,
etc. Contudo, a criança ser alfabetizada (saber decifrar o código linguís-
tico) não garante que ela se tornará um leitor crítico. Daí a importância,
disciplinas sofreram algumas alterações, entre elas a mudança de nomenclatura
para “Literatura Infantil: Educação Infantil” e “Literatura Infantil: Anos Iniciais
do Ensino Fundamental”, respectivamente. Disponível em: https://www.ifmg.
edu.br/ourobranco/nossos-cursos/PPCPedagogia2021.pdf

324
de se ampliar essa discussão do papel do livro literário e da formação
leitora a partir dos estudos dos letramentos e mais especificamente do
letramento literário (COSSON, 2004; SOUZA, COSSON, 2011), já
que ler um poema, um conto, uma narrativa em quadrinhos, entre ou-
tros gêneros dessa esfera artística não é o mesmo que ler uma notícia,
uma receita, um bilhete.
Outro desdobramento disso são os critérios estabelecidos para esco-
lha do livro que não se deve pautar apenas pela idade cronológica e bio-
lógica da criança. Autores como Coelho (1984), a partir da Psicologia
Experimental, levam em consideração os estágios ou fases de desen-
volvimento biopsíquico-afetivo-intelectual, como também o grau ou
nível de conhecimento/domínio do mecanismo da leitura, propondo,
assim, outras categorias como “tipos de leitor”, a saber: pré-leitor, leitor
iniciante, leitor em processo, leitor fluente e leitor crítico.
No entanto, há outros autores que defendem uma flexibilização
desses critérios e até dessas categorias de tipos de leitor, uma vez que
estas atribuem um peso ao código escrito, desconsiderando o fato de
que a criança mesmo não sabendo ler e decifrar todas e cada uma das
palavras do texto pode apreciar as histórias por meio da escuta da leitura
feita pelo adulto (DEBUS, 2005). Além disso, é possível que um texto
literário que, a princípio, não foi pensado para a criança, possa agradá-
-la e ser lido para e com esse público.
Contudo, há ainda nessa flexibilização uma inquietação com rela-
ção à escrita. Por exemplo, Debus (2005, n.p) declara que: “Não ouço
desprezar a linguagem iconográfica, mas ela não pode adquirir foro
de critério de seleção. Muitos títulos que o professor poderia mediar
são descartados por sua construção, com textos longos e com poucas
ilustrações”.
A fala de Debus (2005) é proferida no sentido de construir uma
crítica às categorias de leitor. Coelho (1984, p. 28) sugere alguns prin-
cípios orientadores para escolha de livros adequados a cada categoria,
considerando as inter-relações já mencionadas, dentro do que, segun-
do a autora, seria “uma evolução considerada normal” da criança e do

325
adolescente. Assim, ela recomenda que os livros literários para os pré-
-leitores e leitores iniciantes - que é o caso do perfil do público analisado
por Debus (2005), crianças entre 0 a 6 anos - tenham o predomínio
(às vezes, absoluto) da ilustração sobre a escrita. Esta, quando presen-
te, deve apresentar “palavras de sílabas simples (vogal/consoante/vogal),
organizadas em frases curtas nominais ou absolutas (períodos em coor-
denadas...), enunciados em ordem direta e jogando com elementos re-
petitivos” (COELHO, 1984, p. 31). Já aquela, segundo a autora (1984,
p. 29-30), “devem sugerir uma situação (um acontecimento, um fato,
etc) que seja significativa para a criança ou que lhe seja de alguma forma
atraente”. Sobre essa função de “encantamento” da imagem, ela sugere
“desenho ou pinturas, coloridas ou em preto-e-branco, em traços ou
linhas nítidas, ou em massas de cor que sejam simples e de fácil comu-
nicação visual” e também a técnica da colagem.
Geralmente, algumas obras destinadas a esse público pré-leitor (dos
15/17 meses aos 3 anos) apresentam imagens que podem ser descritas,
dentro das categorias do significado representacional de Kress e van
Leeuwen (2006), como conceituais. Isso significa que não há ali a re-
presentação de uma cena, em que os participantes representados estão
realizando processos, que indiquem que algo está acontecendo ou que
eles estão fazendo algo, de forma que os elementos se interajem em uma
estrutura narrativa, mas sim são representados em termos do que eles
são. No entanto, esse tipo de imagem conceitual pode não estar contri-
buindo para a literariedade (em alguns casos, esta é praticamente inexis-
tente). Nota-se claramente uma intenção desse tipo de livro de ensinar
vocabulário às crianças, apresentando-lhes objetos ou seres desenhados
juntamente com o seu nome (processo de designação ou nomeação)64.
Além disso, Kress e van Leeuwen (2006) já pontuavam, em sua
obra Reading Imagens, este problema da escola. Segundo os autores, há
uma tendência de, nos anos iniciais, os alunos serem estimulados a pro-
duzir imagens, e os livros didáticos serem repletos delas, enquanto que,

64
É possível, na mediação desse tipo de livro, o adulto criar uma narrativa oral a
partir dessas imagens conceituais apresentadas no livro infantil.

326
nas séries mais avançadas, elas se tornam muito mais técnicas e especia-
lizadas (mapas, diagramas), e a escrita passa a ganhar maior proporção
e importância, revelando a valorização apenas de um tipo de comuni-
cação visual e a prevalência de um só tipo de letramento: o tradicional.
Esse apontamento se enquadra perfeitamente no que diz respeito às
orientações dos critérios da escolha dos livros literários destinados ao
público infantil e juvenil, ou seja, à medida que o aluno vai crescendo e
avançando nas séries/anos escolares, é esperado que a escrita nos livros
ganhe predominância sobre a imagem e que outros gêneros sejam ex-
plorados, por exemplo, a novela, o romance, e não apenas o conto.
No entanto, as contribuições tanto dos estudos dos letramentos
quanto da abordagem da Multimodalidade têm possibilitado repensar
nossas concepções sobre a leitura, considerando a multiplicidade de
formas de fazer sentido. Afinal, diversos modos e recursos são sempre
usados juntos na constituição dos textos, assim por qual motivo seria
diferente em relação ao texto literário?
Portanto, não significa que um livro só com imagens, a exemplo do
livro ilustrado, do livro álbum, será mais fácil para a criança pequena,
isto é, para aquela que ainda não é alfabetizada fazer a “leitura” dele
sozinha, sem a mediação do adulto. Conquanto também a leitura desse
livro pode ser difícil para o adulto e sua mediação com as crianças de-
safiadora. Além disso, nem todo livro ilustrado significa que ele tenha
como público alvo o infantil. O que só torna a questão ainda mais com-
plexa, pois exigirá, no âmbito da escola, que educadores tenham uma
capacidade de interpretar os significados que podem ser construídos a
partir da relação e combinação dos vários modos no projeto gráfico de
uma obra, avaliando se essa estaria adequada ou não para sua turma.
Por esse motivo, há aqui uma preocupação com a formação desse pro-
fissional, já que antes de chegar às mãos da criança, o livro passa pelo
crivo do professor.
Em 2021, tive a oportunidade de orientar o Trabalho de Conclusão
de Curso da estudante de Pedagogia Fernanda Aparecida Rafael que se
propôs a analisar as ilustrações da obra “Barbazul” (2017) de Anabella

327
López, interpretando as escolhas feitas pela autora/ilustradora, a fim de
identificar como ela cria novos significados para esse conto originalmente
escrito por Perrault, tendo em vista que, na atualidade, há um retorno
por parte das obras aos contos tradicionais que são recriados de acordo
com os questionamentos da sociedade em que vivemos65.
Na contemporaneidade, a noção de livro como textos (escritos)
pertencentes a diferentes gêneros impressos sobre as páginas é obsoleta,
sobretudo, se pensamos no livro infantil. No mercado editorial, encon-
tram-se inúmeros formatos de livros, tais como, o livro-álbum, o livro
pop-up, o livro-túnel, o carrossel, o livro pull-the-tab, livro-brinquedo,
etc. que nos chama a atenção para a sua materialidade. Assim, neste
contexto, o livro passa a ser compreendido como um objeto que inclui,
em sua composição, múltiplos modos. Considerando ainda as novas
tecnologias e a internet, outro fenômeno relacionado a esse objeto são
os chamados livros digitais (e-book) os quais “acionam modos diferen-
ciados de ler e sobrelevam a necessidade de maior interatividade por
parte do leitor” (REMENCHE; MACHADO, 2017, p. 158).
Nesse sentido, tenho coordenado o projeto de Iniciação Científica
“Análise multimodal do design de livros digitais e aplicativos de
Literatura Infantil”, contemplado nos editais internos 026/2019,
015/2021 e 013/2022 do Programa Institucional de bolsas (PIBIC e
PIBIC Jr.) do IFMG.
No primeiro ano de vigência do projeto em 2020, buscamos66 dis-
cutir o estado da arte, fazendo uma revisão literária e discussão de tra-
balhos teóricos que tratam da temática, ou seja, que fazem um estudo

65
A monografia (Licenciatura em Pedagogia) defendida no dia 27 de maio de 2021
pode ser acessada no Repositório Acadêmico do IFMG – campus Ouro Bran-
co. Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1a0sgqNgADfsDE_
U5xBgTiS1wBkT_fBG8, e também no artigo publicado no periódico Kiri-Kerê
– Pesquisa em Ensino - v. 1 n. 8 (2022): Dossiê: Ensino, Leitura, Letramentos
e Multimodalidade. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/kirikere/article/
view/37559.
66
A bolsista do projeto era a estudante do curso de Licenciatura em Pedagogia
Mariana Jeronimo Borges da Luz.

328
desse objeto cultural que são os livros digitais infantis. Resultado des-
sa atividade foi a participação com apresentação de trabalho no XIV
Congresso Internacional de Linguagem e Tecnologia Online, que acon-
teceu entre os dias 04 a 06 de novembro de 2020, e cujo artigo com-
pleto pode ser acessado nos anais do evento67. Além disso, fizemos um
levantamento de livros digitais infantis produzidos no contexto brasilei-
ro e selecionamos os livros da “estante digital” do programa “Leia para
uma criança” como corpus de análise, por se tratar de uma coleção dis-
ponibilizada gratuitamente. Assim, uma análise preliminar do primeiro
livro da coleção foi apresentada no Planeta IFMG – IX Seminário de
Iniciação Científica (SIC) e o resumo expandido publicado nos anais68.
Recentemente, neste segundo ano do projeto, estamos69 dando con-
tinuidade às suas ações de análise do design gráfico desses livros apli-
cativos da coleção Kidsbook Itaú criança, os quais trazem uma história
com animações e sons, para, assim, podemos questionar a literariedade
desses recursos70.
Diante desse novo cenário, torna-se urgente e necessário debater
as questões que aqui foram sendo pontuadas. Assim, o objetivo da

67
Encontro Virtual de Documentação em Software Livre e Congresso Interna-
cional de Linguagem e Tecnologia Online v. 9, n. 1 (2020): XIV Anais do Evi-
dosol/CILTec (Edição 2020), pelo seguinte link: http://www.periodicos.letras.
ufmg.br/index.php/anais_linguagem_tecnologia/article/view/17772 Acesso em:
16/02/2022.
68
LUZ, Mariana Jeronimo Borges da; MAIA, Denise Giarola. ANÁLISE MULTI-
MODAL DO DESIGN DO LIVRO DIGITAL “O MENINO E O FOGUE-
TE”. In: Anais do Seminário de Iniciação Científica IFMG. Anais...Belo Ho-
rizonte(MG) IFMG, 2021. Disponível em: https://www.even3.com.br/anais/
planetaifmg/375017-analise-multimodal-do-design-do-livro-digital-o-menino-
-e-o-foguete/. Acesso em: 16/02/2022.
69
Atualmente, a bolsista do projeto é a estudante do curso de Licenciatura em
Pedagogia Leticia Stefane Cunha Castro.
70
A palestra “A multimodalidade das obras de Literatura Infantil digital do pro-
grama ‘Leia para uma criança’” foi ministrada pelos integrantes do projeto na
18ª Semana Nacional de Ciência e Tecnologia do Instituto Federal de Ciência e
Tecnologia de Minas Gerais, compondo uma das atividades da programação do
dia 19 de novembro. Disponível em: https://www.even3.com.br/snctifmg2021/
Acesso em: 16/02/2022.

329
pesquisa de pós-doutorado, que este artigo busca apresentar, é discu-
tir que conhecimentos teórico-metodológicos da Semiótica Social e da
abordagem da Multimodalidade podem contribuir para a formação do
pedagogo - professor de Educação Infantil e anos iniciais do Ensino
Fundamental - quando atuando em situações de mediação de leitura e
letramento do livro ilustrado.

Discutindo alguns pressupostos da Semiótica Social e da


Multimodalidade úteis no processo de mediação da leitura do
livro ilustrado infantil
Com as mudanças na paisagem semiótica do século XX, em que os
artefatos artísticos e culturais, bem como a própria interação, têm uti-
lizado cada vez mais, e de forma diferente, uma variedade de recursos e
modos, há um esforço por parte da Semiótica Social em desenvolver um
modelo teórico que possa ser aplicado em todos os modos semióticos.
Assim, o termo “multimodalidade” tem sido frequentemente uti-
lizado para se referir a abordagens que compreendem a comunicação e
representação como sendo “mais que a linguagem verbal, e que atende a
toda gama de formas comunicacionais que as pessoas usam – imagem,
gestos, olhar, postura, e assim por diante – e as relações entre elas.71”
(JEWITT, 2011, p. 14, tradução nossa)
Os trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores da Semiótica
Social, associados ao Centre for Multimodal Research do Institute of
Education, do University College London, constituem uma dessas
abordagens que buscam investigar não somente as várias formas co-
municacionais que as pessoas usam – por exemplo, imagem (KRESS,
VAN LEEUWEN, 2006), cor (KRESS, VAN LEEUWEN, 2001), voz
e música (VAN LEEUWEN, 1998 [2008], 1999, 2012), tipografia

71
No original: “multimodality describes approaches that understand communica-
tion and representation to be more than about language, and which attend to the
full range of communicational forms people use - image, gesture, posture, - and
the relationships between them”.

330
(VAN LEEUWEN, 2006; VAN LEEUWEN, DJONOV, 2015) – e
a complexa relação entre elas, mas também, e especialmente, o uso
e os efeitos dos discursos através dos usos dos recursos desses modos
em variados textos de diferentes domínios (publicitários, jornalísti-
cos, institucionais, etc.), em objetos tridimensionais como brinquedos
(CALDAS-COULTHARD, VAN LEEUWEN, 2002; MACHIN,
VAN LEEUWEN, 2009; VAN LEEUWEN, 2008) e até mesmo em
espaços arquitetônicos (KRESS, VAN LEEUWEN, 2001).
Nesse sentido, a Semiótica Social e a Abordagem da Multimodalidade
oferecem pressupostos teóricos e metodológicos que podem colaborar
na formação desse(a)s futuros educadores e orientá-los acerca dessas
questões pontuadas. Alguns conceitos da abordagem da multimoda-
lidade, tais como o de modo e de design, podem ser centrais para o
entendimento do uso e dos efeitos dos vários modos semióticos em
diferentes livros de Literatura Infantil.
Assim, os modos abrangem desde a escrita e a imagem em uma pá-
gina até a imagem em movimento e o som na tela, e a fala, gesto, olhar,
postura, corporificados na interação. Kress (2015) os define como meios
materiais e físicos compartilhados social e culturalmente como recursos
semióticos para fazer sentido. Cada modo possui seus limites e poten-
cialidades (affordances), isto é, apresenta ou não recursos para melhor re-
alizar certas finalidades comunicativas. Por exemplo, “a imagem mostra
o que leva muito tempo para ler, a escrita nomeia o que seria difícil de
mostrar. A cor é usada para destacar aspectos específicos da mensagem
global72” (KRESS, 2010, tradução nossa). Dessa maneira, um ou mais
modos podem ser usados juntos para construir a mensagem desejada,
pois o que falta em um modo pode estar disponível em outro modo.
O design faz referência aos modos e recursos semióticos, e às combi-
nações e arranjos desses, como também aos meios de realizar os discursos

72
No original: “image shows what takes too long to read, and writing names what
would be difficult to show. Colour is used to highlight specific aspects of the
overall message”.

331
no contexto de uma situação comunicativa. O termo está associado, en-
tão, ao momento de criação, digamos que ele é o projeto da mensagem,
pois se encontra entre o conteúdo e a sua expressão (KRESS, VAN
LEEUWEN, 2001).
De acordo com Kress (2003, p. 49, tradução nossa), no design da
mensagem, as pessoas se perguntam: “‘o que é necessário agora, nesta
situação, com esta configuração de propósitos, objetivos, público-alvo
e, com estes recursos, e dado o meu interesse nesta situação?’”73. Essas
escolhas motivadas estão diretamente relacionadas àquilo que os desig-
ners julgam mais adequado para a comunicação, considerando especial-
mente o público e sua relação com ele.
Desse modo, essa noção do design parece servir para orientar o pro-
cesso de mediação da leitura do livro ilustrado infantil, em que o profes-
sor deverá levar os alunos a perceberem os modos que foram usados, em
quais arranjos e de que forma esses modos e arranjos se relacionam para
construção de sentidos e de significados interacionais, representacionais
e composicionais.
Portanto, os estudos da Semiótica Social e da Multimodalidade
nos oferecem conceitos e categorias, bem como uma metodologia ca-
paz de orientar o professor em situações de mediação de leitura e
letramento do livro ilustrado. Há livros em que a originalidade da
criação literária (a narratividade) recaí no uso proeminente da escrita,
outros na ilustração ou em ambos os modos. E isso é surpreendente,
ou seja, saber que temos a nossa disposição uma infinidade de recur-
sos e possibilidades de representação e comunicação, de criação e de
experiência estética. Contudo, é preciso um “equilíbrio”, no sentido
do que os autores da Multimodalidade denominam de “política do
estilo” (ou estética), o que está relacionado ao design e a seu projeto
gráfico.

73
No original: “‘what is needed now, in this one situation, with this configuration
of purposes, aims, audience, and with these resources, and given my interests in
this situation?’”.

332
Considerações finais
O presente artigo buscou divulgar o projeto de pesquisa “Letramento
e multimodalidade do livro literário infantil na formação do professor
mediador de leitura”, que vem sendo desenvolvido no programa de Pós-
Graduação da FALE/IFMG, e também apresentar algumas discussões
suscitadas, até o momento, com a revisão bibliográfica. Espera-se que
o presente trabalho contribua não só com os Estudos do Texto e do
Discurso, linha de pesquisa a qual ela se vincula, mas também com
a Crítica e Teoria Literária Infantil, a qual ainda é um campo muito
pouco explorado, pelo menos, no Brasil, sob a perspectiva da Semiótica
Social e da Multimodalidade. Sendo assim, pretende-se estudar ainda a
obra “Reading Visual Narratives: Image Analysis of Children’s Picture
Books” (PAINTER, MARTIB, UNSWORTH, 2013) que propõe essa
abordagem e análise do significado visual e sua relação com o verbal nos
livros ilustrados para criança.

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335
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

POSTURAS AFETIVAS EM CENÁRIO


DE ATENDIMENTO PEDAGÓGICO: A
PRODUÇÃO DE AÇÕES AFILIATIVAS APÓS A
OCORRÊNCIA DO CHORO NA INTERAÇÃO

Carina Santos Lamas Couto (UFES)


Igor José Souza Mascarenhas (UFES)
Deyvid Petri Ceccon (UFES)
Roberto Perobelli (UFES)

RESUMO: Este trabalho examina os recursos utilizados pelos participantes de


uma pesquisa qualitativa na produção de ações em afiliação após a ocorrência
do choro na interação. Buscamos realçar como as emoções operam na fala-em-
interação e como elas demandam gerenciamentos conjuntos e coordenados
entre os interagentes para a implementação de ações afiliativas, por exemplo.
O dado que integra esta análise faz parte da pesquisa de Couto (2021), que
produziu conhecimentos sobre atendimentos promovidos pela coordenação
pedagógica de uma escola pública de ensino fundamental. Tais atendimentos
destinaram-se a membros da sociedade responsáveis por estudantes (pais,
avós, tios, etc) para tratar dos mais diversos assuntos, como a indisciplina
em sala de aula, acompanhamento de notas, reclamações, entre outros. A
perspectiva teórico-metodológica do trabalho é a da Análise da Conversa de
base etnometodológica, com contribuições dos estudos da multimodalidade na
fala-em-interação. Uma vez que se parte do entendimento de que as posturas
afetivas demonstradas na interação são configuradas no turno a turno das
sequências interacionais, entende-se ser possível descrever suas trajetórias e os
efeitos que produzem na ecologia das práticas a elas relacionadas. Desse modo,
a análise destaca como os interagentes que presenciam o choro gerenciam suas
ações a partir dos índices tornados observáveis na sequência interacional.
PALAVRAS-CHAVE: Fala-em-interação em cenários escolares; Posturas afe-
tivas; Afiliação; Choro.

ABSTRACT: This paper examines the resources that participants of a qualitative


research are employing in order to produce affiliative actions after a cry episode in
interaction. We seek to highlight how emotions work in talk-in-interaction and
how they demand jointly and coordinate managements between interactants
to employ affiliative actions, for example. The data of this analysis is from

336
Couto’s (2021), which built knowledge on pedagogical consultations provided
by the coordination of an elementary public school. These consultations were
addressed to social members responsible for students (parents, great-mothers,
uncles, etc.) to treat various issues, like misconduct in the classroom, learning
monitoring, complaints, among others. We use the investigation policy of
Conversation Analysis, with contributions from the studies on multimodality
in talk-in-interaction. Since that affective stances demonstrated in interaction
are engendered turn by turn in its sequences, we understand that it is possible
to describe the trajectories and effects that these actions produce in its ecology.
Therefore, the analysis highlights how participants of a cry episode manage
their actions based on public signals in the interactional sequence.
KEY-WORDS: Talk-in-interaction in school settings; Affective stances;
Affiliation; Cry.

1. Introdução
O ambiente escolar e seu cotidiano é caracterizado por diversos de-
safios, sobretudo na rotina da sala de aula, seja em questões pedagógicas
relacionadas a discussões sobre métodos, abordagens ou perspectivas de
ensino, seja por questões de políticas escolares que envolvem debates
sobre as condições ideais para o ensino e a aprendizagem, por exemplo.
No entanto, embora tais discussões também sejam de grande relevância
para a agenda da linguística aplicada, buscamos propor nesta pesquisa
uma discussão relacionada à interação que acontece nas minúcias da
rotina escolar, aqui colocando em realce os atendimentos pedagógicos
que buscam organizar e gerenciar tal rotina.
Acreditamos que esta investigação das minúcias do cotidiano de
uma escola poderá elucidar questões que por muitas vezes são vistas,
mas não notadas, pelos membros da sociedade. Sabemos que analisar
uma rotina exige um envolvimento por parte dos envolvidos e, por isso,
buscamos, através de uma perspectiva êmica, nos envolver com os par-
ticipantes durante a pesquisa de campo. Esse empreendimento teve o
intuito de contemplar as particularidades etnográficas dos interagentes
nos contextos pesquisados e de compreender como são empreendidas e
demonstradas as ações sociais por/entre eles.

337
Assim, a pesquisa de campo apresentada neste artigo foi realizada
por meio de um exercício de inspiração etnográfica (cf. PEROBELLI;
LEMOS, 2022). Esse exercício comparece também na pesquisa de mes-
trado de Couto (2021), desenvolvida durante os meses de março e de-
zembro de 2019 em uma escola de ensino fundamental que faz parte da
rede pública do estado do Espírito Santo.
Trazemos para a pesquisa um dado gerado durante um dos aten-
dimentos pedagógicos, que eram realizados, em sua maioria, na sala da
coordenação pedagógica. Os atendimentos eram divididos nos turnos
matutinos e vespertinos e, como não podíamos antecipar quem iria par-
ticipar dos atendimentos, optamos por filmar apenas quando estavam
presentes os responsáveis pelos estudantes. Cabe ressaltar que era expli-
cado, antecipadamente, sobre o que se tratava a pesquisa e sobre nossos
objetivos com aquela investigação.
Após todo o exercício etnográfico realizado e a geração dos dados,
seguimos para outra etapa do trabalho, durante a qual assistimos, re-
petidas vezes, às interações documentadas. Foi através desse processo
empiricamente orientado que o choro, que estava presente nas intera-
ções, nos chamou a atenção e nos motivou a empreender um exercício
analítico para o que acontecia no aqui e agora das interações dos atendi-
mentos pedagógicos.
A partir disso, buscamos investigar como os participantes indiciam
o gerenciamento de suas ações a partir do momento em que o choro é evi-
denciado, orientados pelo objetivo geral de descrever como esses índices
aparecem nas sequências de fala-em-interação em que o choro é tornado
relevante pelos participantes de atendimentos pedagógicos. Para tanto,
estabelecemos como objetivo específico o de descrever o gerenciamento
interacional do choro e o modo como os participantes lidam com essa
postura afetiva na interação.
Durante o percurso analítico da pesquisa, percebemos que diver-
sas questões relacionadas às emoções são colocadas pelos participantes
através de suas ações, como as demonstradas através do choro, princi-
palmente. Desse modo, estudar o choro e as posturas afetivas por ele

338
implicadas no curso de uma interação se tornou o cerne de nossa pes-
quisa. Isso será discutido mais aprofundadamente nas próximas seções.

2. O estudo da emoção como ‘sinal social’


Esta seção procura caracterizar a importância que tem sido atri-
buída às emoções na tradição do pensamento ocidental e, também, na
da linguística teórica, tributária precisamente dessa tradição. Assim, ao
longo da seção, são formulados os dois estatutos correntes desse objeto
de investigação nos referidos campos, um que se declina e outro que se
reivindica. Compreendendo que a Análise da Conversa (AC) se situa
nos estudos em Linguística Aplicada (LA), termina-se pela elucidação
do estatuto das emoções reivindicado neste artigo.
Kanavillil Rajagopalan (2010) classifica como artificiais algumas
dicotomias criadas durante a longa tradição de pensamento ocidental,
em cujo decurso foram elaboradas inúmeras separações depreciativas.
Pode-se aludir a algumas dessas oposições valorativas, como a oposição
fala e escrita, corpo e alma, feminino e masculino e, pois, sentimento e ra-
zão. Afirma Rajagopalan (2010) que as escolas do pensamento sistema-
ticamente reservaram um lugar de menor prestígio à emoção, em favor
do construto da racionalidade, essa entendida como a marca distintiva-
mente humana. O autor relembra que essa dicotomia atribuiu à razão o
lugar do distanciamento, do planejamento e do cálculo, ao passo que, à
emoção, o lugar do espontâneo, do animalesco e da infidelidade.
Sabe-se que a investigação gramatical sob a incumbência de filóso-
fos no passado deu lugar, séculos adiante, à consolidação da Linguística
como uma disciplina científica à parte. A nova ciência, no entanto,
apresentou continuidades com alguns princípios da tradição intelectual
comentada. Niko Besnier (1990) identifica uma tripartição sistemática
na Linguística teórica. Trata-se da prática de decompor artificialmente
a língua em seus significados referencial, social e expressivo. O autor co-
menta que, no geral, se tem considerado o aspecto expressivo ou emo-
tivo como evanescente demais para a descrição científica, ou, ainda, se
tem admitido a pervasividade do afeto no sistema linguístico, porém só

339
se tem estudado abundantemente seu papel no nível lexical (BESNIER,
1990).
Feito o breve exposto, com que se caracterizou o estatuto decli-
nado das emoções, parte-se para a exposição de estatuto reivindicado.
Embora ‘emoção’ e ‘afeto’ sejam conceitos empregados na literatura da
AC de modo intercambiável, conforme Johanna Ruusuvuori (2013),
neste artigo se adota o termo postura afetiva. Cabe, então, especificar
sua abrangência. As posturas afetivas compreendem desde os índices
de afetividade, que são sinalizadores de um envolvimento interpessoal
distintivo, observados nas menores unidades da fala e nas mais efêmeras
ações corporificadas de interagentes, até as cadeias ou sequências inte-
racionais mais amplas de exibição emocional, que compõem episódios
de afeto (RUUSUVUORI, 2013). Essa categoria de análise abrange,
assim, não só ações singulares, como também as seriadas de implicação
afetuosa implementadas através de modalidades verbais e não verbais
com o gerenciamento de dispositivos lexicais, prosódicos e corporifica-
dos (RUUSUVUORI, 2013).
A autora observa, por entre as disciplinas, duas linhas de inquirição
sobre o tema: a de “emoção como experiência individual” e a de “emo-
ção como sinal social” (RUUSUVUORI, 2013, p. 332). A primeira
se caracteriza por tratar as emoções como o transbordamento de esta-
dos psicológicos internos. A segunda, por concebê-las como projetadas,
primordialmente, para os usos sociais. A abordagem da AC, portanto,
reivindica o segundo estatuto referido, que pode ser denominado de
interacional.
Entre as abordagens interacionais, entende-se que aquilo que as
pessoas sentem, como indivíduos, nem sempre corresponde ao que é
por elas exibido socialmente. Analistas da conversa, comenta a auto-
ra, preferem tratar de exibições emocionais. Dessa forma, a política de
investigação muda desde um enfoque essencialista, voltado a conhecer
a “essência” das emoções, para o enfoque em conhecer o modo como
elas emergem e são gerenciadas na interação (RUUSUVUORI, 2013).
Essas exibições, então, não são compreendidas como a expressão de

340
estados psíquicos individuais, de modo que é lançado um olhar sobre
sua dimensão mutuamente demonstrável, do ponto de vista dos inte-
ractantes. Em síntese, postura afetiva é a exibição social coconstruída no
evento particular de fala-em-interação.
Ademais, vem-se comprovando que a emergência de posturas afe-
tivas, como é o caso do choro, não deve ser vista como uma falha, ou
transbordamento involuntário, na autorregulação emocional dos indi-
víduos, pois essas ocorrências se apresentam altamente organizadas e
respectivas aos propósitos pragmáticos dos e das falantes.
Conforme Hepburn (2004), o choro não deve ser compreendi-
do como unitário ou homogêneo. Decompô-lo, isto é, compreender
os elementos que o tornam reconhecível pelos membros da socieda-
de em situações particulares de fala-em-interação, se mostra relevante.
Couto (2021) explica que existem posições sequenciais específicas que
essa postura afetiva ocupa nas trajetórias interacionais. Desse modo,
entende-se que a análise sequencial de ações constitutivas do episódio
de choro, como a ausência de fala, a voz embargada, o ato de fungar,
a inspiração audível e a tremulação das mãos (COUTO, 2021), torna
possível ampliar nossa compreensão acerca de como o choro é reconhe-
cido pelos interagentes.

3. Análise: “Eu entendo ela”


Conforme já adiantado, o segmento aqui analisado faz parte do
corpus de pesquisa de Couto (2021), que realizou pesquisa de campo
em uma escola pública de ensino fundamental. A pesquisadora acom-
panhou e registrou o cotidiano da coordenação pedagógica da insti-
tuição e os atendimentos realizados aos responsáveis pelos estudantes.
O percurso metodológico para a geração, transcrição74 e análises dos
dados foi realizado de acordo com as diretrizes da Análise da Conversa
(SACKS, SCHEGLOFF E JEFFERSON, 2003 [1974]).
74
Utilizamos o modelo de convenções Jefferson (1984; 2004) para a transcrição
da fala, o de Mondada (2018) para a transcrição das ações multimodais e o de
Hepburn (2004) para as características específicas do choro.

341
Tabela 1 – Legenda das convenções de transcrição

Símbolos Referências
: Alongamento do som
, Entonação intermediária
. Entonação descendente
? Entonação ascendente
- Interrupção na produção vocal
= Indicação de elocuções contíguas
↓ Alteração de timbre para mais grave
[ ] Indicação de fala sobreposta
ºfalaº Elocução em volume mais baixo que os do entorno
fala Elocução em volume mais alto que os do entorno
Fala Ênfase em determinada elocução
>fala< Elocução em ritmo acelerado
* * Indicação do começo e do fim de uma ação corporificada
# Indicação do ponto onde se fez a captura da imagem
Fig Indicação da imagem em ordem cronológica
Nome Indicação do participante que executa a ação corporificada
(0,6) Indicação temporal de ausência de fala em segundos e décimos
de segundos
(.) Indicação temporal de ausência de fala menor que 2 décimos de
segundo
Xxxx Elocução cuja autoria não pôde ser determinada
ººajudaºº Sussurrando – cercado por sinais de duplo grau
.shih Exalação úmida
.skuh Exalação seca
~desculpa~ Voz vacilante – cercado por tils
↑↑Desculpa Tom alto – representado por duas ou mais setas para cima
Fonte: Jefferson (1985), Mondada (2018) e Hepburn (2004), adaptados pelos autores.

O evento analisado é uma interação entre a coordenação pedagó-


gica da escola, representada nas figuras das pedagogas e da diretora, e
a mãe de uma estudante, que vai até a escola para justificar a ausência
de sua filha nas atividades semanais. Durante a conversa, a mãe relata
como sua filha vinha sendo perseguida por um colega de classe. Por

342
conta desse conflito, a menina foi agredida fisicamente pela mãe do
estudante na sua vinda para a escola. Desse modo, a responsável vai à
escola entregar o Boletim de Ocorrência e explicar o motivo pelo qual
sua filha não tem podido participar das aulas. O trecho escolhido para a
análise é o momento em que ela começa a chorar ao relatar a vontade de
sua filha de sair da escola e se mudar para outro bairro após o ocorrido.
Participam da conversa, duas pedagogas (PED e PED2), a responsável
pela estudante (RES) e a diretora da escola (DIR) . O trecho a seguir se
inicia com o relato de RES sobre a situação envolvendo a rematrícula
de sua filha na escola.

Excerto 1

A responsável reporta por meio da reformulação o que sua filha


lhe contou sobre não querer mais voltar para a escola após o ataque e,
portanto, não querer realizar a rematrícula (cf. linhas 1 a 3). Na produ-
ção dessa elocução, a responsável demonstra os primeiros sinais de uma
alteração em seu estado emocional, ao embargar a voz (cf. linhas 4 e 5).

Excerto 2: continuação do excerto anterior

343
Em sequência, a diretora emite seu pesar em relação à afirmativa
da responsável ao produzir uma avaliação (vide linha 7). A partir dessa
ação, a mãe retoma o turno para dar continuidade ao seu relato (vide
linhas 9,10,11). É importante ressaltar que nesse turno são observáveis
uma série de índices que irão projetar o choro: as constantes micropau-
sas durante a elocução e a voz trêmula/vacilante nos trechos (~estudar
aqui~, vide linha 10) e (~eu não quero (mãe)~, vide linha 11). Ao final
do turno, com o contato visual direto das três representantes da escola
ali presentes, se inicia o choro (cf. figs. 1 e 2).

Quando a participante cessa de chorar, a diretora rapidamente


toma o turno, construindo uma formulação afiliativa (cf. linha 12,
subsequente).

344
Excerto 3: continuação do excerto anterior

Enquanto produz seu turno, a diretora olha para a pedagoga (vide


fig. 3) demonstrando por meio de sua ação que busca a participação e o
endosso da colega, o que é percebido e confirmado por meio de aceno
de cabeça. Essas ações implementadas nesse contexto exibem a maneira
como as profissionais estão gerenciando em conjunto a situação. Nesse
momento, a outra pedagoga se sobrepõe ao turno de DIR para dizer
que entende o ponto de vista da estudante ao não querer retornar à
escola (cf. linhas 13 e 15). É possível perceber que nesse momento há

345
a tentativa de alcance da intersubjetividade entre as interagentes, na
medida em que a pedagoga se coloca como participante da interação e
afirma que compreende a estudante. Essa intersubjetividade acontece
porque a representante da instituição busca acesso à experiência de sua
interlocutora, tornando-a relevante para a finalidade da interação.
Conforme exposto por Couto (2021, p. 84), “[...] ao se afiliar ao
sofrimento da menina evidenciando que a compreende, PED2 elabora
um turno em que demonstra sua posição sobre a situação descrita por
RES”. Desse modo, podemos afirmar que, diante da exibição de sofri-
mento da participante, as representantes da escola, imbuídas do papel
institucional, reagem dando suporte por meio da afiliação. De acor-
do com Ruusuvuori (2005, p. 204), em descrições de uma experiência
problemática geralmente é tornado relevante um comentário afiliativo
dos destinatários. A afiliação é realizada tão logo é percebido o choro
da interagente e, portanto, operando em caráter de preferência nessa
situação.

4. Considerações finais
A análise dos excertos apresentados nos leva à discussão sobre as
várias questões importantes para os participantes em uma interação
no ambiente escolar, aqui destacados os atendimentos pedagógicos.
Embora discussões sobre desempenho escolar estão e sempre estarão
em pauta em discussões pedagógicas, destacamos aqui, através de nossas
análises, como é importante também sobrelevar as questões afetivas e
emocionais nestes ambientes.
Neste trabalho, discutimos como se lidou com o choro em uma
determinada interação e percebemos que os participantes apresentam
indícios de um choro a ser projetado através da produção de turnos
entremeados por longas ausências de fala e com voz trêmula. Também
observamos que ações afiliativas dos outros participantes, demonstradas
através de olhares, por exemplo, valorizam a perspectiva de quem relata-
va seus problemas e contribui para cumprir o objetivo do entendimento
que é a resolução do que está em discussão na reunião.

346
Desse modo, percebemos que os atendimentos pedagógicos se de-
senham em um cenário interacional que permite não só as exibições de
posturas afetivas dos participantes, como também a troca de experiên-
cias, no sentido em que há a produção de ações afiliativas responsivas à
ocorrência do choro na interação.
Portanto, esta pesquisa nos faz refletir sobre importantes questões
do ambiente escolar, uma vez que enxergamos o gerenciamento de tais
posturas afetivas como um desafio presente na rotina da escola para
além da resolução de problemas pedagógicos ou de outra natureza.
Percebemos que, através deste olhar minucioso para interações em aten-
dimentos pedagógicos, o modo como os participantes produzem suas
ações e respondem à ação de outrem tem desdobramentos na rotina da
escola, sobretudo na gestão escolar.

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pdf. Acesso em: 09 jan. 2023. [Tradução de ______. A Simplest Systematics for the
Organization of Turn Taking for Conversation. Language, v. 50, n. 4, p. 696-735,
1974].

348
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

O QUE O(A)S PROFESSORE(A)S SENTEM


QUANDO ENSINAM A DISTÂNCIA?
AFETIVIDADES, IDENTIDADES E
IDEOLOGIAS EM NARRATIVAS SOBRE O
ENSINO DE LÍNGUA INGLESA

Diogo Oliveira do Espírito Santo (UFRB)


Rafaela Santos de Souza (UFBA)

RESUMO: Este é um recorte de reflexões desenvolvidas em uma pesquisa


narrativa que tem como objetivo investigar práticas de ensino on-line de
língua inglesa no Brasil. Neste trabalho, o foco principal é discutir a relação
entre performances identitárias e afeto em narrativas de professore(a)s que
atuam com ensino a distância, mediante análise de dados gerados a partir
da escrita de diários reflexivos, aplicação de questionários e condução de
entrevistas. Para embasar este estudo, trazemos como aporte teórico a
noção de identidade e afetividade como práticas discursivas (ZEMBYLAS,
2003; 2005; 2020; BARCELOS, 2015) que emergem do encontro entre
diferentes corpos e posicionamentos ideológicos (MORGAN; ROCHA;
MACIEL, 2021), e recorremos às concepções de consciência e sensibilização
translíngue (CANAGARAJAH, 2013; SELTZER, 2020), que nos permitiram
compreender o impacto do paradigma monolíngue não só nos processos de
negociação identitária, mas também nos modos como os sujeitos atribuem
sentido ao processo de ensino e aprendizagem on-line. Frente ao exposto,
esperamos contribuir com pesquisas que se alinham à virada afetiva
(PAVLENKO, 2013) nos estudos da linguagem, a partir da abordagem das
experiências de professore(a)s com a atuação a distância como envolvidas
tanto pelas suas emoções, quanto pela noção de ensino como uma complexa
rede de práticas ideológicas.
PALAVRAS-CHAVE: Afetividade. Identidade. Ensino on-line.

ABSTRACT: In this article, we discuss initial thoughts developed in a narrative


research project which aims to investigate online English teaching practices in
Brazil. The main focus is to discuss, through the analysis of data collected
using interviews, questionnaires and reflective journals, the relationship
between identity performances and affect in the narratives of online English

349
teachers. We draw on the notion of identity and affect as discursive practices
(ZEMBYLAS, 2003; 2005; 2020; BARCELOS, 2015) that emerge from the
encounter between different bodies and ideological positionings (MORGAN;
ROCHA; MACIEL, 2021). We also rely on the concepts of translingual
sensibility and disposition (CANAGARAJAH, 2013; SELTZER, 2020)
to understand the impact of monolingual principles not only on identity
negotiation processes but also on the ways individuals produce meaning
in online teaching and learning contexts. In the light of this, we hope to
contribute to research aligned with the affective turn (PAVLENKO, 2013)
in language studies by approaching the practices of online English teachers as
involved by their emotions and by the notion of teaching as a complex web
of ideological practices.
KEYWORDS: Affect. Identity. Online Teaching.

Palavras iniciais: por que falar de afetividade?


A pandemia da doença causada pelo novo coronavírus, COVID-19,
transformou o cenário educacional em seus mais diferentes níveis. Com
isso, não apenas o que ficou conhecido como ensino remoto, mas tam-
bém as já habituais aulas on-line ganharam destaque. Nesse contexto,
houve um aumento significativo no número de pesquisas interessadas
nos impactos desse “novo normal” nos processos de ensino e aprendiza-
gem de línguas. Na Linguística Aplicada (LA), campo em que situamos
este trabalho, o interesse se voltou, principalmente, para a relação entre
ensino de línguas e as condições de trabalho do(a) professor(a), atrelada
aos seus aspectos didáticos, identitários e afetivos.
Acompanhando tal linha de investigação, este trabalho busca con-
tribuir com os estudos sobre afetividade/emoção75, levando em consi-
deração a atuação de professore(a)s de inglês com o ensino a distân-
cia76. Dados de uma pesquisa narrativa, ainda em andamento, serão

75
Compreendemos ambos os termos como intercambiáveis, uma vez que falar de
afeto evoca experiências emocionais e sentimentais. Assim, emoções e sentimen-
tos envolvem práticas afetivas. Para mais sobre essa discussão, recomendamos a
leitura de Ahmed (2004); Zembylas (2020) e Morgan, Rocha e Maciel (2021).
76
Aqui, diferenciamos ensino remoto emergencial de ensino on-line/a distância.

350
apresentados e discutidos a fim de problematizar a relação entre prática
pedagógica, identidade e ideologia. Ademais, voltaremos a nossa aten-
ção para o papel da sensibilização translíngue no entendimento dessas
emoções como imbricadas nas identidades do(a)s professore(a)s e nego-
ciadas em complexas redes de relações de poder.
Com o intuito de melhor apresentar as nossas problematizações,
dividimos este texto da seguinte maneira: levantamos os principais
aportes teóricos que embasam o nosso olhar sobre afetividade/emoção e
os relacionamos à noção de translinguagem e sensibilização translíngue.
Ainda, apresentamos o cenário da pesquisa, enfocando sua natureza
narrativa, os instrumentos utilizados para a geração de dados, o sujeito
participante e partimos para a discussão e análise preliminar dos da-
dos. Por fim, fazemos nossa conclusão, refletindo sobre a necessidade de
mais pesquisas voltadas para a compreensão das emoções e afetividade
como construções discursivas ideologicamente orientadas e imbricadas
nas experiências que desenvolvemos no contato com o outro.
Feitas as considerações iniciais do nosso estudo, iniciamos a dis-
cussão do seu aporte teórico, debatendo os conceitos de afetividade/
emoção e sensibilização translíngue.

O potencial afetivo em suas diferentes perspectivas


A ligação entre afeto e ensino tem sido tópico de interesse de dife-
rentes áreas do conhecimento nas últimas décadas. Embora na LA, as
emoções tenham sido estudadas desde os anos 70 (BARCELOS et al.,
2022), foi na década de 2010, a partir do que se convencionou chamar

O primeiro se refere a uma prática temporária de ensino, que embora envolva o


trabalho a distância, é caracterizado por uma circunstância de uma crise (como
a causada pela pandemia do coronavírus), já o ensino on-line diz respeito à toda
prática pedagógica mediada pela tecnologia digital independente das circunstân-
cias sanitárias e sociais. Consideramos pertinente fazer essa distinção, uma vez
que enquanto alguns(m)as participantes de nossa pesquisa atuaram com o ensino
remoto emergencial como medida institucional, outro(a)s tiveram experiência
apenas com o ensino on-line, isto é, por meio de aulas particulares sem vincula-
ção a uma instituição educacional.

351
de “virada afetiva” nos estudos da linguagem (PAVLENKO, 2013), que
pesquisas aplicadas centradas nas emoções de professore(a)s de línguas
começou a ganhar destaque. Por conta desses diferentes e produtivos
vieses de investigação, Zembylas (2005), Barcelos e Aragão (2018) e
Barcelos et al. (2022) constataram que assim como são várias as emo-
ções que sentimos, o mesmo acontece com a sua definição, o que levou
ao desenvolvimento de diferentes perspectivas e abordagens de estudo.
Resumimos essas abordagens nas seguintes classificações77: a) psicológi-
ca: também definida como cognitiva e biológica. Nessa perspectiva, as
emoções são vistas como internas ao sujeito; b) sociocultural: fortemen-
te embasada nos trabalhos de Vygotsky, essa perspectiva compreende as
emoções como modeladoras de e moldadas por contextos socioculturais
mais amplos; c) crítica: envolve as perspectivas pós-estruturalistas, dia-
lógicas e discursivas, a partir das quais as emoções são vistas como parte
de uma rede complexa de práticas ideológicas.
Neste trabalho, adotamos a perspectiva crítica de afetividade/
emoção, uma vez que o nosso interesse, assim como postula Zembylas
(2003), é trazer à tona a relação entre afetos, identidades, discursos e
poder, como uma maneira de chamar a atenção de professore(a)s de
línguas para os contextos sociais, políticos e ideológicos nos quais suas
emoções estão envolvidas.
Face ao exposto, compreendemos que uma perspectiva pós-estru-
turalista nos alinha à ideia de afetividade/emoção como fenômenos
intersubjetivos, interativos e dinâmicos constituídos nas relações de
poder78. A partir dessa orientação, é possível considerar afetividade/
emoção como uma “força dinâmica” que conecta discurso, corpos e
ideologias. Assim sendo, ao falarmos desde uma lente crítica e dialógica,

77
Para um maior detalhamento dessas abordagens, sugerimos a leitura de Barcelos
et al. (2022), Zembylas (2005) e Oliveira (2021).
78
Zembylas (2003) assume uma perspectiva foucaultiana segundo a qual o poder
é negociado discursivamente. De acordo com tal orientação, onde há relação
de poder, há a possibilidade de resistência, o que indica que poder e resistência
oferecem caminhos para a agência dos sujeitos. Assim, entende-se que a agência
é produzida também pelas relações de poder construídas no discurso.

352
ressaltamos que essa força toma forma (corpo) através do encontro en-
tre sujeitos, já que “[...] [s]omos afetados pelos outros, pelo mundo, por
tudo a nossa volta, e ao experienciarmos tudo isso, nós respondemos,
afetivamente”. (MORGAN; ROCHA; MACIEL, 2021, p. 339)79
Assim, orientados por Zembylas (2003), percebemos que a adoção
de uma postura crítica/pós-estruturalista/dialógica se fundamenta no
entendimento de que: a) as afetividades não são privadas ou universais
e nem são impulsos que simplesmente acontecem com quem sofre; ao
invés disso, elas são constituídas através da linguagem e se emaranham
em questões mais amplas da vida social; b) as relações de poder estão
imbricadas na maneira como nos expressamos e, com isso, elas tanto
nos permitem como nos proíbem de sentirmos determinadas emoções;
c) os processos de negociação identitária estão atrelados às afetividades
e às relações de poder entre os sujeitos. Dessa maneira, as identidades
são tanto efeitos quanto possibilidades de ação (agência) para enfrenta-
mento das relações desiguais; d) as afetividades/emoções são entendidas
como práticas discursivas, isto é,

[...] não são apenas palavras que usamos para descrever ‘entida-
des emotivas’ [e nem] situações preexistentes com característi-
cas coerentes; pelo contrário, essas palavras são, em si mesmas,
‘práticas ou ações ideológicas’ que servem a diferentes propó-
sitos no processo de criação e negociação da realidade [...].
(ZEMBYLAS, 2005, p. 936)

Desse modo, nos interessa investigar não só como a atuação de


professore(a)s de inglês se configuram como práticas afetivas orientadas
por discursos do que é ensinar e aprender línguas, mas também pro-
blematizar as possibilidades de ação e resistência a tais discursos. Para
isso, portanto, é preciso discutir o lugar dos estudos sobre sensibilização
translíngue na busca por estratégias de enfrentamento e de negociação
das relações desiguais de poder tensionadas nas narrativas desse(a)s pro-
fessore(a)s.

79
É de nossa responsabilidade a tradução de textos originalmente escritos em lín-
gua estrangeira.

353
Repertórios, experiências e translinguagens
A translinguagem, como uma perspectiva teórica das práticas de lin-
guagem de sujeitos bi/multilíngues e como uma orientação pedagógica,
vem ganhando espaço considerável nos estudos sobre língua, identidade
e ensino no campo da Educação, Sociolinguística e LA. Partindo do
uso dinâmico que sujeitos fazem de seus recursos linguísticos, a pers-
pectiva teórico-prática da translinguagem (LI, 2018) desafia as visões de
bi/multilinguismo ainda embasadas em noções monolíngues que desle-
gitimam as práticas de linguagem de grupos minoritários. Desde uma
perspectiva pedagógica (GARCÍA; JOHNSON; SELTZER, 2017), a
translinguagem é compreendida como uma abordagem que acolhe as
línguas e experiências de aluno(a)s e professore(a)s como recursos para
se ensinar e aprender. Em suma, a translinguagem é uma postura episte-
mológica a partir da qual se critica como a herança colonial e moderna
ajudou a manter e a perpetuar hierarquias linguísticas, raciais, culturais
e sociais. É uma perspectiva centrada em sujeitos marcados por diferen-
tes discursos e experiências, muitas vezes ignoradas em pesquisas sobre
a linguagem e em abordagens de ensino de línguas.
De acordo com Otheguy, García e Reid (2015), a translinguagem é
o emprego de todo o repertório linguístico do falante para e na comu-
nicação. Ainda, segundo Li (2018), agir de forma translíngue se refere
à criação de espaços em que os sujeitos podem trazer diferentes dimen-
sões de suas histórias pessoais e de suas experiências para construir sen-
tido. Face ao exposto, é possível observar a atenção dada às trajetórias e
aos recursos que acompanham os sujeitos em suas práticas comunica-
tivas. Com esse movimento, a translinguagem propõe que ao invés de
debater quais línguas são usadas, deveriam ser destacadas as maneiras
através das quais as pessoas selecionam diferentes recursos semióticos
para se comunicar. Com isso, o foco não são as línguas como entidades
autônomas, mas o sujeito envolvido em/por uma rede de recursos que
modelam e são modelados por suas práticas de linguagem.
Uma teorização translíngue ressalta que o ponto de partida para
se estudar e criar inteligibilidade das práticas comunicativas de nossos

354
tempos deve ser o sujeito que experencia o mundo a partir de recursos
semióticos. Diante disso, ao focarmos os repertórios experienciais, vis-
lumbramos caminhos para se investigar como língua, experiência e afe-
tividade se envolvem, uma vez que não só as práticas comunicativas dos
sujeitos são impactadas por suas experiências passadas, mas a sua relação
afetiva com elas organiza as formas como agem discursivamente. Assim,
a translinguagem nos permite refletir sobre como essas experiências se
inscrevem nos corpos dos sujeitos e se tornam recursos com potencial
para orientar sua interação com os outros.
Uma maneira de se investigar o relacionamento entre translingua-
gem, identidade e afetividade, levando em conta a noção de repertório
experiencial anteriormente discutida, é debatendo o papel da sensibili-
zação translíngue na tomada de consciência dos diferentes discursos que
embasam a prática de professore(a)s de línguas. Sobre isso, Canagarajah
(2013) nos diz que sujeitos translíngues lançam mão de um conjunto
de valores, discursos e crenças para se orientarem em suas práticas co-
municativas, e acrescenta que o que os torna abertos à negociação de
sentido a partir desses diferentes recursos é justamente o que ele cha-
ma de disposição cooperativa translíngue. Canagarajah (2013) não só
discute que essa disposição se desenvolve em contextos específicos de
socialização, mas também reconhece a necessidade de se considerar as
experiências pessoais dos sujeitos, sua agência e identidades na análise
de práticas translíngues. Logo, Canagarajah (2013) advoga que a dispo-
sição translíngue seja analisada tanto em seu aspecto cognitivo quanto
afetivo.
Outrossim, para Lee e Canagarajah (2019, p. 354), as disposições
translíngues são compreendidas como “[...] socialmente adquiridas
através das práticas corporais e experienciais”. Já Lee e Jenks (2016, p.
319), discutindo o papel da disposição translíngue no ensino de língua
inglesa, a define como “[...] uma abertura ‘à língua e às diferenças lin-
guísticas’”. Seltzer (2020) também contribui com essa discussão, tra-
zendo o aspecto ideológico das disposições translíngues. Pautada no
conceito de sensibilização translíngue e em sua pertinência no contexto

355
de ensino e aprendizagem de línguas, a autora discute que uma abertura
à translinguagem pode trazer à tona diferentes identidades e ideologias
de professore(a)s e aluno(a)s com relação às línguas.
O que podemos observar, portanto, é que a sensibilização translín-
gue envolve considerar as práticas de linguagem como atravessadas por
diferentes redes ideológicas e relações de poder, que impactam as ma-
neiras como os sujeitos se orientam no mundo e negociam suas próprias
identidades e discursos. Assim, embora essa abertura à diversidade não
esteja imune às práticas monolíngues no ensino de línguas, o desen-
volvimento de uma sensibilização pautada nos princípios translíngues
pode se configurar como um caminho possível para não só se questio-
nar ideologias ainda centradas na noção de norma, correção e hierar-
quização linguística, mas encorajar professore(a)s a perceber como suas
experiências, crenças, afetos e práticas pedagógicas se interseccionam.
Logo, a translinguagem, põe em foco, conforme discutem Lucena
e Torres (2019, p. 636), o sujeito que interage e usa a linguagem “[...]
cruzando fronteiras, enfrentando lógicas monolíngues política e ideo-
logicamente impostas pelo senso comum [...]”. Dessa maneira, neste
trabalho, compreendemos as experiências de professore(a)s de inglês
como recursos pedagógicos que modelam suas identidades e tensionam
as relações afetivas desenvolvidas com e sobre o ensino de línguas.

Contexto da pesquisa e seu percurso teórico-metodológico


Em suas práticas cotidianas, os sujeitos normalmente contam his-
tórias que partem de suas experiências. Esse ato de narrar se configura
como uma prática social, através das quais construímos sentido de nos-
sas ações quando falamos sobre elas. Para Kayi-Aidar (2019), as narra-
tivas de eventos e experiências envolvem relacionamentos interpessoais,
histórias socioculturais e emoções. Para essa autora ainda, embasada
em Cortazzi (1993, p. 3): “[...] enquanto os indivíduos falam ou es-
crevem sobre suas experiências, eles ‘aprendem sobre o que eles sabem,
o que eles sentem, o que eles fazem e como eles fazem, e por que eles
fazem’” (KAYI-AIDAR, 2019, p. 123). Nesse sentido, a narrativa é uma

356
importante fonte de dados para se compreender como os sujeitos se
envolvem em processos constantes de atribuição de sentido a partir de
suas experiências, discursos e ideologias.
Clandinin e Connelly (2011) compreendem pesquisa narrativa
como uma maneira de entender a experiência de modo a envolver co-
laboração entre pesquisadore(a)s e participantes. Já Clandinin (2013)
define pesquisa narrativa como uma abordagem de estudo das experiên-
cias humanas como um recurso para a construção de conhecimento.
Neste trabalho, é importante pontuar que as narrativas não são apenas
fontes para a geração de dados, mas também caracterizam a natureza da
nossa pesquisa, isto é, elas dizem respeito tanto a um método quanto a
um fenômeno de estudo.
Numa investigação voltada para narrativas, as formas de geração de
dados são variadas. Em nosso caso em questão, elas foram levantadas
através de entrevistas semiestruturadas e da escrita de diários reflexivos.
Segundo Kayi-aidar (2019, p. 126), as entrevistas narrativas “[...] não
são apenas relatos através dos quais informações são solicitadas, mas
ocasiões em que os sentidos são construídos entre pesquisadores e nar-
radores”. Já sobre o uso de diários reflexivos, Andrade e Almeida (2018,
p. 99) discutem que através deles, podemos “[...] ter um acesso ao mun-
do pessoal do(a)s professore(a)s, um recurso para explicitar os próprios
dilemas em relação à atuação profissional, um acesso à avaliação e ao
reajuste de processos didáticos [...]”. Nesses diários, o(a)s participantes
de nossa pesquisa foram solicitado(a)s a fazer análises de aulas especí-
ficas como uma forma de refletirem sobre as suas próprias práticas no
ambiente on-line.
Por motivos de escopo, concentraremos nossa atenção em momen-
tos em que apenas uma das participantes da pesquisa narra sua relação
afetiva com o ensino de língua inglesa. A partir disso, procederemos à
análise dessas instâncias confrontando-as com os conceitos de sensibi-
lização translíngue e de afetividade como prática discursiva ideologica-
mente orientada. Dessa maneira, uma abordagem narrativa para o estu-
do de emoções nos permite compreender como as nossas experiências

357
estão ligadas a desejos, ações, atitudes e valores que extrapolam as bar-
reiras virtuais. Logo, a narrativa como um método interpretativo se tor-
na uma maneira importante de se explorar os sentidos das experiências
afetivas (ZEMBYLAS, 2007).

Análise e discussão dos dados


Segundo informações da Pesquisa Nacional sobre Amostra de
Domicílios (PNAD) Covid-19 (GÓES; MARTINS; NASCIMENTO,
2021), o(a)s profissionais de ensino figuram na primeira colocação das
categorias que mais atuaram com trabalho remoto entre os meses de
março e novembro de 2020. Outro dado que nos interessa é trazido
pelo IBGE (2021) que divulgou que em 2021 houve um aumento de
18% na categoria de trabalhadore(a)s que atuam por conta própria em
comparação ao mesmo período do ano anterior. Esses dados são impor-
tantes, pois apresentam o pano de fundo do(a)s participantes de nossa
pesquisa, como é o caso de Catherine80.
Catherine é formada em língua inglesa, com ênfase em estudos
literários, e atua no ensino on-line desde 2019 como professora
particular. Seu envolvimento na pesquisa iniciou quando respondeu
a um formulário publicado em redes sociais demonstrando interesse
na participação. Ela ministra aulas para aluno(a)s de diferentes níveis
de proficiência e com variados propósitos de aprendizagem. Entre
uma aula e outra, Catherine ainda se dedica a realizar cursos de
empreendedorismo e à divulgação de seus serviços como professora.
Catherine tem colaborado com a geração de dados através da escrita
constante de diários reflexivos de suas aulas e da participação em
entrevistas.
Na próxima seção nos concentraremos em trechos das narrativas de
Catherine datadas do início do ano de 2022, buscando debater as ins-
tâncias em que foram possíveis estabelecer relações entre ensino on-line,
translinguagem e afetividade/emoção.

80
Pseudônimos foram utilizados para preservar a identidade do(a)s participantes.

358
“Você não pode deixar que eles falem português”: tensionando
o cansaço, a vergonha e o trauma em narrativas sobre o ensino
de inglês
Estudos apontam que o trabalho on-line em meio à pandemia vem
nos adoecendo física e mentalmente (JORGE et al., 2021). No caso
de professore(a)s, além de atuarem em um contexto de incertezas, dis-
tanciamentos e restrições impostas pela pandemia, ele(a)s lidam com
forças ideológicas que extrapolam o cenário epidemiológico. Os trechos
que trazemos a seguir serão o pontapé inicial para desenvolvermos essa
ideia.
Neste primeiro trecho81, Catherine reflete sobre como a situação
pandêmica tem afetado as suas aulas:

[...] esse fim de ano foi pesado para todo mundo. Eu deixei de
ter novos alunos na pandemia, nas épocas que deveria. [...] Mas,
eu acho que as pessoas estão um pouco mais exaustas, mais can-
sadas [...]. (Entrevista)

Em outros momentos da entrevista, a participante narra como a


sua prática é afetada pelo uso de outras línguas em aula. Aqui, percebe-
mos que a relação com cansaço é trazida à tona mais uma vez:

[...] O português, né? Eu não sei se englobaria nisso, né, em


outras línguas. O português eu uso da seguinte forma. Vamos
dizer, eu não deveria (fazendo gestos de aspas com os dedos) se-
gundo o CELTA ou segundo algumas metodologias mais tradi-
cionais. [...] Pela minha prática, é muito difícil um aluno básico
ficar 100% em inglês. E existe um treinamento para que você
faça isso. Eu passei por esse treinamento. Eu dei aula 100% em
inglês para gente que tinha ZERO inglês. Gente que você estava
ensinando o verbo to be ou como se apresentar em inglês, tipo:
‘hi, my name is’, sabe? E tudo isso tinha que ser em inglês. Eu

81
Adaptações foram realizadas na transcrição original, a fim de aproximá-la da
norma padrão da língua portuguesa. Os parênteses ( ) foram usadas para as ob-
servações do(a)s pesquisadore(a)s.

359
consegui. Mas, eu consegui porque no plano de aula para esse
curso do CELTA, eu escrevia tudo o que eu ia dizer. Enquanto
eu estava dando aula, eu lia o plano de aula. Porque você precisa
pensar muito em tudo o que você vai dizer, se você vai dar tudo
em inglês para um aluno que não sabe nada em inglês. É uma
loucura. É possível. Eu não achava que era, mas era e eu fiz. Não
curto (coloca a mão na testa indicando dor de cabeça). Caraca,
mano, eu tinha que escrever tudo, entendeu? Então, demora
um tempo até você internalizar aquela linguagem mais simples.
Muitos gestos, enfim, muita demonstração. E os alunos têm
muito dúvida. Você não pode deixar que eles falem em portu-
guês. Ai... (coloca a mão na testa e balança a cabeça indicando
dor). Me cansa, sabe? É muito cansativo. Então, com alunos de
níveis mais básicos eu uso português [...]. (Entrevista)

Já em um dos seus diários reflexivos, Catherine retoma o uso de


outras línguas como um recurso para o processo de ensino e aprendiza-
gem. No entanto, é possível observar como tal prática vem, novamente,
associada ao sentimento de cansaço:

Uma coisa que preciso ser mais firme com esse aluno é o uso
de inglês durante a aula. No começo, ele não entendia nada,
então eu usava muito português e deixava ele usar também. Mas
hoje ele pode mais. Mas ele ainda insiste em falar português. E
quando estou muito cansada, simplesmente deixo rolar. É mui-
to cansativa a comunicação somente em inglês no nível básico.
Mas sei que é importante para o aluno se esforçar se comunicar
na língua alvo, mesmo com as dificuldades, pois as situações
reais de uso do inglês também são assim, né. (Diário reflexivo
eletrônico)

Por fim, em outro trecho de sua narrativa oral, Catherine relaciona


o uso de outras línguas no ensino de inglês ao sentimento de vergo-
nha. Essa associação parece ser consequência do “treinamento” recebido
como parte de uma avaliação que a conferiria um certificado interna-
cional de ensino de língua inglesa, o CELTA, já trazido no primeiro
trecho:

360
(O CELTA) me abriu muita, muita possibilidade, mas também
me criou alguns traumas, assim, porque no CELTA você tem
que dar oito aulas que são monitoradas, né, pelo tutor e pelos
seus colegas de curso. Cara, quando passa o momento assim
de tipo: ‘mano, isso aqui deu errado, então travou o computa-
dor’ (põe as duas mãos no rosto indicando vergonha), na minha
mente parece que, tipo, eles estão lá vendo e anotando e de-
pois a gente vai conversar sobre isso que era o que acontecia no
CELTA. (Entrevista)

Como podemos observar, a relação de Catherine com o ensino on-


-line de língua inglesa tem sido impactada não só pelos sentimentos
atrelados à situação pandêmica em si, mas também a fatores ligados
a discursos específicos sobre o ensino de inglês. Nesse caso, se torna
necessário nos concentrarmos nas instâncias em que a participante mo-
biliza tais discursos e abre brechas para pensarmos diferente sobre o
processo de ensino e aprendizagem desde um viés translíngue e afetivo.
A primeira relação afetiva que merece considerações é a do ensino e
cansaço. Como indicamos anteriormente, esse sentimento aparece não
apenas como uma consequência direta do contexto pandêmico, mas
também como uma insegurança de Catherine ao agir de forma diferen-
te ao preconizado por “algumas metodologias tradicionais”, no que se
refere ao uso de outras línguas no processo de ensino de inglês. Nesse
contexto, Catherine parece ter consciência do papel da língua materna
do aluno como recurso para aprendizagem, como indicado em “Pela
minha prática, é muito difícil um aluno básico ficar 100% em inglês”,
mas observamos que essa predisposição e abertura ao uso de outras lín-
guas é rodeada de incertezas e discursos contrários atribuídos, principal-
mente, ao curso de qualificação (ou treinamento como a participante
chama) CELTA.
O CELTA, conhecido como um dos mais importantes certifica-
dos para professore(a)s que atuam com ensino de inglês como língua
estrangeira, é desenvolvido pela Universidade de Cambridge e certifica,
por ano, ao redor do mundo, mais de 10.000 (dez mil) profissionais

361
interessados em aperfeiçoar suas práticas pedagógicas. Devido ao im-
portante papel que desempenha nas metodologias de ensino de inglês
e ao lugar que ocupa nas narrativas de Catherine, os princípios que
embasam o CELTA atuam, conforme nossa análise, como regimes de
verdade (FOUCAULT, 1977), ditando o que pode ou não ser feito em
sala de aula. Assim, ao relacionar o cansaço à prática de ensino on-line,
Catherine coloca em evidência o impacto não só da pandemia nesse
contexto, mas do discurso monolíngue que ainda orienta o processo de
ensino e aprendizagem de inglês.
Ao narrar que não deveria permitir o uso de português (“Você não
pode deixar que eles falem português”) e de que “deveria ser mais firme”
com aluno(a)s que se embasam nessa língua para aprender, Catherine
expressa seu dilema envolvendo a tentativa de negociar diferentes nor-
mas: uma que se alinha ao seu “treinamento” como professora e outra
mais voltada à realidade que experiencia diariamente com o ensino da
língua inglesa. Esse (in)tenso processo de negociação não impacta so-
mente a condução da aula, mas o corpo de Catherine. Recursos lin-
guísticos e não-linguísticos colaboram nessa observação quando, por
exemplo, Catherine abaixa a cabeça e põe a mão na testa repetidas vezes
para indicar seu cansaço. O cansaço, aqui, é, então, resultado de uma
relação conflituosa com o ensino de inglês, que se movimenta por entre
percepções mais fechadas e contrárias ao emprego de outras línguas e a
prática pedagógica efetiva que demanda seu uso.
Além do cansaço, que vem acompanhado de dor e da sensação de
loucura (“Porque você precisa pensar muito em tudo o que você vai di-
zer, se você vai dar tudo em inglês para um aluno que não sabe nada em
inglês. É uma loucura”), o CELTA desempenha também papel prepon-
derante nos sentimentos de vergonha e trauma narrados por Catherine:
“(O CELTA) me abriu muita, muita possibilidade, mas também me
criou alguns traumas”; “Cara, quando passa o momento assim de tipo
‘mano, isso aqui deu errado, então travou o computador’ (põe as duas
mãos no rosto indicando vergonha), na minha mente parece que, tipo,
eles estão lá vendo e anotando”. Aqui, sua performance como professora

362
é julgada e vigiada (FOUCAULT, 1987) pelo CELTA, que faz parte de
uma memória afetiva traumática: se ela não agir de uma determinada
forma, não será a professora que esperam que seja. Logo, uma instrução
monolíngue atua tanto como vigia, tanto quanto punidora de práticas
pedagógicas que se afastam de seus princípios orientadores.
Concernente ao trauma, Zembylas (2020) nos conta que embora
sejam incipientes estudos sobre narrativas traumáticas e ensino, há dis-
cussões que indicam como tais experiências podem ser recursos afeti-
vos de resistência a discursos homogeneizantes. Nessa lógica, Zembylas
(2020) observa que a relação com o trauma pode levar à criação de
espaços de contestação em sala de aula, uma vez que “[...] as escolhas
pedagógicas feitas sobre as representações do trauma nunca são neutras;
elas já são em si políticas, por sempre estarem inseridas em processos
sociopolíticos mais amplos” (ZEMBYLAS, 2020, p. 13). Trazendo para
o nosso contexto, o trauma de Catherine, assim, pode resultar em prá-
ticas de ensino que se afastem dos princípios que a fizeram passar por
tal experiência, resultando na adoção de posturas de enfrentamento e
resistência à ideologia monolíngue.
Face ao discutido, percebemos que permitir que o(a)s aluno(a)
s falem outra língua que não o inglês coloca em xeque a identidade
de Catherine como professora, uma vez que vai de encontro ao que
o curso de qualificação preconiza como correto. Aqui, o discurso de
“English Only”, calcado numa lógica monolíngue e representado pelo
CELTA não provoca apenas sensações em Catherine, ele modela a sua
relação com o outro e com o ensino. Podemos dizer, assim, apoiados em
Ahmed (2004), que ao invés de considerarmos que “temos” emoções,
se torna mais produtivo pensar no que tais emoções “fazem” conosco.
O cansaço, o trauma e a vergonha, atrelados ao processo de ensino
e aprendizagem, têm suas raízes no que Cummins (2007) chama de
princípio monolíngue, que enfatiza o uso instrucional de uma língua
estrangeira às custas da exclusão da língua do(a) aluno(a). Frente a isso,
propomos a translinguagem como um caminho possível para repensar-
mos os impactos desse princípio por ela defender a abertura aos mais

363
variados recursos linguísticos que circulam no ensino de línguas e por
trazer “[...] para o debate a heterogeneidade nas escolas e o padrão mo-
nolíngue que impera em abordagens e materiais didáticos voltados ao
ensino de línguas”. (LUCENA; CARDOSO, 2018, p. 144)
Alinhadas ao potencial transgressor da translinguagem, García,
Johnson e Seltzer (2017) discutem a necessidade de compreendermos
o stance de professore(a)s de línguas como o primeiro passo para a pro-
moção de ações translíngues. Segundo as autoras, o stance diz respeito às
crenças, ideologias e valores que orientam os professore(a)s em suas prá-
ticas pedagógicas, o que inclui considerar a sua visão de língua, de ensi-
no, dos papeis do(a) aluno(a) e do(a) professor(a) e dos princípios que
embasam toda relação desses sujeitos com os recursos que levam para a
sala de aula. Nos mesmos termos, Lee e Canagarajah (2019) defendem
a inclusão sistemática da sensibilização (ou dispositivo) translíngue em
programas de formação de professore(a)s. Segundo esses autores, um
modo de promover ações translíngues concretas de modo consciente
seria adotar práticas reflexivas que ajudem o(a)s professore(a)s a exami-
narem criticamente como suas ações são modeladas por uma rede de
ideologias linguísticas.
Com isso, à Catherine seria dada a chance de lançar mão da língua
portuguesa não mais como uma prática atrelada ao cansaço ou exclu-
sivamente ao nível de proficiência (“Então, com alunos de níveis mais
básicos eu uso português”), mas como recurso para expandir as possi-
bilidades de aprendizagem e acolher as identidades e vozes de seus/suas
aluno(a)s. Complementarmente, a adoção de práticas de sensibilização
translíngue têm o potencial de permitir formadore(a)s de professore(a)s
a investigar como as crenças e valores associadas a línguas e identidades
levam a diferentes respostas afetivas no processo de ensino e aprendi-
zagem. Assim, a sensibilização translíngue pode facilitar a tomada de
consciência sobre determinados atos afetivos e sobre as consequências
políticas e sociais envolvidas nessas ações.

364
Considerações finais: para onde as emoções podem nos levar?
A virada afetiva nos estudos da linguagem nos permitiu discutir
afetividade não mais sob um viés exclusivamente psicologizante que
enxerga as emoções, pensamentos e comportamentos como caracterís-
ticas individuais. Agora, passamos a nos embasar na consideração de
que não importa o quão pessoal as emoções possam ser, os sujeitos que
sentem estão sempre imbricados em contextos mais amplos de relações
de poder. Este trabalho, ao se alinhar à perspectiva pós-estruturalista
e discursiva de afetividade/emoção, procurou apresentar como o que
professore(a)s de inglês sentem está atravessado por práticas ideológicas
que modelam o aqui e agora do ensino e aprendizagem.
Como uma maneira de discutir a relação entre afetividade/emoção,
ensino de línguas e ideologia, nos voltamos ao método narrativo, por
acreditarmos que para atender a uma investigação das emoções como
processo sociodiscursivo, precisamos teorizá-las como parte de um com-
plexo e dinâmico sistema de experiências (ZEMBYLAS, 2007). Além
disso, lançamos mão dos conceitos de translinguagem e sensibilização
translíngue que nos ajudaram a perceber que o ensino de língua inglesa
é envolvido por atos políticos que podem levar à resistência ou ao refor-
ço de práticas monolíngues que implícita ou explicitamente orientam
os trabalhos em sala de aula.
Por defendermos a adoção de uma sensibilização translíngue tan-
to na condução de aulas quanto na formação de professore(a)s de in-
glês, argumentamos a favor da criação de espaços em que aluno(a)s e
professore(a)s possam compartilhar suas experiências e práticas afetivas
a partir dos repertórios que mobilizam para fazerem sentido de seus
mundos. Nessa lógica ainda, discutimos como o ensino e aprendizagem
on-line está envolvido por fatores que impactam as relações que desen-
volvemos com as emoções (OLIVEIRA, 2021), e observamos como as
identidades docentes e discursos afetivos estão atrelados a determinadas
expectativas e normas sociais (ZEMBYLAS, 2003).
Por ainda estarmos no estágio de análise preliminar dos dados gera-
dos, não foi possível apresentar exemplos efetivos de práticas pedagógicas

365
em que se coloque em voga a atuação dos princípios translíngues e das
emoções como eixos organizadores do trabalho docente. Os dados têm
nos mostrado, por outro lado, que se há o desejo de abertura para o
outro, mas ainda atravessado por sentimentos de medo e insegurança e
pouco fundamentado em uma orientação translíngue. Em suma, con-
sideramos que seja produtivo discutir a relação entre translinguagem,
performatividade das emoções (AHMED, 2004) e letramento crítico
afetivo (ANWARUDDIN, 2015), como uma maneira de preencher as
lacunas aqui apresentadas e possibilitar uma maior compreensão so-
bre em que medida as nossas afetividades/emoções estão envolvidas
nas diferentes maneiras que enxergamos as línguas e os sujeitos que as
experienciam.

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368
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

ENSINO-APRENDIZAGEM ON-LINE EM
TEMPOS DE COVID-19: EXPERIÊNCIAS
EM AULAS DE GRADUAÇÃO E DE
PÓS-GRADUAÇÃO

ONLINE TEACHING AND LEARNING IN COVID-19 TIMES:


EXPERIENCES IN UNDERGRADUATE AND POSTGRADUATE
LESSONS
Douglas Altamiro Consolo
UNESP – São José do Rio Preto
douglas.consolo@unesp.br

RESUMO: Neste artigo, relatam-se as experiências de aulas on-line de


graduação e de pós-graduação, todas ministradas pelo mesmo docente,
em uma universidade pública do interior do estado de São Paulo. As
aulas, anteriormente previstas para o formato presencial, passaram a ser
ministradas em formato on-line e síncrono, devido às restrições de contato
social impostas pela pandemia do COVID-19. Tratam-se de experiências de
ensino remoto emergencial (ERE), cujas características se assemelham, em
determinados aspectos, à educação a distância (EaD) mas não constituem,
de fato, cursos oferecidos em EaD. Descrevem-se os grupos de alunos (seis
classes de graduação e três classes de pós-graduação), as atividades didáticas
e as avaliações empregadas nas referidas aulas, ministradas entre março de
2020 e julho de 2021. De modo geral, as aulas constituíram uma experiência
de aprendizagem satisfatória para a maioria dos alunos envolvidos, conforme
depoimentos desses alunos, nas últimas aulas, e de dados coletados, por meio
de um questionário aplicado pelo professor, de todos os alunos do ano de 2020,
e respondido por parte desses discentes. Apesar do oferecimento das aulas on-
line devido a uma situação de pandemia, a experiência revelou-se importante
para a formação docente dos licenciandos e dos pós-graduandos, bem como
para o enriquecimento do perfil profissional do professor envolvido.
PALAVRAS-CHAVE: aulas on-line; COVID-19; ensino emergencial; forma-
ção de professores; tecnologia

ABSTRACT: In this article, experiences about undergraduate and postgraduate


online lessons, all of which were conducted by the same teacher at a public

369
state university in the state of Sao Paulo, in Brazil, are reported. The lessons,
originally planned to be in a face-to-face fashion, had to be offered online
due to the restrictions imposed by the COVID-19 pandemic. The lessons are
characterized as emergency remote teaching, which may have some similar
aspects to distance learning. The classes (six undergraduate groups and three
postgraduate groups) and the students are described, as well as the didactic
activities and the assessment procedures in the aforementioned classes. Lessons
occurred between March 2020 and July 2021. According to what was stated
by the students in the last synchronous encounters, the lessons represented
a satisfactory experience for the majority of students involved. Their levels
of satisfaction were also informed in answers in a questionnaire, prepared
by the teacher and answered by some of his students. Despite the fact that
the online lessons were offered because of a situation marked by conflicts,
the experience seems to have been important as teacher development for the
undergraduates and the postgraduates, and for the professional profile of
their teacher.
KEYWORDS: COVID-19; emergency teaching; online lessons; teacher de-
velopment; technology

1. Introdução
Deflagrada em 2020, a pandemia causada pelo vírus mortal
COVID-19 impactou e tem modificado a vida e o dia a dia de pessoas
em praticamente todas as partes do mundo. Recomendações para se
tentar conter a contaminação e o avanço das consequências da con-
taminação por esse vírus têm sido constantemente divulgadas, sendo
que essas recomendações, quando devidamente atendidas, reduzem os
efeitos dessa pandemia sobre a sociedade mundial.
Dentre as primeiras dessas recomendações, encontra-se o isolamen-
to social e, dessa maneira, as sérias restrições aos encontros presenciais
e às aglomerações de pessoas. E, como consequência do atendimento a
essa recomendação, muitas pessoas passaram a realizar todas, ou a maio-
ria de suas atividades – por exemplo, atividades escolares e profissionais,
compras, contatos sociais, e até reuniões de caráter festivo, a partir de
suas residências, por meio de recursos eletrônicos e acesso à internet.

370
No âmbito da educação, em todos os níveis (educação infantil,
educação básica de crianças e adolescentes e educação superior), a si-
tuação não foi diferente nos anos de 2020 e 2021, quando alunos e
professores não mais puderam se deslocar, por determinações legais,
para suas instituições de ensino, as quais fecharam suas portas por vários
meses. Diante dessa difícil realidade, autoridades do mundo todo, in-
clusive no Brasil, passaram então a discutir a questão de como viabilizar
a continuidade da escolarização e propor alternativas viáveis diante da
impossibilidade de contatos sociais, dentre as quais, as possibilidades de
recursos eletrônicos e de acesso, ou limitações de uso da internet, por
esses alunos e por seus professores.
No Brasil, dada a sua grande e diversa população, o quadro mos-
trou-se complexo e variado. Nem todos possuíam um computador
com acesso à internet para seu próprio uso. Mais comum era o uso de
telefones celulares, com conexões de baixa potência em diversos casos.
Diversas famílias, por exemplo, possuíam somente um computador
em sua residência, cujo uso deveria ser compartilhado por todos os
membros da família, os quais cumpriam o isolamento social domici-
liar: pais e outros adultos, para trabalhar em caráter remoto; crianças e
adolescentes para acesso a aulas e/ou outras atividades escolares on-li-
ne; e, além disso, para outras atividades feitas tipicamente por meio de
computadores, tais como acesso a correio eletrônico, filmes, músicas
e redes sociais. Um cenário no qual equipamentos de informática e
de acesso remoto tornaram-se imprescindíveis, porém não imediata-
mente disponíveis para tantas pessoas que precisavam fazer uso desses
recursos.
Tendo discutido as questões relativas à continuidade do cur-
so universitário sob a sua responsabilidade, o Conselho do Curso de
Licenciatura em Letras da universidade pública em contexto das expe-
riências aqui relatadas elaborou e divulgou um documento contendo
orientações e critérios para a reprogramação das atividades durante a
pandemia do COVID-19, no qual consta a seguinte recomendação:

371
É preciso considerar que muitos alunos têm condições adversas
em suas casas, o que, muitas vezes, inviabiliza sua participação
em horários específicos e compromete as condições físicas,
psicológicas e tecnológicas necessárias para a realização das
atividades propostas. Da mesma forma, os docentes também
apresentam suas dificuldades. Neste momento, a cooperação
mútua é fundamental, uma vez que professores e alunos estão
se esforçando e fazendo o melhor que podem. (CCG-Letras,
2020, p.1)

Nessa recomendação consideram-se limitações e problemas possí-


veis de serem enfrentados tanto por discentes como por docentes, fato-
res sobre os quais deve-se refletir na tomada de decisões sobre aulas em
formato on-line, sobre atividades assíncronas obrigatórias e sobre outras
ações durante o processo de ensino e aprendizagem mediado pela tec-
nologia. Em “condições adversas”, podem ser incluídos diversos fatores,
desde a falta de equipamentos ou de conexão com a internet, até fatores
socioafetivos que permeiam a realidade de alunos e professores em seus
ambientes familiares e residenciais.
O relato de experiências e as reflexões propostos neste artigo bus-
cam somar-se a outras publicações sobre aspectos educacionais e im-
plicações da pandemia do COVID-19, tais quais, Campos e Salomão
(2021), Fistarol, Silveira e Fischer (2021), Gois (2020), Mohmmed,
Khidhir, Nazeer e Vijayan (2020); e Valente, Moraes, Sanchez, Souza e
Pacheco (2021).
A próxima seção faz um breve histórico e trata dos cenários das sa-
las de aula enquanto espaço de encontros presenciais entre alunos e seus
professores, em comparação ao ensino a distância e ao ensino remoto
emergencial. Na sequência, relato experiências de docência em aulas
on-line em disciplinas de graduação e de pós-graduação, em situação
emergencial, todas na mesma instituição de ensino superior. E, após
uma discussão dessas experiências e a apresentação de minhas conside-
rações finais, seguem-se as referências bibliográficas.

372
2. Sobre a sala de aula presencial, aulas on-line e ensino a
distância
O termo “sala de aula” significava, até relativamente pouco tempo,
um espaço físico destinado ao ensino. Geralmente uma sala contendo
carteiras ou mesas e cadeiras, enfileiradas ou em círculo; uma lousa ou
quadro branco (ou, mais recentemente, uma lousa digital) em uma das
paredes; em determinados casos, quadros, murais e/ou pôsteres nas pa-
redes, com ilustrações e informações sobre temas das aulas ministradas
na sala; e, nos contextos mais favorecidos, equipamentos de reprodução
de áudio, de vídeo e de multimídia com acesso à internet. Cabe ao
professor fazer uso do espaço físico da sala de aula, à frente dos alunos,
ou movimentando-se por diferentes partes da sala, por exemplo, para
monitorar alunos trabalhando em grupos ou em pares.
Com o advento da educação a distância (EaD), alteraram-se os
conceitos de aula e de sala de aula. Surgiram as salas de aulas virtuais,
para acesso remoto do professor e de alunos muitas vezes situados em
diversas regiões geográficas; e as aulas passaram a acontecer de modo
síncrono, ou a ser oferecidas em formato assíncrono, por exemplo,
quando professores gravam vídeos de suas aulas, as quais são posterior-
mente disponibilizadas aos alunos.
Importante salientar que as experiências de aulas on-line aqui rela-
tadas, a partir da seção seguinte, não constituem um exemplo típico de
EaD. Constituem, na verdade, exemplos de ensino remoto em (uma)
situação emergencial (GARCIA et ali, 2020; HODGES, MOORE,
LOCKEE, TRUST, BOND, 2020), cujas características se identifi-
cam em parte ou se assemelham a procedimentos adotados na EaD.
O Ensino Remoto Emergencial (ERE) é descrito como uma mudança
momentânea de ensino, sendo esse ofertado de maneira on-line. Assim
sendo, reitera-se a diferença entre o ERE e EaD, uma vez que o termo
“emergencial” se caracteriza como uma ação de necessidade imediata,
enquanto o EaD é previamente planejado e projetado para ser oferecido
ao aluno de forma on-line (MOHMMED, KHIDHIR, NAZEER &
VIJAYAN, 2020).

373
As aulas dos cursos de graduação e de pós-graduação abordadas
neste artigo haviam sido planejadas para ocorrerem de modo presencial,
no campus da universidade em questão, em salas de aulas físicas, com a
presença, em cada aula, da/o professor/a e de seus respectivos alunos de
cada disciplina. Entretanto, devido ao fato de o isolamento social cau-
sado pela pandemia do COVID-19 ter sido instituído repentinamente,
no mês de março de 2020, quando o ano letivo já havia iniciado, e
inclusive algumas aulas presenciais já terem sido ministradas, as aulas
foram interrompidas e a alternativa para que os mesmos cursos conti-
nuassem, de modo on-line, passou a ser considerada, sem que houvesse
um planejamento anterior para o estabelecimento dessa prática. A si-
tuação caracterizou-se, portanto, como emergencial, e uma proposta
de solução foi rapidamente articulada, na expectativa de solucionar um
problema repentino. E, dada a continuidade da situação da pandemia
do COVID-19 e das medidas preventivas no início de 2021, deu-se
continuidade ao ensino e demais atividades acadêmicas em formato on-
-line, na referida universidade, durante o ano de 2021, e a retomada
das aulas em formato presencial a partir do primeiro semestre de 2022.

3. Uma experiência em aulas on-line de graduação


As experiências docentes aqui relatadas, nesta seção e na seção se-
guinte, ocorreram vinculadas a uma universidade pública do interior
do estado de São Paulo, na qual atuo como docente em disciplinas de
graduação na área de Língua Inglesa, nos cursos de Bacharelado em
Letras com Habilitação de Tradutor e de Licenciatura em Letras (curso
de Letras, de agora em diante), e em um programa de pós-graduação
em Estudos Linguísticos, na área de Linguística Aplicada, nos níveis de
Mestrado e de Doutorado (programa de EL, de agora em diante).
As primeiras aulas das três disciplinas de graduação aqui tratadas
ocorreram, inicialmente, em formato presencial, nas duas primeiras se-
manas de março de 2020, permitindo-me conhecer os alunos e discutir
aspectos previstos para a disciplina, tais como conteúdos e procedimen-
tos de avaliação, quando ainda não tínhamos conhecimento da situação
iminente da pandemia do COVID-19.

374
Uma vez divulgada a situação de pandemia e impostas as restri-
ções à continuidade das aulas presenciais, as instâncias competentes da
Universidade nos indicaram, já na semana seguinte, a “opção” de aulas
a distância, em caráter de ERE, no formato de aulas on-line ou vídeo-
-aulas e/ou a disponibilização de outras atividades acadêmicas remotas
para nossos alunos.
A primeira recomendação foi para que os alunos fossem consulta-
dos sobre suas condições, seu interesse e seu desejo para a continuidade
do ensino no formato remoto. Na consulta, informei aos alunos que as
aulas seriam no modo on-line síncrono, nos mesmos dias e horários das
aulas anteriormente previstas para o formato presencial.
Eu ministrava, em 2020, três disciplinas de Língua Inglesa no curso
de Licenciatura em Letras, a saber:
- Língua Inglesa IV, no curso diurno, com 14 alunos matriculados,
todos formandos no referido curso (LI4D20, daqui por diante);
- Língua Inglesa IV, no curso noturno, com 10 alunos matriculados
(penúltimo ano do curso) (LI4N20, daqui por diante); e
- Língua Inglesa V, no curso noturno, com 12 alunos matriculados,
todos formandos no referido curso (LI5N20, daqui por diante).
Vale salientar que, para essas três disciplinas, eu era o professor res-
ponsável por 50% da carga horária anual de cada disciplina, e todas as
minhas horas/aula haviam sido previstas, antes do início da pandemia,
para serem cumpridas no 1o semestre letivo, ou seja, do mês de março
ao início do mês de julho. Nesse sentido, revisei meu cronograma leti-
vo e agendei as aulas remanescentes, de modo a conseguir cumprir as
cargas horárias sob minha responsabilidade, o que ocorreu na primeira
semana de agosto de 2020.
Nessa ocasião em que as aulas em formato on-line eram uma opção
para professores e alunos, mensagens eletrônicas tanto de apoio como
de repúdio às aulas remotas foram postadas nas redes de docentes da
Universidade. Enquanto alguns docentes perguntavam sobre as opções
e funcionamento de recursos eletrônicos para poderem ministrar suas

375
aulas, docentes contrários às aulas on-line justificavam posição por
razões da natureza da disciplina, pelo fato de não se sentirem preparados
para ministrar aulas on-line e porque as aulas a distância, além de não
atenderem, segundo esses docentes, todos os requisitos possíveis e
necessários de suas disciplinas, causariam ou reforçariam uma situação
de elitização para os alunos, favorecendo aqueles que possuíam recursos
para aulas remotas, mas desfavorecendo os demais alunos.
Optei por utilizar o Google Meet para ministrar as aulas, e por
disponibilizar materiais didáticos em uma pasta no Google Drive, além
de enviá-los também aos alunos, em algumas ocasiões, por e-mail e em
grupos de Whatsapp.82 Alguns minutos antes do horário previsto de
início de cada aula, eu criava a sala no Google Meet, enviava o convite
e também o link da reunião aos alunos da classe.
Aprendi a utilizar o recurso de gravação das aulas. Praticamente
todas as aulas foram gravadas, e os respectivos vídeos disponibilizados
aos alunos de cada classe. Algumas aulas foram apenas parcialmente
gravadas, ou não gravadas, por esquecimento de minha parte. Alunos
ausentes às aulas, bem como os demais alunos, puderam assistir às aulas
das quais não haviam participado, bem como revisar aulas passadas.
Quanto à metodologia de ensino e à condução das aulas on-line,
não se diferenciaram tanto das minhas aulas em formato presencial.
Selecionei, dentre os materiais didáticos previstos para as aulas presen-
ciais (apresentações em Powerpoint, excertos de áudio, de vídeo, bem
como textos e exercícios em Word ou em pdf ), aqueles que melhor se
prestavam para aulas on-line. Para os casos em que os materiais didá-
ticos não eram previamente enviados aos alunos, aprendi a utilizar o
recurso de compartilhamento de tela, dessa maneira apresentações e
outras atividades didáticas foram realizadas.
As interações, durante as aulas, foram verbais, quando alunos fa-
lavam utilizando seus microfones, e também por escrito, utilizando o

82
No início do semestre, antes da deflagração da pandemia do COVID-19, eu ha-
via criado um grupo no Whatsapp para os alunos de cada uma das classes acima
mencionadas.

376
chat do Google Meet, geralmente sempre no formato de interação en-
tre o professor e a classe toda, mas com algumas ocasiões de interação
verbal ou por escrito entre os alunos. O fato de o número de alunos
nas classes não ser muito grande facilitou a participação dos discentes.
Alguns alunos verbalizavam mais suas opiniões e respostas, enquanto
outros preferiam participar por meio do chat. Em algumas ocasiões,
percebeu-se que seria interessante dirigir perguntas a alunos específicos,
chamando-os pelos nomes, pois era possível visualizar, a cada aula, os
alunos conectados.
A maioria dos respondentes participou das aulas on-line utilizan-
do computador e microfone. Alguns alunos utilizaram também suas
câmeras, e um aluno participou das aulas utilizando telefone celular.
No caso desse aluno, sua limitação técnica foi não possuir câmera para
participar das aulas, possuía apenas um pequeno microfone conectado
ao seu computador.
Uma aluna declarou que não pôde participar da maioria das aulas
on-line devido a compromissos de trabalho concomitantes nas mesmas
datas e horários das aulas, mas que conseguiu, posteriormente, assistir
às aulas gravadas e disponibilizadas pelo professor.
A avaliação de desempenho dos alunos, nos períodos de aulas sob a
minha responsabilidade em 2020, foi uma apresentação oral, individu-
al. Nas disciplinas LI4D20 e LI5N20, a temática das apresentações foi
“aspectos culturais e inglês como língua estrangeira”. Foram sugeridos
tópicos específicos para que os alunos escolhessem sobre o que gosta-
riam de apresentar – por exemplo, comidas típicas, educação, esportes,
lazer, leis e justiça, papéis sociais do homem e da mulher, mas foi dada
aos alunos a liberdade de escolher outro tópico, desde que no âmbito de
aspectos culturais e inglês como língua estrangeira. Alguns alunos esco-
lheram tratar de um determinado tópico no contexto de um país onde a
língua inglesa é falada, por exemplo, no Canadá, na Escócia e na Índia.
Na disciplina LI4D20, cada aluno teve a duração de praticamente uma
aula inteira para realizar sua apresentação (01 hora e 30 minutos), en-
quanto que na LI4N20 foram realizadas duas apresentações por aula.

377
Esta configuração foi devido ao fato de na LI4D20 ocorrerem duas
aulas de 01:50 por semana, enquanto que na LI4N20 e na LI5N20 as
aulas, de mesma duração, aconteciam somente uma vez por semana.
Na disciplina LI4N20, a temática geral das apresentações foi “tó-
picos linguísticos em língua inglesa”, para que os alunos tivessem a
oportunidade de tratar ou de revisar aspectos da língua inglesa, à sua
escolha, por exemplo, sequência de adjetivos, tempos verbais e uso de
preposições. A configuração das apresentações nesta disciplina, também
com somente uma aula por semana, foi de duas apresentações por aula.
As apresentações objetivaram avaliar a proficiência oral dos alu-
nos, em termos de competência lexical, precisão gramatical e pronún-
cia, bem como o uso de linguagem de caráter acadêmico e pedagógico,
uma vez que todos eram alunos em formação de professores em cará-
ter pré-serviço. Ao final de cada apresentação, foi dada aos colegas a
oportunidade de comentários e questionamentos e, na qualidade de
professor de cada disciplina, comentei seus desempenhos linguísticos e
pedagógicos, oferecendo-lhes, quando pertinente, sugestões para apri-
moramento de suas “aulas”. A cada aluno foi atribuída uma nota entre
zero e dez, e as notas foram informadas aos alunos após o término de
todas as apresentações.
Na última aula de cada uma das três disciplinas, conduzi, com os
alunos, uma “conversa” de avaliação sobre a experiência das aulas on-
-line, a qual, de modo geral, mostrou-se positiva para todos os alunos
envolvidos. E lhes solicitei que respondessem um questionário sobre
essa experiência, em caráter de coleta de dados para a elaboração deste
artigo (vide apêndice).
Somente 06 alunos (17% do total) responderam ao questionário,
cujos dados são apresentados e discutidos, a seguir.
Em resposta à pergunta 5 do questionário, “Na sua opinião, as au-
las on-line foram satisfatórias? Por quê (não)?”. Todos os respondentes
informaram satisfação com as aulas, conforme ilustrado pelos seguintes
excertos:

378
As aulas foram bastante satisfatórias, pois o conteúdo foi
bem adaptado ao contexto e não foi prejudicado em razão
da situação, embora a interação, parte importante das aulas,
tenha ficado dificultada dadas as limitações do recurso digital.
(A1, G)83

Sim, a plataforma que usamos conseguiu atender às minhas ne-


cessidades, possibilitando a interação com meus colegas., conse-
gui até apresentar [meu seminário] pelo celular. (A2, G)

Dois alunos acrescentaram as seguintes informações, conforme so-


licitado na pergunta 7, “Outros comentários sobre a(s) sua(s) experiên-
cia(s) com as aulas on-line nesta disciplina?”:

Eu gostaria apenas de elogiar: a organização, o profissionalismo


e a eficiência do trabalho do professor numa situação de pande-
mia, que nos pegou de surpresa para estudar a distância, foram
admiráveis. Eu gostei muito. Obrigada! (A3, G)

Para além de ter as aulas on-line como aluno, foi uma experi-
ência interessante apresentar um seminário (microlesson) nesse
contexto, colocando-me na posição de professor. De fato, essa
se tornou uma preocupação emergente para minha formação,
porque indicou uma lacuna em nosso currículo. Em um mundo
digital, precisamos ser professores digitalmente letrados e pro-
fissionalizados. (A1, G)

Minhas disciplinas de graduação, na área de Língua Inglesa, foram


novamente ministradas em formato on-line, no primeiro semestre de
2021 (abril a julho). Novamente fui o professor responsável por 50%
da carga horária de três disciplinas, a saber:
- LI4D21 (Bacharelado em Letras com Habilitação de Tradutor),
com 14 alunos, todos formandos;
- LI4N21 (Licenciatura em Letras), com 11 alunos, no penúltimo
ano do curso; e
- LI5N21 (Licenciatura em Letras), com 11 alunos, todos
formandos.
83
A1 = código atribuído ao aluno, neste artigo; G = graduação.

379
Diferentemente da situação de aulas on-line iniciadas subitamen-
te, como ocorreu em 2020, as disciplinas de 2021 foram previstas na
modalidade on-line. As atividades didáticas, os processos interativos
durante e fora dos horários das aulas, e as atividades de avaliação, ocor-
reram de modo análogo às atividades didáticas de 2020, porém, com
mais experiência e segurança, tanto para os alunos como para o profes-
sor. Uma novidade, nas aulas, em 2021, foi a utilização do recurso do
Google Meet para a criação de salas separadas, durante determinadas
aulas, possibilitando, com esse recurso, a inclusão de atividades em gru-
pos menores de alunos da mesma classe. E, na avaliação dos alunos,
além das apresentações orais, ocorridas de modo análogo às apresenta-
ções orais de 2020, foi aplicada uma prova escrita para cada classe. As
provas foram produzidas no Google Docs, com questões de múltipla
escolha, envolvendo gramática e vocabulário. As provas foram aplicadas
no horário de uma aula, com duração máxima de uma hora e trinta mi-
nutos, e corrigidas automaticamente pelo Google Docs, e os resultados
disponibilizados imediatamente após todos os alunos terem concluído
as provas. Nas aulas seguintes às aplicações das provas, o professor reto-
mou e discutiu, com cada classe, as questões dessa avaliação.

4. Uma experiência em aulas on-line de pós-graduação


Na pós-graduação (PG), todos os alunos das disciplinas sob mi-
nha responsabilidade no 1º semestre de 2020 (três disciplinas, duas
das quais em caráter de co-docência) concordaram prontamente com
as aulas no formato online. As aulas online inclusive favoreceram alu-
nos que residem em outras cidades, evitando-se, portanto, custos e
tempo de deslocamentos. Disciplinas: (1) A Avaliação no Ensino e na
Aprendizagem de Línguas = único docente (45 horas/aula online, em
15 encontros semanais); 06 alunos (03 de Mestrado, 02 de Doutorado
e uma aluna especial); (2) O Ensino de Línguas na Contemporaneidade
= co-docência (08 encontros semanais de 03 horas cada); 04 alunas (02
de Mestrado e 02 de Doutorado); e (3) Metodologias de Investigação
em Estudos Linguísticos II = co-docência (02 encontros de 03 horas
cada); 12 alunos em nível de Doutorado.

380
A disciplina Metodologias de Investigação em Estudos Linguísticos
II foi ministrada por vários docentes do programa de EL, e nos dois
encontros sob a minha responsabilidade tratou-se especificamente de
questões de pesquisa na linha de Ensino e Aprendizagem de Línguas.
Cumpre mencionar que, para as disciplinas (1) e (2), o primeiro en-
contro foi realizado em modo presencial, no campus da Universidade, na
semana anterior ao início do decreto do isolamento social. Entretanto,
na disciplina (2), a aluna especial, que reside em outra cidade do estado
de São Paulo, não havia comparecido a esse primeiro encontro, portan-
to nosso contato na disciplina foi somente em caráter on-line.
Os aspectos de organização e realização das aulas nessas discipli-
nas de pós-graduação foram semelhantes àqueles das aulas de gradu-
ação relatados na seção anterior: aulas síncronas por meio do Google
Meet e pastas com textos e outros materiais no Google Drive; grupos
no Whatsapp para comunicação entre o professor e os alunos; aulas
gravadas e disponibilizadas para acesso dos alunos.
Textos de leitura prévia foram indicados, de acordo com as temá-
ticas de cada disciplina, e discutidos em cada aula. Quando pertinente,
conduzi apresentações, utilizando o Power Point e compartilhamento
de tela. E as interações, na grande maioria, verbais, entre o professor e
todos os alunos da classe. Todos os alunos de PG utilizaram computa-
dores com câmeras e microfones, nas aulas online, e três alunos utiliza-
ram também seus telefones celulares.
Os alunos das disciplinas (1) e (2) foram avaliados: (a) por meio de
apresentações de seminários temáticos, baseados nos conteúdos e nos
textos das bibliografias dessas disciplinas, além de outros textos escolhi-
dos por eles; (b) por sua participação nas aulas e (c) por meio de uma
prova escrita, na disciplina (1). Na disciplina (2), a outra professora res-
ponsável utilizou atividades assíncronas de avaliação, disponibilizadas
no Google Classroom. Enquanto os temas dos seminários da disciplina
(1) foram diretamente relacionados aos tópicos da disciplina, dois se-
minários de alunas da disciplina (2), por elas sugeridos, não constavam

381
do programa, porém foram aceitos por serem relevantes no âmbito da
temática geral da disciplina: alunos laudados (com características que
exigem ações pedagógicas específicas) e translinguagem, tema este re-
lacionado à pesquisa de Mestrado da aluna que tratou desse assunto.
Os seminários, dois por aula, foram apresentados nas últimas aulas de
cada disciplina, seguidos de discussões dos temas com todos os alunos.
A prova escrita foi disponibilizada aos alunos na penúltima semana de
aulas, e lhes foram concedidas 24 horas para responder à prova e enviar
suas respostas para o e-mail do professor. Às provas foram atribuídas
notas entre zero e dez e, depois de corrigidas, foram enviadas aos alu-
nos, e discutidas na última aula da disciplina. Os conceitos finais dos
alunos (A, B ou C, todos aprovados) foram disponibilizados antes da
última aula on-line.
O mesmo questionário enviado aos alunos das disciplinas de gra-
duação (vide apêndice) foi também enviado e respondido pelos alunos
de pós-graduação, das disciplinas (1) e (2). No segundo encontro da
disciplina (3), discutimos a experiência das aulas em formato remoto,
que se mostrou, de modo geral, bastante positiva. Os alunos também
gostaram do fato de a disciplina ter sido ministrada por vários docentes
do programa de EL, de diferentes linhas de pesquisa, o que permitiu
aos alunos um amplo panorama dos diferentes paradigmas e aspectos
de pesquisa na área de Estudos Linguísticos. Nesta disciplina, a avalia-
ção foi por meio dos projetos de pesquisa dos doutorandos, revisados
e enviados aos diferentes docentes do programa de EL que ministra-
ram a disciplina. No meu caso, avaliei somente um projeto, de uma
orientanda.
Dos 10 alunos matriculados nas duas disciplinas do programa de
EL sob minha responsabilidade, (1) e (2), seis alunos (60% do total)
responderam ao questionário sobre as aulas on-line.
Em resposta à pergunta 5 do questionário, “Na sua opinião, as au-
las on-line foram satisfatórias? Por quê (não)?”, obtiveram-se as seguin-
tes respostas:

382
Na minha opinião as aulas on-line foram muito satisfatórias. O
conteúdo foi explicitado com clareza, houve espaços para dis-
cussões e apresentação de diversos pontos de vista. Gostei muito
das aulas on-line, pois sem elas, eu não teria condições de fre-
quentar, já que moro muito longe. (A1, PG)84

Sim, achei que houve estímulo à discussão e participação dos alu-


nos. A organização do docente também foi boa, sempre com orien-
tações para o que deveria ser feito/lido para cada aula. (A2, PG)

Foram satisfatórias; permitiram a troca de conhecimentos e expe-


riências com o professor e as demais colegas da turma. (A3, PG)

Sim, porque o tempo que seria gasto com deslocamento para


assistir as aulas presenciais foi utilizado para a leitura dos textos,
realização das atividades e realização da avaliação, gerando um
maior aproveitamento na disciplina. Além do mais, o desgas-
te físico, psicológico e financeiro foi praticamente inexistente.
(A4, PG)

As aulas foram muito satisfatórias, uma vez que o fato de serem


ministradas remotamente não influenciou de nada em seu de-
senvolvimento. Todos os alunos participaram de forma ativa,
houve compartilhamento de experiências e muito aprendizado.
(A5, PG)

Sim, as aulas on-line foram, além de satisfatórias, muito produ-


tivas, confortáveis e fáceis de acompanhar. Os recursos utiliza-
dos permitiram o pleno acompanhamento, interação e desen-
volvimento dos conteúdos apresentados, e também ofereceram
algumas comodidades que, na modalidade presencial, talvez
não pudessem ser oferecidas – como, por exemplo, a possibili-
dade de acompanhar as aulas de minha própria casa, sem eu ter
que viajar e ter todo o desgaste para isso. (A6, PG)

Nenhum aluno das disciplinas de PG informou ter enfrentado


qualquer problema ou dificuldade séria em acompanhar e participar das
aulas on-line, a não ser por alguns poucos casos de conexão deficiente

84
PG = pós-graduação.

383
com a internet. E, de acordo com as respostas à pergunta 5, todos os
respondentes mostraram-se satisfeitos com as aulas on-line das duas dis-
ciplinas, (1) e (2).
Aos alunos da disciplina Metodologias de Investigação em Estudos
Linguísticos II não foi solicitado que respondessem o questionário.
Entretanto, ao final da segunda aula por mim ministrada nessa disci-
plina, todos os alunos presentes demonstraram satisfação com ambas as
aulas, conforme mencionado anteriormente.

5. Considerações finais
Relataram-se, neste artigo, experiências de aulas on-line de gradu-
ação e de pós-graduação, ministradas em uma mesma instituição de
ensino superior, em caráter emergencial, todas pelo mesmo docente.
A reflexão sobre tais experiências se baseou em observações do docente
das disciplinas aqui tratadas, em opiniões verbalizadas pelos alunos e
em dados coletados por meio de um questionário.
As aulas constituíram, de modo geral, uma experiência de aprendi-
zagem satisfatória e válida para a maioria dos alunos envolvidos, confor-
me depoimentos desses alunos, nas últimas aulas, e de dados coletados
por meio do questionário aplicado pelo professor, a todos os alunos de
2020, e respondido apenas por parte dos discentes. Os alunos aponta-
ram, em suas respostas ao questionário, aspectos positivos, tais como a
participação dos alunos e a troca de experiências nas aulas, além do fato
de, para alunos que residem em outras cidades, as facilidades de não
precisarem viajar para o comparecimento a aulas presenciais.
As aulas on-line aqui tratadas foram oferecidas em caráter emergen-
cial e devido a uma situação de pandemia, de modo súbito, em 2020,
e de modo planejado, em 2021. A experiência revelou-se, como um
todo, importante para a formação docente dos licenciandos em Letras
e dos pós-graduandos em Estudos Linguísticos, bem como para o enri-
quecimento do perfil profissional do professor responsável pelas disci-
plinas. Salientam-se aspectos positivos da experiência das aulas on-line,

384
no sentido que representaram um avanço no conhecimento de recursos
eletrônicos que se prestam a finalidades pedagógicas, tais como o recur-
so do Google Meet para a realização de trabalhos em grupos em aulas
on-line síncronas, e a gravação das aulas, para referência posterior tanto
dos alunos como do professor. Sou, portanto, favorável às possibilida-
des de futuras disciplinas serem oferecidas com cada vez mais apoio de
tecnologias digitais. Nesse sentido, necessita-se revisar projetos peda-
gógicos e disciplinas e, sem dúvida, possibilitar formação docente para
atuação nesta era digital.
Estou consciente de que deve também ter havido limitações ao
aprendizado de determinados alunos, por não terem acesso pleno às
aulas online, ou devido a outros problemas por eles enfrentados decor-
rentes da pandemia do COVID-19. Se, por um lado, vivenciei uma
experiência docente positiva em relação às aulas on-line e às reações
da maioria dos alunos nelas envolvidos, por outro, colegas docentes da
mesma instituição, ou de outras instituições de ensino, bem como ou-
tros alunos, não obtiveram o mesmo êxito. Importante, todavia, que se
compartilhem as experiências docentes e discentes vivenciadas durante
a pandemia, soluções encontradas e entraves ao desenvolvimento de
aulas on-line, na expectativa de se buscar alternativas educacionais para
o futuro do ensino e da aprendizagem, e para o futuro da formação
docente.

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em: 12/09/2021.

Apêndice
QUESTIONÁRIO: AULAS ON-LINE
( em período de distanciamento social – COVID-19 )

Prezada/o aluna/o,

Eu gostaria da sua colaboração, respondendo este breve questionário, a respeito da(s)


sua(s) experiência(s) com a disciplina por mim ministrada neste 1º semestre de 2020,
no formato de aulas on-line e materiais disponibilizados eletronicamente, devido às
restrições impostas às aulas presenciais na universidade, pela pandemia do COVID-19.
Por favor, responda neste mesmo arquivo (de Word), e depois salve o arquivo com as
suas respostas incluindo o seu nome ou suas iniciais no nome do arquivo, e me envie
por e-mail. Os dados coletados por meio deste questionário ajudarão a embasar um
artigo sobre aulas online que pretendo escrever. Quando o artigo estiver pronto, en-
viarei a todos os alunos que responderam este questionário, que poderão opinar sobre

386
o conteúdo do artigo. Manterei sigilo absoluto sobre a identidade dos respondentes,
bem como sobre a instituição na qual as aulas foram ministradas.

Muito obrigado,

Prof. Dr. Douglas Altamiro Consolo – douglas.consolo@unesp.br

1. Disciplina:____________________________________________________

2. Você conseguiu acompanhar / participar satisfatoriamente das aulas on-line, ou


da maioria delas? Se não conseguiu, por quê não?

3. Que recurso(s) você utilizou para participar das aulas?


( Assinale todos os recursos que utilizou. )
( ) computador ( ) telefone celular ( ) câmera ( ) microfone
( ) outros recursos – qual / quais? _______________________________

4. Durante as aulas, você participou por meio de voz (microfone), chat, ou ambos?

5. Na sua opinião, as aulas on-line foram satisfatórias? Por quê (não)?

6. Você enfrentou dificuldades ou limitações para acompanhar / participar das aulas


on-line? Se sim, quais dificuldades / limitações?

7. Outros comentários sobre a(s) sua(s) experiência(s) com as aulas on-line nesta
disciplina?

©DAConsolo (2020)

387
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

ENSINO DE LÍNGUA INGLESA PARA ALUNOS


COM DEFICIÊNCIA VISUAL NA PERSPECTIVA
DO LETRAMENTO CRÍTICO E DOS
MULTILETRAMENTOS

Douglas Edson de Araujo Ribeiro (UFMT)

RESUMO: O presente trabalho configura uma análise de dados preliminares


de pesquisa acerca do ensino de Língua Inglesa para alunos com deficiência
visual em contexto de ensino remoto pautado no letramento crítico e
nos multiletramentos. Na introdução, aborda-se a proposta do projeto
de Extensão em Línguas da Universidade Federal de Mato Grosso sob a
perspectiva da inclusão social Mantoan (2003), Sassaki (2017), Vygotsky
(1997), Jesus e Furlaneto (2019). Abordam-se nos referenciais teóricos
os conceitos de letramento crítico segundo Takaki e Maciel (2017), Tilio
(2019) e multiletramentos Rojo e Moura (2012). Esta pesquisa tem natureza
qualitativa e etnográfica, segundo André (2005), e os dados foram coletados
por meio de análise das aulas online, das interações pelo aplicativo Whatsapp
e dos diários de aula. Os dados preliminares de pesquisa revelam que o
processo de aprendizagem se deu pela interação e pelas práticas colaborativas
entre os alunos e professor, moldando o processo de aprendizagem a atender
necessidades educacionais específicas dos alunos com deficiência visual e
que a proposta de letramento crítico possibilitou aos alunos protagonismo e
engajamento nas atividades linguísticas em Língua Inglesa.
PALAVRAS-CHAVE: Aprendizado de Língua Inglesa; deficiência visual; in-
clusão; letramento crítico; multiletramentos.

ABSTRACT: This paper is a preliminary data analysis from a research on


the teaching of English Language to visually impaired students in a remote
teaching context, based on critical literacy and multiliteracies. The introduction
discusses the proposal of the Language Institute Project from the Federal
University of Mato Grosso in the perspective of social inclusion, according
to Mantoan (2003), Sassaki (2017), Vygotsky (1997), Jesus and Furlaneto
(2019). The theoretical references address the concepts of critical literacy
according to Takaki and Maciel (2017), Tilio (2019) and multiliteracies Rojo
and Moura (2012). This research has a qualitative and ethnographic nature,
according to André (2005), and the data were collected through analysis of

388
online classes, interactions through the Whatsapp app and class diaries. The
preliminary research data reveal that the learning process occurred through
interaction and collaborative practices between students and teacher, designing
the learning process to meet the specific educational needs of students with
visual impairment and that critical literacy proposal allowed students to be
protagonists and to engage in linguistic activities in English language.
KEYWORDS: English Language Learning; Visual impairment; inclusion;
critical literacy; multiliteracies.

Introdução
Cada vez mais, a educação passa por mudanças referentes ao en-
sino inclusivo, incentivadas pelo crescente apoio de correntes de pais,
professores e da comunidade social em prol do direito às pessoas com
deficiência de receberem uma educação igualitária e digna, sem exclu-
são ou segregação. Mantoan (2003), pedagoga e doutora em educação,
em sua obra
“Inclusão Escolar”, defende que uma inclusão completa só pode
ser alcançada pela quebra de paradigmas racionalistas modernos de
educação, que se traduzem em separatividade dos alunos no ambiente
escolar. O sistema educacional divide tanto o saber, em áreas separadas
e especializadas, desconectando os conhecimentos das disciplinas en-
tre si, como também os alunos, diferenciando-os entre aptos e inaptos,
normais e deficientes, iguais e diferentes.
Para Fávero (2011, p.19), apesar de a educação especial estar sendo
executada no Brasil de duas formas, apenas uma delas cumpre devida-
mente com o direito constitucional e humano da educação. A primeira,
correspondendo ao atendimento especializado de alunos com deficiên-
cia de forma complementar e, preferencialmente, no próprio estabe-
lecimento de ensino por meio de salas de recursos multifuncionais. A
segunda forma ocorre em estabelecimentos segregados de ensino, onde
só se matriculam alunos com deficiência. Segundo a autora, quando a
criança com deficiência não frequenta um ambiente plural de ensino,
com currículo comum e propósitos igualitários de aprendizagem, está

389
sendo privada do direito constitucional previsto no artigo 206 (I), que
impõe “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”
(BRASIL, 1988). Fávero reforça que não há problema no atendimento
educacional complementar pela escola especial, que cumpriria seu de-
ver legal para com os educandos:

O atendimento educacional especializado, ou educação espe-


cial, se realizado dessa forma, como apoio, é extremamente vá-
lido e recomendável. Traduz-se em mais um direito para as pes-
soas com deficiência, entre os vários que elas, como qualquer ser
humano, têm no tocante à educação. (FÁVERO, 2011, p.20)

A Universidade Pública, como um espaço democrático e múltiplo,


cumpre um papel fundamental ao adotar mecanismos de promoção da
inclusão social não só às pessoas com deficiência, mas a todos os grupos
marginalizados na sociedade. De seu cerne, pautado no ensino, pesqui-
sa e extensão, surgem esforços de se estabelecer nas escolas e nos meios
sociais práticas inclusivas, além de, em sua natureza acadêmica e cien-
tífica, a Universidade ser palco de pesquisas que quebram paradigmas
vigentes na educação, mostrando ser possível fazer e pensar diferente.
Neste sentido, a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT),
além de promover diversas pesquisas de pós-graduação voltadas para a
educação inclusiva, destina projetos de extensão estimulando a inclu-
são de pessoas com deficiência. No primeiro semestre do ano de 2022,
implantou-se um curso de extensão voltado para o ensino de Língua
Inglesa para pessoas com deficiência visual. O curso teve por objetivo
investigar o processo de aprendizagem de Língua Inglesa para alunos
com deficiência visual em aulas remotas pautadas na perspectiva do
letramento crítico e nos multiletramentos.
O presente artigo busca investigar as teorias educacionais em torno
da inclusão e trazer os dados preliminares da pesquisa realizada durante
o curso de Extensão Universitária da UFMT “Inglês para alunos com
deficiência visual”. Assim, no primeiro momento, discutiremos os con-
ceitos de inclusão abordados por Mantoan (2003) e Sassaki (2010),

390
dando ênfase às pessoas com deficiência visual. Na terceira seção teó-
rica, apresentaremos os conceitos de Letramento Crítico, apresentados
por Tilio (2019), Norton e Toohey (2004) e Multiletramentos, aborda-
dos por Rojo e Moura (2012), como aporte da inclusão social. Por fim,
faremos uma análise qualitativa das aulas desenvolvidas pelo projeto de
extensão, com enfoque no processo de ensino-aprendizagem dos alunos
por meio de gêneros multimodais e traremos as considerações finais.

Educação inclusiva
A inclusão social é um movimento muito recente e ainda distante
de ser plenamente consolidado na sociedade. A atitude recorrente em
uma cultura cada vez mais individualista como a nossa é a separação
e a segregação em grupos privilegiados e desprivilegiados, “normais”
e marginalizados, os que têm direitos e os que são subtraídos deles.
Em contramão a esse paradigma separatista, Sassaki (2010, p.16-17)
apresenta que “O movimento de inclusão social começou inicialmente
na segunda metade dos anos 80s nos países mais desenvolvidos, (...) e
está se desenvolvendo fortemente nos primeiros 10 anos do século 21
envolvendo todos os países”. O autor conceitua inclusão como: “(...) o
processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir, em seus sis-
temas sociais gerais, pessoas com deficiência (além de outras) e, simul-
taneamente, estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade”
(SASSAKI, 2010, p.39).
Para o referido autor, o objetivo principal da inclusão é a constru-
ção de uma sociedade na qual todos possam fazer parte integralmente,
indistintamente. Tendo por base os seguintes princípios: “celebração das
diferenças, direito de pertencer, valorização da diversidade humana, so-
lidariedade humanitária, igual importância das minorias, cidadania com
qualidade de vida” (SASSAKI, 2010, p.17). Consequentemente, atender
a esses princípios, ou seja, responder às necessidades dos que estão às mar-
gens dos padrões de normalidade estabelecidos, é um movimento con-
trário ao que está posto, enfrentando diversos obstáculos impostos pela
ignorância, pelo preconceito e pela má aplicação de políticas públicas.

391
No tocante à educação, o processo de inclusão se traduz em uma
atitude que vai além da mera integração de alunos com deficiência no
contexto escolar, mas que consiste na transformação dos paradigmas
que regem nossas práticas educativas, e, por consequência, ao incluir to-
dos os alunos indistintamente, considerando seus potenciais de apren-
dizagem, melhoram o acesso à educação para todos os alunos. Neste
sentido, Mantoan (2003, p.16) afirma que “por tudo isso, a inclusão
implica uma mudança de perspectiva educacional, pois não atinge ape-
nas alunos com deficiência e os que apresentam dificuldades de apren-
der, mas todos os demais, para que obtenham sucesso na corrente edu-
cativa geral”.
Dessa forma, uma simples atitude de ampliar as fontes nos mate-
riais projetados em sala de aula, por exemplo, beneficia não somente o
aluno com deficiência visual, mas aqueles que se sentam ao fundo da
sala, os que possuem miopia e os alunos que não desenvolvem uma lei-
tura fluida e precisam de mais atenção às palavras. Assim, os benefícios
de se pensar nas particularidades de aprendizado e adotar a inclusão
como paradigma no planejamento das aulas e das atividades, indepen-
dentemente de haver alunos com deficiência, atingem positivamente a
todos.

Ampliando a visão sobre deficiência visual


A deficiência visual abrange uma heterogeneidade de perdas de
visão, pois envolve tanto a baixa visão, como as pessoas parcialmente
e totalmente cegas. Dessa forma, é errôneo limitar a deficiência visual
somente à cegueira e desconsiderar a assistência e acessibilidade que a
comunidade de pessoas com deficiência visual necessita para fazer parte
integralmente dos meios sociais. De acordo com a portaria nº 3.128, de
24 de dezembro de 2008, do Ministério da Saúde:

§ 1º Considera-se pessoa com deficiência visual aquela que


apresenta baixa visão ou cegueira.
§ 2º Considera-se baixa visão ou visão subnormal, quando o

392
valor da acuidade visual corrigida no melhor olho é menor do
que 0,3 e maior ou igual a 0,05 ou seu campo visual é menor
do que 20º no melhor olho com a melhor correção óptica (...)
(BRASIL, 2008).

Outra crença que muitas vezes é imposta pela escola, pela sociedade
ou pela família é a de que a criança tem menos capacidade de aprender,
ou seja, que tem suas capacidades cognitivas reduzidas devido à ceguei-
ra. Essa crença gera um protecionismo da família, que muitas vezes
limita o desenvolvimento da criança mais do que a própria cegueira, e,
na escola, traduz-se na atitude de responsabilizar o aluno pelas falhas do
ensino que o próprio sistema educativo opera. Acerca dessa crença de
inferioridade, as pesquisas vêm mostrar o contrário:

as pesquisas realizadas sobre a integração escolar dessas crianças


assinalam que, do ponto de vista intelectual, elas estão perfeita-
mente integradas nas classes e não têm problemas para acom-
panhar os conteúdos normais do currículo do ensino comum
(Fernándes Dols et al., 1991 apud OCHAÍTA e ESPINOSA).
É necessário, porém, que a escola contemple as necessidades
educativas especiais de tais crianças, que, mais uma vez, decor-
rem das características dos canais sensoriais que substituem a vi-
são: a orientação e a mobilidade e o acesso à informação escrita”
(OCHAÍTA e ESPINOSA, 2004, p.160).

Ainda, no que diz respeito às concepções sobre a cegueira, Vygostsky


(1997) apresenta uma ideia de importante reflexão para qualquer pro-
fessor diante de alunos cegos: a cegueira não deveria ser considerada só
como uma deficiência, uma limitação, pois ela reconstitui psicologi-
camente a natureza humana para exploração de capacidades inatas do
organismo.
Segundo o autor: “A cegueira, ao criar uma formação peculiar da
personalidade, reanima novas forças, altera as direções normais das fun-
ções e, de uma forma criadora e orgânica, refaz e forma a psique da
pessoa” (VYGOSTSKY, 1997, p.74).

393
Portanto, no que se refere à educação de pessoas com deficiência
visual, cabe às instituições de ensino e aos professores, como também à
gestão pública educacional, o dever de promover mecanismos de inclu-
são das necessidades específicas dos alunos, seja na ampliação de fontes
dos materiais impressos, ou na disponibilização de material em braile.
O potencial de aprendizagem de cada aluno é alcançado somente quan-
do se disponibilizam os recursos necessários e as aulas são planejadas
com as metodologias que atendam às particularidades de aprendizagem
dos alunos. Assim, a proposta inclusiva do atendimento a essas neces-
sidades educacionais específicas que esse artigo defende é por meio do
Letramento Crítico e dos Multiletramentos, que serão abordados nas
próximas seções.

Letramento crítico
O letramento é um termo da pedagogia que vem se popularizando
no meio acadêmico nos últimos anos e se multiplicando em diversos
ramos. Conforme o conceito de Magda Soares, letramento é “ o re-
sultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado
ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como
consequência de ter-se apropriado da escrita” (SOARES, 2012, p.18).
O letramento, que consiste na habilidade de utilizar a escrita para fazer
parte da sociedade letrada e nela desenvolver práticas sociais letradas, é
um termo que se ramificou em diversos outros, não sendo mais possí-
vel pensar no letramento como um ato isolado, mas em “letramentos”:
letramento digital, letramento visual, letramento científico, letramento
midiático..., dentre eles, o artigo dá enfoque no letramento crítico, nos
multiletramentos e seus pressupostos teóricos.
O letramento crítico, segundo Clark e Ivanic (1997) apud Tilio
(2017), tem uma função de empoderamento dos alunos, capacitan-
do-os para uma análise crítica das experiências cotidianas mediadas
pela linguagem própria e a dos outros nos ambientes de suas vivên-
cias. Nesse sentido, a perspectiva crítica é vista como mecanismo de
reflexão e transformação das percepções dos alunos sobre sua realidade

394
por meio de usos da linguagem. Analisar criticamente os discursos e
questionar o que é posto socialmente como certo é um dos fundamen-
tos do Letramento Crítico. Segundo esse pressuposto, pode-se atri-
buir ao ensino de Línguas perspectivas críticas, como apontam autores
contemporâneos:

Os defensores de abordagens críticas ao ensino de segunda


língua estão interessados nas relações entre a aprendizagem
de línguas e a mudança social. Nesta perspectiva, a língua não
é simplesmente um meio de expressão ou comunicação, mas
sim uma prática que constrói, e contrasta com as formas como
os aprendentes de línguas entendem a si próprios, o seu meio
social, as suas histórias, e as suas possibilidades para o futuro.
(Norton; Toohey, 2003, p.1)85

Coradim (2014) aponta que uma das dimensões em que o


Letramento Crítico é abordado pelos teóricos abrange a inclusão so-
cial como produto das práticas de letramento. Nessa perspectiva, ao
se promover nas aulas de línguas a criticidade aos discursos que são
postos ou impostos e trazer possibilidades de transformações sociais, os
alunos também são movidos a criar e ter acesso a uma sociedade mais
igualitária e democrática, consequentemente, mais inclusiva. Assim, as
aulas que se voltem a discutir com escopo crítico temas pertinentes ao
contexto social dos alunos, principalmente dos alunos socialmente des-
prestigiados, têm por resultado a inclusão dos estudantes.

Multiletramentos
Na sociedade da hipermodernidade, com o advento de novas
tecnologias que promovem a interação e comunicação cada vez mais

85
Tradução própria, trecho original: “Advocates of critical approaches to second
language teaching are interested in relationships between language learning and
social change. From this perspective, language is not simply a means of expression
or communication; rather, it is a practice that constructs, and is constructed by,
the ways language learners understand themselves, their social surroundings, their
histories, and their possibilities for the future.” (Norton; Toohey, 2003, p.1)1

395
virtualizadas e sofisticadas, surgem novos gêneros discursivos que se
pautam na interação do usuário com o texto em diversas modalidades.
Em uma mesma página de internet em que se mostra uma notícia, por
exemplo, há o áudio do texto escrito, vídeos de entrevistas, gráficos,
links externos para expandir a navegação a outros sites ou recursos, o
chat em que o usuário pode deixar sua opinião ou responder a comen-
tários anteriores, enfim, o usuário ganha cada vez mais participação nos
processos de constituição dos textos na hipermídia. Ao mesmo tempo
que o usuário é consumidor, ele é coprodutor dos conteúdos midiáti-
cos. A essa natureza constitutiva contemporânea dos gêneros textuais,
Rojo e Barbosa (2015) definem “textos multimodais”. Segundo os au-
tores, “texto multimodal ou multissemiótico é aquele que recorre a mais
de uma modalidade de linguagem ou mais de um sistema de signos ou
símbolos (semiose) em sua composição” (ROJO e BARBOSA, 2015,
p.53). Rojo define multiletramentos como a capacidade de o usuário de
significar esses processos de interação com novos gêneros multimodais:

É o que tem sido chamado de multimodalidade ou multisse-


miose dos textos contemporâneos, que exigem multiletramen-
tos. Ou seja, textos compostos de muitas linguagens (ou modos,
ou semioses) e que exigem capacidades e práticas de compreen-
são e produção de cada uma delas (multiletramentos) para fazer
significar (ROJO, 2012, p.19).

Considerando os multiletramentos como a prática de leitura e pro-


dução de gêneros multimodais, as aulas de línguas que se apoiam nessa
pedagogia da multimodalidade, abrangem diversas experiências semi-
óticas no processo de ensino-aprendizagem, sendo, consequentemen-
te, mais inclusivas. É permitido ao aluno acessar o conhecimento por
outros meios sensoriais além do campo visual, o que possibilita uma
aprendizagem mais inclusiva. Outro fator importante de acessibilidade
envolve os conteúdos em que as aulas se pautam, os quais deixam de
ser hegemonicamente trabalhados no impresso, no gravado e no fixo,
passando também a interagir com a hipermídia, com o maleável e o
acessível.

396
As aulas inclusivas e seus resultados
Os dados analisados por este artigo foram coletados de uma pes-
quisa em andamento pelo autor acerca do ensino de Língua Inglesa
para alunos com deficiência visual em contexto de ensino remoto pau-
tado no letramento crítico e nos multiletramentos. A metodologia de
pesquisa adotada é etnográfica (ANDRÉ, 2012), que permite ao pes-
quisador compreender profundamente a dinâmica das relações e inte-
rações que acontecem no contexto escolar, sendo os dados analisados
qualitativamente.
O curso de Extensão Universitária do Instituto de Linguagens da
UFMT “Inglês para Alunos com Deficiência Visual” teve início no dia
14 de março de 2022 e término em 2 de maio, com duração de 40
horas, distribuídas em 8 aulas com duração média de 2 horas, realiza-
das em plataforma virtual de videoconferência Google Meet e atividades
complementares realizadas no aplicativo de comunicação Whatsapp. O
curso teve como objetivo promover a inclusão social de pessoas com
deficiência visual no contexto de extensão universitária e recebeu matrí-
cula tanto de alunos da Universidade (2 alunos cegos), como também
alunos da comunidade externa (28 alunos cegos ou com baixa visão,
em sua maioria adultos). O tema e o conteúdo das aulas se destacam no
quadro abaixo:
AULA OBJETIVO CONTEÚDO
VOCABULAR
Aula 01 – 14/03: Desenvolver a ideia de que My name is… I am
Who are you? Where nossa identidade é baseada from… I live in…; I am
are you from? em parte do nosso nome, do blind, I have low vision,
local de onde viemos e onde I have monocular vision.
moramos.

Aula 02: – 21/03: Apresentar a percepção de Family members and


Basic family mem- que sua idade e a função que Numbers 1100. Sen-
bers and age, how você se atribui na família, de tences: I am (number)
old are you? ser mãe, pai, esposa, esposo, years old; (I am a blind
filho/a são aspectos relevan- mom/ dad); My father/
tes para a construção de sua mother/ son/ daughter
identidade. … is (number) years old

397
Aula 03 – 28/03: Refletir as qualidades huma- I am (independent, in-
Who am I? What nas presentes em cada aluno, telligent, happy, calm,
are my qualities as a de forma a reforçar que essas active…)
person? qualidades compõem a sua I am a blind woman, a
identidade. Trazer o gênero blind man.
como aspecto qualificador
dos indivíduos na sociedade.
Aula 04 – 04/04: Demonstrar a multiplicidade Narrativas de pessoas
Who am I? What are de adjetivos e personalidades com deficiência visual
my qualities as a per- que compõe a identidade introvertidas e extro-
son? (Continuação) cega, com pessoas que se vertidas, felizes e tristes,
sentem fortes e empoderadas com enfoque nos adje-
a pessoas que se sentem mal tivos que essas pessoas
diante de sua situação. atribuem a si mesmas
Aula 05 – 11/04: Apresentar o vocabulário de Diversas modalidades
What I can do and esportes, com fim a incenti- de esportes em todos
what I think I can- var os alunos para a prática os campos, sentenças
not do. de esporte. Introduzir os autênticas de praticantes
verbos relacionados aos es- dos esportes com defi-
portes. ciência visual.
Aula 06 – 18/04: Promover a escuta de uma Verbos relacionados
What I can do and história particular sobre a aos esportes.
what I think I can- prática de esportes por um
not do. (Continua- menino cego e incentivar a
ção) reflexão sobre a vida ativa
que as pessoas cegas têm o
potencial de praticar.
Aula 07 – 18/04: My Apresentar o vocabulário de I like; I don’t like, I love,
likes and dislikes ações cotidianas, como ler, I hate.
estudar, dançar, cantar, rela-
cionando-os com os nossos
gostos e desgostos.
Aula 08 – 02/05: Resumir a tônica em torno da Revisão de todos os
Synthesis: apresentação de si. temas estudados, envol-
presenting myself. vendo a apresentação do
nome, idade, qualidades,
esportes que pratica e
coisas que gosta de rea-
lizar.

Quadro Síntese das aulas ministradas, (fonte: do autor, 2022)

398
Houve uma frequência média de 22 alunos por aula. Os alunos
interagiram com a utilização de microfones em momentos de fala, não
só produzindo oralmente as frases com os conteúdos vocabulares apren-
didos, mas também expressando a opinião própria acerca dos assuntos,
trazendo a experiência de vida, que acrescentaram aos temas trabalha-
dos contextos reais de suas vivências. Em atividades complementares,
os alunos ouviram os podcasts produzidos pelo professor e também os
feitos em colaboração dos cursistas, responderam a questões relaciona-
das ao tema e ao conteúdo vocabular das aulas por meio de áudios no
aplicativo de celular Whatsapp, produzindo usos autênticos da lingua-
gem em Língua Inglesa.
As aulas se pautaram na metodologia comunicativa, em que os con-
ceitos e conhecimentos linguísticos são adquiridos por meio da comu-
nicação. De acordo com Figueiredo e Oliveira (2012), na Abordagem
Comunicativa, a língua que se está aprendendo é considerada como um
meio de comunicação, não somente um objeto de estudo. O objetivo
dessa abordagem é o desenvolvimento da habilidade comunicativa do
educando. Por esse motivo, é dada mais ênfase ao significado do que à
forma, aos contextos reais de uso da língua em consonância a fragmen-
tos descontextualizados. O professor que adota essa abordagem em suas
aulas, promoverá atividades interativas realizadas em duplas ou grupos,
buscará materiais que apresentam situações autênticas do cotidiano,
capacitando os alunos a interagirem socialmente com a língua-alvo.
Como destacam os autores:

Essa abordagem pressupõe que, embora grande parte do proces-


so de aprendizagem da L2/LE ocorra em sala de aula, o aluno
aprende a se comunicar por meio de interação com os cole-
gas e com o professor. Dessa forma, ele se prepara para lidar
com situações comunicativas da vida real (FIGUEIREDO E
OLIVEIRA, 2012, p.30).

Os principais gêneros utilizados para o desenvolvimento das au-


las e atividades complementares foram: slide com fonte ampliada, com
fundo branco e texto preto, arquivo de áudio mp3 com sintetizadores

399
de voz, podcast, documentos de texto com a transcrição dos podcasts e
áudio de Whatsapp.
Tendo em vista a heterogeneidade da deficiência visual, alguns alu-
nos possuíam pouca acuidade visual, mas a baixa visão ainda o per-
mitiam enxergar os slides, dessa forma, a aula foi planejada tanto para
atender ao público totalmente cego, como também aos que tinham
baixa visão. O conteúdo escrito e visual é de extrema importância para
que o aluno desenvolva as habilidades de leitura e escrita em Língua
Adicional, habilidades estas mais desafiadoras de serem desenvolvidas
pelo aluno cego em um curso online, pois ele alicerça seu aprendizado
com ênfase na escuta e na fala, sendo a leitura e escrita intermediadas
pelo sistema de escrita braille.
Levando em conta a acessibilidade aos conteúdos dos slides aos alu-
nos com baixa visão, é necessário não somente ampliar a fonte, mas
também utilizar cores que forneçam um maior contraste. Como susten-
tam Mello e Vian Júnior (2019), a cor branca sobre o fundo preto ou
vice-versa promove uma visualização mais clara das informações e são
mais acessíveis do que slides coloridos ou com cores quentes. Nesta pes-
quisa narrativa, os autores relatam a falta de inclusão em apresentações
acadêmicas, que poderiam ser solucionadas com atitudes de mudança
na linguagem utilizada e no melhor tratamento dos conteúdos em slides
projetados.
Os arquivos de áudio compartilhados concomitantemente aos sli-
des promoviam uma experiência sonora com vozes digitais convertidas
dos excertos de textos utilizados. Assim, os conteúdos foram organi-
zados na seguinte sequência: tinha-se inicialmente o slide produzido
com a imagem da pessoa de quem se tratava o excerto, que passava pelo
processo de audiodescrição pelo professor e, em seguida, havia um slide
com o excerto em fonte grande (tamanho 90), e, concomitantemente,
era reproduzido um arquivo de áudio com a leitura do excerto produ-
zida por um software online sintetizador de texto para áudio, gerando
semelhança ao que é cotidianamente ouvido pelos alunos cegos em apli-
cativos leitores de tela e pela funcionalidade talkback dos dispositivos

400
eletrônicos. Portanto, os conteúdos das aulas foram formatados e com-
partilhados com o intuito de alcançar o aprendizado de Língua Inglesa
do aluno por meio dos pressupostos dos multiletramentos, pois as aulas
se pautaram na multimodalidade da linguagem, utilizando tanto textos
verbais escritos e orais, como também textos não verbais. O aprendiza-
do, nessa perspectiva, foi construído por meio oral, auditivo e visual.
Os podcasts também se revelaram um mecanismo produtivo de
efetivação dos multiletramentos, uma vez que, ao mesmo tempo que
envolve uma construção mais elaborada de cadeias sonoras, também
permite que os próprios alunos contribuíssem para a sua produção. O
professor buscou produzir podcasts relacionados com os temas das aulas,
para que os estudantes pudessem relembrar durante a semana as estru-
turas oracionais e os conteúdos vocabulares aprendidos na aula anterior,
com vantagem da reprodução ilimitada dos arquivos. Também acom-
panhavam os podcasts as transcrições em arquivo pdf, cujo texto verbal
poderia ser estudado pelos alunos com baixa visão ou lidos por meio de
softwares leitores de tela usados pelos alunos. Outra possibilidade mais
remota seria a do aluno cego imprimir o arquivo em gráficos táteis com
uma impressora braile, prática pouco usual devido ao preço oneroso
desse equipamento e devido à praticidade que os leitores de tela dis-
põem ao usuário.
Os alunos foram incluídos no processo de produção de dois pod-
casts, em que o professor solicitou a colaboração dos alunos no envio de
áudios dos conteúdos vocabulares no aplicativo Whatsapp para serem
organizados e compartilhados com a turma. A primeira experiência foi
a produção de um arquivo de áudio que serviria para parabenizar uma
colega por seu aniversário. Os alunos construíram áudios criativos, can-
tando “happy birthday to you” e utilizando vocabulários de felicitações:
“congratulations”, “happy birthday”, além de intercalarem votos em
Língua Portuguesa para a colega. A segunda experiência foi com a cons-
trução do podcast referente às qualidades e adjetivos, em que se buscou
trazer a autopercepção dos alunos, para isso o professor solicitou para
que os alunos citassem 3 adjetivos que os qualificassem.

401
Em ambos os casos, os alunos foram chamados em chat privado
pelo Whatsapp, para que se sentissem à vontade em errar e passar pela
apreciação do professor. O Whatsapp é uma plataforma que permite o
acolhimento individualizado aos alunos quando usados para fins peda-
gógicos. Assim, o cursista teve liberdade de repetir a mesma estrutura
frasal até se sentir seguro em compartilhar com a turma, também houve
possibilidade de expor dúvidas em relação à pronúncia ou ao vocabu-
lário. Com os áudios enviados pelos alunos, o professor fazia o down-
load dos arquivos e os uniam por meio de plataforma aberta de edição
de mídias Shotcut, por meio do qual se acrescentava ao podcast uma
introdução e/ou finalização com a fala do professor e também efeitos
sonoros e trilha sonora. Por fim, o arquivo final era compartilhado no
grupo da turma, para que todos os alunos tivessem acesso ao resultado
final do esforço de cada um, trazendo a eles a posição de coprodutores
do conhecimento.
As discussões e os conteúdos abordados nas aulas também se di-
recionaram para o letramento crítico, principalmente no que tange à
transformação social e o empoderamento dos estudantes. Todos os tex-
tos trabalhados nas aulas foram retirados do blog em Língua Inglesa
“Blind New World”86, que objetiva compartilhar narrativas de pessoas
com deficiência visual, contando com mais de 150 histórias. Nessas
narrativas estão presentes questões identitárias da comunidade cega,
questões raciais, preconceito e o comportamento discriminatório da so-
ciedade, além de temas envolvendo os sucessos obtidos por pessoas com
deficiência visual e histórias de pessoas que transpassaram as dificulda-
des impostas pela sociedade excludente.
Ao trazer textos exclusivamente da comunidade de deficientes vi-
suais, o professor atua como mediador do conhecimento, mas não seu
produtor, ou seja, o conhecimento é passado de pessoas com deficiência
visual para pessoas com deficiência visual, sendo o professor um canal
de comunicação. Foi observado que essa perspectiva trouxe mais enga-
jamento e os alunos se sentiram à vontade para também expressarem
86
Disponível em: https://blindnewworld.org/blog/.

402
sua opinião, trazer relatos semelhantes, validar ou questionar o que foi
posto e contribuir criticamente para a formulação de novos conceitos.
As aulas buscaram temas que pudessem se relacionar com as vivên-
cias práticas dos alunos e contribuir para a sua formação identitária,
por exemplo, as aulas de adjetivos e esportes. Ao propor aos alunos a
autodefinição por meio de adjetivos, promove-se também uma eviden-
ciação do potencial presente em cada indivíduo e suas capacidades de
ser no mundo. Ficou evidente também o empoderamento dos alunos
com os esportes, dado que muitos deles praticavam regularmente algum
esporte, seja a natação, a corrida, o goalball ou caminhada. Na aula de
gostos e desgostos, para se trabalhar o conteúdo de verbos, os cursistas
também expuseram as suas habilidades e competências, que desconstro-
em todas as concepções equivocadas da cegueira como uma deficiência
que incapacita totalmente o indivíduo.
Segundo as perspectivas críticas, o objetivo do letramento crítico,
ao abordar textos nas aulas de língua, é investigar as ideologias e os dis-
cursos neles envolvidos, abrindo espaços para reflexão, transformação e/
ou ampliação do significado do conteúdo compartilhado, desenvolven-
do capacidade crítica e reflexiva nos alunos. Com base nessas prerroga-
tivas, foi escolhido um texto para contextualizar o conteúdo vocabular
de adjetivos, em que se narrava a trajetória de uma mulher canadense
que viaja à Índia e adota uma criança cega87. Alguns comentários foram
desencadeados do conteúdo temático:

“Aluna K.K: Eu achei o texto legal, porque além de a gente


compreender as palavras, a gente consegue interagir melhor e
acaba que é bem interessante ela ter essa força de vontade, ela
ser guerreira, ela não desistir apesar de tudo que ela passou e
viveu lá onde não é um país tão fácil.
Aluna R.L: E outra coisa também, professor, é que ela é uma
mulher que não priva a filha de viver, você vê que tem muita
família de pessoas com deficiência que não deixa a pessoa viver

87
Texto disponível em: https://blindnewworld.org/raising-my-blind-daughter-in-
-india/

403
(...) A mãe é bem inteligente, reflexiva, ela é uma mulher com
um coração muito bom.
Aluno M.M: É algo que faz a gente refletir, uma mãe solteira
em um país como a Índia, que a gente sabe toda essa proble-
mática que a R. colocou que existe lá, criar uma filha adotada,
uma menina cega e estimular desde pequenininha que ela seja
independente, é algo muito bacana para a gente refletir (...).
Aluna V.L: No meu ponto de vista, eu também vi que no de-
correr do tempo, construiu essa identidade da mulher, porque
uma estrangeira, chega na Índia, um país que é igual os colegas
já falou, um país preconceituoso, de muitas regras, uma estran-
geira chegar, conseguir adotar uma criança, que a gente sabe que
é um caminho muito longo para se chegar, e ainda uma criança
cega (...).
Aluna J.P: Eu acho que mostra a independência de uma mu-
lher bem resolvida que ela é, e da mesma forma ela mostra que
está criando a filha dela, ela saiu da zona de conforto dela, via-
jou para outro país (...). Assim como ela foi uma mulher inde-
pendente e bem resolvida, a sua filha também vai ser.
Aluna R.L: Parabéns, professor, gostei desse elemento subja-
cente que o professor captou no texto, a questão da indepen-
dência feminina né, a mulher não precisar de um homem para
poder seguir a vida, viver. Fonte: do autor (2022).

Como se pode notar do trecho extraído dos diálogos da terceira


aula, os alunos e, principalmente, as alunas, engajaram-se em discussões
sociais acerca da adoção, da identidade feminina e enobreceram as qua-
lidades e atitudes de uma mulher. Todos os comentários revelaram uma
intenção dos alunos em compartilhar suas opiniões sobre o conteúdo,
mostrando interesse inerente ao tema. A aluna que primeiro expressa
sua opinião, se atém inicialmente a uma apreciação sobre o seu proces-
so de aprendizagem, que se pautou no entendimento das palavras e na
interação, processo desencadeado pela metodologia comunicativa.
A segunda aluna, R.L., inicia o enfoque do conteúdo social tema-
tizado da adoção, colocando o direito das pessoas com deficiência de
desenvolverem sua independência e a mãe como promotora de uma

404
educação inclusiva, que potencializa as habilidades da filha. R.L., tam-
bém enfatiza as qualidades intelectuais e morais da personagem, trazen-
do à tona os conteúdos vocabulares adjetivais em língua portuguesa.
O aluno M.M, diferente das outras alunas que, discursivamente,
atribuíram à figura feminina materna o predicativo “mãe”, caracteri-
zou-a como “mãe solteira”, demonstrando uma percepção masculina
acerca da mulher que cuida de uma criança sem a presença paterna.
Diferentemente faz R.L, no último comentário, que enaltece a inde-
pendência da mulher como uma característica inerente à própria natu-
reza, explicitando que a mulher não necessita de um homem para viver.
A aluna J.P. traz a percepção da identidade da mulher como uma
construção, um processo que se desenvolve no decorrer de sua história,
constatação que caracteriza uma conclusão de conceitos construídos
pela aluna em seu processo de aprendizagem.
Todos esses comentários partiram do campo de análise dos pró-
prios alunos, demonstrando que eles possuem competência de análise
crítica dos textos, chegando a conceitos mais expandidos do que é pos-
to, construindo novos saberes e habilidades de forma natural, bastando
dar abertura para que eles se expressem e compartilhem suas vivências
e opiniões. O fato de essa discussão ter sido suscitada na terceira aula
nos mostra que os alunos estavam predispostos e confiantes em intera-
gir em grupo. Conclui-se que a adoção do Letramento Crítico como
abordagem das aulas de Língua Inglesa facilitou o processo de ensino
aprendizagem e teve como resultado discussões críticas que contextua-
lizaram o conteúdo.

Considerações finais
Este trabalho propôs a reflexão de que se pode alcançar aulas de
línguas mais inclusivas para alunos com deficiência visual por meio
do uso de gêneros multimodais e de uma perspectiva de Letramento
Crítico no processo de ensino-aprendizagem. Os apontamentos do ar-
tigo mostram que os alunos têm uma boa desenvoltura no processo de

405
aprendizagem quando eles se inserem em contextos sociais próprios de
sua realidade e participam ativamente na produção do conhecimento,
expressando criticamente seus posicionamentos.
O número de inscritos no curso e a frequência deles demonstram
que existe um público alvo de pessoas cegas e com baixa visão interessa-
do na oferta de cursos de Língua Inglesa, bastando somente haver opor-
tunidades de estudo sob uma perspectiva educativa inclusiva. Como
mostra a pesquisa de Figueiredo e Kato (2015), existem poucos estudos
voltados para o ensino de Língua Inglesa e ainda menos estudos volta-
dos para o ensino de jovens e adultos cegos. A Universidade, como um
espaço democrático, é um campo fértil para se trabalhar com a inclusão
e promover aberturas para que cada vez mais esse público seja atendido
e contemplado.

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407
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

NARRATIVAS DOS HOMENS INFAMES:


REPRESENTAÇÕES DE UM MIGRANTE CUJA
VIDA NÃO “MERECIA” SER VIVIDA

Eliane Righi de Andrade (PUCCAMP)

RESUMO: Este trabalho tem como principal objetivo trazer à discussão


representações de migrantes coletadas em relatos da mídia digital, focando
aspectos identitários desse grupo vulnerável, particularmente referenciando-
nos ao caso do assassinato de Moïse, um refugiado congolês que vivia no Rio
de Janeiro. Moïse era negro, pobre e migrante e foi assassinado brutalmente
por um grupo de homens, no lugar onde o jovem também trabalhava. Em
seus depoimentos à polícia, disseminados em mídias diversas, os acusados
relatam que Moïse apresentava problemas, entre eles a bebida, tentando, assim,
justificar o seu espancamento e morte, reproduzindo representações negativas
e estigmatizadas do jovem, articuladas à intersecção de raça, classe social e
estrangeiridade. No entanto, para este trabalho, trazemos representações de
Moïse nos dizeres de pessoas que o conheciam, a maioria migrantes como
ele. O jovem é, assim, apresentado como carinhoso, trabalhador e persistente.
Na análise de cunho interpretativo, discutimos tais representações que criam
um outro Moïse para a sociedade, por meio das narrativas do outro, familiar.
Procuramos, assim, contribuir com os estudos das identidades vulnerabilizadas
e do discurso, no imbricamento com os estudos da decolonialidade, da raça e
dos processos migratórios.
PALAVRAS-CHAVE: Identidades do Migrante. Estudos do Discurso.
Narrativas na Mídia. Decolonialidade.

ABSTRACT: The main objective of this paper is to discuss representations of


migrants collected in digital media reports, focusing on identity aspects of this
vulnerable group, particularly referring to the case of Moïse’s murder, a young
Congolese refugee, who lived in Rio de Janeiro. Moïse was black, poor and a
migrant and was brutally murdered by a group of men where the young man
used to work. In their police reports, disseminated through different media,
the accused said that Moïse had problems, such as drinking, trying, thus, to
justify his beating and death and reproducing only negative and stigmatized
representations of the young man, connected to the intersectionality of race,
social class, and foreignness. In this paper, however, we intend to bring some

408
Moïse’s representations from people that knew him, most of them migrants
as he was. Moïse is narrated as a kind, hardworking, and persistent man. In
the discursive analysis of those utterances, we discuss representations that (re)
produce and create another Moïse to the society, through the narratives of
an “other” who is familiar. Thus, we intend to contribute to the studies of
vulnerable identities and discourse, in the intertwining with the studies of
decoloniality, race and migratory processes.
KEYWORDS: Migrant Identities. Discourse Studies. Media Narratives.
Decoloniality.

Introdução
Iniciamos este artigo partindo do pressuposto de que a língua(gem)
se realiza nas práticas sociais e, dessa forma, possui intrínseca relação
com a constituição das identidades. Em decorrência desse posiciona-
mento teórico, a Linguística Aplicada de onde falamos não cabe no
restrito espaço da disciplinaridade e convoca uma existência de diálogo
com áreas diversas do conhecimento, principalmente com as ciências
sociais, pois suas contribuições se dão também na forma de entender
a constituição do sujeito que fala, do sujeito que está (ou não) inseri-
do numa ordem do discurso e, ainda, considerando sua imersão nas
relações de poder e, consequentemente, colocando em evidência as de-
sigualdades sociais e discursivas e as epistemologias consolidadas unila-
teralmente pelos grupos hegemônicos.
Neste estudo, que advém de uma pesquisa institucional realizada
sobre identidades de minorias migrantes, colocamo-nos, assim, em po-
sição crítica à compreensão de se conceber o conhecimento de forma
única e igualmente distribuída, quando, na verdade, os sujeitos, agentes
na produção de conhecimento, não estão numa relação de equidade
social e discursiva. Assim, questionar as bases epistemológicas do co-
nhecimento também é uma forma de produzir saberes em Linguística
Aplicada, trazendo à discussão a possibilidade de uma LA indiscipli-
nar (MOITA LOPES, 2006), transgressiva (PENNYCOOK, 2006) e
constituída na ecologia de saberes que extrapolam o pensamento abissal

409
(SANTOS, 2007, p.71), caracterizado, segundo o autor, como um pen-
samento moderno ocidental que se quer único, por estabelecer:

[...] distinções invisíveis [...] por meio de linhas radicais que


dividem a realidade social em dois universos distintos: o ‘deste
lado da linha’ e o ‘do outro lado da linha’ Essas distinções inten-
samente visíveis que estruturam a realidade social deste lado da
linha se baseiam na invisibilidade das distinções entre este e o
outro lado da linha (SANTOS, 2007, p. 72).

Em outras palavras, é por meio da invisibilização do outro – o qual


é colocado em uma das margens, que é “apagada” – que o outro lado
se torna hegemônico e, assim, único, pelo fato de o primeiro ser total-
mente anulado. Dessa forma, advogamos um pensar híbrido em nossa
pesquisa, tanto na teoria quanto na metodologia, como enfatiza Moita
Lopes (2006), pois ali as fronteiras epistemológicas se borram, se tocam,
se questionam e produzem outras formas de conceber o conhecimento,
fazendo aparecer outras perspectivas.
Também entendemos com Mignolo (2017) que se trata de inves-
tir numa perspectiva pluriversal, que seria a contraproposta à pretensa
universalidade do pensamento científico ocidental, instaurado na mo-
dernidade, e que sempre deixou de lado a “lógica subjacente” da colo-
nialidade que a sustenta. Assim, Mignolo (2017, p.2) alia o evento da
modernidade ao da colonialidade, pois é a matriz colonial do poder que
classifica a grande narrativa da civilização ocidental moderna, “esque-
cendo” da dominação, da exploração do outro colonizado, cujo “lado”
foi invisibilizado nessa grande narrativa de matriz eurocêntrica (econô-
mica, científica, religiosa, étnica) e hegemônica, em que predominam
os “vencedores”, os “civilizado(re)s, os ricos, os brancos, os cristãos.
É desse ponto de partida que questionamos a hegemonia
naturalizada que também se dirige ao modo como olhamos para o
migrante, vulnerabilizado em qualquer nação. É ele que, ao entrar
em um país, é colocado do outro lado, do lado de fora da “Nação”,
numa alusão ao imaginário nacional de uma unidade identitária. Ao

410
migrante cabe o “lado” de fora da cultura e da língua nacional, o lugar
da estranheza, do estrangeiro.
A partir dessa representação, percebemos que a visão totalizante
de um só povo, de uma só língua, permeia o imaginário dos que ha-
bitam um espaço (país) idealmente unificado. Assim, o migrante não
é só aquele que põe em xeque a unidade identitária imaginada, mas
também aquele que “invade” um espaço que parecia ter um “dono” (o
colonizador), dando a ele matizes diversas, outras paisagens humanas e
culturais. Nesse espaço, materializa-se o medo, a aversão à diferença (ét-
nica, religiosa, cultural, linguística, social, de gênero, entre outras), pois
o migrante revela a estrangeiridade que também nos habita enquanto
povo híbrido e miscigenado, mas que é silenciada pelo discurso da na-
turalização do ocidental branco e “puro” que nos foi imposta pela co-
lonialidade, sem questionamento de nossas origens mestiças e diversas.
É desse “outro” que falaremos, porque dele tiramos a voz e, muitas
vezes, a vida. Dele tiramos a possibilidade de (re)existência. Nesse ar-
tigo, tomamos a licença de falar da migração daqueles que chegam ao
Brasil em situação de vulnerabilidade, por meio de narrativas sobre o re-
fugiado congolês Moïse Mugenyi Kabagambe. Temos dele apenas algu-
mas notícias, “um punhado de palavras” de uma existência breve, como
diria Foucault (2003, p.203), existência essa condicionada - como a
da minoria que ele representa - ao tipo de hospitalidade/hostilidade
(DERRIDA, 2000) que o Brasil lhe oferece.

Algumas noções teóricas com as quais dialogamos


Este texto, que focaliza a relação desigual entre o migrante vulnerá-
vel e o brasileiro “nativo”, busca trazer alguns indícios das identidades
migrantes, nesse caso, por meio de narrativas de outros, já que Moïse,
o migrante em destaque neste estudo, não pode mais falar por si e de
si. Estabeleceremos a relação entre as representações construídas des-
se migrante em narrativas realizadas em diferentes mídias digitais, por
familiares e pessoas da comunidade congolesa que conviviam com o
jovem. Por meio dessas narrativas, temos a construção desse sujeito,

411
que foi vitimizado pela condição vulnerável em que vivia e que outros
migrantes também vivem no Brasil, particularmente os negros, o que
de fato justifica a particularidade desse estudo dentro do grande tema
migração. Ademais, consideramos, ainda, que a interseccionalidade
(AKOTIRENE, 2018) entre migração e raça também se presentifica
nesse caso, no que diz respeito ao acolhimento dos migrantes, eviden-
ciada pelo fato de que os que estão em situação mais precária são, na
maioria, negros ou descendentes de indígenas. O termo interseccionali-
dade que Akotirene (2018, p. 13) traz de Crenshaw, remete à “maneira
sensível de pensar a identidade e sua relação com o poder”, o que tam-
bém não pode ser descartado na relação raça e migração.
Apoiando-nos em Mignolo (2008, p.243), percebemos, mais uma
vez, que a lógica da colonialidade persiste na contemporaneidade e
mantém, firmemente, “elementos fundamentais da matriz colonial de
poder”, como o controle dos corpos no agenciamento da economia ca-
pitalista, que explora as massas humanas desprivilegiadas, condenan-
do-as a um descarte humano. Esses aspectos retomam historicamente
os processos de dominação e colonização sobre territórios invadidos e
povos nativos, e esclarecem as raízes racistas e patriarcais das sociedades
hegemônicas, que continuam subjugando o desfavorecido, o diferente,
o que não pensa igual, aquele que não aceitou ser “salvo” pela civilização
dominante – o que revela ainda raízes religiosas nesse discurso.
Nesse contexto, pensamos, ainda, na construção das identidades
na relação com a discursividade, posto que somos pelo olhar do outro,
pela forma como o outro nos constrói narrativamente. Usamos o ter-
mo identidade no plural, pois, como processo social em construção, as
identidades estão sempre em transformação, amparadas nas formações
discursivas que as validam, as reproduzem e que constituem um imagi-
nário sobre elas, a partir do contexto histórico-social em que se inserem
as relações de poder. Pensando nas identidades pelos estudos filosófi-
cos, Appiah (2018, p.18) afirma que elas funcionam como “rótulos”,
determinando como as pessoas e grupos se veem e manifestam suas
representações de outros. De alguma forma, o autor coloca em questão

412
a formação das identidades na relação com as diferenças entre grupos,
que podem antagonizar e estigmatizar os mais vulneráveis, cujas repre-
sentações são menos legitimadas social e culturalmente. Nesse aspecto,
a identidade está sempre articulada à memória, posto que esta:

compreende crenças, saberes e valores coletivos relacionados aos


sentidos partilhados e a partir da qual o discurso é construído
e faz sentido para uma dada sociedade. Precedendo a interação
verbal, essa memória mobiliza a relação entre o sujeito e seu en-
torno sócio-histórico e funciona cognitivamente na elaboração
e interpretação dos discursos como um dispositivo de ordena-
mento do mundo “real” (DIAS, 2016, p.80).

Entendemos, assim, que um “já-dito” constitui nossos discursos:


enunciados que já foram proferidos, mas que poderão ser efetuados
em outras condições históricas de produção. Assim, tudo aquilo que já
foi dito constrói a nossa memória discursiva. O interdiscurso – como
chamamos na perspectiva da Análise do Discurso –, faz circular “formu-
lações anteriores [...] em outros tempos e espaços, atrelando, assim, um
“efeito de memória na atualidade de um acontecimento” (COURTINE,
2014, p.104).
O discurso jornalístico trazido, nesse trabalho, pelos enunciados
propalados nas e pelas diferentes mídias digitais, é um grande elemento
formador das identidades e da memória discursiva, uma vez que ele
extrapola a intenção de informar. Segundo Dias (2016), há uma plura-
lidade de vozes nos jornais – que entendemos numa amplitude maior,
considerando o mundo digital e a disseminação de informações na rede
– que:

deixam entrever uma sabedoria coletiva, cuja transmissibilidade


tem no jornal um operador. O jornal é um objeto cultural: tem
valor como bem de consumo, mas também produz um efeito
simbólico. O sentido da informação jornalística ultrapassa o
teor do conteúdo, pois faz ecoar valores sociais que ela mobiliza
e a partir dos quais chama a atenção para alguns acontecimentos
e sujeitos (DIAS, 2016. p.77).

413
Refletindo sobre os diversos meios e os discursos pelos quais as re-
presentações sociais são (re)produzidas e circulam, inferimos que certas
imagens do migrante, particularmente do vulnerável, estão atreladas à
memória social construída dele pelos brasileiros, imagens hegemônicas
compartilhadas que passam a ter um valor de verdade. Questionamos,
então, esta estabilização de sentidos, para fazer emergir outros efeitos de
sentido, pois sabemos que, ainda que a mídia tenha trazido vozes di-
versas para falar do sujeito congolês, não podemos perder de vista que,
ao expor e reproduzir exaustivamente as imagens do acontecimento de
seu assassinato, contribuiu também para espetacularizá-lo e, de certa
forma, como aponta Courtine (2011, p.150-151), anestesiar o olhar do
espectador, de modo a torná-lo mais distante do sofrimento do outro,
tornando banal algo que não o é.
A violência exacerbada sobre um jovem negro refugiado nos faz
pensar sobre o que Arendt (1999) descreveu como a banalização do
mal. Recordamos de seu estudo, pois a defesa indefensável dos acusa-
dos do crime do congolês nos remete à frieza do nazista Eichmman,
que não se sentia culpado pelos crimes dos quais foi executor, já que
não achava que “fazia algo de errado”, ao cumprir ordens superiores do
poder estatal.
A tortura e morte gratuitas de Moïse, no entanto, nos alertam para
a violência que não é vista como violência, seja ela física, moral ou
psicológica. Se, no Rio de Janeiro, os acusados não cumpriam o papel
do Estado como alegara Eichmman (ARENDT, 1999) em seu depoi-
mento, os assassinos aqui se sentiam no direito de aplicar um “corre-
tivo” no rapaz, legitimando a violência como prática de uma justiça
paralela, feita com as próprias mãos, algo que traz à nossa memória um
certo discurso de exterminação dos vulneráveis, pobres e necessitados
em nome do benefício da maioria, que, na verdade, é hegemônica, mas
não maioria. Assim, os espancadores viam em Moïse um sujeito de “se-
gunda classe” ou, até mesmo, um “ser abjeto”, cuja existência, segundo
Mbembe (2018, p.20), é “um atentado contra minha vida, [...] uma
ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja eliminação biofísica reforçaria

414
meu potencial de vida e segurança”. O processo de desumanização cau-
sado pela organização administrativo-econômica do mundo ocidental
facilitou “estereótipos racistas de classe [à medida em que comparou] ‘o
povo apátrida’ do mundo industrial aos ‘selvagens’ do mundo colonial”
(MBEMBE, 2018, p.21).
Mbembe (2018) confere aos mecanismos de funcionamento do
necropoder ações de punição sobre o corpo vulnerável, daquele que
tomamos como “inimigo”, trazendo para a contemporaneidade os
dispositivos de tortura e terror medievais. Essa articulação do poder
disciplinar e soberano nos parece presente na tortura realizada em
Moïse: a necropolítica comandada, nesse caso, por aqueles que tentam
fazer justiça pelas próprias mãos, talvez porque nela também não acre-
ditem como instituição de garantia de direitos.
Trazemos para dialogar, com a temática da alteridade, um conceito
de Butler (2011) que nos parece ressoar neste trabalho: a rostidade.
Butler vai buscar em Levinas esse conceito. O autor relaciona a preca-
riedade do outro a uma ameaça a nosso eu narcísico. O rosto seria o
lugar que as palavras não conseguem apreender, mas onde as vivências
estão impressas. Fugimos desse encontro ameaçador e desequilibrante
de nossa pseudossubjetividade segura e unificada. O rosto marca, assim,
“a extrema precariedade do outro” (BUTLER, 2011, p.18), que não
quero ver em mim mesmo. É assim que fujo do rosto do Outro (do
estrangeiro, do negro, do pobre), que pode me convocar para tomar a
defesa dele, pois “[r]esponder ao rosto, entender seu significado quer
dizer acordar para aquilo que é precário em outra vida ou, antes, àquilo
que é precário à vida em si mesma (BUTLER, 2011, p.19), portanto,
à minha também. Aniquilar o outro em mim, “matá-lo” – de fato ou
simbolicamente – seria, então, um modo de fugir à responsabilidade
ética sobre o Outro e fugir à minha precariedade também. Infligindo a
violência, os agressores do migrante lançam mão do argumento que o
fazem “pelo bem de muitos”, quando na verdade utilizam-se dela para
suprir seus próprios sentimentos agressivos e a própria violência simbó-
lica e real que atravessam suas vidas também precárias e, muitas vezes,

415
indigentes. Como atender, então, ao apelo do rosto do Outro? Melhor
eliminá-lo... reduzi-lo a um não-sujeito, a um objeto abjeto.

Sobre o percurso metodológico


Como parte do corpus dessa pesquisa, coletamos reportagens sobre
o assassinato de Moïser desde sua divulgação na mídia (29 de janeiro
de 2022) até o dia 17 de março, quando a família, após desistir de
administrar os dois quiosques onde ocorrera o crime (oferecidos pelo
prefeito carioca), aceita um quiosque no Parque da Madureira, região
em que grande parte da comunidade congolesa habita no Rio. Fizemos
um levantamento preliminar com palavras-chave (“assassinato”, “Moïse
Kabagambe”, “congolês”, “Tropicália”, “Rio de Janeiro”, e as possíveis
combinações desses termos. Da enorme quantidade encontrada, afu-
nilamos a busca até chegar a reportagens de grandes mídias, que hoje
também operam digitalmente, tais como O Estado de São Paulo, Correio
Braziliense, O Globo e Isto É, e ainda de hipermídias, tais como BBC,
UOL e G1. Além dessas, acessamos produções em vídeo pelo YouTube,
uma especificamente realizada pela TV aberta, exibida pela TV Record,
no programa Domingo Espetacular, e uma reportagem do SBT News,
com depoimento de amigos de Möise.
Nosso objetivo era coletar material de diferentes mídias ao longo
do desenrolar da elucidação dos fatos relacionados ao crime e perceber o
olhar que elas foram dando aos acontecimentos e às pessoas envolvidas.
Também desejávamos acessar, por meio delas, o relato (narrativa oral
ou transcrita) de pessoas que conheciam e conviviam com Moïse (como
mãe, amigos e parentes). Após uma seleção de 20 reportagens, trouxe-
mos, para este artigo, alguns recortes que caracterizam basicamente o
olhar dos que conheciam Moïse, a partir dos quais traçaremos algumas
considerações de análise.
O trabalho é, pois, de natureza interpretativa e traz a Análise do
Discurso francesa como dispositivo analítico, pois busca, nos recortes
discursivos selecionados, trazer à tona a relação acontecimento (histó-
ria) e materialidade linguística (língua) (PÊCHEUX, 1997), fazendo

416
emergir, em gestos de interpretação, representações correntes de mi-
grantes e brasileiros, as quais traçam efeitos de sentido sobre a rela-
ção entre esses grupos, denunciando também as imagens estabilizadas
e generalizantes do brasileiro como um povo amigável, hospedeiro e
cordial.

Identificações conflituosas do sujeito Moïse nas mídias


Moïse Kabagambe era um congolês que residia no Brasil desde
2011. Vivia aqui como refugiado político com sua mãe, primo, tio e
irmãos, estatuto concebido pelo governo brasileiro em 2014, pelo fato
de seu país, a República Democrática do Congo, ex-colônia belga, viver
uma guerra incansável entre grupos étnicos em seu país. Aqui chegan-
do, ainda adolescente, estudou até a 2ª série do ensino médio. Falante
de português, francês, lingala e um pouco de inglês, nunca teve um
emprego fixo. Ganhava por dia de serviço, trabalhando em quiosques
na praia, na Barra da Tijuca,
Moïse seria, então, mais um migrante negro não famoso, anônimo,
pobre, vivendo de bicos, se não fosse pelo fato de ter sido assassinado
barbaramente a pauladas e golpes, no local que costumava trabalhar,
no dia 24 de janeiro de 2022. A família só soube do assassinato no dia
seguinte. As mídias só reportaram o fato no dia 29 de janeiro, quan-
do tiveram acesso ao ocorrido. Moïse apanhou de vários homens, foi
amarrado, imobilizado e espancado até a morte. Todo o período de
tortura foi filmado por câmeras do próprio quiosque e de um con-
domínio nas proximidades. Pelo menos cinco pessoas participaram do
ato de agressão. Três foram presas temporariamente até o julgamento e
outras pessoas estavam sendo investigadas pela participação no crime.
Assombrosamente, após o covarde espancamento, o corpo abandona-
do de Moïse ficou estendido próximo aos quiosques até a madrugada,
onde pessoas continuaram sendo atendidas. O movimento continuou
normalmente, até a chegada do SAMU, chamado por um dos agres-
sores, quando o jovem já estava morto. O corpo “ficou estendido no
chão” até a madrugada.

417
Moïse não está aqui para nos dizer o que aconteceu, mas o que
seus algozes afirmam é que ele estaria transtornado naquele dia, bêbado
(embora nenhum laudo técnico tenha comprovado), com problemas
(que ninguém soube dizer quais!) e queria roubar bebidas do quiosque
em que trabalhava. Tal imaginário se encaixa ao de um jovem vil, um
“infame”, o que incide sobre as representações que se fazem, muito
comumente, de migrantes, negros e pobres. Por meio desse imaginário
quer-se justificar, discursivamente, o “castigo extremo” ao jovem – por
se “comportar mal” – e a morte como uma “fatalidade”, pois não teria
sido intencional, embora a punição fosse “necessária” aos olhos dos
criminosos.
Trazemos, então, para essa análise, recortes discursivos selecionados
de mídias digitais, de pessoas que conheciam Moïse, de modo a cons-
truir um imaginário desse sujeito, desprendido do olhar enviesado dos
que o assassinaram.

Moïse por familiares e conhecidos: narrativas de um sujeito


“normal”
Trazemos, inicialmente, dois recortes com depoimentos da mãe de
Moïse, Ivana Lay, os quais foram dados a diferentes mídias jornalísticas:
G1 e Extra, respectivamente.

R1 - Ivana (mãe): A gente chegou aqui e os brasileiros sempre foram


pessoas boas. Mas, hoje, não sei mais. Moïse trabalhou nessa barraca
antes da pandemia e durante a pandemia. Conhecia todos lá do lo-
cal. Eles conheciam o meu filho e tiraram a vida dele. Se houve algum
problema, eles não poderiam matá-lo. Moïse conhecia tudo na praia.
Quando queriam alguma coisa, eles chamavam: “Angolano, angolano”.
(COELHO; SATRIANO, 2022)
Fonte: COELHO, H.; SATRIANO, N. Mãe de Moïse depõe, e advogado diz que há
tentativa de ‘desqualificar’ o congolês. G1 Globo, 02 fev. 2022. Disponível em: https://
g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/02/02/mae-de-moise-depoimento-
delegacia-de-homicidios.ghtml. Acesso em 20 mar. 2022.

418
R2 - Ivana: Que vergonha! Meu filho que amava o Brasil. Por que eles
mataram o meu filho? Moïse tinha todos os amigos brasileiros. Aí vêm
os brasileiros e matam o meu filho. [...] Olha a foto do meu filho, meu
bebezinho. Era um menino bom. Era um menino bom. Era um me-
nino bom... Por quê? Por que ele era pretinho? Negro? Eles mataram o
meu filho porque ele era negro, porque era africano. [...] Ele era traba-
lhador e muito honesto. Ganhava pouco, mas era dele. [...] E reclama-
va, dizendo que ganhava menos que os colegas, [...] Mataram ele como
um bicho. [...] Eu vi na televisão que, aqui no Brasil, se um cachorro
morrer, há várias manifestações. Então, eu quero que todo mundo me
ajude com justiça.
Fonte: SOUZA, R. N. de. Caso Moïse: ‘Era uma facada no meu coração’, diz mãe de
congolês morto em quiosque após ver o vídeo do crime. Extra Globo, 02 fev. 2022.
Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/caso-moise-era-uma-facada-
no-meu-coracao-diz-mae-de-congoles-morto-em-quiosque-apos-ver-video-do-crime-
rv1-1-25377357.html. Acesso em: 18 abr. 2022.

No primeiro recorte, percebemos que Ivana coloca os brasileiros


como acolhedores (pessoas boas), com as quais seu filho se relacionava,
ou seja, como alguém que sentia pertencer ao grupo e que conhecia
“tudo na praia”. No entanto, diz que hoje “não sabe mais”. Declara
que as pessoas o chamavam quando queriam alguma coisa, mas logo
percebemos o desconhecimento daquelas mesmas pessoas em relação
à “identidade congolesa” de Moïse: elas o chamavam de “angolano”.
Portanto, entendemos que o outro, brasileiro, se dirige ao estrangeiro,
no caso, o congolês, como alguém de outro lugar qualquer, fazendo-nos
pensar que os brasileiros acham que todos os africanos são iguais, pro-
vavelmente pela definição da cor de sua pele.
No segundo recorte, Ivana faz, ela mesma, comparações entre o que
fizeram com seu filho e o tratamento cruel dado a um “bicho”, mas que,
ainda assim, não foi esse o tratamento dado a ele, pois quando matam
um cachorro as pessoas se mobilizam. Relatando toda a crueldade das
ações e se dirigindo ao filho morto com o diminutivo “pretinho”, ela
pergunta então por que eles o mataram, o torturaram. A resposta vem

419
em seguida, dada por ela mesma: a razão era por ele ser negro e africa-
no, o que indica uma interseccionalidade entre raça e origem, o que o
fez alvo de uma ação tão cruel. Num misto de indignação e tristeza, ela
mostra as fotos do filho: um filho que tem “rosto” para ela; um filho
que trabalhava, um filho querido para ela. Então, fala mais uma vez
pelo filho, que reclamava que ganhava menos que os “colegas” (prova-
velmente brasileiros que também trabalhavam no quiosque como ele,
mas que, ainda assim, ganhavam mais que o rapaz), o que revela a típica
exploração a que os migrantes são submetidos.
Passando para o depoimento de um dos irmãos de Moïse, Samir
Kabamgabe, dado à TV Record para o programa Domingo Espetacular,
observamos muitas semelhanças entre os dizeres dele e de sua mãe, mar-
cados pela desilusão e revolta.

R3 - Samir (irmão): O Brasil era tudo para mim/tudo para minha


família/Hoje eu tô com medo de viver no Brasil/ eu tô com medo dos
brasileiros// Tô com medo/ porque toda vez que eu lembro do que
aconteceu com meu irmão/ eu penso que pode acontecer comigo tam-
bém/ a qualquer momento (3:13-3:32)
Fonte: REPORTAGEM da semana. TV Record Domingo Espetacular, 07 fev.
2022. Disponível em: https://recordtv.r7.com/domingo-espetacular/reportagem-da-
semana/videos/conheca-a-historia-do-congoles-moise-kabagambe-morto-em-um-
quiosque-no-rio-de-janeiro-07022022. Acesso em: 06/02/2022.

A vergonha descrita pela mãe é transfigurada em medo por Samir,


homem negro, migrante e jovem, o que o coloca como alvo de violên-
cia por parte de grupos criminosos e até mesmo da polícia. Afinal, o
preconceito habita as margens. Samir, nesse momento, distancia-se do
sentimento de pertencimento em relação aos brasileiros (o Brasil era
tudo) e o deixa restrito ao passado. É interessante observar, no entanto,
em relação a Samir, que um dia depois, ele se “retrata” parcialmente em
relação ao que disse, em outra reportagem, dessa vez dada à Agência
Brasil88, dizendo que “sabemos que essa ação que aconteceu com o meu

88
GANDRA, A. Família de Moïse recebe concessão de quiosque onde congolês foi

420
irmão não veio do coração de todo o povo brasileiro [...] queremos
agradecer a todos pela solidariedade”. Afinal, Samir continua a viver no
Brasil, dependendo da “bondade” dos brasileiros para aceitá-lo e a sua
família, mesmo depois do ocorrido. Seria essa, então, uma marca no
discurso de subjugação à cultura do outro, às suas regras e às condições
impostas ao migrante para continuar no Brasil? Provavelmente, sim.
Outros que conheciam Moïse sempre o retratam com característi-
cas pessoais positivas e de ser trabalhador. Talvez isso seja reforçado nos
dizeres como um modo de se fugir de um estereótipo historicamente
atribuído aos negros no Brasil pela classe hegemônica, desde os primór-
dios da escravização. No dizer de um amigo do jovem, permeado por
um discurso que ressoa uma certa religiosidade (ganhar o pão de cada
dia), o trabalho (ou subtrabalho) é o que faz com que o Brasil acolha
as pessoas migrantes, fazendo-as cumprir, no entanto, as obrigações de
qualquer cidadão de direito (a gente paga água, luz). O cuidado e o tra-
tamento dados a elas, porém, não são os mesmos, inclusive no que diz
respeito à justiça. O depoimento foi colhido em mídia digital (Esquerda
Diário), mas foi dado primeiramente à rede SBT:

R4 - Amigo de Moïse: Ele é trabalhador, foi trabalhar, ganhar o pão de


cada dia. Aqui no Brasil a gente paga aluguel, a gente paga luz, água...
Ele foi trabalhar, e como que mataram ele!? [...] Ele trabalhava. A gente
trabalha duro. Fugimos da África, para ser escolhido aqui... acolhido no
Brasil... o Brasil é uma mãe, abraça todo mundo. Ai Brasil! é uma mãe,
segunda casa, e como que vai matar o irmão trabalhando? Justiça, vai
ter que ser feito! (0:10-0:22; 0:49-1:08)
Fonte: “ELE é trabalhador, foi trabalhar, ganhar o pão de cada dia”, diz amigo de Moïse
Kabamgabe. SBT News, 01 fev. 2022. Disponível em: https://www.esquerdadiario.
com.br/Ele-e-trabalhador-foi-trabalhar-ganhar-o-pao-de-cada-dia-diz-amigo-de-
Moise-Kabamgabe. Acesso em:20 abr. 2022.

morto. Agência Brasil, 07 fev. 2022. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.


com.br/geral/noticia/2022-02/familia-de-moise-recebe-concessao-de-quiosque-
-onde-congoles-foi-morto. Acesso em: 03 mar 2022.

421
Observamos que o rapaz reclama do “país que o acolheu”, mas que
ele, por um lapso de linguagem, diz o “escolheu” (efeito de sentido que
discutiremos no próximo recorte, por não se tratar propriamente de
um acolhimento). Ele qualifica o Brasil como uma “segunda mãe”, o
que destoa da raiz da palavra “pátria”, uma vez que a associamos, numa
cadeia parafrástica, àquilo que se refere ao pai, no caso, o Brasil. Aqui
percebemos a contradição da pátria que hospeda o migrante, o acolhe e,
ao mesmo tempo, lhe é hostil, pois “o mata, mesmo trabalhando” para
ela. Clamar por justiça é o que todos os amigos e familiares pedem; mas
o que questionamos é se a justiça vale para todos, pois seria Moïse um
cidadão de direito, mesmo tendo conquistado sua naturalização por seu
status de fugitivo?
Primo de Moïse, Yannick Iluanga Kamanda, de 33 anos, narra a
crueldade do crime à Revista Isto É, cujas imagens foram divulgadas
exaustivamente pelas TVs, por meio das filmagens realizadas no quios-
que onde ocorreu o crime.

R5 - Yannick (primo de Moïse): Ele apanhava e as pessoas se reveza-


vam para bater. Não satisfeitos, eles amarraram os braços e as pernas
dele e continuaram batendo. O meu primo ficou desacordado e mesmo
assim eles espancavam ele. Só depois de um tempo, eles viram que ele
estava desacordado e deixaram ele jogado na areia.
Fonte: RJ: Congolês é espancado até a morte em quiosque após cobrar pagamento.
Isto É, 31 jan. 2022. Disponível em: https://istoe.com.br/rj-congoles-e-espancado-
ate-a-morte-em-quiosque-apos-cobrar-pagamento-atrasado/. Acesso em: 19 abr.
2022.

Tal relato nos remete novamente à falta de empatia pelo Outro,


à fuga da rostidade (Butler, 2011), aquela representação da alteridade
que nos obrigaria a olhar para o “diferente” de nós mesmos e perceber
nele a humanidade que compartilhamos. No entanto, contrariamen-
te, o que percebemos na filmagem e nas palavras de Kamanda é que
aquele “rosto” humano não foi algo com o qual houve uma identifica-
ção; longe disso, aquele “rosto” foi encarado como a simbolização do

422
abjeto. Mais adiante na entrevista, Kamanda comenta o que pudemos
também verificar nas filmagens: após a agressão e morte de Moïse, os
funcionários continuaram a trabalhar e a servir. Dessa forma, conclu-
ímos que o jovem negro foi destituído de toda sua humanidade e seus
agressores imputaram-lhe o valor de vida zoé (AGAMBEN, 2002), vida
selvagem, nua, da qual se elimina a vida “qualificada e política”, segun-
do o filósofo.
Para finalizar, trazemos trechos da fala do advogado da OAB, que
assumiu o caso de Moïse:

R7 - Mondengo (advogado da família): Existe uma tentativa de trans-


formar ele [Moïse] na pessoa que gerou o resultado da própria morte.
Falar que ele estaria alcoolizado, que estaria alterado [...] Moïse tra-
balhava na região, por conta da diária baixíssima que recebia, de não
ter direito trabalhista, dormia no trabalho para poder não pagar duas
passagens de ônibus e poder chegar em casa com um pouco mais de
dinheiro para sustentar a sua família.
Fonte: MÃE de Moïse depõe, e advogado diz que há tentativa de ‘desqualificar’ o
congolês. G1 Globo, 02 fev. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-
janeiro/noticia/2022/02/02/mae-de-moise-depoimento-delegacia-de-homicidios.
ghtml. Acesso em: 15/04/2022.

Nesse dizer, Mondengo aparece como uma voz que ratifica e legi-
tima a situação vulnerável a que os migrantes, principalmente negros,
têm de se submeter. As imagens negativas atribuídas ao jovem assassina-
do seriam uma forma de colocar em dúvida seu caráter, apesar de que,
em todos os recortes de depoimentos trazidos até aqui, Moïse sempre
aparece associado a imagens positivas, de um rapaz trabalhador, hones-
to e querido. Seria seu “mal” desejar ser respeitado pelo outro, brasi-
leiro? Ter seus direitos acolhidos? A situação de sobrevivência a duras
penas, recebendo menos que os outros, sem direitos trabalhistas, tornou
Moïse alvo da “fatalidade” que atormenta a população pobre e precari-
zada. População que, mesmo durante a pandemia de COVID, teve de
se expor à doença, ao excesso de trabalho, à precarização de condições

423
de saúde para sobreviver. Moïse trabalhava para quem podia se dar ao
luxo de ir à praia, quando muitos morriam, esperando uma vaga para
tratamento num hospital público.
Assim, o advogado afirma que há uma tentativa de imputar à víti-
ma a própria culpa do ato, invertendo a situação de forma escandalosa,
a não ser que ser migrante, negro e pobre seja a justificativa para se
ser “assassinado” numa sociedade desigual e indiferente às necessidades
alheias. Segundo o irmão de Moïse, ainda em reportagem dada ao SBT,
“ele nunca foi de desistir quando está certo” e essa qualidade talvez te-
nha sido o “defeito” de Moïse: acreditar numa sociedade brasileira justa
para todos e cobrar dela esses direitos.

Considerações finais
Procuramos, nesta discussão, focar discursivamente representações
de Moïse, articulando os dizeres de vários locutores que o conheciam,
o que permite traçar um perfil do jovem migrante diferente dos que os
acusados tentaram construir em suas narrativas dadas à polícia e que
foram divulgadas em mídias digitais diversas. O assassinato bárbaro de
Moïse revela um olhar de denúncia contra preconceitos que o coloca-
vam como um alvo fácil de ataque – o fato de ser negro, pobre e refu-
giado –, pois o estrangeiro é quem precisa se submeter a condições mais
severas para se “hospedar” e viver no Brasil. Dessa forma, a resistência
ou a não submissão do “estrangeiro” ao outro, quando não se sujeita
passivamente às situações precárias de trabalho e de vida, parece trazer
um certo mal-estar ao brasileiro, que se sente mais cidadão, mais pleno
de direitos do que qualquer migrante vulnerável. Assim, o congolês
foi mais um sujeito sem fama, cuja narrativa de uma vida “ordinária”
apareceu nas mídias por conta da infâmia de sua morte. Infelizmente,
Moïse teve sua vida nua e invisível tornada famosa só na morte ou,
como diria Agamben (2002, p.93), “sua vida humana [foi] exposta a
uma matabilidade incondicionada, [que] vem a ser incluída na ordem
política”.

424
Referências
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Burigo, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

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425
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO DA


ARGUMENTAÇÃO NA EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS NUMA CONCEPÇÃO
EMANCIPADORA

Elionai Mendes da Silva (UESC)


Renata da Silva Posso (UESC/PMF)

RESUMO: Neste trabalho, apresentamos algumas reflexões advindas de duas


pesquisas de doutoramento, que estão sendo desenvolvidas na Universidade
Estadual de Santa Cruz. Apoiando-nos em estudos da argumentação, com
ênfase em procedimentos de ensino-aprendizagem, assumimos ser necessário
organizar propostas didático-pedagógicas que estejam apoiadas em concepções
alinhadas ao caráter crítico, autônomo e emancipatório. Isso porque a
Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade da educação básica que
requer dos profissionais da educação compromisso, rigorosidade metódica e
leitura da realidade vigente (FREIRE, 1996), com vistas a desenvolver práticas
escolares marcadas pela multidimensionalidade da argumentação (GRÁCIO,
2013) e pela abertura ao diálogo. Para tanto, propomos um diálogo entre a
Pedagogia crítica freireana (FREIRE, 1986); no que tange aos princípios para
uma educação libertadora, pois defendemos que este marco teórico oferece
subsídios necessários para um ensino transformador de realidades sociais,
em alinhamento ao que apregoa a perspectiva do Letramento crítico (cf.
CASSANY, 2006; KLEIMAN, 2008; CASSANY e CASTELLÀ, 2010), visto
que contribui para a realização da leitura crítica de mundo, em articulação
com o desenvolvimento de práticas sociais de linguagem, marcadas pela
argumentação. Logo, consideramos que o ensino da argumentação deva
partir de situações concretas de comunicação, ao mobilizarmos importantes
elementos na interação discursivo-argumentativa, para que, em diálogo com
a perspectiva interacional da argumentação (cf. PLANTIN, 2008; GRÁCIO,
2016), seja possível ampliar as possibilidades de tratamento dos objetos de
conhecimento, de análise de pontos de vista variados e de participação social.
Nossas reflexões sugerem que tais perspectivas, quando articuladas, contribuem
significativamente para a emancipação dos/das estudantes matriculados/as
na Educação de Jovens e adultos porque promovem o desenvolvimento da
reflexividade e criticidade. Assumimos ainda que a argumentação, associada à
tomada de decisões e às práticas de letramento, promove o engajamento dos

426
discentes em ações coletivas e em práticas de linguagem que podem promover
mudanças sociais.
PALAVRAS-CHAVE: Argumentação Prática. Autonomia. Criticidade.
Emancipação. Práticas de letramento.

ABSTRACT: In this paper, we present some reflections arising from two


doctoral research projects, which are being developed at the Universidade
Estadual de Santa Cruz. Based on argumentation studies, with emphasis
on teaching and learning procedures, we assume it is necessary to organize
didactical and pedagogical proposals that are supported in conceptions aligned
with critical, independent and emancipatory aspects. The reason is the Youth
and Adult Education (YAE) is a basic education modality, it requires from
education professionals commitment, methodical rigor and reading of the
current reality (FREIRE, 1996), in order to develop school practices marked
for the multidimensionality of argumentation (GRÁCIO, 2013) and for
openness to dialogue. For this reason, we propose a dialogue between Freirean
Critical Pedagogy (FREIRE, 1986); regarding the principles for a liberating
education, because we argue this theoretical framework offers necessary
support for a transformative teaching of social realities, in alignment with what
the perspective of Critical Literacy (cf. CASSANY, 2006; KLEIMAN, 2008;
CASSANY and CASTELLÀ, 2010), since it contributes to the critical reading
of the world, in connection with social practices of language development,
marked for argumentation. Therefore, we believe the argumentation
teaching should start from the concrete communication situations, gathering
important elements in discursive and argumentative interactions, so that, in
dialogue with the interactional perspective of argumentation (cf. PLANTIN,
2008; GRÁCIO, 2016), it is possible to expand the possibilities of knowledge
objects approach, analysis of various points of view and social participation.
Our reflections suggest such perspectives, when gathered, contribute
significantly to the emancipation of students enrolled in Youth and Adult
Education for the reason they promote reflexivity and criticality development.
We also assume that argumentation, associated with decision-making and
literacy practices, promotes the students commitment in collective actions
and language practices which can promote social changes.
KEYWORDS: Practical Argumentation. Autonomy. Criticality.
Emancipation. Literacy practices.

427
1. Introdução
Esta produção decorre de estudos realizados em duas pesquisas de
doutoramento, que estão sendo desenvolvidas na Universidade Estadual
de Santa Cruz (UESC), no Programa de Pós-Graduação em Letras:
Linguagens e Representações (PPGL-LR), em Ilhéus/Ba. As mesmas
discutem como o ensino da argumentação, numa perspectiva eman-
cipadora, pode contribuir para a autonomia crítica, política e ativa de
educandas e educandos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), sob a
égide da proposta pedagógica freireana (FREIRE; 1996). Objetivamos,
precipuamente, proporcionar uma formação específica voltada para o
desenvolvimento de práticas sociais argumentativas, as quais podem ser
mobilizadas em diferentes contextos situacionais.
Para isto, apoiamo-nos em estudos da argumentação que primam
por procedimentos de ensino-aprendizagem, pois consideramos ser ne-
cessário organizar propostas didático-pedagógicas que estejam apoiadas
em concepções alinhadas ao caráter crítico, autônomo e emancipató-
rio. Uma atividade custosa que requer dos profissionais da educação
compromisso, rigorosidade metódica e leitura da realidade vigente
(FREIRE, 1996), com vistas a desenvolver práticas escolares marcadas
pela multidimensionalidade da argumentação (GRÁCIO, 2013) e pela
abertura ao diálogo, na busca por formar educandas e educandos ativos
e atuantes frente às exigências da sociedade contemporânea.
Nesta perspectiva, o ensino de argumentação pode oportunizar aos
educandos e às educandas a refletirem e conscientizarem-se sobre a sua
própria condição humana enquanto seres sócio-históricos e políticos, a
partir da construção de saberes acerca da argumentação sob o lastro de
uma concepção pedagógica que concebe “a educação como prática da
liberdade” (FREIRE, 1987, p. 05). Assim, podemos conceber a argu-
mentação como um ato crítico-político (GRÁCIO, 2016) que orienta
os sujeitos a desenvolverem os mais variados papéis sociais enquanto
atuam argumentativamente em situações específicas de comunicação,
com vistas a promover uma argumentação prática (GONÇALVES-
SEGUNDO, 2021). Logo, uma prática social linguística direcionada a

428
resolução de problemas da vida cotidiana. Dessa maneira, assumimos,
ainda, que a argumentação, associada à tomada de decisões e às práticas
de letramento, promove o engajamento dos discentes em ações coletivas
e em práticas de linguagem que podem promover mudanças sociais.
Pensando assim, propomos um diálogo entre a Pedagogia críti-
ca freireana (FREIRE, 1986); no que tange aos princípios para uma
educação libertadora, pois defendemos que este marco teórico oferece
subsídios necessários para um ensino transformador de realidades so-
ciais, em alinhamento ao que apregoa a perspectiva do Letramento crí-
tico (CASSANY, 2006; KLEIMAN, 2008; CASSANY e CASTELLÀ,
2010), pois acreditamos que estes estudos contribuem para a realização
da leitura crítica de mundo, em articulação com o desenvolvimento de
práticas sociais de linguagem, marcadas pela argumentação. Por conse-
guinte, partimos do pressuposto de que o ensino da argumentação deva
partir de situações concretas de comunicação, mobilizando importantes
elementos na interação discursivo-argumentativa, para que, em diálo-
go com a perspectiva interacional da argumentação (PLANTIN, 2008;
GRÁCIO, 2016), seja possível ampliar as possibilidades de tratamento
dos objetos de conhecimento, de análise de pontos de vista variados e
de participação social.
Para refletir sobre esses e outros aspectos, estruturamos nossas re-
flexões em duas partes. Na primeira parte, dialogamos sobre a contri-
buição da concepção emancipatória do ensino da argumentação, com
base nos estudos da Pedagogia crítica de Paulo Freire (1987; 1996), do
Letramento crítico (CASSANY, 2006; KLEIMAN, 2008; CASSANY
e CASTELLÀ, 2010) e da Argumentação na interação (PLANTIN,
2008; GRÁCIO, 2016), apresentando, ainda, uma breve discussão
acerca da argumentação enquanto fenômeno linguístico, baseando-nos
na concepção da Retórica, da Nova Retórica e da Interação. Na segunda
e última parte, apresentamos breves discussões acerca da Educação de
Jovens e Adultos, caracterizando-a como uma modalidade de ensino em
articulação a práticas sociais de letramentos, voltadas para a atividade
argumentativa. Finalizando, seguem-se as nossas referências.

429
2. Dialogando com Pedagogia crítica, Letramento crítico e
Argumentação
Defendemos a ideia de que o ensino da argumentação, pautado em
bases emancipatórias, pode contribuir para uma emancipação crítica,
política, social e ativa de sujeitos inseridos em processos de subordina-
ção nas mais variadas situações comunicacionais. Isso porque esta con-
cepção de ensino oportuniza os educandos e as educandas a refletirem
e conscientizarem-se sobre a sua própria condição humana enquanto
seres sócio-históricos e políticos, a partir da construção de saberes acer-
ca da argumentação sob o lastro de uma concepção pedagógica que
concebe “a educação como prática da liberdade” (FREIRE, 1987, p.
05). Nessa vertente, podemos conceber a argumentação como um ato
crítico-político (GRÁCIO, 2016) que orienta os sujeitos – educandos e
educandas – a desenvolverem os mais variados papéis sociais enquanto
atuam argumentativamente em situações específicas de comunicação,
com vistas a promover uma argumentação prática (GONÇALVES-
SEGUNDO, 2021), a qual é direcionada a resolução de problemas da
vida cotidiana.
Para tanto, faz-se necessário apresentar algumas considerações acer-
ca desse fenômeno linguístico, social, discursivo, dinâmico e intera-
cional que compreendemos por argumentação. Inicialmente, devemos
destacar que desde os estudos aristotélicos que este conceito vem sofren-
do diferentes conceituações conforme a concepção teórica adotada em
decorrência da túnica posta sob a argumentação como objeto de estu-
do. A retórica dos antigos, por exemplo, deu visibilidade aos argumen-
tos lógicos como parte importante dos raciocínios dialéticos. Todavia,
tal reconhecimento, apesar de ser valorizado por pensadores latinos e
medievais, foi bastante questionado a partir do Renascimento e ficou
por um tempo esquecido, sendo revitalizados a partir dos estudos de
Perelman e Olbrechts-Tyteca, principalmente com a publicação da obra
Tratado da Argumentação, publicada em 1958.
Com a “Nova Retórica”, expressão que reúne as ideias desses auto-
res e cunhou um modo de retomá-las em diferentes pesquisas, ocorreu

430
o desalinhamento da ideia da argumentação, por meio da aplicação de
mecanismos lógicos ou estéreis, que poderiam ter como objetivo final
a manipulação unilateral de pessoas ou ideias. Com isso, os autores
colocaram em debate o assentimento do outro diante de uma discussão
de ideias e propuseram entender esse processo não limitado à aceitação,
mas como um processo argumentativo de cooperação, em que o outro
é levado a considerar o ponto de vista da doxa de modo racional e não
violento. Essa maneira de ver possibilitou retomar os estudos retóricos
na contemporaneidade e criar bases para a configuração de outras pers-
pectivas de estudos.
Numa perspectiva interacional, Plantin (2008) concebe a argu-
mentação a partir de uma situação específica de comunicação e de-
fende a ideia de que a argumentação somente ocorre quando os atores
argumentativos se propõem a desenvolver os atos argumentativos de:
propor, opor-se e duvidar. Essa situação é definida por Plantin (2008, p.
64) “pelo desenvolvimento e pelo confronto de pontos de vista em con-
tradição, em resposta a uma mesma pergunta”, ou seja, a uma mesma
questão argumentativa, que suscita, ao menos, duas respostas distintas,
dois pontos de vista antagônicos, inserindo a argumentação numa pers-
pectiva interacional, dialogada e dialógica.
Assim, Plantin (2008) desenvolve sua concepção teórica por meio
do modelo dialogal da argumentação, inspirando-se nos modelos dialo-
gais, cuja tradição foi desenvolvida inicialmente por Hamblin (1970).
Conforme o autor (PLANTIN, 2008, p. 65), tais modelos eram apre-
sentados tendo por perspectiva a lógica do diálogo como resposta à
“insatisfação decorrente dos modelos puramente monologais da argu-
mentação que surgiu pelo menos desde 1980”. Assim, o autor ressalta o
aspecto principal da atividade argumentativa que é a análise da articula-
ção de dois discursos divergentes, caracterizando a argumentação como
uma atividade interativa e dialógica, portanto, não monológica.
Na mesma esteira dos estudos de Plantin, Grácio (2016) compre-
ende a argumentação a partir de uma perspectiva multidimensional
que rompe com a ideia da argumentação como prática imperativa e

431
impositivista. Os estudos desenvolvidos por este pesquisador têm mo-
tivação de ordem pedagógica relacionada ao ensino da argumentação
acerca das técnicas e certos esquemas argumentativos que ficavam além
das expectativas dos alunos, visto que muitos apresentavam dificulda-
des não de construírem, de analisarem textos ou discursos argumenta-
dos, mas de serem postos à prova em situações concretas de confronto
oposicional.
Neste alinhamento, Grácio (2016) entende que a argumentação
é um acontecimento de interação social. Segundo esse estudioso, a ar-
gumentação “está na interação entendida como crítica do discurso de
um pelo discurso do outro” (GRÁCIO, 2016, p. 15). Assim, podemos
repensar as práticas argumentativas a partir de uma visão holística e
descritiva do processo argumentativo a partir de uma dada situação de
argumentação que, para Grácio, “implica a polarização num assunto
em questão resultante de um díptico argumentativo” (GRÁCIO, 2016,
p. 28), que desencadeado pelos discursos antagônicos em torno de uma
questão. De acordo com autor, a base da argumentação está na inte-
ração; e se encontra numa situação de argumentação caracterizada (1)
pela existência de uma oposição, (2) pela alternância de turnos de pala-
vras, polarizados num assunto em questão considerando as intervenções
dos participantes e (3) uma possível progressão para além do díptico
argumentativo inicial em que é visível a interdependência discursiva.
Preocupado com as (Im)possibilidades de ensinar a argumentação
na escola, Piris (2020, p. 32) salienta que a escola é uma instituição
que está submetida a coerções impostas pelos modos de produção da
economia, “constituída para domesticar – pela ideologia e/ou repres-
são – os sujeitos para servir somente como mão de obra para o siste-
ma”. Pensando assim, torna-se ainda mais urgente rompermos com a
dicotomia entre o poderio mantenedor da escola e sua função social de
formar cidadãos pensantes e críticos de sua realidade, tal como sugere
Freire (1987 [1970], p. 38) ao defender que é preciso a “reflexão e ação
dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela é impossível a
superação da contradição opressor-oprimido”.

432
Nessa mesma esteira, Piris (2021) enfatiza a necessidade de se pen-
sar o ensino de argumentação articulado ao desenvolvimento de práti-
cas sociais, para que assim seu ensino seja de fato efetivado, pois, nessa
perspectiva, esse ensino se distancia de abordagens puramente linguís-
tica ou retórica. Nesse bojo, as aulas voltadas para o ensino de argu-
mentação devem ser planejadas com vistas a permitir que educandas e
educandos realizem o ato de argumentar quer seja para construir novos
conhecimentos ou para tomar uma decisão, visando realizar uma inter-
venção social. Para tanto, julgamos ser necessário que tal planejamen-
to deva contemplar o desenvolvimento das capacidades argumentati-
vas necessárias para a realização desses atos, conforme sugere Azevedo
(2016). Assim, poderíamos propor um repensar sobre as abordagens
das atividades didáticas em torno do ensino de argumentação, de ma-
neira que o professor possa tornar a escola um local para realização de
situações argumentativas concretas, por meio das quais os estudantes
possam pensar e discutir sobre sua própria condição, ao vislumbrar a
argumentação como prática social ativa de linguagem.
Partiremos, então, da noção de prática social de linguagem como
vem sendo discutida por autores como Geraldi (2006), Cassany (2006)
e Kleiman (2008). Dentre esses, destacamos algumas reflexões desen-
volvidas por Geraldi (2006) por este autor defender a ideia de que o pla-
nejamento do ensino de português deve articular atividades de reflexão
epilinguística às práticas de leitura e produção textual oral ou escrita em
uma situação concreta de interação. Essa noção coaduna com os pressu-
postos das perspectivas interacional conforme Plantin (2008) e Grácio
(2016); os quais defendem que a argumentação ocorre na interação
entre sujeitos e entre os elementos constituintes de uma situação argu-
mentativa. Nessas abordagens, a argumentação é concebida a partir de
uma situação concreta de comunicação; e vista como um acontecimen-
to interacional e discursivo. Assim, está no seio das diversas situações
argumentativas com que o sujeito se vê inserido, mediadas pelos usos
que se faz da linguagem em suas práticas cotidianas. Para Schneuwly
e Dolz (2004 [1999]), esses usos estão relacionados às práticas sociais

433
gerais e específicas, haja vista que a linguagem é mediadora das dimen-
sões particulares do seu próprio funcionamento, como também de suas
práticas, distinguindo àquelas que são desenvolvidas na escola das que
são desenvolvidas fora dela.
Por esse encaminhar, é possível vislumbrar um trabalho com a ar-
gumentação que relacione o desenvolvimento de práticas escolares à vi-
vência dos educandos e das educandas aos objetivos específicos de cada
situação comunicativa. Em se tratando dos saberes de matriz escolar
e os da experiência vivida sobre a argumentação, Paulo Freire (1997)
enfatiza que “ensinar exige respeito aos saberes dos educandos” e “exige
criticidade”, sugerindo uma articulação entre os saberes da experiência
social e os de matriz curricular de forma crítica e transformadora, cuja
tese central é a de que o ensino deve partir dos saberes da vida do estu-
dante para serem ressignificados com o saber científico.

3. Algumas considerações para a Educação de Jovens e Adultos


A educação de jovens e adultos foi instituída pela Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394) e caracteriza-se como uma
modalidade de ensino que visa assegurar gratuitamente o direito social
à educação para jovens, adultos e idosos que não tiveram acesso aos
estudos na idade regular ou que não o concluíram em oportunidades
educacionais apropriadas. Desse modo, a EJA aparece como uma nova
ou outra possibilidade de acesso ao direito à educação escolar, que ocor-
re, nesse caso, dentro de uma estrutura pedagógica e organizacional
própria, que garante a conclusão do ensino fundamental e/ou ensino
médio, considerando as características dos estudantes, seus interesses,
suas condições de vida e de trabalho, mediante cursos próprios e exames
nacionais.
Por conseguinte, o atendimento na Educação de Jovens e Adultos
também assume como desafio oferecer uma educação para aqueles que
frequentaram a instituição, mas não obtiveram “aprendizagens suficien-
tes para participar plenamente da vida econômica, política e cultural do
país e seguir aprendendo ao longo da vida” (HADDAD; DI PIERRO,

434
2005, p. 118), visando às múltiplas necessidades formativas para aten-
der ao presente e ao futuro, indo além da compensação da educação bá-
sica não adquirida no tempo em que estiveram na escola (DI PIERRO
et al., 2001).
Gradativamente, a EJA passou de uma oportunidade de escolari-
zação daqueles que nunca haviam adentrado às salas de aula, em sua
maioria das camadas populares, transpondo o caráter elitista de alguns
poucos privilegiados com acesso aos estudos por meio da ampliação
da oferta das vagas no ensino público de nível fundamental, para um
trabalho que se amplia para uma nova modalidade que atende a uma
população excluída educacionalmente, indo além dos que jamais fo-
ram à escola, mas assumindo os desafios deixados pela má qualidade da
educação tendo que suplantar as aprendizagens insuficientes da leitura,
da escrita e do cálculo, tipificado como analfabetismo funcional, para
que esta parcela da população excluída possa interagir da vida política,
econômica e cultural ao longo de sua vida. Assim, para os estudantes
de camadas populares, a escola assume a legitimidade de garantir ins-
trumentos necessários à luta contra as desigualdades sociais, sendo os
privilégios distribuídos entre todos sem distinção, o que a torna mais
importante do que para as classes privilegiadas (SOARES, 2017).
Apesar de termos em vigência políticas públicas que vislumbram um
retorno a práticas extremamente tradicionais de ensino como o Decreto
nº 9.765, de 11 de abril de 2019, que institui a Política Nacional de
Alfabetização (PNA), que enfatiza aos seguintes componentes de ensino
para a alfabetização: a) consciência fonêmica; b) instrução fônica siste-
mática; c) fluência em leitura oral; d) desenvolvimento de vocabulário;
e) compreensão de textos; e f ) produção de escrita; isto é, há um visível
enfoque no sistema fônico e em práticas descontextualizadas de leitura
e escrita. Seguimos com uma abordagem pautada nas contribuições de
Paulo Freire (1999) que acabaram por abalaram os modelos de alfa-
betização contestando o modelo “bancário” de ensino trabalhado nas
campanhas de alfabetização no Terceiro Mundo e que deu abertura para
uma abordagem que parte da conscientização do estudante em relação
às problemáticas sociais em que está implicado.

435
Indo ao encontro das ideias de Freire, Kleiman (2014, p. 19) define
letramento “[...] como um conjunto de práticas sociais que usam a es-
crita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos
específicos para objetivos específicos”. Posteriormente, a mesma autora
declara entender o letramento “[...] como as práticas e eventos relacio-
nados com uso, função e impacto social da escrita”. Essa perspectiva
também é defendida por Soares (2002, p. 144) que reitera a posição
indicando que esse conceito tem relação com as “[...] práticas sociais de
leitura e escrita e os eventos em que essas práticas são postas em ação,
bem como as consequências delas sobre a sociedade”. Ainda de acordo
com Kleiman, as práticas escolares, que antes determinavam o parâme-
tro de prática social que definia o letramento e classificavam os sujeitos
conforme a dicotomia “alfabetizado” ou “não-alfabetizado”, passam a
ser apenas um tipo de prática social, mas não o único, haja vista que
desenvolve somente alguns tipos de habilidades, e não outras, próprias
de diferentes esferas de atividade humana (FERNANDES, 2021).
Desta forma, esse entendimento de letramento social que com-
preende as práticas de linguagem como ações que são inerentes a nossa
vida cotidiana segue compatíveis a perspectiva emancipatória pertinen-
te às práticas educativas para a educação de jovens e adultos. Pois en-
tendemos que essas práticas estão presentes não apenas em atividades
escolares, mas na interação com outras pessoas, estabelecendo com elas
relações sociais, econômicas, trabalhistas, comerciais, enfim, as relações
atravessadas pela linguagem e, portanto, por textos orais, escritos e mul-
tissemióticos. Nessa perspectiva, as ações de linguagem se voltam para
a prática social e os sujeitos assumem a condição de agentes sociais en-
volvidos em práticas cidadãs efetivas.
Ao refletir acerca das relações entre estudos de argumentação e pro-
jetos de letramento, Kleiman (2021, p. 10) explica “a argumentação
é necessariamente situada, indissociável da situação – local ou global
– [...]”, por isso a prática de argumentar também é um meio que pro-
porciona ao sujeito enfrentar os discursos que afetam a vida de todos,
como os riscos à saúde global, como ocorreu durante a pandemia da

436
COVID-19; que manifestam abusos e impõe opressão àqueles que são
menos favorecidos na sociedade; que produzem insegurança, como
acontece com a circulação de fake News, por exemplo; que fortalece
alguns sobretudo quando estão diante de pessoas; que impedem, dentre
outros, o empoderamento de grupos minorizados. Ao reunir algumas
das situações que podem ser vividas em sociedade, Kleiman (2021, p.
15) demarca a complexidade da argumentação e seu ensino e, ao mes-
mo tempo, indica temas que podem ser tematizados em diferentes si-
tuações de linguagem. Ou seja, para aquele professor “que reconhece a
importância de ensinar a argumentar, mas não sabe como e por onde
começar”, esses assuntos podem ser organizados em questões legítimas
que podem promover a argumentação na escola.
Essa forma diferente de ensinar e aprender pressupõe uma reorgani-
zação dos espaços e do tempo de aprendizagem (OLIVEIRA; TINOCO;
SANTOS, 2011), o que sugere uma importante reconstrução identitária
de professores, que não mais se consideram os únicos detentores do co-
nhecimento e passam a atuar como agentes de letramento (KLEIMAN,
2008), e de estudantes, não são mais tidos como “receptores” do saber,
passando a ter uma postura ativa, uma vez que colaboram efetivamente
com a sociedade. Isso significa que as atividades desenvolvidas nas salas
de aula ultrapassam os muros escolares, e é nesse contexto que se faz
necessário pensar no ensino de argumentação em uma dimensão discur-
siva que permita organizar práticas pedagógicas que superem o uso de
estratégias de um sujeito consciente interessado em vencer o oponente
ou persuadir o ouvinte (PIRIS, 2021). Para tanto, faz-se imprescindível
possibilitar aos estudantes a participação em situações argumentativas,
tanto na escola quanto fora dela, capazes de gerar argumentos que colo-
quem pontos de vista e posições ideológicas em discussão.

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439
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE INGLÊS


NA EJA SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA
SOCIOCULTURAL E DO LETRAMENTO
CRÍTICO

Emerson de Sousa Pereira Pessoa (PIBIC/UEMASUL/GEPLALA)89


Elizabete Rocha de Souza Lima (Orientadora/UEMASUL/GEPLALA)90

RESUMO: Este artigo aborda a problemática do ensino de inglês nas escolas


públicas brasileiras, mais especificamente, na Educação de Jovens e Adultos
– EJA, no contexto de uma escola maranhense. Os dados são provenientes
de um projeto de pesquisa e iniciação cientifica PIBIC/UEMASUL – 2021,
desenvolvido em uma escola da EJA Ensino Médio. O estudo se pautou nos
pressupostos da Teoria Sociocultural (VYGOSTKY, 1991) e do Letramento
Crítico (TAGATA, 2017; MOTTA, 2008; SOUZA, 2011). Portanto, leva em
conta a necessidade de se repensar o ensino de línguas para pessoas adultas na
perspectiva social e crítica (FREIRE, 1996, 2013; GIROUX, 1997; LIMA,
2020). Os resultados indicam que aprender inglês faz parte dos sonhos dos
alunos da EJA e que quando esses aprendizes estabelecem relações entre o
conteúdo dos textos e o seu cotidiano, o processo de ler e escrever torna-se
mais significativo para eles.
PALAVRAS-CHAVE: Adultez; Práticas sociais letradas; Pesquisa em sala de
aula.

ABSTRACT: This article addresses the problem of teaching English in


Brazilian public schools, more specifically in Youth and Adult Education
(EJA), in the context of a school in the state of Maranhão. The data comes
from field research of a research and scientific initiation project PIBIC/
UEMASUL – 2021, developed in an EJA High School. The study was based
on the assumptions of Sociocultural Theory (VYGOSTKY, 1991) and Critical
Literacy (TAGATA, 2017; MOTTA, 2008; SOUZA, 2011). Therefore, it
takes into account the need to rethink language teaching from a social and
89
Bosista do Programa Institucional de Iniciação Científica – PIBIC/UEMASUL.
Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Linguística Aplicada e Literaturas
Anglófonas – GEPLALA.
90
Professora da EJA na rede pública estadual. Docente do Curso de Letras Inglês e
Literaturas da UEMASUL. Líder do grupo de pesquisa GEPLALA.

440
critical perspective (FREIRE, 1996, 2013; GIROUX, 1997; LIMA, 2020).
The results indicate that learning English is part of EJA students’ dreams
and that when these learners establish relationships between the content of
texts and their daily lives, the process of reading and writing becomes more
meaningful for them.
KEYWORDS: Adulthhood; Literate social practices; Classroom research.

Introdução
O caminho da Educação de Jovens e Adultos – EJA no Brasil é
marcado pela trajetória de ações e programas que visam à conclusão da
Educação Básica. De modo que, não eram levados em conta a diversi-
dade que o alunado trazia consigo, seus desejos e objetivos para além
da obtenção do certificado de conclusão. Nela existe um encontro de
gerações muito significativo e que precisa ser levado em conta na hora
de elaborar ações para esse público.
Neste sentido, este estudo aborda a problemática do ensino de in-
glês nas escolas públicas brasileiras e mais especificamente, no contexto
das escolas públicas de Imperatriz, Maranhão. O interesse na temática
deste estudo partiu da necessidade de encontrar meios para ajudar alu-
nos e professores da Educação de Jovens e Adultos – EJA a dar significa-
dos às suas aulas de inglês. A preocupação com a modalidade em ques-
tão baseia-se nas reclamações sobre o ensino e a aprendizagem de inglês
ouvidas de discentes e docentes da rede pública estadual de ensino.
No contexto da EJA, o ensino precisa ser repensado (LIMA, 2017;
2020) para atender às necessidades de interação dos aprendizes em situ-
ações sociais do seu interesse. Os professores dessa modalidade precisam
ser vistos como profissionais capazes de desenvolver ações pedagógicas,
fazendo relação com o contexto extra escolar dos aprendizes e, assim,
oportunizar a ascensão acadêmica e social do alunado.
Desse modo, o estudo se pauta nos pressupostos da Teoria
Sociocultural (VYGOSTKY, 1991), da Linguística Aplicada e dos
Letramentos (MOTTA, 2008; SOUZA, 2011; STREET, 2014;

441
TAGATA, 2017), pois leva em conta a necessidade de repensar o ensi-
no de línguas, na perspectiva social e crítica. O aporte metodológico
se baseia em pesquisas recentes no contexto da EJA e nos pressupostos
da Pesquisa-ação Colaborativa (THIOLLENT, 1986; PAIVA, 2019;
LIMA, 2020). Quanto aos instrumentos e aos métodos utilizados no
processo da geração dos dados, o estudo apropria-se da microetnografia.
Os dados são provenientes de uma pesquisa de campo de um pro-
jeto de iniciação científica, apoiado pelo Programa Institucional de
Iniciação Científica da Universidade Estadual da Região Tocantina do
Maranhão – PIBIC/UEMASUL. O projeto teve como objetivo central
analisar de que modo fatores como a adultez e as experiências pessoais
de aprendizagem dos alunos da EJA, Ensino Médio, são levadas em
conta pelos seus respectivos professores ao selecionar os conteúdos de
inglês e, como isso, fomenta, ou não, a inclusão desses alunos em prá-
ticas sociais letradas, e foi desenvolvido em uma escola da rede pública
estadual maranhense, localizada na cidade de Imperatriz. A escola aten-
de exclusivamente a alunos do Ensino Médio da EJA. Os dados foram
gerados em duas fases do estudo de campo. A fase de observação e a fase
de desenvolvimento e aplicação de atividades de inglês com 23 alunos
de uma turma da escola locus do estudo.
Sendo assim, este trabalho objetiva compreender a influência da
adultez no ensino e aprendizagem dos alunos da EJA, no ato da escolha
dos conteúdos de inglês; descrever, com base nas atividades desenvolvi-
das pela professora de inglês a interação dos alunos quanto ao conteúdo
e analisar a importância da prática social dos alunos da EJA no contex-
to de ensino O estudo, norteou-se pelas seguintes questões: a) como
a adultez interfere no ensino-aprendizagem dos alunos da EJA? b) o
que o(a) professor(a) de inglês da EJA leva em consideração a respeito
do perfil dos alunos ao selecionar os conteúdos de inglês? Com isso,
espera-se que o trabalho contribua para a construção de conhecimen-
to e para o desenvolvimento de ações que atendam às necessidades de
aprendizagem do público da EJA.

442
Os pressupostos da teoria sociocultural e a EJA
O contexto da educação Básica no Brasil é marcado por diversas
reclamações, tanto de professores como de alunos quanto à qualidade
do processo de ensino-aprendizagem da Língua Inglesa. Curiosamente,
essas dificuldades se tornam bem mais presentes na modalidade EJA,
nas escolas da rede pública de Imperatriz – Maranhão. Portanto, é uma
modalidade de ensino que enfrenta problemas para além da realidade
local e uma delas é que esses aprendizes tenham oportunidades para
interagir em situações de aprendizagem efetivas a ponto de fazê-los sen-
tirem-se capazes de aprender.
É por este viés, que o estudo dialoga com os pressupostos da Teoria
Sociocultural, que prioriza a interação entre o ser humano e o ambiente
para a construção do conhecimento. De acordo com Vygotsky (1991),
a vivência em sociedade é essencial para a transformação do homem de
ser biológico em ser humano, ou seja, é por meio do contato que temos
com os demais do mesmo ambiente que desenvolvemos mentalmente,
para isso, a linguagem é indispensável.
Para Vygotsky (1978; 1991), a linguagem, que é o sistema sim-
bólico que marca a evolução da espécie, que fornece os conceitos, as
formas de organização do real, acaba sendo a mediação entre o sujeito
e o objeto do conhecimento. É por meio dela que as funções mentais
superiores são socialmente formadas e culturalmente transmitidas. Em
outras palavras, é na troca com outros sujeitos e consigo mesmo que se
vão internalizando os conhecimentos, os papéis e funções sociais, o que
acaba permitindo a formação de saberes e da própria consciência.
Persiste em nossa sociedade a crença de que aprender inglês nas es-
colas públicas é algo impossível. Lima (2020), comenta que em relação
ao ensino - aprendizagem de línguas estrangeira ou materna, a realidade
brasileira, é marcada por críticas ao fracasso de aprendizes e professores,
e que as críticas a esses professores, sobretudo, os de línguas acabam
sendo reiteradas pelos seus próprios alunos. A autora levanta vários
questionamentos sobre onde estaria a raiz desse problema, e infere que:

443
talvez, suas raízes estejam afincadas aos nossos problemas de
décadas passadas, quando nós, que atualmente exercemos a
profissão de professores/as de línguas, ainda éramos aprendizes.
Naquela ocasião, ainda não tínhamos nos dado conta das re-
presentações simbólicas imbricadas nos atos de saber ler e saber
escrever. (LIMA, 2020, p. 76).

Diante disso, ela acrescenta ainda que muitos desses profissionais


têm dificuldades para entender que os objetivos de ensinar uma língua
devem estar conectados aos objetivos de quem se propõe a aprendê-la. E
é necessário levar em conta também o contexto social para assim, tornar
a aprendizagem mais significativa. Isso implica repensar o ensino de
Língua Estrangeira na EJA, sob uma perspectiva social e crítica.
Tendo em mente, a necessidade de uma visão crítica aos aspectos
do Letramento Crítico e da Pedagogia Crítica que Motta (2008), acres-
centa que o letramento está ligado à ideia de uma concepção dominan-
te naquilo que se refere às habilidades de ler e escrever, mas que cabe
ao profissional ir além dessa abordagem “os educadores que adotam a
abordagem do letramento crítico estão pensando não apenas em desen-
volver as habilidades básica de ler e escrever, mas de aproveitar o texto,
o oral, escrito ou visual, como uma oportunidade para uma reflexão
crítica”. (MOTTA, 2008, p. 14-15).
Desse modo, ensinar uma segunda língua torna-se uma ação políti-
ca, pois, o letramento crítico busca incentivar o aluno a ser protagonista
fazendo o questionar as relações de poder, notar os discursos que cada
indivíduo carrega e as implicações que isso gera em sua vida e comu-
nidade. Para Motta (2008), a consciência crítica do aluno pode ser de-
senvolvida, por meio, da abordagem pedagógica do letramento crítico,
pois este leva o aluno a pensar por si mesmo, explorando e criando
significados a partir de contextos.
Sobre este mesmo assunto, Souza (2011), argumenta que:

Então letramento crítico é ir além do senso comum, fazer o alu-


no refletir sobre aquilo que ele pensa que é natural e verdadeiro.

444
Levar o aluno a refletir sobre a história, sobre o contexto de seus
saberes, seu senso comum. Levar o aluno a perceber que para al-
guém que vive em outro contexto a verdade pode ser diferente.
(SOUZA, 2011, p. 295)

O letramento crítico, portanto, permite ao sujeito a expansão de


ideias já estabelecidas. E é por meio dessa criticidade que se cria a li-
berdade de ir além daquilo que se lê, permitindo ao sujeito criar outros
significados, “o letramento crítico objetiva conscientizar o aluno de seu
papel ativo na construção e reconstrução de sentidos, de modo que eles
reflitam seus propósitos e perspectivas” (TAGATA, 2017, p.388). Neste
sentido, os propósitos de ensinar e de aprender estão diretamente atre-
lados às possibilidades de transformação dos aprendizes.
Contudo, para que aconteça a transformação, a educação precisa
ser transformadora ao ponto de proporcionar oportunidades de ascen-
der criticamente. E para que isso ocorra é preciso de um trabalho em
conjunto, seja do professor com o aluno, do professor com os pais e
da escola com a sociedade. O professor para Freire (2013), é o agente
transformador da realidade e ele precisa trazer o educando para o mun-
do real, fazer com que eles entendam toda problemática social.
Ainda de acordo com Freire (2013), ensinar a pensar e problemati-
zar sobre a realidade é a forma certa de produzir ou reproduzir conhe-
cimento. Em sua obra “Pedagogia do Oprimido”, Freire comenta que
ensinar a não pensar é algo puramente planejado pelos que estão no
poder, assim, tendo o controle dos oprimidos. Isso acaba sendo nítido
em várias esferas, na própria escola, o autor destaca a educação bancária
que passa essa visão de opressor e oprimido:

Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos


que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se
funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da
opressão — a absolutização da ignorância, que constitui o que
chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se
encontra sempre no outro. (FREIRE, 2013, p.65)

445
Nessa visão limitada de educação o aluno é visto como uma folha
em branco, pronto para receber as verdades que o professor tem para
ensinar. Este tipo de atitude equivale a transformar a consciência em
um pensar meramente mecânico, ou seja, é fazer o aluno se sentir como
se a realidade social fosse algo exterior a ele e de nada lhe induzisse. Do
ponto de vista freiriano, o professor caminha junto com o aluno, tendo
seu papel de problematizador da realidade do educando.
De acordo com Giroux (1997), os professores não podem ser vistos
apenas como profissionais preparados para efetivar e atingir quaisquer
metas a eles apresentadas. Em vez disso, eles deveriam ser vistos como
profissionais livres, com uma dedicação especial aos valores que os alu-
nos carregam consigo e suas capacidades críticas. Na obra “Pedagogia
da Autonomia” Freire ressalta a importância de se respeitar e valorizar
os saberes dos aprendizes. Conforme ele explica:

Pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola,


o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos,
sobretudo os das classes populares, chegam a ela - saberes social-
mente construídos na prática comunitária (...) discutir com os
alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o
ensino dos conteúdos. (FREIRE, 2002, p. 16).

Diante disso, torna-se fundamental ensinar pessoas jovens, adultas


e idosas sem ignorar que seus saberes são construídos socialmente, nas
suas práticas cotidianas. Por isso, cabe aos professores da modalidade,
criar um ambiente favorável para que os estudantes consigam ver a re-
lação desses saberes que trazem com os conteúdos das disciplinas em
respeito ao seu contexto socioeconômico e cultural.

Fatores sociohistóricos que marcam o lugar da EJA


O percurso da EJA no Brasil é marcado pela trajetória de ações
e programas destinados à conclusão da Educação Básica. De acordo
com Julião et alli (2017), a visão sobre a EJA no contexto educacional
brasileiro, tem-se mostrado compensatório, utilitarista, emergencial e

446
descontínua, materializada sob a forma de campanhas, movimentos,
programas, projetos, ou ainda, por uma formação aligeirada e de baixo
custo.
Após a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
– LDB Nº 9.394, 20 de dezembro de 1996 e das Diretrizes Curriculares
Nacionais da Educação de Jovens e Adultos, Parecer nº 11/2000, a EJA
passou a ser caracterizada como modalidade da Educação Básica des-
tinada ao público de jovens e adultos que não frequentaram a escola
ou não concluíram a Educação Básica em tempo hábil, conforme se lê
abaixo:

a EJA passa a ser concebida como uma modalidade da Educação


Básica, o que lhe confere uma dimensão diferente daquela de
outrora, na medida em que possibilita a superação da concep-
ção de oferta aligeirada, compensatória e supletiva de escolariza-
ção (JULIÃO; BEIRAL; FERRARI, 2017, p. 41).

A aprovação da nova LDB é garantido à EJA um lugar de destaque


que presume e reafirma o direito de jovens e adultos à escolarização,
tendo o Estado a responsabilidade pela oferta e o dever de que a nega-
ção dessa modalidade não se propague, desse modo, transformando a
concepção de antes, a LDB “é um ponto-chave na chamada reconfigu-
ração do campo” (MACHADO, 2009, p. 20).
Sendo assim, é imprescindível também que não se ignore que há
uma diversidade grande na EJA. Nela existe um encontro de gerações
muito significativo e que precisa ser levado em conta na hora de elabo-
rar ações para esse público. Diante disso, “é indispensável que os papéis
da escola e dos responsáveis pelas políticas públicas para a Educação
Básica sejam repensados” (LIMA, 2020, p. 35).
No que diz respeito às ações feitas para essa modalidade, o que per-
cebemos é um distanciamento no que é proposto pela escola e que é es-
perado pelos educandos, “o modo como essas políticas públicas são mate-
rializadas mostram que ainda há algumas incoerências e equívocos entre o
que a escola propõe e o que os alunos esperam dela”. (LIMA, 2020, p.36).

447
Já o contexto da EJA no estado do Maranhão, a modalidade “tem se
construído como política de superação das desigualdades educacionais”
(PEREIRA, 2018, p.53), visto que, o Maranhão apresenta altos índices de
analfabetismo, com estimativa de aproximadamente 12% da população
(IBGE, 2017). Por este viés, entende-se que a EJA, no contexto
maranhense, tem ajudado a estimular no público-alvo dessa modalidade
de ensino, sentimentos e perspectivas positivas para o futuro, abrindo
espaço para uma satisfação pessoal como a conclusão da Educação Básica,
ou ainda, a possibilidade de ingresso na Educação Superior.

Procedimentos metodológicos
Este estudo trata de questões voltadas ao ensino e à aprendizagem
de LE na modalidade EJA, portanto insere-se nos estudos da Linguística
Aplicada. Trata-se de um estudo desenvolvido por meio de pesquisa de
campo, ou seja, por meio do contato entre os sujeitos pesquisadores e
os participantes da pesquisa.
Quanto ao local, a pesquisa foi realizada em uma escola da rede es-
tadual de ensino, localizada em um bairro ligado ao centro da cidade de
Imperatriz. Quanto à estrutura física, a escola conta com 7 (sete) salas
de aula e oferece vagas apenas para modalidade EJA, Ensino Médio, no
modo presencial e atende seus alunos nos turnos matutino, vespertino
e noturno.
Quanto aos procedimentos técnicos, o estudo configura-se em pes-
quisa-ação, porque, durante a execução da pesquisa de campo houve a
necessidade de relação participativa entre os pesquisadores e os demais
envolvidos no estudo. Neste sentido, Thiollent (1986) destaca-se que:

a pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empíri-


ca que é concebida e realizada em estreita associação com uma
ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os
pesquisadores e os participantes representativos da situação ou
do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou partici-
pativo. (THIOLLENT, 1986, p. 14)

448
A escolha pela pesquisa-ação se deu pelo fato de que este tipo de
pesquisa possibilita mais envolvimento entre os pesquisadores e a co-
munidade estudada. Além disso, a visão da pesquisa-ação é compreen-
der e melhorar o ambiente educacional, e ela é “por natureza, partici-
pativa, pois os pesquisados, em conjunto com os pesquisadores, são os
produtores diretos do conhecimento” (PAIVA, 2019, p.73).
Quanto à sua natureza trata-se de uma pesquisa aplicada, pois “tem
por objetivos gerar novos conhecimentos, mas tem por meta resolver
problemas, inovar ou desenvolver processos e tecnologias” (PAIVA,
2019, p.11). Referente à sua abordagem, o estudo é uma pesquisa qua-
litativa. Para Godoy (1995), a pesquisa qualitativa ocupa um reconhe-
cido lugar entre as várias possibilidades de se estudar os fenômenos que
envolvem os seres humanos e suas intrincadas relações sociais.
Sendo assim, no caso deste estudo, os problemas investigados estão
diretamente relacionados ao modo como a adultez dos alunos da EJA
está presente no processo de ensino e de aprendizagem de uma LE e nas
ações para a modalidade. Quanto aos instrumentos para levantamento
de dados, optou-se pela entrevista. No contexto da pesquisa qualitativa,
a entrevista é defendida como:

Fundamentalmente uma situação de interação humana, em que


estão em jogo as percepções do outro em si, expectativas, sen-
timentos, preconceitos e interpretações para os protagonistas:
entrevistador e entrevistado. Quem entrevista tem informações
e procura outras, assim como aquele que é entrevistado também
processa um conjunto de conhecimentos e pré-conceitos sobre
o entrevistador, organizando suas respostas para aquela situação.
(SZYMANSKI; ALMEIDA; PRANDINI, 2021, p.3)

Desse modo, outro instrumento utilizado na geração de dados foi a


observação das aulas durante a pesquisa de campo, quando foram feitas
anotações acerca do que estava acontecendo e do envolvimento dos alu-
nos nas aulas. Quanto ao tratamento dos dados gerados neste estudo,
eles seguiram as orientações éticas das pesquisas científicas com seres
humanos, tendo os participantes os nomes não revelados.

449
Quanto à professora da turma participante, é egressa do Curso de
Letras Português/Inglês e Respectivas Literaturas do CESI/UEMA, atu-
al UEMASUL. Contudo, logo nas primeiras semanas do retorno das
aulas, do modo remoto ao presencial, devido a sequelas da Covid-19,
a professora efetiva alegou sentir dificuldades para respirar quando mi-
nistrava suas aulas. Por conta disso, cedeu suas turmas para a professora
pesquisadora que assumiu a disciplina de inglês do turno matutino, nos
meses de agosto e setembro de 2021.
Assim, os resultados deste estudo baseiam-se na análise dos da-
dos obtidos pela observação das aulas, inicialmente ministradas pela
professora efetiva e, posteriormente, por uma professora pesquisadora,
durante a pesquisa de campo do projeto já mencionado anteriormen-
te. Também fazem parte dessa mesma análise, o conteúdo de duas en-
trevistas, uma com alunos e outra com a professora efetiva da turma.
Portanto, trata-se de análise qualitativa cuja amostragem provém do
universo de um grupo de 23 alunos de uma turma da 1ª Etapa da EJA,
Ensino Médio, do turno matutino de uma escola situada no interior do
Maranhão. O critério para escolha da turma foi a compatibilidade do
horário dos bolsistas acadêmicos participantes do estudo.

Análise dos dados


Os dados foram examinados no sentido de responder às duas ques-
tões norteadoras do estudo. Para responder à primeira pergunta do es-
tudo (como a adultez interfere no ensino e aprendizagem dos alunos
da EJA?), primeiramente, analisou-se o conteúdo da entrevista com 10
alunos dos 23 participantes da pesquisa de campo.
Assim, o conteúdo da entrevista com os alunos serviu para descre-
ver o perfil deles, no intuito de compreender como eles veem a disci-
plina de inglês e verificar se a adultez tem alguma relação com o modo
como o idioma é ensinado a eles e, se isso tem alguma implicação sobre
o que esses estudantes aprendem ou deixam de aprender dos conteúdos
de inglês.

450
Após indagar aos alunos acerca do tempo de pausa entre a conclu-
são do Ensino Fundamental e seu ingresso na modalidade EJA, 70%
dos entrevistados informaram que saíram diretamente da escola onde
cursaram o 9º ano, na modalidade regular, para a modalidade EJA e
30% deles, informaram que, após a conclusão do Ensino Fundamental,
ficaram menos de 3 anos sem estudar. Assim, partindo das respostas da-
das na entrevista com os alunos, constatou-se que no locus deste estudo,
o público da EJA, em sua maioria é formado por jovens que acabaram
de sair do Ensino Fundamental.
Ao serem indagados sobre as dificuldades para continuarem estu-
dando, 50% dos alunos apontaram para o problema com o transporte
para chegar à escola e 30% atribuíram ao fato de terem que ajudar em
casa, seja cuidando de um familiar ou trabalhando para complementar
a renda, quanto aos demais 20%, afirmaram não terem dificuldades
para irem à escola.
Quando questionados acerca da sua motivação para continuar estu-
dando, mesmo com obstáculos que dificultam a conclusão da Educação
Básica, 60% dos entrevistados revelaram que sua principal motivação
para continuar estudando e concluir o seu Ensino Médio é o desejo de
ingressar em curso superior. Diante disso, o perfil dos participantes re-
vela que a EJA é um espaço propício ao desenvolvimento de ações que
motivem os alunos a darem continuidade aos seus estudos.
No contexto em que os participantes estão inseridos ficou evidente
que as responsabilidades da adultez se tornam um grande obstáculo
para a continuação dos estudos. Essas responsabilidades seriam: traba-
lhar para complementar a renda familiar e conciliar o trabalho com os
estudos. Além disso, alguns desses alunos são mães e pais, e na maioria
das vezes precisam levar seus filhos para escola, pois não têm com quem
deixá-los. Essa realidade afeta diretamente o desempenho desses alunos.
Diante dos dados sobre o perfil dos participantes, salienta-se que
é necessário que a escola desenvolva ações que levem em conta os pro-
blemas relacionados à adultez do seu alunado. Pois, a adultez é a faixa
etária em que as pessoas são pressionadas, pela sociedade e por seus

451
familiares, a assumirem formal e legalmente diferentes responsabilida-
des, inclusive de trabalhar para garantir o sustento da sua família. E, é
neste sentido que este estudo entende que a adultez interfere no ensino
- aprendizagem dos alunos da EJA e não pode ser ignorada pela escola
e pelos professores.
A segunda questão deste estudo tratou de observar como o (a) pro-
fessor (a) de Inglês da EJA leva em conta o perfil dos alunos ao sele-
cionarem os conteúdos de inglês trabalhados em sala de aula, ou seja,
se a perspectiva sociocultural e crítica fundamentam a elaboração de
atividades de leitura e escrita com vista a esse perfil.
Nas aulas de inglês da turma participante, foram observadas algu-
mas atividades ali desenvolvidas, quais sejam: um texto ilustrado com
imagens de alguns pontos de Imperatriz, alagados, durante a cheia de
2019 (Atividade 1); um bingo com vocabulário referente ao conteúdo
Parts of the house and furniture (Atividade 2) e a reprodução de um tex-
to, em forma de diálogos, intitulado de We are at our home sweet home
(Atividade 3).
Ao analisar o que ocorreu nas aulas de inglês durante o desenvol-
vimento dessas atividades, foi possível avaliar a atuação delas para pro-
mover ou não o ensino da Língua Inglesa, e entender, como a adultez
dos alunos se manifesta no decorrer do processo em sua aprendizagem.
As aulas observadas e as atividades nelas desenvolvidas, estão des-
critas no quadro abaixo.

Quadro 1: Distribuição das Aulas de Inglês e Respectivas Atividades

Data Atividade Objetivo Objetivos Recursos


desenvolvida linguístico sociais
08/09/ Atividade 1: Praticar o Conhecer a di- Uso do quadro
2021 Bingo: Parts of listening ferença entre as branco para a expo-
the house and e writing palavras home e sição das palavras
furniture. de palavras house; elaborar usadas e modelo da
isoladas. seu próprio cartela do Bingo.
conceito de Caderno dos alunos
home. para elaboração da
cartela do Bingo

452
22/09/ Atividade 2: Praticar o Refletir sobre os Texto impresso em
2021 Leitura do texto reading problemas am- cores (disponibili-
com imagens de bientais e como zado pela professora
Imperatriz, du- evitá-los; posi- pesquisadora)
rante um período cionar-se criti-
de alagamento de camente diante
alguns locais da de problemas
cidade sociais.
29/09/ Atividade 3: Praticar o Contribuir para Texto impresso e
2021 Leitura e repro- reading, a construção da colorido (disponibi-
dução (escrita e writing e autoconfiança lizado pela profes-
oral) do texto We speaking em dos aprendizes; sora pesquisadora)
are at our home um diálogo elevar a autoes-
sweet home curto. tima das pessoas
da EJA
Fonte: Notas de campo, setembro de 2021.91

O objetivo da atividade 1 era trabalhar o Listening e Writing, partin-


do de um bingo com o assunto Parts of the house and furniture. Durante
a realização da atividade notou-se que alguns alunos confundiam algu-
mas palavras, percebendo isso a professora dava exemplo de situações
em que a palavra era usada. Por mais que as explicações da professora
fossem em português, isso não atrapalhou aos alunos compreender o
que significava as palavras em inglês.
A interação dos alunos foi bem positiva, chamou atenção a empol-
gação por parte deles no que era feito. Alguns alunos acabavam ajudan-
do aos demais quando reconheciam a palavra sorteada, assim, contri-
buindo para o desenvolvimento e compreensão daqueles que tinham
dificuldades.
Esse modelo de atividade lúdica contribuiu para a fixação do as-
sunto passado, além de promover a prática das habilidades linguísticas,
citadas acima. Isso nos mostra que trabalhar atividades com uma abor-
dagem diferente, para desenvolver o listening como o uso do bingo, por
exemplo, possibilitou aos alunos o desenvolvimento e aprofundamento
naquilo que é estudado. Nesse sentido, é importante que os professores

91
Relação das atividades desenvolvidas na pesquisa de campo.

453
desenvolvam atividades lúdicas que promovam a interação e desenvol-
vimento dos alunos.
A atividade 2 trazia um texto em português com palavras-chave em
inglês. O texto era ilustrado por imagens de lugares alagados da cidade
de Imperatriz, Maranhão. Ao lado de cada imagem perguntas como
Where is this place? What happened to this place? What happened to this
city? What happened to the houses? No ato da realização dessa atividade
destaca-se a intensa participação da turma. Muitos alunos identificaram
os lugares da imagem.
Nas interações entre alunos e a professora, ficou evidente a partici-
pação ativa dos alunos, tanto respondendo às perguntas como na leitura
do texto mesmo que de forma tímida. Quanto ao uso de inglês no texto
em questão, alguns alunos tiveram dificuldade em entender algumas
palavras, porém, com a exemplificação da professora esse problema foi
amenizado. O que se notou no desenvolvimento dessa atividade, além
da participação ativa dos alunos, foi o interesse que eles demonstraram
em responder às perguntas da professora. Pelo visto, o simples fato de
ter ilustrado o texto com imagens da cidade onde eles vivem, fez com
que eles se sentissem sujeitos principais da história (TAGATA; 2017).
A Atividade 3, objetivava desenvolver a autoconfiança dos alunos e
fazê-los melhorar a autoestima, ao sentirem-se capazes de participar de
uma atividade de leitura e reprodução (escrita e oral) do texto We are at
our home sweet home. Na aplicação dessa atividade a professora iniciou a
discussão com o título. O que os alunos entendiam a partir dele, ficou
nítido que eles tinham vergonha de se expor, percebendo isso, a profes-
sora passou na carteira de cada um ouvindo-os.
Após instruí-los a marcar determinadas palavras do texto, expli-
cou-lhes que iriam trocar as palavras marcadas, por outras da mesma
categoria. Assim, os pronomes pessoais e os nomes referente aos obje-
tos e cômodos da casa, deveriam ser substituídos por outros nomes da
mesma categoria de vocabulário ou classe gramatical como se observa
na figura abaixo:

454
Figura 1: Cópia do texto para leitura e reprodução dos alunos

Fonte: Pesquisa de Campo92

Após as instruções da professora os alunos se organizaram em du-


plas para realizar a atividade. Pelo que se pôde notar os alunos foram
capazes de desenvolver o que foi estabelecido, muitos no início tiveram
dificuldades e recorreram às atividades que já tinham feito sobre voca-
bulários para trocar os nomes referentes aos espaços e objetos da casa
como solicitado. O objetivo das anotações sobre essa atividade consistia
na observação da capacidade dos alunos de empregar os vocabulários
que tinham aprendido nas atividades anteriores.
Em suma, o que se percebeu em todas as atividades propostas é que
os alunos conseguiram desenvolver o que foi solicitado. Na Atividade 1,
compreenderam as palavras em inglês que eram sorteadas; na Atividade
2, mostraram-se receptivos ao conteúdo do texto, interagindo na aula
a partir das imagens que fazem parte do seu cotidiano. E, na Atividade
3, mostraram-se capazes de produzir um texto, ainda que em partes,
fazendo uso do vocabulário trabalhado. Assim, foi possível vê-los pro-
duzindo textos escritos e oralmente, mesmo que de forma tímida. Isso
aponta que se mais atividades desenvolvidas na perspectiva social e crí-
tica, a realidade do processo ensino-aprendizagem de inglês na EJA, aos
poucos poderá sofrer alterações importantes.

92
Imagem disponível na Internet, em domínio público, e texto elaborado pela
professora pesquisadora.

455
Considerações finais
O estudo abordou a problemática do ensino de Língua Inglesa na
EJA, pautando-se nos pressupostos teóricos da Teoria Sociocultural e
do Letramento Crítico, no sentido de encontrar meios para ajudar alu-
nos e professores da modalidade EJA a dar significado às aulas de inglês.
A preocupação com a modalidade em questão baseia-se nas reclamações
ouvidas de discentes e docentes da rede pública relacionados ao ensino
e à aprendizagem de inglês.
Os dados analisados são resultados de uma pesquisa de iniciação
científica intitulada “Análise da relevância da adultez e das experiências
pessoais dos Alunos da EJA nas decisões da/o professor(a) de Inglês para
escolha dos conteúdos da disciplina”. O referido projeto foi realizado
em uma escola da Rede Pública estadual, localizada em Imperatriz,
Maranhão.
Com base nos dados, constatou-se que, de fato, as responsabilida-
des da adultez (trabalhar e estudar ao mesmo tempo, ajudar na renda
familiar, cuidar dos filhos) interferem de modo significativo na apren-
dizagem dos alunos. Muitos desses alunos precisam trabalhar e para
não desistir dos estudos, enfrentam jornadas pesadas: saem direto da
escola para o trabalho, ou vice-versa, e diante disso, seu rendimento está
comprometido. Devido ao cansaço, dormem durante as aulas, ou não
realizam as tarefas da escola por não terem tempo, ou por terem que
cuidar dos filhos.
Durante a realização das atividades observou-se que, de fato, apren-
der inglês faz parte dos sonhos dos alunos da EJA, isto ficou evidente na
participação deles, de modo que, os conteúdos trabalhos sob a perspec-
tiva Sociocultural e do Letramento Crítico, aproximando os assuntos ao
contexto social dos alunos, abriu espaços para uma maior participação e
deu-lhes protagonismo na sua própria aprendizagem.
Dessa forma, diante das responsabilidades da adultez, os professo-
res e a escola precisam criar ações que minimizem as interferências da
adultez nesse processo de aprendizagem dos alunos da EJA. Além disso,

456
precisam direcionar os conteúdos de ensino da Língua Inglesa, de modo
que contemplem a realidade dos alunos, para assim, promover o ensi-
no - aprendizagem significativa para eles tanto nas atividades escolares
quanto em outras fora da escola, no seu cotidiano.

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457
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458
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

HATERS RACISTAS: UM ESTUDO SOB O


OLHAR DA ANÁLISE DE DISCURSO E DO
LETRAMENTO CRÍTICO COM ALUNOS DO
ENSINO MÉDIO

RACIST HATERS: A STUDY UNDER THE VIEW


OF DISCOURSE ANALYSIS AND CRITICAL
LITERACY WITH HIGH SCHOOL STUDENTS

Fabrício de Oliveira Nobre (UFPI)93


Beatriz Gama Rodrigues (UFPI)94

RESUMO: Este trabalho constitui-se como um recorte da dissertação de


mestrado “O falar sem limites: Análise de Discursos racistas e Letramento Crítico
como instrumentos de prática da linguagem no ensino médio”, apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGEL), da Universidade Federal
do Piauí (UFPI), em julho de 2022. De forma geral, propusemos analisar os
discursos de ódio em casos de racismo nas redes sociais de pessoas famosas do
Brasil e pesquisar como o Letramento Crítico pode contribuir na diminuição
do preconceito racial, através da interação com alunos do ensino médio de um
campus do Instituto Federal do Piauí. Como embasamento teórico, utilizamos
os pressupostos da Análise de Discurso Semiolinguística e Materialista,
a partir de contribuições de Charaudeau (2017, 2018), Modesto (2021)
e Orlandi (2001, 2017), e do Letramento Crítico, com as contribuições
de Freire (2021). A metodologia empregada tipifica esta pesquisa como
documental e de campo, possuindo caráter qualitativo e interpretativo. Neste
recorte, o corpus é constituído de uma análise de discursos de ódio racistas,
de uma pergunta do questionário diagnóstico e de algumas considerações dos
93
Mestre em Letras (Área de Concentração em Linguística) pelo Programa de
Pós-Graduação em Letras (PPGEL) da Universidade Federal do Piauí (UFPI)
e membro do Grupo de Estudos em Linguística Aplicada e Multiletramentos
(GLAMULTI). Endereço eletrônico: fabricionobre02@gmail.com
94
Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Uni-
versidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora do Curso de Letras Inglês
e do PPGEL da UFPI e coordenadora do GLAMULTI. Endereço eletrônico:
beatriz@ufpi.edu.br

459
alunos nas intervenções realizadas. Os resultados obtidos demonstram que os
discursos de ódio racistas são ancorados aos saberes de crença; que essa prática
discriminatória pode estar vinculada às questões socioeconômicas ou não,
havendo uma evidência de racismo estrutural; e que a aplicação do letramento
crítico contribui para a conscientização social e crítica dos alunos.
PALAVRAS-CHAVE: Discriminação racial; Análise de Discurso; Letramento
Crítico.

ABSTRACT: This paper is an excerpt from the master’s thesis “The say
without limits: analysis of racist discourses and critical literacy as instruments
of language practice in high school”, presented to the Graduate Program in
Letters (PPGEL), of the Federal University of Piauí (UFPI), in July 2022.
In general, we proposed to analyze the hate discours in cases of racism in
the social networks of famous people and to research how Critical Literacy
can contribute to the reduction of racial prejudice, through interaction with
students high school students from a campus of the Instituto Federal do Piauí.
As a theoretical basis, we use we use the assumptions of Semiolinguistics and
Materialist Discourse Analysis, from contribuitions of Charaudeau (2017,
2018), Modesto (2021) and Orlandi (2001, 2017), and Applied Linguistics,
with contributions from Freire (2021). The methodology used typifies this
research as field and documentary, of qualitative and interpretative character.
In this clipping, the corpus is composed of an analysis of racist hate speeches,
a question from the diagnostic questionnaire and some considerations by
students in the interventions carried out. The results show that racial hate
speech is anchored in the knowledge of belief; that this discriminatory practice
may or may not be linked to socioeconomic issues, with signs of structural
racism; and that the application of Critical Literacy contributes to students’
social and critical awareness.
KEYWORDS: Racial discrimination. Discourse analysis. Critical literacy.

Introdução
Os problemas sociais do mundo sempre foram questões complexas
que afetam as relações interpessoais, levando em conta eles que são ma-
terializadas na linguagem e produzem sentidos. O preconceito, a estrati-
ficação e a desigualdade social, por exemplo, são práticas materializadas

460
nas atitudes e manifestadas através da linguagem que causam um efeito
negativo no diálogo, pois um indivíduo, ao expressar seus posiciona-
mentos de forma antissocial ou agressiva, coloca outras pessoas em um
lugar de inferioridade.
Considerando que a internet é um espaço de comunicação global
que abrange antagonismos relativos às diferentes facetas do social, em se
tratando daquelas que dizem respeito aos grupos oprimidos, podemos
nos perguntar como os discursos difundidos nas redes sociais por haters
são formulados em casos de discriminação racial, de que forma isso
reflete nas pessoas e como elas se posicionam?
Para buscar estudar esse problema, de forma geral, propusemos
analisar os discursos de discriminação racial publicados nas redes sociais
de pessoas da mídia brasileira e pesquisar como o Letramento Crítico
pode contribuir na diminuição do preconceito racial.
No que se refere aos aspectos teóricos, esta pesquisa pauta-se nos
pressupostos da Análise de Discurso Semiolinguística e Materialista, a
partir de contribuições de Charaudeau (2017, 2018), Modesto (2021)
e Orlandi (2001, 2017), considerando que propus analisar discursos
de cunho racista direcionados a pessoas famosas em suas redes sociais;
e também da Linguística Aplicada, com as contribuições de Freire
(2021), visto que escolhi trabalhar a referida temática sob o viés do
Letramento Crítico, analisando questionários escritos e as participações
orais dos alunos nos momentos de intervenção. Tendo em vista as duas
etapas da pesquisa, a metodologia é classificada como documental e de
campo, possuindo caráter qualitativo e interpretativo.

1. Letramento crítico sob a ótica de Paulo Freire


Termo consideravelmente novo na área dos estudos linguísticos,
o Letramento Crítico (LC) é proveniente do conceito de Letramento.
Segundo Charaudeau (2018), de forma básica, o Letramento refere-se à
designação dos usos sociais da escrita, possibilitando o questionamento
aos educandos. Desse modo, o seu objetivo pode elencar alguns méto-
dos de criticidade e cidadania aos estudantes, como a prática da leitura

461
interpretativa, a reflexão de temas de poder e sociedade, a busca pela
luta de direitos igualitários em aspectos políticos e socioeconômicos,
entre outros. Diante disso, é notável que o professor que pratica o LC
em suas aulas incentiva o aluno a ter mais determinação nos seus méto-
dos, na sua forma de ler, compreender, interpretar e, principalmente, se
posicionar acerca de temas importantes para a sociedade, ocasionando
a aquisição de uma autonomia no processo de ensino-aprendizagem.
Em razão de a leitura ser requisito para o Letramento, Freire
(2021a, p. 35-36) diz que o ato de ler “não se esgota na decodificação
pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa
e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a
leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir
da continuidade da leitura daquele”. Em outros termos, as experiên-
cias, as vivências e as relações sociais surgem primeiro na vida das pes-
soas e os códigos e os signos linguísticos escritos vêm depois. O autor,
ao fazer um percurso antes de ler palavras, descreve que lia o mundo
em sua vivência com o uso dos sentidos do corpo humano, como o
que via, o que ouvia e o cheiro que sentia. Isso justifica a sua defesa
de que o ato de ler precisa ser associado ao mundo para proporcionar
significação.
Uma das condições para tornar o ato de ler crítico é a de propor-
cionar uma autonomia para o aluno de tal forma que ele se sinta capaz
de produzir significações com aquilo que aprende, pois “a leitura da
palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma
certa forma de ‘escrevê-lo’ ou de ‘reescrevê-lo’, quer dizer, de transfor-
má-lo através de nossa prática consciente” (Ibid., p. 51). Apesar de,
nesse trecho, Paulo Freire se referir à alfabetização, ele pode muito bem
ser atribuído ao letramento, já que um dos principais objetivos dessa
habilidade é o de expressar e representar ideias de grupos sociais que os
beneficiem. Afinal, o conhecimento serve para permitir que os indiví-
duos lutem por seus direitos.
Consoante a isso, uma das principais vantagens do LC possui um
fator político – o de identificar ideologias camufladas em discursos que

462
buscam ludibriar a sociedade comum em prol de governos elitistas.
Percebemos, ocasionalmente, que alguns posicionamentos governa-
mentais na área da educação demonstram, claramente, ter influências
ideológicas, já que existem decisões tomadas de forma unilateral e re-
jeição a apelos populares. Apesar disso, Freire (2021a, p. 61-62) diz
que a educação sistemática não é uma mera reprodutora da ideologia
dominante e explica o porquê:

Na medida em que compreendemos a educação, de um lado,


reproduzindo a ideologia dominante, mas, de outro, propor-
cionando, independentemente da intenção de quem tem o po-
der, a negação daquela ideologia (ou o seu desvelamento) pela
confrontação entre ela e a realidade (como de fato está sendo e
não como o discurso oficial diz que ela é), realidade vivida pelos
educandos e pelos educadores, percebemos a inviabilidade de
uma educação neutra.

Isto é, devido à criticidade conquistada pelo educando através da


sua inserção aos debates sociais e à sua autonomia enquanto partici-
pante ativo do processo de ensino-aprendizagem, ele é capaz de cate-
gorizar e analisar ações para além do discurso produzido. Nesse caso, o
conhecimento será como uma arma de defesa da sociedade em meio às
investidas institucionais que prejudicam a coletividade, sendo posto em
evidência o caráter político e emancipatório da educação.

2. Análise de discurso e os imaginários sociodiscursivos


A Análise de Discurso (AD), que possui objetivos semelhantes aos
do Letramento Crítico, é uma área social por excelência. Conforme
Orlandi (2001, p. 15), a AD “concebe a linguagem como mediação
necessária entre o homem e a realidade natural e social”. Sendo assim,
para estudá-la, é impossível desvinculá-la do homem, que é um ser hu-
mano, um sujeito social que se comunica através da linguagem. Ainda
de acordo com Orlandi (Ibid., p. 15-16), há algumas particularidades
na AD:

463
[...] A Análise do Discurso não trabalha com a língua enquanto
um sistema abstrato, mas com a língua no mundo, com ma-
neiras de significar, com homens falando, considerando a pro-
dução de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto
sujeitos seja enquanto membros de uma determinada forma de
sociedade.

Isso abrange o seu campo de atuação, tornando os interlocutores, o


espaço discursivo, a época e o próprio discurso em si, que ocorre sempre
de maneira conectada com o mundo, objetos passíveis de análise. Desse
modo, a Análise de Discurso é intrinsecamente vinculada à sociedade
e à história, não sendo, de forma alguma, um produto isolado. Por
exemplo, nessa vertente, é impossível analisar discursos sem relacioná-
-los a fatores sociais ideológicos e inconscientes, que estão em constante
processo.
Nos estudos da AD, além de especificar os sentidos de texto e dis-
curso, é necessário, também, saber analisar esses diferentes mecanismos
teóricos. Orlandi (2017, p. 184) apresenta essa distinção:

[...] Não se atravessa o texto para encontrar atrás dele um senti-


do a ser extraído. É na sua materialidade mesma que se encontra
o sentido. O estudo da ligação, dirá o autor, entre as circunstân-
cias de um discurso – suas condições de produção – e seu pro-
cesso de produção é fundamental, sendo estas concebidas como
o pano de fundo específico dos discursos, que tornam possível
sua formulação e sua compreensão.

Sendo assim, ao analista de discursos, não cabe o exercício da in-


terpretação puramente textual e sem vínculo com a exterioridade. A
materialidade do texto sinaliza a presença das Condições de Produção e
o torna capaz de ser analisado (Ibid.), sendo a sua produção de sentidos
vinculada aos imaginários, conceito discursivo presente nos estudos da
Semiolinguística.
De acordo com Charaudeau (2017, p. 579), o termo “imaginá-
rio”, conhecido nas Ciências Humanas e Sociais, passou a ser, também,

464
objeto de estudo da Análise de Discurso devido ao seu uso ser comparti-
lhado socialmente, e à fala, que pode ser o sintoma da sua produção. O
autor, que desenvolveu estudos sobre os Imaginários Sociodiscursivos
(IS), pontua que eles procedem das representações sociais que advêm da
linguagem, da fala, das narrativas. Desse modo, podemos afirmar que
os fatos da humanidade costumam ser contados por grupos que seguem
uma linha narrativa e discursiva coerente de simbolização do mundo
conforme os saberes já conhecidos socialmente.
Os IS possuem dois tipos de saberes: os de conhecimento e os de
crença. Os primeiros, saberes de conhecimento, estão ancorados à no-
ção de verdade, ao que pode ser comprovado e ao que tem objetividade.
Dessa forma, a utilização desse tipo de saber deve vir embasada com
informações que podem ser comprovadas quando necessário. Em hipó-
tese alguma, o saber de conhecimento pode advir do que é subjetivo.
Por outro lado, “os saberes de crença não se relacionam com o conhe-
cimento do mundo no sentido que temos que atribuir a ele, mas com
as avaliações, apreciações, julgamentos a respeito dos fenômenos, dos
eventos e dos seres do mundo, seu pensamento e seu comportamento”
(CHARAUDEAU, 2017, p. 582).
O autor faz uma subdivisão desses conceitos, que será apresentada,
a seguir, de forma sintetizada. Os saberes de conhecimento abrangem
o saber de experiência, que tem um viés empírico e não garante que o
que se afirma será provado, mas, devido aos seus apontamentos, que são
feitos por um sujeito com base em uma experiência vivida, podem fazer
com que ele suponha que outras pessoas nas mesmas circunstâncias te-
rão experiências semelhantes ou iguais.
Os saberes de crença abrangem dois tipos de saberes, o de revelação
e os de opinião, esses últimos divididos em opinião comum, opinião
relativa e opinião coletiva. O saber de revelação encontra-se no exte-
rior do sujeito, porque requer que outra pessoa tenha feito um anúncio
que deve acontecer no tempo futuro – os discursos religiosos podem
ser citados como exemplo; o saber de opinião comum refere-se às opi-
niões compartilhadas sobre qualquer temática, de forma social, sem

465
exclusividade; o saber de opinião relativa valoriza o diálogo e o espaço
para o contraditório, possuindo, assim, um caráter democrático; e a
opinião coletiva faz alusão aos juízos de valor intergrupais, quando um
grupo específico faz atribuições a outros grupos. Considerando o objeto
de pesquisa deste trabalho, voltaremos a discussão para o racismo mate-
rializado nos estudos discursivos.

3. Racismo e discurso
Tecendo brevemente algumas reflexões sobre as questões raciais e o
discurso, Modesto (2021, p. 8) aponta que “os discursos racializados não
se limitam a discursos de ou sobre raça, podendo então interferir em outras
instâncias discursivas”. A instância mais comum de ser atrelada ao racismo
é a socioeconômica. Para os racistas, o negro não tem ou não deveria ter
condições financeiras que lhe dê poder aquisitivo de compra ou de ocupar
os mais diversos espaços na sociedade. Outras associações pejorativas feitas
de forma usual em casos de racismo podem ser mencionadas, como a de
escolaridade – eis a importância da garantia à educação e às oportunidades
de espaço em ambientes ditos privilegiados aos negros – e a de religiões
afro-brasileiras, que são alvos de preconceito, violência e silenciamento por
causa da predominância das religiões cristãs no país, efeito da catequização
dos indígenas pelos Jesuítas no Colonialismo Português.
Indo contra todas as evidências históricas e atuais do racismo no
Brasil, tem-se um grupo de pessoas que nega a existência da discrimi-
nação e do preconceito racial e defende uma paridade de condições e
tratamento às pessoas. É um posicionamento desvinculado com a rea-
lidade, obviamente, e que ganha força com o incentivo de líderes polí-
ticos que têm afinidade com ideologias autoritárias e segregacionistas.
Sobre isso, Flannery (2021, p. 25) diz que “trata-se de um discurso que
desconsidera propositadamente, ou ignora por completo, o impacto
que séculos de escravidão (e os consequentes estigmas gerados por esse
regime) tiveram e ainda têm para as vidas de milhões de brasileiros”.
Na prática de discriminação racial, há variados recursos linguísticos
que conotam negativamente os negros, havendo, também, uma série de

466
formações imaginárias que atravessam seus discursos ou que simples-
mente marcam a materialidade discursiva.

Nesse sentido, os discursos racializados apontam para o pro-


cesso de racialização das condições de produção, formulação e
circulação dos discursos e não para a especificidade de um tema
(como raça ou racismo). Não se trata de “falar sobre” raça, mas
de ter os processos de racialização atravessando discursividades,
ainda que por efeitos do silenciamento, da contradição, da me-
táfora, da paráfrase, da paródia etc. (MODESTO, 2021, p. 9)

Exemplificando o que o autor traz no excerto: a paráfrase pode ser


relacionada aos tipos de esquecimentos apontados por Orlandi (2001),
que aponta que o que é falado é expressado de uma forma e não de
outra ou que projeta-se a ilusão de que o discurso racista é inédito,
sem ter sido baseado em discursos antecedentes; a paródia e a metáfora
geralmente são usadas quando há o interesse de ridicularizar as pessoas
negras de forma irônica ou sarcástica, como acontece nos ataques dis-
criminatórios; a contradição é intrínseca ao discurso racializado, con-
siderando o seu caráter de negação e oposição, além da falta de lógica;
e o silenciamento, que é provocado pelo autor do discurso, já que na
maioria dessas ocasiões não há um diálogo, mas falas desumanas e anti-
cidadãs, sendo o agressor portador de uma voz arbitrária nesse ato.

4. Análise dos dados


Primeiramente, será analisado de modo qualitativo e interpretativo
um texto que contém discursos de ódio em redes sociais; em seguida,
um quadro de respostas dadas por alunos95 da 2ª série do ensino médio
de um campus do Instituto Federal do Piauí; por fim, apresento um diá-
logo obtido por meio de gravação sonora nos momentos de intervenção
na sala de aula.

95
Como esta pesquisa envolveu seres humanos, o projeto foi submetido ao Comitê
de Ética da UFPI e foi realizada após ter o parecer aprovado, sob o número de Cer-
tificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) 52406121.3.0000.5214.

467
Pocah é o nome artístico de Viviane de Queiroz Pereira. Ela tem 28
anos, nasceu no Rio de Janeiro e é compositora e cantora do ritmo funk.
Ainda na adolescência, quando sua carreira estava no início, ela utiliza-
va o nome MC Pocahontas. Aos 18 anos, Pocah lançou o seu primeiro
hit. Em 2020, foi convidada a integrar o grupo camarote da vigésima
edição do Big Brother Brasil96. Durante o confinamento, a equipe que
administrava as redes sociais da cantora percebeu que haters estavam
cometendo crimes racistas contra ela e contra a sua filha.

Figura 1 – Ataques à ex-BBB Pocah

Fonte: Reprodução/Twitter/Instagram

Na imagem, percebemos que os sujeitos que cometeram crimes


racistas estão identificados com emojis. O cacto foi o símbolo utili-
zado pela nordestina Juliette Ferreira, participante da mesma edição
que Pocah. Em razão de as duas terem conflitos dentro do jogo, suas

96
Portal NaTelinha. Tudo sobre Pocah. Disponível em: https://natelinha.uol.com.
br/famosos/tudo-sobre/pocah. Acesso em maio de 2022.

468
respectivas torcidas, na medida que as defendiam, teciam críticas às
rivais. Foram compartilhados, pela equipe da cantora, quatro regis-
tros: três publicados no Twitter e um no Instagram. Antes de analisar
o conteúdo, é importante mencionar que há suspeitas de que os ata-
ques não partiram de torcedores de Juliette. Segundo a sua equipe,
eles tinham sob posse arquivos de haters dizendo que se passariam
por “cactos”, apelido dos fãs de Juliette, para prejudicar a imagem da
participante97.
Os comentários demonstram: ameaça de agressão física à filha de
Pocah e agressão verbal depreciativa; insulto moral à Pocah e discurso
racista à sua filha; e injúria racial com alegorias. Dentre as ideologias,
tem-se: uma cultura de vingança “ela mexe com a Ju que dói em mim,
eu mexo com a filha que mais dói nela”; o preconceito sexista de que
mulheres do funk não têm valores éticos “piranha”; a ideologia racista
de diminuir pessoas negras e de julgar que a cor delas indica sujeira
e odor “neguinha fedida”; e preconceito com cabelos crespos “petição
para a Pocah pentear a bucha da filha dela”, “cabelo duro”, valorizando
o padrão estético imposto pela sociedade de que o cabelo liso é superior
em detrimento dos demais tipos.
Acerca dos Imaginários Sociodiscursivos, é interessante relacionar
esses discursos com a falta de logicidade encontrada. De acordo com
a teoria biológica que trata dos cinco sentidos humanos, as sensações
precisam estar próximas ou conectadas ao corpo. Como o hater pode
chamar alguém que ele provavelmente nunca viu na vida e está a quilô-
metros de distância de fedido, estando impossibilitado de sentir o seu
cheiro? Não há outra explicação senão o preconceito racial atrelado à
discriminação que uma parcela da sociedade pratica culturalmente.

97
Portal Notícias da Tv. BBB21: Filha de Pocah é alvo de ataques na web por su-
postos fãs de Juliette. Disponível em: https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/bbb/
bbb21-filha-de-pocah-alvo-de-ataques-na-web-por-supostos-fas-juliette-55775.
Acesso em maio de 2022.

469
Direcionando a análise para a interação com os alunos98, foi feito
o questionamento sobre o racismo que as pessoas famosas são vítimas
iguais aos cidadãos comuns. Neste momento, percebe-se, de forma unâ-
nime, que o racismo não escolhe condições econômicas.

Quadro 1 – Respostas à questão 1

1. Você acha que pessoas bem-sucedidas na sociedade e na mídia, como jogadores


de futebol, apresentadores, cantores, atores/atrizes sofrem discriminação racial?
Justifique.

Nelson M. Sim, isso e uma coisa que pode acontecer com qualquer um inde-
pendente da posição social.
Carolina J. Sim, pois as pessoas não se importam com o dinheiro ou fama que
elas têm, só querem fazer o mal.
Chadwick B. Sim, o Neymar mesmo sendo o 2º maior nome da história do fute-
bol brasileiro é alvo de muita discriminação “cai, cai”, “sombra do
pelé”, “Macaco”.
Machado A. Com certeza sim. Pessoas famosas também estão sujeitas a discrimi-
nação de ambas formas.
Emicida Sim, um exemplo são os jogadores de Futebol, que são menospreza-
dos no jogo pelos torcedores.
Martin Jr. Sim. Principalmente quando são de classes sociais inferiorizadas,
quando surgem de realidades difíceis e conseguem crescer social-
mente a crítica infundamentada emerge instantaneamente.
Beyoncé Sim, pois eles são gente e por serem “influências e conhecidos” isso
pode acontecer.
Elza S. Sim não é só porque eles são pessoas bem-sucedidas que eles não
sofrem discriminação racial.
Gilberto Gil Sim, no caso deles fica ainda mais evidente, já que são figuras públi-
cas sofrendo ataques constantemente.
Alcione Sim. A discriminação racial ocorre em todo o mundo.
Luiz Gama Sim. A discriminação está presente em todas as classes, da mais po-
bre a mais rica.
Fonte: Elaborado pelo autor (2022)

98
Devido aos protocolos éticos, os nomes dos participantes da pesquisa foram ano-
nimizados e substituídos por nomes de personalidades negras da mídia nacional
e internacional.

470
De forma geral, todos os alunos concordaram que o status social e/
ou econômico não isenta as pessoas negras de sofrerem discriminação
racial. Os comentários de Chadwick B., Emicida e Martin Jr. chama-
ram-me a atenção. Começando pelo primeiro mencionado, segundo
ele, o jogador Neymar é alvo de discriminação e é chamado por apeli-
dos como “Cai, cai”, “Sombra do Pelé” e “Macaco”. Linguisticamente
falando, apenas o último termo possui cunho racista. As outras palavras
podem ser explicadas com utilização do contexto. O apelido “Cai, cai”
faz referência às suas quedas em campo em razão das faltas que sofre99.
Já a expressão “Sombra do Pelé” foi dita em uma situação de desenten-
dimento com outro jogador, que insinuou que o Neymar é inferior ao
craque brasileiro da geração anterior100.
Emicida traz um ponto relevante ao dizer que jogadores de futebol
são menosprezados pelos torcedores. Isso ocorre comumente quando a
situação está desfavorável ao time ou ao jogador em específico, nunca
acontece quando o time está ganhando ou quando o jogador tem um
bom desempenho. Há, também, situações quando jogadores negros são
alvos da torcida do time rival. A paixão irracional e o racismo estrutural
fazem com que pessoas falem da negritude dos jogadores, violentando-
-os de forma desumana em seus locais de trabalho e sem considerar que
a cor nada tem a ver com a desenvoltura em campo.
Martin Jr. comenta os casos em que as pessoas de origem humilde
conseguem conquistar recursos e espaços privilegiados, mas, quando
são notadas, há um movimento de falta de acolhimento. Isso é visto em
Modesto (2021) que mostra que as questões raciais são advindas de um
sistema capitalista, que prega a hegemonia de um grupo principal.

99
Portal R7. Cai-cai? Neymar é o jogador que mais sofre faltas na Europa. Disponí-
vel em: https://esportes.r7.com/futebol/fotos/cai-cai-neymar-e-o-jogador-que-
-mais-sofre-faltas-na-europa-26022022. Acesso em maio de 2022.
100
Portal R7. ‘Lixo’. ‘À sombra de Pelé’. Infantilizado, Neymar é ridiculari-
zado. Disponível em: https://esportes.r7.com/prisma/cosme-rimoli/lixo-a-som-
bra-de-pele-infantilizado-neymar-e-ridicularizado-14012021. Acesso em maio
de 2022.

471
Em dado momento da intervenção, analisávamos os discursos de
ódio racistas coletivos. Foi exposto um vídeo, do ano de 2017, que exi-
bia um trecho do Programa Mais Você, da Tv Globo. A apresentadora
e chef, Ana Maria Braga, preparou um nhoque de abóbora para suas
convidadas, as atrizes Fernanda de Freitas e Taís Araújo. Esta última
rejeitou o prato preparado porque não comia abóbora e justificou: “Eu
não vou comer só porque estou aqui! Eu como de tudo, a única coisa
que não como na vida é abóbora!”101. Em uma rede social, após esse
fato, a atriz sofreu diversos ataques racistas. Um deles, dizia para levar
o prato para a África e perguntar se as pessoas de lá queriam, por con-
siderar que na circunstância de necessidade alimentar, não há recusa a
qualquer prato.
Pedi aos alunos para explicarem porque a África foi citada no co-
mentário e tive as seguintes respostas em sequência: Beyoncé: – “Porque
a África é um país pobre”. / Emicida: – “Uma das regiões que mais so-
frem”. / Martin Jr. – “As pessoas costumam dizer ‘quando você for dei-
xar de comer esse prato lembre que tem gente de outro lugar no mundo
passando fome’. Lembro disso quando eu era pequeno”. / Beyoncé con-
corda com Martin Jr.: – “Falam até hoje”. As falas dos alunos indicam
que as condições de produção e os imaginários sociodiscursivos fazem
com que os sujeitos sejam preconceituosos com o continente africano e
relacionem seus fatos negativos como lógica para menosprezar pessoas
negras e estrangeiras menos favorecidas. Reproduzindo a situação de
forma precisa, pessoas que moram no Brasil, um país com milhões de
pessoas em situação de insegurança alimentar, usam um outro conti-
nente como referência para falar da fome.

Considerações finais
Este trabalho, fundamentado nos pressupostos teóricos da Análise
de Discurso Materialista, da Teoria Semiolinguística e do Letramento
101
Portal Extra. Taís Araújo recusa nhoque de abóbora no ‘Mais você’ e arranca garga-
lhadas de Ana Maria. Disponível em: https://extra.globo.com/tv-e-lazer/tais-a-
raujo-recusa-nhoque-de-abobora-no-mais-voce-arranca-gargalhadas-de-ana-ma-
ria-21342144.html. Acesso em junho de 2022.

472
Crítico objetivou analisar os discursos de discriminação racial publica-
dos nas redes sociais de pessoas da mídia brasileira e pesquisar como o
LC pode contribuir na diminuição do preconceito racial, por meio de
interação com alunos da educação básica.
De acordo com a análise do corpus documental, constatamos que
os Imaginários Sociodiscursivos estão presentes nas práticas de discrimi-
nação racial por meio dos saberes de crença, sem embasamento lógico
e com utilização de vieses empiristas e ideológicos, que impedem um
diálogo polido entre as pessoas devido ao seu alto nível de violência e
opressão.
Na análise do questionário inicial, observamos que os alunos fo-
ram capazes de identificar que o racismo estrutural não isenta pessoas
bem-sucedidas economicamente da discriminação racial, demonstran-
do uma intolerância que deve ser combatida. Na intervenção, perce-
bemos que o racismo pode acontecer de forma mascarada, atrelando a
cor negra à pobreza, como se houvesse um privilégio da sociedade que
tem menos pessoas negras que o continente africano, mesmo que ela
também enfrente dificuldades econômicas.
Acerca de ter realizado essa pesquisa em uma sala de aula, trago a
citação de Freire (2021b, p. 127), que diz que “a educação é um ato
de amor e, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A
análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de
ser uma farsa”. Por isso estamos aqui tratando sobre esse tema, às vezes
desacreditado por pessoas desconectadas com a realidade, e propusemos
levar esse diálogo a alunos de um instituto público de ensino. Essas pala-
vras de Freire, severas, porém reais, não podem jamais ser esquecidas por
todos aqueles que exercem a função do magistério, que têm a missão de
incentivar os educandos a resistirem contra as ideologias hegemônicas.

Referências
CHARAUDEAU, Patrick. Dicionário de análise do discurso. Patrick Charaudeau,
Dominique Maingueneau; coordenação da tradução Fabiana Komesu. 3. Ed., 3ª reim-
pressão. São Paulo: Contexto, 2018.

473
CHARAUDEAU, Patrick. Os estereótipos, muito bem. Os imaginários, ainda me-
lhor. Traduzido por André Luiz Silva e Rafael Magalhães Angrisano. Entrepalavras,
Fortaleza, v. 7, p. 571-591, jan./jun. 2017.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 52


ed. São Paulo: Cortez, 2021a.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 50ª ed. São Paulo: Paz e Terra,
2021b.

MODESTO, Rogério. Os discursos racializados. Revista da Abralin, v. 20, n. 2,


p. 1-19, 2021. Disponível Em: https://revista.abralin.org/index.php/abralin/article/
view/1851. Acesso em janeiro de 2022.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios e procedimentos.


Campinas, SP: Pontes, 2001.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso em Análise: Sujeito, Sentido e Ideologia. 3ª


Ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2017.

474
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

A FASE DA PRÉ-TAREFA E O SEU PAPEL


DENTRO DO PLANEJAMENTO BASEADO EM
TAREFAS

Fernanda Goulart (UFSCar)


Rita Barbirato (UFSCar)

RESUMO: Neste artigo, temos como objetivo trazer as definições de pré-tarefa


encontradas na literatura nacional e internacional (PRABHU, 1987; ELLIS
et.al, 2020; LONG, 2015, NUNAN, 1989; XAVIER,2007; BARBIRATO,
2005) e discutir o seu papel dentro do ciclo de tarefas no Planejamento
Baseado em Tarefas. Nesse planejamento, cujo eixo organizatório é a tarefa, o
processo de aquisição de línguas se dá através da comunicação, proporcionando
oportunidades aos aprendizes aprenderem a língua-alvo (BARBIRATO,
2005). A pré-tarefa é a primeira das três fases que compõem um ciclo de
tarefas e, apesar de não obrigatória, ela vem sendo bastante estudada e
aplicada de formas variadas em pesquisas empíricas internacionais (ELLIS et.
al, 2020). Este trabalho parte de um recorte de uma pesquisa de doutorado
em fase inicial, cujo propósito principal é analisar de que maneiras o uso de
pré-tarefas, desenvolvidas a partir do Planejamento Temático Baseado em
Tarefas, pode contribuir para o desempenho de alunos durante a realização
de tarefas comunicativas, bem como avaliar seu potencial para a aquisição da
língua inglesa. A proposta justifica-se pelo fato de que embora o planejamento
de línguas baseado em tarefas seja apontado com o potencial de gerar aquisição
bem sucedida e em proporcionar maiores oportunidades de uso da língua-
alvo, não encontramos estudos nacionais analisando o potencial do uso de
pré-tarefas no desempenho das tarefas comunicativas no contexto brasileiro
de ensino.
PALAVRAS-CHAVE: Planejamento Baseado em Tarefas. Ciclo de tarefas.
Pré-tarefa. Ensino de língua inglesa.

ABSTRACT: In this paper, we aim to bring definitions of pre-task found


in the national and international literature (PRABHU, 1987; ELLIS et.al,
2020; LONG, 2015, NUNAN, 1989; XAVIER,2007; BARBIRATO,
2005) and discuss its role in the task cycle in the Task Based Syllabus. In
this syllabus, organized by a task, the process of language acquisition takes
place through communication, providing opportunities for learners to learn

475
the target language (BARBIRATO, 2005). The pre-task is the first of the three
phases that make up a task cycle and, although not mandatory, it has been
extensively studied and applied in different ways in international empirical
research (ELLIS et al, 2020). This work is part of a doctoral research at
its initial phase that aims at analyzing how the use of pre-tasks, developed
from the Thematic Task Based Planning, can contribute to the performance
of students during communicative tasks, as well as assess their potential for
acquiring English language. Although task-based language teaching is pointed
out with the potential to generate successful acquisition and to provide greater
opportunities for the use of the target language, we have not found national
studies analyzing the potential of the use of pre-tasks in the performance of
communicative tasks in the Brazilian context of teaching.
KEYWORDS: Task Based Language Teaching. Task cycles. Pre-tasks. English
Language Teaching.

Introdução
O Planejamento Baseado em Tarefas (PBT) é uma proposta pe-
dagógica que tem como eixo organizatório tarefas comunicativas
(BARBIRATO, 2005) e organiza as experiências de aprender uma língua
por meio de atividades de interesse ou necessidade do aluno (ALMEIDA
FILHO, 2002). Conhecido em inglês como “Task-based language tea-
ching” (TBLT), o PBT prevê, em uma aula típica, uma série de tarefas
cujo foco é alcançar um resultado comunicativo (ELLIS, 2019).
Juntamente com as novas práticas que entraram em vigor a partir
movimento comunicativo de ensino de línguas entre 70 e 80, surgem
as primeiras discussões sobre o papel das tarefas comunicativas, que
apresentam, como foco principal, oferecer oportunidades de uso da lín-
gua em “condições relativamente naturais” (ELLIS et.al, 2020, p.179).
Diferentemente da abordagem tradicional de ensino de línguas, o PBT
enfatiza a importância de engajar as habilidades naturais dos aprendizes
para aquisição da língua de forma incidental. O processo de ensino
e aprendizagem de línguas estrangeiras ganhou, portanto, uma nova
interpretação a partir do PBT (ELLIS, 2003; SKEHAN, 1996, 2003;
WILLIS, 1996).

476
As propostas iniciais do PBT datam no início da década de 1980
(ELLIS et.al, 2020) com sua primeira aplicação de ensino na Índia atra-
vés de um projeto de larga escala implementado pelo linguista Prabhu
(1987). Sua insatisfação com o estruturalismo, dominante na época,
fez com que o pesquisador se debruçasse nesse novo modelo de ensino.
Para Prabhu (1987, p. 24) tarefa é “uma atividade que requer uma res-
posta a ser dada pelos alunos, a partir de uma informação previamente
fornecida por meio de algum processo de pensamento”. Com foco no
significado e ausentes de qualquer pré-seleção de itens linguísticos, as
tarefas propostas em seu projeto envolviam processos cognitivos como
a inferência, a dedução e o raciocínio prático.
O programa de Prabhu (1987) conhecido como Communicational
Teaching Project, ou Bangalore Project, foi responsável também por tra-
zer o conceito do que ficou conhecido, mais tarde, como pré-tarefas.
No projeto, a organização das atividades se deu por meio duas tarefas
similares. A primeira tarefa, mais simples, realizada sob o controle do
professor, com a turma toda ou com um aluno mais experiente, tinha
como objetivo apresentar e verificar a dificuldade da atividade. A segun-
da tarefa, similar à primeira, embora envolvesse os mesmos processos de
raciocínio, exigia maior esforço cognitivo e era realizada individualmen-
te. Depois de Prabhu, o PBT passou a ser pesquisado e implementado
por diversos autores (LONG, 1985, NUNAN, 1989) e várias propostas
para esse ensino têm sido discutidas na literatura até os dias atuais.
Embora os resultados de estudos empíricos nacionais e internacio-
nais tenham apontado para o potencial do PBT no ensino de línguas
estrangeiras, poucas pesquisas no Brasil aplicaram a fase da pré-tarefa
com o intuito de avaliar de que maneiras essa etapa influencia ou não
na realização da tarefa e qual o seu potencial para a aquisição da lín-
gua entre nossos estudantes. Pouco se tem discutido, também, sobre os
diferentes papeis dessa fase na visão de diferentes autores na literatura
nacional.
Diante desse contexto, temos como objetivo, neste artigo, trazer
definições de pré-tarefa (PRABHU, 1987; ELLIS et.al, 2020; LONG,

477
2015; NUNAN, 1989; XAVIER,2007; BARBIRATO, 2005), discutir
o seu papel dentro do ciclo de tarefas no Planejamento Baseado em
Tarefas e refletir sobre o seu potencial para contribuir com o processo
de aquisição de língua. Para tanto, organizamos o texto em três seções.
Na primeira, trazemos um breve panorama do PBT e o conceito de
tarefas comunicativas por diferentes autores. Depois, tratamos especi-
ficamente da pré-tarefa, seu surgimento, suas definições e como essa
fase tem sido abordada na literatura. Por fim, discorremos sobre como
os pesquisadores brasileiros entendem a pré-tarefa e apontamos o que
os resultados de algumas pesquisas brasileiras têm demonstrado sobre
essa fase.

O planejamento baseado em tarefas e o conceito de tarefa


comunicativa
O Planejamento Baseado em Tarefas (PBT), tendo suas bases no
ensino comunicativo de línguas, propõe um ensino que prioriza o sig-
nificado e enfatiza a importância de engajar os aprendizes em situações
reais de uso da língua. Ellis e colaboradores (2020) afirmam que, apesar
das críticas recebidas ao longo dos anos, o PBT tem sido considerado
uma grande inovação nos contextos de ensino. Implementar o PBT não
é, de fato, tarefa fácil e requer, em primeiro lugar, grande entendimento
sobre seus conceitos entre os professores de línguas. Embora não seja
novo e tenha demonstrado resultados satisfatórios, o PBT ainda parece
enfrentar barreiras para sua implementação.
As tarefas comunicativas representam o eixo organizatório do PBT
e envolvem os aprendizes em situações em que o uso da língua não é
julgado em termos gramaticais, mas sim, pelo resultado comunicativo
alcançado (ELLIS, 2019).
Na literatura, são apresentados dois tipos de abordagens de ensino
por tarefas: uma forte e uma fraca (SKEHAN, 1996). A primeira, na
qual nos alinhamos, considera tarefas como “uma unidade do ensino de
línguas” (SKEHAN, 1996, p. 39), com foco no significado e “engaja-
mento de processos de aquisição como centrais” (SKEHAN, 2003, p.

478
01). A versão fraca, embora considere a tarefa uma condição para o en-
sino, lança mão de algum tipo de reforço linguístico, tanto antes quanto
depois da realização das tarefas.
No Brasil, Almeida Filho e Barbirato (2000, p.25), ao defenderem
a versão forte do PBT, caracterizam a tarefa como uma atividade que
envolve “o uso comunicativo da língua, no qual a atenção do usuário
está focalizada no significado e não na estrutura linguística”. Segundo
os autores, uma tarefa deve, portanto, ser uma atividade comunicativa
com foco no sentido e resultado comunicativo, diferentemente de um
exercício que tem foco na forma, no emprego de regras linguísticas e no
uso extensivo de exercícios mecânicos de automatização.
Como forma de verificar e distinguir se a atividade proposta é uma
tarefa ou um exercício, Ellis e colaboradores (2020) apresentam quatro
critérios, quais sejam: 1) foco primário no significado, 2) existência de
um tipo de lacuna para haja uma real motivação para troca de informa-
ções e opinião; 3) uso de próprios recursos linguísticos e não-linguístico
pelos estudantes, 4) presença de um resultado comunicativo claramente
definido, que seve ser atingido com a realização da tarefa. Ainda, para
Ellis (2003, p.16), “tarefa é um trabalho que requer o processamento
pragmático da linguagem para se chegar a um resultado, que pode ser
avaliado pelo conteúdo transmitido”. Para atingir esse propósito, por-
tanto, “a tarefa exige do aprendiz atenção prioritária ao significado e o
uso de seus próprios recursos linguísticos”.
Richards (2005, p.161) descreve a tarefa como “uma atividade que
faz uso da língua alvo para encontrar a solução de um enigma, ler um
mapa e oferecer as direções, ou ler uma série de instruções e montar um
brinquedo”. Skehan (1996) define tarefa comunicativa como um tipo
de atividade na qual o significado é o aspecto principal; há relação com
as situações encontradas fora da sala de aula; o processo de realização da
tarefa tem prioridade; a avaliação do desempenho é realizada em termos
de resultados. Willis (1996), motivada por Prabhu (1987), define tarefa
como uma atividade através da qual o aprendiz precisa alcançar um
resultado real, para resoluções de problemas.

479
Ao analisar algumas definições de tarefa, Xavier (2011) afirma que
todas elas parecem apresentar dois elementos em comum: “o uso da
língua para fins comunicativos e um resultado do trabalho realizado
com a língua (outcome)” (XAVIER, 2011, p.149). O intuito de se usar
tarefas é, pois, o de criar oportunidades para o aluno fazer coisas na e
com a língua-alvo e, acima de tudo, comunicar-se com propriedade
(BARBIRATO, 1999).
Para o trabalho com o PBT, opções metodológicas têm previsto o
uso de ciclos de tarefas, que incluem as fases da pré-tarefa e pós tarefa,
antes e depois da tarefa principal, respectivamente. Embora não obriga-
tórias, essas fases têm sido aplicadas em pesquisas empíricas e conside-
radas relevantes para o processo de ensino de línguas.

A fase da pré-tarefa no PBT


Conforme mencionado na introdução, Prabhu (1987), em seu pro-
jeto, fez uso de pré-tarefas como forma de preparação para a segunda ta-
refa, ou seja, a tarefa principal. A tarefa prévia, com foco no significado,
sempre similar à segunda, não envolvia o ensino direto de conceitos e
itens linguísticos. Menor e menos complexa que a tarefa, Prabhu (1987,
p. 53) explica que a pré-tarefa demandava, no seu estudo, os mesmos
processos de raciocínio, apresentando situações iguais ou semelhantes à
segunda tarefa.
Para o linguista indiano, o que diferenciava uma pré-tarefa de uma
tarefa, em sua proposta, é que enquanto a primeira era realizada em
público, coletivamente, e quase sempre guiada pelo professor, a segunda
era realizada pelos estudantes de forma independente, na maioria das
vezes sozinhos (PRABHU, 1987). Entendida como uma fase de prepa-
ração, a pré-tarefa aplicada no Programa de Procedimentos de Prabhu
(1987) vai de encontro com a visão de desenvolvimento proposta por
Vygotsky102.
102
Para Vygotsky (1991), a aquisição da língua dependente do contato social, de
um processo de interação com outras pessoas desde o início da vida. O conceito
de Zona de Desenvolvimento Proximal (ou ZDP), a saber, é o intervalo entre o que

480
Com o intuito de fornecer assistência aos estudantes e verificar que
houve a compreensão clara do que deve ser realizado posteriormente,
o professor, atua, na fase da pré-tarefa, como regulador e facilitador da
aprendizagem, trazendo um insumo compreensível para ensaiar para a
tarefa final. Esse ensaio constrói uma espécie de andaime (scaffolfing)
(FOLEY,1991), diminuindo, portanto, a distância entre o nível de de-
senvolvimento potencial103 e o real do estudante. A pré-tarefa converge,
portanto, com a ideia da zona de desenvolvimento proximal, uma vez
que ao interagir com outros colegas mais experientes e com o professor,
os processos internos de desenvolvimento são ativados (VYGOSTKY,
1991, p. 60).
Depois de Prabhu e com o surgimento do PBT, outros autores
passaram a trazer outros modelos de pré-tarefa. Ellis e colaboradores
(2020) reforçam que, apesar de não obrigatória, a pré-tarefa vem sendo
bastante estudada e aplicada de formas variadas em pesquisas empíricas.
Segundo o autor, os tipos de atividades realizadas na pré-tarefa depen-
dem de seu objetivo. Ellis (2003), alinhado com o que Prabhu propôs
como pré-tarefa, acredita que nessa fase não deve haver o foco nos itens
linguísticos necessários para a tarefa. Para ele, por exemplo, o ensino
de vocabulário na fase da pré-tarefa pode induzir a uma atividade de
prática de palavras selecionadas. Long (2015) assumindo a mesma pro-
posta, entende que pré-tarefa deva ser uma forma simplificada da tarefa,
com o intuito de construir esquemas ou informações necessárias para
auxiliar na tarefa alvo.
Ellis e colaboradores (2020) apontam três objetivos distintos para a
fase da pré-tarefa. O primeiro deles é gerar motivação, interesse e criar
expectativas nos estudantes. O segundo objetivo é preparar para a tare-
fa, ou seja, verificar se os procedimentos para sua execução e resultados

a criança sabe fazer por si só – o Nível de Desenvolvimento Real – e o que ela faz
com ajuda de um colega mais avançado do que ela ou de seu professor.
103
O desenvolvimento potencial é aquele determinado através da solução de pro-
blemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros
mais capazes. (VYGOSTKY, 1991, p. 28)

481
esperados estão claros e certificar-se de que eles possuem o conhecimen-
to linguístico e enciclopédico (conhecimento de mundo) necessários
para a realização da tarefa. O terceiro objetivo da pré-tarefa é criar opor-
tunidades que contribuam para a performance e resultado da tarefa.
Nunan (2004, p. 34), ao atribuir atividades prática controlada de
vocabulário, estrutura e funções linguísticas na fase da pré-tarefa, diver-
ge da proposta inicial de Prabhu (1987). No entanto, em sua proposta
de sequência pedagógica para a aplicação do PBT, o autor sugere que as
primeiras atividades da sequência devam também atuar como andaimes
(scaffolding).
Ao tratar do scaffolding, Nunan (2004) reconhece que, o momento
certo que o professor encontra para retirar o andaime e deixar os alunos
seguirem sozinhos seria a “a arte” do PBT. Para ele, “se o andaime é
removido prematuramente, o processo de aprendizagem entrará em ‘co-
lapso’. Se for mantido por muito tempo, os aprendizes não vão desen-
volver a independência exigida no uso autônomo da língua” (NUNAN,
2004, p. 35).
Na literatura internacional, além de Nunan, Willis (1996), propõe
um modelo que diverge da ideia inicial de pré-tarefa de Prabhu. Com
foco na versão fraca do PBT, em sua proposta, a autora não exclui to-
talmente o foco na forma na fase pré-tarefa e considera, por exemplo,
a apresentação de listas de vocabulário e itens linguísticos que se façam
necessários para o desempenho da tarefa principal.
Algumas opções metodológicas para o trabalho com pré-tarefas
têm sido implementadas. Para melhor visualização dessas opções, Ellis
e colaboradores (2020) propõem um quadro, que reproduzimos a
seguir.

482
Quadro 1- Resumo de opções metodológicas para
a pré-tarefa (ELLIS et al, 2020, p. 211)

OPÇÕES DESCRIÇÃO RECOMENDAÇÕES

Planeja- Aos aprendizes é ofe- • 1-3 minutos de planejamento parece


mento recido um tempo para ideal, mas os professores devem
Pré-tarefa planejar o conteúdo e customizar o tempo de planejamento
língua presentes na tarefa levando em conta o aprendiz e as
subsequente características da tarefa

• Durante o planejamento, os
professores podem permitir que os
alunos façam anotações, trabalhem
com materiais linguísticos e
planejem na sua língua materna ou
segunda língua, ou ambas.

• Nenhum planejamento é uma


opção.

Pré-tarefa Pré-tarefa com instrução • Realizar uso moderado de


com foco gramatical: aprendizes instrução gramatical pois isso pode
na forma são ensinados as regras afetar a fluência do aprendiz e a
gramaticais antes da reali- complexidade da sua produção de
zação da tarefa fala.

Pré-tarefa como mode- • Ter cuidado com o que trazer como


lagem: aos aprendizes é modelo, pois ele tem um impacto
oferecido um modelo de significante na realização da tarefa
realização. pelo aprendiz.

Outras Preparação do tópico: for- • Muito conhecimento prévio reduz


opções nece o conhecimento de negociação
conteúdo sobre o tópico.
• Ajuda o aprendiz com o
Andaime pelo professor: procedimento da tarefa
realiza uma tarefa similar
com os aprendizes • Ensina vocabulário para preparar os
aprendizes para a realização da tarefa
Preparação de vocabulário mas não deve exigir que eles usem
palavras prescritas

Fonte: Ellis e colaboradores (2020, p. 211). Tradução nossa.

483
Como podemos observar, são diversas as opções metodológicas
que trazem o trabalho com a fase da pré-tarefa, o que reforça a sua
importância dentro do PBT. Uma vez que nos alinhamos à opção me-
todológica que vai de encontro com o que propõe Prabhu no que diz
respeito ao uso e função da pré-tarefa, chamamos a atenção para as
duas primeiras propostas presente em “outras opções” no quadro acima.
Essa opção inclui atividades de preparação e familiarização do conteú-
do/tópico presente na tarefa, como tipo de ativação ou construção de
conhecimento de mundo. A segunda proposta dessa categoria é a já
mencionada anteriormente, conhecida como scaffolding, ou andaimes,
refere-se ao nível de assistência dos professores para que a tarefa seja
realizada de forma bem sucedida. Neste tipo de pré-tarefa o professor
fornece auxílio por meio de perguntas e respostas a partir de uma ta-
refa similar mais simplificada, com o objetivo de desenvolver no aluno
uma autorregularão, ou seja, “(...)a habilidade de realizar a tarefa sem
nenhum tipo de assistência” (ELLIS et. al., 2020, p. 221).
Uma vez que o foco da pesquisa que estamos desenvolvendo se dá
no contexto brasileiro de ensino de línguas, achamos relevante trazer,
na próxima seção, o que os pesquisadores nacionais entendem sobre a
fase da pré-tarefa e o que os estudos realizados envolvendo essa fase têm
apresentado.

O uso de pré-tarefa por autores brasileiros


Estudos brasileiros, embora não tendo focado especificamente no
potencial da pré-tarefa para a aquisição e desempenho da tarefa, têm
observado resultados positivos no que diz respeito ao uso dessa fase
para a realização das tarefas comunicativas. Seguindo a mesma linha de
Prabhu (1987), pesquisadores nacionais têm defendido que a fase de
pré-tarefa deve ser realizada como espécie de andaime. Segundo Xavier
(2007), a pré-tarefa tende a exigir menos esforço cognitivo do aluno do
que a tarefa propriamente dita, apresentando menos quantidade de in-
formação e menos aprofundamento. Para Barbirato (2005) a pré-tarefa
deve auxiliar o aluno em habilidades que serão demandadas na realiza-
ção da tarefa, sem nenhum foco na forma.

484
Em sua pesquisa de mestrado, Barbirato (1999), com o objetivo
de analisar a construção do processo de ensino/aprendizagem da língua
inglesa por meio de tarefas comunicativas, fez uso de pré-tarefas. Para a
autora, as pré-tarefas aplicadas na sua pesquisa tiveram como finalidade
preparar os estudantes para a realização da tarefa escolhida. Nessa fase
foram utilizadas, por exemplo, atividades de compreensão da lingua-
gem oral para que os estudantes se familiarizassem com os tópicos que
seriam exigidos nas tarefas principais.
Onodera (2020), baseando-se nas fases de tarefa pro-
posto por Ellis (2003), teve como objetivo, em sua pesqui-
sa de doutorado, aplicar e avaliar a eficácia de um curso
de Inglês para Fins de Negócios baseado em tarefas orais, na modalidade
a distância. No que diz respeito às pré-tarefas aplicadas, seus resultados
demonstraram que essa fase teve influência positiva e foi fundamental
para a preparação da tarefa final. Como exemplo de pré-tarefa realizada
nesse estudo, o autor cita que os estudantes realizaram chamadas tele-
fônicas curtas, com poucas informações, uma vez que a tarefa final teve
como objetivo realizar outra chamada telefônica, porém com mais in-
formações e maior grau de complexidade. Também verificou que a pré-
-tarefa foi relevante para que os alunos utilizassem “apropriadamente os
itens lexicais, estruturas sintáticas e vocabulário de reuniões, discutiram
e argumentaram expondo suas opiniões” (ONODERA, 2020, p. 137).
Luce (2009) e Pereira (2015), trabalhando com uma linha mais
estruturalista dentro do PBT, mostraram um potencial positivo da pré-
-tarefa. Luce (2009), em sua dissertação de mestrado, analisou de que
formas as atividades de pré-tarefa ou pós-tarefa contribuíram para a
melhoria da produção escrita de estudantes adultos a partir do gênero
crítica de filmes. Resultados apontaram que as pré-tarefas com textos
autênticos “serviram de base para que os alunos pudessem apropriar-se
de estilos e ideias pertinentes ao gênero e ao tema” (LUCE, 2009, p.
127). Pereira (2015) investigou a percepção dos participantes sobre a
implementação de um ciclo de tarefas desenvolvido por meio da abor-
dagem embasada em tarefas a partir da temática turismo para um grupo

485
de aprendizes idosos de inglês como língua estrangeira. O objetivo das
pré-tarefas foi de motivar e providenciar input para as tarefas. Também
incluíram apresentação de vocabulário e alguma prática de pronúncia.
Resultados demonstraram que a fase da pré-tarefa atuou como uma
forma de encorajamento para a realização da tarefa principal.
Emidio (2017) ao propor um curso de inglês a distância por meio
de um planejamento temático baseado em tarefas (PTBT), na platafor-
ma Moodle, não fez uso da pré-tarefa em sua pesquisa. A autora apon-
tou, portanto, como limitação do seu estudo a não inclusão de pré-ta-
refas. Como sugestão, aconselha que o professor faça uso de pré-tarefas
como forma de andaime e que, provavelmente, o uso dessa fase na sua
pesquisa poderia ter solucionado o problema da falta de familiaridade
do aluno com o gênero textual trabalhado e afirma que “é possível que
com o uso de pré-tarefas, os alunos poderiam se sentir mais confortáveis
e melhor preparados para realizarem as tarefas e prosseguirem no curso”
(EMIDIO, 2017, p. 241). Ademais, a autora recomenda que a pré-ta-
refa pode ser trabalhada com o “intuito de auxiliar aqueles alunos que
demonstraram pouco conhecimento de língua inglesa ou alunos consi-
derados aprendizes iniciantes dessa língua” (EMIDIO, 2017, p. 214).
Abaixo, trazemos um quadro elaborado por Emidio (2017, p. 190),
demonstrando as dificuldades encontradas durante o curso aplicado e
as soluções para a realização das tarefas na plataforma proposta pela
pesquisadora.

Quadro 2 - Dificuldades encontradas e soluções propostas


durante o curso aplicado por Emídio (2017)

Fonte: Emídio (2017, p. 190)

486
Para finalizar nossa discussão sobre a fase da pré-tarefa, propomos
um quadro para contribuir com a visualização dos objetivos dessa fase
por diferentes autores, internacionais e nacionais.

Quadro 3 - Objetivo da pré-tarefa segundo autores internacionais e nacionais


AUTOR OBJETIVO DA PRÉ-TAREFA
BARBIRATO (1999) Preparar os alunos para a realização da tarefa
escolhida.
ELLIS e colaboradores (2020) Gerar motivação, interesse e criar expectativas nos
estudantes; preparar para a tarefa, i.e., verificar se
os procedimentos para sua execução e resultados
esperados estão claros e certificar-se de que eles
possuem o conhecimento linguístico e enciclopé-
dico necessários para a realização da tarefa.; criar
oportunidades que contribuam para a performan-
ce e resultado da tarefa. Não está previsto o traba-
lho gramatical ou morfossintático.
NUNAN (1989) Orientar o aprendiz à tarefa, gerar interesse,
ensaiar a língua essencial que será exigida para
completar a tarefa.
PRABHU (1989) Preparar para a tarefa; sanar possíveis dificuldades
que possam surgir durante a tarefa a partir de si-
tuações iguais ou semelhantes à tarefa. Não prevê
trabalho com itens linguísticos.
WILLIS (1996) Introduzir o tópico da tarefa, ativando, portanto,
as palavras e expressões que serão encontradas na
fase da tarefa.
XAVIER (1999) Facilitar a aprendizagem, ajudando-os a com-
preender o insumo e a raciocinar sobre a resposta
da atividade.

Fonte: Quadro elaborado pelas autoras.

Considerações finais
Concluímos este artigo reforçando que o estudo da pré-tarefa não
é algo novo, com seu início na década de 1980 no Projeto de larga es-
cala de Prabhu (1987), quando o Planejamento baseado em Tarefas não

487
havia ainda sido pensado. Pudemos compreender, pelas reflexões trazi-
das ao longo do texto, que, desde a sua implementação na Índia e após
o surgimento do PBT, a fase da pré-tarefa tem sido estudada, princi-
palmente, por autores internacionais. Os resultados desses estudos têm
demonstrado, na grande maioria, sua influência positiva na aquisição
de língua e melhor preparação dos estudantes para a tarefa.
Verificamos que a maioria dos autores, em especial os adeptos à
versão forte desse planejamento, compartilham da mesma definição de
pré-tarefa e corroboram com a ideia de que seu objetivo principal seja
preparar para a tarefa, servindo como um modelo e que não deve, assim
como propôs Prabhu (1987), ser vista como uma atividade de ensino de
itens linguísticos para a preparação da tarefa.
Entendemos a pré-tarefa como uma fase de construção inicial, for-
necedora de andaimes, muito necessária e relevante para a fase da tarefa,
principalmente para alunos considerados iniciantes. Apesar de presente
em alguns estudos realizados no Brasil, conforme apontamos, a fase da
pré-tarefa ainda não recebeu destaque nas pesquisas nacionais. Faltam
estudos, portanto, que corroborem para um melhor entendimento des-
sa fase para o processo de aquisição de línguas e como facilitadora para
a fase da tarefa entre estudantes no contexto nacional de ensino.
Finalizamos ressaltando que não tínhamos como intenção esgotar
o assunto a respeito das pré-tarefas nesta proposta e que muito ainda
pode ser discutido e apresentado sobre essa fase e seu papel no PBT.
Sugerimos que estudos empíricos envolvendo o PBT, com ênfase na fase
da pré-tarefa, em alunos brasileiros de diferentes contextos de ensino e
níveis de proficiência sejam realizados para que, além de fortalecermos
essa área de pesquisa, possamos contribuir, também, com professores
que pretendam aplicar esse planejamento de ensino em suas aulas de
línguas de forma mais eficaz e bem sucedida.

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490
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

PROTÓTIPOS DIGITAIS ERGÓDICOS SOB O


VIÉS DOS MULTILETRAMENTOS

Fernanda Victória Cruz Adegas - UFMS CPAQ


Vinícius Oliveira de Oliveira - UFMS CPAQ

RESUMO: A presente proposta se propõe a compartilhar os resultados atuais


do projeto de Iniciação Científica (IC) intitulado “Protótipos Digitais Aliados
ao Ensino de Língua Portuguesa Sob a Perspectiva dos Multiletramentos”,
desenvolvido junto ao curso de Letras, da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul. Sendo assim, tal trabalho se propõe a produzir protótipos
digitais direcionados para o ensino de linguagens, tendo como base os
pressupostos da Pedagogia dos multiletramentos (COPE E KALANTZIS,
2000; 2009, ROJO, 2013; 2015), a qual está relacionada aos estudos dos
novos (multi)letramentos (ROJO e MOURA, 2012; LANKSHEAR e
KNOBEL, 2007). Nesse sentido, a produção de protótipos digitais de ensino
está sendo amparada, sob o ponto de vista teórico, na ideia de aprendizagem
ergódica (LEFFA; BEVILÁQUA, 2019), a qual exige uma postura ativa do
usuário, tendo em vista que ele deixa de ser um consumidor e passa a ser
protagonista do seu aprendizado e construtor de seus significados. Partindo
disso, frisa-se que o presente projeto se utiliza da ferramenta ELO (Ensino
de Línguas On-line) para a criação dos protótipos, uma vez que o ELO é um
sistema de autoria de materiais aberto e que possibilita a integração de recursos
tecnológicos para o desenvolvimento de materiais didáticos digitais. Diante
do exposto, pontua-se que a metodologia do projeto contempla três fases, a
saber: estudo dos arcabouços teóricos supramencionados; implementação dos
protótipos por meio da ferramenta ELO; validação dos protótipos a partir dos
usuários cadastrados na ferramenta. Destarte, menciona-se que, atualmente, o
projeto se encontra na fase de criação dos protótipos. Quanto a isso, pudemos
perceber que os protótipos desenvolvidos com base na perspectiva ergódica
permitem o desenvolvimento de uma postura ativa do usuário, a qual é
compatível com o novo ethos dos novos letramentos.
PALAVRAS-CHAVE: Protótipos Digitais de Ensino; Multiletramentos;
Aprendizagem Ergódica.

ABSTRACT: The present proposal proposes to share the current results of


the Scientific Initiation (CI) project entitled “Digital Prototypes Allied to

491
Portuguese Language Teaching Under the Perspective of Multiliteracies”,
developed together with the Letters course, at the Federal University of Mato
Grosso do Sul . Therefore, it proposes to produce digital prototypes aimed
at the teaching of languages, based on the assumptions of the Pedagogy of
Multiliteracies (COPE AND KALANTZIS, 2000; 2009, ROJO, 2013;
2015), which is related to the studies of the new ( multi)literacies (ROJO
and MOURA, 2012; LANKSHEAR and KNOBEL, 2007). In this sense, the
production of digital teaching prototypes is being supported, from a theoretical
point of view, on the idea of ergodic learning (LEFFA; BEVILÁQUA, 2019),
which requires an active posture from the user, given that he ceases to being a
consumer and becomes the protagonist of their learning and builder of their
meanings. Based on this, it is emphasized that the present project uses the
ELO (Online Language Teaching) tool for the creation of prototypes, since
ELO is an open material authoring system that enables the integration of
technological resources. for the development of digital teaching materials. In
view of the above, it is pointed out that the project methodology includes
three phases, namely: study of the aforementioned theoretical frameworks;
implementation of prototypes through the ELO tool; validation of prototypes
from users registered in the tool. Thus, it is mentioned that, currently, the
project is in the prototype creation phase. In this regard, we could see that the
prototypes developed based on the ergodic perspective allow the development
of an active posture of the user, which is compatible with the new ethos of the
new literacies.
KEYWORDS: Digital Teaching Prototypes; Multiliteracies; Ergodic Learning.

Introdução
A presente pesquisa apresenta os resultados atuais do projeto de
Iniciação Científica (IC), denominado “Protótipos Digitais Aliados ao
Ensino de Língua Portuguesa Sob a Perspectiva dos Multiletramentos”,
o qual é desenvolvido no curso de Letras, da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul. Originalmente, o projeto possui o intuito de
produzir protótipos digitais para o ensino de línguas, os quais estejam
ancorados no paradigma da aprendizagem ergódica e nos pressupostos
dos multiletramentos e dos novos letramentos. Para tanto, cabe afirmar
que os protótipos foram elaborados no sistema de autoria (doravante,

492
SA) ELO, devido a algumas vantagens que a ferramenta apresenta, as
quais serão expostas em seção posterior.
O surgimento das Tecnologias Digitais da Informação e da
Comunicação (doravante, TDICs) trouxe mudanças nos processos de
letramentos, fato que implicou alterações, também, no comportamen-
to dos sujeitos com relação à linguagem. Nesse sentido, frisa-se que
as TDICs impuseram novas semioses como, por exemplo, áudios, ví-
deos, imagens etc, nas práticas de produção de sentidos, as quais in-
fluenciaram na linguagem. Outrossim, é cabível destacar que um dos
estudos desenvolvidos nessa conjuntura foram os Novos Estudos dos
Letramentos (STREET, 1984; 1995), os quais passaram a enxergar a
linguagem pelo viés histórico, político, cultural e social.
Por conseguinte, elenca-se que as tecnologias influenciaram na es-
fera educacional, especificamente nos desdobramentos da Linguística
Aplicada. Sendo assim, Lemke (2010) faz um apontamento acerca da
postura dos seres humanos da era digital, os quais ele diz que estão, cada
vez mais, midiáticos e que, portanto, a educação deve considerar tais
predicados. Posto isso, Leffa e Beviláqua (2019) trazem o conceito da
“aprendizagem ergódica”, a qual evidencia um comportamento ativo,
colaborativo e protagonista do indivíduo, o qual participa ativamente
do seu processo de aprendizado. Logo, é pertinente que os materiais de
ensino se adequem ao perfil exposto, com o fito de proporcionar um
aprendizado significativo aos estudantes.
Diante dos pontos destacados, Rojo (2013) faz uma conceituação
acerca dos “Protótipos Digitais de Ensino”, os quais são conceitua-
dos como sendo uma espécie de PDF navegável. Quanto a eles, Rojo
(2013) afirma que seriam uma alternativa para o trabalho do professor
e do aluno, sob o prisma dos multiletramentos e dos novos letramen-
tos, ambos ancorados no uso das TDICs. Todavia, a autora (2017a) faz
novas acepções à teoria, ao pontuar que os protótipos seriam pautados
na Aprendizagem Interativa e teriam as TDICs intrínsecas à sua cons-
tituição. Em 2017b, Rojo traz evoluções ao afirmar que os protótipos
teriam a ideia de design e redesign e, também, uma arquitetura vazada,

493
o que permite ao professor e aluno realizar colaborações e inserções.
Nesse cenário, ao analisar a evolução teórica das propostas de Rojo
(2013, 2017a, 2017b), cabe problematizar a ideia de que um Protótipo
Digital de Ensino seria, apenas, um PDF navegável, haja vista que os
compreendemos, aqui, como alternativas potencializadoras para a pro-
dução de materiais ergódicos.
Ademais, destaca-se que as TDICs corroboraram para a criação de
ferramentas, as quais são consideradas meios para a criação eficiente de
materiais didáticos digitais interativos como, por exemplo, os protóti-
pos. Nesse âmbito, os SA configuram-se como instrumentos potencia-
lizadores para um aprendizado sob a ótica digital (LEFFA, 2006). Nessa
perspectiva, um SA é um sistema que permite a produção, operacio-
nalização, interação e reutilização de materiais didáticos em contexto
digital. Assim, neste artigo, defendemos a ideia de que um SA pode
ser considerado como um suporte para o uso e produção de protótipos
digitais ergódicos.
Para fins de análise, optamos, nesta pesquisa, por utilizar o ELO
como objeto de estudo dos SA, dado a algumas características vanta-
josas, as quais serão expostas posteriormente. Destarte, interessa-nos
evidenciar que os protótipos digitais desenvolvidos no ELO podem
ser considerados ergódicos, além de estarem presentes nas presunções
dos novos letramentos. Sob o ponto de vista retórico, o presente artigo
apresenta as as seguintes seções: a relação dos letramentos, multiletra-
mentos e dos novos letramentos; conceituação dos protótipos digitais e
sua conexão com a aprendizagem ergódica; conhecimentos acerca dos
sistemas autorais e uma dedicada a análise de um protótipo desenvol-
vido, por nós, no ELO, a fim de embasar, de modo prático, as teorias
exploradas nesta pesquisa; por fim, traçaremos considerações finais a
respeito da pesquisa.

Letramentos, multiletramentos e novos letramentos


O termo “Letramento” foi conceituado no Brasil, primeiramente,
por Mary Kato, em 1984, a qual o caracterizava como um grupo de

494
práticas que possuíam a escrita como mediadora (KLEIMAN, 1991).
Nessa conjuntura, Street (1984; 1995) traz uma nova dimensão dos
estudos dos letramentos, a qual foi cunhada como “Novos Estudos do
Letramento” (New Literacy Studies, doravante NEL). Dessa forma,
Street enxergava os letramentos como práticas de cunho ideológico,
isto é, não havia o olhar, meramente técnico para o termo, visto que,
para o autor, eles não seriam habilidades neutras. Street considerava os
Letramentos em sentido sociocultural, no qual as atividades de escrita e
de leitura fazem parte de um contexto social, cultural, político e econô-
mico. Assim, Street (2003) diz que:

104
os NEL representam uma nova tradição ao abordar a natureza
do letramento, na qual há menos foco na aquisição de habili-
dades, como é recorrente nas abordagens tradicionais, e mais
ênfase no que significa pensar em letramento como prática so-
cial. Isso acarreta o reconhecimento de múltiplos letramentos,
que variam de acordo com o tempo e o espaço, mas também
estão atrelados a relações de poder. NEL, portanto, não toma
nada como óbvio a respeito do letramento e das práticas sociais
com as quais se relaciona, mas problematiza o que é considera-
do letramento em qualquer tempo e espaço e questiona quais
letramentos são dominantes e quais são marginalizados ou de
resistência. (STREET, 2003, p. 77).

Em 1994, Street discorre sobre a necessidade do abandono da


visão tecnicista dos letramentos, o que ainda vigora em muitas esco-
las. Diante disso, para o autor, os letramentos devem ser vistos como

104
Tradução nossa do original: “What has come to be termed the ‘New Literacy
Studies’ (NLS) (Gee, 1991; Street, 1996) represents a new tradition in conside-
ring the nature of literacy, focusing not so much on acquisition of skills, as in
dominant approaches, but rather on what it means to think of literacy as a social
practice (Street, 1985). This entails the recognition of multiple literacies, varying
according to time and space, but also contested in relations of power. NLS, then,
takes nothing for granted with respect to literacy and the social practices with
which it becomes associated, problematizing what counts as literacy at any time
and place and asking ‘whose literacies’ are dominant and whose are marginalized
or resistant.” (STREET, 2003, p. 77).

495
práticas sociais situadas, tendo em vista que existem diversos modos de
contextualizar os significados de ler e escrever nas esferas sociais. Assim
sendo, Street (2006, p. 466) frisa que “é enganoso pensar em uma coi-
sa única e compacta chamada letramento”, dadas as distintas práticas
sociais e épocas. À vista disso, Street disserta sobre sua preferência pelo
“modelo ideológico de letramento”, o qual considera a pluralidade dos
letramentos, da mesma maneira que “o significado e os usos das práticas
de letramento estão relacionados com contextos culturais específicos e
que essas práticas estão sempre associadas com relações de poder e ide-
ologia” (STREET, 2006, p. 466).
Dadas às questões citadas, é fundamental destacar que a emergên-
cia das TDICs exerce influência nas práticas sociais e nos letramentos.
Nesse sentido, um grupo de pesquisadores dos estudos da linguagem,
conhecido como “Grupo Nova Londres”, cunhou o termo “multiletra-
mentos” para contemplar a multissemiose de textos em circulação as
culturas múltiplas, presentes no mundo globalizado. Nesse contexto,
frente à multiplicidade de multimodalidade, é coerente pontuar que a
sociedade hodierna contém um cenário comunicativo, no qual diver-
sas modalidades de linguagem materializam-se, de modo a expandir a
significação dos enunciados (LEMKE, 2011). Logo, os textos multi-
modais estão, gradualmente, ganhando mais espaço, se comparados à
cultura do grafocentrismo.
Por conseguinte, destaca-se que os multiletramentos possuem re-
lação, também, com a multiplicidade cultural, a qual está presente em
diversas linguagens e em momentos específicos. Diante disso, Cope e
Kalantzis (2006, p. 166) frisam acerca da crescente variedade de “lin-
guagens sociais” (GEE, 1996), uma vez que, para eles, a propagação
das multiplicidades culturais e de linguagem segue a reestruturação dos
domínios do trabalho, da vida social e da cidadania, os quais integram
a vida humana (KALANTZIS; COPE, 2006 [2000]). Assim, Cope e
Kalantzis evidenciam que uma educação linguística contemporânea
deve levar em consideração as multiplicidades impostas pelos multile-
tramentos, bem como a reestruturação dos âmbitos da vida humana, os
quais foram supracitados.

496
As TDICs criaram, além da reestruturação dos campos da vida hu-
mana, uma nova configuração no relacionamento entre os cidadãos e as
instituições. A respeito disso, Cope e Kalantzis (2009) afirmam que a
relação Estado-cidadão (top-down) está, paulatinamente, sendo substi-
tuída por uma relação, na qual os sujeitos exercem papel ativo, ou seja,
não atuando, apenas, como consumidores, mas como produtores de
seus próprios sentidos. Portanto, os autores pontuam que , dada à me-
nor influência do Estado, há a emergência por dispositivos que se auto-
governam e, nessa perspectiva, elenca-se a internet, a qual expande pos-
sibilidades para que os usuários selecionem informações, assim como
criem e compartilhem diversos conteúdos. Logo, Cope e Kalantzis ex-
planam sobre as novas gerações e suas relações de autonomia:

105
Eles [novas gerações] buscam ser atores em vez de audiência,
jogadores em vez de espectadores [...]. Não contentes com o
rádio, essas crianças criam suas próprias playlists em seus iPods.
Não contentes com a televisão tradicional, eles leem suas narra-
tivas por DVDs e vídeos via internet-stream, variando na pro-
fundidade dessa leitura (o filme, o documentário a respeito do
making-of do filme) [...]. Não contentes com uma visão única
da transmissão de jogos esportivos pela televisão aberta, eles es-
colhem seus próprios ângulos, replays e análises estatísticas na
televisão interativa. (COPE; KALANTZIS, 2009, p. 173).

Nesse ínterim, é relevante traçar comentários acerca da cibercultura


(LEMOS, 2002, p. 08), o qual é definido como “as relações entre as tec-
nologias informacionais de comunicação e a cultura, emergentes a par-
tir da convergência informática/telecomunicação na década de 1970”.
105
Tradução nossa do original: “They are content with being no less than actors
rather than audiences, players rather than spectators, agents rather than voyeurs
and users rather than readers of narrative. Not content with programmed radio,
these children build their own playlists on their iPods. Not content with pro-
grammed television, they read the narratives on DVDs and Internet-streamed
video at varying depth (the movie, the documentary about the making of the
movie) and dip into “chapters” at will. Not content with the singular vision of
sports telecasting on mass television, they choose their own angles, replays and
statistical analyses on interactive digital TV.”

497
Dessa maneira, Lemos (2002) diz que um dos princípios norteadores
da cibercultura é a remixagem, haja vista que ela permite que qualquer
indivíduo crie informações veiculadas na internet, em distintos gêneros
discursivos e em diferentes modalidades. Destarte, é perceptível que
esse processo está de acordo com o ser humano ativo, o qual é defendi-
do por Cope e Kalantzis (2006).
Outrossim, é primordial trazer a concepção dos Novos Letramentos
(Lankshear e Knobel, 2007), o qual difere dos multiletramentos. Nesse
viés, afirma-se que, enquanto os multiletramentos são baseados na
multiculturalidade e na multissemiose, os novos letramentos, além de
pautar esses dois conceitos, também evocam a presença das TDICs
em sua constituição. Em suma, ressalta-se que nem toda prática de
multiletramentos pode ser relacionada com um novo letramento.
Com isso, salientamos que esta pesquisa utiliza a teoria dos novos le-
tramentos (STREET e KNOBEL, 2007), tendo em vista que os pro-
tótipos desenvolvidos no ELO estão, inerentemente, relacionados às
TDICs, dado que sua operacionalização está condicionada ao uso de
tais ferramentas.

Protótipos digitais ergódicos


Em primeiro plano, é necessário mencionar que o termo “ergódico”
foi cunhado, inicialmente, por Aarseth (1997), em sua obra Cybertext:
perspectives on ergodic literature. Nesse sentido, tal conceito possui re-
lação com um aprendiz e os recursos utilizados em sua aprendizagem.
Dessa forma, desde o início da escrita, o texto impresso tem sido o meio
principal para a aprendizagem, seja impresso em tábuas, como era em,
aproximadamente, 3000 a.C., seja em papel, como é atualmente. Posto
isso, destaca-se que o texto impresso possui uma rigidez, a qual não
permite alterações em seu conteúdo, tampouco correções, atualizações,
adequações e coparticipações entre os pares. Assim sendo, ao analisar a
realidade multimodal e dos novos letramentos, nota-se que uma apren-
dizagem que toma o papel impresso como central não atende às expec-
tativas de um público marcado pelo digital e pelo protagonismo.

498
Em vários momentos, acreditou-se que existiam várias maneiras de
aprender como, por exemplo, um ensino expositivo, no qual o aluno
era um agente passivo, até um ensino ativo, no qual o aluno é mar-
cado por ser um estudante, sendo objeto do verbo aprender (LEFFA;
BEVILÁQUA, 2019). Nesse cenário, pontua-se que a aprendizagem
ergódica considera o estudante em seu processo, visto que exige uma
postura ativa para sua operacionalização. Portanto, a aprendizagem er-
gódica é um conhecimento construído por pessoas e objetos, envol-
vendo as seguintes teorias: 1) pós-humanismo (PENNYCOOK, 2017);
2) agência distribuída (LATOUR, 1988; RAMMERT, 2008); 3) rea-
lidade aumentada (MARTÍN-GUTIÉRREZ et al, 2015) a realidade
aumentada.
Em seguimento, destaca-se que as telas possuem a característica
de serem muito mais voláteis, pois permitem diversas alterações em
seus conteúdos, diferentemente do papel impresso, o qual é estanque
(LEFFA, BEVILÁQUA, 2019). Nessa conjuntura, é cabível mencionar
que o ambiente digital possui, também, espaços destinados ao apren-
dizado de línguas, os quais contêm a presença de recursos e conteúdos
digitais e interativos. Quanto a isso, elenca-se que o ELO, por exem-
plo, configura-se como uma ferramenta presente em ambiente digital
interativo, uma vez que permite que os usuários corrijam atividades,
colaborem, modifiquem conteúdos, forneçam feedback, além de exigir
uma postura ativa, frente à sua dinâmica etc.
Analisando a ferramenta citada e outras existentes, pontua-se o
conceito de Protótipos Digitais de Ensino, estabelecido, inicialmente,
por Rojo (2013), o qual indica que protótipos seriam materiais didá-
ticos navegáveis e interativos, disponibilizados de forma aberta e co-
laborativa, sob a perspectiva dos multiletramentos. Desse modo, os
protótipos digitais de ensino “seriam um “esqueleto” de sequência
didática (SD) a ser “encarnado” ou preenchido pelo professor”
(ROJO, 2013a, p. 193). Nessa instância, Rojo (2017a) faz adições à
teoria, ao frisar que os protótipos estão ancorados no Paradigma da
Aprendizagem Interativa e no uso efetivo das TDICs, de forma que o
professor não ocupa mais função central no processo de aprendizagem,

499
ou seja, o aluno se comporta como um coautor. Ademais, em 2017a, a
autora afirma que os protótipos motivam “um trabalho digital aberto,
investigativo e colaborativo” (ROJO, 2017a, p. 18) para os alunos e
professores. Logo, destaca que:

[...] um protótipo, em resumo, é um material navegável e inte-


rativo como explicado acima, mas com um discurso autoral/
professoral que conduza os alunos a um trabalho digital
aberto, investigativo e colaborativo, mediado pelo professor,
e que abra a esse professor possibilidades de escolha de acer-
vos alternativos ao acervo principal da proposta didática, de
maneira a poder acompanhar o trabalho colaborativo dos
alunos. (ROJO, 2017a, p. 18).

No entanto, em 2017b, Rojo traz novas reestruturações da teoria,


as quais nos inquietam ao pensar na relação da aprendizagem ergó-
dica. Nessa nova perspectiva, a autora afirma que os protótipos pos-
suem uma arquitetura vazada, sendo marcados pela Pedagogia dos
Multiletramentos (ROJO; MOURA, 2012). Além disso, ela explicita
que tais materiais seriam marcados pelo conceito de design e redesign,
dado que os professores e alunos poderiam realizar alterações no conte-
údo dos materiais. Em suma, Rojo (2017b, p. 209) aponta que

Para ajudar a viabilizar um web currículo e para apoiar e formar


professores nesse contexto, defendemos, neste ensaio, que um
instrumento interessante são os Protótipos de Ensino: materiais
digitais navegáveis (Ebooks, PDF navegáveis) de apoio ao ensi-
no, que combinam letramentos da letra e novos multiletramen-
tos em projetos interdisciplinares. São espécies de sequências
didáticas para os multiletramentos e novos letramentos, mas
com uma arquitetônica vazada e não preenchidas completa-
mente com atividades planejadas previamente pelo autor, sem
conhecer o contexto de ensino. São sempre acompanhadas de
tutoriais com explicações sobre os princípios de funcionamento
de ferramentas e textos em gêneros digitais, para que sirvam
como elementos catalisadores do processo de autoria docente e
discente (por isso, protótipos).

500
Diante da postulação, percebe-se que a autora destaca que os pro-
tótipos seriam marcados pela colaboratividade, além do uso substancial
das TDICs. Todavia, a definição de protótipo como um PDF navegável
é passível de problematização, pois esse pressuposto assemelha-se à ideia
do impresso, o qual é estático e não exige envolvimento do sujeito.
Nisso, ressalta-se que as contribuições dos estudos acerca da aprendiza-
gem ergódica para os protótipos digitais oferecem um quadro promis-
sor para a criação de novas inteligibilidades a respeito dos materiais de
ensino de língua na contemporaneidade. Logo, discorreremos, a seguir,
sobre os Sistemas Autorais de Materiais Didáticos, os quais entendemos
como suporte para a produção de protótipos digitais ergódicos.

Sistemas autorais de materiais didáticos: ELO


Com a proliferação das TDICs, hodiernamente, inúmeras ferra-
mentas têm sido desenvolvidas, com o intuito de contribuir com o uso
das tecnologias na educação. Nesse sentido, os Sistemas Autorais de
Materiais Didáticos configuram-se como um dos instrumentos poten-
cializadores para a criação de materiais didáticos digitais e interativos.
Isso posto, nesta seção, nos deteremos à análise do SA ELO - Ensino de
Línguas106 On-line, como suporte para a criação de protótipos digitais,
os quais entendemos como ergódicos.
Preliminarmente, Leffa (2006, p. 190) conceitua os SA como “um
programa de computador usado para a produção de arquivos digitais,
geralmente incluindo texto escrito, imagem, som e vídeo”. Sendo assim,
um SA dispõe de espaços para que os professores desenvolvam materiais
de ensino, além de criar redes colaborativas para a troca de informações
e feedbacks sobre as atividades. Outrossim, os SA oferecem a oportuni-
dade de os alunos atuarem como autores, haja vista que o sistema dis-
ponibiliza funcionalidades iguais para alunos e professores, colocando
em evidência as presunções dos novos letramentos e dos “produsuários”
(BRUNS, 2009).

106
Disponível em: <https://elo.pro.br/cloud/>. Acesso em: 24 jul. 2022.

501
Acerca do ELO, objeto de análise deste artigo, justifica-se que a
escolha por ele se deve a algumas vantagens, dentre elas: tutoriais de-
talhados para orientação dos usuários; bom resultado final; interface
visual agradável; auxílios personalizados ao usuário e várias opções de
mídia para a criação de conteúdos. Além disso, destaca-se que tal fer-
ramenta é gratuita, contém um banco de dados inerente à conta e é
colaborativa.
Por conseguinte, pontua-se que o ELO possui três opções de aces-
so, cada uma com suas especificidades: estudante, professor e visitante.
Assim, cabe mencionar que o ELO possibilita a criação, adaptação, re-
elaboração e edição de atividades diversas a respeito de conteúdos di-
versos. Ademais, cumpre destacar que o ELO transcende a noção de
SA, pois permite o compartilhamento, a (co)criação em rede e o ar-
mazenamento das atividades criadas, as quais são licenciadas de modo
automático, por intermédio da licença Creative Commons BY – NC,
permitindo, com isso, a adaptação e uso dos conteúdos, sem fins co-
merciais, mas com respeito aos créditos autorais.
O ELO disponibiliza, a seus usuários, nove módulos para criação
de atividades interativas, a saber: memória, eclipse, texto, organi-
zador, sequência, cloze, quiz, vídeo e composer. Diante dos pontos
elencados, o ELO ainda oferece feedback às atividades desenvolvidas,
o que é um recurso interessante, dada a interação e apoio pedagógico
entre professor e aluno. Nesse quadro, pondera-se que o ELO possui
três tipos de feedback: o feedback genérico, que responde apenas se
o exercício está certo ou errado; o situado, que sugere comentários
sobre a atividade, buscando mostrar os erros ou acertos do aluno e
o estratégico, que sugere estratégias de aprendizagem de modo in-
dutivo, ou seja, sem apontar onde está o erro ou acerto, apenas exi-
bindo possíveis caminhos para chegar a tal resultado. Com o fito de
demonstrar o ELO, a seguir, será exibida uma imagem da página
inicial do SA:

502
Figura 1: Apresentação do ELO.

Fonte: <https://elo.pro.br/cloud/>.

Perante os pontos destacados, é pertinente afirmar que os SA se


aproximam do prisma dos novos letramentos, visto que suscitam o uso
das TDICs em seu funcionamento. Para mais, elenca-se que os SA, so-
bretudo o ELO, possibilitam a criação de protótipos digitais, os quais
transcendem à noção de um simples PDF navegável, uma vez que os
usuários atuam de forma ativa na construção do material. Dessa manei-
ra, o ELO, como visto, contém diversas alternativas para a construção
dos materiais, o que evidencia a possibilidade de elaborar protótipos
digitais colaborativos, multimodais e multimidiáticos. Destarte, é notá-
vel que o funcionamento do ELO solicita uma postura ativa, por parte,
tanto do professor, quanto do aluno, o que implica, portanto, o concei-
to da aprendizagem ergódica, dado que o processo de aprendizado não
ocorre de maneira estanque.

Protótipo desenvolvido no ELO


O ELO, como visto, é uma SA que possibilita a criação de protó-
tipos digitais, sob a perspectiva da aprendizagem ergódica e dos novos
letramentos. Com o fito de analisar tais proposições, a seguir, será exibi-
do um protótipo desenvolvido, por nós, no ELO, cujo nome é “Figuras
de Linguagem da Língua Portuguesa”. Primeiramente, destaca-se que a

503
atividade supramencionada é classificada nas seguintes categorizações:
Língua ou área - Língua Portuguesa; Faixa Etária - Jovens; Nível de
Dificuldade - Médio. Outrossim, salienta-se que a atividade possui seis
módulos, os quais foram construídos por meio dos recursos disponí-
veis na ferramenta, especificamente: hipertexto, vídeo, memória, quiz e
cloze. É oportuno frisar que as atividades no ELO podem receber fee-
dbacks e avaliações entre os usuários, fato que coloca a colaboratividade
como característica intrínseca ao SA em voga.
Ao navegar pela atividade, são apresentadas instruções iniciais,
as quais são postadas pelo autor e, após isso, iniciam-se os módulos.
Como citado, o primeiro corresponde a uma atividade com recurso de
hipertexto. Neste módulo, esse recurso foi utilizado, a fim de fazer con-
textualizações teóricas a respeito do assunto “Figuras de Linguagem”.
Salienta-se que o ELO possui um editor que possibilita a escrita de
textos com diversas opções de fontes e estilo, assim como a inserção de
imagens, vídeos, links entre outras mídias. Adiante, segue uma imagem
do módulo descrito:

Figura 2 - Módulo Hipertexto.

Fonte: Arquivo Pessoal (2022).

Na imagem anterior, é possível observar que o menu à esquerda


possui os módulos da atividade e o menu inferior à direita contém op-
ções de compartilhamento, informações sobre o autor, chat e dados
acerca do ELO, aumentando a interatividade da ferramenta. Acerca do

504
módulo hipertexto, reconhecemos que não há tanta imersão do usuá-
rio, haja vista que é um módulo de caráter mais teórico e introdutório.
Entretanto, nos módulos posteriores, o usuário necessita participar ati-
vamente da dinâmica da atividade, visto que sem essa participação, não
é possível concluir a atividade. Para fins demonstrativos e por questão
de espaço, selecionamos o módulo “jogo da memória”, denominado
“Vamos exercitar um pouco mais sobre figuras de linguagem”, o qual
exige que o usuário jogue para que a atividade seja executada e conclu-
ída. A seguir, exibimos uma imagem do módulo citado:

Figura 3 - Módulo Memória.

Fonte: Arquivo Pessoal (2022).

Sobre o módulo memória, pontua-se que ele se assemelha a um


jogo, no qual o usuário deve relacionar pares, com a finalidade de obter
as respostas corretas. Ou seja, nota-se que é uma atividade que exige en-
volvimento do indivíduo, ao contrário do hipertexto, o qual não requer
uma troca com o usuário. Por conseguinte, menciona-se que o módulo
“cloze” e “quiz” também suscitam que o sujeito entre com respostas para
que a atividade ocorra. Além disso, afirma-se que o ELO permite que
todo usuário cadastrado na plataforma realize colaborações e alterações
nas atividades, além de fornecer, ao autor, comentários sobre a atividade.
Destarte, verifica-se que a ideia de protótipos digitais ergódicos
é válida, tendo em vista que o ELO permite a criação de protótipos

505
colaborativos e interativos. Ademais, as TDICs são parte constituinte
da ferramenta, fato que coloca os novos letramentos em destaque, dado
que eles exigem a presença das tecnologias em sua execução. Portanto,
é coerente afirmar que a ideia de protótipos digitais como sendo PDFs
navegáveis não é condizente com os materiais produzidos em SAs, os
quais são, consideravelmente, participativos e colaborativos. Logo, des-
taca-se que o ELO configura-se como um suporte para o desenvolvi-
mento de protótipos digitais, sob a perspectiva da aprendizagem ergó-
dica e dos novos letramentos.
Para tanto, constata-se que a ideia de protótipos digitais ergódicos é
válida, uma vez que o ELO permite a criação de protótipos, os quais po-
dem ser interativos e colaborativos. Além disso, as TDICs são inerentes
à ferramenta, o que coloca os novos letramentos em destaque, dado que
eles exigem a presença das tecnologias em seu funcionamento. Assim,
afirma-se que a ideia de protótipos digitais como PDFs navegáveis não
supre a proliferação de protótipos produzidos em SAs altamente parti-
cipativos e colaborativo, logo, frisa-se que o ELO se configura como um
suporte para a elaboração de protótipos digitais ergódicos, pautados nos
processos dos novos letramentos.

Considerações finais
Após a conclusão deste trabalho, é relevante mencionar que os
novos letramentos estão, gradativamente, mais presentes na sociedade
contemporânea, dado o uso mais acentuado das TDICs nas esferas co-
tidianas. Nesse contexto, a educação linguística deve atentar-se a tais
mudanças, com o propósito de pensar e criar novas implementações,
ações e políticas que sejam condizentes com o perfil da sociedade atual.
Para tanto, é necessário que os educadores e pesquisadores pensem em
materiais didáticos para o ensino de línguas, os quais atendam às expec-
tativas de um público, cada vez mais, midiático e protagonista de sua
própria aprendizagem.
Por conseguinte, conclui-se que, a partir da realização desta pesqui-
sa, os novos letramentos impulsionam um comportamento mais ativo
nos indivíduos, o que pode ser observado por meio da aprendizagem

506
ergódica, sobretudo na relação de envolvimento das pessoas com o ob-
jeto de ensino. Dessa forma, cita-se que essa aprendizagem exige que
o aluno seja um estudante, ou seja, ativo e protagonista, não somente
passivo. Depreende-se, portanto, que essa aprendizagem deve ser levada
em consideração nas elaborações de materiais didáticos, bem como na
preparação de atividades e aulas, com o fito de que sejam significativas
aos estudantes. Posto isso, concluímos que os SAs, especificamente o
ELO, potencializam a produção de materiais didáticos ergódicos.
A respeito dos protótipos digitais sob a perspectiva da aprendiza-
gem ergódica, produzidos no ELO, concluímos que eles são alternativas
válidas para a viabilização de um ensino de linguagens que contemple
os novos letramentos, além de serem formas coerentes para a aplicação
da aprendizagem ergódica, visto que exigem o uso efetivo das TDICs
e são colaborativos e ativos. À vista disso, foi possível perceber que os
protótipos não são, apenas, PDFs navegáveis, haja vista que transcen-
dem tal ideia, como pode ser observado por meio do ELO. Para ta,
entendemos que os SAs são suportes efetivos para a operacionalização
de materiais didáticos digitais, interativos e ergódicos.
Portanto, com esta pesquisa, concluímos que a educação linguística
deve potencializar as ferramentas digitais, disponíveis na web, para aten-
der aos interesses e características de um grupo de estudantes midiáticos
e protagonistas. Assim, utilizar SAs, como o ELO, para a produção de
protótipos digitais de ensino é uma maneira bastante compatível para a
execução da aprendizagem ergódica e dos novos letramentos. Em suma,
conclui-se que os protótipos desenvolvidos no ELO são materiais in-
terativos, tecnológicos, ergódicos e colaborativos, os quais devem ser,
paulatinamente, implementados no ensino de línguas na escola.

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509
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

A PROPOSTA DE INTERVENÇÃO SOCIAL NO


GÊNERO REDAÇÃO DO ENEM

Filipe Emanuel da Silva Henriques (UFJF)


Adilson Ribeiro de Oliveira (IFMG)
Denise Giarola Maia (IFMG)

RESUMO: Inserido em uma pesquisa mais ampla denominada “Análise de


redações nota mil do Enem: constatações, apontamentos e perspectivas”,
este trabalho busca investigar a chamada “proposta de intervenção social” na
redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), tendo em vista que
este é o maior mecanismo de acesso ao ensino superior no Brasil atualmente.
O objetivo é analisar as variações que a demonstração dessa competência vem
sofrendo ao longo dos anos, procurando identificar e interpretar recorrências
e transformações relacionadas aos aspectos considerados no processo avaliativo
e, ao fim, construir um panorama que permita uma melhor compreensão
do gênero e seus impactos no ensino-aprendizagem. Fundamentada em
aportes teóricos da Linguística Textual e dos documentos oficiais que regem
a realização do Enem e a avaliação da redação, por meio de uma abordagem
quali-quantitativa, descritiva e interpretativa, a pesquisa se debruça sobre um
corpus composto por 38 exemplares de redações nota mil das edições de 2013 a
2018, publicadas nas Cartilhas do Participante disponibilizadas pelo Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Os
resultados indiciam uma variação no tratamento dado à proposta de intervenção
ao longo dos anos quando se comparam aspectos tais como o comando feito
na proposta de redação para a elaboração da proposta de intervenção social
e os elementos constitutivos da sua estrutura organizacional (agente, ação,
modo/meio, efeito e detalhamento) e considerados em sua avaliação, o que
possivelmente tem impactos nas abordagens escolares da redação.
PALAVRAS-CHAVE: Enem; Redação do Enem; Proposta de Intervenção
Social.

Abstract: This work investigates the so-called “social intervention proposal”


in the essay of the National High School Examination (Enem), with a view
to that this is the largest access mechanism to higher education in Brazil
today. The objective is to analyze the variations that the demonstration of
this competence has suffered over the years, seeking to identify and interpret

510
recurrences and transformations related to the aspects considered in the
evaluation process and to build an overview that allows a better understanding
of the genre and its impacts in teaching-learning. Based on theoretical
contributions from Textual Linguistics and the official documents that govern
the Enem and essay evaluation, through a quali-quantitative, descriptive and
interpretative approach, the research focuses on a corpus composed of 38
copies of note essays thousand of the editions from 2013 to 2018, published
in the Participant Booklets made available by the Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). The results indicate
a variation in the treatment given to the intervention proposal over the years
when comparing aspects such as the command given in the drafting proposal
for the elaboration of the social intervention proposal and the constitutive
elements of its organizational structure (agent, action, mode/medium, effect
and detail) and considered in their evaluation, which possibly has impacts on
school approaches to writing.
KEYWORDS: Enem; Essay of Enem; Social Intervention Proposal.

Introdução: a compreensão da redação do ENEM – de onde


partimos?
O contexto educacional brasileiro apresentou uma guinada nos úl-
timos anos com a implementação do Enem (Exame Nacional do Ensino
Médio), que teve sua primeira edição em 1998 e se tornou o maior me-
canismo de avaliação da educação básica e de acesso ao ensino superior.
Nesse cenário, a redação exigida por esse exame ocupa um lugar central,
haja vista compor uma parte significativa da nota final atribuída aos es-
tudantes que se submetem ao exame ao final de sua escolaridade básica,
ou seja, ao final do ensino médio.
Compreender, portanto, os matizes que singularizam a redação do
Enem com o intuito de traçar um panorama do que é valorizado em
termos avaliativos nesse tipo de texto é uma aposta importante (e mes-
mo necessária) para encaminhamentos didático-pedagógicos no ensino
de Língua Portuguesa, mais especificamente de redação.
É nesse quadro que se insere a pesquisa apresentada neste artigo,
cujo foco é a chamada “proposta de intervenção social” (Competência

511
V da redação do Enem), um recorte de projeto mais amplo cujo objetivo
central é mapear, descrever e analisar recursos textuais caraterizadores
de competências exigidas na referida redação, com vistas à construção
de pistas que possam nortear estratégias e metodologias de ensino desse
tipo textual – um gênero, melhor dizendo, já que se consolidou como
prática social, ainda que “limitada” a uma avaliação de larga escala
como é o Enem.
Com base na Matriz de Referência do Enem, a competência V da
redação exige do participante a seguinte operação: “Elaborar propos-
ta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos
humanos.” (BRASIL, 2019, p.5)107, exigência que cumpre os Eixos
Cognitivos III e V da referida Matriz, quais sejam:

III. Enfrentar situações-problema (SP): selecionar, orga-


nizar, relacionar, interpretar dados e informações represen-
tados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar
situações-problema.
V. Elaborar propostas (EP): recorrer aos conhecimentos de-
senvolvidos na escola para elaboração de propostas de inter-
venção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e
considerando a diversidade sociocultural.

Tais Eixos Cognitivos abarcam as competências da redação do


Enem, que, desde a sua primeira edição, nunca teve alteração em
sua matriz de competências. Mas e na escrita? Será que houve altera-
ções e variações na escrita e na avaliação da competência V? Como o

107
As demais competências são (cf. BRASIL, 2002, p.14): I. Demonstrar domínio
da norma culta da língua escrita; II. Compreender a proposta de redação e apli-
car conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro
dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo; III. Selecionar, re-
lacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em
defesa de um ponto de vista; IV. Demonstrar conhecimento dos mecanismos
linguísticos necessários para a construção da argumentação. Na redação do refe-
rido exame, as competências são avaliadas em seis níveis de desempenho (0, 40,
80, 120, 160, 200 pontos).

512
participante, que obteve a nota máxima no exame, foi construindo a
sua Proposta de Intervenção Social? Será que essa Proposta era exigida
desde a primeira edição do Enem? A essas e outras perguntas, baseadas
nos argumentos supracitados - e considerando a dimensão do Exame
- este artigo busca responder, apresentando o mapeamento, a compre-
ensão, bem como a análise das variações que a Proposta de Intervenção
Social vem sofrendo ao longo dos tempos em exemplares de redações
avaliadas com a nota máxima e disponibilizadas pelo Inep (Instituto
Nacional de Estudos de Pesquisas Educacionais) nas Cartilhas do
Participante, observando-se a recorrência e a presença/ausência dos
elementos exigidos na Proposta de Intervenção Social (agente, ação,
modo/meio, efeito e detalhamento).

A Competência V do Enem e a Proposta de Intervenção Social


Tendo como base o que foi mencionado, o Exame Nacional do
Ensino Médio (Enem) foi criado com o objetivo de “avaliar o desem-
penho do estudante ao fim da escolaridade básica’’ (BRASIL, 2018).
Nesse cenário, ao se analisar a matriz de competências que é designa-
da à avaliação do participante, pode-se perceber que, em seu bojo, há
um leque de aspectos linguísticos, estruturais, textuais e discursivos que
compõem a nota final do participante.
Dando ênfase à competência V, que exige do participante a elabo-
ração de uma proposta de intervenção para o problema abordado, esta
passou por diversas modificações até chegar ao que hoje é denomina-
do Proposta de Intervenção Social. Na primeira edição do Enem, em
1998, na proposta de redação, cujo tema foi “Viver e Aprender”, so-
licitou-se ao participante que ele redigisse um texto dissertativo-argu-
mentativo, cujas ideias deveriam ser claras, coerentes e em conformi-
dade com a norma culta da língua, sem se render ao texto motivador.
Ademais, o participante deveria dar um título à sua redação (BRASIL,
1998). Portanto, nesta primeira edição, não foi solicitado ao parti-
cipante a elaboração de alguma proposta para o tema. Na edição de

513
1999, no entanto, o comando dado ao participante solicitava que ele
elaborasse uma proposta de ação social, além disso, o uso do título
do texto não apareceu na proposta de redação (BRASIL, 1999). A
edição do Enem 2001, por sua vez, apresentou outra mudança: o
respeito aos direitos humanos e a elaboração de propostas para
a solução do problema. (BRASIL, 2001). Com o passar dos anos,
novas mudanças foram sendo incluídas nas propostas de redação e, na
edição de 2012, o Enem trouxe uma nova nomenclatura: Proposta
de Intervenção Social (BRASIL, 2012). Logo, devido ao fato de a
proposta de redação trazer alguns comandos divergentes em cada
edição, faz-se necessário, neste artigo, mencionar a diferença entre
Proposta de Ação Social, utilizada em algumas edições, e Proposta
de Intervenção Social, presente na Matriz de Referência do Enem e
em alguns documentos oficiais, como as Cartilhas do Participante,
disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e os Manuais de Correção, tam-
bém disponibilizados pelo mesmo Instituto. Buscando no dicionário
Piberam a definição mais apropriada para intervenção é: “ato de in-
tervir; intermédio”. Por outro lado, buscando no referido dicionário,
a definição de ação é: “ato ou efeito de agir; movimento ou ativida-
de para obter determinado resultado; influência ou efeito sobre algo
ou alguém” (PIBERAM, 2020). Sendo assim, com as definições do
dicionário apropriadas para a proposta de redação, pode-se perceber
algumas diferenças: enquanto a Proposta de Ação Social solicitava
ao participante a ação para se chegar a algum resultado, a Proposta
de Intervenção Social admite o intermédio do participante, a in-
tervenção dele - e da sociedade - para a construção de uma proposta
detalhada, que envolva não só ele, mas o social como um todo. Na
imagem a seguir, representada por uma linha do tempo, podem ser
observados todos os dados elencados neste tópico, de forma resumida
acerca da variação da Proposta de Intervenção.

514
Figura 1 – Variações da Proposta de Intervenção Social

Fonte: Elaborado pelos autores.

Ao se analisar tudo o que foi mencionado até aqui, pode-se perce-


ber a variação que a Proposta de Intervenção Social trouxe nos docu-
mentos oficiais e no próprio comando utilizado na proposta de redação
do Enem. No entanto, não foi só este requisito obrigatório na redação
que foi sendo modificado. Uma outra mudança foi na proposta de in-
tervenção que respeitasse os direitos humanos, que “surgiu” na proposta
de redação da edição 2001 do Enem. Assim, o participante que desres-
peitasse os direitos humanos teria a sua redação considerada como zero,
tendo como base as Diretrizes para a Educação em Direitos Humanos.
No entanto, a partir da edição 2017, uma decisão do Tribunal Regional
Federal da 1ª Região (TRF-1) anulou um item do edital do Enem que
determinava a nota zero para o desrespeito aos direitos humanos no
Enem 2017. (G1, 2017). Portanto, a partir do referido ano,

deverão ser avaliadas no nível 0 da Competência V as redações


que desrespeitarem, na proposta de intervenção, de forma explí-
cita e deliberada, os direitos humanos afirmados na Constituição
da República Federativa do Brasil, seguindo as Diretrizes para
Educação em Direitos Humanos (Resolução nº 1, de 30 de
maio de 2012), a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a
Carta da ONU e a Declaração de Durban. (BRASIL, 2019, p. 7)

515
Na próxima seção tratar-se-á dos elementos que estão presentes na
proposta de intervenção e sua relação com as variações mencionadas ao
longo deste tópico.

Os elementos da proposta de intervenção social na redação do


Enem: discussões conceituais e percursos metodológicos
A metodologia utilizada nesta pesquisa é descritiva e tem aborda-
gem quali-quantitativa, pois, a partir dos dados quantitativos coletados,
por meio da análise de redações nota 1000 do Enem, pretende-se ela-
borar um panorama de estratégias textuais recorrentes nos textos ana-
lisados que sirva como alicerce para o desenvolvimento de estratégias,
de metodologias e de materiais de ensino. Trata-se de uma pesquisa do-
cumental que, conforme já anunciado, neste recorte aqui apresentado,
debruçou-se sobre uma amostra de textos composta por 38 redações, as
quais se encontram organizadas na Cartilha do Participante (BRASIL,
2016, 2017, 2018, 2019). Para se concretizar os objetivos traçados na
pesquisa, foram realizados os seguintes procedimentos: (1) estudo bi-
bliográfico amparado principalmente nos documentos orientadores da
sistemática avaliativa da redação do Enem; (2) captação de redações
nota 1000 divulgadas pelo Inep do período de interesse (2013 a 2018);
(3) mapeamento, interpretação e análise das recorrências observadas nas
propostas de intervenção das redações na consolidação da Competência
V, ou seja, da Proposta de Intervenção Social.108
Os elementos presentes na Proposta de Intervenção Social do
Enem são: ação, agente, modo/meio, efeito e detalhamento, os quais
permitem a ideia de concretude em uma proposta de intervenção de-
talhada, bem elaborada e ancorada na argumentação desenvolvida no

108
As Cartilhas do Participante do Enem “[...] apresentam dicas importantes para
produzir uma boa redação no dia do Exame. Além disso, trazem exemplos de
redações do Enem [...] que obtiveram nota máxima.” (BRASIL, 2019, p.3). As
Cartilhas do Participante são divididas em edições anuais: em 2016, com reda-
ções nota mil das edições 2015, 2014 e 2013 do Enem; em 2017, com redações
da edição 2016 do Enem; em 2018, com redações da edição 2017 do Enem; e
em 2019, com redações da edição 2019 do Enem.

516
texto (BRASIL, 2019). O elemento ação tem como foco a ação prática
demonstrada pelo participante como sendo necessária à resolução do
problema apresentado no tema proposto, enquanto o elemento agente
identifica o ator social apontado para executar a ação que se propõe. Já o
elemento modo/meio trata da maneira e os recursos pelos quais a ação
é realizada e o elemento efeito corresponde aos resultados pretendidos
ou alcançados pela ação proposta. Por fim, o elemento detalhamento,
em que são utilizadas informações adicionais sobre os outros elementos
já citados. (BRASIL, 2019).
A título de ilustração, pode-se observar a articulação desses elemen-
tos no seguinte exemplo:

Então, cabe ao Estado o papel de promover campanhas pu-


blicitárias que alertem e conscientizem a população sobre a
importância e sobre a informação dos produtos e serviços
contratados virtualmente, além de garantir a segurança dos
dados bancários e pessoais dos usuários através de políticas
que exijam dos sites informações claras sobre os sigilos dos
seus dados. Dessa forma, é inegável que a manipulação do
comportamento virtual da população será combatida sal-
vaguardando o direito ao lazer e ao entretenimento seguro
garantido pela Constituição Brasileira de 1988. (BRASIL,
2019, p. 38, grifo do original)

Assim sendo, observou-se, no exemplo acima, que o participante


utilizou todos os elementos necessários a uma proposta de intervenção
detalhada, com respeito aos direitos humanos, em que o agente foi o
“Estado”; a ação foi representada pelo trecho “garantir a segurança dos
dados bancários e pessoais dos usuários”; o modo/meio se encontra
no trecho “através de políticas que exijam dos sites informações claras
sobre o sigilo dos seus dados”; o efeito é “dessa forma, é inegável que
a manipulação do comportamento virtual da população será combatida”;
por fim, o detalhamento ocorreu no elemento efeito, no trecho “salva-
guardando o direito ao lazer e ao entretenimento seguro garantido pela
Constituição Brasileira de 1988”.

517
Análise e discussão de resultados: considerações acerca da
Proposta de Intervenção Social
Nesta seção, analisar-se-á, por meio dos dados extraídos das carti-
lhas do participante do Enem, a presença dos elementos da redação do
Enem ao longo dos anos 2013 a 2018. Além disso, busca-se mapear a
recorrência de tais elementos, com o número médio da sua recorrência,
a análise detalhada e específica de cada elemento, bem como a sua dis-
tribuição percentual.
No primeiro gráfico, a seguir, apresenta-se um panorama acerca do
uso do elemento ação nas redações nota 1000 do Enem.

Figura 2 – Presença do elemento “ação” na proposta de intervenção social

Fonte: Elaborado pelos autores

A partir da análise do gráfico acima, afirma-se que o elemento


“ação” está contido na proposta de intervenção social em 100% da
amostra de redações nota mil analisadas, desde 2013. Essa informação
extraída faz-se, absolutamente, esperada, quando lançamos um olhar de
entendimento e compreendemos que o elemento primordial de uma
medida a ser executada é a ação, tal qual o sol ocupa o centro do uni-
verso, no modelo heliocêntrico, de Copérnico. É cabível observar que a
“ação” é o componente que orienta a proposta e que, também, demons-
tra ativismo e engajamento social.

518
A seguir, o gráfico responsável pela concretização do mapeamento
do uso do elemento agente nas redações:

Figura 3. Presença do elemento “agente” na proposta de intervenção.

Fonte: Elaborado pelos autores

É indubitável que o “agente”, na proposta de intervenção social,


cumpre o papel de delimitar a persona, a entidade, a organização
responsável pela execução da(s) ação(ões) proposta(s) (BRASIL, 2019).
Nesse sentido, é um elemento que delimita e concede responsabilidade
social, econômica, política, cultural, educacional, científica às estruturas
materiais e técnicas que compõem a sociedade. Assim sendo, é possível
observar, no gráfico representado acima que apenas na edição do Enem
de 2013 existiam propostas que não abrangiam o elemento “agente” em
sua composição. As demais edições (2014, 2015, 2016, 2017 e 2018)
apresentaram, de forma absoluta, o “agente” como componente funda-
mental na proposta de intervenção social. Portanto, vale mencionar que
esta variação pode estar diretamente ligada às variações apresentadas
ao longo das edições anteriores acerca da proposta de intervenção que,
com o passar dos anos, foi sendo moldada até chegar aos dias atuais, em
que é exigido do participante a presença obrigatória de cinco elementos.

519
O agente, no contexto da Redação Enem, é um item que não se
caracteriza pela estaticidade e pela inflexibilidade, isto é, o seu emprego
pode ser estabelecido de forma diversa, flexível e fluida, de acordo com
o tema e com as necessidades argumentativas construídas ao longo do
projeto de texto. Sendo assim, torna-se essencial a estruturação de um
panorama gráfico que expresse, panoramicamente, quais são, quanti-
tativamente, os principais agentes recorridos nas redações nota 1000
entre o período de 2013 a 2018, conforme se apresenta nos gráficos
seguintes.

Figura 4. Percentual de agentes recorrentes nas


redações nota 1000 do Enem 2018.

Fonte: Elaborado pelos autores

O gráfico de setor, representado acima, contempla informações acer-


ca dos agentes empregados nas redações nota 1000 na edição do Enem
de 2018. Avalia-se, portanto, o protagonismo do Poder Legislativo, do
Ministério da Educação e das Instituições Escolares - que juntos abar-
cam e encontram-se fixados em 46,2% da amostra analisada.

520
Figura 5. Percentual de agentes recorrentes nas redações nota mil do Enem 2017.

Fonte: Elaborado pelos autores

Na edição do Enem de 2017, a partir da leitura do gráfico apresen-


tado na Figura 5, destaca-se que mais de 50% da cobertura da área é
de responsabilidade dos seguintes agentes: Estado (25%), Ministério da
Educação (20%), Escola (10%) e, por fim, Família (10%).

Figura 6. Percentual de agentes recorrentes nas redações nota 1000 do Enem de 2016.

Fonte: Elaborado pelos autores

521
O gráfico de setor representativo da edição do Enem de 2016, de-
certo, é o que mais se reveste em diversidade e em expressividade nu-
mérica, o que, possivelmente, endossa a ideia de que, nesse contexto
histórico/cronológico do Enem, existia a valorização quantitativa do
emprego de agentes nas propostas de intervenção social das redações, já
que a sua matriz foi sendo alterada ao longo dos tempos.

Figura 7. Percentual de agentes recorrentes nas redações nota 1000 do Enem 2015.

Fonte: Elaborado pelos autores

A edição do Enem de 2015 traz como recorrência principal/central


os agentes listados, de forma percentual decrescente, a seguir: Mídia
(23,1%) e Sociedade (15,4%).

Figura 8. Percentual de agentes recorrentes nas redações nota 1000 do Enem 2014.

Fonte: Elaborado pelos autores.

522
O gráfico da Figura 8 representa, quase de forma homogênea, o
uso dos agentes nas redações nota 1000 de 2014. Com exceção do
agente “Sociedade”, que abarca 33,3% da área, os demais: “Empresas
de Publicidade”, “Escola”, “Estado” e “Legislação Brasileira” atingem o
percentual máximo de 16,7%.

Figura 9. Percentual de agentes recorrentes nas


redações nota 1000 do Enem 2013.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Finalizando a seção de análise do componente “agente”, visuali-


zamos acima a divisão, na edição do Enem de 2013, que expressa que
50% da amostra apresenta o “Poder Público” como agente e 50%, o
“Governo Federal”. Vale ressaltar, aqui, que somente duas redações da
amostra apresentavam agente, por isso esse dado possa saltar aos olhos,
porém essa ressalva é necessária ser feita.
Dando continuidade às análises dos elementos presentes na
Proposta de Intervenção Social da redação do Enem, faz-se necessário
mencionar a presença do elemento “modo/meio” no corpus analisado.
Como já foi dito no capítulo anterior, esse mecanismo tem a função de
dar um viés ao modo como determinada ação será conduzida.

523
Figura 10. Presença do elemento “modo/meio”
nas propostas de intervenção social.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Como se observa na Figura 10, o elemento modo/meio está pre-


sente em todas as edições da amostra analisada, no entanto, nas edições
2013, 2015 e 2016, nem todas as propostas continham esse elemento,
porém, ao analisarmos a partir do ano 2016, há uma evolução na quan-
tidade dessas propostas, pois sua presença se deu em maior frequência.
Diante disso, é importante mencionar que esse elemento não se
apresenta de forma isolada na proposta de intervenção social das reda-
ções do Enem, sendo assim, outros elementos também se fazem pre-
sentes em uma proposta detalhada e bem elaborada. Por esses fatores,
o elemento efeito, como já citado, é utilizado como os resultados a
serem esperados em determinada proposta ou mesmo a conclusão dela.
A Figura 11, a seguir, apresenta a presença do elemento supracitado nas
propostas de intervenção:

524
Figura 11. Presença do elemento “efeito” nas propostas de intervenção social.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Com os dados apresentados na Figura 11, possível concluir que,


nas edições 2013, 2015 e 2016, com o corpus de 38 redações, divididas
em quatro cartilhas, algumas propostas de intervenção não continham
o elemento efeito. No entanto, nas edições 2014, 2017 e 2018, todas as
redações apresentaram o elemento efeito em seus textos.
Além da presença dos elementos já citados na Proposta de
Intervenção Social da redação do Enem, o detalhamento, como o pró-
prio nome diz, traz informações relevantes e detalha algum elemento
da proposta, ou seja, pode estar relacionado a algum elemento. Além
disso, “o detalhamento da ação, do agente e do modo/meio é variado,
podendo se apresentar na forma de uma exemplificação, explicação,
justificativa ou contextualização.” (BRASIL, 2019, p.18).
Assim, com base no corpus analisado, na edição 2018 os participan-
tes, em 49,2% da amostra, utilizaram o detalhamento tanto no modo/
meio quanto no efeito, ou seja, o detalhamento em uma proposta de
intervenção ocorreu nesses dois elementos. Além disso, 28,6% utili-
zaram o detalhamento tanto na ação quanto no modo/meio. E, em

525
14,3% da amostra, utilizaram o detalhamento no agente e no modo/
meio, respectivamente.
Na edição 2017, por sua vez, 35,7% da amostra consultada ficou
destinada ao detalhamento no efeito; 28,6% na ação; 14,3% tanto no
modo/meio quanto no efeito; e 7,1% foi destinado aos detalhamentos
dos elementos agente, modo/meio e ação/modo/meio.
A edição 2016 trouxe, como detalhamento, algumas variações,
pois, no corpus de redações nota mil analisadas, em 44,4% da amostra
não havia detalhamento, ou seja, os participantes não detalharam as
suas propostas de intervenção, ou ainda, não trouxeram informações
relevantes/complementares para enriquecer a proposta. Além disso,
33,3% detalharam o elemento ação, e 22,2% detalharam o elemento
efeito.
Na edição 2015, em 40% da amostra analisada não havia detalha-
mento e, em 20%, houve detalhamento na ação, no agente e no efeito,
respectivamente. Dando continuidade aos detalhamentos recorrentes
em cada edição da redação do Enem, em 2014, em 50% da amostra ha-
via o detalhamento na ação, 33,3% no efeito e 16,7% no agente. Por
fim, na edição 2013, em 40% da amostra analisada, o detalhamento
ocorreu na ação, no entanto, na mesma quantidade citada acima, não
houve a ocorrência do detalhamento nas propostas de intervenção e, em
20%, o detalhamento se deu no modo/meio.
O gráfico a seguir apresenta todos esses dados de forma conjunta,
representando a presença do detalhamento nas propostas de interven-
ção da redação do Enem e a sua ocorrência.

526
Figura 12. O elemento “detalhamento” nas redações do Enem de 2013 a 2018.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Diante da análise do gráfico apresentado na Figura 12 e conside-


rando os dados analisados em cada edição da redação do Enem, faz-se
necessário mencionar que o detalhamento se deu, em maior ocorrên-
cia, na ação, elemento imprescindível no contexto do Enem. Além dis-
so, pode-se perceber que a não ocorrência do detalhamento se deu nas
edições 2016, 2015 e 2013.

Considerações finais
Por meio desta pesquisa, com a análise de 38 redações divididas
em quatro cartilhas do participante, foi possível identificar as variações
que a redação do Enem passou ao longo dos anos, entre 2013 e 2018,
a começar pelo comando solicitado ao participante, que, nas primeiras
edições, não previa a “proposta de intervenção”, que depois passou a
ser denominada “proposta de ação social” e, atualmente, “proposta de
intervenção social”. Além disso, outras mudanças foram sendo observa-
das, como a inclusão do “respeito aos direitos humanos”.
A pesquisa se baseou nas redações que receberam nota máxima na
avaliação e foram publicadas na Cartilha do Participante da redação do
Enem das edições 2013 a 2018, analisando as propostas de intervenção
social, requisito importante para se obter a nota máxima no Exame.
Dito isso, a análise detalhada de cada elemento da proposta, seguida de

527
sua recorrência nas redações, foi importante para se tecer algumas con-
clusões. A primeira delas é que a proposta de intervenção social segue
alguns parâmetros para ser completa e detalhada e tais requisitos são
visíveis ao longo dos anos.
Os direitos humanos, quando delimitados enquanto prática edu-
cacional, pedagógica, metodológica constituinte do bojo da matriz de
avaliação da Redação do Enem, adquirem caracteres que extrapolam
a simples adequação legal a acordos e a documentos que prescrevem,
burocraticamente, políticas e programas sociais de garantia básica de
condições determinantes para o desenvolvimento cognitivo, educacio-
nal e cultural dos indivíduos. Há de considerar, a partir de uma lógica e
de uma leitura críticas do fenômeno, que o Enem, na redação, especial-
mente, concede ferramentas, para que naqueles que prestam o exame
sejam engendradas noções, comportamentos e posturas que refletem,
para além da teoria, na vivência plena e, principalmente, na prática do
que se entende por liberdade, dignidade e igualdade, expressões norte-
adores da existência da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Trata-se e aspectos que moldam o Enem e, progressivamente, endossam
a sua identidade e a sua relevância dentro do quadro educacional bra-
sileiro, como pode ser observado pelas variações que foram ocorrendo
ao longo dos anos em termos da presença e organização dos elementos
constituintes da Proposta de Intervenção Social, conforme ilustram os
dados investigado na pesquisa e analisados neste artigo.

Referências
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da competência V na redação do ENEM. In: SILVA, Leilane Ramos da; FREITAG,
Raquel Meister Ko. (Org.). Linguagem, interação e sociedade: diálogos sobre o
ENEM. João Pessoa (PB): Editora do CCTA, 2015, p. 97-108.

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Anísio Teixeira. Enem - Inep. Brasília, 2018. Disponível em: https://www.gov.br/inep/
pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/enem. Acesso em: 14 dez.
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528
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
Ministério da Educação. Documento Básico. Brasília, 2002. Disponível em: http://
portal.inep.gov.br/documents/186968/484421/ENEM+-+Exame+Nacional+do+Ensi
no+M%C3%A9dio+documento+b%C3%A1sico+2002/193b6522-cd52-4ed2-a30f-
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(Inep). Enem redações 2019: material de leitura. Módulo 07. Competência V.
Disponível em: http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/downloads/2020/
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BRASIL; Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep):


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BRASIL; Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep):


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Ministério da Educação. Enem 2001: Caderno de Questões. Brasília, 2001.

BRASIL; Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep):


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nem nota mil; entenda. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/enem/2017/
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TEIXEIRA, Wagner Barros. Redação ENEM: um olhar para os direitos humanos. In:
SANTOS-JUNIOR; DINIZ, Leandro Rodrigues Alves Diniz. Avaliação em Língua
Portuguesa. Em Aberto, Brasília, v. 32 n. 104, 2019. Disponível em: http://rbep.inep.
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unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 10 dez. 2020.

529
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

EXPERIÊNCIAS INSPIRADORAS DE ENSINO E


APRENDIZAGEM DE INGLÊS NA EDUCAÇÃO
BÁSICA

Gabriela da Cunha Barbosa Saldanha- UEMG

RESUMO: Pesquisas sobre problemas e insucessos do ensino-aprendizagem


de inglês em escolas regulares brasileiras têm sido recorrentes na literatura
(COELHO, 2005; PAIVA, 1997; MOITA LOPES, 1996, BARCELOS, 1995;
BARCELOS, 2007; MICCOLI 2010). Diante disso, o presente estudo buscou
evidenciar experiências e práticas inspiradoras de professores e estudantes de
inglês nesse contexto educacional de modo a contribuir para a desconstrução da
crença de que não se aprende inglês na escola. Foi realizado um estudo de caso
utilizando como instrumentos de geração de dados: questionários, entrevistas
e observações de aulas de professores que foram indicados como inspiradores
por seus ex-alunos. Os resultados das análises dos dados – realizadas de acordo
com os procedimentos adotados por Lamb e Wedell (2013 a), Miccoli e Lima
(2012) e Lieblich, Tuval-Mashiach e Zilber (1998) – revelaram a relação
estreita professor-aluno como o principal elemento promotor de experiências
inspiradoras de aprendizagem. As implicações desse estudo apontam para a
necessidade de proporcionar experiências significativas e inspiradoras para
estudantes de inglês em escolas regulares para que o paradigma da ineficiência
da aprendizagem de inglês nesse contexto possa ser desconstruído.
PALAVRAS-CHAVE: experiências; ensino inspirador; escola regular.

ABSTRACT: Research on English teaching-learning problems and failures in


Brazilian regular schools has been recurrent in the literature (COELHO, 2005;
PAIVA, 1997; MOITA LOPES, 1996, BARCELOS, 1995; BARCELOS,
2007; MICCOLI 2010). Therefore, the present study sought to highlight
inspiring experiences and practices of English teachers and students in this
educational context in order to contribute to the deconstruction of the belief
that English is not learned at school. A case study was carried out using as
data generation instruments: questionnaires, interviews and observations of
teachers’ classes who were indicated as inspiring by their former students. The
results of the data analysis – performed according to the procedures adopted
by Lamb and Wedell (2013 a), Miccoli and Lima (2012) and Lieblich, Tuval-
Mashiach and Zilber (1998) – revealed the close teacher-student relationship as

530
the main element promoting inspiring learning experiences. The implications
of this study point to the need to provide meaningful and inspiring experiences
for English students in regular schools so that the paradigm of inefficiency of
English learning in this context can be deconstructed.
KEY WORDS: experiences; inspiring teaching; regular school.

Introdução
O ensino e aprendizagem de língua inglesa em escolas regulares,
principalmente públicas, é marcado por histórias de desafios, frustra-
ções e insucessos. Essas histórias podem ser evidenciadas nos trabalhos
de vários autores (COELHO, 2005; PAIVA, 1997; MOITA LOPES,
1996; BARCELOS, 2006; BARCELOS, 2007) que identificaram esse
contexto como sendo marcado por crenças e discursos que reforçam
o paradigma da ineficiência do ensino e aprendizagem de inglês em
escolas.
Miccoli (2010) utiliza a expressão “inglês de colégio” (MICCOLI,
2010, p.177, grifo da autora) para se referir a um conhecimento res-
trito de inglês, longe de refletir aquele ensino que propicia ao aluno
uma aprendizagem mais ampla, envolvendo as quatro habilidades
linguísticas.
Barcelos (2006) assevera que as crenças sobre ensino-aprendizagem
de línguas poderiam ser definidas como resultantes de um processo de
interpretação e ressignificação que ocorre por meio de nossas experiên-
cias. Ao conceber as crenças como “construções” da realidade por meio
daquilo que é experienciado, poderíamos compartilhar os seguintes
questionamentos da autora:

Que outras histórias sobre aprendizagem de línguas podemos


contar? Que histórias diferentes podemos contar sobre aprendi-
zagem de inglês na escola pública? Por que não temos narrati-
vas de aprendizes bem-sucedidos, narrativas de professores que
fazem a diferença, de alunos que aprenderam inglês na escola
pública, e finalmente, de escolas públicas que fazem a diferença?
(BARCELOS, 2011, p.158).

531
A pesquisa de Arruda (2014) representa um grande avanço no sen-
tido de responder a essas perguntas ao propor uma investigação sobre
experiências bem-sucedidas de aprendizagem de inglês em escolas pú-
blicas, apresentando dados de narrativas de professores e seus respec-
tivos alunos que comprovaram ser possível ter uma aprendizagem de
sucesso em sala de aula. Concordo com a autora quando alerta para a
necessidade de investirmos em mais pesquisas que busquem eviden-
ciar experiências bem-sucedidas de ensino e aprendizagem no ensino
regular, seja ele público ou privado. No sentido de contribuir com
essa tarefa, apresento aqui um recorte da minha tese de doutoramen-
to (SALDANHA, 2019) que teve como objetivo central identificar e
descrever as experiências inspiradoras de estudantes e professores de in-
glês em escolas regulares da Grande Belo Horizonte a fim de conhecer
e refletir sobre os elementos que modulam tais experiências buscando
assim, coletar evidências que abalem a crença de que não é possível
aprender inglês nesse contexto.
Para a discussão teórica, apoiei-me nas teorias Sociocultural
(VYGOTSKY, 1999; SWAIN, KINNEAR e STEINMAN, 2010),
na Psicologia Positiva e nos estudos sobre emoções (ARAGÃO, 2007;
MERCER, 2011; SWAIN, 2013; MACINTYRE e MERCER, 2014),
na Pesquisa Experiencial (MICCOLI, 1997, 2007, 2010, 2012) bem
como nos estudos sobre Ensino Inspirador (LAMB e WEDELL, 2013a,
2013b; JENSEN, ADAMS e STRICKLAND, 2014) e sobre a relação
professor-aluno (MORALES, 2006; GILES, 2008).
Em relação à metodologia, esta pesquisa se caracteriza como um
estudo de caso de natureza mista (DÖRNYEI, 2007) e interpretativis-
ta, adotando uma perspectiva êmica ao valorizar as vozes dos próprios
participantes por meio das narrativas sobre as experiências vivenciadas
e relatadas por eles. Foram utilizados os seguintes instrumentos para a
geração de dados: pesquisa de opinião online, questionário perfil do
professor, entrevistas semiestruturadas, notas de campo (utilizadas nas
observações de aulas dos professores participantes).

532
Primeiramente, foi feita uma pesquisa de opinião por meio de um
questionário online, inspirado em Lamb e Wedell (2013a), aplicado a alu-
nos do ensino médio em escolas públicas e particulares de Belo Horizonte.
Este questionário teve como objetivo identificar professores de inglês que
inspiraram e fizeram a diferença na aprendizagem – e na vida – daqueles
alunos. As respostas obtidas no questionário foram filtradas até que pu-
dessem ser selecionados os 7 professores participantes deste estudo.
O presente estudo foi realizado em sete escolas regulares (quatro
públicas estaduais, uma municipal, uma escola particular e uma de en-
sino médio técnico) da região metropolitana de Belo Horizonte onde
lecionam os sete professores indicados por seus ex-alunos que respon-
deram ao questionário sobre professores inspiradores de inglês. Essas
escolas atendem a alunos do ensino fundamental e médio.
As análises, quantitativas e qualitativas, foram realizadas em dife-
rentes etapas, tomando-se como base os dados gerados por meio: da
pesquisa de opinião, do questionário perfil do professor, das entrevistas
e das observações e notas de campo. As análises da pesquisa de opi-
nião foram realizadas segundo os procedimentos adotados por Lamb
e Wedell (2013a); as das entrevistas e questionário perfil do profes-
sor foram realizadas de acordo com Lieblich, Tuval-Mashiach, Zilber
(1998). Ao final dessa etapa foi feita uma triangulação dos dados por
meio de análises cruzadas das respostas dos ex-alunos aos questionários
de opinião e das respostas dos professores às entrevistas, bem como das
aulas observadas e dos registros em notas de campo. Essa triangulação
possibilitou a identificação dos elementos potencialmente inspiradores
nas práticas das professoras e reforçou a relação estreita professor-aluno
como o elemento chave nas experiências inspiradoras de aprendizagem.
Apresentarei, a seguir, um recorte dos principais resultados revelados
pela pesquisa realizada.

1. Experiências inspiradoras de aprendizagem


Em relação às análises da pesquisa de opinião, as respostas dos alu-
nos foram categorizadas em: a) qualidades do professor inspirador; b)

533
efeitos nos alunos inspirados e c) iniciativas dos alunos inspirados. Em
relação à primeira categoria, constatou-se que as experiências inspirado-
ras dos alunos foram moduladas: pelo tipo de aula que seus professores
propiciaram a eles (aulas interessantes, uso de métodos não tradicionais,
explicações claras); pelas qualidades pessoais (serem pacientes, entusias-
mados) e profissionais (serem persistentes com seus alunos, terem boa
didática, serem dedicados e demonstrarem amor pela sua profissão) de
seus professores e também pela relação afetiva que seus professores de-
senvolveram com eles, encorajando-os, respeitando-os e acreditando em
seus potenciais, corroborando Lamb e Wedell (2013a, 2013b); Jensen,
Adams e Strickland (2014); Powell-Brown, Butterfield e Yao (2014) e
Sammons et al (2014).
Esses primeiros resultados revelam ainda que para fazer a diferen-
ça na aprendizagem de seus alunos, o professor deverá ir além do que
dar aulas interessantes, utilizar métodos não tradicionais e ter uma boa
didática. É preciso investir em uma relação de proximidade que os faça
sentir valorizados e confiantes para enfrentarem os desafios que se colo-
carem diante deles.
Em relação à segunda categoria, os resultados revelam que os sen-
timentos dos alunos mudaram por influência das aulas de seus profes-
sores, corroborando Lamb e Wedell (2013a) quando afirmam que o
ensino inspirador consegue mudar a relação entre o aprendiz e o con-
teúdo a ser aprendido. Essa constatação corrobora ainda a concepção
de Jensen, Adams e Strickland (2014) do ensino inspirador como um
resultado e não como um conjunto de qualidades, uma vez que é trans-
formador e tem um impacto contínuo na aprendizagem dos estudantes
a ponto de “inspirá-los a fazer algo diferente do que está no livro, mu-
dar seus esquemas, suas visões de mundo e afetá-los não apenas no ní-
vel intelectual, mas pessoal109” (JENSEN; ADAMS; STRICKLAND,
2014, p.39).

109
Tradução livre de: “The learning experience has to inspire the students to do
something that is not in the handbook; change their schema, their world view;
and affect them on a personal, not just intellectual, level”.

534
Segundo Lamb e Wedell (2013a), os efeitos de um ensino inspi-
rador são, em grande parte, mutuamente sustentados, ou seja, o inte-
resse do aprendiz faz com que ele se esforce na sua aprendizagem, que,
provavelmente será bem-sucedida, e essa aprendizagem bem-sucedida
potencializará a autoconfiança desse aprendiz. O mesmo ocorre na or-
dem inversa, ou seja, a autoconfiança modulada pelo professor é o que
abastece o interesse e esforço do aprendiz. Esse efeito recíproco pôde ser
observado no presente estudo por meio dos relatos de estudantes que,
por se sentirem mais motivados, passaram a se esforçar mais e se torna-
ram mais autoconfiantes e de outros que, por se sentirem mais confian-
tes em relação à aprendizagem da língua, passaram a se interessar e a se
dedicar ainda mais a essa aprendizagem.
Finalmente, foi possível constatar o impacto das emoções positivas
na aprendizagem dos estudantes e da importância do professor como
o mediador dessas emoções. Como a mediação ocorre, segundo Swain,
Kinnear e Steinman (2010), por meio de processos intermentais e in-
tramentais, pode-se observar que as práticas inspiradoras e sua relação
com os alunos se constituíram como as principais mediadoras de emo-
ções positivas vivenciadas pelos alunos, impactando o modo como eles
passaram a conceber essa aprendizagem.
No que se refere à categoria 3, foi possível constatar que as prin-
cipais iniciativas tomadas pelos alunos (fora da sala de aula) em or-
dem decrescente foram: fazer atividades de leitura, fazer atividades com
vocabulário e com música e começar a fazer um curso particular por
influência de seus professores. Em sala de aula, as principais iniciativas
foram: participar mais ativamente nas aulas e procurar a professora para
sanar dúvidas e dificuldades. O fato de os alunos terem tomado inicia-
tivas, principalmente fora da sala de aula para aprenderem a língua sem
a ajuda do professor poderá levá-los a se tornarem mais autônomos, e
isso provavelmente os tornará mais bem-sucedidos nessa aprendizagem,
pois, como argumenta Paiva (2006), aprendizes bem-sucedidos desen-
volveram sua autonomia quando se envolveram com a língua fora da

535
sala de aula, incentivados por seus professores. Nesse sentido compar-
tilho do pensamento da autora de que “o professor não é responsável
pela aprendizagem do aluno, mas pode ajudá-lo a ser mais autônomo”
(PAIVA, 2006, p.35).

2. A relação professor-aluno na base das experiências


inspiradoras de ensino e aprendizagem
Os resultados obtidos por meio das análises do questionário perfil
do professor possibilitaram a identificação de vários elementos comuns
nas experiências relacionadas à formação e atuação profissional, às con-
dições de trabalho e à prática pedagógica dos professores indicados
como inspiradores. Constatou-se que esses professores agem orienta-
dos por uma “abordagem de ensinar” (ALMEIDA-FILHO, 1999) que
influencia suas ações e escolhas, seja em relação ao planejamento, aos
materiais que irão utilizar, aos métodos de ensino e avaliação. Além
disso, eles agem de acordo com as suas crenças, que influenciam direta-
mente seus pensamentos e sentimentos (MERCER, 2011). Entretanto,
foi possível perceber que, ainda que esses professores disponham de
grande autonomia para tomarem suas decisões, elas não ocorrem em
um “vácuo contextual” (LIMA, 2011, p.39), por isso, não se trata de
escolhas autônomas, uma vez que são sempre influenciadas pelos fato-
res propícios e pelas restrições no meio ambiente (SWAIN; KINNEAR;
STEINMAN, 2010).
Ao confrontar as análises da pesquisa de opinião com as entrevistas,
o que salta aos olhos é que as experiências dos ex-alunos foram modu-
ladas pela relação estreita que seus professores inspiradores desenvolve-
ram com eles. Entretanto, compreendendo o caráter complexo e sin-
gular das experiências (MICOLLI; LIMA, 2012), foi possível perceber
que cada ex-aluno experienciou as aulas e a relação com seus professores
de maneiras diferentes, corroborando o argumento de Lamb e Wedell
(2013a) de que as fontes de inspiração são variadas e qualquer profes-
sor, ao implementar qualquer tipo de metodologia, tem o potencial de
inspirar.

536
Os elementos mapeados nas respostas dos ex-alunos à pesquisa de
opinião, juntamente com as respostas dos professores nas entrevistas,
revelaram a importância da relação estreita professor-aluno nas expe-
riências inspiradoras de aprendizagem, corroborando vários outros es-
tudos, como os de Lamb e Wedell (2013a), Powell-Brown, Butterfield e
Yao (2014); Jensen, Adams e Strickland (2014), Sammons et al (2014).
É importante destacar, antes de tudo, que o presente estudo parte do
seguinte conceito de relação professor-aluno:
A relação professor-aluno é um sistema complexo e dinâmico,
constituído em uma escala macro de tempo por interações momento-a-
-momento e modulado por diferentes elementos de natureza atitudinal,
comportamental, emocional, conceptual, cultural, pedagógica, social,
cognitiva e contextual que interagem entre si possibilitando a emergên-
cia de diferentes configurações de relações: estreitas, distantes, formais,
conflituosas, amistosas, duradouras. (SALDANHA, 2019, p.61)
É pela relação – devido ao seu caráter bidirecional (MORALES,
2006) – que os professores inspiradores conseguiram influenciar até
mesmo o modo como seus alunos enxergavam a disciplina estudada. Ou
seja, quando o professor conhece seu aluno, valoriza suas experiências,
seus gostos, esse aluno passa a olhar para ele com admiração, respeito,
carinho, pois, de certa forma, reconhece que seu professor o admira por
seu esforço em aprender, o respeita pelos desafios que passa ao aprender,
bem como demonstra cuidado e atenção ao que vivencia para ajudá-lo a
superar suas dificuldades.
Segundo Giles (2008, p. 103), “quando a relação professor-aluno
importa, a experiência relacional do professor e do aluno é engajadora,
conectada e respeitosa” 110. Nesse sentido, os resultados desta pesqui-
sa revelaram a estreita relação professor-aluno como o elemento chave
para emergência de experiências inspiradoras de aprendizagem.

110
Tradução livre de: When the teacher-student relationship matters, the teacher’s
and student’s relational experience is engaged, connected and respectful of the
other.

537
Os elementos mapeados nas relações dos professores com seus ex-
-alunos foram sintetizados na figura a seguir:

Fonte: SALDANHA (2019, p. 177)

Finalmente, em relação às experiências inspiradoras, as análises dos


relatos dos ex-alunos confirmaram que a inspiração sugere ser algo que
envolve tanto quem inspira, quanto quem é inspirado. Ou seja, não
é algo que depende exclusivamente do professor, mas de algo que o
professor faz, ou diz, que se conecta com aquilo que os alunos esperam
ver, ouvir e sentir. Concordo com Lamb e Wedell (2013a) quando ar-
gumentam que a inspiração é proveniente da “conexão humana feita
pelo professor – algo neles, ou algo que eles consistentemente fizeram
tocou um acorde no estudante que ainda reverbera” 111 (p.16). Não se
sabe exatamente como a inspiração acontece, mas, é possível pensar
111
Tradução livre de: “[…] it is the human connection that was made by the teacher
– something in them, or something that they consistently did, struck a chord in
the learner that still reverberates”.

538
que, nesse estudo, ela aconteceu por meio de uma relação de parceria
dos professores com seus alunos.

3. Elementos potencialmente inspiradores


Em relação às observações das aulas, elas possibilitaram a identifi-
cação de uma coerência entre o que os professores relataram, acerca de
suas práticas nas entrevistas, e o que eles de fato fazem na sala de aula.
Elas possibilitaram ainda a identificação de elementos potencialmente
inspiradores, uma vez que estão relacionados tanto às experiências dos
professores inspiradores, quanto às dos alunos inspirados. Em relação à
metodologia, aqueles que mais se destacaram foram as aulas dinâmicas,
diversificadas, temas interessantes, explicações claras e a boa didática
das professoras, uso de diferentes recursos didáticos como Ipad, data
show, TV, notebook, som. Grande parte deles corroborados por outros
estudos sobre professores inspiradores de inglês como Lamb e Wedell
(2013a) e Powell-Brown, Butterfield e Yao (2014). Dentre os “méto-
dos não tradicionais” utilizados por elas, destacaram-se as atividades
de escrita colaborativa e trabalhos em grupo, corroborando Vygostky
(1999) sobre o importante papel da interação na aprendizagem e as
atividades orais, contestando a crença da impossibilidade de trabalhar
com esse tipo de atividade em escolas regulares, identificada na litera-
tura (MICCOLI, 2007; LIMA, 2014; BRITISH COUNCIL, 2015),
e corroborando a sua importância nas experiências de aprendizagem
de inglês nesse universo educacional (PAIVA, 2006; ARAGÃO, 2007;
ARRUDA, 2014).
Nas observações de aulas ficou evidente ainda, a influência das
emoções positivas nas relações dos professores com seus alunos. Além
disso, confirmou-se o papel central do professor como mediador dessas
emoções positivas, uma vez que possibilitaram aos alunos experienciar
emoções positivas, tais como o interesse, a curiosidade, a alegria, o sen-
so de progresso, levando-os a participarem ativamente das atividades
propostas. Esses elementos foram fundamentais para a boa energia
emocional da sala de aula e podem ser também inspiradores, além de

539
colaborarem para o desenvolvimento de uma relação estreita dos pro-
fessores com seus alunos.

4. Breves considerações finais


Não foi intenção deste estudo tratar os professores como “salvado-
res da pátria”, alegando que para ser um professor inspirador é preciso
se sujeitar ao desrespeito, à desvalorização, ao cansaço físico e emocio-
nal, tudo em prol da aprendizagem dos seus alunos. O professor, a meu
ver, é responsável por oferecer um ensino de qualidade aos seus alunos,
mas, o uso que eles farão com o conhecimento adquirido é de respon-
sabilidade deles próprios. Também não foi a intenção apresentar “recei-
tas” de como ser um professor inspirador. Não existem receitas, pois a
inspiração não emerge apenas do que o professor faz, ou de sua maneira
de ser, mas, também de algo que parte do próprio aluno. Desse modo, a
intenção aqui foi contar “outras histórias” (BARCELOS, 2011) diferen-
tes daquelas frequentemente evidenciadas na literatura (BARCELOS,
1995, 2007; MOITA LOPES; 1996; PAIVA, 1997; COELHO, 2005).
Histórias vivenciadas por “esses estudantes” com “seus professores ins-
piradores” para reforçar que, assim como ocorreu neste estudo, existem
outros professores inspiradores e para que sejam identificados é preciso
investir em pesquisas que busquem conhecê-los. Ao fazer isso, não es-
tou sugerindo receitas de como inspirar, não estou responsabilizando o
professor pelo sucesso ou insucesso da aprendizagem dos seus alunos,
tampouco eximindo os governantes da responsabilidade de garantir
condições adequadas de trabalho para o professor.
Em suma, o que esse trabalho defende, a partir dos resultados obti-
dos, é que a base do ensino inspirador não está nas “aulas interessantes”
ou nos “métodos não tradicionais” utilizados pelos professores, mas, sim
na relação estreita que eles desenvolvem com seus alunos. Diante disso,
é possível pensar que aquilo que realmente “inspira” e deixa marcas na
aprendizagem e na vida dos estudantes está muito mais relacionado às
experiências relacionais afetivas, que mobilizam emoções diversas, do
que propriamente às “aulas”, “métodos” ou “materiais”.

540
Além de defender a relação estreita professor-aluno como a base
do ensino inspirador, esta pesquisa trouxe evidências de que a apren-
dizagem bem-sucedida de inglês na escola é possível, mesmo diante de
inúmeros obstáculos relacionados a uma política de não valorização à
educação que se reflete nas más condições de trabalho para o professor
(estrutura física precária das escolas, salas cheias, falta de recursos didá-
ticos – cotas reduzidas ou inexistentes de xérox – falta de aparelho de
som em boas condições de uso, turmas heterogêneas em relação ao nível
de proficiência na língua inglesa, bem como problemas de indisciplina
e falta de interesse dos alunos). Mesmo diante dos inúmeros problemas
mencionados, ainda sim é possível fazer a diferença na aprendizagem
dos estudantes. A prova disso é que os professores participantes des-
ta pesquisa, por meio de suas práticas e, principalmente por meio da
relação estreita que construíram com seus alunos o fizeram. Enaltecer
experiências inspiradoras vivenciadas por alunos e professores de inglês
no ensino básico não significa compactuar com essa política de des-
valorização adotada pelo sistema educacional brasileiro, especialmente
no que se refere ao ensino de língua inglesa. É preciso lutar contra ela,
mas, sem que isso prejudique os estudantes, no sentido de transferir
para eles as frustrações e o desânimo, que muitas vezes assolam os pro-
fessores em sua jornada docente. É preciso, acima de tudo, propor-
cionar-lhes uma “aula de verdade” de inglês, oposta àquele “inglês de
colégio” (MICCOLI, 2010) tão insistentemente propagado no contex-
to do ensino regular brasileiro. Nesse sentido, é fundamental investir
em práticas que proporcionem experiências significativas e inspiradoras
para esses estudantes, para que crenças como as de que não é possível
aprender inglês na escola sejam desconstruídas.

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544
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

GÊNERO MULTIMODAL TIRINHAS NO LIVRO


DIDÁTICO DE PORTUGUÊS DO 6º ANO DO
ENSINO FUNDAMENTAL

Fernanda Rocha Bomfim - UFCAT


Geane do Socorro Rovere Leal Pinheiro - UFCAT

RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar um estudo sobre o livro
didático de português utilizado no 6° ano do Ensino Fundamental II. Nesse
sentido, propõe a análise de práticas multimodais a partir do gênero midiático
tirinhas, levando em conta um novo aspecto em relação ao modo como esse
gênero multimodal é abordado no presente livro didático. Serão apresentados
conceitos sobre os gêneros multimodais e os processos de aprendizagem
utilizados a partir deles. Propomos a ideia de que os gêneros midiáticos, em
específico as tirinhas, possuem aspectos semânticos que ampliam o modo de
ler o texto, tendo como recurso a linguagem verbal e não verbal. O estudo
tem como aporte metodológico a pesquisa bibliográfica de caráter qualitativo,
fundamentada em teóricos como Benevenuti (2019), Coscarelli (2017), Rojo
(2015), Vergueiro (2014), os quais possuem obras voltadas para o trabalho
com gêneros multimodais em sala de aula. A proposta de ensino de gêneros
multimodais no livro didático advém de pesquisas realizadas na disciplina
de Estágio Supervisionado de Língua Portuguesa, em que percebemos a
necessidade de compreender como de fato os gêneros multimodais têm
contribuído para o ensino em sala de aula. Desse modo, nosso corpus de
pesquisa é um livro didático do 6º ano do ensino fundamental utilizado
por uma escola da rede pública, pertencente à coleção Alpha da editora
SM, aprovado no PNLD de 2020. Os resultados revelaram que os recursos
midiáticos estão interligados nos argumentos da proposta e nas práticas do
livro em análise. Ademais demonstra a importância do gênero em estudo,
indicando como as propostas de atividades presentes no livro estudado podem
somar para o desenvolvimento da criticidade dos alunos da educação básica.
PALAVRAS-CHAVE: Multimodalidade, Tirinhas, livro didático, Gênero.

ABSTRACT: This article aims to present a study on the Portuguese textbook


used in the 6th year of Elementary School II. In this sense, it proposes the
analysis of multimodal practices from the comic strip media genre, taking
into account a new aspect in relation to the way this multimodal genre is

545
approached in this textbook. Concepts about multimodal genres and the
learning processes used from them will be presented. We propose the idea
that the media genres, specifically the comic strips, have semantic aspects that
expand the way of reading the text, using verbal and non-verbal language as
a resource. The study has as a methodological contribution the qualitative
bibliographic research, based on theorists such as Benevenuti (2019), Coscarelli
(2017), Rojo (2015), Vergueiro (2014), who have works focused on working
with multimodal genres in the classroom. of class. The proposal for teaching
multimodal genres in the textbook comes from research carried out in the
Supervised Internship of Portuguese Language, in which we realized the need
to understand how multimodal genres have actually contributed to teaching
in the classroom. Thus, our research corpus is a textbook of the 6th grade of
elementary school used by a public school, belonging to the Alpha collection
of the SM publisher, approved in the PNLD of 2020. The results revealed
that the media resources are interconnected in the arguments of the proposal
and the practices of the book under analysis. In addition, it demonstrates
the importance of the genre under study, indicating how the proposals for
activities present in the book studied can add to the development of the
criticality of basic education students.
KEYWORDS: Multimodality, Comics strips, textbook, Genre.

1. Introdução
Ao considerar a importância do ensino pautado no uso de gêneros
em sala de aula, em específico os multimodais, este estudo busca verifi-
car como o livro didático de Língua Portuguesa, volume do 6º ano do
Ensino Fundamental II, explora o gênero Tirinha. Nesse sentido apon-
tamos alguns questionamentos que pretendemos responder ao final da
pesquisa: como são organizadas as atividades do gênero Tirinhas a partir
dos recursos multimodais? Quais as suas contribuições para a formação
de um leitor crítico? De que forma os recursos multimodais contribuem
para as práticas de leitura e escrita?
Percebe-se que o tema multiletramentos e práticas multimodais
estão em voga, há diversos artigos, pesquisas e livros que versam sobre o
tema publicados, inclusive, a própria Base Nacional Comum Curricular

546
(BNCC). Embora muito se tenha produzido com relação à temática,
nem todas as escolas promovem práticas alinhadas aos múltiplos
letramentos e a exploração de textos multimodais no contexto de sala
de aula. Nota-se que as escolas, sobretudo as públicas, não dispõem
de recursos tecnológicos, para que se consiga trabalhar com a grande
variedade de textos multimodais e midiáticos disponíveis, ampliando
nos discentes sua capacidade de reconhecer os gêneros textuais em sua
dimensão social e funcional. Nesse sentido, consideramos o gênero tiri-
nha oportuno, pois, independe de recursos tecnológicos para o seu uso
em sala de aula, uma vez que este pode ser usado de forma impressa, de
jornais ou até mesmo do próprio livro didático dos alunos.
Ademais, discutimos que a tecnologia pode ser vista como mudan-
ça de culturas, entretanto é preciso despertar e ver que os discentes são
construtores de suas práticas e que são agentes do que se constrói. Sob
esse olhar, Benevenuti (2019, p. 10) esclarece que “[...] o que se pode
observar é que o gênero se adapta a um outro, isto é, modela-se e ressig-
nifica-se, se reestrutura às novas condições impostas pelo meio social.
[...]’’. Com esse pressuposto, temos a ideia de que é relevante ao profes-
sor compreender que os gêneros discursivos estão em constante trans-
formação e são portadores de linguagens, ou seja, favorecem o trabalho
didático-pedagógico dos docentes em relação ao campo midiático.
Assinalamos que o gênero Tirinhas possui uma comicidade que fa-
vorece a transposição da prática pedagógica, e por chamar a atenção
dos estudantes em relação ao modo como são manifestados os recursos
multimodais no texto. Apontamos a importância de sua materialização
em diferentes suportes, jornais e revistas. Antes encontradas apenas em
bancas, hoje as encontramos em redes virtuais. Frente ao apresentado, a
pesquisa se apresenta como bibliográfica, de caráter qualitativo, funda-
mentado em teóricos como Benevenuti (2019), Coscarelli (2017), Rojo
(2015), Vergueiro (2014), os quais promovem discussões relacionadas
ao uso de gêneros midiáticos na sala de aula de língua portuguesa.
O estudo percorre os campos midiáticos na aprendizagem dos
alunos do 6º ano. Primeiramente observamos como se dá o uso das

547
múltiplas manifestações dos gêneros midiáticos na aprendizagem. Em
segundo plano, analisamos como é o gênero multimodal Tirinhas. Em
seguida apresentamos a metodologia e os resultados da pesquisa. Para
além, trazemos as considerações finais, onde se observa o universo mul-
timodal. Dessa forma, mostramos discussões relacionadas ao trabalho
midiático e apresentamos diferentes manifestações teóricas.
Mediante isso, focamos em evidenciar o trabalho dos autores do
volume do 6º ano do Ensino Fundamental quanto ao gênero Tirinhas,
apontando como sua proposta de ensino pode despertar nos alunos o
modo de ler e ver as Tirinhas, não só pelo olhar do locutor, mas sim de
diferentes interlocutores e linguagens, tornando-se relevante investigar
e questionar se a proposta do livro contribui para as práticas multimo-
dais. Ao ter em vista as práticas midiáticas, sabemos que os professores
utilizam diversificadas maneiras de ministrar suas aulas. A partir dessa
afirmação, o estudo destaca ainda que existem novas formas de apro-
fundar e trabalhar as técnicas midiáticas nos livros didáticos. É fácil
perceber que são mudanças extremamente necessárias, porém, os do-
centes precisam ainda ser preparados para utilizar o que a tecnologia
pode oferecer.
Para além, enfatizamos a ideia de que o docente já faz uso dos re-
cursos midiáticos em sala de aula, assim é necessário que ele assuma
uma didática pedagógica nas escolas, buscando recursos e técnicas aces-
síveis. Sabemos que a realidade é bem diferente do que se deseja, porém,
quando a escola reconhece a contribuição dos gêneros midiáticos na
formação crítica dos discentes, temos um novo modo de explorar os
gêneros, não só nos aspectos linguísticos, mas sim discursivos.

2. A aprendizagem e os gêneros midiáticos


A multimodalidade está presente em nosso meio social, e a escola,
tendo-a como suporte nas aulas de Língua Portuguesa, consegue am-
pliar seu universo de eventos comunicativos, dentro e fora do contex-
to escolar. Surgem aqui alguns questionamentos: Estamos preparados
para trabalhar esses novos gêneros? Faz-se importante oportunizar aos

548
professores que atuam no ensino de Língua Portuguesa a compreen-
são de conceitos e práticas pedagógicas que promovem a formação do
docente por meio das múltiplas formas de manifestação da linguagem
multimodal.
É nesse sentido que entram as práticas pedagógicas e as tecnológicas
na comunicação entre professor-aluno e aluno-material didático, ligan-
do o conhecimento escolar ao uso de diferentes ambientes virtuais. O
professor, ao reconhecer a multimodalidade, pode construir novos há-
bitos de linguagem e reconhecer a interação social como fundante de
sua prática docente. Porém, é necessário destacar que não é apenas uma
representação ou junção, mas uma forma de integrar o aluno ao gênero
trabalhado, com mais facilidade de entendimento, ou seja, transformar
as práticas pedagógicas de forma a propiciar novas práticas de comunica-
ção, que levem em consideração a multimodalidade. Quanto mais con-
tato os alunos tiverem com as Novas Tecnologias Digitais da Informação
e Comunicação (NTDIC), mais ampliarão sua aprendizagem e a relação
interativa com o gênero em estudo em diferentes esferas textuais.
Hoje, as NTDIC propiciam uma maneira de adentrar os gêneros
textuais com as necessidades das escolas e dos alunos para lidar com a
linguagem multimodal. Assim, faz-se relevante ainda que os docentes
busquem nos ambientes educacionais, uma adequação tecnológica, di-
recionando a linguagem verbal com a imagética, de modo a preparar os
discentes a interagir com o mundo.
As práticas multimodais são constituídas pela união de duas ou
mais formas de representação, consistindo em textos que fazem uso de
elementos da linguagem verbal e visual. Coscarelli (2017, p. 63) explica
que “[...] reconhecer as repetições de sons, como rimas, sílabas e sufixos,
e saber, gradativamente, identificar e registrar as letras [...]’’, é necessá-
rio para ganhar entendimento quanto às capacidades de reconhecer os
traços multimodais dentro do texto pedagógico, aprendendo a identifi-
car as letras e os símbolos.
Ao ressaltar sobre o contexto educacional, pode-se considerar que
o principal material de apoio aos professores tem sido o livro didático

549
e, mesmo esses materiais apresentando conteúdos propostos para a in-
tegração da escola com o gênero, é necessário verificar como está sendo
transmitida toda essa novidade aos alunos. E como está sendo desenvol-
vida essa capacidade de linguagem neles.
Em relação ao gênero estudado, sabemos que o processo de leitura
crítica é complexo e exige uma certa dedicação. O docente ao reconhe-
cer a necessidade do uso da prática multimodal em sala de aula, tem
contato com novos símbolos, gestos ou imagens que contribuem para
ampliar o universo de leitura e de entendimento da linguagem. Com
base no que foi dito, a forma crítica de aprendizagem do aluno em sala
de aula deriva do fato de o professor não ter tido uma construção de
conhecimentos na multimodalidade e da falta de conhecimento dos
alunos ao estudar os livros didáticos.
Ao adentrar no componente curricular de Língua Portuguesa o alu-
no nem sempre possui noção de criticidade e entendimento do que a
leitura quer transparecer. O desenvolvimento do discente por meio de
práticas de leitura amplia sua criticidade quanto ao conteúdo e à for-
mação de ideias na construção de sentidos. De acordo com Benevenuti
(2019, p. 10), “[...] os processos de leitura e escrita no ensino, em suas
mais amplas formas de variedades e modalidades de realização, devem
ir além do verbal’’.
Para realizar uma boa leitura crítica, o leitor deve manter-se sempre
conectado ao mundo real, a leitura é um episódio excêntrico, em que
o leitor e o texto constroem um sentido. A leitura e a escrita não estão
restritas, pois o leitor não tem o papel apenas de decodificar, mas sim de
compreender os sentidos do que está sendo lido, formando novos senti-
dos nas palavras. Segundo Benevenuti (2019, p. 11), “[...] de fato, tanto
o professor quanto o aluno são atores nesse processo e isso lhes permite
inovar na forma de aprender e de ensinar, a partir de metodologias dife-
renciadas e significativas, o que torna a aula mais dinâmica, contextuali-
zada e prazerosa’’. É necessário que o docente compreenda seu papel na
formação do discente perante a sociedade, de modo a buscar inovações
quanto às práticas de formação crítica, em especial no campo midiático.

550
2.1 Os gêneros discursivos
Os textos multimodais trazem uma representação a respeito dos
gêneros discursivos. Segundo Rojo (2015, p. 16), “todas as nossas falas,
sejam cotidianas ou formais, estão articuladas em um gênero de discur-
so. [...]’’. Cada gesto ou performance, desde o acordar até o dormir, está
interligado a qualquer que seja a manifestação.
Nesse sentido, o texto multimodal tem uma linguagem impressa e
visual com diferentes formas de apresentação, aspectos textuais, múlti-
plas práticas de compreensão e de interação. A título de exemplificação,
temos a classe do anúncio impresso, em que a comunicação é estabe-
lecida com o sentido do texto. Por ser um ato de comunicação que se
integra no sistema com uma função de produzir sentidos e interação, o
impresso não tem a opção de reconstrução, mas o digital sim, tornan-
do-se então uma atividade textual estruturada com modos distintos de
construção. Posto isso, o texto impresso e o digital sempre estabelecem
comunicação entre locutor e interlocutor com recursos específicos da
contemporaneidade.
Geralmente, o material impresso é rico em detalhes, a análise é
feita a partir dos recursos semióticos usados nos meios de comunica-
ção, intercalados pelos recursos visuais e verbais que constroem uma
unidade de sentido, com os signos formando um texto multimodal.
Porém, há ainda alguns docentes que não compreendem como usar o
gênero Tirinha a partir das particularidades linguísticas e discursivas.
Em se tratando deste posicionamento, é interessante argumentar que o
professor deve acompanhar as mudanças para que possa entender como
se manifesta a multimodalidade no gênero Tiras.
Os estudantes do 6º ano, ao aprenderem as múltiplas formas de
linguagem textual, começam a ler e interpretar os elementos verbais e
não verbais que dão sentido ao texto. Os elementos que compõem o
gênero são o tipo de imagem, tamanho e cores, em que cada um tem
seu valor simbólico ante a compreensão das intenções enunciativas, que
possibilita ao gênero trabalhar o midiático no texto. Na perspectiva de
Rojo (2015), às modalidades:

551
[...] que podem comparecer na composição de um texto em um
gênero dependem, de certa maneira, das mídias em que esse tex-
to foi produzido e circula. Na mídia impressa, só se pode dispor
de imagem estática (fotos e ilustrações) e de escrita. Já na mídia
digital, todas as modalidades e semioses – língua oral e escrita
(verbal), linguagem corporal (gestualidade, danças, performan-
ces, vestimentas), áudio (música e outros sons não verbais) e
imagens estáticas e em movimento – podem entrar na compo-
sição e frequentemente encontram-se hiperlinkadas, ou seja, em
hipermídia. (ROJO, 2015, p. 111-112).

Assim, Rojo reforça a ideia de que a construção de sentidos mul-


timodais ou semióticos está entrelaçada na hipermídia. Uma interpre-
tação visual faz parte de um texto multimodal, porém, a leitura visual
não é tão complexa quanto a verbal, pois cada uma delas estabelece
comunicações distintas em relação ao ato de ler. Na visão de Dondis
(1997, p. 64-65), a imagem possibilita a descoberta de “significados
associativos e simbólicos”, que se manifestam por meio das cores, que
emitem significado e sentido, de acordo com o contexto de produção
e circulação do gênero. Geralmente, os textos impressos evidenciam as
ideias e as escolhas contidas nos componentes visuais e verbais, inter-
ligando-os um ao outro, ampliando a interação, o entendimento do
leitor do tema do texto.
Para Karwoski, Gaydeczka e Brito (2011) a partir do momento
em que o professor busca novas propostas de ensino, constrói oportuni-
dades de conhecimento e promove práticas interativas em sala de aula.
Contudo, o ato de ler e escrever acaba interligando as Tirinhas ao meio
multimodal e à escolha de trabalhar os gêneros nos meios digitais. A in-
ternet é um suporte para mediar as práticas de ensino digitais, havendo
a necessidade de associar a escrita e a leitura dentro e fora do mundo
virtual. Em virtude disso, a BNCC, (2017) tem como competência
geral a cultura digital, que pode ser usada pelos docentes como uma
importante ferramenta social e de aprendizagem.

552
2.2 Multimodalidade e Multiletramentos na BNCC
É visto que a internet é um grande incentivo de linguagem, pois
requer diferentes modos de leitura, mostrando ser um objeto de co-
nhecimento que vem a contribuir com os gêneros escolares. Em meio
a essa lógica que envolve os signos como se pudesse obter sentido da
linguagem, a multimodalidade traz os elementos não verbais e verbais
como sujeito da textualidade e meios de comunicação. Uma vez que
seja uma característica da mensagem, de ser vinculada, ela se torna um
produto cultural, histórico e social. De acordo com Rojo (2015), apesar
de nenhum texto ou enunciado ser unimodal, pois:

[...] nos textos escritos, mesmo que não ilustrados (romances


publicados em livros, por exemplo), sempre há a diagramação
que forma uma imagem (a mancha na página) e, nos textos
orais, há a gestualidade que os acompanha, o romance, predo-
minante escrito, não é o gênero que mais bem se presta para
pensarmos os textos multimodais. (ROJO, 2015, p. 108).

Com todas essas demandas de avanços tecnológicos, é possível


notar que a comunicação é distinta. Existe uma perspectiva de que o
texto pode ser algo construído pelos diferentes tipos de linguagem. Na
BNCC, essa construção textual é nada mais que uma união das múl-
tiplas formas de linguagens, nas Tirinhas, sendo elas verbais, escritas e
orais ou até mesmo não verbais e visuais.
A multimodalidade discursiva abarca diferentes tipos de linguagens,
estando voltada para todas as comunidades textuais. Pode-se concluir
que os textos multimodais mais comuns são os que estão ordenados na
junção de elementos alfabéticos e imagéticos. Ao centrar-se nesse contex-
to, mencionamos alguns exemplos: os anúncios, os cartuns, as charges,
as histórias em quadrinhos, as propagandas, as Tirinhas etc. Os gêneros
digitais trazem características semióticas que abarcam as ferramentas de
comunicação necessárias para o desenvolvimento dos estudantes.
Hoje, com a tecnologia, já não é mais possível ficar sem aderir a ela
em sua vida, sendo quase impossível imaginar o cotidiano da sociedade

553
sem os recursos atuais. A maior evidência é o universo jovem. As crian-
ças já nascem nesse mundo digital, portanto, para elas, são meios de so-
brevivência já naturalizados em suas atividades diárias. Tratando disso,
a escola deve de modo urgente aderir aos meios digitais para que possa
se beneficiar da facilidade dos jovens com a comunicação, de forma que
contribua no conhecimento dos educandos.
A BNCC traz habilidades e competências que podem ser tra-
balhadas em prol do desenvolvimento na Educação Infantil, Ensino
Fundamental e Médio. A tecnologia, se bem utilizada, pode-se reve-
lar um veículo pedagógico a favor do ensino e aprendizagem. Segundo
Rojo (2015, p. 116), novos “[...] tempos, novas tecnologias, novos tex-
tos, novas linguagens” surgem no cotidiano social e escolar. Sem dúvi-
da, é o melhor meio de produção e socialização de textos multimodais.
Com mudanças e inovações, o professor tem a seu favor um novo jeito
de ensinar a Língua Portuguesa.
A visão de multiletramentos na BNCC abrange a linguagem em
novos meios de comunicação e objetiva preparar o discente para a vida
social e profissional. A intenção é que o aluno tenha domínio de gênero.
Essa inovação com textos digitais, novos meios de comunicação e de
decodificação proporciona uma aprendizagem significativa em sala de
aula.
Na visão de Coscarelli (2017, p. 31), “os professores precisam en-
carar esse desafio de se preparar para essa nova realidade, aprendendo
a lidar com os recursos básicos e planejando formas de usá-los em suas
salas de aula”. Desse modo, diferentes técnicas pedagógicas nos meios
digitais ganham força na aprendizagem e se ajustam cada dia mais ao
ensino da linguagem e à proporção em que novas habilidades são tra-
zidas nesse novo documento norteador da ação pedagógica nas escolas.

2.3 Os Gêneros hipermidiáticos e sua prática em sala de aula


Com o passar do tempo, novas mudanças vão acontecendo e sur-
gindo outros meios de comunicação e ensino. Ao falar do hipertexto e
hipermídia, logo se vê que o assunto principal é o ensino de línguas nas

554
escolas com o gênero hipermidiático. É preciso se adaptar às oscilações
e ao que é inserido no meio escolar, buscando desenvolver uma ampla
aprendizagem. É válido ressaltar que a tecnologia tem possibilitado aos
educadores um avanço no processo de ensino e aprendizagem, propi-
ciando novas abordagens e estratégias pedagógicas.
Com as inovações constantes, a tecnologia pode atravessar o cur-
rículo de forma que haja a comunicação nos meios multimidiáticos e
multimodais, mudando a prática pedagógica de forma significativa.
Um exemplo disso é o modo como a Língua Portuguesa é explorada na
BNCC, em que os gêneros textuais se manifestam nos demais compo-
nentes curriculares. Essa integração com os demais componentes curri-
culares pode ser por meio do uso da hipertextualidade, que se dá através
de sons, textos e imagens.
Entretanto, ainda é notório o privilégio da cultura impressa, a
supervalorização da linguagem formal e escrita. Nesse sentido, Rojo
(2015) destaca:

Não é difícil reconhecer o quanto a escola ainda privilegia quase


que exclusivamente a cultura dita “culta”, sem levar em conta os
multi e novos letramentos, as práticas, procedimentos e gêneros
em circulação nos ambientes da cultura de massa e digital e no
mundo hipermoderno atual. (ROJO, 2015, p. 135).

No que tange às contribuições de multiletramentos, destacamos o


uso de hipermídias no contexto escolar, por meio das quais podemos
ver detalhes que não são lidos apenas na superfície textual, ou seja, o ato
de ler ocorre de forma não linear. Assim, a hipermídia se manifesta por
meio de outras mídias em um mesmo ambiente computacional, poden-
do também incluir outros textos, sons, vídeos e animações. Essa forma
de linguagem dialoga com as questões de multiletramentos, por estar
associada à linguagem do texto, seja impressa, digital, audiovisual etc.
Já o hipertexto apresenta diversas estruturas, oferecendo aos docen-
tes/discentes condições de explorar as informações presentes nos textos.
Essas ligações textuais ocorrem no corpo do texto principal, podendo

555
usar links para ligar outros textos ou outras informações. Essa nova or-
ganização multilinear de informações tem sido muito usada nos textos
de Língua Portuguesa, principalmente em Tirinhas, favorecendo aos su-
jeitos/aprendizes diferentes trilhas de leitura. No caso da cultura digital,
o hipertexto é marcado pelo uso de palavras, ícones, imagens, frases ou
elementos da página que o leitor acessa.
A hipermídia tem atuado como a criação do novo que se refere ao
suporte multidimensional, gerando reflexo na escrita e nos seus mate-
riais, mostrando a alteração na maneira de escrever um texto mesmo
com o digital. A hipermídia tem sido vivenciada como um sistema am-
biente, não só com meios digitais, mas com a escrita sobrepondo um
sistema expresso de modificação, assim como uma rede de conexão da
mente humana. No que está relacionado, Rojo (2015, p. 118) salienta
que, no “[...] contexto da hipermodernidade, o prefixo se desloca, se re-
coloca ou instala em outros contextos: hipercomplexidade, hiperconsu-
mismo e hiperindividualismo (além de hipertexto e hipermídia, dentre
outros)’’. O gênero pedagógico está em constante mudança, fazendo-se
com que o midiático transforme o texto escrito em digital e associe a
prática à teoria.

3. A Tirinha
As Tirinhas são um gênero jornalístico/midiático que esteve sempre
presente na vida dos seres humanos desde a pré-história, quando o
homem expunha seus conhecimentos em forma de desenhos, era um
leve aparecimento do que vivemos hoje. As Tiras são apresentadas
em forma de quadrinhos, tendo diferentes situações do uso da língua
presentes nas características do texto, a linguagem verbal, escrita e visual.
Manifestando suas mensagens com narrações humorísticas, cômicas e
até mesmo sentimentais.
Assim, a Tira é uma das práticas de leitura e de escrita da atuali-
dade que se voltam para a compreensão de uma nova visão de mun-
do e desperta para a capacidade crítica dos estudantes. Isso é evidente
no componente curricular de Língua Portuguesa que se orienta para o

556
desenvolvimento de habilidades interpretativas, contribuindo nas ati-
vidades de reflexão do educando. Nas Tirinhas, Vergueiro (2014, p.
9) descreve que “uma imagem fala mais do que mil palavras’’, ou seja,
reconhecemos os discursos e as falas no texto.
No âmbito educacional, as Tiras podem ser desenvolvidas em dife-
rentes práticas de linguagem como: leituras, escrita, produção textual,
oralidade, análise linguística e semiótica, pois para Vergueiro (2014),
esse gênero é um instrumento de construção de saberes presente nos
livros didáticos. Nessa perspectiva, as Tirinhas apresentam uma função
ideológica que conduz o leitor a refletir sobre as críticas pertencentes ao
meio atual, por ser uma fonte de construção de conhecimento sistêmico.
De acordo com o autor, as Tiras têm seu próprio estilo e uma
linguagem própria no ensino, independente dos gêneros, as Tirinhas
podem ter diferentes habilidades trabalhadas em sala, do imagético a
uma narrativa, dando espaço para os alunos explorarem (tempo, espa-
ço, enredo e personagem), eles podem projetar melhor suas próprias
Tirinhas. O trabalho com o gênero em questão pode proporcionar a
aquisição de habilidades orais e escritas, por estabelecer uma relação
dialógica entre sujeitos, formando sua prática discursiva e interlocutora,
aguçando a criatividade dos estudantes e integrando-os na sociedade.
Além disso, as Tiras têm a função de entreter o público, apresentan-
do uma comunicação que conduz o leitor à linguagem semiótica, já que
existem diferentes recursos semióticos integrados nos gêneros discursi-
vos que favorecem em textos, durante as práticas de leitura, os efeitos/
alterações multimodais. A cada esforço do aluno, materializado com di-
ferentes recursos verbais ou não verbais, desenvolve-se nele o letramen-
to crítico, como enfatizamos no tópico. Para Benevenuti (2019, p. 12),
“[...] a multimodalidade, no que tange à linguagem on-line, procura
compreender como sistemas semióticos verbais e não verbais trabalham
juntos para formar textos coerentes e dotados de sentido [...]”. Desse
modo, ao interagir com diferentes técnicas, é possível agregar outros re-
cursos sem fugir do semiótico, como cor da fonte e espaçamento, traços
que estão em um texto multimodal.

557
Não obstante isso, o uso da multimodalidade já é comum nos com-
ponentes curriculares e nas salas de aula, inclusive, por meio de recursos
tecnológicos que são uma forma de envolver os discentes na comunicação
multimodal. Segundo Coscarelli (2017), os principais objetivos da edu-
cação é a formação dos alunos protagonistas de sua própria rota de apren-
dizagem, sem que haja impactos de abordagens com novas tendências
digitais, sem deixar para trás as características de uma cultura linguística.
A escola, ao explorar o gênero multimodal, pode trabalhar novos
domínios vinculados com a tecnologia, trabalhando as mudanças na
linguagem referentes ao conhecimento já obtido, propondo sempre um
discurso e ação cultural relevante aos alunos. Ao relacionar a linguagem
com o âmbito dos estudos, inclui-se o letramento crítico como base
nas escolas para o ensino do gênero, desenvolvendo novas práticas de
aprendizagem e conhecimento/conteúdo. Para Coscarelli (2017, p. 51),
a condição letrada pressuposta está intimamente relacionada tanto ao
que se elabora nas diferentes instituições e práticas sociais orais e escri-
tas, quanto aos muitos objetos e formas de expressão sociais, entre elas
a expressão em língua escrita.
Para tanto, as instituições fazem mudanças na forma da linguagem
relacionando-as com inovações tecnológicas e com heterogeneidades
distintas em relação ao processo de aprendizagem a partir das particu-
laridades de conhecimento dos discentes. Com isso, é possível ver os
reflexos do letramento digital na esfera educacional, confirmando que as
novas estratégias de ensino e aprendizagem alicerçadas na multimodali-
dade têm promovido aprendizagens com os discentes no âmbito escolar.
Apesar de as escolas nem sempre terem os recursos tecnológicos,
ainda podem contar com o uso de livros didáticos, pois podem ajudar
no entendimento das questões imagéticas do texto, atingindo potencia-
lidade de compreensão, formação crítica e letramento social.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A escolha de trabalhar com o gênero midiático Tirinhas no volu-
me do 6º ano do Ensino Fundamental II, da coleção de Costa Cibele

558
Lopresti, da Geração Alpha Língua Portuguesa (2018) está relacio-
nada justamente pelo livro didático ser um instrumento multimodal,
podendo ser impresso ou digital. Visto que o material reúne textos,
imagens, cores e formatos diferentes. São visíveis os apontamentos e
pensamentos dos autores utilizados para a construção do trabalho, aos
quais recorremos com citações no decorrer da pesquisa. Diferentes au-
tores são usados para fundamentar os argumentos apresentados, como:
Benevenuti (2019), Coscarelli (2017), Dondis (1997), Rojo (2015) e
Vergueiro (2014). Tomando como base as informações acima, temos
um estudo com aporte metodológico e uma pesquisa bibliográfica de
caráter qualitativo, fundamentada em teóricos que abrangem o gênero
em análise.
O conceito de metodologia que utilizamos para embasar a teoria
é de Minayo (2001, p. 16), que afirma: “entendemos por metodologia
o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da reali-
dade. Nesse sentido, a metodologia ocupa um lugar central no interior
das teorias e está sempre referida a elas’’. No tocante à relação entre o
científico e a realidade, é a exploração do sentido que ocupa teorias que
abordam temas diferentes.
Nessa essência, a presente análise trabalha concepções que promo-
vem uma pesquisa qualitativa, de modo a compreender as percepções
de princípios básicos e narrativos que se dão no gênero multimodal
e os dados que compõem o livro didático que é um dos principais –
quando não o único – instrumento para a leitura crítica utilizados por
professores nas escolas é o livro didático, seja no contexto da educação
pedagógica, na multimodalidade e em Tirinhas. Para Vergueiro (2014),
a leitura de uma Tira pode ser uma interatividade no desenvolvimento
de linguagem, seja ela verbal ou não verbal.
Nesse sentido, o ato da leitura vai além de uma decodificação, fa-
zendo uma comparação com a interpretação do que foi lido, no oral ou
imagético. Consideramos a leitura crítica como um ato real do aluno, a
qual é oportunizada por meio de práticas pedagógicas que promovem
diferentes progressões e níveis distintos de leitura, ancorado em diversos

559
gêneros textuais, de acordo com a proposta contida na Base Nacional
Comum Curricular.
Destacamos que a prática da leitura está em transformação, por
ser uma atividade social que promove no contexto escolar a formação
crítica e reflexiva dos estudantes. Discutir o gênero Tirinhas envolve
um processo de aquisição de leituras imagéticas e uma incorporação
das imagens pelo leitor, retratando sempre aventura, realidade social,
fotos e personagens de diferentes vertentes, desde que se posicione com
a identificação da imagem.
Diante desses apontamentos, apresentamos o nosso corpus, intitu-
lado Geração Alpha, Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental,
anos finais. O livro didático está dividido em 8 (oito) unidades, todas
compostas por dois a três capítulos, sendo elas: narrativa de aventura,
conto popular, histórias em quadrinhos, notícia, relato de viagem e de expe-
riência vivida, biografia e anúncio de propaganda e entrevista. É possível
notar em todas as unidades, de modo geral, que os gêneros multimodais
são explorados, pois trabalham variedades de comunicação existentes.
O livro possui vários exemplos de Tirinhas, que são observadas em
atividades dos mais variados assuntos, em alguns casos, dá ênfase à lin-
guagem verbal, sem perder o efeito cômico da situação apresentada.
Em alguns casos, a linguagem verbal no último quadro garante o efeito
humorístico. Em todas as tirinhas observadas ao longo do livro, é per-
ceptível que as atividades as quais as tirinhas estão associadas, provocam
reflexões sobre o uso da língua, com questionamentos que levam o alu-
no a realizar uma leitura multimodal.
Durante a análise do gênero, é possível notar a presença das tiri-
nhas no referido livro didático, que conduz os alunos a refletir sobre os
temas sociais, a atuação de uma expressão e seus benefícios comuns que
a tirinha pode proporcionar. É notório que o livro didático está sempre
trabalhando o gênero em questão, identificando a interpretação crítica,
humor e abordagens construtivas para uma análise linguística e moda-
lidades diferentes. A partir das análises feitas das tiras, notamos que o
livro didático trabalha de forma positiva a construção da aprendizagem
dos alunos.

560
5. Considerações finais
No desenvolvimento do presente estudo, realizou-se uma análise
de como o gênero tirinha tem sido trabalhado com os alunos do 6° do
Ensino Fundamental por meio do livro didático. Ao analisar o material,
questionamos a criticidade do aluno e de que forma está sendo traba-
lhada essa crítica no mesmo. Notamos que a formação crítica dos alu-
nos quanto ao que se é oferecido no material didático está no caminho
certo, pois os textos oferecidos trabalham a criticidade e a interpretação
textual de forma positiva para o discente. Ao trabalhar a crítica do alu-
no no ambiente escolar, utilizando o gênero Tirinhas, seja por meio do
livro didático ou de forma virtual, está sendo formado um cidadão mais
crítico na sociedade. Percebemos que são variáveis as possibilidades de
indagações quanto ao ser crítico. Com suas múltiplas possibilidades de
serem trabalhadas as tirinhas no meio multimodal, possui um eixo de
ensino/aprendizagem ao utilizar diferentes linguagens, possibilitando a
comunicação e entendimento do aprendiz. Ao trabalhar com a tira na
sala de aula, entendemos que o gênero possibilita que o aluno seja um
leitor mais eficiente, ampliando suas habilidades de leitura de textos
multimodais, pois, para compreensão de textos que unem múltiplas
linguagem, como é o caso do gênero em questão, é necessário acionar
diversos saberes para sua efetiva compreensão.
Concluímos que a multimodalidade nas tirinhas no livro didático
é bem representada, no entanto, o uso de recursos, mídia e tecnologia
ainda não é a realidade de todas as escolas. Apesar de o índice ter ganho
novos números com a pandemia, ainda existem alunos que não têm
contato com o meio digital ou até mesmo acesso a livros didáticos de
qualidade. A tecnologia vem transmutando todos os gêneros e forman-
do novas habilidades que têm contribuído de forma significativa no
ambiente escolar. Uma dessas mudanças é que a tirinha ganha formas,
gestos, cores e interatividades a cada dia.
A pandemia intensificou o uso de ferramentas e recursos digitais
além do esperado, mudando as práticas e interações professores e alu-
nos, que passaram a ser mediadas por meio de recursos digitais. Nesse

561
contexto, muitas escolas e professores não possuíam recursos tecnoló-
gicos e acesso à internet de qualidade para tal. Afinal, a sociedade não
estava preparada para um desenvolvimento desta amplitude, muito me-
nos as escolas para transformar seus conteúdos didáticos de forma tão
rápida como a pandemia nos exigiu.
O centro no qual o aluno está inserido muda seu jeito de usar a
tecnologia e de analisar suas tirinhas, ou qualquer outra atividade esco-
lar que o discente precisar realizar, pois o ambiente em que ele convive
interfere no seu desempenho escolar e na sua vida social.
Por meio desta pesquisa, notamos os recursos midiáticos e as pro-
postas que estão em prática no livro didático e sua importância para
o desenvolvimento no meio escolar, com novas técnicas, métodos e
estratégias. Principalmente as tecnologias digitais no nosso cotidiano.
Mesmo com resultados satisfatórios do livro didático no desenvolvi-
mento da multimodalidade nas tirinhas, ainda há necessidade de levar
a investigação à frente, para melhor atingir resultados mais concretos.

Referências
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on-line e práticas digitais no ensino de língua portuguesa. Campos dos Goytacazes, RJ:
Brasil Multicultural, 2019.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018

COSCARELLI, C.; RIBEIRO, A. E. (Org.). Letramento Digital: aspectos sociais e


possibilidades pedagógicas. 3. ed., 2. Reimp. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica Editora,
2017.

COSTA, C.L.; MARCHETTI, G. Geração alpha língua portuguesa: ensino funda-


mental: anos finais: 6° ano/organizadora SM Educação; obra coletiva, desenvolvida e
produzida por SM educação; editora responsável Andressa Munique Paiva. São Paulo:
Edições SM, 2018.

DONDIS, A. D. Elementos Básicos da Comunicação Visual In: DONDIS, D. A.


Sintaxe da Linguagem Visual. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.

KARWOSKI, M. A.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (Org.). Gêneros textuais:


reflexões e ensino. 4. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2011.

562
MINAYO, M.C. de S. (Org.). Pesquisa Social. Teoria, método e criatividade. 18. ed.
Petrópolis: Vozes, 2001.

ROJO, R. Hipermodernidade, multiletramentos e gêneros discursivos. 1. ed. São


Paulo: Parábola Editorial, 2015.

VERGUEIRO, W. et al. Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 4.


ed. 2 reimp. São Paulo: Editora Contexto 2014.

563
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

LETRAMENTOS E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA:


ARTEFATO MULTIMODAL NO CONTEXTO
DO ENSINO EMERGENCIAL REMOTO

Ilza Léia Ramos Arouche (UEMASUL)

RESUMO: O trabalho aborda o letramento digital, como espaço de interação


para o ensino de inglês na formação inicial de professores da língua inglesa,
resultado de uma pesquisa de iniciação científica. O objetivo é demonstrar
como a participação e o engajamento em tarefas em comunidade de
aprendizagem sob a perspectiva dos novos letramentos contribuem para a
co-construção do conhecimento científico, juntos ao desenvolvimento do
multiletramento. A fundamentação teórica se sustenta nos novos letramentos
e multiletramentos que privilegiam o pluralismo de letramentos, sujeitos e
subjetividades (KALANTZIS et al., 2016; LANKSHEAR; KNOBEL, 2011).
Esta é uma pesquisa –ação interventiva em que se prioriza a construção
de objetos multimodais com o uso de diversas mídias. Para tanto, foram
construídos objetos usando a ferramenta digital Padlet; a produção de vídeos
a partir de desafios de aprendizagem. O corpus é constituído de fragmentos
dos diários dos participantes e os textos multimodais. As análises dos dados
gerados foram feitas da produção dos participantes que operaram ferramentas
digitais e suas interfaces para a construção e expressão de significados de textos
multimodais, tornando a divulgação científica parte do ensino remoto das
aulas de LI.
PALAVRAS-CHAVE: Multiletramentos; Divulgação científica; Ensino
Remoto.

ABSTRAC: This paper discusses digital literacy as a space of interaction for


English teaching in the initial training of English language teachers. It is the
result of a scientific initiation research. The objective is to demonstrate how
the participation and engagement in learning community tasks from the
perspective of new literacies contribute to the co-construction of scientific
knowledge, together with the development of multiliteracy. The theoretical
foundation is supported by the new literacies and multiliteracies that privilege
the pluralism of literacies, subjects, and subjectivities (KALANTZIS et al.,
2016; LANKSHEAR; KNOBEL, 2011). This is an interventional -action
research in which the construction of multimodal objects with the use of

564
various media is prioritized. To this end, objects were built using the digital tool
Padlet; the production of videos from learning challenges. The corpus consists
of fragments of the participants’ diaries and multimodal texts. The analyses
of the generated data were made from the production of the participants who
operated digital tools and their interfaces for the construction and expression
of meanings of multimodal texts, making the scientific dissemination part of
the remote teaching of LI.
KEY-WORDS: Multiliteracies, Scientific Divulgation; Remote Teaching.

1. Introdução
As experiências adquiridas durante a pandemia que vive o mundo
de hoje, nos deixam um importante legado que deve ser observado no
momento pós-pandêmico. Vivemos numa sociedade da informação, a
qual exige que sejamos dinâmico-participativos, por tanto, criativos,
inovadores, capazes de solucionar problemas do dia a dia, e sobretudo,
trabalhar em equipe, essas características também são prevalentes no
fazer científico - acadêmico. Com essa perspectiva em mente, desenvol-
vemos a disciplina Produção Oral em Língua Inglesa, a qual foi o fio
condutor para a execução desta experiência.
Como é destaque em várias obras nestes momentos de pandemia,
(MENDONÇA; ANDREATTA; SCHLUDE, 2021), (KERSCH ET
AL, 2021,2022), os especialistas da área da linguagem como sempre
fazemos, enfrentando os desafios do momento, estamos produzindo
novos conteúdos para atualizar, auxiliar os professores nestes momentos
de docência pandêmica, quiçá os inspire a repensar a suas práxis. Os
dois trabalhos contribuem para a divulgação científica com o necessário
conhecimento sobre multiletramentos para enfrentarmos o ensino re-
moto, a distância, ou híbrido. O primeiro destaca os multiletramentos,
mas o foco na formação emergencial, enquanto o segundo, direciona a
experiência dos autores sobre os multiletramentos desde uma perspecti-
va comparativa dos dois contextos dicotômicos.
Ao dizer de Kersch; Dornelles (2021), a pandemia - e o distancia-
mento social decorrente dela - fez com que as novas formas de fazer

565
tivessem que ganhar as salas de aula, mas, infelizmente, em muitos ca-
sos, apenas os antigos modos foram levados para a vida digital. Tendo
em vista que existem lacunas didáticas nesta área de ensino, podemos
aproveitar este momento para pensar em novos modos de fazer, pensar
em tornar os multiletramentos numa prática prazerosa e significativa e
que auxilie numa educação crítica que impulsione a curiosidade epistê-
mica como sustentava Freire (1987; 1996).
Lidar com as novas tecnologias é um desafio. Temos que nos prepa-
rar para atender à demanda das novas gerações, que, muitas vezes, são
nativos digitais; e os multiletramentos podem ser o caminho.
Isso posto, este trabalho aborda o letramento digital, como espaço
de interação para o ensino de inglês na formação inicial de professores
da língua inglesa, resultado de uma pesquisa de iniciação científica em
uma universidade pública estadual no Maranhão em 2021. O objeti-
vo é demonstrar como a participação e o engajamento em tarefas em
comunidade de aprendizagem sob a perspectiva dos novos letramentos
contribuem para a co-construção do conhecimento científico, juntos ao
desenvolvimento dos multiletramentos.
Para que tenhamos professores na rede básica que sejam multiplica-
dores de práticas de letramentos que atendam a demanda da sociedade
digital que tenham o espírito investigativo, parece-nos que esses ne-
cessitam vivenciar desde o início da graduação essas experiências, para
que as naturalizem em sua formação e façam parte da sua profissão
posteriormente.
Por isso, é indispensável trazer para o espaço escolar linguagens
e práticas de letramentos midiatizadas que fazem parte do cotidia-
no do alunado. Os professores precisam dialogar com o universo dos
jovens com linguagens e metodologias acessíveis (GLEICER, 2020)
para que o ensino faça sentido. Para tanto, eles necessitam de uma
formação que vá ao encontro dos anseios dos jovens. Desse modo,
propiciaremos letramentos midiáticos como forma de inclusão digital
e formando o cidadão para os desafios profissionais da sociedade do
conhecimento.

566
Portanto, esta é uma pesquisa – ação interventiva em que se prioriza
a construção de objetos multimodais com o uso de diversas mídias. Para
tanto, foram construídos objetos usando a ferramenta digital Padlet; a
produção de vídeos a partir de desafios de aprendizagem.
O córpus se constitui da descrição do projeto correspondente a
unidade 4 do livro texto, um mural interativo digital, o gênero mul-
timodal – vídeo de uma receita culinária e os journals. As análises dos
dados gerados são feitas sob a ótica dos multiletramentos, adotamos o
modelo análise do design (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO,2020)
para análise do vídeo e do mural.

2. Fundamentação teórica
A definição de letramento ganhou um novo perfil à medida que
foram transformadas as formas de circulação e interação na socieda-
de, principalmente com a inserção da web 2.0 na educação que trouxe
maior interação entre os usuários que se tornam não apenas consumi-
dores de textos/ informação. Nesse sentido, Lankshear e Knobel (2011)
definem os letramentos como formas socialmente reconhecidas que co-
municam, geram e negociam conteúdos significativos a partir de textos
codificados em contextos de participação em Discursos, variedade de
sentidos e padrões de comunicação em diferentes contextos e domínios
específicos. Esses mesmos autores consideram que no cotidiano, nas
relações interpessoais, em distintos contextos, as pessoas precisam nego-
ciar as diferentes maneiras com que usam a linguagem. Nesse sentido,
deve-se pensar a aquisição do letramento não apenas em uma única
direção, com regras preestabelecidas, mas, deve-se assumir a pluralidade
do letramento.
Indo nessa direção, Kalantzis e Cope (2012) pontuam que se pre-
cisa estender a pedagogia dos letramentos não apenas às representações
do alfabeto, ou seja, a leitura linear, mas trazer textos multimodais, tí-
picos da nova mídia digital para o currículo. Até porque nossos discen-
tes estão familiarizados com as diversas plataformas digitais, só que,
na maioria das vezes, usam-nas apenas para entretenimento, com uso

567
lúdico. Por isso, seria importante envolver e dar destaque ao ensino hí-
brido para melhor preparar os jovens para o mercado de trabalho.
Nessa perspectiva, atualmente, há uma diversidade cultural e de mí-
dia que requerem que se assumam diferentes papeis, identidades e que se
transitem em vários mundos (GEE, 2015). Isso implica multiplicidade
de discursos e negociação de sentidos. Deixamos de ser meros expecta-
dores para nos tornarmos protagonistas em nossas ações [...] “Em vez de
sermos passivos receptores de cultura de massa nós nos tornamos ativos
criadores de informação e co-projetistas (co-designers) dos nossos pró-
prios entretenimentos”. Editamos nossos vídeos em celulares e postamos
nas redes sociais (Facebook, Youtube, Instagram), conforme Kalantzis et
al. (2016, p.56). Isso aponta novos tempos, novos letramentos.
Um dos construtos usados pelos estudiosos e intelectuais dos mul-
tiletramentos (GNL, 1996) para marcarem de onde falavam e quais
eram os seus posicionamentos sobre os letramentos foi o termo design.
Essa ideia de design parte da premissa que a gramática é um conjunto de
ferramentas que as pessoas usam ativamente para projetar a comunica-
ção e interação, a fim de realizar atividades e alcançar propósitos. Usar
essas ferramentas é um tipo de arte, assim como um pintor entende de
arte, ele usa tinta, cor, luz e composição para causar um dado efeito; já
o usuário da língua usa a gramática para esse fim. (GEE, 2017).
Numa abordagem de multiletramentos, o foco não é apenas na co-
municação, mas também na representação. As representações são sempre
a priori, e a interpretação implica outra representação. Representamos
e nos comunicamos através de uma gama de modos – textual, visual,
espacial, significados orais e auditivos. Cada modo funciona como um
sistema distinto, os significados humanos podem ser representados de
forma abrangente em cada modo, por exemplo, em gesto, como na
linguagem de sinais, via toque para deficientes auditivos, via toque para
o com deficiência visual, para citar alguns. (COPE, KALANTZIS e
ABRANHAMS, 2017).
Os autores ainda pontuam que designing é o ato de fazer algo com
os designs disponíveis de significações, seja ele através da escuta, leitura,

568
comunicação com outras pessoas ou visualização, criando avisos de men-
sagem aos quais outras pessoas podem responder. O ato de criar nunca
é uma réplica ou cópia, mesmo sendo baseado em padrões pré-estabele-
cidos de criação de significado. O redesigned é a transformação do que é
deixado no mundo social do significado. Os designing torna-se redesigned,
novos recursos para significações no jogo aberto e dinâmico de subjetivi-
dades e significados (AROUCHE, 2020). Sempre que agimos no mundo
estamos transformando os designs disponíveis, a partir do momento que
interpreto, manipulo algum artefato cultural e/ou material, o que devol-
vo ao mundo já é transformado em algo novo, já está ressignificado.
Nessa perspectiva, os multiletramentos, por sua natureza eminen-
temente crítica, trabalham com ideologia e agência. Como pontuam
os seus defensores, os alunos precisam pensar criticamente sobre como
as formas de comunicação oral e escrita são projetadas para funcionar,
significando que realizam coisas e, às vezes, manipulam as pessoas. Mas
os estudantes também precisam saber como redesenhar, transferir con-
venções e criar novos designers no quadro do desenvolvimento huma-
no como pessoas agentes, ativistas, cidadãos globais que façam criações
proativas. Portanto, os alunos precisam ser dinâmicos, produtores, par-
ticipantes, transformadores e inovadores e conseguimos auxiliando-nos
em multiletramentos - na multimodalidade, principalmente na cons-
trução dos vídeos e murais virtuais pelos discentes, entre muitas outras
atividades digitais.
Os teóricos dos multiletramentos argumentam que é necessária
uma metalinguagem para descrever os significados inerentes aos gêne-
ros multimodais de maneira explícita diferente por exemplo da gramá-
tica tradicional, para que se apreenda, a forma a estrutura e o propósito
da construção do significado, denominado de ‘análise do design’- “uma
metalinguagem que valoriza uma série de modos construir significa-
dos.” (KALANTZIS, COPE, PINHEIRO 2020).
O modelo teórico de análise do design dos multiletramentos
idealizados pelo (GNL,1996) é baseado em cinco níveis que for-
necem questionamentos que facilitam a análise e compreensão do

569
significado em um contexto de comunicação em todos os modos,
denominados elementos do design, a saber: referência, diálogo, es-
trutura, situações e intenção. a) referência – os significados se re-
ferem a ... quem? E o quê?. b) diálogo – os significados conectam
quem e o quê?... Como?. c) estrutura – os significados se mantêm
juntos... Como?. d) Situações – os significados são localizados ...
Onde? Quando?. e Intenção – os significados são ... Para quem? Por
quê?. (KALANTZIS , COPE, PINHEIRO, 2020, p.188). O analista
de textos/ gêneros podem recorrer a esse modelo de análise se apro-
priando desses questionamentos.

3. Metodologia
A pesquisa, com uma abordagem qualitativa interpretativa, teve
como suporte teórico da pesquisa-ação interventiva (TRIPP, 2005).
Pois, uma das pesquisadoras é professora da disciplina alvo deste es-
tudo que buscou ressignificar as práticas de letramento na LI. Desse
modo, lidamos com o letramento digital – com a construção de objetos
de aprendizagem multimodais com o uso de diversas mídias digitais; a
interação em plataformas digitais para fomentar a criatividade e inteli-
gência coletiva (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020).
Neste recorte trazemos a experiência de um projeto desenvolvida
em uma das disciplinas alvo da pesquisa – Produção Oral em Língua
Inglesa -Nível Intermediário com carga horária de 60 horas aula, ofer-
tada no IV período de letras/Inglês , a qual foi adaptada para o perí-
odo pandêmico do Covid-19. As aulas da LI eram expositivas e dialoga-
das remotamente com 2 aulas síncronas e 2 assíncronas semanalmente.
Para o desenvolvimento das aulas foram usadas o G suíte do Google
disponibilizado pela universidade, principalmente, o Google Classroome
que possibilitava os encontros síncronos, gravação das aulas e postagem
dos materiais. Além de recorrermos à plataforma PB work para a pos-
tagem dos diários dos discentes que denominamos de Journal, e para as
discussões - fóruns virtuais.

570
As aulas foram ministradas por meio de exposição do conteúdo
em língua inglesa a partir do uso de textos acadêmicos desencadeadores
das ações pedagógicas, com uma abordagem comunicativa baseado na
obra New Interchange 2 (Richards, 2010), como norte assim como
textos multimodais por exemplo, um vídeo legendado, um texto com
imagens etc., por meio de recursos digitais nas plataformas virtuais
mencionadas.

3.1 Caracterização do grupo


A turma era constituída de 22 discentes, jovens de 20 à 25 anos,
oriundos de diferentes bairros e até mesmo de municípios circunvizi-
nhos. A grande maioria apenas estudava, sendo três jovens casados. O
nível de inglês da turma era heterogêneo, alguns alunos eram fluentes,
dois deles trabalhavam em escolas de idiomas, duas já tinham morado
em países de falantes de língua inglesa, 20% tinham muita dificulda-
de para se expressar na LI, e o restante tinha o inglês de nível básico.
Muitos para terem acesso à internet recorriam ao chip112 fornecido pela
universidade. Apesar de alguns terem notebooks, mas na interação no
Google Meet eles recorriam aos celulares; muitas vezes, os notebooks
não tinham câmeras, o que dificultava a interação face a face. Muitos,
por timidez, preferiam não aparecer na tela e apenas concorriam às
apresentações dos trabalhos.
No universo de 22 participantes selecionamos a amostra de 9 parti-
cipantes para a pesquisa. Neste recorte foram 6 participantes. O critério
de seleção foi assiduidade nas aulas, engajamento nas atividades pro-
postas. Procuramos selecionar os discentes em distintos níveis de inglês,
pois o que nos interessa é saber como eles trabalham colaborativamente
em um ambiente virtual e como constroem significados na LI fazendo
uso de diferentes plataformas digitais.
Quanto ao manuseio com as ferramentas digitais, a maioria tinha
o conhecimento básico, que era acessar as plataformas para as aulas e

112
O chip mencionado é uma iniciativa para garantir que os acadêmicos da Uema-
sul tenham acesso à internet.

571
usar alguns aplicativos de mídias digitais de entretenimento, mas não
com um cunho educacional. Poucos dominavam as ferramentas mais
complexas como por exemplo um editor de vídeo.
A pesquisadora bolsista de iniciação científica era encarregada de
ministrar oficinas aos discentes, sob a nossa orientação, como usarem
algumas plataformas e ferramentas digitais, além de transcreverem os
dados coletados e fazerem registros nos diários de campo das aulas.
Tínhamos também assessoria da monitora da turma na digitação de
algumas atividades e na assistência do google meet para monitorar os
trabalhos em grupos e fazer as postagens das atividades nas plataformas
google classroom e PB works.

3.2 Instrumentos e Procedimentos da Pesquisa


Para a realização da pesquisa neste estudo, se fez necessário o uso,
principalmente, dos seguintes instrumentos e procedimentos: registros
em vídeo; diário de campo e journal e, o método de observação partici-
pante. Os dados foram obtidos na interação discursiva com os partici-
pantes, quer seja via plataforma interativa, em que a professora postava
as atividades que lhe era solicitada, ou por meio das aulas síncronas que
eram registradas em vídeos no Google Meet postadas durante no Google
Classroom posteriormente. Segue abaixo o quadro 1.

Quadro 1 - Instrumentos/procedimentos e registros


das atividades e plataforma/aplicativos.

Impressão dos participantes Registro


Journal Pbworks
sobre as atividades (vídeo 2) escrito
Registro
Produção de um mural virtual - Padlet
documental
Registro Criação em vídeo 2
- Google Classroom
documental Receita culinária
Observação- Ação dos discentes e interação
- Google Meet
participante nas aulas
Fonte: elaborado pela autora

572
3.3 Geração dos Dados: Córpus Tratamento dos Dados e Modo de
Descrição das Análises
O corpus da pesquisa segue o roteiro de duas etapas distintas: a
primeira trata da descrição do projeto 2 correspondente a unidade 4
do livro texto, pois ao longo da disciplina produção oral em LI foram
realizados pequenos projetos; a segunda refere-se à criação de um ví-
deo na elaboração de uma receita de um prato fitness e a produção de
um mural interativo multimodal com os procedimentos da criação do
referido prato e, por fim temos os excertos dos journals (diários) dos
discentes sobre as suas impressões da execução da tarefa de aprendiza-
gem dos gêneros multimodais.

Quadro 2: Corpus dos dados, procedimentos, instrumentos e registros – plataformas

Corpus Instrumento Plataforma


No dos Procedimentos
dados Registro Aplicativo

1 Etapa: Descrição do projeto sob a ótica dos multiletramentos - vídeo de ela-


boração da receita

Descrição do conteúdo e
Conteúdo e des-
das aulas sob a perspec- Registro do-
crição da ativida- Google
tiva dos multiletramen- cumental em
de da unidade 4 Classroom
tos –vídeo 2 e mural vídeo
do projeto
virtual.

2 Etapa e respectivas fases: produção em vídeo 2; mural virtual

Registro em
Produção de um vídeo e no
Reprodução de uma re- mural digital Google
vídeo e mural
ceita da tradição familiar Meet
virtual Observação
participante
Fonte: Elaborado pela autora

Para o tratamento dos dados foram consideradas as regularidades


das interações discursivas orais e escritas dos participantes. Foram se-
lecionados fragmentos dos journals que apontavam semelhanças – 3

573
excertos. Foram analisados os aspectos dos léxicos e ações que denota-
vam os discursos e as representações das identidades no contexto virtual.
As análises do vídeo e do mural interativo serão realizadas à luz
dos multiletramentos, tendo como sustentação os elementos de análise
de design que abordam a construção de significados com uma série de
questionamentos que conduzem o leitor e/ou analista da linguagem a
refletir sobre a amostragem da linguagem, a saber: referência, diálogo,
estrutura, situações e intenção (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO,
2020). Nas análises, serão usados nomes fictícios para preservar a iden-
tidade dos participantes.

4. Construção do projeto
A partir da unidade temática do livro texto, cujo tema versava sobre
comida e métodos culinários, foi desenvolvido um projeto, intitulado
“trabalho colaborativo com o gênero receita usando ferramentas digi-
tais” cujo objetivo era propiciar uma experiência real com a LI dentro
de um contexto de um ambiente familiar, envolvendo o gênero receita
e o letramento digital. Os discentes deveriam preparar um prato/sobre-
mesa favorito ou da tradição familiar, com o suporte das ferramentas
digitais a partir do trabalho colaborativo.
Inicialmente foram trabalhados os aspectos conversacionais, lin-
guísticos e gramaticais do livro texto, tais como: diálogos em pares fa-
lando de experiências de degustação de pratos regionais, usando tempos
verbais no simple past, present perfect e, sequence adverbs com um exer-
cício de fixação em uma receita de um prato típico regional. Também
foram apresentados métodos de cozinhar diferentes alimentos como
carnes, peixes e legumes etc., na LI.
Na primeira fase do projeto a professora aprofundou no uso do lé-
xico e expressões relacionados aos métodos de culinária, com exemplos
contextualizados com imagens associadas às dos verbos, tais como: mix,
put, cut, bake. O objetivo era instrumentalizar os discentes com a lin-
guagem específica para que pudessem se expressar na LI quando fossem
preparar o prato/sobremesa.

574
Em seguida, foi apresentado um vídeo do Youtube de um chefe
cozinhando, uma receita semelhante ao que os discentes tinham lido
no livro texto, que tinha alguns efeitos visuais, sonoros acompanhados
de legenda. O intuito era ilustrar o modo como eles poderiam gravar
e editar o vídeo. Além de reforçar o vocabulário e fazer com que se
apropriassem da estrutura do gênero receita a partir das perguntas de
compreensão textual.
O vídeo foi usado em um ambiente interativo de aprendizagem –
AVA gratuito denominado de Playposit. Esta ferramenta digital transfor-
ma um conteúdo passivo em uma experiência interativa. O professor pode
selecionar vídeos do Youtube, ou fazer o upload dos seus arquivos, como
documentários, filmes. O usuário pode fazer a edição e elaboração de per-
guntas interativas, tais como perguntas de múltiplas escolhas, discursivas.
O professor de inglês pode usar esse AVA para trabalhar a compre-
ensão oral, ou escrita, tanto no ambiente de sala de aula, como também
pode passar uma tarefa pedindo aos alunos que assistam filme, docu-
mentário, ou vídeo de música e que respondam as perguntas. Desse
modo, aproveita o espaço de sala de aula para fazer discussões aprofun-
dadas sobre o que os alunos já viram.
O desafio de aprendizagem era que eles pesquisassem na internet a
receita de um prato e/ou lanche favorito ou apresentassem uma receita
da tradição familiar. Eles receberam um roteiro com algumas recomen-
dações sobre como realizar cada etapa. Desde a distribuição das tarefas
dos componentes, quanto a aquisição dos ingredientes, e os registros de
cada fase do processo da criação do prato com fotografias, gravação em
vídeo e áudio que seriam editados e apresentados posteriormente. Eles
deveriam usar o gênero receita, respeitando o estilo e a linguagem.
Foi recomendado que eles criassem um Padlet - um mural intera-
tivo com todos os registros das etapas da realização do prato desde a
gravação do vídeo, uma narrativa justificando a escolha daquele prato.
Assim como deveriam usar o gênero receita. O objetivo é que eles usas-
sem o gênero para fazer coisas no mundo e não apenas estudar sobre o
gênero.

575
5. Resultados e discussão
Para a realização dessa tarefa de aprendizagem foram formados oito
grupos com três componentes, cada grupo escolheu um prato. A maio-
ria dos grupos optaram por sobremesas simples que usavam poucos in-
gredientes e que o custeio fosse barato, tais como mousse de chocolate,
mousse de limão, bolo fitness, mugunzá etc., mas também tiveram pra-
tos mais elaborado, como macarronada, pão de queijo.
Devido estarmos no período pandêmico, os discentes não se reu-
niram para a criação do prato/sobremesa, ou degustação. Então, eles
definiram entre si qual seria a função de cada componente de acordo
com a habilidade de cada um. Aqueles que tinham dotes culinários
optaram em fazer o prato, também tiveram alguns que se arriscaram a
fazer a sobremesa com ajuda de um membro da família, como no caso
de um participante que era casado, ou outra bem jovem e que teve
ajuda da avó. Eles também solicitaram a ajuda dos membros da família
para gravarem o vídeo via celular. Os outros componentes dos grupos se
encarregaram de gravar o áudio, editar o vídeo, escrever o gênero receita
e publicar no padlet.
Trazemos como exemplo um dos padlets elaborados por um grupo
que foi uma receita de um dos pratos apresentado por um grupo que
foi um bolo fitness.

Figura 1: Mural digital da receita fitness

Fonte: acervo da autora

576
O grupo era composto por duas garotas e um rapaz. Eles escolhe-
ram apresentar um bolo fitness - uma panqueca de aveia. Cada um
dos componentes ficou responsável por uma ação. Uma participante
preparou o bolo e narrou em áudio as etapas, um membro da família
ajudou com a gravação. Outro componente fez a narração do áudio
justificando o porquê da escolha desse prato e editou o vídeo, e outro
componente ficou responsável em criar a receita e publicar no padlet.
Na construção do mural, os participantes escolheram o título
Cooking with us o mesmo presente no vídeo. A primeira postagem do
mural foi o vídeo do prato preparado e pronto para o consumo intitu-
lada com a interjeição onomatopaica hummmm, depois eles identifica-
ram os participantes do grupo, em seguida indicaram qual prato vai ser
preparado, a postagem seguinte é a lista dos ingredientes, logo após o
modo de preparo e a última publicação foi um hiperlink para o visitante
acessar o vídeo da receita.
A característica de organização dos elementos no mural revela a
concordância da estrutura do mural com a do gênero receita, na seção
do modo de preparo é possível notar o uso de advérbios first, when e
after, a linguagem em segunda pessoa marcada pelas conjugações dos
verbos caracterizam o texto do gênero.
Para a criação do mural os alunos utilizaram a sinestesia
(KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p.192) para expressar sig-
nificado de modos diferentes, dentre eles: escritos (através da leitura
e escrita); visual (por imagens estáticas ou em movimento); espaciais
(posicionamento das postagens).
Vejamos algumas etapas da elaboração do prato na gravação em
vídeo e sua edição no gênero multimodal - receita culinária como os
participantes construíram significados, segundo o modelo de análise do
design ( KALANTZIS; COPE;PINHEIRO,2020).
A receita que o grupo decidiu fazer foi uma panqueca de aveia, que
tinha como ingredientes aveia, ovo e chocolate em pó. Ela foi descre-
vendo cada etapa da elaboração do prato, como adicionar os ingredien-
tes, até o processo de levar ao fogo e a fase de guarnição.

577
Figura 2: Panqueca fitness

Fonte: Acervo da autora

O vídeo produzido pelos alunos tem a duração de quatro minutos


e nove segundos, iniciando com um gif que faz referência ao significado
de elementos que compõem uma cozinha, a música de fundo é anima-
da e bem convidativa, a narração é feita por uma aluna que compõe o
grupo de acordo com os passos da receita. É possível notar que o vídeo
foi filmado em modo retrato priorizando as ações para a realização do
prato ao invés de quem está realizando-as, como mostram as figuras
abaixo:

Figura 3: ingrediente da panqueca Figura 4: preparo da panqueca fitness

Fonte: Acervo da autora Fonte: Acervo da autora

578
Os significados construídos na atividade (ver o conceito de Gee,
2010), revelam que os participantes desempenharam sua identidade de
designer e estabeleceram conexão entre os papéis de produtor/consumi-
dor, criador de sons/ouvintes. A escolha da organização do vídeo mostra
como os participantes criaram a coesão dos elementos audiovisuais com
o gênero receita, primeiro apresentando o prato qual foi preparado, os
ingredientes necessários, em seguida cada etapa do modo de preparo.
Um elemento que marca a coerência interna são os marcadores de se-
quência first, then, when after, next step usados para instruções dentro da
cozinha para execução de um prato.
Os significados construídos na produção dos alunos estão situados
no ambiente familiar, devido a situação pandêmica e de isolamento, em
alguns casos parcial que as famílias se encontravam e no contexto fami-
liar, o ato de cozinhar é visto como um gesto de demonstrar afeto por
alguém. O vídeo e as construções feitas ao longo do processo podem ser
usados como mecanismo de incentivo aos colegas e as suas famílias a
terem mais atenção com a saúde, compartilhar uma receita saudável de
panqueca, ou proporcionar um momento de lazer através da atividade
de cozinhar em conjunto enquanto se resguardam em casa.
A produção do vídeo permitiu que os discentes fizessem uso real
da língua nas atividades propostas, isso os impactaram. Neste excerto
vimos a satisfação da participante Maria na criação da receita em inglês
“[...]Fazer uma receita usando o inglês foi muito interessante, eu gosto de
atividades que me façam usar o inglês”. Maria é uma aluna fluente no
idioma, criar a receita na língua alvo foi um desafio positivo para ela.
Ela usa o marcador de intensidade muito adjetivado para firmar o seu
posicionamento “muito interessante”. Os alunos em sua maioria não
têm muitas oportunidades para usarem o inglês de maneira real, quan-
do isso acontece, aqueles que gostam ou dominam o idioma usufruem
desses momentos. O discente Júlio também enfatiza essa questão de
amostras da língua real que vão além do livro texto que propicia agên-
cia “[...] acredito que o uso de atividades de pôr a mão na massa que nos
incentiva a fazer o uso da língua em situações contextualizadas, muito mais

579
eficientes do que quando lemos um pequeno diálogo em um livro didático
[...]”. Uma coisa é ser apenas leitor/consumidor de gêneros, outra é ser
produtor. Luiza também valora positivamente e aponta que a tarefa de
aprendizagem vai para além dos muros da escola, pois posteriormente
eles poderão reproduzir esses pratos apresentados em sala de aula pe-
los colegas, além de ampliarem o seu repertório linguístico no idioma:
“[...]essa foi uma aula muito boa, de muito aproveitamento, pois além de
aprendermos pratos novos, ver o seu modo de preparo e seus ingredientes,
aprimoramos nosso vocabulário”.
Para a execução das atividades, os participantes fizeram uso da lin-
guagem formal como se estivessem falando diretamente com o interlo-
cutor, como no caso da criação do gênero receita em que se direciona o
interlocutor na elaboração da panqueca fitness. Eles não usaram a forma
contrata da língua nas produções, fazendo emergir o discurso escolar.
Os dados apontam que os discentes ao produzirem os textos pude-
ram trabalhar a habilidade de construção de sentidos com textos mul-
timodais, executando as atividades em cooperação agindo pessoalmen-
te ou coletivamente com flexibilidade, empatia, respeitando ao outro
mesmo com as diferenças de familiaridade e a facilidade de lidar com as
ferramentas e conciliar a rotina como por exemplo, a criação do vídeo
que exige mais tempo para editarem.
A produção dos textos nas atividades contribui para que os alu-
nos pudessem se apropriar do protagonismo que a cultura digital nos
proporciona. As produções dos participantes não se tornam artefatos
pessoais que apenas eles têm acesso; permite que os usuários do Padlet
acessem os murais e consequentemente os vídeos, compartilhando os
textos não deixando restrito apenas aos alunos da turma e a disciplina.

6. Considerações finais
As mudanças repentinas causadas pela pandemia na sociedade, fez
com que repensássemos algumas atividades feitas pelos indivíduos den-
tre uma destas, a forma de ensino foi uma delas. Mesmo com resis-
tência à inserção da cultura digital no cotidiano escolar, os professores

580
em pouco tempo tiveram de ressignificar a prática docente para serem
inseridos à nova realidade. A escola como instituição que participa na
formação do cidadão tem de se adaptar às exigências do meio social. Os
docentes da rede básica de ensino e do ensino superior público passaram
a utilizar as TDICs para a criação de ambientes digitais escolares e con-
tinuar a prática de ensino. Para adaptar as aulas remotas em um curso de
Letras/inglês a professora em uma disciplina de língua inglesa adaptou o
currículo, trabalhando com projetos nas unidades do livro texto.
Trabalhar com projetos na disciplina de Língua Inglesa tendo su-
porte em variadas plataformas e aplicativos digitais podem aproximar
os discentes de um ensino que faça sentido para eles, que os motivem
para querer aprender a língua adicional, como demonstramos neste es-
tudo. Para isso, na formação inicial de professores, deve-se desde os
primeiros períodos, discutir com os alunos os preceitos dos multiletra-
mentos, ou seja, vivenciar no cotidiano escolar o que os alunos já fazem
fora do espaço acadêmico.
O estudo revelou que mesmo os discentes participando de redes
sociais, fazendo uso de ferramentas digitais, muitos não conseguem
usá-las como recurso pedagógico satisfatoriamente. Há alguns alunos
que têm predisposição e representam um ethos tecnológico; conseguem
editar vídeos, manusear aplicativos e navegar em diferentes plataformas
com facilidades. Outros precisam ainda ser mais estimulados e oportu-
nizados. Uma das formas para que se promova o letramento digital é
oferecer oficinas dentro da disciplina com tutoriais para que eles per-
cam esse receio de usar as ferramentas digitais proativamente. Para isso,
o professor precisa oportunizar tarefas de aprendizagem que desafiem os
alunos para se tornarem designers.

7. Referências
AROUCHE, I.L R. Letramentos Críticos na Formação Inicial de Professores de
Inglês como Língua Estrangeira. 244f . Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) -
Universidade do Vale do do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em Linguística
Aplicada, São Leopoldo, RG, 2020.

581
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Base Nacional
Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 09 nov.2021.

COPE, B.; KALANTZIS, M.; ABRAMS, S.S. Multiliteracies Meaning-Making and


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FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários para a prática educativa. São


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GEE.J.P Introducing Discourse Analysis : from grammar to society. Routledge, 2018.

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583
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

A METHODOLOGICAL PATHWAY TOWARDS


LANGUAGE STYLE IN DOUGLAS BIBER AND
KEN HYLAND’S ACADEMIC REGISTERS

UM CAMINHO METODOLÓGICO PARA O


ESTILO NA LINGUAGEM NOS REGISTROS
ACADÊMICOS DE DOUGLAS BIBER E KEN
HYLAND

Janailton Mick Vitor da Silva – IFB/UFMG


Deise Prina Dutra – UFMG

ABSTRACT: This paper aims at proposing a preliminary methodological


pathway towards investigating language used in academic texts from a
style perspective (BIBER; CONRAD, 2009; LEECH; SHORT, 2007;
McMENAMIN, 2002). The main goal of this study is to unveil the linguistic
academic styles of two renowned applied linguistics scholars, Douglas Biber
and Ken Hyland, by comparing the ways they employ lexico-grammatical
items and how other scholars employ the same items in academic registers. In
this research, corpus linguistics (CL) will be used as an approach (TOGNINI-
BONELLI, 2001) to perform linguistic analysis based on corpora. The
methodological steps to carry out this investigation have been proposed as
follows: i) Compilation of two study corpora and one reference corpus using
WordSmith Tools® (SCOTT, 2022) – the 1st study corpus consists of Biber’s
single-authored academic registers (i.e. books, book chapters, journal articles),
published through 1984-2022, while the 2nd one contains Hyland’s texts
published in the same period; the reference corpus has five times (BERBER
SARDINHA, 2000) as many academic texts written by various scholars in
the area of applied linguistics, compiled following the same study corpora
criteria; ii) quantitative and qualitative identification of lexico-grammatical
items, distinctive in the study corpora compared to the reference corpus,
by means of Keywords; iii) comparison between the ways Biber and Hyland
employ specific lexico-grammatical items to the way other academic writers
use the same items, by contrasting both study and reference corpora using
Concord, in order to set out Biber’s and Hyland’s stylistic profiles based on

584
lexico-grammatical patterns typical of their academic writing. By means of
such a methodological pathway and thorough contextualized data analyses,
we hope to unveil the linguistic academic styles of both scholars.
KEYWORDS: language style; academic writing; language use; lexico-
-grammatical items corpus linguistics.

RESUMO: Este artigo tem, como objetivo, propor um caminho metodológico


preliminar para investigar a linguagem utilizada em textos acadêmicos a partir
de uma perspectiva de estilo (BIBER; CONRAD, 2009; LEECH; SHORT,
2007; McMENAMIN, 2002). O objetivo principal deste estudo é desvendar
os estilos linguísticos acadêmicos de dois renomados estudiosos da linguística
aplicada, Douglas Biber e Ken Hyland, comparando as formas como empregam
itens léxico-gramaticais e como outros estudiosos usam esses itens em registros
acadêmicos. Nesta pesquisa, a linguística de corpus (LC) será utilizada como
abordagem (TOGNINI-BONELLI, 2001) para realizar análises linguísticas
baseadas em corpora. Os passos metodológicos para realizar esta investigação
foram propostos da seguinte forma: i) compilação de dois corpora de estudo e
um corpus de referência, usando o WordSmith Tools® (SCOTT, 2022) – o 1º
corpus de estudo consiste em registros acadêmicos de autoria única de Biber
(ou seja, livros, capítulos de livros, artigos de periódicos), publicados entre
1984-2022, enquanto o 2º contém os textos de Hyland publicados no mesmo
período; o corpus de referência tem cinco vezes (BERBER SARDINHA,
2000) mais textos acadêmicos do que os corpora de estudo, escritos por
diversos estudiosos da área de linguística aplicada, compilados seguindo os
mesmos critérios anteriores; ii) identificação quantitativa e qualitativa de itens
léxico-gramaticais, diferenciados no corpora de estudo em relação ao corpus de
referência, por meio da ferramenta KeyWords; iii) comparação entre as formas
como Biber e Hyland empregam itens léxico-gramaticais específicos com a
maneira que outros escritores acadêmicos usam os mesmos itens, contrastando
tanto os corpora de estudo quanto o de referência, usando o Concord, a fim
de estabelecer os perfis estilísticos de Biber e Hyland, com base nos itens
léxico-gramaticais típicos de sua escrita acadêmica. Por meio de tal percurso
metodológico e de análises minuciosas e contextualizadas de dados, esperamos
desvendar os estilos linguísticos acadêmicos de ambos os estudiosos.
PALAVRAS-CHAVE: estilo na linguagem; escrita acadêmica; uso da lingua-
gem; itens léxico-gramaticais; linguística de corpus.

585
1. Introduction
This paper aims at proposing a preliminary methodological path-
way towards investigating language used in academic texts from a style
perspective (BIBER; CONRAD, 2009; LEECH; SHORT, 2007;
McMENAMIN, 2002). This pathway will subsidize the stylistic pro-
filing of two renowned applied linguistics scholars, Douglas Biber and
Ken Hyland. For this purpose, corpus linguistics (CL) will be used as
an approach (TOGNINI-BONELLI, 2001) to perform linguistic anal-
yses based on corpora. The main goal of such an investigation is to
unveil the linguistic academic styles of these scholars, by comparing
the ways they employ lexico-grammatical items and how other scholars
utilize the same items in academic registers.
Style, in the ongoing investigation, has been understood as an aca-
demic writer’s personal form of expression, his/her peculiar way of em-
ploying various lexico-grammatical features in specific social contexts,
aiming at an audience and achieving predetermined goals by means
of typical language choices. For instance, the way an author employs
an adjective in a predicative and not in an attributive position may
characterize a personal linguistic preference which, tied to other consis-
tent language choices, will subsidize the identification of his/her style
(BIBER; CONRAD, 2009; CÂMARA JÚNIOR, 1978; CRYSTAL,
2013; GARCIA, 2006; HENRIQUES, 2011; LEECH; SHORT,
2007; McMENAMIN, 2002).
To pursue these research goals, a corpus linguistics (CL) meth-
odological framework will be proposed in this paper. The core of our
investigation departs from the empirical side of the language (the ‘per-
formance’) produced by language users, according to thorough obser-
vation of natural data available in corpora (McENERY; WILSON,
2001). Specifically, we use tools for compilation and in-depth analysis
of our corpora, namely WordList, KeyWords and Concord of WordSmith
Tools© (WST), version 8 (SCOTT, 2022). These steps are described
and discussed in detail in section 3 of this proceedings paper.

586
2. Language style: introductory concepts
Style has been defined as “[…] the way in which language is used
in a given context, by a given person, for a given purpose, and so on”
(LEECH; SHORT, 2007, p. 9). Every choice made within the lan-
guage comes from a subject (or a group) who, in a social and specific
context, seeks to impact his/her audience in a certain way. In addition,
the term refers to the way the language is used in a literary school,
in a textual genre, and/or in a specific historical period (CÂMARA
JÚNIOR, 1978; LEECH; SHORT, 2007).
We also understand style as the “[...] personal form of expression
[...]”113 (GARCIA, 2006, p. 123, our translation114) of that individual
or a social group, or “[...] the definition of a personality in linguistic
terms”115 (CÂMARA JÚNIOR, 1978, p. 13), when using “[...] phono-
logical, morphological, syntactic, lexical, semantic, discursive resources
of the language to express, orally or in writing, thoughts, feelings, opin-
ions etc.”116 (HENRIQUES, 2011, p. 27). However, it would still be
necessary to understand what is unique or what this ‘personal’ form of
expression is. To bridge this gap, Crystal (2013) proposes that the focus
of stylistics would be on linguistic distinction, that is, on what is pecu-
liar to an individual or social group that separates him/her (in terms of
language use) from another individual or group.
Biber and Conrad (2009) have proposed that style is the third among
three perspectives on text varieties, added to register and genre approaches.
According to the scholars, a “register perspective combines an analysis of
linguistic characteristics that are common in a text variety with analysis of
the situation of use of the variety” (BIBER; CONRAD, 2009, p. 2). The
authors add that the genre perspective is similar to the latter, however,
113
“[...] forma pessoal de expressão [...]” (GARCIA, 2006, p. 123).
114
All translations in this paper are ours, unless otherwise stated.
115
“[...] a definição de uma personalidade em termos lingüísticos” (CÂMARA JÚ-
NIOR, 1978, p. 13)
116
“[...] recursos fonológicos, morfológicos, sintáticos, lexicais, semânticos, discursivos da
língua para expressar, oralmente ou por escrito, pensamentos, sentimentos, opiniões,
etc.” (HENRIQUES, 2011, p. 27).

587
[…] it includes description of the purposes and situational
context of a text variety, but its linguistic analysis contrasts
with the register perspective by focusing on the conventional
structures used to construct a complete text within the variety
(BIBER; CONRAD, 2009, p. 2).

Finally, the style perspective, our main concern in this research,


“[…] is similar to the register perspective in its linguistic focus, analyz-
ing the use of core linguistic features that are distributed throughout
text samples from a variety” (BIBER; CONRAD, 2009, p. 2). The key
difference between these two approaches lies in the fact that while the
use of linguistic features in a register study “[…] is not functionally
motivated by the situational context” (BIBER; CONRAD, 2009, p. 2),
those features, from a style perspective, “[…] reflect aesthetic preferenc-
es, associated with particular authors or historical periods.” (BIBER;
CONRAD, 2009, p. 2).

Table 01. Outline of style analysis proposed by Biber and Conrad (2009, p. 16).

DEFINING CHARACTERISTIC STYLE


Textual focus sample of text excerpts
Linguistic characteristics any lexico-grammatical feature
frequent and pervasive in texts from the
Distribution of linguistic characteristics
variety
features are not directly functional; they
Interpretation are preferred because they are aestheti-
cally valued
Source: Our elaboration.

In our investigation, we advocate that Biber’s and Hyland’s lan-


guage choices retrieved from their academic texts may also suggest
preferences regarding the aesthetics of academic writing rhetoric (check
Biber and Gray (2016) for grammatical complexity, considered a major
indicator of academic writing prose style). In sum, style

is a reflection of group or individual variation in written language.


Individual variation is a result of the writer’s choices of one form

588
out of the array of all available forms. Choices represent variations
within a norm (different ‘correct’ ways of saying the same thing),
deviations from a norm (mistakes), and idiosyncrasies (author-
specific forms). (McMENAMIN, 2002, p. 130).

The style of Biber and Hyland will be revealed by their unique


aggregate set of lexico-grammatical patterns resulting from habitual use
of some or all of the forms in the set. By figuring out what is peculiar in
both Biber’s and Hyland’s academic language repertoire, we may unveil
their language style in academia. For that, we will pursue the investiga-
tive methodological pathway proposed in this paper.

3. A METHODOLOGICAL PATHWAY TOWARDS


LANGUAGE STYLE
In this research, corpus linguistics (CL) is used as an approach
(TOGNINI-BONELLI, 2001) to perform linguistic analyses based on
corpora. The methodological steps to carry out this investigation have
been proposed as follows:

1) Compilation of the corpora using WST®


This step entails compiling three corpora: two study corpora and
one reference corpus. By drawing on Berber Sardinha’s (2004) prereq-
uisites towards corpus compilation, we understand that a corpus must
be representative and contain authentic texts both produced in natural
language and compiled following solid criteria pre-defined according to
the research goals. Both study and reference corpora will be compiled
using the WordList tool of WST®.
The 1st study corpus consists of Biber’s single-authored academic
texts (i.e. books, book chapters, journal articles), published through
1984-2022, while the 2nd one will contain Hyland’s texts published in
the same period. A point must be made clear concerning both authors’
academic productions. While Biber has published 25 journal articles, 3

589
books, and 16 book chapters as a single author, Hyland, himself, how-
ever, has released 112 journal articles, 18 books, and 74 book chapters.
Since there is a significant difference between such production, we will
randomly select, from Hyland’s publications, the same number of arti-
cles, books, and book chapters as Biber’s production, as an attempt to
equalize the quantity of texts and words.
All these texts were downloaded from the web and saved to com-
puter folders on the research’s archive. The .pdf files will be converted
into .txt documents (Unicode) using online programs. Possible con-
verting errors will be checked for and eliminated so as not to compro-
mise the files processing on WST® Wordlist.
It is important to use a reference corpus to have a comparison
parameter to illustrate what is particular to Biber’s and Hyland’s lan-
guage repertoire and is probably not peculiar in other academic writ-
ers’ repertoire. It is relevant that this type of corpus be, as stated by
Berber Sardinha (2000), at least five times greater than the study cor-
pora, since this size may guarantee more reliable results. Therefore,
we downloaded linguistics texts from Lawrence Anthony’s (2022)
AntCorGen, a freeware discipline-specific corpus creation tool. The
texts encompass 17 areas of research in linguistics. Since the tool
currently has 3,012 texts, thus surpassing more than 5 times the size
of the study corpora, we reduced the number of texts downloaded
to only Berber Sardinha’s (2000) recommendation. To this author,
reference corpora five times larger than the study corpus do not
accomplish significant results. The choice of texts will be random.
Finally, additional corpora might serve as complementary reference,
such as larger general language corpora as the British National Corpus
(BNC) and the Corpus of Contemporary American English (COCA).
The importance of using general language corpora is to have an idea
of how distinctive (and therefore unique) Biber’s and Hyland’s styles
are as compared to language that is expected to be used in daily used
registers.

590
2) Quantitative and qualitative identification of lexico-grammatical
items, which are distinctive in the study corpora compared to the
reference corpus
A combined approach towards corpus exploration is taken in this
step: corpus-driven and corpus-based (TOGNINI-BONELLI, 2001).
We subscribe to Biber and Conrad’s (2009) argument that deciding
ahead of time what linguistic features to use for register (in our case,
style) analysis is a difficult task, since various features might likewise
seem relevant for analysis. Rather, it is important to check what the
corpus initially discloses so as to proceed with making specific decisions
for deeper style analysis later on. Therefore, the Keywords tool of WST®
will be used here to perform this task, similarly to Hyland (2010).
According to Scott (2022), Keywords program compares two pre-ex-
isting wordlists, which must have been created using the WordList tool.
The 1st wordlist comprises words from the study corpora (Biber’s and
Hyland’s texts), and the 2nd one consists of words found in the reference
corpus (AntCorGen’s texts). Scott (2022)117 further adds:
A word is said to be ‘key’ if

a) it occurs in the text at least as many times as the user has


specified as a minimum frequency
b) its frequency in the text when compared with its frequency
in a reference corpus is such that the statistical probability as
computed by an appropriate procedure is smaller than or equal
to a p value specified by the user
c) in addition, the strength of keyness must be at least as great
as the minimum log ratio set by the user.

The program thus selects keywords based on the comparison of


frequency patterns, showcasing both positive and negative words118.

117 Available at: https://lexically.net/downloads/version_64_8/HTML/keyness_


definition.html . Access on: 05 Aug. 2022.
118 Scott (2022) highlights the following:
• A word which is positively key occurs more often than would be expected by
chance in comparison with the reference corpus.

591
Positive keywords are those found more frequently in the study corpus
than in the reference corpus, while negative keywords are more often
noticed in the reference corpus. Therefore, we will compare Biber’s and
Hyland’s texts to the AntCorGen texts. Relevant lexico-grammatical
items in the form of single words, collocations, and n-grams may be re-
vealed here as keywords in the corpora, which will then serve as a basis
for qualitative analysis using Concord, as we see next.

3) Comparison between the ways Biber and Hyland employ


specific lexico-grammatical items to the way other academic
writers employ the same items, by contrasting both study and
reference corpora, in order to set out Biber’s and Hyland’s
stylistic profiles based on lexico-grammatical patterns typical
of their academic writing
Up to this point in the research, a few lexico-grammatical items
(i.e. single words, collocations, n-grams) will have already been selected
to undergo further in-depth analysis towards Biber’s and Hyland’s sty-
listic profiling using the Concord tool available on WST®.
To begin with, it is necessary to figure out whether these Biber’s
and Hyland’s frequent and infrequent lexico-grammatical items (clas-
sified as positive and negative by WST® keywords, respectively) have
resulted from academic writing prose style or they can be attributed
to their particular way (and therefore style) of using language while
doing academic writing. To proceed with this step, searches are con-
ducted in the reference corpora and in BNC and COCA for the key
lexico-grammatical items that had previously proven to be the most and
the least prominent in Biber’s and Hyland’s repertoire. Further com-
parison to linguistic data collected from larger general language cor-
pora are likewise important in this stage, since style is also defined by
means of unique linguistic choices that distinguish themselves among

• A word which is negatively key occurs less often than would be expected by chan-
ce in comparison with the reference corpus.

592
many others (STUBBS, 2005). Additional theoretical support is also
fundamental here, such as the studies on grammatical complexity in
academic English, considered a major indicator of academic prose style
(BIBER; GRAY, 2016).
Having pursued the previous step, we can then proceed with
looking upon the choices that are significantly typical of Biber’s and
Hyland’s style, and thus try to search for any other potential motivation
underlying their choices when opting for particular items over others,
such as the construction of authorial identity in academia (HYLAND,
2010). This quest is aligned with Biber and Conrad’s (2009) under-
standing that style choices are not functionally motivated by the situ-
ational context, but by the writer’s aesthetic preferences. If any further
motivation is recognized, we will attempt to name it (or them). If the
study corpora in comparison to the reference corpora do not disclose
further traces as far as this point is concerned, complementary search
should be conducted elsewhere, such as in interviews Biber and Hyland
have given on academic rhetoric.
Although we understand that a style analysis is certainly compre-
hensive, we do not want to overlook the fact that other agents may have
influenced Biber’s and Hyland’s linguistic choices, especially during
proofreading and editing stages. However, our attention will be direct-
ed particularly to the texts resulting from such processes, since tracking
other people’s editions to the authors’ texts may be a daunting, if not an
impossible task to carry out here. Additionally, as to Biber and Conrad
(2009), because the academic texts composing both study and reference
corpora may have been produced in similar situational contexts to one
another, potential differences concerning this aspect will be disregard-
ed, unless prominently relevant for the ongoing investigation.

4. Final remarks
This paper has proposed a preliminary methodological pathway to-
wards investigating language used in academic registers written by two
renowned applied linguistics scholars, Douglas Biber and Ken Hyland,

593
from a style perspective. Similar to any other academic investigation,
we understand that challenges may appear on the way and demand that
we reshape certain steps of such a proposal.
Nonetheless, we have chosen CL as an approach to perform lin-
guistic analyses based on our corpora. As mentioned, the steps sug-
gested here involve compiling three corpora using WST®; identifying
lexico-grammatical items distinctive in the study corpora compared to
the reference corpus; and comparing the ways Biber and Hyland use
these items in each other’s texts, as well as how other academic writers
use the same items, thus unveiling the stylistic profiles of both authors.
A relevant point must be made here regarding the corpora to be
used. Firstly, the study corpus of applied linguistics, although con-
sisting of only two scholars’ texts, may be used in future research as
we intend to make it available for the academic public free of charge,
though abiding by copyright issues. Additionally, the reference corpora,
AntCorGen subcorpus, BNC and COCA, should be paramount as tra-
ditional comparative sources largely used in CL-based papers. While
AntCorGen made it easy for us to compile a subcorpus, BNC and
COCA are readymade corpora matching our goals and saving us time
in what is a time-consuming research phase.
Considering what has been discussed here, by means of the intend-
ed methodological pathway and thorough contextualized data analyses,
we hope to unveil the linguistic academic styles of Biber and Hyland,
also contributing to the understanding of what style in academia looks
like.

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BUILDING LANGUAGE STYLE THROUGH


COLLOCATIONS AND STANCE MARKERS:
A CASE STUDY IN APPLIED LINGUISTICS
ARTICLES

CONSTRUINDO ESTILO NA LINGUAGEM


ATRAVÉS DE COLOCAÇÕES E MARCADORES
DE POSICIONAMENTO: UM ESTUDO DE
CASO EM ARTIGOS DA LINGUÍSTICA
APLICADA

Janailton Mick Vitor da Silva – IFB/UFMG


Deise Prina Dutra – UFMG

ABSTRACT: This paper aims at presenting how collocations and stance


markers are used in journal articles written by a renowned scholar, Douglas
Biber, by means of corpus linguistics analyses carried out on two corpora, the
Biber Corpus (BC) and the Corpus of Applied Linguistics Articles (CorALA). Such
analyses have sought to demonstrate how style (BIBER; CONRAD, 2009;
LEECH; SHORT, 2007; McMENAMIN, 2002) may be built in academic
texts by means of specific language choices in the form of collocations and
stance markers (BIBER, 2006; FRANKENBERG-GARCIA, 2018; BIBER
et al.., 2021). In this research, corpus linguistics (CL) has been used as an
approach (TOGNINI-BONELLI, 2001) to subsidize the corpus compilation
steps, the data extraction and linguistic analyses through AntConc, v. 3.5.9
(ANTHONY, 2020). Frequent collocations common to both corpora are
“the present study”, “the use of ”, “the extent to which”, and “at the same
time”, while different collocations (highlighting the themes of the articles)
are “linguistic features” and “grammatical features (in BC), and “language
learners” and “language acquisition” (in CorALA). Pronouns figured as the
only grammatical device not observed as positively key in BC, showing greater
significance in CorALA, while adjectives, adverbs, modal verbs, and nouns
were similarly key in both corpora. As for modal verbs, by opting for “can”
and “must” over “may” and “could”, Biber takes stronger stances towards his
claims and builds an assertive, confident self-image in academia as opposed

597
to the other scholars. Based on these results, the contextualized linguistic
analyses have revealed a similar stylistic preference between BC and CorALA
for specific collocations, and, in the case of stance markers, striking results
that reveal Biber’s style and personality in academic rhetoric.
KEYWORDS: language style; collocations; stance; academic writing; corpus
linguistics.

RESUMO: Este artigo tem, como objetivo, apresentar como colocações e


marcadores de posicionamento são utilizados em artigos de periódicos escritos
por um renomado estudioso, Douglas Biber, por meio de análises realizadas
sob viés da linguística de corpus em dois corpora, o Biber Corpus (BC) e o
Corpus of Applied Linguistics Articles (CorALA). Tais análises buscaram
demonstrar como o estilo (BIBER; CONRAD, 2009; LEECH; SHORT,
2007; McMENAMIN, 2002) pode ser construído em textos acadêmicos por
meio de escolhas linguísticas específicas na forma de colocações e marcadores
de posicionamento (BIBER, 2006; FRANKENBERG-GARCIA, 2018;
BIBER et al., 2021). Nesta pesquisa, a linguística de corpus (LC) foi utilizada
como abordagem (TOGNINI-BONELLI, 2001) para subsidiar as etapas de
compilação de corpus, extração de dados e análises linguísticas por meio do
AntConc, v. 3.5.9 (ANTHONY, 2020). As colocações frequentes comuns aos
dois corpora são “the present study”, “the use of ”, “the extent to which” e “at
the same time”, enquanto as diferentes (destacando os temas dos artigos) são
“linguistic features” e “grammatical features (no BC), e “language learners” e
“language acquisition” (no CorALA). Os pronomes figuraram como o único
recurso gramatical não observado como tendo chavicidade positiva no BC,
mostrando maior significância no CorALA, enquanto adjetivos, advérbios,
verbos modais e substantivos tiveram similar chavicidade em ambos os
corpora. Quanto aos verbos modais, ao optar por “can” e “must” em vez
de “may” e “could”, Biber assume posturas mais fortes em relação às suas
reivindicações e constrói uma autoimagem assertiva e confiante na academia
em oposição aos demais estudiosos. Com base nesses resultados, as análises
linguísticas contextualizadas revelaram uma preferência estilística semelhante
entre o BC e CorALA por colocações específicas e, no caso de marcadores de
posicionamento, resultados marcantes que revelam o estilo e a personalidade
de Biber na retórica acadêmica.
PALAVRAS-CHAVE: estilo na linguagem; colocações; posicionamento; es-
crita acadêmica; linguística de corpus.

598
1. Introduction
An individual, while producing language, leaves his/her fingerprint
in different texts, revealing a style that may be promptly tied to that
person. Style, in this paper, refers to an academic writer’s personal form
of expression, his/her peculiar way of employing various lexico-gram-
matical features in specific social contexts, aiming at an audience and
achieving predetermined goals by means of typical language choices
(LEECH; SHORT, 2007; McMENAMIN, 2002).
In this research, we present how collocations and stance markers
are used in journal articles written by a renowned scholar, Douglas
Biber, by means of corpus linguistics analysis carried out on two corpo-
ra, the Biber Corpus (BC) and the Corpus of Applied Linguistics Articles
(CorALA). The analysis seeks to demonstrate how his style may be iden-
tified in some journal articles by the way he crafts language through
collocations (FRANKENBERG-GARCIA, 2018; SCOTT; TRIBBLE,
2006; SINCLAIR, 1991; 2004) and stance markers (BIBER; 2006;
BIBER et al., 2021).
Additionally, this paper attempts to challenge the myth of a dry,
impersonal discourse in academic writing (HYLAND, 2002). We in-
tend to show that scholars, as writers producing various registers, make
use of certain lexical-grammatical features to express their views, atti-
tudes, opinions, levels of certainty etc. in their texts. Particularly in the
case of stance usage, we build evidence against an “[…] idealized repre-
sentation of university language, [in which] there would be no need for
stance expressions” (BIBER, 2006, p. 87).
We also understand, however, that levels of (im)personality have
been associated with disciplines (HYLAND, 2000). In our paper, we
conceive of academic discourse, especially in the discipline of applied
linguistics, as another social field of authorial style expression. If “al-
most everything we write says something about us and the sort of rela-
tionship that we want to set up with our readers” (HYLAND, 2002, p.
352), it is arguable that whatever linguistic choice an academic writer
makes, be it in the form of collocations and/or stance markers, will

599
serve to engage with audience, mark personality in writing, and reveal
authorial style.

2. Language style through collocations and stance markers


Style has been defined as “[…] the way in which language is used
in a given context, by a given person, for a given purpose, and so on”
(LEECH; SHORT, 2007, p. 9). Every choice made within the lan-
guage comes from a subject (or a group) who, in a social and specific
context, seeks to impact his/her audience in a certain way. In addition,
the term refers to the way the language is used in a literary school, in a
textual genre, and/or in a specific historical period (LEECH; SHORT,
2007).
McMenamin (2002, p. 130), notably tied to forensic linguistics,
has defined style as the “[…] reflection of group or individual variation
in written language. Individual variation is a result of the writer’s choic-
es of one form out of the array of all available forms”. Among various
forms in language, collocation is a lexical feature used by writers to build
style, being one of several lexico-grammatical features listed by Leech
and Short (2007). The understanding of formulaic language in liter-
ature has been referred to as “chunks, collocations, fixed expressions,
formulaic language, idioms, lexical bundles, multiword units, prefab-
ricated units, set phrases” (FRANKENBERG-GARCIA, 2018, p. 93).
Although these terms are interconnected, in this paper, we prefer the use
of the term collocations, in the basic sense that “the choice of one word
conditions the choice of the next, and of the next again” (SINCLAIR,
2004, p. 19). The co(n)text of occurrence of a word (node) determines
its surrounding to-be-partnered words (collocates), thus forming the
collocations, broadly viewed as combinations of words that often occur
together as revealed from our corpora.
Aligned with this notion lies the co-occurrence principle, which
is observed when “[…] two [or more] word-forms are found to-
gether (co-occur) more often than chance would predict” (SCOTT;
TRIBBLE, 2006, p. 33). In our corpora, for instance, some nodes such

600
as “language” have often collocated with “learners”, “acquisition” etc.
as AntConc has shown. Collocations, belonging to the idiom princi-
ple as understood by Sinclair (1991), may be contiguous (“carry out
research”) and noncontiguous (“carry out much-needed research”)
(FRANKENBERG-GARCIA, 2018, p. 94).
Another linguistic feature that may be used to mark authorial
style is hereby comprehended as stance markers. Biber (2006, p. 87)
reinforces that there is no such a way academics may be impersonal in
their texts, as they often “seem more concerned with the expression of
stance than with the communication of ‘facts’”. To this end, individuals
employ stance markers with the intention to “express [their] personal
feelings, attitudes, value judgments, or assessments” towards what is be-
ing said or written or to another proposition available in the discourse
(BIBER et al., 2021, p. 958).
Like the understanding of formulaic language, linguistic mech-
anisms used to address writers’ personal feelings and assessments en-
compass a myriad of labels, such as “‘evaluation’; ‘intensity’; ‘affect’;
‘evidentiality’; ‘hedging’; ‘modality’ and ‘stance’” (BIBER, 2006, p. 87).
Aligned with Biber’s (2006) choice for the term ‘stance’, we share that
stance meanings are expressed in many ways, including grammatical
devices, word choice, and paralinguistic devices to convey evaluation,
affect, certainty, etc.
Biber et al. (2021) have discovered that adverbials and complement
clauses with verbs and adjectives are the two most common ways to
convey stance in discourse. Lexical choice alone is also found to mark
stance. Adjectives (good, lovely, nice) and verbs in simple declarative
forms (like, love, want) are often evaluative in nature. In academic
prose, for instance, adjectives are commonly found as predicative, “dif-
ficult, important, likely, necessary, possible, true”, and attributive, “ap-
propriate, good/best, important, practical, useful” (BIBER et al., 2021,
p. 961). All in all, as the scholars’ research has shown, there are a few
grammatical devices used to express stance, such as: stance adverbials;
stance complement clauses; modals and semi-modals; stance noun +

601
prepositional phrase; premodifying stance adverb (stance adverb + ad-
jective or noun phrase).
These grammatical devices accomplish at least three semantic func-
tions: epistemic, attitudinal, and styles of speaking. According to Biber
et al. (2021), language users employ epistemic markers to convey “cer-
tainty (or doubt), actuality, precision, or limitation”, or yet to “indicate
the source of knowledge or the perspective from which the information
is given” (p. 964). Attitudinal markers are employed to “report person-
al attitudes or feelings” and emotions (p. 966). At last, stance devices
marking style of speaking serve to present “speaker/writer comments on
the communication itself ” (p. 967).
As our stance data discussion will focus on modals, we provide a
summarized definition of modal meanings:

Table 01. Modal meanings

Modals Downing (2015) Swan (2016) Biber et al. (2021)


can ability, possibility, permission, ability ability, logical possibility,
informal permission permission
may possibility, strong possibility, logical possibility
permission (more permission (more
formal) formal)
could possibility weak possibility, logical possibility than
ability permission or ability
must logical necessity, deduction (high logical necessity, personal
obligation probability), strong obligation
obligation
Source: Our elaboration.

As to Biber et al. (2021), modals (including semi-modals) are the


most common stance-marking grammatical device, showing different
distributions across registers, but more often used in conversation than
in academic registers. “May” is extremely common in academic prose
compared to the other three modal verbs. While “can” is particularly
more frequent in conversation and academic prose, “could” is more no-
ticed in fiction. “Must”, at last, is relatively common in academic prose.

602
3. Designing the study and the corpora
In this paper, corpus linguistics (CL) has been used as an approach
(TOGNINI-BONELLI, 2001) to subsidize the corpus compilation
steps, and both the data extraction (through Word List, Concordance,
Clusters/N-Grams, Collocates, and Keyword List on AntConc 3.5.9) and
linguistic analyses.
To this end, we have compiled the Biber Corpus (BC), consisting
of 25 journal articles among other registers written by the scholar. We
opted for single-authored texts so as to control authorship. All these
texts were cataloged on Biber’s personal website119, and were download-
ed from web pages and saved to the research computer folders. Since
we had files in both .OCR and .PDF formats, we converted them into
.DOC. Using basic automated Word processors, we edited the texts by
correcting typos and other conversion-resulting errors, such as in “distri-
bu-tion → distribution”. Later, we withheld in brackets (<>) the abstracts
and keywords, citations, titles of the journal sections and subsections
(<Introduction>), information related to the author (<Douglas Biber
Northern Arizona University, Flagstaff>), years of cited bibliographic
works (<2000>), and added text-related identification tags (<text id =
BC.JA.2011.01>). Lastly, we saved the files into .TXT (UTF-8).
Check an example of a tagged journal article from Biber Corpus in
Image 01 below:

Image 01. Example of a tagged journal article from Biber Corpus.

Source: Our elaboration.

119
Available at: https://dougbiber.weebly.com/academic-articles.html Access on: 11
Apr. 2022.

603
As a reference corpus, we have used the Corpus of Applied Linguistics
Articles (CorALA) (DUTRA; BERBER SARDINHA, 2021). The cor-
pus contains 144 multi-authored journal articles, compiled from rele-
vant journals such as Journal of EAP, Language Learning and Technology,
TESOL Quarterly. The charts below show the numbers of types and
tokens of both BC and CorALA obtained through Word List.

Chart 01. BC results.

Source: Our elaboration.

Types = 5,745 / Tokens = 137,737

Chart 02. CorALA results.

Source: Our elaboration.

Types = 24,217 / Tokens = 982,643

604
To serve as a basis for our linguistic investigation, we have used
AntConc to search for collocations and stance markers. For both cases,
we applied multiple tools from the program, such as Clusters/N-Grams,
Collocates, and Concordance. Specifically for stance markers, we opted
for Keyword List, using CorALA as a reference corpus to BC. These re-
sults and data analyses are presented and discussed next.

4. A case study in applied linguistics articles


4.1 Collocations
Initially, we checked for the most frequent n-grams with 2, 3
and 4 items in both corpora. Similar n-grams shared between BC and
CorALA, such as bi-grams resulting from phrases and clauses, like “of
the”, “in the”, “to the”, and “on the”; tri-grams and four-grams used
to structure discourse and argumentation in academic writing, such
as “the use of ”, the present study”, and “at the same time”, “the extent
to which”. Checking the relative frequency (in %) of such occurrences
raises potential differences in use, as shown below:

Table 02. Most common n-grams in both corpora measured by relative frequency.

n-grams BC CorALA
of the 2,23230417 2,253482
in the 1,53370538 1,9761589
2-grams
to the 0,71867347 0,8504987
on the 0,56811338 0,6599549
the use of 0,13717421 0,09408446
3-grams
the present study 0,0706655 0,04094286
the extent to which 0,03895466 0,00965645
4-grams
at the same time 0,02371153 0,01212671
Source: Our elaboration.

Interestingly, we now realize that both pairs of n-grams with 3 and


4 items are more frequent in BC than in CorALA, suggesting Biber’s
preference for such items differently from the other scholars. A few
in-context examples are presented below:

605
Table 03. Most frequent n-grams in context: excerpts from both corpora.

“First, the use of a communication verb as controlling element


[…]” (BC.JA.2004.01)
“The present study analyzes the distribution of 33 linguistic
markers […]” (BC.JA.1992.01)
BC
“For example, coders evaluate the extent to which a document is
interactive or opinionated […]” (BC.JA.2019.01)
“At the same time, this text has a very informational
characterization […]” (BC.JA.1989.01)
“Also, the peers directly changed her grammar, like the use of
articles”. (CorALA.EAP.Art.2013.001)
“Conversely, the present study puts the focus of the investigation
[…]” (CorALA.LLT.Art.2017.007)
CorALA
“These findings show the extent to which context can influence
[…]” (CorALA.TQ.Art.2018.002)
“At the same time, the participants were asked to activate
Inputlog […]” (CorALA.LLT.Art.2014.008)
Source: Our elaboration.

In addition to such results, we then looked over frequent content


words from WordList and the collocates that commonly co-occurred
with two of them in two positions (L-left and R-right). “Linguistic”
and “features” emerged from BC, while “students” and “language” from
CorALA, as can be seen below:

606
Table 04. Most frequent nodes and their co-occurring collocates in both corpora.

corpora node freq. 2 items freq. 3 items


399 linguistic features 48 linguistic
79 linguistic 37 features in
L
variation linguistic
features that
linguistic 27 important 28 range of
20 linguistic 14 linguistic
R co-occurring potentially
linguistic important
BC linguistic
102 features in 28 features
L 73 features that 20 associated with
features in texts
features 399 linguistic features 114 of linguistic
23 grammatical 20 features
R features co-occurring
linguistic
features
291 students were 34 students were
229 students who 32 asked
L
students who
were
students
780 the students 37 secondary
147 for students 33 school students
R
high school
students
CorALA 703 language learning 133 language
127 language learning &
L acquisition technology
22
language and
language literacy
404 second language 182 the target
360 foreign language 103 language
R
a foreign
language
Source: Our elaboration.

607
In Table 04, it is observable that the majority of collocations, espe-
cially the most frequent ones, represent keywords related to the themes
of the articles composing the corpora. In BC, the papers discuss core
linguistics, focusing on lexis and syntax. In CorALA, instead, the ar-
ticles cover research related to language learning and teaching. A few
excerpts extracted from both corpora can be seen in Table 05.

Table 05. Most common collocations in context: excerpts from both corpora.

“67 different linguistic features were analysed computationally


[…]” (BC.JA.2014.01)
“[…] allowing identification of an even wider range of linguistic
characteristics […]” (BC.JA.1995.01)
BC
“[…] factor analysis empirically identifies the groups of co-
occurring linguistic features […]” (BC.JA.1985.01)
“In most cases, these studies focus on grammatical features
[…]” (BC.JA.2005.01)
“[…] such textbook presentations can present for students […]”
(CorALA.EAP.Art.2016.002)
“[…] a variety of language learning settings [...]” (CorALA.
TQ.Art.2017.009)
CorALA
“[…] these teachers’ vocational high school students”. (CorALA.
LLT.Art.2015.004)
“[…] teachers’ uneasiness in using the target language”
(CorALA.TQ.Art.2015.008)
Source: Our elaboration.

All in all, we have observed similar and different collocations fre-


quently used in both corpora. The stylistic use of such elements is two-
fold in our findings. On the one hand, Biber and the authors from
CorALA share analogous language choices when regarding the use of
some n-grams. However, Biber uses “the present study”, “the use of ”,
“the extent to which” and “at the same time” to structure discourse
and argumentation in the texts more often than the other scholars.
Also, different stylistic results have been noticed when Biber opted for
“linguistic features” and “grammatical features” (in BC), and the other
scholars for “language learners” and “language acquisition”, suggesting

608
a preference for patterns related to the themes of the articles composing
the corpora.

4.2 Stance markers


In this stage of our investigation, we opted to retrieve the main
stance markers from the Keyword list of AntConc, so as to both explore
another tool and have a different perspective of data exploration and
analysis. The program default keyness values were maintained, such as
log-likelihood (4-term), p < 0.05 (+Bonferroni), Dice coefficient, and
all values. In this stage, we used all CorALA files as the reference corpus
to BC.
All things considered, the top 5 positive and negative keywords do
not directly point to stance meanings per se, as seen in Table 06, since
deeper analysis ought to be necessary to assess so.

Table 06. Top #5 keywords in BC.

keyness + keyness -
2060.16 features 1396.1 students
1795.87 linguistic 1020.3 learning
1767.08 registers 709.45 their
1735.28 dimension 688.46 was
1608.51 are 665.56 were
Source: Our elaboration.

It is important to highlight the difference between positive and


negative keywords as retrieved from the tool, since this definition will
certainly enlighten our data interpretation. Scott (2022), the creator of
another corpus tool, WordSmith Tools, has provided a relevant look at
such concepts that is equally useful here:

A word which is positively key occurs more often than would be


expected by chance in comparison with the reference corpus.
A word which is negatively key occurs less often than would be
expected by chance in comparison with the reference corpus.

609
Hence, while positive keywords unusually occurred more frequent-
ly in BC than in CorALA, the negative ones occurred less frequently.
If we look at the data results, the positive keywords are more easily
found and important in BC articles than in CorALA, while the negative
keywords are more certainly identified and relevant in CorALA than in
BC. Undoubtedly, most of the keywords from Table 06 are nouns and
appear frequently as observed in the nodes and collocates from Table
04, also suggesting that a few collocations might likewise be key in the
corpora.
We proceeded to take an overview of all the keyword list retrieved
from AntConc and noticed that, in general, pronouns were the only
grammatical device not observed as positively key in BC, showing great-
er significance in CorALA. However, other devices were similarly found
in both corpora, with differences detected only in the use of particu-
lar words (i.e. “especially” vs. “particularly”). Thus, adjectives, adverbs,
modal verbs, and nouns (e.g. “common”, “relatively”, “major”, “fact”,
“most”, “quite”, “must”, “can”, “actually”, “apparently”, “especially”)
have been observed as positive key stance markers in BC, while other
modal verbs, pronouns, adverbs, and adjectives (e.g. “may”, “about”,
“our”, “we”, “own”, “particularly”, “my”, “better”, “mainly”, “appropri-
ate”, “could”) figured as negative in BC and, therefore, prominent in
CorALA.
Although we recognize personal pronouns as a grammatical re-
source to mark personality and stance in academic writing (HYLAND,
2002), we will resort, on the last pages of this paper, to focus our data
discussion on modal verbs, such as “can” and “must” (more frequent
in BC than in CorALA), and “may” and “could” (more frequent in
CorALA than in BC).
In both corpora, “can” has been used to mark possibility (BIBER,
et al., 2021; DOWNING, 2015). In BC, it often collocates with “that”,
“it”, “we” (L) and “be”, “also”, “control” (R), and the frequent n-grams
are “can be”, “can be used”, “can also” and “can be seen”. In CorALA,
“can” frequently co-occurs with “that”, “it”, “they” (L) and “be”, “also”,

610
“help” (R), showing common n-grams as “can be”, “can also”, “can
help”, and “can be seen”. Clearly, “can” is more used in passive con-
structions in BC, like in Biber (et al., 2021). A few excerpts are shown
below:

Table 07. Modal “can” in context.

“[…] Table 2 can be interpreted as textual dimensions […]”


(BC.JA.1986.02)
BC “[…] any linguistic characteristic that can be interpreted […]”
(BC.JA.1990.01)
“It can be seen from Figure 1 […]” (BC.JA.1985.01)
“Authenticity can also be enhanced […]” (CorALA.LLT.
Art.2018.003)
“It is a powerful analytic tool that can be used in a variety of
CorALA
EFL contexts […]” (CorALA.TQ.Art.2015.001)
“They can be short or long term […]” (CorALA.EAP.
Art.2015.007)
Source: Our elaboration.

Additionally, “must” has been used to mark both obligation and


logical necessity, the former being more prominent in the excerpts be-
low (BIBER, et al., 2021; DOWNING, 2015; SWAN, 2016). In BC,
it often collocates with “that”, “analyses” (L) and “be”, “occur” (R),
and the frequent n-grams are “must be”, “must be based”. In CorALA,
“must” regularly co-occurs with “it”, “students” (L) and “be”, “also” (R),
showing common n-grams as “must be” and “must also”. Interestingly,
“must” often collocates with nouns in both corpora, differently from
“can”. In BC, “must” has often been found in passive constructions,
similar to what was found in Biber (et al., 2021). A few excerpts are
displayed below:

611
Table 08. Modal “must” in context.

“[…] I argue here that analyses must be based on a diversified corpus


[…]” (BC.JA.1993.04)
“[…] there are two major methodological challenges that must be
BC
addressed […]” (BC.JA.2014.01)
“However, the particles must occur in the fixed order […]” (BC.
JA.1984.02)
“ […] as students must attend to lower- and higher-level aspects of their
writing […]” (CorALA.LLT.Art.2014.002)
CorALA “However, it must also be remembered […]” (CorALA.TQ.Art.2015.009)
“As practitioners, we did the diagnosis, but there must be a prescription”
(CorALA.EAP.Art.2018.002)
Source: Our elaboration.

Furthermore, “may” has been utilized to mark possibility (BIBER,


et al., 2021; DOWNING, 2015; SWAN, 2016). In BC, it often collo-
cates with “and”, “there” (L) and “be”, “have” (R). In CorALA, “may”
commonly co-occurs with “they”, “which” (L) and “be”, “have” (R). In
both corpora, the frequent n-grams are “may be” and “may have”. We
should note, however, that in all three cases observed for “may” followed
by “and” in BC, it is being used only as an example of a modal verb, func-
tioning as neither an auxiliary nor a main verb and thus expressing none
of the meanings listed in Table 01. A few excerpts are exhibited below:
Table 09. Modal “may” in context.

“Although both can and may tend to occur with inanimate subjects
[…]” (BC.JA.2006.01)
“At other times, there may be little explicit marking of the participants
BC
[…]” (BC.JA.1984.01)
“[…] subordinate constructions may have differing communicative
functions […]” (BC.JA.1986.02)
“[…] they may be appropriate for L2 students […]” (CorALA.LLT.
Art.2014.002)
“Although this assumption may be a methodological necessity […]”
CorALA (CorALA.TQ.Art.2015.001)
“While there are other obviously non-native problems with syntax and
vocabulary in this essay, which may have accounted for the low score
[…]” (CorALA.EAP.Art.2015.005)
Source: Our elaboration.

612
Finally, “could” has been employed to mark possibility (BIBER, et
al., 2021; DOWNING, 2015; SWAN, 2016). In BC, it often collo-
cates with “it”, “analyses” (L) and “be”, “not” (R). In CorALA, “could”
frequently co-occurs with “they”, “which” (L) and “be”, “have” (R). In
both corpora, the frequent n-grams are “could be” and “could not”.
Similarly to the use of “must”, “could” has been followed by both nouns
and pronouns in the corpora. Additionally, “could” is often used in pas-
sive constructions in BC and CorALA, a similar result to Biber’s (et al.,
2021) research. A few excerpts are presented below:

Table 10. Modal “could” in context.

“In fact, it could be argued that a corpus provides the best way to
represent a textual domain […]” (BC.JA.2011.01)
“[…] these analyses could be usefully extended to include
BC
consideration of language characteristics […]” (BC.JA.1995.01)
“[…] these constructions could not be illustrated in question-
response elicitation data […]” (BC.JA.1984.01)
“[…] any search results which could not be considered
directives.” (CorALA.LLT.Art.2014.003)
“The former could have been conceptualized […]” (CorALA.
CorALA
TQ.Art.2014.008)
“They could be motivated when they saw role models. […]”
(CorALA. TQ.Art.2014.010)
Source: Our elaboration.

As seen in the findings, “can”, “may” and “could” mark possibility,


while “must” refers to logical necessity and obligation. If we classified
the modal verbs according to the levels of certainty an event is likely
to take place, we would have “can”, “may”, and “could”, respectively.
When we look at the uses made in the corpora, it appears that Biber, by
preferring “can” over “may” and “could”, takes a more certain epistemic
stance towards his claims, contrary to the other scholars. Moreover,
when Biber opts for “must” more often than the other researchers, he
takes an epistemic stance and claims certainty about his assertions. Also,
his attitudinal stance expresses his feelings on how something must be

613
done. Therefore, by showing a stylistic preference for some modals over
others, Biber builds an assertive and confident self-image in academia,
taking stronger stances as compared to CorALA authors.

5. Final remarks
In this paper, we have demonstrated how Biber’s linguistic aca-
demic style is marked in his journal articles by the ways he employs
specific collocations and stance markers. Based on the findings pre-
sented and discussed, there is stylistic preference between Biber and
CorALA authors regarding a few collocations. Both groups of scholars
share analogous preference for some n-grams, although Biber uses more
“the present study”, “the use of ”, “the extent to which” and “at the same
time” to structure discourse and argumentation in academic writing.
Furthermore, different stylistic results appear when Biber opts for “lin-
guistic features” and “grammatical features”, and the other scholars for
“language learners” and “language acquisition”, suggesting a preference
for patterns related to the themes of the articles.
Additionally, when we investigated the use of stance markers, how-
ever, other striking findings emerged. In general, pronouns were the
only grammatical device not observed as positively key in BC, showing
greater significance in CorALA. Nevertheless, other devices were sim-
ilarly found in both corpora, such as adjectives, adverbs, modal verbs,
and nouns. We compared particularly the uses of the modal verbs “can”
and “must” (more frequent in BC than in CorALA), and “may” and
“could” (more frequent in CorALA than in BC). Based on the results, it
appears that Biber, by preferring “can” over “may” and “could”, takes a
more certain epistemic stance towards his claims, contrary to the other
scholars. Furthermore, when Biber opts for “must” more often than the
other researchers, he claims certainty about his assertions at the same
time as expresses feelings on how something must be done by taking
epistemic and attitudinal stances, respectively. Therefore, by showing a
stylistic preference for some modals over others, Biber builds an asser-
tive and confident self-image in academia, taking stronger stances as
compared to CorALA authors. In addition, the choice for such modal

614
patterns is not motivated by the articles’ themes. Finally, as we ponder
both sides of language style expression through collocations and stance
markers, Biber’s language choices highlight that academic writing holds
neither a dry nor an impersonal discourse.

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616
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

O DESENVOLVIMENTO DO INGLÊS POR


CRIANÇAS: PARA ALÉM DO LINGUÍSTICO

Joceli Rocha Lima (UESB)


Felipe Flores Kupske (UFBA)

RESUMO: Este artigo aborda aspectos diversos que envolvem o


desenvolvimento do inglês como língua não nativa (LNN) por crianças
em uma creche universitária na Bahia. O objetivo é apresentar elementos
que vão além do aspecto linguístico e que se mostraram fundamentais
para o desenvolvimento do inglês-LNN pelas crianças participantes da
pesquisa: natureza socio-interacional do processo, processamento cognitivo,
postura diante da LNN. O trabalho traz um recorte dos dados do projeto
de doutorado da primeira autora e é embasado teoricamente por estudos
na área do bilinguismo (BIALYSTOK, 2001; SOUZA, 2021; VASSEUR,
2012), do ensino de inglês para crianças (CAMERON, 2001; ROCHA,
2007a, 2007b) e a formação do professor (TONELLI; CRISTOVÃO, 2010;
TUTIDA; TONELLI, 2014), interação (VYGOTSKY, 1998), cognição e
a complexidade das línguas (BECKNER et al., 2009; BERTICELLI, 1997;
BYBEE, 2016; DÖRNYEI, 2012; KUPSKE; GUTIERRES, 2018). Entre os
aspectos abordados estão: especificidades do aprendizado infantil, o professor,
o planejamento, a qualidade do input e da interação, o ambiente propício,
a língua nativa (LN), o processamento conjunto das línguas. Os dados
para esta análise provêm das notas de campo preenchidas durante a geração
dos dados ao longo de encontros semanais, entre instrutores e crianças, na
creche. A análise tem revelado que esses aspectos, não somente os linguísticos,
influenciam significativamente o desenvolvimento do inglês-LNN pelas
crianças, favorecem uma atitude receptiva e a influência constante entre as
duas línguas.
PALAVRAS-CHAVE: Inglês-LNN, Criança, Desenvolvimento, Extralinguístico.

ABSTRACT: This article addresses several aspects involved in the development


of English as a non-native language (NNL) by children in a university day
care center in the state of Bahia/Brazil. The aim is to present elements which
go beyond the linguistic aspect and that have proved fundamental for the
development of English-NNL by the children participating in the research:
socio-interactional nature of the process, cognitive processing, attitude before

617
the NNL. The article provides a cutout of the data from the first author’s
doctoral project and is theoretically based on studies in the area of bilingualism
(BIALYSTOK, 2001; SOUZA, 2021; VASSEUR, 2012), the teaching of
English to children (CAMERON, 2001; ROCHA, 2007a, 2007b) and teacher
training (TONELLI; CHRISTOPHER, 2010; TUTIDA; TONELLI, 2014),
interaction (VYGOTSKY, 1998), cognition and the complexity of languages
(BECKNER et al., 2009; BERTICELLI, 1997; BYBEE, 2016; DÖRNYEI,
2012; KUPSKE; GUTIERRES, 2018). Among the aspects addressed we
emphasize: the specificities of child learning, the teacher, the planning, the
quality of the input and interaction, the propitious environment, the role of
the native language (NL), and the joint processing of languages. The data for
this analysis come from the field notes filled during the generation of data
during weekly meetings, between instructors and children, in the day care
center. The analysis has revealed that these aspects, not only linguistic ones,
significantly influence the development of English-NNL by children, favor a
receptive attitude and the constant influence between the two languages.
KEYWORDS: English-NNL, Children, Development, Extralinguistic.

Introdução
Este trabalho aborda aspectos diversos que envolvem o desenvol-
vimento do inglês como língua não nativa (LNN) por crianças120. O
objetivo é apresentar elementos envolvidos no processo que vão além
do aspecto linguístico e que se mostraram fundamentais para o desen-
volvimento do inglês-LNN. Esses aspectos englobam: especificidades
do aprendizado infantil e a(s) atitude(s) das crianças diante da LNN;
a natureza sociointeracional do processo, momento em que refletimos
sobre o papel do professor ao trabalhar com o ensino da língua inglesa
para crianças – doravante LIC – e a importância do planejamento; a
qualidade do ambiente onde a LNN está sendo desenvolvida, momento

120 Uma discussão preliminar sobre esses aspectos que influenciam o desenvolvi-
mento do inglês na fase inicial da infância aparece em LIMA, J. R.; PEIXOTO,
P. G. Inglês em Fase Inicial da Infância: Elementos que Propiciam o Aprendiza-
do. In: ATAÍDE, C.; SOUSA, V. V. (org.). Língua, texto e ensino: Descrições
e aplicações. Recife: Pipa Comunicação, 2018. Cap. 55, p. 897-908. E-book do
GELNE 40 anos.

618
em que contemplaremos uma breve reflexão sobre a importância da ro-
tina e da língua nativa LN (o português) no ambiente de aprendizagem
e, por fim, a qualidade do input e da interação no contexto.
Os dados para esta análise foram gerados durante a vigência de um
projeto institucional, de ensino de inglês, implementado pela primeira
autora em uma creche universitária no interior da Bahia. O propósito
do projeto foi investigar o desenvolvimento do inglês-LNN por crian-
ças menores de cinco anos de idade. Esses dados são um recorte do
arquivo que compõe o projeto de doutorado da primeira autora e os
registros foram feitos, pela equipe executora do projeto, em notas de
campo.
Esta análise é embasada teoricamente por estudos na área da cogni-
ção e complexidade das línguas (BECKNER et al., 2009; BERTICELLI,
1997; BYBEE, 2016; DÖRNYEI, 2012; KUPSKE; GUTIERRES,
2018) que colocam em evidência a necessidade de se considerar o seu
desenvolvimento complexo e dinâmico. Nesse desenvolvimento, pro-
cessos cognitivos gerais atuam na língua(gem) e, para além do indivíduo,
os aspectos sócio-comunicativo-interacionais que levarão ao desenvol-
vimento da nova língua se horizontalizam. Na sequência, abordaremos
o ensino de LIC valendo-nos das contribuições de estudos como os
de (CAMERON, 2001; ROCHA, 2007a, 2007b), também discuti-
remos a importância da interação (VYGOTSKY, 1997[1978]) para o
desenvolvimento do inglês-LNN pelas crianças e, consequentemente,
a formação do professor que trabalha com esse aprendiz (TONELLI;
CRISTOVÃO, 2010; TUTIDA; TONELLI, 2014). A discussão bus-
cará fazer convergir considerações que envolvem o fenômeno do bi-
linguismo (BIALYSTOK, 2003[2001]; SOUZA, 2021; VASSEUR,
2012) experienciado pelas crianças envolvidas.
O campo de estudos na área do desenvolvimento de línguas (segun-
das ou mais) para crianças (bastante conhecido como LEC – Línguas
Estrangeiras para Crianças), nessa primeira década do século XXI, res-
surge com força (ROCHA, 2007a, 2007b). As motivações para tal en-
contram-se na realidade mundial do inglês como língua internacional,

619
do mundo globalizado, e essas discussões sobre o papel do inglês no
mundo aquecem a discussão sobre o início precoce (ROCHA, 2007a).
A partir de uma perspectiva dinâmica e complexa do desenvolvi-
mento das línguas, aspectos que dizem respeito ao indivíduo – motiva-
ção para aprender, personalidade, características individuais (ROCHA,
2007a, 2007b; KUPSKE, 2019, SILVA; CARDOSO; KUPSKE, 2020)
– cedem lugar a aspectos que estão em um âmbito mais amplo do de-
senvolvimento das línguas. Os fatores extralinguísticos que envolvem os
contextos comunicativos (aí contempladas as variáveis sociais), a ação
do professor nesse contexto e a dinâmica das interações aí também in-
seridas tomam o nosso foco de atenção. Esses fatores cooperam signifi-
cativamente para o desenvolvimento linguístico das crianças-aprendizes
e serão apresentados a seguir.

1. Referencial teórico
1.1 A realidade dinâmica do desenvolvimento de LNNs
O desenvolvimento de línguas (nativas e não nativas) é um pro-
cesso altamente complexo (DE BOT; LOWIE; VERSPOOR, 2007;
KUPSKE; PEROZZO; ALVES, 2019; PAIVA, 2014; THELEN;
SMITH, 1994) porque envolve aspectos tanto da ordem do indivíduo
(cognição, afetividade, motivação) como da ordem do ambiente (o so-
cial e seus fatores: interação, mediação, colaboração etc.).
Pensar dinamicamente o desenvolvimento de uma LNN é consi-
derar a variabilidade dessa língua a depender do seu contexto de uso
(BYBEE, 2016; SILVA; CARDOSO; KUPSKE, 2020; TOMASELLO,
2003). Nessa mesma linha, Nunan (2001) aponta para a inter-relação
dos diversos fatores que integram o processo de desenvolver uma LNN:
a capacidade natural para a língua(gem), o input e o output, além dos já
mencionados: diferenças individuais, ambiente e interação. Como se vê,
é um processo dinâmico que não se dá em uma trajetória linear e fixa,
mas que é afetado por variáveis múltiplas e é mutável (BERTICELLI,
1997).

620
1.2 Crianças desenvolvendo línguas
Enquanto investigadora do aprendizado de línguas por crianças,
Cameron (2001) assevera que ensinar crianças não é uma tarefa sim-
ples, e guiar-se por “generalizações” é uma atitude que não traz bene-
fícios para o processo. Pelo contrário, é necessário descobrir como as
crianças aprendem uma nova língua. “Felizmente crianças são autênti-
cas, espontâneas e revelam o que realmente sentem e desejam – basta
sentirem-se confortáveis para isso” (LIMA; PEIXOTO, 2018, p. 898
a partir de CAMERON, 2001). A partir de Pires (2001), vemos que,
para a criança aprender, o contexto de aprendizagem deve ser propício
e contemplar:
- atividades lúdicas e estimulantes;
- o toque e a manipulação dos objetos;
- o fazer juntos: as crianças entre si ou em conjunto com o
professor/educador;
- formas e estímulos variados;
- atividades em pequenas porções: para respeitar o limite de con-
centração e interesse das crianças pelo novo;
- o ‘revisitar’ atividades e temas já visto (garantindo pontes/cone-
xões significativas com o novo);
- o questionar/perguntar/querer saber, ver e ouvir.

Sabe-se que as crianças se engajam intensamente nas experiências


e aprendem fazendo perguntas (ver LIMA; PEIXOTO, 2018). Sabe-se
também que tal engajamento demanda a proposição de atividades en-
volventes. Para Cameron (2001), tal alcance é possível quando a criança
e seus interesses e necessidades são o foco do processo – uma perspectiva
learning-centered de aprendizagem. Ainda Cameron (2001) garante que
tudo que ensinarmos à criança será aprendido, basta que se garanta que
seja um conteúdo interessante para elas. Coopera para esse aprendizado
o fato de que “crianças aprendem de forma rápida e espontânea porque
são desinibidas e curiosas”, é o que afirma Brown (1994 nas palavras de
LIMA; PEIXOTO, 2018, p. 899).

621
Mesmo contando com a motivação natural da criança pelo novo, o
adulto (professores e pesquisadores) não pode incorrer no lapso de dei-
xar seus interesses didático-pedagógicos e/ou de pesquisa se sobreporem
aos da criança. No caso específico deste estudo, a busca pela efetividade
do input e que, consequentemente, as crianças desenvolvessem, de fato,
a nova língua, não poderia negligenciar o indivíduo criança em sua
totalidade: sua vontade, necessidade, disposição, interesse etc. Como
discutem Lima e Peixoto (2018), o desejo do professor/instrutor/pes-
quisador de ensinar não pode se sobrepor ao desejo da criança de ‘não
querer’ (mesmo que seja apenas por alguns minutos) até que ela volte
a ter interesse pelo que estiver sendo exposto. Lima e Peixoto (2018)
abordam a questão da didatização em contextos infantis de ensino e
aprendizagem. Essa discussão é levantada por Vigotski (2008[1933])
que alerta para a preservação dos interesses da criança – interesses es-
ses manifestados pela própria criança, nas brincadeiras livres que elas
mesmas iniciam, que realizam as suas necessidades. Esse é um princípio
que deve ser garantido para que não incorramos no equívoco de, mes-
mo não intencionalmente, ‘didatizarmos’ as brincadeiras e os estímulos
propostos (ver LIMA; PEIXOTO, 2018). Os autores defendem, pauta-
dos em Vigotski (2008[1933]), que o planejamento cuidadoso deva ser
o ponto de partida para a proposição de ações/atividades que engajem
as crianças respeitando a dimensão afetiva que as envolve.
A busca pelo output não pode tornar professores e/ou pesquisadores
cegos para uma necessidade essencial da criança: brincar. Assim sendo,
posturas reguladoras e excessivamente corretivas e exigentes, bem como
a cobrança à (re)produção de estruturas linguísticas, tornam-se questio-
náveis (LIMA; PEIXOTO, 2018). Em suma, a exigência desnecessá-
ria de que crianças-aprendizes “mantenham uma postura instrucional”
podem acarretar sérios prejuízos ao processo de desenvolvimento da
LNN como um todo, complementam (p. 899). Como apontam os au-
tores, faz-se necessário amadurecer a discussão sobre a didatização da
infância para evitar os exageros e garantir que a pesquisa no campo do
desenvolvimento de LNNs não se mostre, em alguma medida, danosa

622
para o público infantil. Por outro lado, é importante também que
sejam aprofundadas as discussões e debates sobre o direito da criança
ao acesso a uma ou mais LNNs em fases iniciais da infância, continuam
os autores.
Dando continuidade à discussão sobre os elementos que vão além
do aspecto linguístico e sua importância para o desenvolvimento de
uma LNN, abordaremos na sequência elementos que dizem respeito ao
ambiente e aos agentes envolvidos no processo de desenvolvimento do
inglês-LNN pelas crianças.

1.3 A natureza sociointeracional do processo


Falar em desenvolvimento de línguas implica considerar a di-
mensão sociointeracional do processo, uma vez que não concebemos
língua(gem)121 dissociada do contexto social onde as línguas atuam,
onde são postas em uso, e sem valorizar os eventos comunicativo-in-
teracionais nos quais e por meio dos quais as línguas são desenvolvidas
(PAIVA, 2014).

1.3.1 A importância do professor e do planejamento


Como vimos, a jornada de aprendizado da criança é guiada por sua
curiosidade natural. Por essa razão, afirmam Cameron (2001) e Rocha
(2007a), é preciso investir em atividades que “maximizem” todo o pro-
cesso de desenvolvimento da LNN pelas crianças. Essa etapa de preparo
e planejamento é encargo do professor, afirma Rocha (2007a). A autora,
a partir de Vygotsky, em trabalhos de 1998[1984] e 2001, dentre outros
autores, destaca a importância de se construir interações significativas,
nas quais estejam contemplados os aspectos relacionados à afetividade
da criança, à sua autoestima e à sua motivação para aprender (neste tra-
balho: uma nova língua). Essa tarefa exige preparo teórico do professor
no que diz respeito a: (a) o conhecimento sobre os aprendizes, como

121
O uso do termo língua(gem) expressa nossa visão agregadora e ampla da língua(-
gem) enquanto um fenômeno social complexo que superou a visão tradicional
que a dissociava em dois fenômenos.

623
se desenvolvem, como pensam e como aprendem línguas e (b) sobre
a(s) abordagem(s) metodológica(s) a esse público, o que o motiva e,
naturalmente, a competência linguística (ROCHA, 2007a; TUTIDA;
TONELLI, 2014). Rocha (2007a) ainda argumenta em defesa do le-
tramento da criança na LNN, uma tarefa que é de responsabilidade do
professor. Seguramente, somente um professor bem preparado pode-
rá cumprir tal tarefa uma vez que demanda o conhecimento teórico e
metodológico que somente a boa formação, aprimorada pela formação
específica (quando possível), pode garantir ao profissional que decide
atuar no campo do ensino de LIC.
O déficit desse tipo de formação especializada é espelhado nos
currículos de vários cursos de licenciatura no âmbito dos estudos da
língua(gem). Uma pesquisa com propósito puramente consultivo às
grades curriculares dos cursos de Letras (somente no estado da Bahia)
mostram que os licenciados em inglês não recebem instrução para o
trabalho com a Educação Infantil; são raras as instituições (públicas e
privadas) que contemplam algum componente curricular (disciplina)
voltado para essa formação, ainda que seja de caráter optativo no cur-
rículo. Esse tensionamento nos é apresentado por Tonelli e Cristovão
(2010), em estudo semelhante, que aponta para a necessidade de se
mudar tal realidade. Nas palavras de Lima e Peixoto (2018, p. 901), a
partir de Rocha (2007a),

é dever dos profissionais da área de linguagem e educadores


em geral buscar os princípios norteadores do ensino de línguas
na infância. Além disso, há que se dedicar atenção especial à
adequação de atividades, estímulos e expectativas lançadas às
crianças; ensiná-las exige planejamento específico com foco nas
particularidades de cada idade.

No que diz respeito ao planejamento que é pensado e elaborado


para o ensino de uma LNN, Pires (2001) apresenta uma esclarecedora
discussão sobre as características indispensáveis às atividades elaboradas
para o ensino de uma LNN a crianças. Segundo o autor, o planejamen-
to deve contemplar:

624
a) o aproveitamento da energia que é natural às crianças – é
fundamental que haja movimento nas atividades, jogos e
brincadeiras propostas;
b) a tolerância ao barulho – crianças são naturalmente
barulhentas;
c) a disposição para a revisão constante – crianças aprendem
rápido, mas também esquecem rápido;
d) a exploração de todos os sentidos – é importante investir
em vários estímulos;
e) o aproveitamento da imaginação e do entusiasmo por
aprender;
f ) o respeito ao tempo de cada uma – crianças devem ser in-
centivadas e não forçadas a desempenhar tarefas.
(a partir de PIRES, 2001, p. 50-51, ver também LIMA;
PEIXOTO, 2018, p. 899).

O respeito a esses princípios são um benefício ao propósito primei-


ro de estabelecer uma relação de confiança no ambiente onde a nova
língua vai atuar para que ela possa ser encarada como um recurso comu-
nicacional viável e alcançável. Dessa forma, crianças-aprendizes podem
se sentir encorajadas a usarem essa nova língua como ferramenta para a
comunicação.

1.3.2 A importância do ambiente onde a LNN se desenvolve


Sob o prisma dinâmico e complexo, falar do ambiente onde uma
língua se desenvolve implica falar dos seus agentes e das suas variáveis
sociais e comunicativas, i.e. todos os fatores que o integram. Esses fato-
res dizem respeito aos elementos que compõem o ambiente de uso da
língua, e eles podem tanto favorecer que essa nova língua se desenvolva
quanto agir em seu desfavor. Dedicamos atenção aqui a dois elementos
que cooperam para a construção de um ambiente propício - de qualida-
de - ao desenvolvimento da nova língua.
- A rotina
Para além do contexto favorável ao desenvolvimento de LNNs,
o cumprimento de uma rotina diária é de fundamental importância

625
para o aprendizado, é o que afirma Pires (2001, citada por LIMA;
PEIXOTO, 2018). A rotina traz a segurança e a sensação de conforto
de que a criança precisa para que se sinta à vontade para ‘experimentar
o novo’. Em consonância, Cameron (2001) e Rocha (2007a) asseve-
ram que ela é o “mecanismo” que cria o laço de equilíbrio entre a se-
gurança advinda daquilo que já é conhecido, rotineiro, familiar e o en-
tusiasmo despertado pela informação nova (a palavra, a brincadeira, a
tarefa, o objeto etc.). A discussão de Cameron (2001) e Rocha (2007a)
acerca do ensino de LEC é bastante fundamentada pelas contribuições
‘vigotskianas’ para o desenvolvimento infantil de modo geral. As duas
estudiosas desenvolvem pesquisas com crianças em idade escolar (já al-
fabetizadas). Ainda assim, as reflexões que propõem sobre a importân-
cia das atividades rotineiras que colaboram para o aprendizado dentro
da sala de aula são aplicáveis a outros contextos e a outros públicos
(inclusive mais jovens). Cameron (2001) e Rocha (2007a) ressaltam
tal importância, posto que a realização de eventos repetitivos (que
geram conforto e segurança diante do que é conhecido) propiciam a
construção do já mencionado ambiente propício ao crescimento, es-
tando aí incluído o desenvolvimento de línguas (ver também LIMA;
PEIXOTO, 2018).
- A presença da LN
Sabe-se que diversos métodos e abordagens de ensino de línguas
censuram e até mesmo proíbem o uso da LN em sala. Essas orientações
teórico-metodológicas veem a LN dos aprendizes como algo danoso
quando, pelo contrário, pode representar um auxílio no alcance de ha-
bilidades específicas na LNN (KODA, 2005). Essa constatação de que a
LN ajuda no desenvolvimento da LNN aparece no legado de Vygotsky
há décadas – diz respeito à relativa maturidade (relative maturity) da
LN sendo suporte para a LNN. Felizmente, se percebeu que a LN pode
funcionar como uma ferramenta de mediação (mediation tool) e poten-
cializar a aprendizagem (CAMERON, 2001; ROCHA, 2007a). Ainda
as autoras argumentam em prol da valorização das diversas formas de
interação no contexto da sala de aula, enxergando-as como naturais. De

626
fato, a LN deve ser encarada como mais um recurso comunicacional
disponível – que ela venha agregar e não causar tensão.
Mesmo havendo hoje menor resistência ao seu uso na sala de aula
de LNNs, Cameron (2001) e Rocha (2007a) alertam para a necessidade
de que seja realmente apenas um recurso mediador, que “maximize” o
desenvolvimento da nova língua.

1.3.3 A importância do input e da interação


Na busca pela construção de um ambiente propício ao desenvolvi-
mento de uma nova língua, o bom nível da interação e o da língua(gem)
utilizados devem figurar entre os principais objetivos a serem traçados
por um professor de LIC. É um grande equívoco imaginar que en-
sinar crianças é uma tarefa simples e puramente divertida, advertem
Cameron (2001) e Rocha (2007a). As autoras estão corretas porque
partem do princípio de que a língua(gem) que as crianças aprendem
também não é simples e que o ensino de LNNs na infância deve ser
encarado como um fenômeno complexo em seus diversos níveis: lin-
guístico, interacional, metodológico, afetivo etc. (CAMERON, 2001;
ROCHA, 2007a).
O aprendizado e, consequentemente, a construção do conheci-
mento se dá na interação (VYGOTSKY, 1997[1978]; VIGOTSKI,
2008[1933]). Para o autor, aprender é intrínseco ao desenvolvimento.
Logo, se fornecermos input de boa qualidade e em boa quantidade em
eventos de interação significativos, é certo que o aprendizado aconte-
cerá, que a nova língua se desenvolverá. Tendo como base a dinâmica e
complexidade do desenvolvimento de línguas, a criança aprende a par-
tir de suas interações com outros indivíduos no ambiente social, como
se vê na perspectiva ‘vigotskiana’. Por essa razão, maior importância
deve ser dada ao processo de desenvolvimento das línguas – um estágio
perene no qual sempre existirá a colaboração, a mediação, a troca de
experiências e a valorização do conhecimento da criança (VYGOTSKY,
1997[1978]) – e não a um ‘produto final idealizado’. Dizemos isso
porque ver a língua(gem) e seu desenvolvimento sob a ótica complexa

627
significa entender que as línguas não são fixas e, portanto, estão sem-
pre suscetíveis a mudanças (KUPSKE; GUTIERRES, 2018). Essa dis-
cussão sobre o desenvolvimento de línguas conta com a contribuição
de Ara (2009, p. 163-164) com seu estudo sobre o ensino de inglês a
crianças em escolas de Bangladesh. A autora argumenta em favor da
exposição da criança à língua que ela estiver desenvolvendo, que pos-
sam observar, ouvir, copiar sons e gestos, que experimentem e cometam
erros, que chequem se entenderam por meio da repetição, enfim, que o
ambiente da aprendizagem lhe transmita confiança.
Como se vê, a experiência com a nova língua, que se dá na intera-
ção, através do uso da própria língua, constitui-se como realidade no
desenvolvimento de LNNs.

1.4 A experiência bilíngue


Desenvolver uma LNN é uma experiência complexa e dinâmica
(SOUZA, 2021; VASSEUR, 2012) e assim é porque as línguas também
são complexas e dinâmicas. Levar em consideração os elementos extra-
linguísticos que constituem o desenvolvimento de uma LNN como um
todo marca esse posicionamento teórico.
O fenômeno do bilinguismo é altamente complexo, uma experiên-
cia linguística intensa (BIALYSTOK, 2003[2001]). Além dos aspectos
do âmbito estritamente linguístico (fonológico, morfo-fonológico, le-
xical), há que se considerar todos esses fatores, até aqui discutidos, os
quais se somam para caracterizar a experiência bilíngue. Este estudo vê
as crianças-aprendizes do inglês-LNN como indivíduos bilíngues (em
estágio inicial) que fazem uso do português-LN e do inglês-LNN em
ocorrências ‘mescladas’, translíngues. Essa produção linguística é favo-
recida não somente porque o inglês-LNN está disponível no ambiente
de uso da crianças, mas, também, porque a união de todos os fatores
– a atmosfera de confiança, as atividades rotineiras, a curiosidade e pre-
disposição para aprender a nova língua, a mediação do professor e sua
atuação nos eventos de interação em que a LN e a LNN estavam em
jogo – corroboram para que a experiência bilíngue aconteça de fato e,
no caso específico deste estudo, que as duas línguas se desenvolvam.

628
2. O contexto da geração dos dados contemplados nesta análise
Como mencionado na introdução deste trabalho, esta análise usu-
frui dos arquivos de dados registrados durante a implementação do
projeto de ensino de inglês em uma creche universitária no interior da
Bahia. As atividades do projeto aconteceram, prioritariamente, na sala
de cada turma de crianças. O foco da proposta está no desenvolvimento
do inglês-LNN, em sua modalidade oral.
A interação da equipe de execução do projeto com as crianças da
creche se deu por meio de input exclusivo em inglês, e nenhuma ativi-
dade que envolvesse o acesso a formas escritas do inglês-LNN foram
utilizadas. A intenção foi evitar confundir as crianças com a associação
grafema e fonema na LNN, visto que não há a mesma correlação entre
letras e sons que ocorre no português-LN.
Os encontros na creche ocorreram semanalmente, com a duração
de 1 (uma) hora e alternaram: (a) a execução de um plano pré-elabo-
rado (com um tema e vocabulário definidos) e (b) o acompanhamento
das atividades regulares da creche. É importante destacar que os encon-
tros de acompanhamento da rotina contribuíram para a construção da
tão desejada atmosfera de confiança e conforto; uma necessidade que se
mostrou, desde o início, fundamental para que as crianças se sentissem
à vontade para interagirem com a equipe. Fazer com que as crianças se
sentissem familiarizadas, acostumadas com a presença dos instrutores,
contribuiu para a aceitação, também, da ‘outra língua’ que essas pessoas
falavam. Todos os dados estão registrados em notas de campo.

3. Discussão sobre os dados122


Os dados selecionados para essa discussão emergiram de eventos de
interação entre as crianças e os instrutores e serão apresentados dentro
de cada aspecto extralinguístico discutido:

122
Muitos dos exemplos que aparecem nesta discussão de dados já foram apresenta-
dos em Lima e Peixoto (2018).

629
a) quanto ao professor e ao planejamento: todo o planejamento
de atividades buscou a garantia dos aspectos discutidos no referencial
teórico: ludicidade, atividades manuais e com variações de estímulos
(vídeos, canções etc.). O convívio com as crianças nos mostrou que
também a diversificação de atividades em intervalos curtos de tempo é
um aspecto crucial para a manutenção do interesse das crianças, visto
que não conseguem, por uma condição inerente à idade, manter o foco
e a atenção em algo por muito tempo.
b) quanto à construção do ambiente favorável ao desenvolvimento
da nova língua: a necessidade de segurança é essencial para que as crian-
ças se ‘abram’ ao aprendizado e mantenham uma atitude receptiva para
a LNN. A atitude da equipe em sala caracterizou-se por (1) paciência e
respeito ao tempo da criança (para desempenhar tarefas e dar respostas)
e à sua disposição para participar; (2) respeito ao seu espaço pessoal
(evitando contato físico não desejado); (3) promoção de uma atmosfera
lúdica, que motivava seu engajamento, e calma (com uso de voz ameno)
para favorecer a sensação de conforto.
A experiência com as crianças revelou que negativas de participa-
ção nas atividades propostas se davam predominantemente por uma
indisposição física, ou sono, não por resistência às atividades do projeto.
A preocupação com a garantia do ambiente de conforto e segurança
fez com que o desejo de ter a atenção das crianças123 não condenasse
as suas distrações; que a vontade da equipe de apresentar/expor algo
novo não lhe suprimisse o encargo de ser tolerante diante das negativas.
Essas negativas foram por vezes motivadas por inibição ou insegurança.
Contudo, com o suporte da professora da turma, essas barreiras foram
aos poucos sendo superadas.

Instrutor: Do you want to play now, C? Do you want to come?


(A criança dá sinal de que quer participar, mas ainda olha para
a professora em busca do suporte afetivo).
Professora: Pode ir C. A tia J tá chamando.
(Diz a professora conduzindo a mão da criança até a mão da
instrutora).
123
As crianças foram identificadas nos diálogos com uma letra maiúscula.

630
No que diz respeito à rotina, enxergá-la como fator gerador do
“elo de equilíbrio” entre a segurança proveniente do que já é conhecido
(habitual) e a excitação despertada pela curiosidade pelo novo, como
defendem Cameron (2001) e Rocha (2007a), tem se mostrado essencial
para o desenvolvimento do inglês-LNN. A manutenção de ações roti-
neiras contribui para a construção do ambiente propício ao aprendiza-
do, na medida em que “acalma as crianças, atrai sua atenção e as prepara
para o novo” (LIMA; PEIXOTO, 2018, p. 905).
Um exemplo dessas ações foi cantar uma canção no início de cada
encontro, logo na chegada dos instrutores. A ‘canção da chegada’ era
cantada antes ou depois das saudações iniciais e greetings: “Hi”, “Hello”,
“Hi, everybody”, “Good morning” e “Good afternoon”. Como destacam
Lima e Peixoto (2018), a saudação melódica que iniciava cada encontro
proporcionava uma sensação de alegria e, em pouco tempo, de aceita-
ção da nova língua: o inglês que ‘os tios falam’ passou a ser algo familiar.
Isso foi constatado nas atitudes das crianças:

- sorriam com a chegada dos instrutores e cantarolavam a ‘can-


ção da chegada’;
- contavam fatos de suas vidas e de suas famílias:
“Tia, eu machuquei!”
“Tia, papai que fez minha mamadeira hoje.”
“Tia, meu pai é careca.”
- abriam espaço para os instrutores se sentarem no tapete com elas;
- passaram a entender e aceitar que os instrutores falavam uma lín-
gua diferente e a comunicação deles se dava por meio dessa língua;
- compreenderam que as ‘tias’ (professora e auxiliares) permane-
ciam na sala mesmo após a chegada dos instrutores (inicialmen-
te, crianças mais tímidas só se envolviam nas atividades porque
recebiam o encorajamento delas);
- passaram a aceitar os encontros com naturalidade e entusiasmo:
(Manifestação espontânea ao encontrar a equipe na recepção
da creche)
“Hoje tem aula de inglês!” (dirigindo-se ao pai/mãe);
- demonstraram terem se acostumado com a presença da

631
caixa124, associando-a à aula de inglês: “Mamãe, hoje tem aula
de inglês, olha lá a caixa.” (cochichando para a mãe)

No que diz respeito à presença da LN no ambiente, Lima e Peixoto


(2018) fazem referência ao tratamento que Pires (2001) dá ao uso da
LN no contexto de aprendizagem: sinalizando para uma postura tole-
rante à LN. Na verdade, hoje percebemos que não se trata de ter tole-
rância com a LN e sim de enxergá-la como parte de todo o processo.
Dessa maneira, o que os instrutores fizeram foi assumir uma postura
agregadora como reflexo da concepção de que na interação bilíngue as
línguas verdadeiramente se somam, influenciam-se mutuamente. Os
instrutores usaram exclusivamente o inglês na interação com as crian-
ças. Elas, por outro lado, usavam o português e com frequência produ-
ziam estruturas ‘mescladas’ nas quais se percebiam transferências tanto
no nível morfofonológico, como se vê na produção de [ˈgɛt] para cat /
kæt/ (gato), quanto, no nível lexical (com o uso de itens do inglês-L-
NN na formação da frase em português-LN), como se vê na produção
“Vai, pisa no five [ˈfajvɪ] (cinco).” Sob a ótica complexa, tais produções
são uma evidência de que as línguas interagem e se influenciam mu-
tuamente; não são ‘entidades fixas e protegidas’ no cérebro do falante.
Essas formas somadas aos diálogos em inglês por parte dos instrutores e
em português por parte das crianças constituíram-se uma tendência da
interação que emergia no ambiente.
A postura da equipe foi sempre a de garantir que a interação pros-
seguisse naturalmente, afinal, o trato com as duas línguas não foi en-
carado como um fator limitante à comunicação, mesmo porque, em
diversos momentos, as próprias crianças agiram como cooperadoras
nessa interação:

Instrutor: “Stand up, E.”


(O instrutor pede que a criança, aqui chamada de E, se levante.
A criança não atendeu ao comando, porém, foi auxiliada por
uma coleguinha, aqui chamada de MF. Antes que o instrutor

124
Caixa plástica onde era transportado o material a ser utilizado nos encontros.

632
usasse outro recurso, a garota - tendo entendido o pedido
- ajuda):
MF: “Levanta!”
(Prontamente, o instrutor aproveita a oportunidade e diz a MF:
Instrutor: “Ask her to stand up, MF. Come on, ask her: stand up!”
(usando gestos)
MF: “Vai, levanta!”
(Diz falando ao ouvido da colega e lhe dando um toquezinho
de ombro)

As produções espontâneas das crianças no inglês-LNN têm se mos-


trado pouco frequentes. Ainda assim, percebe-se que pouco a pouco
vão se apropriando da nova língua como recurso da comunicação:

H: “Tia, eu soltei um taque com a minha mommy no São João.”


Instrutor: “Let’sgo?”
E: “Let’s.”

Em todo o tempo, se buscou tratar com naturalidade a interação


onde o português-LN e o inglês-LNN estavam atuando em conjunto.
Essas ocorrências denotam a natureza translíngue da fala bilíngue: as
línguas se somam, agregam-se, e a comunicação é possível.
c) quanto à qualidade do input e da interação: A preocupação em
manter uma postura receptiva e motivadora com as crianças, encora-
jando-as a produzir a LNN e interagir fazendo uso da nova língua foi
uma constante. Buscou-se falar com elas usando um inglês claro e bem
articulado, que lhes permitisse perceber claramente os sons. Recursos
visuais foram utilizados para otimizar a compreensão daquilo que era
dito em inglês-LNN. Durante a interação, buscou-se estimular a au-
toestima das crianças por meio da valorização de suas produções no
inglês-LNN e da execução de tarefas e comandos. Esse incentivo veio
em forma de elogios, palmas e muitos toques de mão com a expressão
“Hi 5!” e “Give me 5!” Nesses momentos, as crianças vibravam cheias de
entusiasmo por terem alcançado êxito e o mais importante foi levá-las a
perceber que podiam ‘realizar coisas’ em meio às duas línguas operando
no seu ambiente.

633
Há uma soma de fatores relativos ao ambiente e às interações e
inter-relações aí promovidas atuando em favor do desenvolvimento de
línguas que é uma experiência dinâmica.

Considerações finais
Vimos que aspectos que estão para além do linguístico têm in-
fluenciado significativamente o desenvolvimento do inglês-LNN pelas
crianças, favorecendo uma atitude receptiva e, como consequência, a
influência constante entre as duas línguas. A LN no ambiente não se
mostrou um empecilho ou obstáculo à interação entre as crianças e
a equipe. O mesmo concluímos para o uso exclusivo do inglês pelos
instrutores, ainda que isso tenha demandado mais recursos e estraté-
gias para a equipe se fazer entender. Pode-se perceber que as crianças
precisam se sentir confortáveis e seguras, motivadas e dispostas para
aprenderem uma nova língua. Sem esses pré-requisitos, se retraem, se
calam e a língua não se desenvolve. As produções das crianças revelam o
seu processamento bilíngue e fatores que estão para além do indivíduo
criança compõem a experiência linguística que viveram ao lidarem com
duas línguas no mesmo ambiente.

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636
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO EM FAIXAS DE


PROFICIÊNCIA NA PRODUÇÃO ESCRITA DE
PROFESSORES DE LÍNGUA ESTRANGEIRA

José Ricardo de Oliveira Cunha (PPGEL – UNESP)

RESUMO: Este artigo visa discutir aspectos que caracterizam a proficiência em


linguagem escrita de professores de língua estrangeira (doravante LE) no Brasil,
por meio da análise das tarefas de produção escrita do exame EPPLE, Exame
de Proficiência para Professores de Linguagem Estrangeira (CONSOLO et al.,
2009, 2010), instrumento de avaliação linguística cujo principal objetivo é
avaliar a proficiência linguística de professores de LE – especificamente língua
inglesa (doravante LI) – seja daqueles em processo de formação nos cursos de
Licenciatura em Letras, seja de profissionais já atuantes. A relevância, bem
como a importância dessa investigação (CUNHA, 2021) está centrada na
busca pela caracterização de aspectos relativos à (meta)linguagem escrita desses
profissionais. O corpus analisado foi obtido a partir de uma amostra de 24
testes do referido exame, contendo tarefas de produção escrita produzidas por
estudantes de Letras de duas universidades públicas do Brasil, no período entre
2017 e 2018. Considerando que as tarefas de produção escrita que compõem
esse corpus visam caracterizar aspectos relevantes da proficiência em linguagem
escrita de professores de LE, a metodologia de pesquisa adotada é de natureza
qualitativa. A análise da amostra e do conjunto de dados utilizados resultam
na proposição de um modelo de faixas de proficiência, de caráter analítico. Os
resultados da pesquisa sugerem que o modelo proposto por Cunha (op. cit.) é
capaz de ser aplicado não somente para avaliar as tarefas de produção escrita
do EPPLE, como também de ser um instrumento eficaz na caracterização da
proficiência em linguagem escrita de professores de LE. Espera-se que este artigo
traga contribuições para os estudos em curso de avaliação da proficiência de
professores de LE, da proficiência em língua escrita de professores de LI, bem
como para a formação de futuros professores de LE nos cursos de graduação
em Letras, no que tange sua proficiência em LE.
PALAVAS-CHAVE: Avaliação; EPPLE; Produção escrita; Faixas de proficiên-
cia; Formação de professores

ABSTRACT: This article aims at discussing aspects which characterize the


proficiency in written language of foreign language teachers in Brazil, by

637
analyzing the written production in tasks from the EPPLE – The Proficiency
Examination for Foreign Language Teachers (CONSOLO et al., 2009, 2010),
an assessment tool whose goal is to assess the linguistic proficiency of foreign
language teachers, EFL teachers in particular, whether in pre-service education
in Letters courses or in current in-service contexts. Both the relevance and
the importance of this investigation (CUNHA, 2021) lies on the search
to better characterize the aspects concerning the written metalanguage of
those professionals. The corpus analyzed was obtained from a total sample
of 24 EPPLE tests, containing written production tasks produced by Letters
undergraduate students from two public universities from Brazil between 2017
and 2018. Regarding that the written production tasks which comprise this
corpus seek to characterize relevant aspects concerning EFL teachers’ written
language proficiency, the methodological approach in this investigation
is qualitative. Both the sample and the data analyses led to the proposition
of an analytic rating scales model. The results suggest that the rating scales
model proposed by Cunha (op. cit.) is capable of not only assessing the written
production tasks from EPPLE, but also being an effective tool in characterizing
the written language proficiency of foreign language teachers. It is expected
that this article provides contributions to the ongoing studies of assessment of
foreign language teachers’ proficiency, of the written language proficiency of
EFL language teachers, as well as to the education of future foreign language
teachers in Letters courses, concerning their foreign language proficiency.
KEYWORDS: Assessment; EPPLE; Written production; Rating scales;
Teachers’ pre-service education

Introdução
A qualidade da formação de professores de língua estrangeira (do-
ravante, LE) no Brasil, especialmente de professores de língua inglesa
(doravante, LI), vem sendo tema de investigação acadêmica crescente
em Linguística Aplicada (doravante, LA). Isto acontece devido a uma
grande preocupação quanto ao caráter deficitário da formação de pro-
fessores de LE em parte dos cursos de Licenciatura em Letras do país,
levando-se em conta sobretudo o aspecto linguístico de tal formação
(por exemplo, ALMEIDA FILHO, 1992; CONSOLO, 2005, 2017;
CONSOLO e TEIXEIRA DA SILVA, 2014). Reconhecendo que a

638
chamada proficiência linguística está relacionada não apenas ao domí-
nio das estruturas da LE que o professor possua, como também à sua
capacidade de utilizar satisfatoriamente tais estruturas ao fazer uso da
LE no processo de ensino e de aprendizagem em sala de aula, é impor-
tante que o futuro professor demonstre possuir adequados conhecimen-
tos linguísticos da LE com a qual pretende atuar (ALMEIDA FILHO,
1999; FERNANDES, 2016). Por isso, faz-se necessário haver alguma
forma de avaliação que possa ser aplicada a esse professor, com vistas
não apenas a aferir tal proficiência, mas também a atestar sua qualidade.
A avaliação de professores de LE, tanto em processo de formação
nos cursos de graduação, como já em atuação profissional, tornou-se
objeto de inquietação acadêmica de vários estudiosos na última década
no país, interessados em trazer o tema para uma discussão mais ampla,
dada a constatação de que se faz cada vez mais necessária, nos cursos
de Licenciatura em Letras, a presença de instrumentos de avaliação ca-
pazes de verificar a qualidade da formação linguística desses futuros
professores (por exemplo, CONSOLO, 2004; SCARAMUCCI, 2006;
TEIXEIRA DA SILVA, 2007; MARTINS, 2017). A avaliação é um
procedimento que pode, além de estabelecer o nível de proficiência lin-
guística do professor de LE, ajudar esse profissional a buscar um aper-
feiçoamento constante e um desenvolvimento crescente de seus conhe-
cimentos linguísticos. Desta maneira, a avaliação poderá servir como
instrumento de referência fidedigno e capaz de mostrar exatamente em
quais áreas de conhecimento linguístico esse professor precisa melhorar.

Justificativa
Um grande empenho tem sido dirigido para a criação de mecanis-
mos de avaliação de professores de LE no Brasil, especialmente para
os que atuam no ensino de LI. Estudos em LA buscam caracterizar a
proficiência linguística, bem como criar instrumentos de avaliação com
o propósito de se medir essa proficiência - como, por exemplo, o exame
EPPLE (CONSOLO et al., 2009, 2010), que é o Exame de Proficiência
para Professores de Língua Estrangeira, cujo propósito principal é

639
avaliar a proficiência linguística tanto de professores em processo de
formação nos cursos de Licenciatura em Letras, como para aqueles já
atuantes no contexto profissional (CONSOLO, 2010; CONSOLO e
TEIXEIRA DA SILVA, 2014).
Entretanto, um aspecto da proficiência de professores de LE que
também tem relevância no âmbito do processo de avaliação, mas sobre
o qual talvez ainda não haja tantos trabalhos de investigação e pesquisas
acadêmicas como a produção oral, seja o aspecto da produção escrita.
Sua importância no escopo de uma avaliação de proficiência não pode
ser menosprezada, quanto menos deixada de lado em estudos acadê-
micos. É preciso, contudo, que critérios adequados e confiáveis sejam
definidos, para que tal avaliação possa contribuir não apenas para atestar
adequadamente a proficiência linguística do professor de LE, mas que
possa ser um instrumento confiável e capaz de auxiliar na melhoria da
formação dos futuros professores em cursos de Licenciatura em Letras
(SCARAMUCCI, 2004).
Este artigo tem como base a investigação de Cunha (2021), cujo
objetivo geral foi discutir aspectos que caracterizam a proficiência em
linguagem escrita do professor de LE – relativos à (meta)linguagem
escrita desses profissionais –, além de discorrer sobre como avaliar a
proficiência linguística da produção escrita desse professor, em especial
do professor de LI, por meio da análise dos critérios de avaliação das
tarefas de produção escrita do exame de proficiência EPPLE. Para tan-
to, uma amostra de 24 testes escritos do exame EPPLE foi selecionada,
contendo tarefas de produção escrita de duas seções desse teste feitas
por estudantes de Letras de duas universidades públicas do Brasil, entre
os anos de 2017 e 2018. Essas tarefas foram então analisadas com base
no modelo de faixas de proficiência, de caráter analítico, proposto por
Cunha (op. cit.). Com isso, buscou-se verificar a viabilidade do modelo
em avaliar os aspectos da produção escrita, com vistas a caracterizar a
proficiência nas habilidades escritas do professor de LE, especificamen-
te de LI.

640
Fundamentação teórica
O conceito de avaliação
Uma avaliação pode ser vista como um instrumento, um meca-
nismo, ou ainda um processo, através do qual busca-se verificar um
progresso, uma competência, além de medir a qualidade de uma ação
previamente executada, ou atribuir um juízo de valor a um processo
como forma de medir a qualidade do resultado atingido (como, por
exemplo, se houve aprendizagem de um programa de ensino condu-
zido por um professor por um dado período letivo). A avaliação pode,
também, informar o quão próximos ou distantes os processos de ensino
e de aprendizagem estão dos objetivos educacionais previamente esta-
belecidos, podendo descrever os objetos de conhecimento adquiridos
pelos aprendizes e indicar se, de fato, houve aprendizagem e se essa é
resultado de um ensino eficaz; e se não houve, como o ensino pode ser
repensado em função das dificuldades enfrentadas ao longo do processo
de apredizagem, ou das eventuais falhas e outros problemas detectados
na assimilação desses conhecimentos.
De acordo com Scaramucci (1999/2000), a prática da avaliação,
no âmbito do processo de ensino e aprendizagem, deixa de ser um ele-
mento isolado e associado somente a uma simples medição por meio de
testes e notas em um dado ponto desse contexto, e passa a ser vista nos
tempos atuais como uma tarefa a ser cumprida ao longo do percurso
educacional, ou ainda um instrumento usado de uma maneira mais
dinâmica, contínua e negociada. Desta forma, a avaliação, junto com os
processos de ensino e de aprendizagem, constitui um tripé de elementos
indissociáveis que, em conjunto, visam atingir a produção de conheci-
mento, bem como aferir a qualidade na educação e no rendimento dos
estudantes (SCARAMUCCI, op. cit.).
A discussão sobre a importância da avaliação no contexto de uma
sociedade não é recente, sobretudo quando se consideram contextos
educacionais e acadêmicos. Para Scaramucci (2006 apud QUEVEDO-
CAMARGO, 2017, p. 43), após um exame minucioso dos currículos
de formação de professores de línguas, não existe clara preocupação

641
com questões relativas à avaliação. Ela ainda reforça que tais questões
“devem ser trabalhadas consistentemente pelos formadores durante a
formação inicial do professor” (QUEVEDO-CAMARGO, op. cit., p.
44). A avaliação deve ser vista em permanente articulação com os pro-
cessos de ensino e de aprendizagem, na medida que aquela é capaz de
informar acerca do quão alinhado, ou não, os outros dois estão com os
objetivos educacionais estabelecidos segundo o planejamento de pro-
gramas escolares e de aulas, ao invés de centrar-se em uma mera e isola-
da verificação de conteúdos em episódios fragmentados, ou de objetos
de conhecimento fora de contexto para os aprendizes (QUEVEDO-
CAMARGO, 2019).

O conceito de proficiência
O conceito de proficiência linguística, ainda que não seja simples
de ser definido (QUEVEDO-CAMARGO, 2019), pode ser melhor
entendido no que se refere ao uso futuro da língua por um indivíduo,
levando-se em consideração a especificidade do contexto real desse uso,
em uma situação possível de ser medida através de uma escala de grada-
ção dessa proficiência (SCARAMUCCI, 2000). Em outras palavras, a
definição técnica de proficiência, segundo Scaramucci (op. cit., pg. 14),
privilegiaria um indivíduo capaz de demonstrar um adequado controle
operacional da língua em uma situação específica, sendo posteriormen-
te classificado por níveis (ou faixas) de proficiência crescentes, à medida
que demonstre possuir um maior domínio, ou uma maior proficiência
na LE. Assim, procurou-se seguir a definição técnica desse conceito (cf.
SCARAMUCCI, 2000) para a investigação aqui apresentada, pois ao se
tratar de exames de proficiência linguística nos quais os candidatos são
levados a demonstrar o uso futuro da língua em situações reais, e que
possam ser classificados em diferentes níveis (ou faixas) de proficiência
conforme a complexidade da situação de uso da língua (e que é o caso
do exame EPPLE), é pertinente adotar-se a definição técnica do concei-
to de proficiência.
Ao se discutir proficiência, vale trazer à baila dois modelos teóricos
que surgem no final do século XX, cuja grande contribuição à discussão

642
foi considerar tanto o caráter dinâmico da comunicação, como tam-
bém possibilitar o uso da língua pelos aprendizes em situações reais da
vida. Tratam-se do modelo de competência comunicativa, apresentado
por Canale e Swain (1980) que “minimamente inclui três competên-
cias principais: competência gramatical, competência sociolinguística e
competência estratégica” (op. cit., pg. 28), e do modelo de habilidade
linguístico-comunicativa proposto por Bachman (1990), que não só
representou um grande avanço na compreensão do que é ser proficiente
em uma língua, como é até hoje considerado bastante importante no
estudo e na elaboração de testes e exames de proficiência.

Avaliação de proficiência
Conforme Scaramucci (1998), a avaliação é um conceito amplo
e relacionado a um processo por meio do qual busca-se verificar um
desempenho, uma competência ou um nível de proficiência linguística
através da coleta de evidências e de interpretação do conhecimento e das
habilidades adquiridas, permitindo que “um juízo de valor seja atribuí-
do ao final desse processo por parte de quem o conduz” (SHOHAMY,
2006, p. 1). Ainda segundo Scaramucci (2006), a prática da avaliação
exerce um papel central nos processos de ensino e de aprendizagem,
integrando-os e formando um conjunto de elementos indissociáveis.
A avaliação é tida como uma das práticas sociais de maior importân-
cia, sobretudo ao se considerar contextos educacionais e acadêmicos
(BONVINO, 2010). Uma avaliação de proficiência linguística de in-
divíduos não-nativos de uma LE objetiva verificar a capacidade de um
candidato em realizar tarefas de uso futuro daquela língua, de maneira
competente, sendo ao final classificado em níveis de proficiência con-
forme seu desempenho nessa avaliação.
Entretanto e de acordo com Martins (2017), uma avaliação com
vistas a aferir, em específico, a proficiência linguística de um professor
de LE no contexto de atuação brasileiro é ainda considerada uma no-
vidade. Assim, membros do grupo de pesquisa ENAPLE-CCC vêm
trabalhando nos últimos anos na elaboração e no aprimoramento de

643
um exame com a finalidade específica de avaliar a proficiência linguísti-
co-comunicativa de professores de LE que atuam no cenário brasileiro
(CONSOLO, 2010), que é o exame EPPLE, Exame de Proficiência
para Professores de Língua Estrangeira (CONSOLO et al., 2009,
2010). Este exame apresenta características de um exame para fins es-
pecíficos (DOUGLAS, 2000), tais como tarefas que simulam o uso
de linguagem típica de sala de aula em LE, levando seus candidatos a
demonstrar o domínio de uso desta linguagem (FERNANDES, 2016).
Em se tratando do EPPLE, o seu construto está em consonância
com a visão de Stern (1983, apud ANCHIETA, 2015, p. 255), segundo
a qual proficiência está relacionada ao desempenho do usuário de uma
determinada língua, capaz de desenvolver competências comunicati-
vas nessa língua. Corroborando a visão supracitada, são encontradas no
construto do EPPLE algumas características que compõem um exame
de base comunicativa, tais como capacidade de uso real da língua, ênfa-
se na comunicação, conteúdos autênticos e contextualizados e resulta-
dos expressos em faixas de proficiência (SCARAMUCCI, 1999). Para
Lim (2012), é indispensável considerar-se o construto de um exame
para uma elaboração de tarefas que assegure que esse construto seja
adequada e balanceadamente contemplado.
Assim, os candidatos ao EPPLE encontram no teste de produção
escrita tarefas típicas do contexto de atuação do professor de LE, a par-
tir das quais podem demonstrar que sabem utilizar a LE em contextos
de ensino e de aprendizagem, bem como que possuem a proficiência
linguística desejada para sua melhor atuação profissional, permitindo
“a interação entre a proficiência linguística e o conhecimento de conte-
údos específicos dos avaliados” (ANCHIETA, 2015, pg. 63).

Proficiência do professor
A preocupação com a qualidade da formação docente no Brasil,
bem como a adequada proficiência de professores de LE, especialmente
de professores de LI que irão atuar no contexto de ensino e aprendi-
zagem do país, vem sendo tema de investigação acadêmica crescente

644
em LA (por exemplo, ALMEIDA FILHO, 1999; CONSOLO, 2001,
2004, 2005, 2017). No que se refere aos cursos de Licenciatura em
Letras e a preocupação quanto a formação adequada de professores de
LE, levando-se em conta o aspecto linguístico de tal formação e o ce-
nário contemporâneo de ensino e aprendizagem, é importante salientar
que ainda não há parâmetros determinados para se avaliar a qualida-
de da proficiência destes profissionais (cf. QUEVEDO-CAMARGO,
2017), o que corrobora com o caráter deficitário da formação docente
quanto à proficiência linguística destes futuros profissionais.
Almeida Filho (1992) já havia constatado a problemática da for-
mação de professores de LE em cursos de Licenciatura em Letras com
dupla habilitação (isto é, licenciados na língua materna e em uma LE,
principalmente a LI) que, embora sejam graduados em Letras, não se
consideram competentes para usar a LE em sala de aula. O autor relata
que o professor

[...] se formou com uma licenciatura dupla em português e uma


LE, mas as capacidades linguística e teórico-pedagógica resul-
tantes desta formação para ensinar a LE não convenceria nin-
guém. Comumente, o professor não fala, pouco lê, não escreve
e nem entende a língua estrangeira de sua habilitação quando
em uso comunicativo [...] (ALMEIDA FILHO, op. cit., p. 77).

Segundo Borges-Almeida (2009), é esperado que um professor te-


nha como pressuposto não só conhecer acerca da língua que ensina,
mas que tenha a capacidade de usá-la com êxito ao longo do processo
de ensino e de aprendizagem, visando alcançar resultados positivos. A
esse conhecimento da língua, que é o objeto de ensino deste professor,
a autora usa o termo proficiência linguístico-comunicativa, “ressaltando
que (...) proficiência refere-se à amostra concreta da capacidade linguís-
tico-comunicativa do falante em contextos específicos de uso da língua”
(op.cit., 2009 apud ANCHIETA, 2015, p. 58). Conforme Andrelino
(2017), é lugar comum tanto entre professores, como formadores e
pesquisadores em LA, que a proficiência linguística – ou competência

645
linguístico-comunicativa (ALMEIDA FILHO, 2006) do professor de
LE (sobretudo, na LE com a qual pretende atuar) – é considerada um
requisito para a atuação deste profissional. Assim, a competência lin-
guístico-comunicativa (ALMEIDA FILHO, 1993; CONSOLO, 2007;
BORGES-ALMEIDA, 2009) é a principal, porém não a única, com-
petência que o professor de LE deve possuir para o exercício adequado
do ensino de LE.
Considerando, desta forma, o conceito de proficiência linguísti-
co-comunicativa de professores, Consolo e Silva (2014) apresentam
como o construto do exame EPPLE aspectos da proficiência linguísti-
ca essenciais ao professor de LE, como aspectos fonéticos, fonológicos,
morfológicos, sintáticos, semânticos, além de aspectos de proficiência
mais específicos e que são esperados por parte deste profissional, isto é,
aspectos característicos da linguagem do professor, como sua metalin-
guagem, sua capacidade em dar instruções aos aprendizes, utilizar lin-
guagem de correção e de apreciação, dentre outros aspectos. Desta for-
ma, a competência linguístico-comunicativa que as tarefas do EPPLE
visam avaliar consideram a língua usada em contextos do dia-a-dia do
professor de LE, bem como contextos mais restritos a seu ofício, e tam-
bém permitem que esta competência possa ser avaliada, uma vez que
suas tarefas reproduzem situações típicas do contexto de sala de aula,
levando o candidato a simular uma prática de uso da língua condizente
com seu ambiente profissional (ANCHIETA, 2017).

Proficiência em linguagem escrita do professor


Estudos e pesquisas recentes (por exemplo, ANCHIETA, 2015;
PIRES, 2015) ajudaram a fomentar o interesse acadêmico voltado à
área de avaliação da proficiência da produção escrita, em grande medida
também pelo surgimento de publicações tais como Language Testing e
Cambridge Research Notes e, em especial no caso do Brasil, de profes-
sores de LE. Em ambos os estudos supracitados e realizados no Brasil,
o objeto de pesquisa é o exame EPPLE, cujo teste de produção escrita
é detalhadamente analisado, assim como suas tarefas. Antes, contudo,

646
Consolo e Silva (2014) já clamavam a necessidade de haver uma dis-
cussão mais ampla acerca de descritores para a avaliação da proficiência
da produção escrita no EPPLE, defendendo o avanço em estudos sobre
o teste escrito do exame para “a definição de descritores e de faixas de
proficiência embasadas tanto em critérios analíticos como em critérios
holísticos, com base em estudos específicos sobre a proficiência de pro-
fessores nas habilidades escritas” (op. cit, 2014, p. 66).
Ainda que o número de trabalhos acadêmicos que tratem de aspec-
tos da produção escrita do professor de LE no âmbito das tarefas do exa-
me EPPLE tenha, de maneira tímida, aumentado recentemente (PIRES,
2015; CUNHA, 2021), ratifica-se a necessidade de que mais estudos se-
jam feitos com vistas a aprofundar as reflexões acerca do papel e da rele-
vância da produção escrita do professor de LE no contexto brasileiro, em
específico no escopo do exame EPPLE. É essencial, portanto, que essas
tarefas não somente ilustrem situações autênticas de uso dessa linguagem
escrita, como também possam caracterizar o repertório de linguagem escri-
ta esperado que um professor de LE, sobretudo de profissionais recém-for-
mados em cursos de Licenciatura em Letras do país, possua para o melhor
exercício do ofício.

Faixas de proficiência
Estudiosos na área da LA realizaram trabalhos pertinentes sobre fai-
xas de proficiência e sua importância no âmbito das avaliações linguísti-
cas (por exemplo, NORTH, 1998, 2000; HUDSON, 2005). Existem
três funções distintas para essas faixas, conforme Alderson (1991, apud
HUDSON, 2005, p. 208), sendo elas (1) descrever os níveis de desem-
penho, (2) fornecer uma referência aos examinadores que estão avalian-
do o desempenho e, finalmente, (3) orientar os desenvolvedores de tes-
tes com um conjunto de especificações. Douglas (2000, pg. 67) ressalta
a importância de se explicitar os critérios de avaliação presentes em um
exame, assim como seu cuidadoso desenvolvimento (op. cit., p. 71). Em
suma, as faixas de proficiência são usadas para mensurar o desempenho
de um indivíduo (ou, no escopo do exame EPPLE, o professor de LE)

647
quanto ao uso competente dos mecanismos linguísticos da língua para
a qual está sendo avaliado, sendo ao final do processo avaliativo classi-
ficado em uma dada faixa, em consonância com o resultado apurado.
O desenvolvimento, no último século, de diversos modelos de
competência comunicativa culminou com a necessidade de descrever,
por meio de descritores capazes de caracterizar e descrever em faixas
de proficiência, o desempenho de indivíduos submetidos a proces-
sos de avaliação linguística (QUEVEDO-CAMARGO, 2019), sendo
o QECR (Quadro Europeu Comum de Referência125, ou CEFR –
Common European Framework of Reference, no original) um dos mais
conhecidos documentos neste sentido, e amplamente utilizado em todo
o mundo como sinônimo de referência fidedigna no que tange a faixas
de proficiência linguística. Tal documento foi criado com o intuito de
servir de referência ao ensino, à aprendizagem e à avaliação de línguas e
que auxilia os usuários a desenvolver conhecimentos práticos para uso
da língua em situações no mundo real.
No que tange às faixas de proficiência, vale mencionar que exis-
tem as faixas chamadas de holísticas e faixas chamadas de analíticas.
As faixas holísticas permitem que examinadores prestem atenção de
forma geral, provendo uma visão mais global do desempenho e da
produção de um candidato em um exame (BONVINO, 2010), além
de conferir maior agilidade em um processo de correção sem deixar
de ser um instrumento confiável (PANOU, 2013, apud PIRES, 2015,
p. 36). Por outro lado, as faixas analíticas são consideradas mais explí-
citas e mais informativas (WEIGLE, 2002; SINGER e LeMAHIEU,
2014, apud PIRES, op.cit.), dado que provêm informações objetivas e
claras acerca do desempenho de um candidato (BONVINO, op. cit.,
p. 38). Se, por um lado, as faixas holísticas permitem avaliar desempe-
nho de um candidato com base em uma avaliação mais impressionista
e subjetiva do examinador, as faixas analíticas permitem que diferen-
tes aspectos de competência linguística sejam identificados e possam

125
Para mais informações, vide Council of Europe (2001).

648
ser melhor explicitados em consonância com o construto do exame
(LIM, 2012).

Metodologia
Natureza da Pesquisa
A metodologia de pesquisa adotada pela investigação aqui apre-
sentada é de natureza qualitativa (LAZARATON, 2002) e de cunho
interpretativista (ERICKSON, 1986). Segundo Lazaraton (2002), me-
todologias de pesquisa qualitativas têm como objetos de seu estudo as-
pectos sociais e humanos que eram relegados a um segundo plano por
pesquisas quantitativas, além de permitirem uma descrição mais precisa
do contexto em que a investigação se desenvolve. Entretanto, concor-
damos com Bachman (2000), ao considerar essencial desenvolver for-
mas de combinar, de maneira complementar, abordagens quantitativas
e qualitativas em pesquisas que tratam de avaliações de língua, já que
seus resultados ainda são apresentados de maneira quantitativa por meio
de números e resultados. Bogdan e Biklen (2013, apud COLOMBO,
2014), são favoráveis à utilização de dados quantitativos em pesquisas
de base qualitativa, como forma de evidenciar considerações feitas acer-
ca dos sujeitos envolvidos em uma pesquisa.
Com base na análise das tarefas do teste escrito do EPPLE e das res-
postas dos candidatos, foi possível não somente apontar quais aspectos
são relevantes nesta caracterização, como também, a partir dela, propor
critérios de avaliação da produção escrita por meio de faixas analíticas
para o exame EPPLE, especificamente para as tarefas de produção escri-
ta. Por tudo isso, e em consonância com os interesses da investigação,
adotou-se uma metodologia de pesquisa qualitativa e com utilização de
paradigmas de análise interpretativa dos dados utilizados.

Procedimentos metodológicos
Os dados da investigação foram levantados a partir de tarefas de
produção escrita coletadas de um total de 24 testes do exame EPPLE,
realizadas entre 2017 e 2018 (cf. CUNHA, 2019) por alunos de duas

649
universidades públicas – uma do interior de São Paulo e outra do sul
de Minas Gerais. À época, essas tarefas foram corrigidas e avaliadas por
uma equipe de examinadores formada por três pesquisadores, todos
membros integrantes do grupo de pesquisa “Ensino e Aprendizagem de
Língua Estrangeira: Crenças, Construtos e Competências” (ENAPLE-
CCC), tomando como critério de correção os descritores da escala de
proficiência holística do teste escrito do EPPLE existente à época do
estudo de Cunha (op. cit.) e elaborada por membros do mesmo grupo.
As tarefas coletadas formaram o corpus dessa investigação.
Foram selecionadas as seções 2 e 3 do teste de produção escrita do
exame EPPLE, cujas tarefas compõem o foco desta análise. Na segunda
seção, é solicitado ao candidato que produza um texto, em situação
contextualizada com o trabalho de professor de LI, no qual o primeiro
e o último parágrafos são apresentados previamente redigidos, caben-
do ao candidato fazer o preenchimento do parágrafo intermediário re-
manescente. Por fim, na terceira seção, são apresentados ao candidato
excertos escritos produzidos por estudantes de LI, os quais apresentam
trechos contendo inadequações da chamada língua padrão. O candida-
to é, então, convidado a primeiro identificar essas inadequações, isto
é, os desvios presentes nesses trechos e, em seguia, redigir, recorren-
do à metalinguagem da área, correções e comentários compatíveis com
quem os escreveu – em outras palavras, de forma que seja inteligível ao
autor dos mesmos.
Após uma análise preliminar da produção escrita dos 24 testes, com
base na classificação em faixas holísticas quando da realização do exame,
foi proposto um modelo de faixas de proficiência, de caráter analítico,
criado especialmente para uma melhor avaliação do desempenho dos
candidatos no teste escrito e capaz de contemplar aspectos específicos
dessa proficiência de professores de LE, em particular professores de LI.
Ressalta-se que a elaboração do modelo faixas de proficiência de caráter
analítico para as seções 2 e 3 do teste de produção escrita do EPPLE
contemplou toda a reflexão teórica da pesquisa de Cunha (2021), bem
como fundamentou-se no conjunto de dados levantados a partir das

650
análises de amostras de tarefas de produção escrita que compõem o
corpus dessa pesquisa.
Assim sendo, os cinco critérios propostos para avaliar a proficiência
em linguagem escrita do professor de LE, de forma analítica, e por meio
das tarefas de produção escrita do exame EPPLE, são:
- Adequação discursiva à terminologia da linguagem de professor;
- Coesão e coerência textuais;
- Ortografia e pontuação;
- Estruturas linguísticas (gramaticais e lexicais);
- Cumprimento da tarefa proposta.
Os dados levantados nas amostras coletadas do teste foram com-
parados a cada um dos critérios supracitados, a fim de verificar em
que medida a produção escrita das amostras analisadas continham tra-
ços desses critérios e se os dados encontrados dariam suporte para sua
aplicabilidade. Por fim, as amostras deste corpus foram também sub-
metidas a uma análise realizada por dois examinadores especialistas,
convidados a apreciar tais amostras, e que empregaram o modelo de
faixas analíticas para avaliar a produção escrita dessas amostras. Esse
procedimento de triangulação de dados (cf. DENZIN, 2010) objeti-
vou trazer maior confiabilidade ao modelo proposto, dado que modelo
de faixas analíticas foi analisado a partir de outros olhares, com vistas
a trazer maior credibilidade não só ao modelo em si, mas também aos
dados dele oriundos.

Resultados alcançados
Os resultados alcançados a partir da análise dos dados revelam que
o modelo de faixas de proficiência analíticas (CUNHA, 2021) mos-
trou-se não só viável para avaliar a produção escrita a ser feita dentro
de um cenário de aplicação do exame EPPLE, como também capaz
de, por meio de seus descritores analíticos dentro de cada um dos cin-
co critérios propostos, caracterizar, em faixas de proficiência, o que os
candidatos ao exame são capazes de produzir, em termos de linguagem

651
escrita, e de que forma esta produção escrita pode ser classificada em
faixas de proficiência.
Além disso, a análise e o parecer de dois examinadores especia-
listas – convidados a julgar o desempenho dos candidatos e, ao final,
atribuir uma classificação das produções escritas, empregando o mo-
delo de faixas de proficiência aqui proposto – buscou verificar sua
confiabilidade, bem como corroborar as impressões alcançadas por
Cunha (2021). Assim, o modelo cumpre um de seus objetivos, que
é delinear os critérios que caracterizam a proficiência em linguagem
escrita de professores de LE que se submetem ao exame EPPLE, em
consonância com as discussões teóricas acerca do grau de detalha-
mento de informações oriundas das faixas de proficiência analíticas
(BONVINO, 2010; PIRES, 2015) capazes de serem fornecidas por
um modelo como este.

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656
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

OS VÍDEOS CURTOS DAS REDES SOCIAIS


IMPACTANDO O APRENDIZADO DO
PROCESSO ANAFÓRICO EM LIBRAS NO
PERÍODO PANDÊMICO

Josué Shimabuko da Silveira Junior – UFMT

RESUMO: No ensino-aprendizagem de Libras, parte das atividades práticas


são realizadas por meio de filmagens em sala de aula. Com a pandemia da
Covid-19, a tecnologia e o acesso às redes sociais se incrementaram. Redes
sociais como Instagram e o Tik Tok possibilitaram ferramentas que auxiliam
na produção e edição de vídeos curtos e, nesse sentido, as atividades de
prática – antes realizadas presencialmente – passaram a ser elaboradas a
distância e com a utilização de ferramentas disponíveis em tais redes. Estes
usos autônomos ocasionaram dois fenômenos interessantes: o uso das redes
sociais para o aprendizado de Libras e a influência dos vídeos curtos nas
produções em Libras. Neste sentido, este trabalho objetiva discutir a nova
construção da anáfora em Libras, a partir da utilização do meio virtual para
produção de vídeos curtos nas redes sociais. As reflexões sobre o fenômeno
apoiam-se no sócio interacionismo de (VIGOTSKY, 2008), na Teoria dos
Sistemas Adaptativos Complexos de (PAIVA, 2011) e na Linguística Aplicada
Indisciplinar (MOITA LOPES, 2006). É possível perceber que os aplicativos
apoiam os alunos democratizando o acesso e simplificando o processo de
edição dos vídeos, bem como, influenciam – em alguns casos – na produção
de atividades elaboradas para além da língua, incorporando a edição como
uma ferramenta essencial no processo de multiletramentos e na entrega das
atividades. Nesse sentido, altera-se a visão do uso da ferramenta como um apoio
e passa a incorporar a tecnologia como recurso determinante na produção,
o que era apenas a aprendizagem de um recurso linguístico se distorce para
ser essencial nas construções da língua trazendo uma visão literária para as
atividades.
PALAVRAS-CHAVE: Anaforismo. Linguística Aplicada. Segunda Língua.

ABSTRACT: In the teaching and learning of Libras, part of the practical


activities is carried out through filming in the classroom. With Covid-19,
technology and the promotion of access to social networks have become even

657
more popular. Social networks such as Instagram and Tik Tok enabled tools
that help in the production and editing of short videos and, in this sense, the
practice activities - previously carried out in person - started to be elaborated
at a distance and with the use of tools available in such networks. These
autonomous uses caused two interesting phenomena: the use of social networks
to learn Libras; the influence of short videos on productions in Libras. In this
sense, this work aims to discuss the new construction of anaphora in Libras,
from the use of the virtual environment for the production of short videos
on social networks. Reflections on the phenomenon are based on the socio-
interactionism of (VIGOTSKY, 2008), on the Theory of Complex Adaptive
Systems (PAIVA, 2011) and on Interdisciplinary Applied Linguistics (MOITA
LOPES, 2006). It is possible to notice that the applications support students
by democratizing access and simplifying the process of editing videos, as well
as influencing – in some cases – in the production of activities developed
beyond the language, incorporating editing as an essential tool in the process
of multiliteracies and in the delivery of activities. In this sense, the view of the
use of the tool as a support change and it starts to incorporate technology as a
decisive resource in the production, what was just the learning of a linguistic
resource is distorted to be essential in the constructions of the language
bringing a literary vision for activities.
KEYWORDS: Anaphorism. Applied Linguistics. Second language.

1. Introdução
A língua é um símbolo, um modo de identificação, um instrumen-
to que nos permite conhecer e organizar o mundo, atribuindo sentido
ao relações humanas. A Língua Brasileira de Sinais – Libras é reconhe-
cida legalmente em nosso país desde o ano de 2002, por meio da Lei
10.436 (BRASIL, 2002). É uma língua de modalidade visuoespacial de
complexidade e atributos comparáveis a qualquer outro sistema dessa
natureza, tanto que no campo dos estudos linguísticos já se reconhece
sua legitimidade e seu amplo espaço para pesquisa, dentre alguns con-
textos de forma inicial como na Linguística Aplicada - LA.
É uma língua aprendida por contato, representando por si só as
possibilidades que traduzem as experiências visuais. “Os surdos veem a
língua que o outro produz por meio do olhar das mãos, das expressões

658
faciais e do corpo. É uma língua vista no outro” (QUADROS, 2017,
p. 34). Um espaço importante ocupado por ela são as universidades
que agora a nível de Brasil ofertam cursos de licenciatura e bacharelado
juntamente com outras línguas formam os cursos de Letras de única ou
dupla habilitação.
Tal conquista expande o interesse pela aprendizagem de Libras para
os sinalizantes ouvintes aprendizes, em sua maioria, como Segunda
Língua - L2. Por se tratar de uma língua visual, grande parte de suas
atividades práticas são realizadas em sala de aula e se apoiam fortemen-
te nas tecnologias de audiovisual para registro correção e melhoria da
produção linguística.
Para Vigotski (2008) privilegiar as mediações culturais é importan-
te uma vez que caracterizam sua visão do homem enquanto ser social,
atribuindo o exercício da humanidade à possibilidade de o indivíduo
estabelecer trocas culturais por meio da linguagem. As Redes sociais in-
vadem o cotidiano das pessoas a nível global, possibilitam uma integra-
ção/interação em tempo real, as pessoas estão conectadas o tempo todo.
Algumas delas auxiliam para aproximar os distantes territorialmente
falando e sempre foram usadas nos diversos contextos de convivência
humana como familiar, profissional, lazer, entretanto, em específico no
contexto educacional era pouco visada ou até mesmo restringida em
sala de aula.
A necessidade de ficarmos em casa por conta da pandemia no
Brasil, mais do que nunca tais redes serviram para aproximar e romper
barreiras físicas daqueles que geograficamente encontravam-se próxi-
mos e não consideravam o uso da ferramenta para estabelecer contato
para estes fins justamente pela convivência cotidiana.
A pandemia contribuiu para que novas redes sociais se populari-
zassem pelo mundo, dentre elas o Instagram e o Tik Tok. Todos os
aplicativos sociais que permitem que você interaja com seus amigos e
contatos através de vídeos curtos e parte deste tema nos interessa no
aprendizado de Libras no período pandêmico, adiante falaremos um
pouco mais sobre.

659
Grande parte dos registros de Libras fazíamos por meio de vídeo
pré-pandemia eram realizados em sala de aula e os alunos faziam uso
deste apoio tecnológico apenas como uma ferramenta. Com o advento
da pandemia alguns destes vídeos ganharam um novo olhar por meio
do apoio de ferramentas que anteriormente apenas auxiliavam no regis-
tro mas neste período começam a interferir linguisticamente nas cons-
truções, possibilitando produções que vão além do apoio tecnológico
do registrado, mas sim, trazem consigo um olhar semiótico literário
para além do uso da língua.
Nesse trabalho discorreremos brevemente pelo olhar do interacio-
nismo, da linguística aplicada crítica e pela teoria dos sistemas adap-
tativos complexos observando um fenômeno identificado no período
pandêmico com uma turma do 4º semestre de graduação no curso de
Letras Libras Licenciatura da Universidade Federal de Mato Grosso –
UFMT, ofertada na modalidade Ensino a Distância - Ead. Dividimos o
texto em introdução onde descrevo inicialmente o contexto pandêmico
e a Libras relacionados ao curso de Letras Libras, posteriormente, no
desenvolvimento, falarei sobre o Ambiente Virtual de Aprendizagem –
AVA, as redes sociais no aprendizado de línguas, o processo anafórico
(role-play) em Libras, a influência dos vídeos curtos nas produções de
Libras e, ao final, algumas considerações finais sobre o tema.

2. Desenvolvimento
A Pandemia aconteceu no mundo no ano de 2020 e, mais pre-
cisamente, em março do referido ano temos o primeiro lockdown no
Brasil, resultando em uma revolução na forma de ensinar. O sistema de
ensino presencial necessitou se reinventar e adaptar-se para dar conta do
processo educacional em nosso país majoritariamente ofertado presen-
cialmente até então.
Até início de 2020, as universidades já contavam com modalida-
des de ensino presencial, ensino híbrido e Ead, subsidiados por plata-
formas que permitiam legitimidade no processo educacional superior,
na UFMT para os cursos presenciais o aproveitamento do AVA como

660
recurso de ensino presencial acontecia de forma muito tímida. Mesmo
sendo uma das universidades pioneiras no ensino remoto, precisamos
aprender muita coisa e nos reinventar com o intuito de propiciar uma
educação de qualidade para os alunos.
Diversas estratégias de ensino foram pensadas e colocadas a teste
para tentar adaptar e sanar o prejuízo na questão educacional, espe-
cificamente no ensino superior público, a fim de que não ficássemos
parados. O uso do AVA se intensificou como uma ferramenta disponi-
bilizada há algum tempo, mas com baixa procura por parte dos cursos
presenciais como um todo.
No período supracitado os AVAs foram explorados como ferramen-
tas essenciais para um ensino formal de qualidade. Entendemos nesse
trabalho o AVA, assim como Souza (in Paiva e Nascimento, 2011, p.
93), ele pode ser identificado por ser um espaço que integra tecnologias
heterogêneas e múltiplas abordagens pedagógicas, estruturando para
prover informações educacionais e no qual interações ocorrem rumo à
construção do AVA. Podendo ser utilizado para enriquecer atividades
de sala de aula ou mesmo para substituí-la. Na UFMT, as particula-
ridades de todos os cursos não conseguiram ser supridas apenas pelo
AVA da instituição, pois existem especificidades que variaram para cada
curso de graduação.
Para além do AVA, os acadêmicos do curso de graduação em Letras
Libras licenciatura precisaram recorrer a ferramentas que prestavam su-
porte para o registro das atividades filmadas – por se tratar de uma
língua visual – e de plataformas que auxiliassem no armazenamento/
transferências de arquivos que o AVA não dava conta de suportar para
upload.
Por se tratar de atividades filmadas de uma língua visual espacial,
foi preciso ainda fazer uso de ferramentas de edição do material de re-
gistro, proporcionando filmagens claras, sem poluição visual e com cor-
tes coerentes para aquelas filmagens que não foram gravadas de uma
vez só. A nível de comparação com os demais cursos de Letras ofertados
pela UFMT campus Cuiabá, estes solicitavam que o AVA suportasse/

661
possibilitasse ferramentas para avaliação/arquivamento de áudios para
se trabalhar a parte fonológica da língua, para nós de Libras, a solicita-
ção era para que a plataforma conseguisse suportar arquivos de audio-
visual maiores ou popularmente conhecidos como “mais pesados” uma
vez que vídeos demandam tamanhos de arquivos maiores.
Essa complexidade de demandas e de apoio do AVA para a apren-
dizagem remota em diversos momentos eram contornadas com o
apoio das redes sociais/plataformas digitas que ofertam tais recursos
gratuitamente. Esta forma complexa de perceber certa sagacidade
nos alunos para buscarem recursos tecnológicos gratuitos vai além da
aprendizagem da língua, trata-se de um processo complexo. Segundo
Souza (in Paiva 2011, p.94) O paradigma da complexidade tende a
preocupar-se com “o comportamento dos sistemas dinâmicos, ou seja,
aqueles que mudam com o tempo, e se propõe uma visão holística
desses sistemas, o que oferece à Linguística Aplicada uma forma ino-
vadora de refletir sobre as questões da área”. A LA nos subsidia pensar
na complexidade para além da língua, considerar toda a semiose en-
volvida no processo.

Podemos caracterizar o sistema semiótico complexo da língua(-


gem) como um processo, portanto algo inacabado, que expe-
rimenta momentos de estabilidade e de instabilidade e que se
constitui de capacidade inata ou faculdade mental; conjunto de
regras, funções, princípios e parâmetros; códigos; signos; repre-
sentações mentais; conexões mentais; espaços mentais; prática
social; identidades; instrumentos de comunicação; conjunto de
idioletos; contrato social; discurso; produto histórico. Tudo isso
permite ao homem viver a sua subjetividade e seu papel social,
através da interação dinâmica de todos esses elementos (DO
VALE BORGES et al 2011, p.343-4).

Assim, percebemos que o período pandêmico cobrou dos acadê-


micos uma aprendizagem para além da língua e de como ensiná-la,
objetivos principais daqueles discentes que buscam a licenciatura de
Libras, ela exigiu que os alunos se reinventassem e buscassem recursos

662
que muitas vezes não foram pensados para a educação/aprendizagem de
línguas e fizessem uso para dar conta de suas demandas.

2.1 As redes sociais no aprendizado de Línguas


Dentre os recursos aproveitados para a aprendizagem de Libras
pelos acadêmicos no período pandêmico, estavam as redes sociais. A
crescente popularização de algumas redes sociais durante o período
pandêmico é inegável, bem como, a melhoria feita em seus softwares
promovendo agilidade e dinamicidade das publicações, expandindo as
formas de interação, passando das interações feitas inicialmente apenas
por meio de fotos e escrita, para o que temos hoje como vídeos curtos
e lives que colocam até quatro pessoas conversando simultaneamente
por horas.
Como forma de aperfeiçoamento, alguns recursos de edição foram
incorporados em tais redes, dentre eles, o uso do fundo verde (chro-
ma-key), a possibilidade de embaçar a imagem do local onde a pessoa
se encontra - caso queira manter a privacidade de sua casa, legendas
automáticas, dentre outros efeitos que anteriormente eram encontrados
apenas em programas de edição profissional. Com isso, popularizou-se
a profissão de digital influencer ainda mais.
No aprendizado de Libras tais ferramentas corroboraram democra-
tizando e facilitando o acesso a recursos de edição de vídeos elaborados
para atividades práticas solicitadas no período pandêmico. Tais recursos
otimizaram a vida do graduando, o que antes muitas vezes era neces-
sário se ter um computador, baixar um programa de edição pago ou
gratuito, baixar o vídeo gravado do celular para o computador e poste-
riormente realizar a edição, passa a ser feito apenas no aparelho celular.
Vale ressaltar que a condição sócio econômica dos alunos de uni-
versidades públicas nem sempre condiz com a disponibilidade de um
computador/notebook em casa, parte dos alunos aproveita a estrutura
da universidade para realizar tais atividades, como estávamos em pan-
demia e a universidade fechada, a edição do material na palma da mão
acaba por facilitar o acesso a estes programas auxiliando os alunos e

663
otimizando o tempo no processo de organização das atividades filmadas
solicitadas pelos docentes.

2.2 Processo anafórico(role-play) em Libras


Libras é uma língua que marca seus personagens pela utilização de
anáforas, dentre elas, a marcação corporal. Segundo os autores Máximo
e de Souza (2014) O processo anafórico ou “Role-play é um recurso
muito usado nas narrativas e acontece quando o sinalizador assume a
posição dos personagens, realizando alternância entre eles nas situações
de ações ou diálogos”. Pode ser marcado na representação dos perso-
nagens por meio do deslocamento do tronco do corpo para as laterais,
nesse sentido, o narrador é representado no eixo central e os persona-
gens nas laterais sendo que para cada lado em que o tronco é posicio-
nado um personagem é demarcado, tal recurso linguístico contribui
para melhor definição dos personagens e facilita, consequentemente, a
compreensão contextual dos fatos narrados.
É muito comum na comunicação em Libras a marcação de diá-
logos entre dois personagens por meio desta torção do tronco em que
cada oposto representa um personagem do discurso, conforme apresen-
to na figura um logo abaixo.

Figura 1: Processo anafórico(role-play) representando


dois personagens dialogando em uma narrativa.

Fonte: acervo do autor, encontrado no link126 ou no Qrcode.

126
Narrativa Jacaré ou Madeira disponível em: https://www.youtube.com/watch?-
v=KdbWSgpeJ7s .

664
Esta forma de dinamicidade do discurso pode ocorrer com a de-
marcação de dois ou mais personagens. É possível demarcar três, quatro
personangens no espaço apenas com a torção do tronco se distanciado
ou aproximando do eixo central. Gelamente quando se marcam três
personagens há uma alternância entre o narrador e um personagem no
mesmo posicionamento central do corpo, a troca é percebida pelo con-
texto e pela dinâmica de expressões faciais e corporais que acompanham
a demarcação do personagem e divergem da expressão mais neutra do
narrador.

2.3 A influência dos vídeos curtos nas produções de Libras


Aqui falaremos um pouco com exemplos práticos do fenôme-
no ocorrido durante o período pandêmico. Com a popularização da
produção de vídeos curtos, é nítido que tais vídeos influenciaram
significativamente as produções das atividades em Libras. Em tem-
pos de pré-pandemia, tais atividades eram desenvolvidas em sala de
aula, o que não permitia um processo de edição mais complexo ou
demorado.
Quando falamos especificamente na aprendizagem do anaforis-
mo(role-play) em Libras, as atividades desenvolvidas eram feitas em sala
de aula e os acadêmicos precisavam criar narrativas simples que conti-
nham diálogos entre dois ou mais personagens, ocorreu que no período
pandêmico o tempo para a elaboração das atividades se estendia para
além do imediatismo.
Nesse sentido, os alunos podiam gravar, regravar e editar com tran-
quilidade as atividades para o posterior envio no AVA. É aqui que per-
cebemos que esse tempo somado ao consumo dos vídeos curtos nas
redes sociais, influenciou para que os alunos incorporassem elementos
para além dos linguísticos no trabalho de edição, como a troca de ca-
misetas demarcando personagens diferentes por meio de cores diversas,
somado a torção do tronco que por si só linguisticamente já designam a
diferenciação dos personagens como mostra a figura dois.

665
Figura 2: Processo anafórico(role-play) representando dois personagens
pelo posicionamento do tronco somado a troca de cores da camiseta.

Fonte: Acervo do autor.

Neste exemplo é possível perceber que a aluna usa do recurso de


edição, bem como, da troca de camisetas para evidenciar o processo
anafórico na construção da narrativa em Libras uma vez que nos cortes
de imagem ela aparece com a troca de cores rapidamente em um diá-
logo fluido, obviamente o tempo para a troca de roupa foi retirado do
vídeo deixando apenas a parte relevante.
Tal atitude traz para a discussão a influência das redes sociais e da
tecnologia no aprendizado de línguas no período pandêmico, em uma
sala de aula não haveria tempo para que a acadêmica fizesse a troca de
roupa e também me faz questionar uma possível roteirização para a exe-
cução da atividade que pode muito bem ser gravada em partes – hora
se faz todas as falas da personagem de camiseta branca, hora se faz todas
as falas da personagem de camiseta vermelha e, na edição, encaixa-se as
partes dando coerência e sentido a interação entre eles.
No exemplo a seguir – figura três – a acadêmica representa três
personagens construindo uma narrativa. As personagens são marcadas
pela torção do tronco e demarcação do espaço, mas a aluna vai além,
ela compõe figurinos com adereços na cabeça para duas delas. Aqui fica
muito claro que não se trata apenas de uma atividade prática linguística

666
do processo anafórico, trata-se de uma construção literária em Libras,
uma narrativa nos moldes cinematográficos, com direito a personagens
distintos, figurino, cortes bem elaborados e etc.

Figura 3: Processo anafórico representando três personagens pelo


posicionamento do tronco somado a troca de roupas e acessórios.

Fonte: Acervo do autor.

Acredito que seja um fenômeno com influência do mundo globali-


zado e atual em que vivemos, para as alunas a entrega do material como
a atividade prática solicitada ganha um status superior do que o simples
ato de realizar a torção do tronco, pois elas fizeram além, fizeram uso
dos recursos de edição e de figurino para a realização da atividade por
acreditar que desta forma estariam elevando o nível da produção.
Enquanto professor de línguas é necessário lembrá-las que tais re-
cursos são interessantes, mas que no cotidiano não há tempo para trocar
de roupas e adereços, na produção da língua tudo é muito rápido e os
personagens são estabelecidos no espaço necessitando que o locutor/
narrador tenha clareza da organização espacial e do posicionamento dos
personagens pois os diálogos são simultâneos. O autor Arriens (2005,
p.25) “explica que todos os processos anafóricos (shifting ou role-play)
exigem um poder de concentração extremo para serem utilizados e man-
tidos nos lugares corretos, para que os surdos compreendam claramen-
te os textos e a relação entre esses personagens”. Pensando nos alunos
ouvintes – casos supracitados – a necessidade é a mesma ou um pouco
mais complexa uma vez que são aprendizes de uma L2 de modalidade
diferente e, nesse sentido, a atenção é exigida tanto na demarcação dos

667
personagens – enquanto produção de discurso – quanto no momento
em que está como interlocutor e precisa ter clareza nos referentes esta-
belecidos no espaço para não confundi-los.
Pensando por este prisma para a aprendizagem do conteúdo da lín-
gua, é interessante a prática da Libras tendo a tecnologia apenas como
apoio de registro e não como uma ferramenta de “melhoria” e abertura
de possibilidades de produções poéticas em Libras. A autora Bartolomei
(2020, p.159) evidência em sua tese como os “aspectos linguísticos,
dramáticos e tecnológicos são estritamente relacionados e acoplados,
gerando assim a construção de produções de natureza altamente per-
formática e visual, híbridas e imagéticas, produzindo efeitos estéticos
que as ratificam como literárias”, o que eleva tais produções para um
patamar artístico cultural e não mais apenas uma simples atividade de
prática de role-play na Libras.
Enquanto pesquisador de LA é muito claro perceber as influências
do mundo globalizado e do desprendimento de certos moldes que a
aprendizagem de língua está inserida, como se houvesse um distancia-
mento daquilo que ensinamos/aprendemos na academia com o cotidia-
no do mundo. Reconhecer as influências das vivências dos acadêmicos e
o impacto que isso causa em suas formas de aprender é o primeiro passo
para compreender o mundo moderno e ressignificar tais ferramentas a
favor da aprendizagem de línguas.
Nesse sentido, o professor precisa ter bastante cuidado quando
olhar para tais produções, pensando pela complexidade, assim como a
autora Paiva (2011, p.192) “no contexto de aquisição de segunda lín-
gua, ser exposto a determinada experiência pode causar reações diferen-
tes em estudantes diferentes. A exposição a certas experiências pode ser
produtiva para um aprendiz e funcionar como um bloqueio para ou-
tro.” E se o professor não tiver cuidado para explicar as diferenças entre
a prática de role-play na língua e a produção visual literária, pode gerar
no aluno a sensação do fazer errado, quando na verdade, é apenas um
fazer diferente. Não é melhor e nem pior do ponto de vista da prática
do conteúdo anaforismo, apenas diferente.

668
Ensinar não é reprimir o aluno, é necessário explicar o contexto
e o objetivo das atividades práticas sim, mas também reconhecer tais
fenômenos positivamente como forma de explorar a criatividade dos
alunos. Penso que o professor que desmerece o esforço considerando
como “errado” pode estar privando a criatividade e as potencialidades
dos acadêmicos que tenham uma tendência para as produções literárias
em Libras, assim como, caso ele considere como algo superestimado,
possa passar a mensagem que no contexto de prática do processo ana-
fórico(role-play) as produções estão em um patamar superior, levando
a falsa compreensão de que o processo anafórico é praticado em sua
excelência quando for utilizado de recursos tecnológicos e adereços para
compor os personagens.
No período pandêmico essa sensibilidade e atenção por parte dos
docentes foi intensificada e necessária levando em consideração que não
foi um período fácil para os acadêmicos e para todos nós, de maneira
geral, enquanto seres humanos. Precisamos lidar com as questões par-
ticulares pessoais que fogem a universidade e a incerteza de um futuro
retornando à convivência normal cotidiana com a vitória da ciência
sobre o vírus, bem como com os desafios específicos do ensino remoto,
tecnologia necessária, internet de qualidade e etc.
Foi preciso olhar tais fenômenos pelo prisma da complexidade da
aprendizagem de línguas no mundo globalizado, conectado, entenden-
do que os acadêmicos relacionaram aquilo que aprendiam em sala de
aula com o seu cotidiano, estavam isolados, em contato limitado com
os demais colegas da turma e o docente responsável pela disciplina.
Agora, retornando ao presencial penso que será raro ocorrer novamente
tal fenômeno uma vez que as práticas voltaram a acontecer em sala de
aula, o que não permite que os alunos tenham o tempo necessário para
se apoiar na tecnologia para além do registro das atividades.

3. Considerações finais
Neste artigo, discorremos brevemente sobre o ensino de Libras em
nível superior e o fenômeno da influência das redes sociais impactando

669
a aprendizagem do processo anafórico (role-play) no período pandê-
mico, foi possível perceber que nos exemplos citados ocorreu-se que
as acadêmicas foram além da prática de um recurso linguístico para a
produção literária em Libras, fazendo uso não só da demarcação corpo-
ral dos personagens mas complementando com uso de roupas de cores
diferentes e adereços caracterizando os personagens dentro da narrativa,
este fenômeno nos possibilitou compreender que o ensino de língua
está inserido em uma sociedade múltipla e diversa que as práticas sociais
dos acadêmicos acabam por impactar no aprendizado de língua.
No caso do anafórico(role-play) foi possível perceber que tal fenô-
meno caracterizou-se com mais frequência no período de ensino remo-
to, pois no presencial não haveria tempo para toda essa produção que
busca na tecnologia não apenas o apoio do registro das atividades, mas
sim, um recurso aliado para a produção de vídeos mais elaborados.

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671
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

EM BUSCA DE UM NOVO MODELO


DE MATERIAL DIDÁTICO DIGITAL: O
PERCURSO GAMER

Juliana Vegas Chinaglia (Unicamp)

RESUMO: O artigo apresenta os resultados de uma tese de Doutorado em


Linguística Aplicada. A pesquisa teve como objetivo geral refletir sobre as
interfaces entre os games e as atividades de escrita em práticas de letramentos
escolares. Para isso, criamos e aplicamos em sala de aula um modelo novo de
material didático digital para o ensino de escrita, que chamamos de percurso
gamer, intitulado “Lara Croft nos templos do Camboja”, com base nas teorias
de letramentos, enunciação, gamificação e Aprendizagem Baseada em Jogos.
A inspiração foi a série de jogos Tomb Raider, que tem como personagem
principal uma arqueóloga fictícia. Um percurso gamer, em nossa visão, deve
ser composto por estes elementos: 1) a interação com um espaço virtual; 2) a
vivência de ações em um mundo imersivo capaz de mobilizar determinadas
práticas de letramentos e gêneros de uma esfera social; 3) a encarnação de
um personagem e assunção de seu ethos discursivo. Para a geração dos dados,
realizamos uma pesquisa-ação e aplicamos os seguintes instrumentos de
geração de dados: questionário, gravação das aulas, captura de imagens no
computador, diário de pesquisa e entrevista. Concluímos que o percurso gamer
constrói a cena de enunciação a partir do mundo imersivo, permitindo aos
estudantes ter vivências mais concretas antes de assumir determinado ethos
discursivo.
PALAVRAS-CHAVE: jogos eletrônicos; material didático, escrita

ABSTRACT: The article presents the results of a Doctoral thesis in Applied


Linguistics. The general objective of the research was to reflect on the interfaces
between games and writing activities in school literacy practices. For this, we
created and applied in the classroom a new model of digital didactic material
for teaching writing, which we called the gamer route, entitled “Lara Croft
in the temples of Cambodia”, based on theories of literacy, enunciation,
gamification, and Game Based Learning. The inspiration was Tomb Raider
games, whose main character is a fictional archaeologist. A gamer route, in
our view, should be composed of these elements: 1) interaction with a virtual
space; 2) the experience of actions in an immersive world capable of mobilizing

672
certain practices of literacies and genres of a social sphere; 3) the incarnation
of a character and assumption of his discursive ethos. For data generation,
we carried out action research and applied the following data generation
instruments: questionnaire, class recording, computer image capture, research
diary and interview. We conclude that the gamer route builds the enunciation
scene from the immersive world, allowing students to have more concrete
experiences before assuming a certain discursive ethos.
KEYWORDS: videogames, didactic material, writing

1. Introdução
Desde o início de 2020, vivemos tempos pandêmicos marcados pe-
las consequências da circulação e disseminação do vírus SARS-CoV-2,
que causa a Covid-19. Devido às necessidades de isolamento social para
conter o vírus, a doença provocou profundas modificações nas relações
sociais, o que também causou impactos na educação. A escola sempre
foi vista como um espaço essencial não somente para o ensino de con-
teúdos, mas também de vivências entre alunos e professores, capazes de
promover a socialização, a amizade, a cooperação entre os indivíduos e
a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Essa concepção
foi abalada pela necessidade nunca vista de promover o chamado ensino
remoto, isto é, um modelo de ensino em que os estudantes deveriam es-
tudar em suas casas. Algumas estratégias foram criadas: disponibilização
de materiais impressos para retirada nas escolas, criação de vídeos, aulas
online ao vivo, postagem de atividades em ambientes virtuais, trocas de
mensagens em aplicativos e e-mails, entre outras possibilidades. Muitas
dificuldades foram enfrentadas, principalmente devido à dificuldade
de acesso de alguns às tecnologias digitais e pelo desconhecimento de
como conduzir o processo pedagógico nesse novo cenário.
Tendo em vista os desafios impostos pelos tempos pandêmicos, é
fundamental que as pesquisas educacionais nas diferentes áreas, como
os estudos da linguagem, passem a refletir sobre quais materiais didá-
ticos podemos oferecer aos estudantes em alternativas que levem em
conta não só o ensino presencial, mas também possam ser utilizados

673
em modalidade híbrida (presencial e digital). Embora a fase mais crítica
tenha passado e as escolas tenham retornado às aulas, a crise gerada pela
Covid-19 colocou em evidência o quanto a escola brasileira ainda não
está preparada para lidar com as tecnologias digitais da informação e
comunicação. Nesse sentido, é necessário que se pense urgentemente
o que pretendemos para o futuro, já que não é nosso desejo contribuir
para uma visão utilitarista das tecnologias no ensino, entendendo-as
apenas como ferramentas e não como objetos ensináveis em uma pers-
pectiva crítica e reflexiva.
No intuito de contribuir com essa discussão, este artigo traz alguns
dos principais resultados de uma tese de Doutorado em Linguística
Aplicada, defendida em 2020, na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), que teve como objetivo geral “refletir sobre as interfaces en-
tre os games e as atividades de escrita em práticas de letramentos escola-
res, em uma aplicação de um material didático desenvolvido em lógica
gamer” (CHINAGLIA, 2020, p. 15). Desenvolvemos e aplicamos em
uma sala de aula de curso popular para Ensino Médio127, por meio da
metodologia da pesquisa-ação, um material didático digital intitulado
“Lara Croft nos templos do Camboja”128, que embasou a criação de um
novo conceito criado para a tese e que será aqui explorado: o percurso
gamer. Em resumo, o percurso gamer é um conjunto de atividades di-
dáticas, que possibilita a interação com um espaço virtual, a simulação
de determinadas ações em um mundo imersivo e a encarnação de um
personagem. Essas características serão apresentadas em relação a con-
ceitos que perpassam a Linguística Aplicada, como letramentos, gêne-
ros e ethos discursivo.

127
A pesquisa teve a orientação da Prof.ª Dr.ª Márcia Rodrigues de Souza Men-
donça, docente do PPG/LA (IEL/Unicamp) e foi realizada com o apoio da Co-
ordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior – Brasil (CAPES)
– Código de Financiamento 001. Ela também foi devidamente autorizada pelo
Comitê de Ética da Unicamp para realização de pesquisa com seres humanos.
CAAE: 68157417.4.0000.5404. Número do parecer: 2.124.312.
128
Disponível em: https://julianachinaglia.wixsite.com/atividadelaracroft. Acesso
em: 11 ago. 2022.

674
O material foi inspirado na série de games Tomb Raider, que apre-
senta a arqueóloga fictícia Lara Croft. Além da aventura vivida pela
personagem, o jogo eletrônico possibilita ao jogador interagir com
descobertas arqueológicas, por meio da manipulação e da análise de
artefatos que são encontrados no cenário. Nossa intenção foi conduzir
o estudante em uma jornada lúdica, na qual deve assumir a posição
da personagem em uma narrativa inédita e então ler e escrever textos
como ela, mobilizando gêneros científicos e de divulgação científica,
tais como diário de pesquisa, resumo, relatório, artigo de divulgação
científica, entre outros. O principal desafio da criação desse material
didático era superar a utilização apenas das mecânicas de games em ati-
vidades digitais, modelo amplamente utilizado em recursos educacio-
nais digitais disponíveis nos repositórios, como verificado em pesquisa
anterior (CHINAGLIA, 2016).
Para esclarecer melhor o que é o percurso gamer, como ele foi criado
e aplicado em sala de aula, além desta introdução, o artigo se divide em
quatro partes. Em “As contribuições dos games para a educação”, expli-
camos quais pressupostos sobre os games foram utilizados no material.
Em “O percurso gamer como um novo modelo de material didático
digital”, esclarecemos as principais características do percurso gamer,
com os devidos embasamentos teóricos utilizados. Em “A pesquisa-a-
ção e seus principais resultados” contextualizamos como foi realizada
a pesquisa em termos de método e de análise dos dados encontrados,
tecendo algumas conclusões sobre os resultados da tese. Por fim, em
“Considerações finais”, discutimos a importância do percurso gamer
para a criação de novos tempos e espaços educacionais, bem como dei-
xamos em aberto as possíveis contribuições do conceito para futuras
pesquisas na Linguística Aplicada.

As contribuições dos games para a educação


A gamificação, segundo Kapp (2012), é entendida como a aplica-
ção da mecânica, da estética e da dinâmica de games em contextos di-
versos. Em geral, é utilizada para trazer o engajamento do consumidor

675
ou do aprendiz. Por exemplo, um aplicativo que incentiva as pessoas a
fazerem atividades físicas por meio da narrativa de fuga de um apoca-
lipse zumbi. Na educação, o conceito vem sendo utilizado para incenti-
var os estudantes a realizar determinadas atividades. No entanto, como
notamos em Chinaglia (2016), a maior parte das iniciativas brasileiras
dos últimos anos considera apenas a mecânica de games, em jogos edu-
cacionais digitais que apresentam questões gramaticais que valem pon-
tos a cada acerto. Algumas iniciativas, entretanto, buscam superar essa
barreira, como pesquisas realizadas na Universidade Estadual do Ceará
(UECE), a exemplo de um jogo desenvolvido em lógica de RPG para
auxiliar no ensino-aprendizagem de ortografia, descrito em Assunção e
Araújo (2019).
O modelo de gamificação pautado apenas em mecânica de games
tem sido alvo de severas críticas, como Bogost (2011), que o considera
uma verdadeira perda de tempo, por não trazer uma contribuição sig-
nificativa para a aprendizagem do indivíduo. Essa estratégia foi deno-
minada por Chou (2014) de PBL: Points, Badges and Leaderboards, que
podem ser traduzidos como Pontos, Insígnias e Classificação. Alguns
autores, como Kapp (2012) e Burke (2015), entendem que esse tipo de
aplicação não considera realmente o engajamento do indivíduo e não
aproveita de forma satisfatória as potencialidades dos games, o que pode
ser alcançado pelo envolvimento em uma narrativa lúdica, na qual assu-
mem-se personagens e vivenciam-se situações em simulações.
Nesse sentido, para além da gamificação, parece-nos produtiva a
concepção da Aprendizagem Baseada em Jogos, de entender os games
como mundos imersivos capazes de facilitar aprendizagens por meio
da simulação e da vivência de experiências, como apontou De Freitas
(2006). Partindo dessa ideia, podemos buscar diretamente no funcio-
namento dos games princípios que podem contribuir para a educação,
como o Princípio do Significado Situado e o Princípio da Identidade,
defendidos por Gee (2014).
Gee (2014) entende que os games permitem ao jogador ter experi-
ências incorporadas, isto é, formas situadas de aprender e pensar, ao ter

676
que participar de ações, fazer escolhas, definir diálogos e, algumas vezes,
até mesmo interferir na narrativa a depender do tipo de jogo envolvido.
Para o autor, nos games, a aprendizagem se dá por meio de um ciclo
de sondagem, formulação de hipóteses, (re)sondagem e reconsideração.
Por exemplo, em Rise of Tomb Rider (2015), um dos jogos da série que
inspirou a pesquisa, Lara Croft costuma se deparar com tumbas secre-
tas, com desafios para serem solucionados. Após vencer os desafios, em
geral, o jogador pode obter uma relíquia arqueológica. Nesses ambien-
tes, é comum se deparar com objetos no cenário, como cordas, baldes,
pedras, carrinhos de mão, ferramentas, escadas etc. Para que o jogador
possa avançar na tumba e desvendar seus mistérios, é preciso que o
jogador sonde o espaço e crie hipóteses de como os objetos podem ser
utilizados para liberar uma passagem. Depois de testá-los, caso não fun-
cionem, o jogador precisa fazer uma nova sondagem e reconsiderar suas
hipóteses anteriores, fazendo uma nova tentativa.
Segundo o pesquisador, esse ciclo exploratório de aprendizagem é
fundamental para que o estudante possa aprender, pois permite a apli-
cação do conhecimento na prática por meio da imersão e da simulação,
diferentemente da maior parte das estratégias escolares que proporciona
apenas o conhecimento na teoria por meio da aprendizagem de conte-
údos e fatos que devem ser decorados.
O autor também considera que os games têm muito a contribuir
para a educação por meio da encarnação de personagens. Gee (2007)
argumenta que os games permitem ao jogador colocar-se no lugar do
outro, em uma dinâmica entre três tipos de identidade diferentes.
Segundo o linguista, o jogador tem uma identidade real, por exemplo,
ser mulher, professora, amante de games etc. O personagem, por sua vez,
também tem uma identidade virtual criada pela narrativa, por exemplo,
no caso de Lara Croft, ser mulher, arqueóloga, corajosa, inteligente etc.
Ao assumir o personagem, o jogador passa a ter uma identidade proje-
tada, por exemplo, aquela em que a jogadora fictícia mencionada se vê
como Lara Croft e passa a projetar nela suas intenções, suas crenças,
seus saberes e seus valores.

677
Para Gee (2007), a experiência de vivenciar um personagem pode
ser muito produtiva na educação para que o estudante possa conhecer
identidades diferentes da sua, solucionar dilemas morais, ser empático
com o outro e experimentar determinadas profissões, como ser um ar-
queólogo, um médico, um cientista, um jornalista, entre outras possi-
bilidades. O autor menciona, inclusive, que há jogos que favorecem a
expertise profissional, ultrapassando o conhecimento meramente técni-
co de dominar certos botões do teclado ou do joystick.
Na sequência, vamos acompanhar como esses potenciais dos games
foram utilizados na criação do material didático digital desenvolvido
para a pesquisa.

O percurso gamer como um novo modelo de material didático


digital
O material didático digital “Lara Croft nos templos do Camboja”
foi criado com inspiração na experiência gamer vivida pelo jogador na
série de games Tomb Raider. Nesses jogos, é necessário assumir a perso-
nagem Lara Croft, uma arqueóloga fictícia, que faz descobertas cientí-
ficas (documentos, relíquias, murais etc.) em meio às suas aventuras em
determinado lugar do mundo. Em nosso caso, escolhemos o Camboja
como um ambiente de interesse arqueológico. Alguns templos desse
país já foram alvo de expedições da personagem em jogos e filmes de-
rivados da franquia, de modo que muitos deles se transformaram em
pontos turísticos por esse motivo.
Em nossa narrativa inédita, derivada das principais, Lara Croft acor-
da sem memória em um hospital e descobre que voltou do Camboja
sem seu amigo e colega de profissão Carter Bell. A pedido de seu chefe e
mentor, Professor Von Croy, ela precisa retornar ao país e descobrir o que
aconteceu. Para isso, ela precisará fazer uma série de pesquisas, enfren-
tar desafios e resolver enigmas, em 4 missões assim intituladas: Missão
1 – Mistérios do Sudeste Asiático, Missão 2 – No templo da floresta:
Mahendraparvata, Missão 3 – Um dos maiores complexos arqueológicos
do mundo: Angkor Wat, Missão 4 – Entre árvores e ruínas: Ta Prohm.

678
Assim como Huizinga (2000), entendemos que todo jogo é uma
atividade voluntária que tem espaços e tempos definidos, assim como
regras que regem o que pode ou não ser feito. Um game, nesse sentido,
é apenas um jogo eletrônico ou digital, que mantém as características
de qualquer outro, mas eventualmente pode trazer novidades, como
a hibridização com a linguagem do cinema, por exemplo. Portanto, a
partir desse princípio, consideramos que um percurso gamer pode ter
também um espaço virtual com mecânicas de games. Realizamos a
construção de um ambiente digital na plataforma Wix (figura 1), desti-
nada ao desenvolvimento de sites amadores. A narrativa criada se passa
no Camboja, então, para criar a imersão nesse local, optamos por uma
estética de floresta tropical, em fundo com folhas verdes. A temática da
arqueologia foi inserida por meio de cores como amarelo e marrom,
bem como por imagens de esculturas e templos que existem no país.
Foram agregados recursos extra, como inserção de mapas interativos, vi-
sitas virtuais em 360º, links que direcionam a textos ou galerias de fotos,
botões que abrem janelas pop-up explicativas, entre outros. Inserimos,
ainda, trilhas sonoras que ajudam a criar o “clima” de cada momento da
narrativa, exaltando momentos de suspense, por exemplo.

Figura 1. Espaço virtual do percurso gamer “Lara Croft nos templos do Camboja”.

Fonte: Chinaglia, 2020, p. 111.

679
Em relação ao tempo, recuperamos a ideia de que os games propor-
cionam ao jogador uma experiência única, que pode ser cumprida con-
forme o ritmo de cada um. Por exemplo, há jogadores que cumprem
as campanhas129 dos jogos em poucos dias, enquanto outros podem
chegar a precisar de semanas. Essa variável depende da experiência do
jogador e das horas dedicadas à atividade. Para o material “Lara Croft
nos templos do Camboja”, fizemos um planejamento inicial de que
cada uma das 4 missões poderia ser resolvida em 4 aulas de 50 minutos,
conforme o quadro 1. No entanto, esse modelo não é fixo e o estudante
pode ir mais rápido ou mais devagar, a depender do desafio imposto
pela atividade.

Quadro 1. Distribuição das aulas no planejamento do


percurso gamer – tempo, gêneros e objetivos.

Eixo de
Missão Aula Gênero Atividade
ensino

1 Leitura Diversos Pesquisar sobre o Camboja

Ler sobre a cidade perdida de


Leitura Notícia
2 Mahendraparvata

Leitura Notícia Identificar informações da notícia


1
Diário de Relatar o que aconteceu com Carter
3 Escrita
pesquisa Bell e as informações encontradas

Leitura Enigma Descobrir a próxima localização


4
Leitura Mapa Traçar uma rota a Mahendraparvata

129
No universo dos games, “campanha” é o nome dado para a jornada a ser cum-
prida pelo jogador em uma narrativa, o que pode envolver uma série de missões
principais e secundárias.

680
Eixo de
Missão Aula Gênero Atividade
ensino
Diário de
Leitura Descobrir uma pista de Carter Bell
pesquisa
1
Artigo enci-
Leitura Conhecer o povo khmer
clopédico
Sintetizar o conteúdo do artigo
2 Escrita Resumo
enciclopédico
Diário de Escolher descrições adequadas para o
2 Leitura
pesquisa diário de pesquisa
3 Relatar e documentar a escultura
Diário de
Escrita de elefante encontrada em
pesquisa
Mahendraparvata

Leitura Enigma Descobrir a próxima localização


4
Leitura Mapa Traçar rota a Angkor Wat

Videorre- Conhecer Angkor Wat e o povo cam-


Leitura
portagem bojano
1 Conversa em
Conversar com o professor Von Croy
Escrita aplicativo de
sobre a videorreportagem
mensagens
Galeria de Descobrir quais locais do Brasil são
Leitura
fotos Patrimônios Mundiais

Fotorrepor- Conhecer mais sobre o Camboja e a


Leitura
2 tagem ditadura do Khmer Vermelho
3
Fotorrepor-
Leitura Relacionar imagens a temas
tagem
Fotorrepor-
Escrita Construir um tema sobre Angkor Wat
tagem
Diário de Relatar e documentar escultura de
Escrita
3 pesquisa apsarás encontrada em Angkor Wat

Diário de Escolher o relato mais adequado para


Leitura
pesquisa um diário de pesquisa
Leitura Enigma Descobrir a próxima localização
4
Leitura Mapa Traçar rota a Ta Prohm

681
Eixo de
Missão Aula Gênero Atividade
ensino

Comentário Produzir plano de emboscada para os


Escrita
de blog inimigos
1
Leitura Mapa Traçar rota a Londres

Relatório de
Leitura Ler modelos de relatórios de pesquisa
pesquisa
2
Relatório de
Escrita Analisar as descobertas encontradas
pesquisa
4
Artigo de
divulgação
Ler modelo de artigo científico com
Leitura científica
infográfico
com info-
3 gráfico
4 Artigo de
divulgação
Divulgar ao mundo as descobertas
Escrita científica
arqueológicas encontradas
com info-
gráfico
Fonte: Autor, 2020, p. 118.

As regras, por sua vez, estão diretamente relacionadas à pontuação e


ao modo como os estudantes poderiam avançar de uma missão a outra.
As atividades são divididas entre opcionais e obrigatórias, a exemplo
das missões principais e secundárias dos games autênticos. Em geral,
todas as atividades de produção textual são obrigatórias. Cada uma das
atividades vale um determinado número de pontos, que podem ser ob-
tidos de forma automática, quando são atividades de múltipla-escolha,
ou de forma manual, quando são atividades discursivas. Nesse caso, os
estudantes devem fazer as correções em pares, bem como serem avalia-
dos pelo professor. Os pontos podem ser convertidos em moedas, que
compram dicas para os enigmas que são oferecidos aos alunos antes
de iniciar uma nova missão. Assim, para avançar, é necessário ter uma
quantidade mínima de pontos, bem como conseguir solucionar o enig-
ma, que está relacionado a conteúdos vistos na missão.

682
Recuperando o conceito de De Freitas (2006) a respeito dos games
serem considerados mundos imersivos capazes de facilitar a aprendiza-
gem, bem como a ideia de Gee (2014) de que eles favorecem experiên-
cias incorporadas de aprender e pensar, criamos um mundo imersivo
da arqueologia, para que o estudante simule a prática de uma arque-
óloga, o que envolve a mobilização de determinadas práticas de letra-
mentos e gêneros. Schober (2003) descreve que a metodologia desse
campo científico é composta por alguns passos principais: 1) a identi-
ficação de um sítio arqueológico, por meio de fotografias ou filmagens;
2) o levantamento de informações, por meio de pesquisa bibliográfi-
ca, coleta de depoimentos, realização de entrevistas e sondagem do
ambiente com fotografias áreas, imagens por satélite e tecnologia de
mapeamento a laser; 3) o trabalho de campo (geralmente com esca-
vação), com anotações em formulários e em diários de pesquisa; 4) a
análise dos objetos, com catalogação e descrição em relatórios de pes-
quisa, artigos científicos em periódicos, dissertações, teses e capítulos
de livros; 5) a divulgação das descobertas encontradas, em artigos de
divulgação científica. Segundo Oliveira et al (2013), o diário de pes-
quisa é fundamental para a prática do arqueólogo, pois ele permite ao
cientista documentar as descobertas e registrar impressões individuais,
que ajudam a caracterizar os objetos encontrados. Nele, pode haver
relatos do pesquisador, breves narrativas e croquis (um tipo de dese-
nho técnico que mapeia a localização e as condições do artefato). Em
Tomb Raider, podemos notar que há uma simulação especialmente do
trabalho de campo dos arqueólogos. Como exemplo, é possível citar
as ações do mais recente Shadow of the Tomb Raider (2018). Nesse
game, Lara Croft se depara com uma série de artefatos históricos. Ao
se aproximar de cada um deles, faz reflexões sobre suas características,
origens e estado de conservação, reconstituindo uma forma de registro
do diário de pesquisa. O objeto encontrado passa a fazer parte de sua
coleção. Para simular essa experiência, o jogador pode ver o objeto,
aproximar-se dele, girá-lo e examiná-lo, conforme a figura 2, de uma
jarra de cerâmica encontrada no jogo.

683
Figura 2. Relíquia “Jarra de cerâmica” em Shadow of The Tomb Raider (2018).

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=qkbPB8kcFg0. Acesso em 18 mar. 2022.

Trouxemos para o material didático os movimentos de exploração,


catalogação e documentação. Ao longo da jornada, como uma arque-
óloga, a personagem mobilizará textos em diferentes gêneros discursi-
vos, como notícia, artigo enciclopédico, resumo, diário de pesquisa,
videorreportagem, fotorreportagem, relatório de pesquisa e artigo de
divulgação científica, situados nas práticas de letramentos próprias des-
sa profissão. O foco principal está no fato de que, quando faz uma des-
coberta arqueológica, precisa catalogá-la em um diário de pesquisa (ou
diário de campo), que vai sendo construído pelo estudante, conforme
avança nas missões. Para que isso aconteça, características e finalidades
desse gênero são exploradas pouco a pouco, incentivando a apropriação
de uma escrita científica.
Por fim, desenvolvemos a concepção de que um percurso gamer en-
volve a encarnação de um personagem e, portanto, a apropriação de
seu ethos discursivo. Isto é, ao assumir a identidade de um personagem,
passa-se também a ler e a escrever como ele. Segundo Maingueneau
(2008), o ethos efetivo é composto pelo ethos pré-discursivo e o ethos
discursivo. Este último se desdobra no ethos dito e no ethos mostra-
do. Interessa-nos discutir especialmente o ethos mostrado, que é a ma-
neira como o enunciador se constrói na cena enunciativa. A cena da

684
enunciação, para Maingueneau (2010), é composta pela cena englobante
(o tipo de discurso), a cena genérica (o gênero do discurso) e a cenografia
(a forma como o enunciador constrói o discurso). Por exemplo, ao falar
para um grande público, um cientista pode utilizar um discurso cientí-
fico, por meio do gênero palestra, mas adotar uma cenografia diferente
da linguagem utilizada no meio acadêmico, aproximando-se mais da
linguagem midiática da televisão. Nesse sentido, é possível concluir que
existem gêneros que admitem cenografias variadas, enquanto outros
exigem cenografias rotineiras, como uma bula de remédio.
Também é importante considerarmos a distinção que Maingueneau
(2010) faz entre a situação de comunicação e a cena da enunciação. A pri-
meira corresponde aos leitores e produtores reais do discurso, enquanto
a segunda pode ser composta por personagens, já que é uma abordagem
interna ao enunciado. Esse tipo de distinção é muito comum na escola,
pois embora a situação de comunicação envolva professores e alunos,
a cena da enunciação pode ser outra, como estudantes que assumem o
papel de jornalistas para um grande público. Trata-se da simulação do
gênero, já discutida por Schneuwly e Dolz (2004).
No percurso gamer, na cena englobante, os estudantes devem adotar
um discurso científico, já que a personagem é arqueóloga, mobilizando
na cena genérica os gêneros mencionados, como diário de pesquisa,
resumo, relatório de pesquisa, artigo de divulgação científica, entre ou-
tros. O diferencial está no fato de que precisam utilizar a cenografia
esperada para Lara Croft, distinguindo quando o gênero admite ou não
a expressão da subjetividade. Por exemplo, no resumo não é desejável
que se tenha marcas pessoais, enquanto o diário de pesquisa possibilita
o registro das impressões do pesquisador. Embora a simulação seja ine-
vitável, assim como em qualquer outra instância escolar de ensino dos
gêneros discursivos, é possível que os estudantes compreendam mais
claramente qual é a cena da enunciação envolvida e como deve ser con-
figurada, já que ela não é dada apenas no momento da produção tex-
tual, mas é construída ao longo de todo o processo de encarnação da
personagem em todas as experiências vividas na jornada gamer.

685
A pesquisa-ação e seus principais resultados
A pesquisa referenciada foi de abordagem qualitativa, inserida no
campo de investigação da Linguística Aplicada, uma ciência transdis-
ciplinar que era adequada aos nossos propósitos, já que unimos conhe-
cimentos a respeito de games, arqueologia e linguística na construção
do percurso gamer “Lara Croft nos templos do Camboja”. Para aplicar
o material, realizamos uma pesquisa-ação, uma metodologia que, se-
gundo Noffke e Somekh (2005), consiste na resolução da divisão entre
a teoria e a prática, de modo que o pesquisador se torna coparticipan-
te da pesquisa. De acordo com Burns (2010), ela é muito utilizada
por professores, pois permite a eles investigar as práticas em sala de
aula. Seguindo esse modelo, atuamos como professora-pesquisadora
de um curso popular para estudantes de Ensino Médio da rede públi-
ca de Campinas (SP), disponibilizado pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), com a devida autorização do Comitê de Ética
da universidade. Os docentes do curso são voluntários de cursos de gra-
duação e pós-graduação e os alunos são selecionados por meio de uma
préseleção realizada no início de cada ano.
Atuamos durante um semestre nas aulas de Língua Portuguesa de
duas turmas (A e B), contando com 40 participantes da pesquisa, que
foram autorizados por seus pais ou responsáveis (quando menores de
idade) ou que forneceram sua própria autorização (quando maiores
de idade), por meio de Termos de Consentimento Livre e Esclarecido.
Todos os nomes foram trocados, para fins de preservação da identidade
dos participantes. Para gerar os dados, utilizamos os seguintes instru-
mentos de pesquisa: questionário inicial, diário de pesquisa, videogra-
vação das aulas, coleta das produções textuais, software de captura de
tela e entrevista semiestruturada.
Depois de pré-analisar os dados gerados, chegamos a duas categorias
de análise: 1) Engajamento e interações em sala de aula; 2) Situação de
produção dos textos, mundos imersivos e encarnação de personagens.
Em relação à primeira categoria de análise, observamos como os
estudantes reagiram aos aspectos de caracterização visual e sonora do

686
material, dinâmica de tempo, dinâmica de correção em pares e pontua-
ção. De acordo com os dados, os estudantes consideraram que a estética
do percurso gamer foi fundamental para a sensação de imersão. Alguns
chegaram a mencionar que as músicas das páginas e as folhagens tropi-
cais de fundo incentivaram a imaginação, fazendo com que se sentissem
em uma aventura. Apesar disso, indicaram que seria interessante que o
material oferecesse um espaço tridimensional (3D) para o controle da
personagem, o que aumentaria a percepção de que realmente estavam
em um jogo. Esse tipo de interface não foi possível de ser criada, por
limitações técnicas e financeiras, mas entendemos que ela pode ser um
elemento importante para futuras aprimorações do modelo.
Alguns estudantes também relataram que o percurso gamer tinha
muitos textos para ler e produzir, então seria interessante que fossem
disponibilizados mais “minijogos” entre as atividades. Entendemos que
os alunos possam ter considerado excessiva a quantidade de textos, o
que pode ser reavaliado, no entanto, também acreditamos que esse as-
pecto não pode ser excluído, já que ele é fundamental para o ensino de
Língua Portuguesa. A diferença entre um game qualquer e um percurso
gamer para essa disciplina está justamente no fato de que os estudantes
terão experiências imersivas de leitura e de escrita.
Ainda sobre a primeira categoria, em geral, os estudantes conside-
raram positiva a dinâmica de cada um seguir a seu tempo na realização
das atividades, embora alguns poucos alunos tenham mencionado sen-
tir falta de um professor guiando cada uma das tarefas para a classe toda,
em modelo convencional. A dinâmica de tempo, entretanto, foi afetada
quando se relacionava à dinâmica de correção dos textos em pares, o
que foi considerado improdutivo pelos estudantes. Embora a avaliação
entre colegas seja muito valorizada no ensino de Língua Portuguesa,
com a finalidade de descentralizar a avaliação do professor e as temíveis
correções que apenas apontam “erros”, o percurso gamer demonstrou
criar uma dificuldade para essa tarefa, pelo fato de que cada estudante
está em uma atividade de uma missão diferente. Assim, os alunos con-
sideraram “chato” ter que parar o que estavam fazendo, para corrigir o

687
texto de um colega, pois isso descaracterizava a experiência gamer. Essa
lacuna ainda precisa ser repensada em futuras pesquisas.
Sobre os pontos, no começo foi percebido um envolvimento ge-
neralizado das turmas pela pontuação. Muitos estudantes refaziam as
tarefas para poder obter pontuações melhores, assim como adoravam
competir entre si para a exibição do maior número. No entanto, essa di-
nâmica pouco a pouco foi perdendo o sentido ao longo da utilização do
percurso gamer, pois os estudantes relataram ter se envolvido mais pela
narrativa que pelos pontos obtidos. Isso nos mostra que a pontuação é
apenas acessória, não contribuindo de modo efetivo para o engajamen-
to dos alunos, embora possa auxiliar o professor a realizar a avaliação.
A respeito da segunda categoria de análise, o material se mostrou
importante para a formação interdisciplinar dos estudantes. Além de es-
tudarem Língua Portuguesa, os alunos mencionaram que foi muito in-
teressante aprender mais sobre o Camboja. Mario surpreendeu ao dizer
que nem sequer conhecia esse país e se sentiu envolvido pelos aconteci-
mentos históricos que pôde saber por meio da narrativa, como a consti-
tuição do povo khmer e as guerras enfrentadas com outras civilizações.
Em suas falas, os estudantes demonstraram ter se apropriado de
algumas práticas de letramentos da metodologia arqueológica. Tsuyoi,
por exemplo, menciona que achou empolgante o incentivo à pesquisa
mobilizado pelo material. O aluno destaca que, em sua experiência na
escola convencional, pouco teve a oportunidade de pesquisar, o que a
seu ver envolve “realmente ler” e não apenas copiar algo da internet,
imprimir e entregar. Diferentemente de outras atividades da escola, o
estudante afirma que o percurso gamer exigiu que a pesquisa fosse bem
realizada, ou não seria possível ter base suficiente para a escrita das pro-
duções textuais. Luna, por sua vez, destaca que o material proporcio-
nou o aprendizado de gêneros que nunca escreveu, como o diário de
pesquisa.
Mariana, assim como outros estudantes, acrescenta um detalhe
muito importante para o entendimento do percurso gamer. Ela afirma
que as propostas de escrita tinham finalidades como “alguém vai ler

688
depois” e “ah, alguém vai saber”. Com suas palavras, a estudante define
que os textos tinham interlocutores e propósitos bem construídos, isto
é, poderiam compreender bem a constituição da cena da enunciação
requisitada por cada produção textual. Podemos concluir, portanto,
que o material trouxe a esperada imersão para o momento da escrita,
facilitando para o estudante compreender cada proposta, já que assu-
mia o personagem não apenas na hora de escrever um texto, mas ao
longo de toda a jornada. Jorge sintetiza a experiência com a seguinte
consideração:

Jorge: [...] Eu acho que ajudou a desenvolver nosso raciocínio


lógico e, conforme a gente vai escrevendo, a gente tem que se
por na posição da Lara, a gente já pensando de uma maneira
como se fosse, entre aspas, um escritor [...]. (AUTOR, 2020,
p. 282).

Ao analisarmos as produções textuais, como era de esperar em qual-


quer contexto escolar, houve apropriações diferentes da escrita científica
e dos gêneros mobilizados. Notamos que, quanto mais o estudante se
envolvia com a narrativa e se sentia como Lara Croft, mais adequados
eram os seus textos para as propostas criadas. Jorge, por exemplo, que
mostrou grande interesse pelo material, teve progressos em sua escrita,
passando a detalhar cada vez mais as descobertas científicas feitas pela
personagem, colocando-se na posição de um arqueólogo. Já outros es-
tudantes, mais alheios ao material, reproduziram práticas de copiar e
colar da internet, o que demonstra que não é possível zerar todos os
problemas escolares com o percurso gamer, embora ele possa contribuir
em grande parte para o desenvolvimento da produção textual.

Considerações finais
Depois de realizar a produção e a aplicação do percurso gamer “Lara
Croft nos templos do Camboja”, entendemos que o conceito novo é
muito produtivo para o aprendizado da escrita, por trazer a imersão
necessária para a construção da cena da enunciação dos textos. No

689
entanto, como apontamos, algumas lacunas ainda precisam ser preen-
chidas, como aprimorar a interface digital, repensar o modelo de avalia-
ção e equilibrar a quantidade de textos e outras atividades que podem
ser mais “lúdicas”.
Entendemos que essas lacunas precisarão ser preenchidas por fu-
turas pesquisas que possam vir a aplicar outros percursos gamers, em
outras realidades. A diversificação de contextos também permitirá des-
cobrir se existem outros problemas e potenciais que ainda não foram
identificados.
De qualquer modo, consideramos que a pesquisa deixou um mo-
delo de material didático digital que pode ser reproduzido pelo profes-
sor em sua realidade, por ser construído com poucos elementos, como a
produção de um site amador, por exemplo. Ainda arriscamos dizer que,
mesmo sem qualquer tecnologia digital, seria possível reproduzir uma
experiência similar, já que o foco poderia estar na construção de um
mundo imersivo e da encarnação de um personagem, sem necessaria-
mente aplicar a mecânica de games. Assim, o percurso gamer pode se tor-
nar mais um recurso que o professor pode utilizar em sala de aula, junto
a outros, como projetos, sequências didáticas, protótipos de ensino etc.

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692
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

O RALIDADE NA EDUCAÇÃO BÁSICA PARA


OS ANOS INICIAIS: ENTRE OS PCN E A BNCC

Leandro de Amaro Rodrigues (UFU)


Maíra Sueco Maegava Córdula (UFU)

RESUMO: Esta pesquisa visa analisar o trabalho com a oralidade no


componente de Língua Portuguesa para os Anos Iniciais do Ensino
Fundamental. Sendo assim, adotaremos como corpus os documentos oficiais
que direcionam a Educação Básica no país no que tange a organização e
elaboração dos currículos estaduais e municipais, a saber: os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN), publicado em 1997 e a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), aprovada e homologada em 2018. Para dar conta do
objetivo proposto, apoiamo-nos nos pressupostos teóricos de pesquisadores
que têm tratado dessa temática como Marcuschi (2001), (2003), (2007),
(2010a), (2010b), Schneuwly (2004a, 2004b)), Carvalho e Ferrarezi (2018),
entre outros. A partir da leitura dos referenciais teóricos e valendo-se da
análise do conteúdo proposto por Bardin (2011), analisamos os documentos
observando os encaminhamentos que são dados ao trabalho com a oralidade.
Vale destacar que os PCN possuem um caráter de direcionamento ao que
deve ser trabalhado, enquanto a BNCC retoma o primeiro, reforçando seus
pressupostos. A partir da análise, podemos observar que tanto os PCN como
a BNCC apontam o trabalho com a oralidade enquanto objeto de ensino a
ser sistematizado na escola. Na BNCC, averiguamos que o trabalho com a
oralidade é ampliada em relação aos PCN, tendo isso reflexo da organização
da sociedade atual e sua relação com o uso da língua. Destacamos também
a relação continuum entre a oralidade, a escrita e outras diversas semioses
que perpassam por todas as práticas de linguagem proposta nesse último
documento.
PALAVRAS-CHAVE: PCN; BNCC; oralidade; ensino de língua portuguesa

ABSTRACT: This research aims to analyze the work with orality in the
Portuguese Language component for the Early Years of Elementary School.
Therefore, we will adopt as corpus the official documents that guide Basic
Education in the country regarding the organization and elaboration of state
and municipal curricula, namely: Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),
published in 1997 and Base Nacional Comum Curricular (BNCC), approved

693
and ratified in 2018. We rely on the theoretical assumptions of researchers who
have dealt with this topic, such as Marcuschi (2001), (2003), (2007), (2010a),
(2010b), Schneuwly (2004a, 2004b), Carvalho and Ferrarezi (2018), among
others. From the reading of the theoretical references and using the analysis of
the content proposed by Bardin (2011), we analyzed the documents observing
the aprroach proposed in those documents as regards working with orality. It
is worth noting that PCN has a character of directing what should be worked
on, while BNCC resumes the first, reinforcing its assumptions. Based on the
analysis carried out, we can see that both PCN and BNCC point to working
with orality as a teaching object to be systematized at school. In BNCC, we
found that the work with orality is expanded in relation to the one proposed
in PCN, with the former reflecting on the organization of today’s society and
its relationship with the use of language. We also highlight the continuum
relationship between orality, writing and other various semioses that permeate
all language practices proposed in BNCC.
KEYWORDS: PCN, BNCC, orality; portuguese language teaching.

Introdução
O ensino de língua portuguesa tem como um dos direcionamen-
tos o ensino da oralidade como uma das modalidades da língua pre-
conizado nos documentos oficiais como nos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN), publicado em 1997, e na Base Nacional Curricular
Nacional (BNCC), homologada em dezembro de 2018. Tais documen-
tos são responsáveis pelo encaminhamento na elaboração dos currículos
estaduais e municipais.
Assim, objetivamos neste artigo observar qual direcionamento
é dado para o trabalho com a oralidade nos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental nestes dois documentos oficiais: PCN e BNCC. Esse re-
corte se dá pelo fato que, nos Anos Iniciais, um dos principais foco
é a alfabetização no que tange à aquisição do sistema de escrita e por
esse motivo a oralidade pode não ser vista pelos professores como algo
a ser trabalhado e sistematizado na sala de aula, embora já apontada
nos documentos norteadores. Entendemos também a importância de
se trabalhar com a modalidade oral da língua também nessa etapa do

694
ensino, haja vista que ela também é parte essencial da língua e que a
usamos para nos comunicar com mais ocorrência que a escrita, sendo
assim, nosso olhar será direcionado para a oralidade, principalmente
observando sua proposição nos PCN e na BNCC, levando em
consideração ainda a distância de vinte anos na elaboração e publicação
entre os dois documentos.
A partir do objetivo traçado, visando uma análise qualitativa dos
documentos, adotamos a análise do conteúdo proposta por Bardin
(2011) como o conceito de inferência a partir das unidades de registros
aplicadas ao documento para a geração dos dados.
Como resultado podemos observar que os PCN e a BNCC abor-
dam a oralidade e a escrita como práticas a serem sistematizadas pela
escola, levando em consideração o seu uso na sociedade, sendo que a
BNCC amplia as possibilidades de trabalho, levando em consideração
as relações que estão imbricadas entre oralidade e escrita, incluindo
também os textos multissemióticos nessa relação.

A oralidade esquecida pela escola: um percurso histórico


É inegável a relação entre oralidade e escrita, não sendo possível
falar de uma sem se esbarrar na outra e vice-versa. O primeiro ponto
que destacamos é o papel crucial da oralidade para o surgimento da
escrita, sem ela, não seria possível conhecer o sistema de escrita como
concebemos hoje.
De acordo com Carvalho e Ferrarezi (2018), no contexto brasileiro,
aprender a ler e escrever era para poucos, para uma seleta e fina cama-
da da sociedade. Mesmo com a expansão das escolas públicas no país,
o acesso à educação a todos e a erradicação do analfabetismo, têm-se
dados alarmantes sobre o domínio da escrita. Há, ainda, uma boa por-
centagem que permanece não alfabetizadas no período que prescreve
a lei e das que são consideradas alfabetizadas, são poucas que possuem
uma competência satisfatória de leitura e escrita. Ou seja, ainda temos a
escrita e a leitura no país como um critério de classificação para separar
as pessoas alfabetizadas daquelas que não são.

695
Vale ressaltar que por muito tempo – e ainda permanece muito
presente – que o modelo de escola adotado era um lugar onde os conhe-
cimentos eram dominados pelos professores e estes os depositavam nos
alunos, tidos como tábulas rasas. A relação era totalmente vertical, de
cima para baixo, e nesse lugar não havia espaço para oralidade, os alu-
nos eram silenciados, para falar era necessário permissão do professor,
quem diria, então, estudar sistematicamente a oralidade: escola é lugar
para aprender a ler e escrever, falar todo mundo já sabe.

A oralidade numa perspectiva de ensino


Quando tratamos do termo oralidade costumamos pensar primei-
ramente em uma fala espontânea, informal entre familiares e amigos,
relegando a ela um plano secundário, de não importância em relação à
escrita, por exemplo. Na escola também não é diferente. Os alunos vão
para aprender a ler e escrever e existe uma tendência tanto de profes-
sores e de pais de considerar o trabalho com a oralidade desnecessário,
afinal as crianças já chegam à escola sabendo falar.
Nessa perspectiva, podemos observar um trabalho sistemático da
escola com a escrita, o que não acontece com a oralidade. Segundo
Marcuschi (2003), não se trata de uma contradição entre uma e outra,
mas sim uma questão de postura da escola e dos professores ao assumi-
rem a escrita como centralidade do ensino. Ainda segundo o mesmo au-
tor, é inegável a ideia de que a preocupação com a oralidade deve tam-
bém ser foco dos docentes de língua materna. Isso se torna ainda mais
evidente no período inicial de alfabetização, já que a fala tem modos
próprios de organização e manutenção das atividades discursivas e que
ela influencia diretamente na escrita, permitindo entender ainda mais
as relações entre fala e escrita (MARCUSCHI; DIONISIO, 2007).
Há ainda de se destacar que o trabalho com a oralidade, quando é
posto em sala de aula, tende, geralmente, a estudar a variação linguística
calcada em estudos de uma variedade considerada certa, padrão, em
detrimento de outra considerada errada. Marcuschi (2003, p. 24) apon-
ta que a variação é um estudo de grande valia e que permite estudar

696
noções como “norma”, “padrão”, “dialeto”, “variante”, “sotaque”, “re-
gistro”, “estilo”, “gíria” ajudando o aluno a formar uma consciência da
heterogeneidade da língua e que ela também não é monolítica.
Ainda o trabalho com a oralidade pode ressaltar a contribuição da
fala para a formação cultural e na preservação de tradições não escritas,
mesmo que a escrita já esteja enraizada em uma determinada sociedade,
como, por exemplo, contos e cantigas populares que têm sua origem
primordialmente oral. É possível também esclarecer aspectos relativos a
preconceito linguísticos e suas formas de disseminação, observando em
que sentido a língua pode ser um mecanismo de controle social e repro-
dução de esquemas de poder e dominação tendo em vista suas relações
com as estruturas sociais (MARCUSCHI, 2003).
Apontamos agora para outro aspecto da oralidade relacionado ao
letramento.

Oralidade como prática social


De acordo com o Botelho (2012), a língua reflete, por meio da
modalidade oral ou da escrita, a organização da sociedade, sendo parte
tão importante da cultura que é capaz de moldá-la e vice-versa.
É impossível pensar a fala e a escrita sem uma relação direta com
o seu uso nas sociedades contemporâneas e que ambas estão ligadas
diretamente à forma de organização da língua (formas linguísticas)
em duas modalidades, enquanto oralidade e letramento são tidos
como práticas sociais ou práticas discursivas que acontecem nas duas
modalidades. (MARCUSCHI, 2010a; MARCUSCHI e DIONISIO,
2007).
Sobre essa perspectiva, destaca-se a mudança de visão que

operou-se a partir dos anos 80, em reação aos estudos das três
décadas anteriores em que examinavam a oralidade e a escrita
como opostas, predominando a noção de supremacia cognitiva
da escrita dentro do que Street (1984) chamou de ‘paradigma
da autonomia’. Considerava-se a relação oralidade e letramento

697
como dicotômica, atribuindo-se à escrita valores cognitivos in-
trínsecos no uso da língua, não se vendo nelas duas práticas
sociais. (MARCUSCHI, 2010a, p. 16)

Visto que a língua se fundamenta como prática de letramento e


oralidade, é imprescindível que considere o seu uso em situações sociais
reais. Em suma, a oralidade, pode ser sintetizada como

uma prática social interativa para fins comunicativos que se apre-


senta sob variadas formas ou gêneros textuais fundados na reali-
dade sonora; ela vai desde uma realização mais informal à mais
formal nos mais variados contextos de uso. (MARCUSCHI,
2010, p. 25)

Posto a oralidade como prática social, ainda é preciso considerar a


sua relação com a escrita que discorremos no próximo tópico.

Oralidade e escrita: uma relação contínua


Concordamos com Botelho (2012) quando ele aponta que a ora-
lidade e a escrita têm característica próprias, pois apresentam particu-
laridades de diversas ordens como a lexical, morfológica, sintática e de
registro como formal e informal, mas que ambas são pertencentes a um
mesmo sistema de possibilidades discursivas e, portanto, também pos-
suem elementos em comum.
Segundo Marcuschi (2001), as primeiras postulações acerca do con-
tinuum entre fala e escrita acabaram por recaírem na mesma grande
divisão que pretendiam refutar. Para Marcuschi (2001), isso se deu ao
negarem que a escrita não possuía elementos paralinguísticos e não-ver-
bais e pela noção rasa e estreita sobre contexto social. Com a finalidade
de refutar tal posicionamento exemplifica com o caso

citado por Street (1995, p 170), tirado de um estudo de Bledsoe


e Robey (1993), sobre o uso da escrita entre os Mende em Serra
Leoa. Dizem os autores que a escrita tem meios secundários para
comunicar sentidos que vão além do ‘literalmente transcrito’. É

698
o caso, por exemplo, de um envelope aéreo limpo, datilografado
e multicolorido como sinal de respeitabilidade do endereçado,
emprestando ainda importância à mensagem. Estas característi-
cas produzem efeitos de sentido e enquanto meios secundários,
são equivalentes aos elementos paralinguísticos (gesto, mími-
ca, movimentos do corpo etc.) da oralidade. (MARCUSCHI,
2001, p. 30-31)

Mesmo em contraposição a alguns postulados de Street (1995),


Marcuschi (2001) concorda que o contexto cultural exerce uma grande
influência sobre a função da escrita, o que sugere uma relação mais
estreita entre a fala e a escrita, sendo ambos mais próximos do que dife-
rentes no seu impacto sociológico.
À vista disso, Marcuschi (2001, p. 35) defende uma relação de
continuum não em um sentido de continuidade ou linearidade de
características que a fala e escrita possuem, mas como uma relação
gradativa em que uma série de elementos se relacionam, seja em termos de
“função de social potencial cognitivos, prática comunicativas, contextos
sociais, nível de organização, seleção de formas, estilos, estratégias de
formulação, aspectos constitutivos, forma de manifestação e assim por
adiante”.
Ainda acerca desse continuum, observamos que,

As relações entre oralidade e escrita se dão num contínuo ou


gradação perpassada pelos gêneros textuais, e não na observa-
ção dicotômica de características polares. Isso significa que a
melhor forma de observar a relação fala-escrita é contemplá-la
num contínuo de textos orais e escritos, seja na atividade de lei-
tura, seja na de produção. Esse contínuo é de tal ordem que, em
certos casos, fica difícil distinguir se o discurso produzido deve
ser considerado falado ou escrito. Trata-se de uma oralização da
escrita, e não da língua oral. Ou então a publicação de entre-
vistas em revistas e jornais que originalmente foram produzidas
na forma oral, mas só nos chegam pela escrita. Trata-se de uma
editoração da fala. E o mesmo ocorre com o teatro, o cinema e
as novelas televisas. Esses são gêneros orais em sua origem, mas

699
surgem como escritos e depois são oralizados. (MARCUSCHI
e DIONISIO, 2007, p. 17)

Com efeito, o texto não pode ser observado de forma isolado


em si mesmo e isolado de seu contexto sociocomunicativo, pois
todo texto é um evento comunicativo inserido em uma dada prática
social (MARCUSCHI, 2001, p. 32). Dessa forma e dentro desse
cenário, é preciso pontuar sobre os gêneros orais nessa relação de
continuum.

Gêneros discursivos orais


Na mesma esteira de pensamento entre a relação oral e escrito,
apresentaremos neste tópico a questão em torno de gênero discursivo,
principalmente na nuance que existe entre os gêneros orais e escritos
e qual sua relação direta com a oralidade concebida como prática
social e inserida em contexto sociocomunicativo como já mencionado
anteriormente.
Cabe, antes de dar seguimento, demonstrar a definição que assumi-
mos, neste trabalho, de gênero discursivo. Compactuamos com proposi-
ção adotada por Schneuwly (2004a) que citando Bakhtin (1953/1979),
o resume da seguinte forma:

• cada esfera de troca social elabora tipos relativamente está-


veis de enunciados: os gêneros;
• três elementos os caracterizam: conteúdo temático – estilo
– construção composicional;
• a escolha de um gênero se determina pela esfera, as necessi-
dades da temática, o conjunto dos participantes e a vontade
enunciativa ou intervenção do locutor. (SCHNEUWLY,
2004a, p. 23)

A partir dessa definição, é possível observar três pontos centrais:


1) a escolha do gênero é feita em função de uma situação definida por
certos parâmetros como finalidade, destinatários e conteúdo; 2) essa
escolha não é aleatória, ela é feita no interior de uma esfera social dada

700
que define um conjunto possível de gêneros; 3) os gêneros possuem
uma certa estabilidade, definindo o que pode ser dizível a partir deles,
mesmo eles sendo de certa forma flexível (SCHENEUWLY, 2004a).
Por conseguinte, sob a luz de Schneuwly (2004a, p. 24) guiado por
Bakhtin (1953/1979), observamos que o gênero do discurso é um ins-
trumento pelo qual o sujeito usa para falar, sendo ele um instrumento
semiótico complexo, ou seja, uma forma de linguagem que é prescritiva
e que permite a elaboração e a compressão de textos. Por essa ótica, o
gênero não é criado pelo sujeito, mas a ele é dado, possuindo um valor
normativo constituído socialmente.
Se os gêneros, são por excelência o instrumento pelo qual sujeito
se comunica, há também de considerar que eles podem ser escritos ou
orais, ou ainda, há aqueles que transitam entre um e outro, perfazendo
uso tanto da fala como da escrita. De acordo com Scheneuwly (2004b,
p. 109), o oral não existe, o que existe na verdade, são orais, “ativida-
des de linguagem realizadas oralmente, gêneros que se praticam essen-
cialmente na forma oralidade. Ou, então atividades de linguagem que
combinam oral e escrita”.
Nesse seguimento, Marcuschi (2010b) corrobora chamando a
atenção para a relação da oralidade com a escrita no contexto dos
gêneros discursivo, pois eles distribuem-se entre as duas modalidades
num contínuo, desde os mais informais até os mais formais e em
todos os contextos sociocomunicativos. É preciso ter em mente que
existem alguns gêneros que só são recebidos na forma oral, mesmo
que tenham sido produzidos de forma escrita, ou seja, eles são apenas
oralizados.
Os gêneros orais podem ser divididos entre gêneros orais informais
e formais. Por ser objetos de construções sociais também apresentam as
mesmas características essenciais dos gêneros escritos (conteúdo temáti-
co, estilo e estrutura composicional). Os informais estão ligados aque-
les em que acontecem de forma mais espontânea enquanto os formais
possuem estruturas composicionais mais rígidas.

701
PCN e BNCC: Caracterização dos documentos
Os Parâmetros Curriculares Nacionais, segundo o próprio docu-
mento, constituem um referencial de qualidade para a educação no
Ensino Fundamental em todo País (BRASIL, 2001a). A proposta do
documento tem caráter flexível, a ser consolidada nos currículos estadu-
ais e municipais com vistas para a transformação da realidade educacio-
nal, não configurando um modelo curricular homogêneo e impositivo.
O documento teve seu processo de elaboração a partir dos estudos de
propostas curriculares de Estados e Municípios brasileiros e com infor-
mações e experiências de outros países e outros subsídios como o Plano
Decenal de Educação Para Todos (1993-2003). A partir daí, surgiu uma
versão preliminar que passou por um longo processo de discussão duran-
te os anos de 1995 e 1996, culminando com publicação do documento
final ano de 1997, um ano após a aprovação da nova Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96) (BRASIL, 2001a).
O documento é organizado em 12 volumes, atendendo todos os
componentes curriculares obrigatórios no Ensino Fundamental. Para
este trabalho, iremos apenas nos deter ao Volume 2 – Língua Portuguesa,
especificamente o intervalo de páginas de 48 a 52 que dizem respeito
ao trabalho com a oralidade nos Anos Inicias do Ensino Fundamental.
A Base Nacional Comum Curricular é um documento de “caráter
normativo que define o conjunto orgânico e progressivo das aprendi-
zagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das
etapas e modalidades da Educação Básica (BRASIL, 2018, p. 7). O do-
cumento concorre para que tais aprendizagens essenciais culminem no
desenvolvimento das dez competências gerais ao longo da vida escolar
do aluno.
A Base dialoga com outros documentos anteriores, estando em con-
sonância com a Constituição, a LDB e os PCN, além de outros. Adota
como compromisso a educação integral, reconhecendo que a educação
deve ter como foco a formação e o desenvolvimento global do sujeito,
em suas dimensões sociais, intelectuais e afetiva (BRASIL, 2018).

702
O processo de elaboração do documento começou em 2015, a par-
tir da Portaria n. 592, de 17 de junho de 2015, que instituiu uma
Comissão de Especialistas para a Elaboração de Proposta da Base
Nacional Comum Curricular. Naquele mesmo ano foi apresentada a
1ª versão do documento e que em seguida contou com a colaboração
de professores e especialistas da educação para a leitura e ajustes no
documento. No ano de 2016, é apresentada a 2ª versão que resultou
em Seminários pelos 26 estados e o Distrito Federal para debater o
documento. A partir das discussões, houve novas adequações no do-
cumento, chegando a sua 3ª versão e em dezembro de 2017 houve a
homologação das etapas da Educação Infantil e Ensino Fundamental
e, posteriormente, em dezembro de 2018 a homologação da etapa do
Ensino Médio130.
A BNCC apresenta os objetivos de aprendizagens em todos com-
ponentes curriculares de todas as etapas da Educação Básica. Para este
trabalho, nos interessa apenas o componente de língua portuguesa do
Ensino Fundamental, especificamente as páginas de 69 a 82 por tratar
dos eixos que direcionam o trabalho com a oralidade.

Oralidade nos PCN e na BNCC


Os PCN de língua portuguesa, no tópico “Língua oral: usos e for-
mas”, apresentam a problemática do ensino da língua oral nas escolas,
como mostrado na citação 1:

Não é papel da escola ensinar o aluno a falar: isso é algo que


a criança aprende muito antes da idade escolar. Talvez por isso,
a escola não tenha tomado para si a tarefa de ensinar quaisquer
usos e formas da língua oral. Quando o fez, foi de maneira
inadequada: tentou corrigir a fala “errada” dos alunos —
por não ser coincidente com a variedade lingüística de prestígio
social —, com a esperança de evitar que escrevessem erra-
do. Reforçou assim o preconceito contra aqueles que falam

130
Informações retiradas do sítio oficial da BNCC, disponível em <http://basena-
cionalcomum.mec.gov.br/historico>. Acesso em 20 de jul. 2022.

703
diferente da variedade prestigiada. (BRASIL, 2001b, p. 48-
49, grifo nosso)

Podemos observar no trecho acima a posição do documento em


relação ao trabalho com a oralidade, pontuando que a escola não assu-
me o papel de ensinar o aluno a falar, como apontado por Marcuschi
(2010a) em que a fala é adquirida de forma natural em contextos infor-
mais e nas relações dialógicas que são estabelecidas entre uma mãe e um
bebê desde seu nascimento.
Ainda no mesmo sentido, como mostrado na citação 1, a intenção
de corrigir a fala do aluno era fazer com que o mesmo evitasse escrever
errado, mostrando uma hierarquia do uso da língua, tendo a escrita
sobreposta à oralidade e por diversas vezes reforçando o preconceito lin-
guístico. É necessário considerar que todas a as línguas variam e que isso
é normal, natural e comum e que é preciso ter em mente que a grande
variação presenciada na modalidade oral não se verifica na mesma in-
tensidade na escrita, mas isso não quer dizer que ela não exista, porém
acontece que a escrita possui formas e regras mais rígidas estabelecidas
socialmente que a oralidade (MARCUSCHI, 2007).
O documento ainda reforça que, pelas crianças já saberem falar,
nem sempre é fácil definir o que deve ser ensinado e aprendido por elas,
para que isso ocorra de forma eficiente, é preciso explicitá-lo e explicar
como fazê-lo. Nesse sentido, observamos a citação 2:

Eleger a língua oral como conteúdo escolar exige o plane-


jamento da ação pedagógica de forma a garantir, na sala
de aula, atividades sistemáticas de fala, escuta e reflexão so-
bre a língua. São essas situações que podem se converter em
boas situações de aprendizagem sobre os usos e as formas da
língua oral: atividades de produção e interpretação de uma
ampla variedade de textos orais, de observação de diferentes
usos, de reflexão sobre os recursos que a língua oferece para
alcançar diferentes finalidades comunicativas. (BRASIL,
2001b, p. 49, grifo nosso)

704
É possível observar nos grifos acima a importância do planejamento
docente para o trabalho com a oralidade em sala de aula: de forma
sistemática, sugerindo um trabalho com a oralidade tão igualmente
importante quanto com a escrita. As atividades propostas pelo professor
devem ser organizadas a proporcionar aos alunos reflexões acerca das
características próprias da língua oral em que abordem aspectos como a fala
e a escuta. Há também a sugestão de possíveis atividades que corroboram
para essa abordagem sempre ligadas a situações comunicativas.
Tendo em vista a necessidade de atividades que abordam a lingua-
gem oral e que estejam atreladas à diversas situações comunicativas,
o documento ainda postula a possibilidade de trabalho com projetos,
como vemos na citação 3:

É preciso que as atividades de uso e as de reflexão sobre a


língua oral estejam contextualizadas em projetos de estudo,
quer sejam da área de Língua Portuguesa, quer sejam das demais
áreas do conhecimento. (BRASIL, 2001b, p. 50, grifo nosso)

Quando se propõe o ensino da língua oral por meio de projetos


abre-se a possibilidade de trabalho e de compreensão sobre o funcio-
namento da língua, atrelando-a a diversas situações de comunicação.
Dessa forma, há possibilidade de um trabalho que faça intercâmbio com
outros componentes curriculares, como também com outros temas.
Complementando essa proposição, o documento ainda aponta
mais uma possibilidade, como visto na citação 4:

A produção oral pode acontecer nas mais diversas circuns-


tâncias, dentro dos mais diversos projetos:
[...]
• atividades dos mais variados tipos, mas que tenham sempre
sentido de comunicação de fato: exposição oral, sobre temas
estudados apenas por quem expõe; descrição do funciona-
mento de aparelhos e equipamentos em situações onde isso se
faça necessário; narração de acontecimentos e fatos conhecidos
apenas por quem narra, etc. Esse tipo de tarefa requer pre-
paração prévia, considerando o nível de conhecimento do

705
interlocutor e, se feita em grupo, a coordenação da fala pró-
pria com a dos colegas — dois procedimentos complexos
que raramente se aprendem sem ajuda. (BRASIL, 2001b, p.
50-51, grifo nosso)

De natureza igual, o documento ainda expõe como uma das pos-


sibilidades de trabalho com a oralidade o gênero exposição oral e ainda
explicita a dificuldade de se aprender tal gênero e que é algo que preci-
sa ser ensinado, cabendo à escola propor situações que favoreçam esse
aprendizado. Isso pode ser visto logo abaixo na citação 5:

A exposição oral ocorre tradicionalmente a partir da quinta sé-


rie131, por meio das chamadas apresentações de trabalho, cuja fina-
lidade é a exposição de temas estudados. Em geral, o procedimen-
to de expor oralmente em público não costuma ser ensinado.
Possivelmente por se imaginar que a boa exposição oral decorra
de outros procedimentos já dominados (como falar e estudar).
No entanto, o texto expositivo — tanto oral como escrito — é um
dos que maiores dificuldades apresentam, tanto ao produtor como
ao destinatário. Assim, é importante que as situações de exposi-
ção oral freqüentem os projetos de estudo e sejam ensinadas
desde as séries iniciais, intensificando-se posteriormente.
A preparação e a realização de atividades e projetos que inclu-
am a exposição oral permitem a articulação de conteúdos de
língua oral e escrita (escrever o roteiro da fala, falar a partir
do roteiro, etc.). Além disso, esse tipo de atividade representa
um espaço privilegiado de intersecção entre diferentes áreas
do conhecimento, pois são os assuntos estudados nas demais
áreas que darão sentido às atividades de exposição oral em semi-
nários. (BRASIL, 2001b, p. 51, grifo nosso)

Os PCN reforçam novamente a questão do ensino da exposição


oral como um gênero que possibilita o trabalho com a oralidade de for-
ma sistematizada e com ocorrência frequente na sociedade e também na
escola, porém aponta que quando isso ocorre não é ensinado aos alunos

131
A partir da implementação do Ensino Fundamental de 9 anos, a quinta série tem
equivalência atualmente ao sexto ano.

706
como fazer, pois há suposição de que apenas saber falar é suficiente para
que a exposição oral ocorra.
Existe também, como apontado na citação 5, a possibilidade que
o gênero favorece em trabalhar simultaneamente com as modalidades
oral e escrita. É um gênero que propicia trabalhar a relação de comple-
mentariedade existente entre as duas modalidades numa relação contí-
nua entre uma e outra já citada anteriormente e defendida por pesqui-
sadores como Marcuschi (2001, 2007, 2010a, 2010b).
Ainda na mesma direção, há a proposição de um trabalho interdis-
ciplinar que a própria modalidade oral pode oportunizar, como a ex-
posição oral citada, colocando outros conteúdos e temas estudados que
possam se valer de tal gênero para serem expostos a diversos públicos de
acordo com a situação de comunicação posta.
Outra questão colocada também no documento é a respeito do
trabalho com a escuta que deve ser proposta pela escola, conforme ob-
servado na citação 6:

Além das atividades de produção é preciso organizar situações


contextualizadas de escuta, em que ouvir atentamente faça
sentido para alguma tarefa que se tenha que realizar ou simples-
mente porque o conteúdo valha a pena. [...] A escuta e demais
regras do intercâmbio comunicativo devem ser aprendidas
em contextos significativos, nos quais ficar quieto, esperar a
vez de falar e respeitar a fala do outro tenham função e senti-
do, e não sejam apenas solicitações ou exigências do professor.
(BRASIL, 2001b, p. 52, grifo nosso)

À vista disso, o documento já preconizava que era preciso


proporcionar aos alunos atividades em que a escuta e o intercâmbio
oral fossem analisadas a fim de compreender a necessidade dos turnos
da fala e a escuta atenta. Ações essas que também ocorre na sala de aula,
fazendo entender a necessidade desses recursos dentro de determinadas
situações comunicativas.
Tendo em vista que os PCN foram publicados em 1997 e a BNCC
em 2018, como já mencionado anteriormente neste trabalho e esta

707
última dialoga diretamente com a primeira, retomando e reforçando
a necessidade do trabalho sistemático com a oralidade na escola assim
como é feito com a escrita, olhamos para a Base no intuito de perce-
ber quais contribuições a mais que ela traz além das mencionadas. Isso
porque, primeiro, existe uma distância de quase vinte anos entre um
documento e, segundo, a sociedade mudou muito nesse período, refle-
tindo também sobre os modos de usos da linguagem e sua relação com
diversas multissemioses para a construção de sentido junto a expansão
da Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação.
Dessa forma, a BNCC, propõe que o trabalho com a língua seja
sob tal ótica, como observado na citação 7:

os eixos de integração considerados na BNCC de Língua


Portuguesa são aqueles já consagrados nos documentos curri-
culares da Área, correspondentes às práticas de linguagem: ora-
lidade, leitura/escuta, produção (escrita e multissemiótica)
e análise linguística/semiótica (que envolve conhecimentos
linguísticos – sobre o sistema de escrita, o sistema da língua e a
norma-padrão –, textuais, discursivos e sobre os modos de or-
ganização e os elementos de outras semioses). (BRASIL, 2018,
p. 71, grifo nosso)

Como é possível notar, os eixos de trabalho com a língua são os


mesmos contidos nos PCN, contudo há a marca, de maneira explícita,
das práticas de linguagens, incluindo a oralidade, leitura/escuta e a pro-
dução/escrita, análise linguística que abarcam textos escritos com uso
de diversas semioses, reflexo da organização da sociedade atualmente.
Isso é remete à concepção de língua assumida nos documentos nor-
teadores que entendem a língua como prática social em que as ações
dos sujeitos se dão por meio dela. Sendo assim, se a sociedade muda, a
língua também muda junto, e vice-versa, como apontado por Botelho
(2012) em que a oralidade e a escrita acontecem nas práticas discursivas
do homem de forma trivial.
Outro ponto a ser destacado é que a BNCC considera a relação
escrita e oralidade num continuum, como mostra Marcuschi (2010a)

708
que é imprescindível esclarecer a natureza das práticas sociais que en-
volvem os usos da língua independente da modalidade, haja vista que
essas práticas determinam o lugar e o papel de relevância da oralidade e
das práticas de letramentos e que ambas se relacionam em um eixo de
contínuo sócio-histórico. Isso é observável no quadro abaixo em que a
oralidade e escrita perpassam por todas as práticas linguagens:

Quadro 1 – Relação continuum entre oralidade e


escrita nas práticas de linguagem na BNCC

Práticas de lingua-
Relação continuum entre escrita e oralidade
gens na BNCC
Consiste nas práticas de linguagem que decorrem da in-
teração ativa do leitor/ouvinte/espectador com os textos
Leitura
escritos, orais e multissemióticos e de sua interpretação
[..]. (BRASIL, 2018, p. 71, grifo nosso)
Consiste nas práticas de linguagem relacionadas à interação
e à autoria (individual ou coletiva) do texto escrito, oral
Produção de textos
e multissemiótico, com diferentes finalidades e projetos
enunciativos [..]. (BRASIL, 2018, p. 75, grifo nosso)
Consiste nas práticas de linguagem que ocorrem em situa-
ção oral com ou sem contato face a face [...]. Envolve
também a oralização de textos em situações socialmente
Oralidade
significativas e interações e discussões envolvendo temáticas
e outras dimensões linguísticas do trabalho nos diferentes
campos de atuação. (BRASIL, 2018, p. 79, grifo nosso)
Envolve os procedimentos e estratégias (meta)cognitivas
de análise e avaliação consciente, durante os processos de
leitura e de produção de textos (orais, escritos e multisse-
mióticos), das materialidades dos textos, responsáveis por
seus efeitos de sentido, seja no que se refere às formas de com-
posição dos textos, determinadas pelos gêneros (orais, escri-
Análise linguística/ tos e multissemióticos) e pela situação de produção, seja no
Semiótica que se refere aos estilos adotados nos textos, com forte impacto
nos efeitos de sentido. [...] No caso de textos orais, essa análise
envolverá também os elementos próprios da fala – como
ritmo, altura, intensidade, clareza de articulação, varieda-
de linguística adotada, estilização etc. –, assim como os
elementos paralinguísticos e cinésicos – postura, expressão
facial, gestualidade etc. (BRASIL, 2018, p. 80, grifo nosso).
Fonte: elaborado pelos autores.

709
No eixo Oralidade, a Base traz uma nota de rodapé, como mostra-
do na citação 8 abaixo, apontando que, nesse eixo, as habilidades estão
relacionadas mais especificamente a modalidade e aos gêneros orais,
deixando claro, como apontado no Quadro 1, a relação que existe entre
escrita e oralidade que perpassa por todas as práticas de linguagem:

Grande parte das habilidades descritas nos eixos Leitura


e Produção de texto também se relaciona com o eixo
Oralidade. Foram incluídas no quadro a seguir somente ha-
bilidades que se relacionam com gêneros e aspectos mais es-
pecíficos da modalidade oral. (BRASIL, 2018, p. 79, nota de
rodapé, grifo nosso)

No quadro abaixo, observamos as habilidades que são propostas


especificamente para o eixo oralidade:

Quadro 2 – Tratamento da oralidade na BNCC

• Refletir sobre diferentes contextos e situações


Consideração e reflexão sociais em que se produzem textos orais e sobre
sobre as condições de as diferenças em termos formais, estilísticos e
produção dos textos linguísticos que esses contextos determinam,
orais que regem a incluindo-se aí a multimodalidade e a
circulação de diferentes multissemiose.
gêneros nas diferentes • Conhecer e refletir sobre as tradições orais e seus
mídias e campos de gêneros, considerando-se as práticas sociais em
atividade humana que tais textos surgem e se perpetuam, bem como os
sentidos que geram.
• Proceder a uma escuta ativa, voltada para questões
relativas ao contexto de produção dos textos, para
Compreensão de textos o conteúdo em questão, para a observação de
orais estratégias discursivas e dos recursos linguísticos
e multissemióticos mobilizados, bem como dos
elementos paralinguísticos e cinésicos
• Produzir textos pertencentes a gêneros orais
diversos, considerando-se aspectos relativos ao
Produção de textos
planejamento, à produção, ao redesign, à avaliação das
orais
práticas realizadas em situações de interação social
específicas.

710
Compreensão dos • Identificar e analisar efeitos de sentido decorrentes
efeitos de sentidos de escolhas de volume, timbre, intensidade,
provocados pelos usos pausas, ritmo, efeitos sonoros, sincronização,
de recursos linguísticos expressividade, gestualidade
e multissemióticos em etc. e produzir textos levando em conta efeitos
textos pertencentes a possíveis.
gêneros diversos
• Estabelecer relação entre fala e escrita, levando-
se em conta o modo como as duas modalidades
se articulam em diferentes gêneros e práticas de
linguagem (como jornal de TV, programa de rádio,
apresentação de seminário, mensagem instantânea etc.),
as semelhanças e as diferenças entre modos de falar
Relação entre fala e e de registrar o escrito e os aspectos sociodiscursivos,
escrita composicionais e linguísticos de cada modalidade
sempre relacionados com os gêneros em questão.
• Oralizar o texto escrito, considerando-se as situações
sociais em que tal tipo de atividade acontece, seus
elementos paralinguísticos e cinésicos, dentre outros.
• Refletir sobre as variedades linguísticas, adequando
sua produção a esse contexto
Fonte: BRASIL, 2018, p. 79, grifo nosso.

Como podemos observar no Quadro 2, a oralidade deve ser com-


preendida a partir das condições de produção, compreensão, produção
de textos orais e os efeitos de sentido e também a relação entre fala e
escrita.
Do mesmo modo, as habilidades elencadas vão ao encontro do que
propõe os PCN quando aponta que a oralidade precisa ser trabalhada
de forma sistemática pela escola. Observamos que é explicitado o que
deve ser trabalhado na escola com a língua oral, levando em conside-
ração a dimensão de gêneros orais, oralização de textos escritos, escuta
ativa e os elementos paralinguísticos e cinésicos que também fazem par-
te da oralidade e contribuem para a construção do sentido.
É notável também o destaque que é dado para o trabalho com a
oralidade a partir de gêneros da tradição oral, ressaltando a importância
dos mesmos para a formação e preservação da cultura através das

711
gerações. Isso é outro aspecto importante da oralidade, tendo em vista
seu surgimento anterior à escrita e que a preservação da cultura e dos
modos de organização social se davam por meio dela.
Há também a incorporação dos novos gêneros que envolvem as
diversas semioses e que surgiram a partir das Tecnologias Digitais da
Informação e da Comunicação.
No eixo da Análise Linguística/Semiótica¸ como mostrado no
Quadro 3 abaixo, há também a proposição de um trabalho com a ora-
lidade e escrita que possibilite o estudo da variação linguística a fim de
compreender como a língua funciona levando em consideração os seus
usos em diversos contextos, discutindo a sua adequação a esses contex-
tos e os processos de valoração entre variações consideradas “certas” ou
“erradas”:

Quadro 3 – Tratamento da análise linguística na BNCC

• Conhecer algumas das variedades linguísticas do português do


Brasil e suas diferenças fonológicas, prosódicas, lexicais e sintáticas,
Variação avaliando seus efeitos semânticos.
linguística • Discutir, no fenômeno da variação linguística, variedades prestigia-
das e estigmatizadas e o preconceito linguístico que as cerca, ques-
tionando suas bases de maneira crítica.
Fonte: BRASIL, 2018, p. 83, adaptado, grifo nosso

Até aqui, a partir da análise feita, foi possível observar como a ora-
lidade é apresentada para ser trabalhada na escola nos dois documentos
que fizeram parte desta pesquisa.

Considerações finais
Tendo em vista o caminho percorrido até agora neste trabalho, po-
demos observar a proposição da oralidade tanto nos PCN como na
BNCC. É inegável a relação entre os dois documentos, mas o que pode-
mos observar é que ambos já apontam a trabalho com a oralidade como
prática social situada e que é concretizada em práticas discursivas por
meio de gêneros orais informais ou formais.

712
Na BNCC é possível notar de forma mais visível do que nos PCN
o trato da oralidade como prática de linguagem explícita e que precisa
ser trabalhada e, portanto, ser levada em consideração a sua sistematiza-
ção assim como ocorre com a escrita.
Outro ponto também apontado na BNCC é o fato de que a ora-
lidade nesse documento considera o trabalho com o texto multisse-
miótico, assumindo que os gêneros discursivos atualmente podem ser
compostos por várias semioses. Se no PCN, o uso da língua estava mais
voltado apenas para as relações entre oralidade e escrita, embora tam-
bém assumam a relação contínua que existe entre ambas, não marcan-
do uma dicotomia entre uma e outra, na BNCC essa relação é mais
reforçada a partir do uso das Tecnologias Digitais da Informação e da
Comunicação nas produções de textos, abarcando várias linguagens em
um mesmo texto para a construção do sentido.
Isso reflete a situação da sociedade atual e, tendo como base a lín-
gua como prática social que molda e é moldada pelo seu uso, faz sentido
a incorporação desses novos modos de usos da língua e que, portanto,
sejam também conteúdos a serem desenvolvidos na e pela escola.
Vemos, ademais, a importância de a tradição oral ser contemplada
no trabalho escolar a fim de levar os alunos a refletirem como os gêne-
ros orais eram usados para a preservação da cultura e como forma de
transmitir conhecimentos às novas gerações. Nessa relação é possível
um trabalho que compreenda como a língua na sua modalidade oral
teve papel fundamental para a organização da sociedade e por isso não
deve ser desprestigiada ou colocada num patamar de inferioridade em
relação à escrita.
Foi possível destacar também que o trabalho com a oralidade e a
escrita favorecem aos alunos a compreensão das relações de poder e ao
mesmo tempo de segregação que a escrita pode favorecer na sociedade,
bem como as variedades linguística prestigiadas socialmente. Tal traba-
lho oportuniza o entendimento do uso da língua a partir dos seus con-
textos comunicativos e que não existe uma variedade certa ou errada,
mas que há apenas variedades diferentes e que todas elas se referem a

713
uma mesma língua com usuários competentes do sistema linguístico.
Há de destacar que essa proposição tende a combater o preconceito
linguístico ainda tão arraigado na nossa sociedade, fazendo com que o
aluno tenha um posicionamento crítico sobre o uso da língua e de seus
falantes.
Posto tudo isso, ressaltamos que não pretendemos em nenhum mo-
mento esgotar de forma exaustiva as diversas análises que se podem
desdobrar do trabalho com a oralidade a partir dos documentos aqui
analisados. Em suma, apresentamos neste artigo, a forma como a ora-
lidade é concebida e como é sugerida para o trabalho pedagógico nas
escolas a partir dos PCN e da BNCC.

Referências
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São Paulo: Edições 70, 2011.

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nacionais. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Fundamental. 3 ed. Brasília:
A Secretaria, 2001.

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Educação. Secretaria da Educação Fundamental. 3 ed. Brasília: A Secretaria, 2001.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.

CARVALHO, Robson dos Santos; FERRAZERI JR, Celso. Oralidade na Educação


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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In:


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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Letramento e oralidade no contexto das práticas so-


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714
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SCHNEUWLY, Bernad. Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e on-


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SCHNEUWLY, Bernad. Palavra e ficcionalização: um caminho para o ensino da lin-


guagem oral. In: SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos
na escola. Trad. Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas: Mercado das Letras,
2004ª, p. 109-124.

715
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

ANÁLISE SEMIÓTICA SOCIAL E


MULTIMODAL DAS OBRAS DA “ESTANTE
DIGITAL” DO PROGRAMA “LEIA PARA UMA
CRIANÇA”

Letícia Stefane Cunha Castro (bolsista , IFMG – campus Ouro Branco)


Denise Giarola Maia (profa. orientadora, IFMG – campus Ouro branco)

RESUMO: O presente projeto teve início em 2020 quando discutimos o


estado da arte, por meio de uma revisão literária sobre a temática dos livros
digitais infantis. Também realizamos um levantamento dos aplicativos e livros
digitais infantis produzidos no contexto brasileiro e selecionamos as obras da
“Estante Digital” do programa “Leia para uma criança” (ITAÚ, 2020) como
corpus de análise, uma vez que a coleção é disponibilizada gratuitamente e pode
ser acessada pelo celular. O objetivo é investigar os aspectos estruturais e do
design de livros digitais, questionando a literariedade das semioses, a partir das
seguintes perguntas: além da escrita, que outros modos e recursos semióticos
compõem o texto literário dos livros digitais da coleção estudada? Que
função esses outros modos desempenham no texto? Como eles contribuem
ou interagem com a escrita para construção de sentido? Eles são utilizados
coerentemente e sem excesso no livro? Assim, a pesquisa fundamenta-se no
referencial teórico da Semiótica Social e da Abordagem da Multimodalidade.
Em 2021, iniciamos o processo de análise do corpus. A metodologia consiste
na transcrição e no mapeamento dos modos utilizados na composição de cada
tela, na descrição dos recursos da imagem, buscando classificar os elementos
(participantes representados e processos), de acordo com a estrutura que
formam, o que diz respeito ao significado representacional (KRESS; VAN
LEEUWEN, 2020), e na interpretação dos efeitos de sentido da combinação
dos modos. Concluindo, os dados obtidos, até o momento, demonstram que,
embora os outros modos desempenhem predominantemente a função de
ilustrar o verbal, há momentos em que eles contribuem para caracterizar os
personagens e o cenário, antecipar uma informação da parte escrita, aguçar
a curiosidade do pequeno leitor, fazendo-o criar hipóteses, inferências e
outras estratégias de leitura, além de criar um aspecto lúdico, corroborando,
portanto, a necessidade de um letramento literário e visual na formação do
leitor desse formato específico de livro.

716
PALAVRAS-CHAVE: Semiótica Social, Multimodalidade, livro digital
infantil.

ABSTRACT: The present project began in 2020 when we discussed the


state of the art, through a literary review on the theme of children’s digital
books. We also carried out a survey of applications and digital children’s books
produced in the Brazilian context and selected the works of the “Estante
Digital” of the program “Read for a child” (ITAÚ, 2020) as a corpus of
analysis, since the collection is available free of charge and can be accessed by
cell phone. The objective is to investigate the structural and design aspects of
digital books, questioning the literariness of semioses, based on the following
questions: in addition to writing, what other semiotic modes and resources
compose the literary text of the digital books of the studied collection? What
role do these other modes play in the text? How do they contribute or interact
with writing for the construction of meaning? Are they used consistently and
without excess in the book? Thus, the research is based on the theoretical
framework of Social Semiotics and the Multimodality Approach. In 2021,
we started the process of analyzing the corpus. The methodology consists of
the transcription and mapping of the modes used in the composition of each
screen, in the description of the image resources, seeking to classify the elements
(represented participants and processes), according to the structure they form,
with regard to the representational meaning. (KRESS; VAN LEEUWEN,
2020), and in the interpretation of the meaning effects of the combination of
modes. In conclusion, the data obtained so far demonstrate that, although the
other modes predominantly play the role of illustrating the verbal, there are
times when they contribute to characterizing the characters and the setting,
anticipating information from the written part, arousing curiosity. of the little
reader, making him create hypotheses, inferences and other reading strategies,
in addition to creating a playful aspect, thus corroborating the need for literary
and visual literacy in the formation of the reader of this specific book format.
KEYWORDS: Social Semiotics, Multimodality, children’s digital book.

1. Introdução
A semiótica social (SS) tem como foco principal o estudo da co-
municação e da semiose humana, ou seja, do processo de produção de
sentido (HODGE; KRESS, 1988). Desse modo, é uma ciência que
busca investigar várias características inerentes à construção de sentido,

717
colocando, no mesmo nível de importância, qualquer que seja o modo
de comunicação (fala, escrita, imagem e outros), bem como os recursos
semióticos (gestos, tom de voz, cores, texturas, tamanhos, entre outros)
presentes na materialização do texto (GUALBERTO, 2016).
Um desdobramento da SS é a Gramática do Design Visual (GDV)
que continua sendo um importante trabalho teórico-metodológico.
Essa foi elaborada por Kress e van Leeuwen (2020), a partir de seus
estudos e análises da imagem em diversos textos os quais exemplificam
conceitos e categorias apresentados na obra em questão. Por sua vez, ela
busca promover um tipo de letramento visual, no qual a fotografia, o
desenho, a pintura, a filmagem, artefatos 3D, todas essas formas de re-
presentação e comunicação visual são descritas como um modo semió-
tico com recursos que são capazes de desempenhar as mesmas funções
do sistema linguístico. Desse modo, as imagens são descritas em termos
de como seus elementos se organizam e se combinam.
Segundo Gualberto (2016), a GDV associa as metafunções da
Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) de Halliday (1994), original-
mente ligadas à linguagem verbal, ao aspecto visual dos textos. Assim,
a GDV propõe um tipo de análise semiótica do que seria essa parte
constituinte do texto, por isso sua persistência e aplicação em pesquisas
recentes na área, como, por exemplo, a que é feita neste artigo.
Contudo, esse trabalho de Kress e van Leeuwen (2020) é ainda
atual por argumentar a favor de uma compreensão de que todo texto
é multimodal por natureza, isto é, o sentido é produzido por meio da
interação de mais de um modo. Segundo Kress e van Leeuwen (2020)
e Gualberto (2016), todo texto é sempre multimodal, porque o pro-
dutor recorre a mais de um modo para materializar a mensagem, uma
vez que cada modo de representação tem suas possibilidades e limita-
ções. Portanto, afirmar que um texto é multimodal acaba se tornando
redundante. Além disso, vale destacar que os modos possuem diversos
recursos semióticos, os quais o produtor utiliza na concretização do
texto e que são fundamentais para a construção de sentido. Disso re-
sulta, então, o interesse dos autores pela Multimodalidade, isto é, por

718
uma abordagem que inclua todos os modos e recursos envolvidos na
produção de sentido(s) em uma dada situação ou evento comunicativo.
O presente artigo tem como objetivo apresentar os resultados obti-
dos, até o momento, da análise sociosemiótica e multimodal das obras
da “Estante digital” do programa “Leia para uma criança”, se concen-
trando especificamente nos dados obtidos no livro “O sétimo gato”.
Esse e as demais livros da “Estante digital” são objeto de pesquisa do
projeto “Análise multimodal do design de livros digitais e aplicativos de
literatura infantil”132, que busca responder, assim, as seguintes questões:
além da escrita e ilustração, que outros modos e recursos semióticos
compõem o texto literário dos livros digitais da coleção estudada? Que
função esses outros modos desempenham no texto? Como eles con-
tribuem ou interagem com a escrita para a construção de efeitos de
sentido? Eles são utilizados coerentemente e sem excesso na narrativa?
Intitulamos este artigo como análise “semiótica social”, porque nos
interessa investigar, para além do linguístico (escrita), outros modos
presentes nos livros digitais infantis. Então, buscamos, na análise, des-
crever o significado representacional das ilustrações (tipo de estrutura,
de processos e de participantes representados - PR) e identificar outros
modos e recursos semióticos, bem como seus efeitos de sentido no tex-
to. Também o chamamos de “multimodal”, porque consideramos os
sentidos produzidos na interação entre as escolhas feitas dos processos e
PR na imagem, o aspecto verbal (a escrita) e recursos interativos de som
e de movimento, a fim de construir a literariedade do texto, apontando
leituras possíveis para a história e corroborando o letramento desse for-
mato emergente de livro.

2. O livro digital e a obra “O sétimo gato” da coleção “Estante


digital” do programa “Leia para uma criança”
A expressão “livro digital” é usualmente utilizada para designar tan-
to aqueles livros que circulam nesse ambiente, mas, a princípio, foram
132
Projeto desenvolvido com recurso financeiro do Programa Institucional de Fomen-
to à Bolsas de Pesquisa do Instituto Federal de Minas Gerais desde julho de 2020.

719
planejados para a materialidade do papel, como, por exemplo, é o caso
de livros impressos que são digitalizados e disponibilizados em formato
PDF; como aqueles que foram, de fato, criados para aplicativos e dipo-
sitivos para leitura (BORGES; MAIA, 2020). Enquanto os primeiros
mantêm uma configuração e leitura semelhantes ao do livro físico, os
segundos têm como característica uma maior interatividade, além de
proporcionarem ao leitor uma experiência de leitura, na qual ele pode
escolher os rumos da narrativa e/ou participar da história, por meio de
atividades que lhe são solicitadas (MATSUDA; CONTE, 2018).
No meio digital, diferente do que ocorre na leitura em ambientes
tradicionais, o leitor atua como “navegador”, realizando alguns proce-
dimentos, tais como clicar, usar barras de rolagem, usar menus, passar
os olhos pela página na tela, entre outros (COSCARELLI, 2016, p. 76-
77133 apud MACHADO, REMENCHE, 2017, p. 163-164).

Figura 1. Dicas de navegação das obras da “Estante


digital” do programa “Leia para uma criança”

Fonte: Dados da pesquisa (VERISSIMO, 2020)

Nas obras da “Estante digital” do programa “Leia para uma crian-


ça”, antes de ter acesso as telas das páginas do livro, é apresentada
uma lista de “Dicas para uma boa leitura” contendo 5 ícones e suas
133
COSCARELLI, Carla. Navegar e ler na rota do aprender. In: _____. (Org.).
Tecnologias para aprender. 1 ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2016.

720
respectivas funções que o leitor deve conhecer antes de iniciar a leitura
da história (Figura 1).
Desse modo, a emergência desse novo formato de livro tem nos
levado a revistar nossas concepções de leitura e a romper com uma visão
canônica de letramento para uma perspectiva que acolhe as questões
socioideológicas das práticas sociais e que considera a multiplicidade de
formas de produção de sentido. Entende-se, portanto, que o letramento
é múltiplo, pois fazemos diferentes usos sociais da escrita, nos diversos
eventos e práticas sociais (STREET, 2014). Contudo, os textos se mate-
rializam não apenas no linguístico, mas também em outros sistemas se-
mióticos e em arranjos multimodais (KRESS, VAN LEEWEN, 2020).
A multimodalidade como meio de construção de sentidos tem
se tornando proeminente, principalmente nessa era digital em que o
modo verbal não é visto como o mais apto e plausível para a comuni-
cação e representação. Na literatura infantil, observar-se que os livros
destinados às crianças, especialmente as (bem) pequenas, as quais ainda
nem foram alfabetizadas, ou seja, não conhecem ou não têm domínio
do código de sua língua, essa multimodalidade é bastante explorada
durante o projeto gráfico do livro, a partir das escolhas do formato
(tamanho, textura do papel), das imagens (desenho, colagem), cor, ti-
pografia, etc. Isso não é diferente no formato digital, uma vez que as
possibilidade de aplicar outros modos e recursos como de som e de
animação são expandidas.
A coleção da “Estante Digital” do programa “Leia para uma crian-
ça” do ItaúSocial é composta por 16 livros digitais134. Todos podem ser
descritos como livros digitais pensando para esse ambiente. Até o mo-
mento já foram analisados “O menino e o foguete” e “O sétimo gato”.

134
são eles: “O menino e o foguete”, “O sétimo gato”, “O cabelo da menina”, “A bi-
cicleta voadora”, “Chapeuzinho vermelho”, “Pode ser”, “A menina das estrelas”,
“As bonecas da vó Maria”, “Meu amigo robô”, “Malala, a menina que queria ir
para a escola”, “Sovaco da cobra”, “A flor que chegou primeiro”, “Super-prote-
tores”, “Da a janela de Minas”, “O apanhador de acalantos” e “A descoberta do
Adriel”. Todos eles encontram-se na “Estante Virtual”, disponível no seguinte
site: https://www.euleioparaumacrianca.com.br/estante-digital/.

721
Para este artigo, apresentaremos, especialmente, os dados obtidos na
análise da segunda obra.
De acordo com o autor de “O sétimo gato”, ele criou a história
considerando uma certa “adequação da linguagem” ao seu público lei-
tor, mas também ao “veículo”, ou seja, ao meio digital, conforme pode-
mos notar, a seguir, na transcrição da fala de Luis Fernando Verissimo
no vídeo de divulgação (book trailer).

Pra mim foi uma novidade em todos os sentidos, né? Escrever


pro Facebook e escrever pra criança. Eu não tinha essa experiên-
cia, então foi uma experiência duplamente diferente para mim.
A grande diferença é a linguagem. Para gente escrever pra crian-
ças, pra adolescentes ou pra adultos, são linguagens diferentes.
[...] Eu acho que é muito interessante porque é uma nova lingua-
gem, um novo veículo para a história. Mas, ao mesmo tempo, é
uma coisa antiga: um pai contando história pro filho ou a mãe
contando a história pro filho. É uma cena antiga né, do mundo.
E, ao mesmo tempo, vai se adaptando a esse novo mundo, do
Facebook, do computador. (ITAÚ, 2020, transcrição nossa).

Essa citação nos mostra que criar uma história pode ser diferente a
depender se ela será impressa ou digital. Logo, se há essa diferença na
produção, consequentemente o outro polo da comunicação e repre-
sentação, isto é, o da interpretação, o da leitura, também exigirá novas
habilidades e competências do leitor.

[...] na era digital, o texto ganha, com o meio eletrônico, uma


nova materialidade, cujas potencialidades se aproximam das
possibilidades do próprio texto literário. [...]
Nos livros ilustrados, assim como na literatura digital para crian-
ças, o ato de ler literatura não depende apenas da compreensão
do texto escrito, pois é preciso manejar muito mais elementos
para interagir com a obra. (MORAES, 2015, p. 234 e 237)

Daí, a importância das contribuições dos estudos da SS e da


Multimodalidade. A SS fornece um quadro teórico para enfocar todos

722
os aspectos de produção de sentido e nas noções de signo, texto, gênero,
discursos, dentre outros. Por sua vez, a multimodalidade centra-se nos
meios materiais de representação, nos recursos para fazer textos, ou seja,
nos modos. A partir, então, dos pressupostos da SS e da multimodalida-
de é que as obras que compõem a “Estante digital” do programa “Leia
para uma criança” estão sendo analisadas.
O livro “O sétimo gato” é a história de um garoto que ganhara
sete gatos. O primeiro pensava ser francês, recebeu o nome de Bolinha,
mas não atendia por ele, ao invés de “miau”, fazia “miu”. O segundo
acreditava que fosse alemão e não gostou quando o menino o chamou
de “Chuchu”. Ele também não fazia “miau”, mas “acht”. Coringa foi o
nome dado ao terceiro bichano, esse pensava ser inglês, tomava chá ao
invés de leitinho e não dizia “miau”, e sim “oh, yes”. O quarto achava
ser chinês, o garoto deu a ele o nome de Mimoso. Esse pronunciava
“mmm” ao invés de “miau” e era o mais engraçado. Branquinha foi a
quinta gata. Rejeitou o nome que recebeu, pois pensava ser russa, e
também não falava “miau”, mas “Da”. À sexta felina, o garoto deu o
nome de Kaka. Não pensava ser outra coisa, mas também não dizia
“miau”, porém algo que ninguém entendia. O sétimo, ao entrar na
casa, a primeira coisa que fez foi fazer “miau”. O garoto pensou até
mesmo ser um sonho. Assim, no fim da história, esse último ensinou
aos outros como se falava “miau” e eles se entenderam, afinal todos eles
eram gatos.
“O sétimo gato” é uma história inventada por Luis Fernando
Verissimo, por isso ele assina como “escritor”; e as cenas foram ilustra-
das por Willian Santiago. Contudo, a produção dessa obra envolveu
todo um trabalho de pensar o design, durante o qual provavelmente foi
considerado: quando, na narrativa, colocar efeitos sonoros e de movi-
mento/animação, quais páginas deveriam ter navegação lateral, isto é,
mover para os lados e assim por diante. É a respeito desses aspectos do
design que nos atemos na análise realizada dessa obra para responder as
questões de pesquisa.

723
3. A gramática do design visual e a multimodalidade: categorias
para a análise do livro “O sétimo gato”
A GDV está fundamentada nos trabalhos de Halliday (1994). De
acordo com Brito e Pimenta (2009), embora seu foco de análise fosse a
linguagem verbal, suas teorias puderam ser aplicadas em outros modos
semióticos, já que ele mesmo considerava a linguística como um tipo de
semiótica. Assim sendo, foi a partir dessas colocações teóricas que Kress
e Van Leeuwen (2020) aplicaram os pressupostos de Halliday (1994)
no âmbito da comunicação visual, o que resultou na GDV.
A GSF é uma proposta de análise gramatical pautada na noção de
que a linguagem se processa por meio de três metafunções: ideacional,
interpessoal e textual. Igualmente, a imagem é capaz de realizar essas
três metafunções ou significados, como propõem Kress e van Leeuwen
(2020).
Na pesquisa, nos centramos no significado representacional da
GDV que corresponderia à metafunção ideacional da GSF, na qual os
enunciados são vistos como representações, conforme afirma Gualberto
(2016). Dessa forma, as imagens são analisadas a partir dos fatores que
sugerem ou revelam a representação proposta pelo texto e as interações
entre os participantes que possam estar envolvidos na imagem. Há duas
possibilidades de estrutura representacional: a narrativa e a conceitual.
Segundo Kress e van Leeuwen (2020), quando os participantes
estão conectados por um vetor, eles estão representados como se es-
tivessem fazendo algo um com o outro ou para o outro. Esse tipo de
estrutura é designada como narrativa, pois apresenta “processo”, isto é,
quando envolve vetores (setas, traços, linhas etc) que indicam processos
que podem ser: de ação, uma vez que os vetores que partem dos mem-
bros dos PR sugerem atividades realizadas no mundo real, reacional, no
qual vetores partem do olhar dos PR que reage a uma ação (fenômeno),
verbal e mental, que representa o conteúdo da fala ou do pensamento
do PR, de conversão, que se caracteriza pela transformação do PR, e de
simbolismo geométrico, o qual contém apenas o vetor.

724
Já a estrutura conceitual não apresenta vetores, pois sua finalidade é
apresentar quem ou o que é o PR. Portanto, esse tipo de estrutura pode
ser de classificação, já que os PR são organizados como sendo membros
de um grupo ou conjunto; analítica, pois relaciona os PR na relação par-
te-todo, em que o todo é um PR que carrega os atributos, isto é, as par-
tes; e simbólica, uma vez que o foco está no que cada PR é ou significa.
Portanto, a análise sociosemiótica de “O sétimo gato” foi realizada
a partir dessas categorias, sem, contudo, perder de vista a multimodali-
dade, pois, como Gualberto (2016) afirma

Os modos, por sua vez, vêm acompanhados por diversos re-


cursos semióticos, ou seja, estratégias que o produtor utiliza
na concretização do texto, fundamentais para a construção de
sentido. Por exemplo, a ênfase pode ser representada de várias
formas, dependendo do modo de comunicação em que se en-
contra. Na fala, ela pode se dar por meio do tom de voz; na
tipografia, recursos como itálico e negrito são comumente utili-
zados para esse fim; na escrita, observam-se as letras maiúsculas
e o sublinhado; no layout, a posição dos elementos e o tama-
nho de cada um são recursos frequentes para expressar a ênfase.
(GUALBERTO, 2016, p. 63)

Portanto, buscou-se analisar como a literariedade do texto de “O


sétimo gato” é concretizada a partir da coesão entre os modos e re-
cursos semióticos utilizados no design dos livros e na construção dessa
narrativa.

4. Análise do livro “O sétimo gato” da coleção “Estante digital”


Após a leitura do livro “O sétimo gato”, foi realizada a transcrição e
análise do material conforme uma tabela modelo (LUZ; MAIA, 2021)
que foi elaborada pela equipe do projeto, para estudo das obras da cole-
ção “Estante digital”, e também por Rafael (2021).
Na primeira coluna, enumeramos as telas do livro digital (tabela
1). Na segunda, “modos e recursos”, há quatro divisões, sendo que cada

725
uma corresponde aos modos que buscamos identificar ou não no texto.
Já na terceira coluna, classificamos os seguintes elementos: participan-
tes representados (RP) e seus processos, de acordo com a estrutura que
eles formam, que diz respeito ao significado representacional (KRESS;
VAN LEEUWEN, 2020). Finalmente, na última coluna, fazemos uma
intepretação dos efeitos de sentidos da combinação desses vários mo-
dos, observando, especialmente, a interação entre escrita, ilustração e
efeitos de som e de animação.

Tabela 1. Modelo para análise dos livros

Fonte: Elaborada a partir de Luz; Maia, 2021 e Rafael (2021)

Analisando os dados da tabela e buscando responder a questão:


“além da escrita, que outros modos e recursos semióticos compõem o
texto literário dos livros digitais da coleção estudada?”, tem-se o gráfico
a seguir com os dados sobre os modos e recursos identificados na obra
“O sétimo gato”.

726
Gráfico 1. Recorrência dos recursos multimodais no livro
“O sétimo gato” (sendo 16 o total de telas)

Fonte: Dados da pesquisa

Conforme o gráfico 1, escrita, ilustração e som/música interagem


praticamente em todas as telas para compor o texto enquanto que os
efeitos de animação, isto é, movimentos dos PR, foram considerados
durante o design, mas utilizados em momentos específicos da narrativa.
A figura 2, a seguir, é a representação da terceira tela de “O sétimo
gato” que está divida em três partes (A, B e C). Juntas, elas compõem
o texto dessa página do livro. É possível identificar um ícone na parte
superior, indicando para o leitor que se trata de uma “página panorâ-
mica”. Nota-se também o seguinte comando: “incline o seu celular”. O
leitor deverá realizar essa ação para continuar a leitura da história, pois,
somente quando ele dispõe o celular na horizontal, é que ele tem acesso
às partes A e C, ou seja, a todo o restante do desenho e da escrita. Há
um outro ícone, o de um “alto-falante”, para indicar efeito de som/mú-
sica. Ao clicar nesse ícone, o leitor pode (des)ativar esse recurso.

727
Figura 2. Exemplo de página panorâmica

Fonte: Dados da pesquisa (VERISSIMO, 2020)

Nesse livro especificamente, todas as páginas que são panorâmicas


ou de “navegação lateral”, isto é, que o leitor precisa deslizar para os
lados para ler, não possuem efeito de animação, apenas de som/música.
As ilustrações da figura 2 podem ser descrita como conceitual simbóli-
co. Os PR, a saber: Torre Eiffel, à esquerda, bolo Fraisier e o frasco de
perfume, à direita, são símbolos da França, e os atributos possuídos pelo
gato: beret (boina francesa) e cachecol, indicam o país de origem dele,
sua nacionalidade. Além disso, essa informação é reiterada também pela
música instrumental de fundo e pelo miado “miu” como se fosse o so-
taque francês. Essa onomatopeia “miu” destaca o famoso “biquinho”
(lábio arredondado ao pronunciar o fonema /y/). De acordo com o
narrador da história, o gato só atendia ao dono quando este o chamava
de “Pierre” ou “Jean Paul” que são nomes franceses.
No mundo real, gatos não falam, não possuem linguagem, mas
produzem alguns sons para se comunicarem com outros da mesma es-
pécie. Por essa razão, podemos considerar esse recurso do som, nessa
história, como um processo verbal, pois é como se o gato estivesse ma-
nifestado algo. Contudo, sabemos que a linguagem é um elemento que

728
identifica, por isso o miado também reforça, dentro dessa narrativa,
uma marca da identidade do PR. Esse é um recurso que foi utilizado
com todos os outros gatos que o menino foi ganhando durante a histó-
ria. Por se tratar de uma narrativa semelhante a um conto de repetição,
também os outros modos irão explorar essa regularidade dos modos e
recursos semióticos no design das telas.
Assim, respondendo às questões: que função esses outros modos
desempenham no texto? Como eles contribuem ou interagem com a
escrita para construção de sentido?, observamos, por exemplo, na figura
3, que o desenho tem a função de ilustrar essa informação sobre o gato
apresentada pelo narrador, na parte escrita da página anterior (figura 5).

Figura 3. Interação entre escrita e desenho na narrativa de “O sétimo gato”

Fonte: Dados da pesquisa (VERISSIMO, 2020)

Na figura 3, o desenho mostra o menino acariciando o primeiro


gato, o Bolinha. Tem-se uma estrutura narrativa com processo de ação.
Além disso, essa é uma tela que possui efeitos de animação, que são os
movimentos do gato com o seu corpo (cabeça, tronco e rabo), e som,
um barulho como que do ronrom do gato e do piscar dos olhos do me-
nino. A imagem busca representar os dois personagens da história jun-
tos, tal como mencionado pelo narrador: “O menino ganhou um gato”.
A expressão dos PR é de felicidade. O movimento também corrobora

729
para a ideia de afeto entre eles. Já o som, aparentemente, é dispensável
nessa cena.
Verificamos, então, que os recursos de animação e som possuem,
de certa forma, nesta obra, a função de caracterizar os gatos, de reiterar
informação da parte escrita, e também de trazer lucidade para o tex-
to. Igualmente o desenho é muito utilizado na função de ilustração.
Contudo, podemos dizer que ele acaba por oferecer ao leitor - curioso
em saber o que são aqueles símbolos - informações sobre aquele país,
funcionando, desse modo, como “amostras” ou “exemplos” daquela
cultura.
Essa obra faz parte do programa “Leia para uma criança”, de modo
que a proposta dos livros é contribuir para formação leitora dos bebês
e crianças (bem) pequenas, sendo essa atividade acompanhada por um
adulto que fará a mediação entre o livro e a criança. Cabe a ele chamar
atenção do leitor para esses símbolos e, a depender da criança, convi-
dá-la a pesquisar sobre eles. Por exemplo, a Torre Eiffel, chamada tam-
bém de “A Dama de Ferro” (CULTURALIZANDO, 2021), é um dos
monumentos arquitetônicos mais popular e visitado do mundo. Essa e
outras curiosidades dos países representados no livro “O sétimo gato”
são, então, suscitadas pelas imagens das telas com os símbolos represen-
tativos de cada pais.
Com isso, a história envolve o leitor que, consequentemente, acaba
aprendendo, por meio dos símbolos que lhe são apresentados, conhe-
cimentos em relação a pontos turísticos, comidas típicas, arquitetura,
entre outros aspectos culturais da França, Alemanha, Inglaterra, China
e Rússia.
Assim sendo, os modos utilizados vêm acompanhados por estra-
tégias que o produtor utiliza na concretização do texto, fundamentais
para a construção de sentido da narrativa e da sua mensagem. Trata-se
de uma história que tem como tema “a liberdade de ser diferente”.
Ao analisarmos todos os modos envolvidos na produção des-
sa obra, buscando identificar seus potenciais sentidos, consideramos
que, de fato, seus produtores conseguiram representar a temática da

730
diversidade, já que os cinco gatos possuem diferentes nacionalidades, e
o sexto, embora não tenha uma origem explícita, sabemos que ele mia
de um jeito “incompreensível” e tem uma grafia (ou melhor, tipografia
– figura 4) diferente para registrar esse som (onomatopeia).

Figura 4. Tipografia da onomatopeia

Fonte: Dados da pesquisa (VERISSIMO, 2020)

Assim, estaria o texto remetendo a línguas de povos que desconhe-


cemos? Estaria o texto remetendo a fala de alguém que tem alguma
deficiência ou distúrbio? A narrativa escrita deixa isso em aberto para
aguçar a imaginação do leitor. Na ilustração, a tipografia é utilizada
como uma forma de realçar esse miado “incompreensível” da gata. Isso
porque são caracteres diferentes de representação da escrita ocidental a
qual possui letras que compõem o alfabeto. Contudo, tal forma de re-
presentar fornece uma pista para o leitor da possível identidade do PR.
Aquele pode deduzir que se trata de uma gata oriental, pois o formato
dos caracteres tipográficos lembram os ideogramas, símbolos ou sinais
que representam um conceito ou ideia nas culturas chinesa, japonesa,
coreana. Por isso, então, a dificuldade de reconhecer esse código lin-
guístico, descrito pelo narrador como “incompreensível”.

731
A figura 5, a seguir, apresenta a tela de nº 14 do livro. O sétimo
gato é representado visualmente com um novela de lã (estrutura narra-
tiva, processo de ação). Esse elemento faz uma esteriotipação do gato,
pois, usualmente, são assim representados: brincando com esse objeto.

Figura 5. Representação do sétimo gato

Fonte: Dados da pesquisa (VERISSIMO, 2020)

De acordo com Lima (2020), é indicado fios enovelados, barbante


ou qualquer outra coisa que se mova para distração desse bichinho,
pois o ajudaria a diminuir seu stress, ativando instintos predatórios que
o felino possuía antes da sua domesticação. Assim, o artefato funciona
como se fosse uma presa, sendo o ato de brincar como uma caça para o
gato. Desse modo, a ilustração do novelo de lã reforça essa identidade
do sétimo bichano como um gato “comum”, familiar, pois mia como
os que conhecemos, ou seja, será que ele é um gato “brasileiro”, já que a
onomatopeia está em português? Ou, então, seria um gato “universal”?
Novamente a narrativa deixa em aberta essa questão, pois não
apresenta nenhum simbolo de outra cultura. Há aqui uma quebra da

732
regularidade que a narrativa vinha apresentando ao leitor. Isso faz com
que a história caminhe para um final inusitado e também com mais de
uma possibilidade de interpretação como se espera que seja a literatu-
ra. O mediador da leitura, no caso, o adulto, pode instigar a criança a
investigar a nacionalidade do sétimo gato, solicitando que ela desenhe
símbolos de outros países, ou imaginar e criar uma continuidade da
história com o personagem ganhando outros gatos.
Ademais, na penúltima tela de nº 15 (figura 6), os gatos são visu-
almente representados correndo na mesma direção, há uma metáfora
(do caminho) nessa ilustração que amplia os sentidos da parte escrita.
Vale destacar que o próprio mover para o lado das telas, para finalizar a
narrativa, dialoga com a direção aonde os gatos e o menino estão indo,
dando a impressão de movimento dos PR.

Figura 6. Tela final do livro “O sétimo gato”

Fonte: Dados da pesquisa (VERISSIMO, 2020)

Nessa cena, o narrador conta que o sétimo ensinou todos os outros


a miar, podendo eles, finalmente, se entenderem, já que eram todos
gatos. O texto sugere uma mensagem ao leitor: “a igualdade na diver-
sidade”, isto é, tal como os gatos da história, nós também somos todos
diferentes, devido as nossas identidades (cultura, língua, etc), mas, ao
mesmo tempo, somos iguais dada a nossa humanidade, por essa razão é
possível aos homens viverem juntos de forma pacífica, e não de maneira
conflituosa e desentendida, conforme Gênesis 11:1-9 que conta sobre

733
a Torre de Babel, numa explicação da origem das línguas. Finalmente,
quanto à pergunta: os modos de som e de animação são utilizados coe-
rentemente e sem excesso no livro?, podemos responder de forma afir-
mativa, uma vez que interagem para potencializar a literariedade da
narrativa.

5. Considerações finais
Os dados obtidos, até o momento, nas análises das obras da “Estante
digital”, como essa do livro “O sétimo gato”, demonstram que escrita,
desenho, animação e som são modos que se articulam para compor a
história, por isso a necessidade do letramento, para além do verbal, dos
outros modos presentes no livro literário infantil, ou seja, da multimo-
dalidade do texto literário.
Embora os outros modos desempenhem predominantemente a
função de ilustrar o verbal, há momentos em que eles contribuem para
caracterizar os personagens e o cenário, antecipar uma informação da
parte escrita, aguçar a curiosidade do pequeno leitor, fazendo-o criar
hipóteses, inferências e outras estratégias de leitura, além de criar um as-
pecto lúdico. Desse modo, podemos afirmar que há uma preocupação,
por parte do programa, em selecionar obras em que a relação entre
os recursos semióticos seja coerente com a proposta estética da obra.
Nossa hipótese, agora, é que os demais livros, ainda a serem analisados,
corroborem essas considerações feitas aqui.
Finalizando, os resultados alcançados nos levam a refletir sobre a
leitura desse formato específico de livro, possibilitando novas pesqui-
sas que busquem investigar como seria a leitura pelas crianças desses
livros e como o adulto-mediador poderia auxiliá-las na percepção dos
sentidos que podem ser construídos na relação dos modos e recursos
explorados nesse formato de livro.

734
Referências
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736
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

INTERSECÇÃO ENTRE RAÇA E GÊNERO


NA ATUAÇÃO DAS TRADUTORAS E
INTÉRPRETES DE LIBRAS/LÍNGUA
PORTUGUESA NEGRAS

Luana Isabel Gonçalves de Lima (UFV/UFOP)


Kassandra da Silva Muniz (UFOP)

RESUMO: Este artigo constitui parte de minha dissertação de mestrado


intitulada “Surdez e Negritude: uma pesquisa sobre a identidade negra no uso
da Libras”, defendida em 15 de outubro de 2021, sob orientação da professora
Drª. Kassandra Muniz. Neste artigo trazemos a discussão sobre a atuação das
Tradutoras e Intérpretes de Libras/Língua Portuguesa - TILSP negras dentro
da academia na perspectiva de gênero e raça, ressaltando sua identidade
social. Realizamos uma entrevista que foi concebida em narrativas de teor
memorialístico, onde realizamos uma pergunta geradora que foi desenvolvida
de forma livre sobre a temática voltada ao racismo sofrido dentro do ambiente
de trabalho das TILSP. A partir da entrevista e dos critérios analíticos as
discussões voltam-se para os temas mais recorrentes nas falas das TILSP, que
são: 1- Estética; 2 – Racismo; 3 – Assédio/Gênero. As considerações finais
dizem respeito as identidades das TILS negras em relação a sua performance,
onde sua negritude, sua cultura impacta diretamente na atuação profissional.
O racismo, as questões sobre a estética e o assédio na perspectiva de gênero
interferem na performance no âmbito profissional, pelo fato de muitas vezes a
discriminação e o preconceito vir de forma velada e silenciosa. Essa discussão
mostra que se o corpo é um ato cultural, ele não deve ser regulado, como
demonstra nos códigos de ética. Esse corpo deve mostrar sua essência, sua
identidade e ser um corpo de luta e resistência.
PALAVRAS CHAVES: TILSP negras; Gênero; Raça; Identidade social.

ABSTRACT: This article is part of my master’s thesis entitled “Deafness and


Negritude: a research on black identity in the use of Libras”, defended on
October 15, 2021, under the guidance of teacher Dra. Kassandra Muniz. In
this article we bring the discussion about the performance of black Libras/
Portuguese Translators and Interpreters - TILSP within the academy from
the perspective of gender and race, highlighting their social identity. We
conducted an interview that was conceived in narratives with a memorialistic

737
content, where we asked a generating question that was developed freely
on the theme focused on the racism suffered within the TILSP work
environment. From the interview and the analytical criteria, the discussions
turn to the most recurrent themes in the speeches of the TILSP, which are:
1- Aesthetics; 2 – Racism; 3 – Harassment/Gender. The final considerations
concern the identities of black TILS in relation to their performance, where
their blackness, their culture directly impacts their professional performance.
Racism, questions about aesthetics and harassment from a gender perspective
interfere with performance in the professional scope, because discrimination
and prejudice often come in a veiled and silent way. This discussion shows
that if the body is a cultural act, it should not be regulated, as demonstrated
in the codes of ethics. This body must show its essence, its identity and be a
body of struggle and resistance.
KEYWORDS: Black TILSP; Genre; Breed; Social identity.

Introdução
A Língua Brasileira de Sinais – Libras é oficializada pela Lei nº.
10.436, de 24 de abril de 2002 como primeira língua da comunidade
Surda135 brasileira e o Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005
que regulamenta a Lei supracitada e insere a Libras como disciplina
obrigatória nos cursos de formação de professores e fonoaudiologia.
Com isso o acesso de estudantes Surdos na educação, em classes regula-
res e no ensino superior, cresceu gradativamente.
Diante da Lei e do Decreto, a Libras se difundiu e as pessoas Surdas
começaram a reivindicar por mais acesso a sociedade, à comunicação,
à informação e à educação abrangendo desde a Educação Infantil até a
Educação Superior.
No Decreto nº 5.626 no Capítulo IV Art. 14 descreve o seguinte:

Art. 14. As instituições federais de ensino devem garantir,


obrigatoriamente, às pessoas surdas acesso à comunicação, à

135
Para marcar ainda mais a diferença, convenciona-se grafar “surdo” com a primei-
ra letra em caixa alta “Surdo” quando se quer referir não aos aspectos audiológi-
cos, mas aos culturais ou políticos da condição de surdez” (MAGNANI, 2007).

738
informação e à educação nos processos seletivos, nas atividades
e nos conteúdos curriculares desenvolvidos em todos os níveis,
etapas e modalidades de educação, desde a educação infantil até
à superior (BRASIL, 2005).

O artigo supracitado discorre a respeito da formação docente, da


garantia da Libras na escolarização dos Surdos e da presença do tradutor
e intérprete de Libras/Língua Portuguesa.
A profissão do Tradutor e Intérprete de Libras/Língua Portuguesa -
TILSP é regulamentada pela Lei nº 12.319, de 1º de setembro de 2009.
Este profissional iniciou sua carreira “a partir de atividades voluntárias
que foram sendo valorizadas enquanto atividade laboral, na medida
em que os Surdos foram conquistando o seu exercício de cidadania”
(QUADROS, 2004, p. 13).
O TILSP é um profissional ouvinte, que transmite aos Surdos, de
forma fidedigna, as informações orais de uma língua alvo para uma
língua fonte.
Nesta profissão é relevante falarmos a respeito da formação do
TILSP e seu ambiente de atuação, e abordar sobre a identidade so-
cial desses sujeitos em função do seu empoderamento social, político
e identitário. O TILSP atua em diversos espaços como, educacional,
judicial, na saúde, religioso e outros. Além de sua atuação em diferentes
ambientes as identidades dos TILSP são múltiplas, o que decorre da
existência de distintas práticas multiculturais por estes profissionais.
Contudo, mediante a busca pelo protagonismo e por garantias de
valorização e respeito a este profissional, este texto, que é um recorte de
uma pesquisa maior, tece sua argumentação com o objetivo de discutir
a respeito das identidades socias das Tradutoras e Intérpretes de Libras
negras através de sua atuação no ambiente profissional na perspectiva
de gênero e raça.

739
2. Referencial Teórico
2.1 Representações e Identidades sociais – Um olhar sobre as
Tradutoras e Intérpretes de Libras/Língua Portuguesa negras
Quando pensamos sobre as identidades de maneira geral, ao ingres-
sar em uma organização, sujeitos com características diversas se unem
para atuar dentro de um mesmo sistema sociocultural na busca de obje-
tivos determinados. Essa união provoca um compartilhamento de cren-
ças, valores, hábitos, entre outros, que irão orientar suas ações dentro
de um contexto preexistente, definindo assim as suas identidades. Para
Hall (2003) as identidades se constroem sobre as hibridizações, “as na-
ções modernas são todas híbridos culturais” (HALL, 2003, p. 62), não
existindo mais culturas narrativas e identidades lineares. Assim, cada
sujeito possui sua identidade, suas significações, particularidades e indi-
vidualidades que são únicas, sendo necessário que se entenda o contexto
em que o sujeito está inserido para conseguir compreender como sua
identidade se forma.
A identidade é compreendida como culturalmente formada, um
posicionamento e não uma essência, ligada à discussão das identidades
culturais, nacionais e as que se formam por sentidos cambiantes e con-
tínuos do cotidiano do sujeito (HALL, 1996). Portanto, a identidade
cultural são as particularidades que um indivíduo ou grupo atribui a si
pelo fato de sentir-se pertencente a uma cultura específica.
Homi Bhabha (1998) apresenta a discussão da identidade sob a
abordagem filosófica como autorreflexão; e a visão antropológica da
diferença da identidade humana enquanto a divisão natureza/cultura.
O autor reflete e indaga sobre a identidade como um problema
ocupante de um espaço-tempo contemporâneo, marcado pelo constan-
te movimento, pela não-fixidez (signo da diferença cultural, histórica,
racial no discurso do colonialismo), o qual, antes, era estático e segu-
ro. Bhabha (1998) questiona como se dá a construção de identidades
que não atendam à estratégia discursiva estereotipada da fixidez - um
discurso do sujeito colonial que facilita as relações coloniais, o qual

740
fundamenta a identidade sob a perspectiva do estereótipo e da mímica
como estratégia de conhecimento e identificação do que é “conhecido”,
do que é socialmente “aceito” e está “no lugar” (p.107).
As identidades estão em constante construção e reformulação atra-
vés da interação social. Hall (2006) aborda que essas identidades po-
dem ser contraditórias, conflituosas e que isso faz parte do sujeito pós
moderno: ou seja, seria utópico acreditar em uma identidade plena e
completa. Assim, é nítido que os processos identitários vem sofrendo
mudanças com o passar dos anos e com a mudança social.
E essas mudanças têm acontecido nas questões de classe, gênero, et-
nia, raça e nacionalidade e têm feito com que o indivíduo tenha incerte-
zas em relação a sua identidade e em relação a si mesmo (HALL, 2006).
Em relação aos Tradutores e Intérpretes de Língua de Sinais/Língua
Portuguesa - TILSP sua função é fazer a tradução e interpretação do
par linguístico Libras/Português e vice-versa. Estes atuam em diferentes
áreas como: saúde, justiça, educação, política, meios de comunicação,
congressos, bancos, e locais que necessitam da presença desse profis-
sional. É função do TILSP garantir a acessibilidade dos indivíduos
Surdos, através das modalidades de tradução, interpretação sussurrada,
simultânea ou consecutiva. Os TILSP precisam ter o domínio da língua
alvo e da língua fonte para traduzir e interpretar, além de ter os conhe-
cimentos de técnicas, modalidades e estratégias de tradução e interpre-
tação, e estar em contato com a história, a comunidade e cultura Surda.
O surgimento dessa profissão vem atrelado à história dos sujeitos
Surdos, após o reconhecimento da Libras como língua oficial desta co-
munidade. O trabalho do Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais/
Língua Portuguesa torna-se um direito alcançado a partir da reivindica-
ção dos Surdos, sendo que este profissional é visto como relevante e de
grande importância para a referida comunidade.
A formação da identidade é um processo que está atrelado a di-
versas nuances e que influencia e é influenciado também por muitas
subjetividades. No caso da identidade do TILSP a situação não é dife-
rente: a formação desta identidade também perpassa muitas vivências

741
e experiências comuns a todos os sujeitos e outras próprias do contexto
de atuação. De modo geral, as profissões surgem, estabelecem-se e se
modificam a partir das alterações sociais e políticas de cada época. É a
partir de demandas sociais que tais se estabelecem num contexto social.
O profissional TILSP está sempre exposto, pois ele assume sua pos-
tura frente ao público. A partir dessa exposição do TILSP surge discus-
sões que voltam-se para questões relacionadas a corporeidade, gênero,
raça e identidade. Uma questão que podemos evidenciar diz respeito
a corporeidade do TILSP, pois, no ambiente de trabalho, os aspectos
relacionados a neutralidade e imparcialidade estão presentes na função
desenvolvida por este profissional e na Lei nº 12.319 que regulamenta
essa profissão aborda sobre esses dois aspectos.
Outro documento importante desse profissional é o Código de éti-
ca, onde no Art. 5º descreve o seguinte: “5º. O intérprete deve adotar
uma conduta adequada de se vestir, sem adereços, mantendo a digni-
dade da profissão e não chamando atenção indevida sobre si mesmo,
durante o exercício da função” (BRASIL, 1992).
Assim, tanto a Lei quanto o Código de Ética expõem sobre o cor-
po do profissional TILSP, como forma de mantê-lo discreto, neutro e
anônimo. Sabemos que esses documentos são publicados como uma
norma de conduta que são adequadas aos ambientes que o profissional
frequenta e também por causa do exercício profissional. Porém, deve-
mos refletir sobre o que é imposto e o que não é.
Visto que, nesses documentos podemos perceber que o corpo
do TILSP, dando ênfase nesse trabalho as Tradutoras e Intérpretes de
Libras/Língua Portuguesa negras, é regulado e impedido de expressar
sua identidade, através de seus cabelos afros, suas tranças, suas roupas
e adereços característicos a sua identidade social e cultural impossibili-
tado de performatizar, pois a padronização e a neutralidade que é im-
posta pela sociedade, reflete em todos os ambientes, principalmente nos
profissionais.
Nenhum código de ética ou regimento pode infringir o direito uni-
versal de praticar sua identidade cultural, identidade social ou étnica.

742
Ao mesmo tempo que fala que nosso corpo precisa de regras, ou seja,
precisa ser invisível, esse corpo sofre o racismo, em vários níveis, como
por exemplo, no momento em que não é permitido ter meu cabelo
afro e é preciso estar neutro com relação a aparência, quando não posso
utilizar de meus adereços que para o código de ética desvia a atenção de
quem está recebendo a interpretação. Assim, devemos pensar quais os
limites que interferem ou não no momento da interpretação.
Hall (2003) aborda que os EUA sempre tiveram a construção das
etnicidades através de hierarquias étnicas que definem as políticas cul-
turais. As etnicidades dentro de um descolamento de políticas culturais,
foi silenciado e não teve seu reconhecimento, esteve sempre à margem
das tradições vernáculas da cultura popular negra americana. O que
é preciso ocorrer é o descentramento das antigas hierarquias, abrindo
espaços para a mudança na alta cultura das relações culturais populares,
dando oportunidades estratégicas para a intervenção na cultura popular.
O autor discute que devemos indagar sobre o silêncio do pós-mo-
dernismo e questionar as formas de pensar, do olhar que ao mesmo
tempo que convida também rejeita. A padronização existe e é imposta
a partir dos seus códigos de ética, mas, e os profissionais que querem
fugir dessa padronização, desse adestramento, fugir do que Hall chama
de mainstream.
É um invólucro que impede que as estratégias culturais façam a
diferença, que tudo é igual ao que sempre foi, não tem diferença. E é
isto que vemos nos códigos de ética e nos ambientes profissionais as
regras são impostas, impedindo que nos manifestemos através da nossa
cultura e identidade, e cai na mesmice de um padrão. Assim, o corpo é
visto como um adestramento, não sendo permitido mostrar-se da for-
ma que é, excluindo o seu protagonismo, para tornar todos padrão de
um mesmo modelo.
Conforme Hall (2003) a cultura popular tem se tornado a forma
dominante da cultura global, é onde a cultura penetra nos circuitos de
poder, sendo um espaço de homogeneização com estereótipos e fórmu-
las, espaços que controlam suas narrativas, experiências e representações.

743
A padronização está aí nos circuitos de poder ou nas culturas de poder,
nos códigos de ética que enraízam os invólucros, que impedem de de-
senvolver as estratégias culturais, a cultura negra, as identidades sociais,
experiências, as transgressões que fazem a diferença travando uma ba-
talha cultural.
Não importa quantas batalhas culturais existirem, o que impor-
ta são as formas dos negros, as tradições e comunidades negras serem
representadas na cultura popular, mostrando suas representatividades,
experiências, expressividades, suas narrativas e seus discursos (HALL,
2003).
Para Oyěwùmí (2002) a sociedade é constituída por corpos que
são, “corpos masculinos, corpos femininos, corpos judaicos, corpos
arianos, corpos negros, corpos brancos, corpos ricos, corpos pobres”
(p. 2). A autora utiliza a palavra “corpo” sob dois vieses: a primeira em
relação a biologia e, a segunda, chamando a atenção para o físico e as
metáforas do corpo. Oy wùmí discute ainda que quando olhamos o
corpo podemos inferir as crenças e as posições sociais de uma pessoa ou
a falta delas.
O corpo como ato cultural, demonstra como ele é regulado e per-
formatizado, é através desse corpo negro sendo exposto, ele é alvo de
racismo devido sua roupa, seu cabelo afro e black, seu jeito, sua raça,
assim, a normalização e a padronização é imposta, como forma de ades-
tramento. Corpo este que está sempre em julgamento, discriminado,
recebendo olhar de diferença.

A diferenciação dos corpos humanos em termos de sexo, cor da


pele e tamanho do crânio é um testemunho dos poderes atribu-
ídos ao “ver”. O olhar é um convite para diferenciar. Diferentes
abordagens para compreender a realidade, então, sugerem diferen-
ças epistemológicas entre as sociedades (OYĚWÙMÍ, 2002, p. 3).

Dentro do espaço de atuação das TILSP negras o seu corpo é o ins-


trumento que demonstra suas subjetividades. É através de sua perfor-
mance e da sua corporeidade que as produções são geradas na tradução e

744
interpretação do par linguístico Libras/Português ou Português/Libras.
Seu movimento corporal demonstra suas potencialidades e performan-
ces utilizando seu corpo como instrumento de resistência, através da
sua cultura.
O repertório das TILSP negras demonstra seu corpo como mobi-
lizador de resistências e barreiras sociais que são promotoras de lingua-
gens e das discursividades. Demonstra sua performance em língua de
sinais através do corpo, apresentando sua construção social, sua iden-
tidade e sua corporeidade. Apresenta também uma potência comuni-
cacional que revela a pluralidade social e difunde sua identidade. Esta
performance tem uma raiz histórica, através da história dos Surdos e da
cultura negra.
Pinto (2002) define muito bem sobre o sujeito de fala em relação
ao ato de fala e a ação do corpo, “O sujeito de fala é aquele que produz
um ato corporalmente; o ato de fala exige o corpo. O agir no ato de fala
é o agir do corpo, e definir esse agir é justamente discutir a relação do
ato de fala cujo efeito é uma ameaça” (PINTO, 2002, p. 105).
O corpo negro tem o direito de ser vivido dentro da sua profissão,
e não na ideia de normas, de adestrar esse corpo para se tornar padrão.
O corpo negro afirma a existência e denuncia a exclusão que vive todos
os dias, o racismo. “Se os corpos aparecem, eles são articulados como o
lado degradado da natureza humana” (OY WÙMÍ, 2002, p. 4).
Ao falarmos do corpo das Tradutoras e Intérpretes de Libras negras,
devemos levar em consideração não só a questão de raça, mas também
questões de gênero, pois, essa regulação, padronização e neutralização
dos corpos é um impedimento de raça e de gênero. Dessa forma, o corpo
feminino é o mais impedido e regulado. Pelo fato do uso de adereços, de
sua roupa que condiz com sua identidade, sua cultura e seu cabelo afro.
Quando uma mulher monocromática é impedida de colocar suas
tranças, de usar o cabelo black, um brinco afro, uma roupa mais colo-
rida que faça parte de sua cultura e sua identidade, ela tem seu corpo
cerceado. Assim, o corpo feminino sofre o racismo, a exclusão, além de
tudo pode sofrer assédio.

745
Para Oyěwùmí (2002) a “ausência do corpo” mostra que mulheres,
povos primitivos, judeus, africanos, pobres foram qualificados com o
rótulo de diferente e foram considerados corporalizados e dominados,
ou seja, essa questão é uma pré-condição do pensamento racional. “Elas
são o Outro e o Outro é um corpo” (p. 4).
A diferenciação de gênero vem atrelada à história e a constituição
da diferença na prática e no pensamento social europeus. Ou seja, na
história da corporificação de categorias sociais os cidadãos aceitaram os
status que lhe eram impostos, seja qual for. As mulheres sempre foram
excluídas. [...] “as mulheres eram, por assim dizer, feitas de madeira e,
portanto, nem sequer eram consideradas” (OYĚWÙMÍ, 2002, p. 8).
Conforme o pensamento europeu as mulheres eram vistas como corpo-
rificadas e os homens eram as mentes pensantes, ou seja, o homem da
razão, a mulher era vista apenas o corpo.
O corpo é colocado como a causa das diferenças e das hierarquias
na sociedade, sendo, este corpo exposto, julgado, colocado e discrimi-
nado. O corpo é centrado na construção de categorias sociais. Assim, a
discussão de gênero sempre foi considerada radical, na cultura em que
a diferença de gênero sempre foi vista como natural. Portanto, gênero
como construção social é a principal temática em discursos feministas
(OYĚWÙMÍ, 2002).
A concepção de gênero é uma construção social que demonstra
outras culturas e as categorias de masculino e feminino se modificam
em diferentes culturas. As relações de gêneros estão vinculadas histori-
camente e culturalmente.
Dessa forma, as organizações da estrutura social mostram que a
corporeidade está relacionada com a construção de identidade e que
envolvem questões de gênero e raça. A cultura ocidental e a hierarquia
sociais ocidentais é privilegiada e legitima quem sabe e quem não.
Conforme Hall (2003, p.345) “o significado “negro” é arrancado
de seu encaixe histórico, cultural e político, e é alojado em uma cate-
goria racial biologicamente constituída pela inversão, a própria base do
racismo que estamos tentando desconstruir”.

746
A identidade social é regulada pelo controle social, que prende o
indivíduo numa identidade que garante uma política social que é apro-
priada às ideologias dominantes. Esse controle carrega os elementos
de uma “universalidade”, que é sempre essencialista que é excludente.
Assim, “As categorias de identidade nunca são meramente descritivas,
mas sempre normativas e, como tal, exclusivistas” (BUTLER, 1998,
p. 36) apud. (PINTO, 2002, p. 108). Assim, as identidades do mo-
delo tradicional normatizam os sujeitos, os controlam pela exclusão e
pré-definição, comportamentos linguísticos e sociais (PINTO, 2002).
O sujeito marca sua identidade através da sua ação performativa, e os
efeitos dos atos marcam seu quadro de comportamento da (fala, escrita,
vestimentas, alimentação, cultos, elos parentais etc).
Portanto, nos atos de fala a identidade é performativa e tem como
elemento fundamental a linguagem que garante o “nós” e o “eu”, pos-
sibilitando a estabilidade interna às identidades produzindo o efeito da
naturalidade externa.

3. Metodologia
Dessa forma, trazemos as vozes das Tradutoras e Intérpretes de
Libras, onde propomos uma pergunta geradora para que elas pudessem
relatar suas experiências. Introduzimos a seguinte questão: “O que o ra-
cismo tem impactado no seu ambiente de trabalho como Tradutora
e Intérprete de Libras negra?”. As TILS tiveram o tempo livre para
que pudessem discorrer sobre o contexto em que estão inseridas.
Durante as narrativas das TILS em suas falas surgiram diferentes
temáticas tais como, corporeidade, ética profissional, posicionamento
político, gênero, sexismo, relações de poder, estética, neutralidade, per-
formatividade, racismo, assédio e outros. Porém, como critério analíti-
co para a nossa pesquisa, nos interessa nessa discussão os assuntos que
foram mais recorrentes nas vozes das TILSP. Dessa forma, elencamos 3
temas que foram recorrentes no momento das narrativas, são eles: 1 –
Estética; 2 – Racismo; 3 – Assédio/Gênero.

747
A partir dos critérios analíticos as discussões das narrativas foram
feitas a partir das 3 temáticas elencadas, porém, outros temas surgem
nas discussões para complementar as falas das TILSP.
Portanto, a pesquisa justifica-se pela importância de estudos vol-
tados a linguagem, identidades sociais e raça no desenvolvimento, na
difusão e do uso da Libras. Além disso, evidenciar sobre a Tradutoras e
Intérprete de Libras/Língua Portuguesa a partir de sua identidade étni-
co racial e sua atuação no ambiente profissional.

4. Análise dos dados


4.1 As narrativas das TILSP numa perspectiva de estética, racismo
e assédio
Nas entrevistas das TILSP uma das temáticas mais recorrentes foi
relacionada ao corpo e a estética, que se relaciona às vestimentas, cabe-
lo, cor da roupa e outros elementos que compõem suas características
identitárias. Muitas vezes observamos uma postura e olhares que são
preconceituosos e que levam a uma atitude racista, mas na maioria das
vezes acontece de forma maquiada ou não explícita. A partir disso, re-
fletimos sobre o lugar da neutralidade em encontro com a profissão, ou
seja, como se manter neutro perante situações de racismo, de precon-
ceito ou mesmo de assédio.
Para compor a discussão apresentamos alguns excertos das narra-
tivas das TILSP, que relata sobre o código de ética dos Tradutores e
Intérpretes de Libras/Língua Portuguesa.

748
QUADRO 1 – REGRA OU PRECONCEITO?

Tereza de Benguela - Então, é como você falou a respeito da roupa, pois, já tive várias
“dicas” de pessoas falando assim: Ah, as vezes fica melhor você usar um tom de blusa mais
claro para ficar melhor no vídeo, por exemplo. Eu não levei isso como uma questão de
preconceito, mas, isso envolve a cor da minha pele.
- Então, vamos dizer assim, que a pessoa me deu uma “dica”, e eu achei Ok. Nós temos
que fazer o melhor possível para enquadrar bem para ter uma boa imagem, mas, que-
rendo ou não, isso está relacionado também a cor da minha pele. Então, eu acho que o
tom de roupa que combina ou não, também tem relação com isso, neh.
- E, também tem a questão do cabelo, pois quando temos o cabelo crespo, temos que
fazer o máximo possível para ficar bem preso. Para não chamar a atenção. E, você falou
também do uso de brinco, acessórios, essas coisas, também. Algumas pessoas falam que
não pode unha pintada. A minha sempre está pintada.
- [...] Acho que é um preconceito sim, quando, por exemplo, não é uma regra, mas, falam
assim: Ah, é intérprete de Libras, a maioria usa roupa preta. E, não é uma regra usar
roupa preta. Por exemplo, eu sempre usei preto. Mas, quando uma pessoa chega e fala
que o preto é bom, mas, que às vezes eu poderia usar um tom de roupa mais claro para
ficar melhor...
Fonte: Dados da pesquisa (2021).

No comentário de Tereza de Benguela verificamos que mesmo não


levando isso como um preconceito e falando que o comentário dito por
outra pessoa, envolve a cor de sua pele, é sim uma forma de preconcei-
to. Pois, o tom da pele não diz qual tom de roupa eu uso ou que posso
usar. Outra questão é sobre o cabelo, que como forma de estética e
segundo o que a sociedade impõe deve estar bem arrumado, amarrado,
e isso exclui todas as formas de cabelos Black, tranças e cabelos afros. O
cabelo afro é símbolo de resistência e de luta na construção das identi-
dades negras.
Conforme King (2015, p. 8) “os cabelos são considerados em diver-
sas culturas como elementos marcantes da construção da beleza femini-
na”, fornecendo informações sobre as características de cada indivíduo.
Conforme a autora:

Definido por muitos como “a moldura do rosto”, o cabelo


pode dar informações sobre as origens, pertencimentos a gru-
pos sociais e hábitos de uma pessoa, aproximando ou afastando

749
indivíduos enquanto elementos de identidade corporal. Eles
possuem uma grande capacidade de expressão simbólica, vincu-
lados a um contexto sociocultural (KING, 2015, p.8).

Nessa questão o cabelo mostra a nossa origem, nossos hábitos e cos-


tumes, nossas subjetividades que nos levam a compreensão das identi-
dades negras em nossa sociedade. Ao abordar sobre essa estética voltan-
do-se às vestimentas das TILSP, onde relatam sobre a cor de roupa preta
que foi “convencionada” para esses profissionais, nos questionamos, até
onde isso é uma regra e quando foi convencionado? Assim, as questões
de conduta que demonstram essa neutralidade das TILSP parecem estar
impregnadas nesse contexto, e aí, tomamos aquilo como verdade abso-
luta para nós e às propagamos.
Contudo, é preciso destacar que, não importa quantas batalhas
culturais existirem, o que importa são as formas que as TILSP trazem
suas tradições e sua representação na cultura popular mostrando suas
representatividades, experiências, expressividades, suas narrativas e seus
discursos. Que tragam à tona as modalidades mistas e contraditórias
da cultura popular mainstream, que são outras formas de vida, outras
tradições.
Nos tempos de hoje são evidentes os casos de preconceito e ra-
cismo, principalmente os que são publicizados na mídia. As práticas
discriminatórias no Brasil pautadas no racismo ainda estão presentes na
sociedade. Porém, alguns casos não são divulgados ou mesmo não são
percebidos.
Nas falas das TILSP o racismo aparece de forma mais escondida,
ou seja, não explicitamente, mas na forma de comentários e de olhares
de estranhamentos, ou seja, o racismo não aberto, silencioso, é o que
Kabengele Munanga designa como “racismo manhoso”. Diante dessa
questão podemos destacar algumas falas:

750
QUADRO 2 – O IMPACTO DO RACISMO NO AMBIENTE PROFISSIONAL

Dandara dos Palmares - O racismo ele impacta e impactou minha atuação como
intérprete de uma forma mais silenciosa, de uma forma velada. No primeiro momento,
o intérprete é um profissional que está à frente.

- E aí, a gente é muito exposto, então, não tem como esconder a nossa cor, a nossa etnia.

- E aí, o primeiro impacto que eu percebi quando comecei a atuar como intérprete numa
instituição de ensino superior foi o estranhamento que as pessoas têm, o olhar que as
pessoas te mostram. Então, a sua presença às vezes gera um estranhamento, neh. Tipo: -
Quem é essa aí que está no palco?

- Porque muitas vezes a gente interpreta em palco. Então, eu percebi olhares de


estranhamento.

Fonte: Dados da pesquisa (2021).

Primeiramente, Dandara aborda sobre os olhares de estranhamen-


to que recebeu ao estar em destaque como profissional Tradutora e
Intérprete de Libras. E sobre esta questão podemos trazer a discussão de
Oyěwùmí (2002) a respeito da profundidade do corpo nas sociedades
ocidentais modernas.
O corpo como ato cultural, demonstra como ele é regulado e per-
formatizado. Podemos observar que o corpo do TILS está sempre a
vista, exposto e é alvo de racismo, devido sua roupa, seu cabelo afro e
Black, seu jeito, sua raça, e para que este profissional não fuja do pa-
drão, da normalização, é imposto o código de ética, adestrando o seu
corpo negro. Corpo este que está sempre em julgamento, discriminado,
recebendo olhares de estranhamento. Dentro do espaço de atuação das
TILSP o corpo é o instrumento que demonstra suas subjetividades. É
através de sua performance e da sua corporeidade que as produções são
geradas na tradução e interpretação do par linguístico Libras/Português
ou Português/Libras. Seu movimento corporal demonstra suas poten-
cialidades corporais e performances utilizando seu corpo como instru-
mento de resistência, através de sua cultura. Apresenta também uma
potência comunicacional que revela a pluralidade social e difunde sua
identidade, e a performance que tem uma raiz histórica.

751
Na fala de Dandara o racismo impactou sua atuação como TILSP
de forma velada, ou seja, o racismo sofrido foi de forma silenciosa. E
essa questão relaciona-se a atitudes que são implícitas, mas que caracte-
rizam um tipo de discriminação.
Segundo Nilma Lino Gomes (2005), até hoje “o racismo ainda é
insistentemente negado no discurso brasileiro, mas se mantém presente
nos sistemas de valores que regem o comportamento da nossa socieda-
de, expressando-se através das mais diversas práticas sociais” (p. 148).
Outra questão que aparece nas narrativas das TILSP são as relações
de gênero, que exercem uma grande influência no modo como esse
fenômeno atinge as mulheres nos ambientes de trabalho e os reflexos
ultrapassam esse âmbito. É preciso entender também que as relações de
gênero impactam as relações de trabalho. Pois, na construção social his-
toricamente, os papéis de gênero atribuíram à mulher um papel inferior
ao do homem.
É importante destacarmos sobre as relações de gênero, uma vez
que, esse corpo feminino muitas vezes é colocado como acessível sem
uma permissão explícita. Pensando na questão de, como é ser mulher
nessa cultura ocidental que nos coloca na inferioridade como alvo de
violência e assédio.
Ao falarmos do corpo das TILSP negras, devemos levar em con-
sideração não só a questão de raça, mas também questões de gênero,
porque, é um impedimento de raça e de gênero. Pois, o corpo feminino
é o mais impedido de usar seus adereços, uma roupa que condiz com
sua identidade, seu cabelo afro e com tranças e também é o que mais
sofre assédio.
Quando uma mulher monocromática é impedida de colocar suas
tranças, seu cabelo Black, um brinco afro, uma roupa mais colorida que
faça parte de suas culturas e suas identidades, ela tem seu corpo cercea-
do. Assim, o corpo feminino sofre o racismo, a exclusão, além de tudo
pode sofrer assédio.
Podemos destacar algumas narrativas das TILSP que abordam so-
bre essas questões.

752
QUADRO 3 – CORPOREIDADE E GÊNERO

Tereza de Benguela - E pensando mais.... Com relação ao gênero, eu já senti mais. No


trabalho atual tem alguns professores que não dirigem a palavra a mim, se dirige para o
companheiro intérprete do sexo masculino.
- Isso que eu sinto. Por ser mulher e o intérprete homem, e às vezes também quando tem
algum vídeo para ser gravado, o professor envia diretamente para o intérprete homem,
não passa por mim. E, também às vezes em sala de aula, faz alguma pergunta, mas,
dirige para o intérprete. Então, eu acho que tem um preconceito sim de gênero mesmo.
- Diretamente, assim olhares eu nunca percebi. Mas, já teve uma situação, por exem-
plo, foi em uma aula na área de humanas, em que o professor estava falando sobre essa
temática, sobre etnia, cultura... Aí o professor usou a imagem de uma mulher e de um
homem, para falar que as pessoas são vistas como menos do que os outros, por ter a pele
negra e por ter o cabelo crespo. Então, ele usou-me como exemplo. E eu estava interpre-
tando no momento dessa aula. E, eu senti que ele estava falando de mim. Por que meu
cabelo é cacheado, minha pele é negra, ele me utilizou como exemplo. Então, acredito
que isso pode ser um preconceito.

Fonte: Dados da pesquisa (2021).

Diante da fala de Tereza podemos corroborar essa discussão a partir


do que Oyěwùmí (2002) aborda sobre os corpos masculinos e femini-
nos, ou seja, a separação desses corpos em relação ao físico e as metáfo-
ras do corpo, que quando olhamos o corpo podemos inferir as crenças
e as posições sociais de uma pessoa ou a falta delas.
Outra questão apresentada pela Tereza diz respeito ao corpo, em
que muitas vezes são usados como exemplos, sem a nossa permissão,
colocando-os como disponíveis e amostra. Assim, o corpo é colocado
como a causa das diferenças e das hierarquias na sociedade, sendo, este
corpo exposto, julgado, colocado e discriminado. O corpo é centrado
na construção de categorias sociais. Assim, a discussão de gênero sem-
pre foi considerada radical, na cultura em que a diferença de gênero
sempre foi vista como natural. Portanto, gênero como construção social
é a principal temática em discursos feministas (OYĚWÙMÍ, 2002).
Assim, percebemos que as ideias ocidentais são impostas pela so-
ciedade que emergem de uma tradição sócio histórica e filosófica espe-
cífica, ou seja, são categorias sociais não ocidentais que são assimiladas

753
pela estrutura de gênero, pois, a cultura ocidental usa a biologia para
estruturar o mundo social e exclui a possibilidade de mais de dois gê-
neros, ou seja, o dimorfismo sexual é percebido pelo corpo humano é
projetado no domínio social (OYĚWÙMÍ, 2002).

3. Considerações
A partir da discussão sobre cultura e identidades sociais, concebemos
as narrativas das TILS negras, onde foi importante percebermos suas fa-
las a respeito do racismo que sofreram ou sofrem dentro do ambiente de
trabalho. As discussões voltaram-se para os critérios analíticos de temas
que foram recorrentes em suas falas, assim, tivemos a oportunidade de
discutir sobre a estética, ou seja, a neutralidade das TILSP negras, que
mostram sobre suas vestimentas, seus cabelos afros, seus adereços e seus
corpos, e também abordamos sobre a corporeidade e o assédio na pers-
pectiva de gênero. Dentro desses três critérios de análise podemos perce-
ber que em se tratando de impacto, as mulheres são as mais impactadas,
são as que mais sofrem assédio e preconceito, são as que mais têm seus
corpos expostos cerceados pela padronização da sociedade.
As identidades das TILSP negras são performativas, onde sua ne-
gritude, sua cultura impacta diretamente na atuação profissional. O ra-
cismo, as questões sobre a estética e o assédio na perspectiva de gênero
interferem na performance no âmbito profissional, pelo fato de muitas
vezes a discriminação e o preconceito vir de forma velada e silenciosa.
Essa discussão mostra que se o corpo é um ato cultural, ele não deve
ser regulado, como demonstra nos códigos de ética. Esse corpo deve
mostrar sua essência, sua identidade e ser um corpo de luta e resistência.

4. Referências
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana L. de L.
Reis, Gláucia R. Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

BRASIL. Lei n. 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de


Sinais– LIBRAS e dá outras providências. Disponível em: http://WWW.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/2002/L10436.htm. Acesso em: março de 2021.

754
BRASIL. Decreto – Lei n. 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a lei
n. 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais –
LIBRAS, e o art. 4 do decreto n. 5.626 de dez.2005. Disponível em: http://WWW.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato 2004/2005”/Decreto/D5626htm Acesso em: março de
2021.

BRASIL. Lei n. 12.319, de 1º de setembro de 2010. Regulamenta a profissão do


Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais – Libras. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12319.htm Acesso em: mar-
ço de 2021.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações
raciais no Brasil: uma breve discussão. In: BRASIL. Educação Anti-racista: caminhos
abertos pela Lei nº 10.639/03. Brasília, MEC, Secretaria de educação continuada e
alfabetização e diversidade, pp: 39-62, 2005.

HALL, S. A Identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A,


2006.

HALL, S. Identidade Cultural diáspora. In: Revista do Patrimônio Histórico e


Artístico Nacional. Rio de Janeiro, IPHAN, 1996, p. 68-75.

HALL, S. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG/


Brasília, 2003.

KING, Ananda Melo. Os cabelos como fruto do que brota de nossas cabeças.
Geledés Instituto da Mulher Negra, 2015. Disponível em: https://www.geledes.org.
br/os-cabelos-como-fruto- do-quebrota-de-nossas-cabecas/Acesso em: 19 de junho de
2021.

MAGNANI, José G. Cantor. “Vai ter música? para uma antropologia das festas juninas
de surdos na cidade de São Paulo. Revista Eletrônica do Núcleo de Antropologia
Urbana da USP – Ponto Urbe. Ano 1, versão 1, 2007.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. Visualizing the Body: Western Theories and African Subjects
in: COETZEE, Peter H.; ROUX, Abraham P.J. (eds). The African Philosophy
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PINTO, Joana Plaza. Performatividade Radical: Ato de fala ou Ato do Corpo?Niterói,


v.3, n.1, p. 101-110, 2. Sem. 2002. Disponível em: https://periodicos.uff.br/revistage-
nero/article/view/31046 Acesso em: janeiro de 2021.

755
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

LEITURA E ESCRITA NA CULTURA


ACADÊMICA: AS EXPERIÊNCIAS DO
PROJETO EXTENSIONISTA LPT ACADÊMICO

Luanne Beatriz Fialho de Carvalho (LPT/CTF/UFPI)


Guilherme Reis de Souza Silva Ferreira(LPT/CTF/UFPI)
José Ribamar Lopes Batista Júnior(LPT/CTF/UFPI)

RESUMO: Os estudos de letramentos acadêmicos se desenvolveram no


contexto universitário, em razão das dificuldades de leitura e escrita das(os)
estudantes que chegam às universidades. No entanto, compreendendo que
as práticas de letramentos acadêmicos não circundam somente no ensino
superior e podem ser vivenciadas também na educação básica, apresentamos
as ações realizadas e em andamento do projeto de extensão LPT Acadêmico do
Laboratório de Leitura e Produção Textual(LPT/CNPq) do Colégio Técnico de
Floriano (CTF/UFPI). Considerando o contexto digital, o objetivo é analisar
e relatar essas práticas extensionistas que objetivam auxiliar especialmente
estudantes do ensino médio/técnico, bem como aqueles(as) que, ao ingressarem
no ensino superior, enfrentam dificuldades no que condiz à leitura e à escrita
acadêmica. As ações descritas neste trabalho são: a) cursos de longa duração
- carga horária mínima de 80h e com a finalidade de aprimorar e ampliar
o envolvimento no meio científico, por intermédio do desenvolvimento de
habilidades e competências; b) cursos de curta duração - com carga horária
de 2h; c) eventos sobre letramentos acadêmicos e metodologia científica. Para
isso, este trabalho se caracteriza como relato de experiência, cuja abordagem é
de natureza qualitativa. Para fundamentação quanto ao tema do letramento,
dos gêneros acadêmicos e das tecnologias digitais, apoiamo-nos, sobretudo,
em Vieira e Faraco (2019, 2020, 2021, 2022), Motta-Roth (2010), Lea e
Street (1998), Fischer (2010). Os resultados demonstraram que as ações
extensionistas do LPT Acadêmico, portanto, promovem a consolidação do
processo de ensino e de aprendizagem nos cursos e eventos on-line, à medida
que usufrui de diferentes recursos didáticos por meio das tecnologias digitais.
Em síntese, assumindo a perspectiva de transformação, o projeto demonstra
que estratégias e ações voltadas para a leitura, a escrita e o conhecimento dos
gêneros acadêmicos são essenciais para diminuir as dificuldades, ampliar e
aprimorar habilidades comunicativas na cultura acadêmica.

756
PALAVRAS-CHAVE: letramento acadêmico; gêneros acadêmicos; extensão

ABSTRACT: University teaching studies, due to university teaching studies


due to the teaching and teaching difficulties of students who arrive at schools
and teaching(s). However, we developed that higher education laboratory
education practices and not only surround the higher education project
experienced, as actions executed and in progress LPT Acad of Basic Reading
and Textual Production (LPT/CNPq) of Colégio Técnico de Floriano ( CTF/
UFPI). The objective is to study the digital context, the objective is studied and
related to practical extensionist practices that aim to help especially teaching/
technical students, as well as those who study who, when entering higher
education, have difficulties in what is consistent with academic writing. The
expansion actions and work capacity are: a) long-term courses - minimum
workload of 80 hours to improve and develop development in the scientific
environment, through the scientific environment, through skills; b) short-term
courses - with a workload of 2 hours; c) events on letters, studies and scientific
methodology. For this, this work is characterized as an experience report,
whose approach is qualitative in nature. For reasoning about literacy, of the
genres, we support and themes of the genre, we rely, above all, on Vieira and
Faraco (2019, 2020, 2021,2022), Motta-Roth (2010), Lea and Street (1998),
Fischer (2010). The resources that make practical teaching possible and the
Acad teaching extension processes, promote the formation of the teaching and
learning process in online media, as different teaching resources are developed
online. In variation, expansion and specialization in optimization, the project
of modification of the transformation perspective and the knowledge of the
methods of improvement, expansion and improvement of communicative
skills in the academic culture.
KEYWORDS: academic literacy; academic genre; extension

1. Introdução
Considerando que muitos estudantes que ingressam no ensino
superior encontram dificuldades no domínio da leitura e escrita, que
são práticas de extrema importância para a participação ativa e cons-
ciente dentro da sociedade, o termo Letramento Acadêmico surgiu nas
discussões das universidades. Nessa situação, as instituições sentiram a
necessidade de apresentar aos seus estudantes novas práticas de leitura e

757
escrita, indo além do básico, buscando que eles compreendam os gêne-
ros acadêmicos, trazendo-os ainda para as suas realidades.

A leitura, de um lado, nos fornece recursos para ampliarmos


nosso conhecimento. Sem esse repertório sempre em expansão,
estaríamos muito limitados quanto ao modo de interpretar o
mundo e os acontecimentos e, portanto, teríamos pouco a dizer
por escrito. De outro lado, a leitura nos fornece exemplos das
práticas correntes de escrita. Em contato com textos escritos de
variados gêneros, vamos percebendo como se costuma escrever
uma notícia, uma reportagem, um relatório, um artigo científi-
co, uma tese acadêmica, um artigo de opinião, uma resenha, um
poema, uma crônica e assim por diante (FARACO; VIEIRA,
2019, p. 39-40).

Baseando-se nesse ponto, o Laboratório de Leitura e Produção


Textual (LPT/CNPq) do Colégio Técnico de Floriano (CTF), vinculado
à Universidade Federal do Piauí (UFPI), realiza ações e projetos sobre le-
tramento acadêmico com objetivo de que os/as participantes aprimorem
a leitura e escrita no contexto acadêmico. Além disso, o projeto também
auxilia na formação cidadã, ao protagonizar atividades que envolvam
maneiras de ser, falar, ouvir, agir, interagir, sentir, usando recursos, ferra-
mentas e tecnologias que tragam relevância para suas vidas. Importante
ressaltar que essas práticas não deveriam permear somente o ensino supe-
rior, mas que também podem ser vivenciadas na educação básica,
Por isto posto, este artigo tem a finalidade de mostrar as ações ex-
tensionistas do projeto LPT Acadêmico, relatando as experiências reali-
zadas e em andamento. Será descrito neste trabalho, os cursos de longa
duração, os cursos de curta duração e eventos sobre letramentos acadê-
micos e metodologia científica. Assim, o presente artigo está dividido
em seis seções, incluindo essa primeira, logo em seguida serão mostra-
das as referências teóricas utilizadas como embasamento. Em seguida,
a metodologia aplicada. A quarta seção, decorrerá sobre as ações de
extensão do projeto LPT Acadêmico. Por fim, salientamos os resultados
obtidos em todos os anos de execução das atividades.

758
2. Referencial teórico
De acordo com os estudos de Lea e Street (1998) sobre as aborda-
gens de letramento da escrita no ensino superior, listam-se três princi-
pais quanto aos estudos desses alunos nos eventos e práticas de letra-
mento universitários, que são os modelos de: habilidades, socialização
acadêmica e letramento acadêmico. O primeiro compreende a capaci-
dade individual cognitiva, onde o aluno é responsável pela sua própria
adaptação no cenário universitário. O segundo modelo tem relação
com a acolhida do professor, em busca da introdução do estudante na
cultura da academia. E o terceiro diz respeito ao conjunto das práticas
sociais realizadas nesse universo.
Norteando-se por essa pesquisa, Adriana Fischer e Nilcéa Lemos
Pelandré opinam:

…é nos eventos de letramento acadêmico que os alunos vão


construindo os seus saberes acadêmicos/científicos e, para além
disso, também os posicionamentos ideológicos, significados
culturais e estruturas de poder que, em conjunto, constituem o
modo cultural de usar os textos. Em consequência, esses eventos
são responsáveis por integrarem e participarem da construção
do letramento acadêmico. Assim, nesse processo de constru-
ção, são geradas as condições para a aquisição dos “padrões” do
Discurso dominante da instituição. (FISCHER; PELANDRÉ,
2010, p. 572).

Por essa ótica, é enfatizado a crença no surgimento do pensamen-


to crítico como propósito da execução de ler e escrever na academia.
Quando os/as estudantes passam a participar de atividades que deman-
dam responsabilidade, independência, autoconfiança, e que geram a
discussão de ideias e, acima de tudo, a criação de textos ou outros gêne-
ros que envolvam o protagonismo estudantil, estaremos no contexto do
letramento acadêmico.
É impossível falar do letramento acadêmico, sem citar o uso das
Tecnologias Digitais da Comunicação e Informação (TDCI), que

759
engloba a cultura digital. Não é de agora que o uso das tecnologias digi-
tais em sala é considerada fundamental, sua aplicação é encarada como
uma brecha para cooperação e autonomia na aprendizagem, e permite
que o estudante seja protagonista.

Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação


e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética
nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se co-
municar, acessar e disseminar informações, produzir conheci-
mentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na
vida pessoal e coletiva. (BNCC, 2018)

Essa é uma das dez competências gerais a serem desenvolvidas nas


escolas, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Têm de desfrutar da cultura digital na educação, implementando as me-
todologias ativas como apoio e promovendo a democratização ao acesso
às tecnologias. Aproveitando-se dos recursos digitais, é possível realizar
a produção de conteúdos digitais e midiáticos ou multimidiáticos.
Assim, tendo em vista a relevância do letramento acadêmico e da
sociedade tecnológica em que nos encontramos, o LPT Acadêmico em-
prega essas ferramentas para a promoção do ensino-aprendizagem da
escrita acadêmica, de modo dinâmico e atrativo para seus participantes.

3. Metodologia
Dentre as atividades do Laboratório de Leitura e Produção Textual
(LPT/CNPq) do Colégio Técnico de Floriano (CTF/UFPI), desta-
camos neste trabalho o projeto de extensão LPT Acadêmico que tem
como propósito, dentre tantos, aprimorar as práticas de leitura e escrita
dos discentes da sua instituição, bem como da comunidade externo.
Para isso, são reunidas práticas educacionais focalizadas para pesquisas e
destrezas que cooperam para/com a sociedade. Na atuação ativa dessas
atividades, o LPT procura manter estudantes como operantes, alguns
como bolsistas, outros voluntários e colaboradores e também ouvintes
desses exercícios.

760
Figura 1: slogan do projeto de extensão do LPT Acadêmico.

Fonte: Acervo LPT.

O LPT Acadêmico é um projeto extensionista cujo maior desígnio


é propor cursos de longa e curta duração, workshops, seminários,pales-
tras, entre outros dinamismos interativos e benéficos. Sua maior inten-
ção é atenuar os obstáculos encontrados pelos estudantes nas diversas
culturas disciplinares da esfera acadêmica, especialmente no contexto
do ensino superior.

4. Resultados e discussão
Neste dado momento do artigo, serão apresentadas algumas das
ações oferecidas pelo LPT Acadêmico. Abordaremos os cursos de longa
duração - carga horária mínima de 80h e com a finalidade de aprimorar
e ampliar o envolvimento no meio científico, por intermédio do desen-
volvimento de habilidades e competências; os cursos de curta duração
- com carga horária de 2h; e os eventos sobre letramentos acadêmicos e
metodologia científica.
Os Cursos de Longa Duração estão ligados à precariedade no ensi-
no, às diferentes classes e às realidades sociais que são um grande desafio
para o público que irá ingressar na universidade ou que já estão. Nessa
perspectiva, o LPT desenvolve projetos de pesquisa e extensão voltados
tanto para o Ensino Médio como para o Ensino Superior. O primeiro
é intitulado Leitura e Escrita Para Jovens (que já está na sua quarta edi-
ção), são oferecidas 60 (sessenta) vagas, sendo 30 (trinta) exclusivas para
o público UFPI, e o segundo é o Ler e Escrever na Universidade: intro-
dução aos gêneros acadêmicos (que encontra-se na sua oitava edição),
oferece 80 (oitenta) vagas, com a metade garantida ao público interno.

761
Suas cargas horárias são, respectivamente, 80h (oitenta horas) e 160h
(cento e sessenta horas). Vale ressaltar que o acompanhamento dos cur-
sos é feito por colaboradores e bolsistas do LPT Acadêmico.

Figuras 2 e 3: cartazes de divulgação dos cursos de longa duração.

Fonte: Acervo LPT.

Esses cursos objetivam preparar para a entrada e permanência na


graduação ajudando na construção de gêneros acadêmicos tais como re-
sumo, resenha, seminário, pôster e relatório, além de conhecer as espe-
cificidades da escrita acadêmica e as normas ABNT. É pré-requisito ter
uma conta no Telegram, conhecimento básico de informática, e-mail
próprio no gmail, e principalmente acesso à internet. Ademais, devem
dispor de 4h (quatro horas) semanais para estudar e 1h (uma hora) para
encontros online via Google Meet. A plataforma usada nos cursos é o
Google Classroom e para ganhar a certificação é preciso no mínimo
haver 75% das atividades realizadas, contendo o trabalho final, por fim,
o certificado é entregue em não mais que 60 (sessenta) dias.
Sobre os Cursos de Curta Duração, são atividades desempenhadas
com foco no esclarecer dúvidas, aprimorar conhecimentos e gerar de-
senvoltura quanto aos gêneros acadêmicos. Esses cursos são executados
a cada semestre, normalmente divididos em duas turmas, e em média
duram 2h (duas horas), ministrados principalmente por colaboradores
e bolsistas do projeto de extensão.

762
Figuras 4 e 5: cartazes de divulgação dos cursos de curta duração.

Fonte: Acervo LPT.

No primeiro semestre de 2022, ocorreram seis cursos, sendo eles:


Plataforma Brasil: submissão de projetos de pesquisa com seres huma-
nos ao comitê de ética em pesquisa; Explorando as mídias sociais acadê-
micas e os identificadores de autoria; Seleção de materiais teóricos para
a pesquisa acadêmica; “Onde você tirou essa citação?”: plágio na prática
acadêmica; Memorial acadêmico: um percurso para além do currículo;
O processo de mediação de leitura de livros ilustrados sem palavras
no ensino de LIBRAS no ambiente acadêmico e Normas da APA para
textos acadêmicos.

Figuras 6 e 7: imagens dos cursos de curta duração 2022.1.

Fonte: captura feita pelos autores.

763
Fonte: captura feita pelos autores.

Dessas ações executadas, o curso de Seleção de materiais teóricos


para a pesquisa acadêmica, por exemplo, almejava orientar a escolha dos
cursistas sobre o material a ser utilizado como base em suas pesquisas
científicas, o ministrante explicou sobre o processo de seleção e deu
exemplos de gêneros que poderiam usufruir. O curso de “Onde você
tirou essa citação?”: plágio na prática acadêmica, as bolsistas do LPT
Acadêmico propuseram conscientizar os cursistas quanto ao plágio na
academia, abordando as características e o as consequências de fazer uso
do mesmo.
Agora, no segundo semestre de 2022, acontecerá a sexta edição dos
Cursos de Curta Duração, nos meses de agosto, setembro e outubro. O
LPT Acadêmico oferecerá três ações: Normas Vancouver para artigos
acadêmicos; A leitura acadêmica: como fazê-la de modo produtivo?;
Como elaborar fichamentos?. Os cartazes (figuras 8 a 10) dos eventos
são colocados antecipadamente no site do LPT Acadêmico.

764
Figuras 8 a 10: cartazes de divulgação dos cursos de curta duração.

Fonte: Acervo LPT.

Comentando sobre os eventos acadêmicos, foi realizada a segunda


edição da Laive Acadêmica - Ciclo de Palestras, no primeiro semestre
do ano de 2022, organizado por meio de palestras mensais (confor-
me imagem 10). Também ocorrerá a segunda edição do Seminário de
Letramento Acadêmico (SeLA), no segundo semestre de 2022, durante
o mês de novembro, com palestras, apresentação de trabalhos e mini-
cursos (conforme imagem 11). Os dois eventos acontecem no canal da
TV Radiotec no YouTube.

765
Figuras 11 e 12: imagens dos cursos de curta duração 2022.1.

Fonte: Acervo LPT.

Esses eventos tencionam fomentar discussões acerca do letramento


acadêmico e suas práticas, compreendendo sobre os gêneros cobrados
nas universidades e na aquisição de conhecimentos e habilidades nesse
meio científico. Integralmente, essas palestras são efetuadas por pro-
fissionais da educação convidados pela coordenação do projeto LPT
Acadêmico.

5. Conclusão
Na presente pesquisa, foram situadas atividades voltadas para a lei-
tura e escrita, realizadas pelo projeto extensionista LPT Acadêmico, tais
como os Cursos de Longa Duração, os Cursos de Curta Duração e os
eventos acadêmicos, que intencionam diminuir as dificuldades dos es-
tudantes universitários e proporcionar o crescimento e desenvolvimen-
to de conhecimentos e habilidades na esfera acadêmica.
Para isso, é perceptível as faces dos aspectos do letramento acadê-
mico, a importância da aplicação dos recursos das tecnologias digitais,
essenciais para a educação, pois democratiza o saber e torna-se impres-
cindível para o compartilhamento de vivências nesse âmbito.

766
Por conseguinte, os resultados dessas ações demonstram que o pro-
jeto extensionista LPT Acadêmico promove a consolidação no processo
de ensino-aprendizagem. Fazendo a utilização das práticas de leitura e
escrita, além do entendimento profundo dos gêneros acadêmicos pro-
postos no ensino superior, ampliando e melhorando ainda a comunica-
ção e habilidade de seus participantes na cultura acadêmica.

6. Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília,
2018.

FISCHER, A; PELANDRÉ, N. L. (2010). Letramento acadêmico e a construção de


sentido nas leituras de um gênero.

Laboratório de Leitura e Produção Textual, 2022. Disponível em: <https://labpro-


ducaotextual.com/>. Acesso em: 12 de ago, 2022.

LEA, Mary R.; STREET, Brian V. Student Writing in higher education: an acade-
mic literacies approach. In: Studies in Higher Education, 1998.

VIEIRA, F. E; FARACO, C. A. ESCREVER NA UNIVERSIDADE 1:Fundamentos.


São Paulo: Parábola, 2019a.

767
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

O ISF-INGLÊS E A INTERNACIONALIZAÇÃO
EM MEIO AO ENSINO REMOTO NA UFS

Lucas Natan Alves dos Santos (UFS/CNPq)


Rodrigo Belfort Gomes (UFS)

RESUMO: A internacionalização tem desempenhado um papel de


protagonismo no cenário do ensino superior, a ponto de já ser considerada
a quarta missão de uma universidade (SANTOS; REIS, 2020). Isso se
deve, principalmente, aos desencadeamentos da globalização, ocorridos a
partir das últimas décadas do século XX (MIGLIOLI, 1999). Em meio
a esses desencadeamentos, em 2020, a pandemia de Covid-19 trouxe para
esse cenário uma crise em que as ações voltadas ao ensino-aprendizagem e à
internacionalização foram deslocadas, sendo (re)pensadas com a virtualização
das atividades. Assim, este trabalho objetiva analisar as ações desenvolvidas
nos cursos de Inglês do Idiomas sem Fronteiras (IsF-Inglês) da UFS
durante o primeiro ano de pandemia, 2020, focando nos resultados obtidos
nesse período. O IsF foi escolhido para a pesquisa por ser um projeto que
trabalha em prol da internacionalização do ensino superior brasileiro, por
meio do ensino de línguas. Esta é uma pesquisa interpretativista de cunho
qualitativo e quantitativo, produzida a partir de levantamento e análise de
dados do IsF local, além da aplicação de questionários para a comunidade
acadêmica participante dos cursos durante o ano em questão. Apontam-se
como resultados, a constatação de que houve um aumento na quantidade
de turmas, quando comparado a 2019, já que ao invés de turmas de 32h
foram ofertadas turmas de 16h, levando a um maior número de inscrições.
Com a ampliação possibilitada pelo ensino remoto, alunos de diversos campi
puderam ser contemplados, mas, em contrapartida, em decorrência das
peculiaridades dessa modalidade, foi percebido um considerável número de
alunos desistentes. Cabe considerar a oferta de cursos virtuais do IsF-Inglês na
UFS como uma possibilidade de ampliar o número e as localidades de alunos
matriculados, além de ser um fomento para uma internacionalização virtual,
contudo são necessárias análises no que concerne à necessidade de adaptação
dos alunos ao ensino remoto.
PALAVRAS-CHAVE: Idiomas sem Fronteiras; Internacionalização; Ensino
remoto.

768
ABSTRACT: The internationalization has played a leading role in the
scenario of higher education, being considered the fourth mission of a
university (SANTOS; REIS, 2020), mainly due to the consequences of
the globalization process, which have been increasingly taking place since
the 20th century’s last decades (MIGLIOLI, 1999). In the midst of these
consequences, in 2020, the covid-19 brought to this scenario a crisis in which
the actions developed on the English courses within the scope of Languages
without Borders (LwB-English) were displaced, being (re)thought taking into
account the virtualization of the activities. Thus, this work aims to analyze
the actions developed by Languages without Borders’ English courses (LwB-
English) in the context of the Federal University of Sergipe (UFS) during
the pandemic’s first year, 2020, focusing on the obtained results during this
period. The LwB was chosen for this research owing to being a project that
supports the internationalization of Brazilian higher education by means of
language teaching. This is an interpretative research, with a quantitative and
qualitative approach, which had as instruments a survey and analyses of data
belonging to LwB at UFS, beyond the application of the questionnaires to the
English courses’ participants, in 2020. The findings show that there was an
increase in the number of classes when compared to 2019, because, instead of
the 32-hour classes, 16-hour ones were offered, giving rise to the number of
registrations. With the possibility of remote teaching, students from different
campi were reached, however, on the other hand, due to the peculiarities of
this modality, it was observed a considerable number of students who did
not conclude the courses. It is worth pointing out the offer of LwB-English
virtual courses at UFS as a possibility to expand the number and location of
students, in addition to being a promotion for a virtual expansion, however,
it is necessary to analyze other factors in relation to the students’ adaptation
to the remote teaching.
KEYWORDS: Languages without Borders; Internationalization; Remote
teaching.

Uma breve introdução à internacionalização


Inevitável e irreversível são dois vocábulos que definem a globali-
zação, segundo Ricento (2010), processo que tem causado transforma-
ções em nós, na(s) sociedade(s) e suas estruturas da(s) qual(is) fazemos
parte, e também no espaço-tempo. A partir das derradeiras décadas do

769
século passado, essas transformações vêm sendo fortalecidas e acelera-
das com a consolidação do neoliberalismo como a atual fase do sistema
capitalista, a ascensão dos Estados Unidos como potência hegemônica,
com o término da Segunda Guerra, e a revolução das tecnologias digi-
tais e da informação, a exemplo da internet, que possibilitaram tornar
a comunicação mais rápida ou mesmo instantânea (MIGLIOLI, 1999;
SOUSA SANTOS, 2020; SANTOS, 2001).
Nesse caminho, no ensino superior, outro processo está sendo dis-
seminado: estamos falando da internacionalização, que apesar de ser
confundida com a globalização, possui características paralelas, mas
distintas. A internacionalização é a resposta dada pelas universidades
à globalização (CALVO; ALONSO, 2020) e que tem como objetivo
integrar ao ensino superior “uma dimensão internacional, intercultural
ou global”, segundo as palavras de Knight (2004, p. 11 apud KNIGHT,
2020, p. 24).
Em um outro momento, a internacionalização do ensino supe-
rior apenas procurou aprimorar o desenvolvimento do tripé de missões
que caracteriza as universidades (a saber, ensino, pesquisa e extensão).
Contudo, nos últimos anos, esse processo tem adquirido muita relevân-
cia e transposto o ensino, a pesquisa e a extensão, passando a ser con-
siderada, por alguns autores, como a quarta missão (SANTOS; REIS,
2020). Nesse caminho, a internacionalização se materializa nesse nível
de ensino tendo como intermediário os programas de mobilidade acadê-
mica, redes internacionais de pesquisadores, acordos de cooperação as-
sinados entre instituições de nações diferentes, dentre outras atividades.
No Brasil, depreende-se esse processo por seu aspecto passivo
(LIMA; MARANHÃO, 2009), em virtude de sua adoção de teorias e
modelos que são característicos e provenientes do Norte global. Além
disso, os programas que favorecem com que as universidades se interna-
cionalizem são frequentemente propostos e mantidos pelo governo fe-
deral e suas agências de fomento, favorecendo, sobretudo, a mobilidade
acadêmica. Dessa maneira, em 2011, com a publicação do Decreto nº
7.642 (BRASIL, 2011), instituiu-se o Programa Ciência sem Fronteiras

770
(doravante CsF), o qual concedia bolsas a estudantes universitários para
que pudessem participar de mobilidade acadêmica em instituições de
países anglófonos, no primeiro momento.

O Idiomas sem Fronteiras: seus caminhos e desafios


Para internacionalizar uma universidade é necessário o conheci-
mento não somente do inglês, mas também de outros idiomas, além da
construção de uma política linguística (CALVO; ALONSO, 2020), pois
é através do contato com outras nações e seus diferentes idiomas que a
internacionalização se corporifica. Entretanto, não houve esse entendi-
mento no início do CsF, que, logo em seu processo de implementação,
enfrentou um contratempo: a falta de proficiência na língua inglesa
dos/as participantes que embarcaram para ter suas vivências de estudos
em um outro país. É nesse cenário que surge o Inglês sem Fronteiras
(IsF), em 2012, programa que teve como proposta dar apoio aos/às par-
ticipantes do CsF mediante cursos presenciais de Inglês nas instituições
de ensino superior (IES) e virtuais na plataforma MEO (My English
Online), além da aplicação de testes TOEFL ITP (BRASIL, 2012).
Com a publicação da Portaria Normativa nº 973/2014, o Inglês
sem Fronteiras deu lugar ao Idiomas sem Fronteiras. No Idiomas sem
Fronteiras, que herdou a mesma sigla, IsF, houve a adoção do pluri-
linguismo, abrindo espaço para outros idiomas em adição ao inglês:
espanhol, francês, português como língua estrangeira, italiano, alemão
e japonês (BRASIL, 2014). Também ampliou-se o público ao qual as
vagas eram destinadas: estudantes além daqueles/as que concorriam à
bolsa do CsF, professores/as e servidores/as administrativos/as das IES.
Posteriormente, no ano de 2016, o IsF passou por novas mudanças,
dessa vez amparadas na Portaria Normativa nº 30/2016, a qual regu-
lamentou como um dos objetivos do Programa a formação de profes-
sores de línguas e a propositura de construção de políticas linguísticas
(BRASIL, 2016).
Três anos mais tarde, o IsF enfrentou uma situação desafiadora.
Em meados de 2019, O Ministério da Educação decidiu se desvincular

771
do Programa, tendo como uma das postulações a ineficácia no cumpri-
mento dos objetivos (PALHARES, 2019), apesar do Programa já ter, à
época, aproximados 7 anos de atividades e o CsF, que o originou, ter
tido seu fim decretado em 2017. Diante da desistência do MEC em ser
o patrocinador do IsF, a Andifes, Associação Nacional dos Dirigentes
das Instituições Federais de Ensino Superior, procurou dar prossegui-
mento às atividades do Programa, regulamentando-o em sua Resolução
nº 01/2019 (BRASÍLIA, 2019), na qual é formalizada a Rede Andifes
de Idiomas sem Fronteiras (Rede Andifes IsF).
Após esse evento, no início de 2020, não apenas o IsF passa por um
(novo) momento de crise e de desafio com o surgimento da pandemia
de covid-19, mas todo o cenário educacional, o qual precisou adotar e
se adaptar ao ensino remoto emergencial para a continuidade de suas
atividades. Assim, este trabalho objetiva analisar as ações desenvolvidas
nos cursos de Inglês do Idiomas sem Fronteiras (IsF-Inglês) da UFS
durante o primeiro ano de pandemia, 2020, focando nos resultados
obtidos nesse período.
Na próxima seção, descrevemos os procedimentos metodológicos
para a construção deste trabalho e, na seção seguinte, propomos uma
discussão sobre os desafios e as possibilidades manifestados, apresentan-
do os resultados obtidos no IsF-Inglês a partir do contexto pandêmico.
E, por fim, finalizamos trazendo as considerações finais.

Metodologia
Este trabalho é resultante do projeto de iniciação científica “Idiomas
sem Fronteiras: internacionalização, formação de professores e desen-
volvimento linguístico” realizado no âmbito do Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da Universidade Federal de
Sergipe. O projeto foi apoiado com bolsa IC do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), órgão ao qual agra-
decemos pela contribuição; e foi materializado sob a orientação da Profª.
Drª. Elaine Maria Santos e do Prof. Dr. Rodrigo Belfort Gomes, coautor
deste trabalho, entre os meses de setembro de 2020 e agosto de 2021.

772
Em termos metodológicos, foi uma pesquisa interpretativista de
cunho quali-quantitativo. Para obtenção de dados, foi realizada uma
revisão de documentos e dados internos do IsF nacional e do Núcleo de
Línguas da UFS (NucLi-UFS), como também a aplicação de questioná-
rios à comunidade participante dos cursos de Inglês ofertados em 2020,
2019 e 2018. Contudo, neste trabalho, nossa concentração se dará ape-
nas no ano de 2020, em razão da crise pandêmica e suas consequên-
cias imprevistas. Os questionários foram elaborados com o suporte da
plataforma Google Forms e foram enviados fazendo-se uso dos e-mails
cadastrados pelos/as participantes no ato da matrícula no/s curso/s.
Os questionários contemplaram três seções. Na primeira, encon-
trava-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, TCLE, e se
o/a aluno/a concordasse com as disposições, prosseguiria para a seção
seguinte. Por sua vez, na segunda seção, havia questões para que o perfil
dos/as respondentes pudesse ser traçado, com a inclusão de informações
tais como idade e o tipo de vínculo com a universidade. E, finalmente,
na terceira seção, são encontradas 22 perguntas objetivas e subjetivas a
respeito da/s relação/ões mantidas entre a/o respondente e o IsF-Inglês.
Os números referentes à essa aplicação estão dispostos na tabela abaixo:

Tabela 1: dados da aplicação dos questionários

Ano dos cursos Número de questionários Número de questionários


ofertados enviados aos/às cursistas respondidos
2020 444 75
Fonte: elaborado pelos autores.

IsF-UFS em tempos pandêmicos: achados e discussões


Como dissertado anteriormente, o processo de globalização tem
causado transformações, sejam elas em nós, indivíduos, nas nossas pro-
duções materiais ou no espaço ao nosso redor. Além dessas transforma-
ções, a globalização provoca um estado de crise permanente no mundo
em que vivemos (SANTOS, 2001; SOUSA SANTOS, 2020), ser um/a

773
cidadã/o global, desse modo, é estar suscetível constantemente ao im-
previsto, ao inesperado, às crises sucessivas:

Este período e esta crise são diferentes daqueles do passado, por-


que os dados motores e os respectivos suportes, que constituem
fatores de mudança, não se instalam gradativamente como an-
tes, nem tampouco são o privilégio de alguns continentes e
países, como outrora. Tais fatores dão-se concomitantemente
e se realizam com muita força em toda a parte [...] O processo
da crise é permanente, o que temos são crises sucessivas. Na
verdade, trata-se de uma crise global, cuja evidência tanto se
faz por meio de fenômenos globais como de manifestações
particulares, neste ou naquele país, neste ou naquele momen-
to, mas para produzir o novo estágio de crise. (SANTOS, 2001,
p. 34-35, grifos nossos)

Uma das crises mais recentes a se estabelecer foi a pandemia de


covid-19/coronavírus que perdura até os dias de hoje, mas controlada,
devido à vacinação populacional. Entre o aparecimento dos primeiros
casos, em dezembro de 2019, e o início do ano de 2020, lidamos com
o desconhecido, porque as vias de transmissão, as ações profiláticas e os
tratamentos relacionados à doença ainda não haviam sido comprovados
pela ciência, que, àquela altura, estava produzindo pesquisas e trabalha-
va somente com hipóteses. Soffiati (2020, n.p.) aponta que “hoje, os
micro-organismos patogênicos viajam de avião” por causa dos desdo-
bramentos do processo de globalização, sendo apontados alguns pelo
autor, tais como o contato com a natureza, devido à combinação entre
os “costumes locais com [a] economia global”, as “grandes concentra-
ções humanas” e as “comunicações velozes”.
Com a crescente alta taxa de transmissão, em março de 2020, e
sabendo-se que o distanciamento social era a única forma de ameni-
zar ou evitar o contágio pela nova doença, foram necessárias mudanças
bruscas em todos os setores e níveis sociais. Na educação e, sobretudo,
na educação superior, os planejamentos precisaram ser repensados, as
aulas foram canceladas, as universidades fecharam seus portões, e coube

774
a seus agentes, professores/as e alunos/as, a resiliência e a adaptação,
pondo em prática os significados dicionarizados do termo crise. No
dicionário, a palavra crise tem, entre seus sentidos denotativos, o estado
de ruptura de uma normalidade, provocando com que tomemos uma
decisão ou nos recomponhamos a partir do desequilíbrio, da(s) incerte-
za(s) (MICHAELIS, 2022).
Nessa incerteza pandêmica, a UFS suspendeu as atividades presen-
136
ciais , e, com isso, passou a realizá-las na modalidade remota emergen-
cial. Os cursos de Inglês do Idiomas sem Fronteiras, então, passaram
a ser materializados por intermédio da plataforma de vídeo chamadas
Teams, a qual foi disponibilizada pela própria Universidade, em con-
sequência da parceria com a Microsoft. Nesse quesito, as tecnologias
digitais da informação e comunicação, abreviadas como TDICs, passa-
ram a ocupar um lugar de imprescindibilidade nas universidades que,
por seu turno, questionaram seus papéis e planos para a internaciona-
lização e, em especial, para o ensino-aprendizagem de línguas. Finardi
e Guimarães (2020) e Santos e Reis (2020) acrescentam que, com as
TDICs e a internacionalização virtual, abriram-se caminhos para ações
e diálogos que envolvem as instituições do Sul Global, assim como a
promoção da internacionalização em casa e o fortalecimento de ações
que já estavam em desenvolvimento.
Dentre essas ações, consideramos o IsF, que nesse novo ambiente
enfrentou os desafios no que diz respeito ao uso e à desenvoltura com
os equipamentos e com a própria plataforma Teams, mas também pro-
curou concretizar as possibilidades advindas. Uma dessas possibilidades
foi a continuação do processo de formação de professores, anterior-
mente conduzidos de forma presencial, mas que foi ajustado para o
formato remoto. Assim, da mesma forma que já vinha acontecendo,
os professores em formação continuavam a ler e fichar textos teóricos
e a discuti-los nas reuniões virtuais, que aconteciam às sextas à tarde.
136
A suspensão das atividades presenciais da Universidade Federal de Sergipe acon-
teceu em 16 de março de 2020 por meio de uma nota oficial do Gabinete do
Reitor, a qual pode ser acessada no endereço: https://www.ufs.br/conteudo/
64978-ufs-decide-pela-suspensao-das-atividades-academicas-presenciais.

775
Nessas reuniões, além das discussões mencionadas, eram discutidas as
dificuldades encontradas com o ensino remoto e os discentes recebiam
toda a orientação para a preparação dos materiais para as aulas. Esses
materiais eram apresentados para a coordenação e demais professores
em formação, e eram ajustados pelos coordenadores.
Uma segunda possibilidade decorrente desse período foi a partici-
pação nos cursos de alunos/as de outros campi da UFS, tendo em vista
que, desde a implantação do NucLi na UFS, em 2013, as atividades
do IsF estavam restritas ao campus São Cristóvão. Além disso, outra
possibilidade trazida com a virtualização das atividades foi o aumento
no número de ofertas de cursos quando comparado ao ano anterior,
2019. Em 2020, o IsF-Inglês ofertou mais cursos com carga horária de
16 horas, em vez de 32 horas, ocasião que elevou o índice de matrículas,
que ficou próxima ao número de vagas oferecidas:

Gráfico 1: número de matrículas

Fonte: elaborado pelos autores.

Gráfico 2: número de vagas disponíveis

Fonte: elaborado pelos autores.

776
É importante pontuar o caráter democrático que o IsF-Inglês pos-
sui, ao atingir, mesmo diante de suas dificuldades, cursos de graduação
e da pós-graduação de todas as áreas do conhecimento. Com os dados
obtidos com as respostas dos/as cursistas, foi possível identificar que
eles/as são majoritariamente alunos/as ativos da universidade (94,6%),
graduandos/as (82,7%), e que se encaixam na faixa etária de 18 e 30
anos (86,7%). Agora, quando indagados acerca do/s motivo/s que os/as
levaram a ingressar no Programa, houve muitas referências ao desenvol-
vimento da língua em questão e à gratuidade do IsF, como sinalizam os
seguintes respondentes137:

Porque vi nos cursos IsF uma ótima oportunidade de aprender


inglês. As aulas ocorriam na UFS, então eu aproveitava os horá-
rios entre um turno e outro, as aulas eram muito bem planeja-
das e contextualizadas, havia um nivelamento antes, as turmas
tinham capacidade limitada de estudantes, era gratuito e ain-
da concedia certificado. Sempre ouvi falar muito bem do IsF,
e também por isso, me senti encorajada a participar. (Bárbara)

Principalmente pela credibilidade do ensino e ser oferecido de


forma gratuita. (Bruna)

Para aprender mais, desenvolver minhas habilidades linguísticas


e me ajudar com as leituras em inglês do meu curso que eu não
entendia. (Maria)

Buscando aprender mais sobre a língua inglesa, bem como no-


vas experiências na universidade e pelas horas complementares.
(Adnanref )

Podemos, aqui, perceber, pelas menções dos/as respondentes ao de-


senvolvimento linguístico oferecido pelo IsF, que o Programa cumpre
seu/s objetivo/s, o que contraria os argumentos trazidos pela gestão do
MEC, em 2019. Dorigon (2016) postula que embora as políticas ins-
titucionalizadas, a exemplo do IsF, partam de agentes e/ou instituições

137
Os nomes adotados nesta pesquisa foram de caráter ficcional com a finalidade de
preservar a identidade dos/as respondentes.

777
superiores, os agentes da prática, nesse caso professores/as e alunos/as,
(re)significam e (re)formulam essas políticas nos cargos e funções que
desempenham e nas brechas que encontram. Ainda, quando indagou-se
acerca da contribuição dos cursos para a formação acadêmica e vida
pessoal dos/as cursistas, pode-se perceber que as pontuações foram além
do desenvolvimento do inglês:

Gráfico 3: contribuições do IsF-Inglês

Fonte: elaborado pelos autores.

Por último, é inevitável considerar que embora o ensino remoto e


a virtualização das atividades tenham trazido muitos benefícios, como
os pontuados acima, essas novas modalidades também trouxeram pon-
tos negativos com a sua adoção. Após a coleta de dados do número de
cursistas que não concluíram o curso, identificamos que o ano de 2020
obteve o maior índice entre os anos pesquisados, e se compararmos esse
resultado (gráfico 4) ao número de matrículas (gráfico 1), concluímos
que quase metade dos matriculados não chegou ao término do curso
que se propôs a estudar.

778
Gráfico 4: número de não concludentes

Fonte: elaborado pelos autores.

Infere-se que, apesar das possibilidades trazidas para os/as alunos/


as do IsF-Inglês, como também para a internacionalização do ensino
superior como um todo, o ensino remoto manteve e ampliou dificul-
dades e disparidades socioeconômicas (STALLIVIERI, 2020). Há uma
constante dicotomia no mundo globalizado sobre a equiparidade de
acesso aos bens e importunos produzidos por esse fenômeno, no e pelo
qual a noção de cidadania precisa ser sempre questionada (SANTOS,
2001; STALLIVIERI, 2020). No ensino superior brasileiro, dada
a sua complexidade, apenas 11,78% das instituições são públicas e
70,2% de seus/as estudantes são oriundos/as de famílias de baixa ren-
da (STALLIVIERI, 2020; FINARDI; GUIMARÃES, 2020), condição
que permite que as dificuldades se tornem ainda mais tênues e fortale-
cidas no ensino remoto para esse grupo, provocando, por exemplo, o
crescimento de índices como o apresentado no gráfico 4.
Em uma das perguntas subjetivas do questionário, os/as respon-
dentes puderam trazer seus pontos de vista quanto aos desafios e pontos
negativos, mas principalmente as possibilidades e oportunidades refe-
rentes ao ensino remoto, a partir de suas experiências no IsF-Inglês:

Um dos aspectos é que com a câmera eu me sentia mais à von-


tade[,] então falava mais[,] enquanto se perde [...] a ideia de
estar juntos, mas[,] ainda [as]sim[,] prefiro presencial devido
[às] vantagens como apresentações, as discussões em trios ou
duplas[,] assim como [outras] atividades. (Toledo)

Adorei a possibilidade das aulas remotas, dá maior estímulo no


processo de aprendizagem. (Cassiane)

779
Negativos: é a interação entre nós alunos; Positivos: as aulas fi-
cam bem mais dinâmicas. (Paraíba)

O aspecto positivo foi o fácil acesso e poder consultar vídeos e


textos simultaneamente, como aspecto negativo era a internet
caindo e travando. (Laura)

O remoto torna mais fácil a frequência, mas inibe um pouco na


hora de falar. (Larissa)

Faz-se interessante observar que todos esses/as respondentes sinali-


zaram os aspectos negativos e positivos de suas experiências, sendo elas
singulares. Por exemplo, enquanto Larissa pontuou a sua dificuldade
nas práticas de oralidade nas aulas virtuais, Toledo ponderou sobre
sua disposição em participar dessas mesmas práticas, justamente por
estar atrás de uma câmera. Laura, por seu turno, trouxe uma questão
relevante, a qualidade de acesso através da internet: tendo em vista que
a maior parte da comunidade acadêmica das universidades federais vêm
de classes menos favorecidas (STALLIVIERI, 2020), a possibilidade de
contratar um serviço de internet e adquirir equipamentos de qualidade
se torna quase nula, fato que corrobora para a discussão sobre acesso
“às revoluções” advindas com o processo de globalização (SANTOS,
2001). Há um consenso entre as respostas apresentadas: a oportunida-
de de acessar as aulas de qualquer lugar e manter a frequência. Como
vimos, a globalização vem promovendo uma transformação no modo
em que percebemos e vivemos o espaço-tempo, o que se comprova na
virtualização das atividades de ensino, mais especificamente nessas res-
postas dos/as participantes.

Considerações finais
A inevitabilidade e a irreversibilidade do processo de globalização
(RICENTO, 2010) provocam mudanças nos comportamentos das so-
ciedades e nas estruturas de suas instituições, desconsiderá-lo seria ne-
gar as crises permanentes, por exemplo, que nos trazem desafios, mas
também a capacidade de adaptação com as possibilidades oferecidas e/

780
ou encontradas (SANTOS, 2001; SOUSA SANTOS, 2020). A crise
mais recente a nos trazer a dicotomia da globalização foi a pandemia de
coronavírus, que, em 2020, fez com que as universidades fechassem os
portões de seus campi e virtualizassem suas atividades. Nesse sentido,
ao mesmo tempo que estudam esse processo e seus desdobramentos, as
universidades se inserem e respondem-no por meio da internacionali-
zação, processo que envolve desde a mobilidade acadêmica até acordos
de cooperação entre instituições de diversos países. Contudo, nenhuma
dessas ações se corporificaria se não houvesse o (re)conhecimento e o
ensino-aprendizagem de outras línguas.
Em nosso país, no cenário do ensino superior, a internacionali-
zação pode também ser intermediada pela Rede Andifes de Idiomas
sem Fronteiras, que, além de trabalhar com o incentivo a esse processo,
através do ensino-aprendizagem de línguas, contribui para a formação
inicial de professores/as. Na Universidade Federal de Sergipe, o NucLi
do IsF está presente desde 2013 e, em 2020, diante do/s desafio/s pro-
vocado/s pela pandemia, deu prosseguimento às suas ações na modali-
dade remota emergencial. Portanto, este trabalho teve como proposta
analisar esse período ímpar na história do Programa.
Como resultados alcançados, podemos constatar a possibilidade
de participação nos cursos de Inglês de alunos/as de diversos campi da
UFS, um aumento na quantidade de turmas, quando comparado ao
ano anterior, 2019, assim como um grande número de alunos/as que
não chegaram a concluir o curso. Em suma, o ensino remoto possibili-
tou uma abrangência maior dos cursos do IsF-Inglês, e, em um cenário
mais amplo, a promoção das trocas virtuais e de uma internacionaliza-
ção em casa e/ou uma internacionalização virtual, principalmente entre
os países do Sul Global (FINARDI; GUIMARÃES, 2020). Contudo,
os desafios e as impossibilidades também vieram juntos, uma vez que
as dificuldades tornaram-se ainda mais visíveis entre os grupos de clas-
ses econômicas menos favorecidas (STALLIVIERI, 2020; SANTOS,
2001). Inclui-se nesse contexto, ainda, a adaptação às diferentes facetas
que os tempos pandêmicos trouxeram.

781
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783
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

O LUGAR DAS PRÁTICAS LETRADAS DE


ARGUMENTAÇÃO NA BNCC: CONTRADIÇÕES
E POTENCIALIDADES

Luciano N. Vidon (GEBAKH/UFES)

RESUMO: Tendo em vista uma concepção interacional e discursiva de


argumentação, com base em Plantin (2002; 2008), Grácio (2011; 2016), e
Amossy (2018), entendida como prática social de linguagem, segundo Piris
(2020; 2021), atravessada pelas condições materialistas sociais e históricas de
produção discursiva, e uma visão dialógica e ideológica de linguagem e de sujeito,
com base em Bakhtin (2010; 2016), Volochinov (2013; 2017) e Medviédev
(2012), este trabalho pretende investigar as contradições e potencialidades de
ensino da argumentação identificadas na BNCC para o ensino médio. Para
isso, analisa descritores de habilidades do componente curricular de Língua
Portuguesa, dentro da área de Linguagens e suas Tecnologias, que possam
vislumbrar o desenvolvimento de capacidades argumentativas (AZEVEDO,
2013; 2016; 2019) em práticas letradas críticas e decoloniais (KLEIMAN,
2007; STREET, 2014; AZEVEDO; MOURA, 2021) que envolvam situações
de interação argumentativa, tais como assembleias de classe (Piris e Calhau,
2021), debates, artigos de opinião, resenhas críticas, etc. Duas noções,
particularmente, nos interessam problematizar neste momento: campos da
atuação social e gêneros do discurso. Com essas noções, a BNCC mobiliza
conceitos caros aos estudos bakhtinianos, o que nos convoca a avaliar o
alcance dessas noções no documento, de modo a contemplar um ensino de
argumentação em uma perspectiva, em relação à educação e à sociedade, ao
mesmo tempo crítica, com base em Freire (2005), e decolonial, com base em
Quijano (2005) e Mignolo (2020).
PALAVRAS-CHAVE: Letramento; argumentação; dialogismo; BNCC.

ABSTRACT: In view of an interactional and discursive conception of


argumentation, based on Plantin (2002; 2008), Grácio (2011; 2016), and
Amossy (2018), understood as a social practice of language, according to
Piris (2020; 2021) , crossed by social and historical materialist conditions
of discursive production, and a dialogical and ideological view of language
and subject, based on Bakhtin (2010; 2016), Volochinov (2013; 2017) and
Medvedev (2012), this work intends to investigate the contradictions and

784
potentialities of teaching argumentation identified in the BNCC for secondary
education. For this, it analyzes skills descriptors of the Portuguese Language
curriculum component, within the area of Languages and its Technologies,
which can envision the development of argumentative skills (AZEVEDO,
2013; 2016; 2019) in critical and decolonial literate practices (KLEIMAN,
2007; STREET, 2014; AZEVEDO; MOURA, 2021) that involve situations
of argumentative interaction, such as class assemblies (Piris and Calhau, 2021),
debates, opinion articles, critical reviews, etc. Two notions, in particular, are of
interest to us to problematize at this moment: fields of social action and genres
of discourse. With these notions, the BNCC mobilizes expensive concepts to
Bakhtinian studies, which invites us to evaluate the scope of these notions
in the document, in order to contemplate a teaching of argumentation in
a perspective, in relation to education and society, that is at the same time
critical, based on Freire (2005), and decolonial, based on Quijano (2005) and
Mignolo (2020).
KEYWORDS: Literacy; argumentation; dialogism; BNCC

1. Introdução
Este trabalho se encontra no horizonte epistemológico dos estudos
bakhtinianos, entendido, conforme Zandwais e Vidon (2019), como
um campo de saber interdisciplinar, marcado por uma formação he-
terogênea dos seus membros formadores138, e complexo, difícil de se
definir, tendo em vista encontrarmos, nesse campo, tanto bases mate-
rialistas histórico-dialéticas, quanto bases idealistas, segundo discutem
Brandist (2012) e Brandist e Lähteenmäki (2019).
Em diálogo com o campo dos estudos bakhtinianos, o trabalho
também se inscreve no campo dos estudos da argumentação139, particu-

138
Atualmente denominado Círculo de Bakhtin, foi um grupo de estudiosos rus-
sos, do início do século XX, formado por filósofos, como Mikhail Bakhtin e
Matvei Kagan, linguistas, como Valentin Volóchinov, críticos literários, como
Pavel Medviédev, musicistas, como Maria Iudina, entre outros intelectuais de
formações diversas.
139
Pistori (2013; 2019) e Nascimento (2018) também têm trabalhado nesta articu-
lação entre os estudos retóricos e argumentativos e os estudos bakhtinianos (sob
a perspectiva de uma análise dialógica do discurso).

785
larmente na linha de pesquisa em “Ensino da argumentação”, coorde-
nada por Eduardo Piris e Isabel Azevedo no âmbito do Elad (Grupo de
Estudos em Linguagem, Argumentação e Discurso), da Universidade
Estadual de Santa Cruz (UESC). A linha de trabalho que tem sido
desenvolvida pelos profs. Piris e Azevedo e por seus orientanda/os e
parceira/os do Elad procura integrar uma visão de argumentação como
prática social de linguagem a modelos de análise argumentativa, como
os de Toulmin (2006) e Plantin (2008), valendo-se, também, de fun-
damentos da nova retórica (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
1996) e da análise do discurso (AMOSSY, 2018).
É no interior desses campos inter/trans/indisciplinares, que dia-
logam, ainda, com o campo contemporâneo da Linguística Aplicada
(MOITA LOPES, 2006; PENYCOOK, 2006), que buscamos com-
preender o contexto dialógico de produção da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), o principal documento educacional brasileiro da
atualidade, a fim de refletir sobre as contradições e potencialidades de
ensino da argumentação identificadas na BNCC para o Ensino Médio,
analisando descritores de habilidades do componente curricular de
Língua Portuguesa, dentro da área de Linguagens e suas Tecnologias,
com foco nas noções de “campo da atuação social” e “gêneros do
discurso”.

2. BNCC em perspectiva histórica e ideológica


A Base Nacional Comum Curricular, documento político-peda-
gógico de caráter normativo, isto é, direcionador de discussões e (re)
elaborações de currículos para as redes de ensino públicas e privadas do
Brasil, é lastreada por uma série de outros documentos educacionais, em
um processo de dialogicidade e historicidade, que compreende peças
como os PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), e seus desdobra-
mentos, os PCNEM (Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio) e os PCN+, por exemplo, além da LDB (Lei de Diretrizes e

786
Bases da Educação) nº 9.394, de 1996 e da Constituição de 1988140.
Particularmente importante, nesta cadeia de enunciados do campo das
políticas públicas educacionais no Brasil, a BNCC tem uma relação for-
te com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), de 2010, como é
percebido em muitas passagens do texto. Segundo as DCN/2010, havia
a necessidade de “formulação de princípios para outra lógica curricular,
que considera a formação humana de sujeitos concretos, que vivem em
determinado meio ambiente, contexto histórico e sociocultural, com
suas condições físicas, emocionais e intelectuais” (BRASIL, 2013, p.
11). Essa lógica vai na direção do que Arroyo (1999) chama de lógica
social, que envolve o conjunto de educadores e setores mais amplos da
sociedade. A concepção de currículo, portanto, está atrelada à noção
de cultura como prática social (concepção materialista, com base em
Moreira e Candau, 2006 [apud Arroyo, 1999]).
Tem-se assim um diálogo entre enunciados concretos bastante im-
portante para os sentidos que se produziram e continuam sendo pro-
duzidos para o Ensino de Língua Portuguesa e a Educação Linguística
no Brasil (PIETRI, 2005; CAMPOS, 2016; VIDON, 2019a; 2019 b;
entre outros).
Vimos estudando o Ensino de Língua Portuguesa (ELP), na pers-
pectiva de uma compreensão dialógica, discutindo as propostas de
mudanças iniciadas nos anos de 1970, em especial a partir da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB) nº 5.692, de 1971. Este con-
texto é marcado pelo início do enfrentamento, no Brasil, pelas áreas de
linguística, literatura e educação, pelo menos, de questões e problemas
relacionados ao ELP. Obviamente isso irá significar um embate duro
com as tradições escolares, escolásticas, seculares, como o normativismo
na compreensão e no ensino de língua, a sobreposição da literatura a
outras formas de linguagem e uma visão geral de linguagem como re-
presentação e expressão do pensamento.
140
Para um aprofundamento nas discussões em torno da BNCC, em especial suas
relações com uma política capitalista neoliberal, indicamos as seguintes leituras:
Saviani, 2009 Libâneo, 2003; 2012; Shiroma et alii, 2001, Dambros e Mussio,
2014, Freitas (2017), Geraldi (2018), Alcântara e Stieg (2016).

787
Esse embate refratou e refrata até hoje nas discussões sobre esse
tema, inclusive no senso comum, muitas vezes legitimado pela mídia
jornalística e outras instâncias de poder. Não é raro se ouvir e se ler,
por exemplo, que a linguística teria piorado o ELP, por ser permissi-
va com os “erros” de português, não se ensinar mais gramática e os
clássicos da literatura, ter, enfim, provocado a centralidade do texto
na sala de aula (GERALDI, 1984) e, mais recentemente, dos gêneros
discursivos.
É neste contexto dialógico, nessa arena discursiva, que temos que
situar a BNCC.
Como acentua Szundy (2017), há um “interjogo ideológico” que
adentra essa arena, relacionando ideologias historicamente cristaliza-
das e ideologias do cotidiano, em processo de constituição e embate,
na maioria das vezes, com as constituídas. De um lado, por exemplo,
encontram-se concepções tecnicistas e psicologicistas de ensino e de
argumentação, e modelos autônomos de letramento (STREET, 2014;
KLEIMAN, 1995), que congregam visões subjetivo-idealistas dos es-
tudantes e objetivistas-abstratas de língua e linguagem141. De outro,
teorias linguístico-pedagógicas em processo de desenvolvimento e
consolidação, como a teoria dialógica dos gêneros discursivos, as di-
versas teorias dos novos letramentos e as também diversas análises do
discurso e teorias da argumentação (PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 1996; TOULMIN, 2006; PLANTIN, 2008; AMOSSY,
2018; entre outros), que afetam diretamente as questões relaciona-
das às possibilidades de ensino da língua e da argumentação, não
mais com base em um modelo autônomo, mas na perspectiva de
um modelo ideológico de letramento, conforme Kleiman (1995) e
Street (2014), dentro de uma visão crítica de educação e dialógica de
linguagem.
141
Volóchinov (2017) discute o que ele considera tendências predominantes na
filosofia e nas ciências da linguagem no final do século XIX e início do sécu-
lo XX, o subjetivismo idealista, que concebe a língua(gem) como expressão do
pensamento de um sujeito idealizado, e o objetivismo abstrato, que concebe a
língua(gem) como um sistema imanente de formas.

788
3. Argumentação na BNCC: processos cognitivos e situações
de interação
Uma concepção de argumentação enquanto prática social de lin-
guagem, conforme Piris (2020; 2021), eminentemente interativa e
atravessada pelas condições materialistas sociais e históricas de pro-
dução discursiva, conforme Plantin (2008), Grácio (2016) e Amossy
(2018), e visando o desenvolvimento de uma cultura da argumentação,
na perspectiva de Grácio (2022) e Zarefsky (2009), parece poder en-
contrar alguma brecha no texto da Base Nacional Comum Curricular.
Essa concepção, no entanto, não deixa de conviver com suas contradi-
ções, em especial os vieses tecnicistas e cognitivistas que, historicamen-
te, atravessam o ensino de língua portuguesa no Brasil (VIDON, 2018;
2019a; 2019b).
Podemos perceber o matiz cognitivista da Base na forma como as
habilidades estão estruturadas, de modo que nas suas proposições en-
contramos, acompanhado a análise de Vier e Araújo (2021), a seguinte
fórmula:

PROCESSO COGNTIVO+OBJETO DO CONHECIMENTO+CONTEXTO

Tomemos como exemplos os descritores de atividade a seguir, pre-


vistos para os três anos do Ensino Médio:

(EM13LP05) Analisar, em textos argumentativos, os posicio-


namentos assumidos, os movimentos argumentativos e os ar-
gumentos utilizados para sustentá-los, para avaliar sua força e
eficácia, e posicionar-se diante da questão discutida e/ou dos
argumentos utilizados, recorrendo aos mecanismos linguísticos
necessários. (BRASIL, 2018, p. 498)

(EM13LP44) Analisar, discutir, produzir e socializar, tendo


em vista temas e acontecimentos de interesse local ou global,
notícias, fotodenúncias, fotorreportagens, reportagens multi-
midiáticas, documentários, infográficos, podcasts noticiosos,
artigos de opinião, críticas da mídia, vlogs de opinião, textos

789
de apresentação e apreciação de produções culturais (resenhas,
ensaios etc.) e outros gêneros próprios das formas de expressão
das culturas juvenis (vlogs e podcasts culturais, gameplay etc.),
em várias mídias, vivenciando de forma significativa o papel
de repórter, analista, crítico, editorialista ou articulista, leitor,
vlogueiro e booktuber, entre outros. (BRASIL, 2018, p. 512)

(EM13LP37) Analisar os diferentes graus de parcialidade/im-


parcialidade (no limite, a não neutralidade) em textos noti-
ciosos, comparando relatos de diferentes fontes e analisando o
recorte feito de fatos/dados e os efeitos de sentido provocados
pelas escolhas realizadas pelo autor do texto, de forma a manter
uma atitude crítica diante dos textos jornalísticos e tornar-se
consciente das escolhas feitas como produtor. (BRASIL, 2018,
p. 511)

Consideramos, nessas habilidades, dialogando com Vier e Araújo


(2021), analisar, avaliar e se posicionar, em [1], analisar, discutir, produ-
zir e socializar, em [2], e analisar e comparar, em [3], os processos cog-
nitivos almejados, posicionamentos assumidos, movimentos argumentati-
vos, argumentos, mecanismos linguísticos, bem como força dos argumentos
utilizados, em [1], notícias, fotodenúncias, fotorreportagens, reportagens
multimidiáticas, documentários, infográficos, podcasts noticiosos, artigos de
opinião, críticas da mídia, vlogs de opinião, textos de apresentação e apre-
ciação de produções culturais (resenhas, ensaios etc.) e outros gêneros pró-
prios das formas de expressão das culturas juvenis (vlogs e podcasts culturais,
gameplay etc.), em [2], e graus de parcialidade/imparcialidade, recorte feito
de fatos/dados e os efeitos de sentido provocados pelas escolhas realizadas pelo
autor do texto , em [3], nos parecem ser os objetos de conhecimento, e,
por fim, textos argumentativos, em [1], temas e acontecimentos de interesse
local, retratados em mídias diversas, em [2], e textos argumentativos do
campo jornalístico midiático, em [3], os contextos.
Essa forma (fórmula) de estruturação das proposições de habilida-
des na BNCC, além de nem sempre deixar claros os limites entre esses
três elementos (processos cognitivos, objetos de conhecimento e con-
textos), nos coloca alguns dilemas-desafios: como conciliar os processos

790
cognitivos e as práticas sociais (letradas e multiletradas) de linguagem?
Como não reduzir os objetos de conhecimento, como movimentos de
argumentação, tipos de argumentos e uso de operadores discursivos de
coesão, a ferramentas que poderiam ser manipuladas, supostamente,
em quaisquer situações de interação? Como relacionar esses objetos
com contextos reais de interação? Como expandir os contextos de pro-
dução, de modo que as situações de interação sejam mais próximas da
realidade dos estudantes e dos gêneros vividos de forma concreta?
Trazendo esses dilemas-desafios para o campo da argumentação,
podemos perguntar: Em que contextos dialógicos são produzidos, por
exemplo, esses textos argumentativos? Em que campos ideológicos?
Quais os sujeitos que dialogam nesses campos e que realizam os tais
movimentos argumentativos? Em que condições de produção discursi-
va um argumento tem força ou não?
Para encaminhar respostas a essas perguntas, vamos nos centrar no
que, na estrutura enunciativa dos descritores de habilidades da BNCC,
se encontra como último elemento: o contexto. Em uma perspectiva
como a bakhtiniana, ele seria o ponto de partida de uma metodologia
dialógica de ensino de argumentação, que vai das condições de produ-
ção discursiva às formas da língua, passando pelos gêneros do discurso.
A compreensão bakhtiniana, portanto, vai dos gêneros em circulação, e
suas condições de produção discursiva (ideológica), para os enunciados
específicos (concretos) e, depois, para as formas estilístico-composicio-
nais particulares, ou seja, é uma análise do tipo “top-down”, em que im-
portam metodologicamente, segundo Sartori (2008), dados da situação
enunciativa e posicionamento autoral.
Tal método sociológico, ainda segundo Sartori (id.), pode ser divi-
dido em três etapas:
1) caracterização da esfera de produção e circulação do gênero: dimen-
são dos horizontes históricos, ideológicos e culturais, dos discursos cir-
culantes; a esfera de produção e circulação do gênero: análise das formas
e dos tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas
em que se realiza.

791
2) análise das três dimensões do gênero: forma composicional, tema
e estilo;
3) análise das formas da língua.
No quadro de formulações da BNCC, portanto, contexto é o
ponto de partida de uma metodologia de ensino dialógica, em que as
noções de campos da atuação social e gêneros do discurso poderão ser
mobilizadas. Com essas noções, a BNCC pode se constituir como um
limiar de possibilidades e propostas pedagógicas que venham a con-
templar o ensino de argumentação em uma perspectiva, em relação à
educação e à sociedade, ao mesmo tempo crítica, com base em Freire
(2005), e decolonial, com base em Quijano (2005) e Mignolo (2020).
Ao mesmo tempo, essas noções convivem, no documento, como já
dissemos e discutimos em Vidon (2020) e Rocha e Vidon (2021), com
um regime de competências e habilidades que norteia o documento, em
especial a partir de sua reconfiguração nas versões finais, notadamente
após o golpe jurídico-político-parlamentar contra a presidenta Dilma
Vanna Rousseff, em 2016.
Na BNCC do Ensino Médio, os “campos de atuação social” são to-
mados como eixos organizadores das atividades (práticas de linguagem)
propostas.

Para orientar uma abordagem integrada dessas linguagens [ver-


bais e não verbais] e de suas práticas, a área define que os cam-
pos de atuação social são um dos seus principais eixos organi-
zadores. Segundo essa opção, a área propõe que os estudantes
possam vivenciar experiências significativas com práticas de
linguagem em diferentes mídias (impressa, digital, analógica),
situadas em campos de atuação social diversos, vinculados com
o enriquecimento cultural próprio, as práticas cidadãs, o traba-
lho e a continuação dos estudos. Essas demandas exigem que
as escolas de Ensino Médio ampliem as situações nas quais os
jovens aprendam a tomar e sustentar decisões, fazer escolhas e
assumir posições conscientes e reflexivas, balizados pelos valores
da sociedade democrática e do estado de direito. Exigem ainda
possibilitar aos estudantes condições tanto para o adensamento

792
de seus conhecimentos, alcançando maior nível de teorização
e análise crítica, quanto para o exercício contínuo de práticas
discursivas em diversas linguagens. Essas práticas visam à par-
ticipação qualificada no mundo, por meio de argumentação,
formulação e avaliação de propostas e tomada de decisões orien-
tadas pela ética e o bem comum. (BRASIL, 2018, p. 477)

O que a BNCC chama de “campos de atuação social” pode ser


aproximado do que o Círculo de Bakhtin denomina “campos da ativi-
dade humana”, em “Os gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2016), ou,
denominação que mais nos interessa aqui, “campos da criação ideológi-
ca”, em “Marxismo e filosofia da linguagem” (VOLÓCHINOV, 2017).
Podemos dizer que são nesses campos, discursivo-ideológicos, que os
signos se constituem e circulam. Esses signos, no entanto, não circu-
lam aleatoriamente, mas em forma(s) de enunciados, concretamente
materializados, ou seja, na forma de gêneros do discurso. Uma palavra,
tomada isoladamente em um dado enunciado, é um signo ideológico,
assim como o é o símbolo da foice e do martelo, o crucifixo ou uma
estrela vermelha, todos, claro, inseridos em certo contexto. Mas uma
palavra, concretamente enunciada, sempre o será no interior de um
gênero do discurso e de um campo da atividade humana, isto é, da
criação ideológica, segundo a teoria bakhtiniana. A sua vida (da pala-
vra), dialógica e ideológica, depende dessa interação, dessa inscrição em
um gênero e, portanto, em um campo social. No interior desse campo
ocorrem as relações intersubjetivas entre os indivíduos, que, sem elas,
são como o personagem Kaspar Hauser, do filme “O enigma de Kaspar
Hauser”, de Werner Herzog, que, até ser inserido no meio social, vive
isolado, em uma torre, como um ser irracional. Kaspar não consegue,
sozinho, livrar a si mesmo de seu isolamento social, como um barão de
munnchausen que se livra de um lamaçal puxando os próprios cabelos.
Os campos de atuação social, como o próprio nome diz, reque-
rem interações sociais, relações dialógicas, portanto atos responsivos
e responsáveis (BAKHTIN, 2010). É preciso enveredar pelos mean-
dros das relações dialógicas nesses campos, que são, como dissemos,

793
político-ideológicos, envolvem instituições, coerções sócio-históricas e
institucionais, conforme Amossy (2018, p. 148), relações de poder (sta-
tus, papéis, posições, interesses, cf. PADILLA, DOUGLAS, LOPES
[2011]), tradições, crenças e representações sociais (valores [idem]).
Não são campos neutros, em que se exerce a linguagem a bel prazer,
em que se interage de forma tranquila, especialmente quando estamos
falando das práticas de argumentação.
A atuação na vida pública, por exemplo, como o próprio documen-
to aponta, requer uma atitude ética e política da escola, do professor e
do estudante, para que se trabalhem os parâmetros elencados para a or-
ganização e progressão curricular. No caso do Ensino Médio, um desses
parâmetros define a garantia de espaço, ao longo dos três anos, para que
os estudantes possam:

» organizar, participar e/ou intervir em situações de discussão e


debates;
» analisar histórico de candidatos (por meio de ferramentas e
plataformas de fiscalização/acompanhamento, entre outras pos-
sibilidades), programas políticos – identificação de prioridades
e intencionalidades (o que se pretende fazer/ implementar, por
que, para quê, como etc.), as consequências do que está sen-
do proposto, a forma de avaliar a eficácia e/ou o impacto das
propostas, contraste de dados, informações e propostas, valida-
de dos argumentos utilizados etc. – e/ou propaganda política
(identificação dos recursos linguísticos e semióticos utilizados e
os efeitos de sentido que podem provocar, avaliação da viabili-
dade e pertinência das propostas apresentadas, explicitando os
efeitos de persuasão próprios dos discursos políticos e publicitá-
rios, que podem se sobrepor a análises críticas);
» analisar e/ou propor itens de políticas públicas, leis, projetos
de leis, programas, projetos culturais e/ou de intervenção social,
sobretudo os que envolvem a juventude;
» produzir textos reivindicatórios, de reclamação, de denúncia
de desrespeito a direitos e de peças ou campanhas sociais, de-
pendendo do que for mais significativo, levando em conta de-
mandas locais e a articulação com o trabalho em outros campos

794
de atuação social e áreas do conhecimento. (BRASIL, 2018.p.
504)

Política aqui tem um sentido amplo, talvez próximo ao sentido da


Grécia antiga, ou seja, lugar de discussão dos problemas da polis, da
cidade. Política aqui tem a ver com os sentidos de cidadania que encon-
tramos na Constituição de 1988, na LDB de 1996 e nas DCN de 2010.

No cerne do campo de atuação na vida pública estão a amplia-


ção da participação em diferentes instâncias da vida pública, a
defesa dos direitos, o domínio básico de textos legais e a discus-
são e o debate de ideias, propostas e projetos. (BRASIL, 2018,
p. 494)

Em um ano de eleições majoritárias, como o que vivemos no mo-


mento da escrita deste texto, haveria muitas oportunidades para se cons-
truir os espaços discursivos sugeridos pela BNCC, como acompanha-
mento, nas diversas instâncias midiáticas, de debates entre candidatos,
leitura e discussão de programas de governo, propostas de candidatos,
entrevistas, falas espontâneas, análise de pesquisas de opinião, suas me-
todologias e interesses envolvidos, reflexão sobre o papel da mídia no
processo eleitoral, fóruns ou assembleias para se discutir e se deliberar
sobre os principais problemas que afetam diretamente os estudantes,
sua comunidade, o Brasil e o mundo, produção de documentos a se-
rem encaminhados aos candidatos e/ou a seus partidos, entre outras
possibilidades.
No entanto, em um contexto sócio-histórico, no caso específico do
Brasil, marcado por uma ascensão de um pensamento protofascista, que
se recusa a dialogar, a debater com o outro, com seus adversários, que
nega a ciência, a cultura, a educação e a pluralidade social (aqui incluí-
dos todos os seus aspectos, étnicos, sexuais, raciais, político-partidários,
etc.), e que, no campo da educação, tem no horizonte um projeto de
lei denominado “Escola sem partido”, garantir essa organização e par-
ticipação política dos estudantes em debates, procurando desenvolver,
conforme Azevedo (2013; 2016; 2019), capacidades argumentativas

795
dialogicamente sustentadas, exercer uma atividade de leitura profun-
damente crítica dos meios de comunicação, inclusive, senão principal-
mente, dos veiculados na internet, dos textos e discursos que circulam
nas redes sociais, construir espaços de produção discursiva que atendam
as comunidades escolares, sem a prática do colonialismo, é uma uto-
pia142 necessária, um inédito viável, como diria Paulo Freire.
Particularmente, na prática de produção de textos, o que se propõe
acima como práticas discursivas de argumentação (produção de textos
reivindicatórios, de reclamação, de denúncia, participação em debates,
conselhos deliberativos, etc.) tem o potencial de romper com a prática
colonialista de redação do texto dissertativo-argumentativo, já muito
discutida por nós e por outros pesquisadores143 e que, segundo Piris
(2020, p. 31), legitima “el régimen de exclusión de las mayorías tratadas
como minorías en el sistema educativo brasileño” e impossibilita o ensi-
no efetivo da argumentação no sentido de “tomar la palabra en la esfera
pública para presentar, justificar, sostener, rechazar y (re)evaluar posi-
ciones en situaciones de declarada disputa de sentidos, caracterizada por
el conflicto de perspectivas sobre una cuestión””. Essa prática escolás-
tica (BAKHTIN, 2013) e escolarizada de argumentação é claramente
orientada por uma visão dentro daquilo que Street (2014) denomina
“modelo autônomo de letramento”, já que concebe relações autônomas

142
Essa perspectiva utópica, segundo Grácio (2022), também pode ser encontrada
em Chaim Perelman, com seus ideais democráticos, civilizacionais, que valori-
zam os direitos humanos e o livre exame, e, também, em Zarefsky (2009), que
vislumbra uma cultura da argumentação, na qual o outro e sua alteridade (não
autoridade) sejam respeitados.
143
Vale lembrar que, historicamente, a argumentação, quando trabalhada pedago-
gicamente no Brasil, sempre o foi por um viés cognitivista. Mostramos isso em
Vidon (2018) com a análise de um manual de redação dos anos finais de 1970,
referência, ainda hoje, para o ensino de texto dissertativo-argumentativo. Nessa
perspectiva, e isso é encontrado também em livros didáticos, há a crença de que o
domínio das estruturas da língua, de um lado, e das estruturas do texto, de outro,
seriam suficientes para o desenvolvimento de uma capacidade (individual) de
argumentar e dissertar (ver, também, Grácio, 2016). Um formalismo tipológico
reduzia o trabalho de argumentação aos limites do texto, suprimindo o papel do
contexto e dos sujeitos envolvidos na argumentação.

796
entre o texto e seu contexto, entre o texto e seu autor, entre o autor e o
leitor, entre o sujeito do discurso e o tema etc.
Ao abrir o leque de opções de gêneros, tanto orais, quanto es-
critos, para a produção dos enunciados dos estudantes (e da comu-
nidade escolar como um todo), a BNCC desautonomiza a prática de
redação da “dissertação escolar”. Trabalhando com uma diversidade
de gêneros, tais como “discussão oral, debate, programa de governo,
programa político, lei, projeto de lei, estatuto, regimento, projeto de
intervenção social, carta aberta, carta de reclamação, abaixo-assinado,
petição on-line, requerimento, fala em assembleias e reuniões, edital,
proposta, ata, parecer, recurso administrativo, enquete, relatório etc.”
(BRASIL, 2018, p. 503), aponta para os educadores a possibilidade de
trabalhar pedagogicamente competências e capacidades argumentativas
dos educandos em contextos reais de comunicação, interagindo e
respondendo, ética e responsavelmente, a auditórios concretos e a
questões argumentativas vívidas. Azevedo (2013; 2016; 2019) defende
uma concepção de competência, e consequentemente de capacida-
de, que vá além da perspectiva meramente cognitivista, alinhada, por
exemplo a pressupostos da linguística chomskyana e/ou da psicologia
do desenvolvimento piagetiana. O alinhamento da autora se dá com
os trabalhos da psicologia sócio-interacionista de Vigotski, bem como
com a concepção dialógica do círculo de Bakhtin.
Para Azevedo (2013, p. 41),

a noção de competência é entendida (...) como a capacidade de


agir eficazmente em um determinado tipo de situação, que se
apoia em conhecimentos específicos, mas não se limita a eles.
Como acaba revelando a capacidade de gestão de situações coti-
dianas, requer ações concretas que integrem saber, poder, várias
habilidades e esquemas mentais de regulação. Em um processo
interativo, a dialogicidade contribui sobremaneira para o de-
senvolvimento de competências e das capacidades cognitivas,
socioafetivas e gestuais.

As situações de interação e de comunicação, assim, têm efeitos so-


bre o funcionamento da língua(gem). O sujeito é social e histórico, nas

797
perspectivas bakhtiniana e vigotskyana, antes mesmo de ser um sujeito
psicológico. Portanto, as ações, em especial as ações verbais, são também
sociais e históricas, dialógicas e ideológicas. Não se excluem o trabalho
mental do sujeito, sua atividade cognitiva. Porém, este trabalho e esta
atividade não começam nem acabam no sujeito, enquanto organismo
psicofisiológico. Ambas têm início e fim em sujeitos que dialogam den-
tro de um universo discursivo datado e situado, com tempo e espaço
relativamente definidos.
A perspectiva trazida por Azevedo (2013; 2016; 2019) e Azevedo
e Tinoco (2019) convoca noções do campo sociológico, materialista,
para reinterpretar as concepções tradicionais de competência, capaci-
dade e habilidade. Algumas dessas noções são: práticas sociais, gêneros
do discurso, campo de atuação social, letramento, agência, entre outras.
Para Azevedo e Tinoco (2019, p. 30),

a capacidade argumentativa é uma condição humana que inter-


-relaciona a linguagem verbal e a reflexão em torno dos objetos
do mundo (atividade cognitiva e social), um modo de expressão
que se apoia em já-ditos e alinha-se às regras sociais, por isso
está submetida às coerções de uso social da linguagem (ativida-
de discursiva) e uma ação de linguagem gerada a partir de uma
oposição discursiva que gera interdependência entre os sujeitos
(atividade dialógica).

Dentro dessa perspectiva, entendemos que descritores de habilida-


des (aprendizagens essenciais) ou parâmetros eleitos para a organização
e progressão curricular, como os analisados neste trabalho, só farão sen-
tido efetivamente, no âmbito de uma perspectiva dialógica de ensino
de argumentação, se confrontados com as noções de campo da atuação
social, que são, como vimos, campos da criação ideológica, e de gêne-
ros do discurso, entre outras do escopo bakhtiniano. Para se avaliar ou
se produzir, por exemplo, movimentos argumentativos de refutação,
sustentação e negociação, em textos reivindicatórios e propositivos, é
mister situar os processos cognitivos, os objetos do conhecimento e os
contextos comunicativos em condições concretas de enunciação, como
indicadas no próprio documento, criando situações argumentativas,

798
como propõe Piris (2021), Piris e Calhau (2021), com base em Plantin,
ou seja, interações argumentativas em forma de assembleias, debates
regrados, cartas de reclamação, jornais comunitários, etc.

Considerações finais
Efetivamente, o que pode interessar a um ensino de argumenta-
ção desde uma perspectiva dialógica é construir/produzir situações de
interação sócio verbal que fomentem projetos de dizer concernentes
às realidades dos estudantes envolvidos. Neste sentido, as habilidades
prescritas na BNCC são tão somente abstrações, generalizações de re-
alidades possíveis. É preciso transformá-las em propostas concretas de
enunciação, como textos ou vídeos reivindicatórios, reclamações por
escrito ou oralmente, debates, assembleias, explorando as vivências dos
sujeitos envolvidos. Só assim, práticas linguístico-pedagógicas terão
condições de se transformar em práxis discursivas, na linha gramsciana/
freireana, ou em atos ético-responsáveis, na linha bakhtiniana.
Parece ser possível, dentro dessa perspectiva, criar um contexto de
empatia, por exemplo, ao se reivindicar melhorias para a escola, para o
bairro, para a cidade, ou o direito de reclamar da coleta de lixo munici-
pal, da merenda escolar, da falta de segurança no entorno da escola, etc.,
construir um movimento de exotopia para se trabalhar esteticamente os
enunciados concretos, dentro dos seus respectivos gêneros discursivos;
e trabalhar as relações dialógicas nos textos, isto é, as relações entre locu-
tores e interlocutores, proponentes e oponentes, oradores e auditórios.
Neste sentido, a participação dos sujeitos é fundamental. Para que
não permaneçam em uma atitude passiva, sem corpo e sem voz, oprimi-
dos, é preciso pensar no ato de argumentar como um ato ético-respon-
sável, dentro da perspectiva bakhtiniana (BAKHTIN, 2010). Enquanto
ato ético-responsável, e político, o sujeito da argumentação não tem áli-
bi, ou seja, precisa se posicionar diante de uma questão que merece ser
debatida, ser contestada ou afirmada. O lugar das práticas letradas de
argumentação, portanto, diante das contradições e potencialidades ad-
vindas da Base Nacional Comum Curricular, é o lugar da singularidade,
historicidade e ideologicidade do ser em diálogo com o outro.

799
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LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

AVAL IAÇÃO EM LEITURA ENQUANTO


INSTRUMENTO DE POLÍTICA LINGUÍSTICA:
REFLEXÕES NO ÂMBITO DO ENSINO
FUNDAMENTAL

Marcela Moura Torres Paim (UFRPE/CAEd)


Wagner Barros Teixeira (UNILA/PPGL-UFAM/CAEd)

RESUMO: Este estudo apresenta resultados preliminares de pesquisa em


andamento que visa a contribuir para a qualidade técnico-pedagógica de
avaliações coordenadas e/ou organizadas pela Fundação CAEd, a partir
da análise de itens que compõem o Banco do CAEd no tocante aos anos
finais do Ensino Fundamental, relacionados à área de Língua Portuguesa.
Reconhecendo-se o papel indutivo das avaliações em larga escala, sobre o
currículo, conforme asseveram Scaramucci (2000), Antunes, Ceccantini
e Andrade (2013) e Teixeira (2019), bem como suas relações com as
políticas públicas de educação (ensino e avaliação), busca-se responder ao
questionamento: de que maneiras habilidades da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) com foco na leitura compõem a matriz de avaliação em
larga escala? Para tanto, objetiva-se analisar as adaptações feitas pelas matrizes de
avaliações estaduais a partir das habilidades da BNCC com foco na leitura dos
anos finais do Ensino Fundamental. A partir dos dados obtidos, este trabalho
pode colaborar com insumos para a proposta de modelos inovadores para a
avaliação da área de Linguagens (Língua Portuguesa). Tal proposta apoia-se no
modelo de Avaliação Diagnóstica das Habilidades de Leitura, evidenciado por
Carvalho (2014), cujo foco está na verificação das habilidades de leitura para
a construção da competência leitora. Os resultados deste empreendimento
mostram contribuição para o campo da Linguística Aplicada, especialmente
no que tange à avaliação do processo de leitura na educação básica e ao
processo de formação de leitores, além de fomentar reflexões sobre itens das
avaliações desenvolvidas pelo CAEd.
PALAVRAS-CHAVE: avaliação em leitura; BNCC; itens de língua portugue-
sa; ensino fundamental.

ABSTRACT: This study presents preliminary results of ongoing research


that aims to contribute to the technical-pedagogical quality of assessments
coordinated and/or organized by the CAEd Foundation, based on the analysis

805
of items that make up the CAEd Bank regarding the final years of Elementary
School, related to the area of Portuguese Language. Recognizing the inductive
role of large-scale assessments on the curriculum, as asserted by Scaramucci
(2000), Antunes, Ceccantini and Andrade (2013) and Teixeira (2019),
as well as their relationships with public education policies (teaching and
assessment), we seek to answer the question: in what ways do skills from the
National Common Curricular Base (BNCC) with a focus on reading make
up the large-scale assessment matrix? Therefore, the objective is to analyze
the adaptations made by the state assessment matrices from the BNCC skills
with a focus on reading in the final years of Elementary School. From the data
obtained, this work can collaborate with inputs for the proposal of innovative
models for the evaluation of the area of Languages (Portuguese). This proposal
is based on the Diagnostic Assessment of Reading Skills model, evidenced by
Carvalho (2014), whose focus is on verifying reading skills to build reading
competence. The results of this undertaking show a contribution to the field
of Applied Linguistics, especially with regard to the assessment of the reading
process in basic education and the process of training readers, in addition to
encouraging reflections on items in the assessments developed by CAEd.
KEYWORDS: reading assessment; BNCC; Portuguese language items; ele-
mentary School.

Introdução
Considerando a relevância do impacto das avaliações em larga es-
cala em diferentes aspectos, entre os quais o da verificação da qualidade
da educação, neste artigo, de forma específica, analisamos alguns itens
de Língua Portuguesa pertencentes ao banco da Fundação Centro de
Políticas Públicas e Avaliação da Educação – CAEd, referentes ao 9º
ano do Ensino Fundamental, com o olhar para a qualidade técnico-pe-
dagógica dessas questões.
Tal abordagem apoia-se no modelo de Avaliação Diagnóstica das
Habilidades de Leitura, evidenciado por Carvalho (2014), cujo foco
está na verificação das habilidades de leitura para a construção da com-
petência leitora.
Para alcançar nosso objetivo, além dessa seção introdutória, este
texto apresenta breve fundamentação teórica sobre a importância de

806
formar leitores na educação básica e sobre como a Base Nacional Comum
Curricular – BNCC (BRASIL, 2017) de língua portuguesa aborda a
formação de leitores. Na sequência, são analisados dois itens extraídos
da prova de Língua Portuguesa do 9º ano do Ensino Fundamental, per-
tencentes ao banco de itens da Fundação CAEd, e, por fim, são tecidas
breves considerações finais.

Sobre a importância de formar leitores na educação básica


A Base Nacional Comum Curricular para a Educação Infantil e o
Ensino Fundamental foi sancionada em 20 de dezembro de 2017, de-
finindo as aprendizagens comuns que devem ser desenvolvidas pelos
estudantes.
A ideia de uma base curricular comum não é recente, pois, desde
a promulgação da Constituição Federal, em 1988, no artigo 210, já
se mostrava a importância do estabelecimento de “conteúdos mínimos
para o Ensino Fundamental, de maneira que assegurasse a formação
básica comum”. (BRASIL, 1988). Tal aspecto foi reformulado na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB n° 9.394/96) e nos do-
cumentos oficiais seguintes, como os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN) (BRASIL, 1997) e as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)
(BRASIL, 1988).
Nessa esteira, apesar das polêmicas relacionadas a seu processo de
implementação, a BNCC é o atual documento norteador para a educa-
ção básica no Brasil, apresentando diretrizes para o ensino, competên-
cias e habilidades a serem desenvolvidas.
Na BNCC, a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedi-
mentos) é concebida como competência e as práticas cognitivas e so-
cioemocionais são relacionadas às habilidades (BRASIL, 2017). Nesse
sentido, a noção de competência relaciona-se à teoria ao passo que a de
habilidade relaciona-se diretamente à prática. Ao lado das competên-
cias, as habilidades são apresentadas como maneiras de atingi-las, ou
seja, as habilidades são ações relacionadas a um ou a mais objetos de

807
conhecimento e dialogam não somente com as competências de uma
determinada área de conhecimento, mas também com as competências
gerais.
Ainda que alguns possam entender leitura como um processo que
se restringe à aquisição e à capacidade de decodificar letras. Entretanto,
um indivíduo habilitado à leitura nessa perspectiva nem sempre será
um leitor, como esclarece Zilberman (2008), pois possuir capacidade,
habilidade e técnica de decodificação não são os únicos elementos que
tornam um leitor competente e autônomo. Nesse sentido, neste artigo,
o sentido da palavra ‘leitor’ está relacionado a um processo mais amplo
e contínuo.
A aprendizagem da leitura não ocorre de maneira espontânea, por
isso, como expõe Lerner (2002): o contato com o sistema alfabético é
uma condição necessária para a utilização da linguagem, para a leitura,
para a interpretação e para a produção de textos escritos relativos aos
diferentes gêneros que circulam na sociedade. No entanto, não se esgota
nesse contato. Nesse sentido, a formação de leitores é algo que requer
mais do que técnicas e métodos adequados, é necessário refletir acerca
de um ensino que considere a relevância do aprendizado da leitura en-
quanto processo contínuo, sendo necessário oportunizar aos estudantes
uma educação de qualidade, que forme sujeitos críticos e capazes de
transformar a realidade na qual estão inseridos.
Nessa perspectiva, Solé (1998) expõe que o leitor autônomo é aque-
le que compreende textos diversos e, consequentemente, aprende com
eles, sendo capaz de se interrogar sobre sua compreensão, instituindo
relações com seus conhecimentos prévios, e permitindo aplicar o que
foi construído em distintas situações das quais participa. Segundo a pes-
quisadora, a compreensão do sentido do texto pelo leitor se dá a partir
do momento em que ele percebe seu protagonismo diante do que está
sendo lido. Assim, o processo de leitura precisa familiarizar o leitor com
o texto a partir do estímulo aos conhecimentos prévios, da criticidade,
da capacidade de questionar e de sintetizar as informações abordadas,
ressignificando-as, segundo seus objetivos.

808
Sobre essa questão, Kleiman (1998) enfatiza a flexibilidade e a in-
dependência durante o processo de leitura, dado que o leitor não segue
apenas um procedimento para chegar onde deseja, dispondo de várias
possibilidades. Assim, se uma delas não der certo, outras poderão ser
testadas. Por isso, o ensino e a modelagem de estratégias de leitura não
consistem em um ou dois procedimentos, mas em tentar (re)produzir
condições que dão ao leitor uma autonomia diante da riqueza de recur-
sos disponíveis.
A formação do leitor competente através das estratégias de leitu-
ra aponta para vários caminhos que envolvem diversas habilidades de
interpretar e de compreender textos. As estratégias são procedimentos
acionados pelo leitor e aplicados na interação a partir e com o texto,
sendo flexíveis, porque podem ser interpretadas e analisadas segundo os
conhecimentos do leitor, por meio da capacidade de realizar previsões,
elaborar e responder a questões, identificar ideias centrais, conteúdos
novos e antigos, relacionar o que se lê com o contexto e com outros
textos, ser capaz de estabelecer inferências etc.
Trata-se de um processo que deve ser contínuo, com vistas a permi-
tir que o leitor se torne autônomo e proficiente nos distintos contextos
sociais em que esteja inserido.
A seguir, veremos de forma breve o que orienta a Base Nacional
Comum Curricular sobre o processo de formação de leitores para a
educação básica brasileira.

Como a BNCC de Língua Portuguesa abarca a formação de


leitores?
A BNCC de Língua Portuguesa organiza-se em práticas de lingua-
gem, que contemplam os eixos de leitura, de produção de texto, de ora-
lidade e de análise linguístico-semiótica. Para os anos finais do Ensino
Fundamental, de acordo com o documento,

No eixo Oralidade, no Ensino Fundamental – Anos Finais, de-


senvolve-se maior criticidade em situações comunicativas orais,

809
informais e formais, habilidades de interação com um número
maior de interlocutores no espaço escolar, em que se amplia o
número de professores, agora distribuídos pelos componentes
curriculares. No eixo Leitura, as estratégias de compreensão e
interpretação crescem em quantidade e exigências cognitivas e
amplia-se o nível de complexidade dos textos. Também no eixo
Escrita, em paralelo com o avanço em estratégias de leitura, as
estratégias de produção textual vão se tornando, progressiva-
mente, mais numerosas e complexas. O eixo Conhecimentos
linguísticos e gramaticais parte dos eixos da Leitura (de textos
lidos) e da Escrita (de textos produzidos pelos alunos), ao mes-
mo tempo em que os apoia, colaborando com a compreensão,
interpretação e produção de textos. No eixo Educação literária,
diversificam-se os gêneros literários e as estratégias de leitura
literária, sempre com o objetivo maior de formar o leitor literá-
rio. (BRASIL, 2017. p. 115).

Através de distintas linguagens – verbal, corporal, visual, sonora e


digital – as ações humanas são estabelecidas nas práticas sociais, promo-
vendo interações. Nesse sentido, no que se refere à área de Linguagens,
a BNCC visa a proporcionar a participação de práticas de linguagem
diversificadas, que permitam aos estudantes ampliar suas capacidades
expressivas, sejam elas em manifestações artísticas, corporais e linguísti-
cas, como também seus conhecimentos sobre essas linguagens, em con-
tinuidade às experiências vividas na Educação Infantil aos estudantes.
(BRASIL, 2017).
O objetivo central para Língua Portuguesa “[...] é garantir a todos
os alunos o acesso aos saberes linguísticos necessários para a participa-
ção social e o exercício da cidadania” (BRASIL, 2018, p. 63) a partir do
desenvolvimento da escuta, possibilitando construir sentidos coerentes
para os textos orais e escritos, produzir textos adequados às diversas
situações de interação e apropriar-se de conhecimentos e recursos lin-
guísticos que contribuam para o uso adequado da língua oral e escrita.
No que se refere à Língua Portuguesa, no Ensino Fundamental,
o documento expõe quatro eixos organizadores correspondentes as

810
práticas de linguagem: Oralidade, Leitura/Escrita, Produção de Textos
e Análise Linguística/Semiótica. Em Leitura/Escrita, o eixo central en-
contra-se na interação ativa entre leitor/ouvinte/espectador com textos
escritos, orais ou multissemióticos oriundos de campos da atividade hu-
mana. Para realizar o aprofundamento da capacidade leitora, é sugerido
que diversas experiências de ler, ouvir e comentar textos escritos sejam
proporcionadas ao aluno.
Sobre isso, Kleiman (1998) aborda que a compreensão de um texto
é um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimentos pré-
vios, sendo mediante a interação com diversos níveis de conhecimento
que o leitor consegue construir o sentido do texto, compreendendo,
portanto, o que é lido e a sua relação com outros conhecimentos acu-
mulados, o que é corroborado por Teixeira (2017).
A leitura trazida pela BNCC é compreendida em um sentido mais
amplo, expondo que a formação do leitor deve contribuir para sua par-
ticipação em práticas sociais da cultura letrada que, em sua diversidade,
permitirão ao aluno apropriar-se progressivamente de diversos gêneros
textuais/discursivos e estabelecer relações com outros, consciente dos
sentidos que produz.
No que se refere à preocupação com a formação do leitor, existe um
número maior de habilidades, uma vez que os objetivos do campo va-
riam entre despertar o prazer pela leitura, mantê-lo e valorizar as diver-
sas produções artístico-literárias. A seguir, apresentamos algumas delas.

(EF69LP44) Inferir a presença de valores sociais, culturais e hu-


manos e de diferentes visões de mundo, em textos literários, re-
conhecendo nesses textos formas de estabelecer múltiplos olha-
res sobre as identidades, sociedades e culturas e considerando a
autoria e o contexto social e histórico de sua produção.

(EF69LP45) Posicionar-se criticamente em relação a textos


pertencentes a gêneros como quarta-capa, programa (de teatro,
dança, exposição etc.), sinopse, resenha crítica, comentário em
blog/vlog cultural etc., para selecionar obras literárias e outras
manifestações artísticas (cinema, teatro, exposições, espetáculos,

811
CD´s, DVD´s etc.), diferenciando as sequências descritivas e
avaliativas e reconhecendo-os como gêneros que apoiam a esco-
lha do livro ou produção cultural e consultando-os no momen-
to de fazer escolhas, quando for o caso.

(EF69LP46) Participar de práticas de compartilhamento de lei-


tura/recepção de obras literárias/ manifestações artísticas, como
rodas de leitura, clubes de leitura, eventos de contação de histó-
rias, de leituras dramáticas, de apresentações teatrais, musicais e
de filmes, cineclubes, festivais de vídeo, saraus, slams, canais de
booktubers, redes sociais temáticas (de leitores, de cinéfilos, de
música etc.), dentre outros, tecendo, quando possível, comen-
tários de ordem estética e afetiva e justificando suas apreciações,
escrevendo comentários e resenhas para jornais, blogs e redes
sociais e utilizando formas de expressão das culturas juvenis,
tais como, vlogs e podcasts culturais (literatura, cinema, teatro,
música), playlists comentadas, fanfics, fanzines, e-zines, fanví-
deos, fanclipes, posts em fanpages, trailer honesto, vídeo-minu-
to, dentre outras possibilidades de práticas de apreciação e de
manifestação da cultura de fãs.

(EF69LP47) Analisar, em textos narrativos ficcionais, as dife-


rentes formas de composição próprias de cada gênero, os recur-
sos coesivos que constroem a passagem do tempo e articulam
suas partes, a escolha lexical típica de cada gênero para a carac-
terização dos cenários e dos personagens e os efeitos de senti-
do decorrentes dos tempos verbais, dos tipos de discurso, dos
verbos de enunciação e das variedades linguísticas (no discur-
so direto, se houver) empregados, identificando o enredo e o
foco narrativo e percebendo como se estrutura a narrativa nos
diferentes gêneros e os efeitos de sentido decorrentes do foco
narrativo típico de cada gênero, da caracterização dos espaços
físico e psicológico e dos tempos cronológico e psicológico,
das diferentes vozes no texto (do narrador, de personagens em
discurso direto e indireto), do uso de pontuação expressiva,
palavras e expressões conotativas e processos figurativos e do
uso de recursos linguístico-gramaticais próprios a cada gênero
narrativo.

812
(EF69LP48) Interpretar, em poemas, efeitos produzidos pelo
uso de recursos expressivos sonoros (estrofação, rimas, alitera-
ções etc), semânticos (figuras de linguagem, por exemplo).

(EF69LP49) Mostrar-se interessado e envolvido pela leitura de


livros de literatura e por outras produções culturais do campo e
receptivo a textos que rompam com seu universo de expectati-
vas, que representem um desafio em relação às suas possibilida-
des atuais e suas experiências anteriores de leitura, apoiando-se
nas marcas linguísticas, em seu conhecimento sobre os gêneros
e a temática e nas orientações dadas pelo professor. (BRASIL,
2017. p. 157-158)

No campo da leitura, entre as habilidades a serem exploradas está a


de valorização das manifestações artísticas, da participação de ações de
compartilhamento de leitura nos mais diversos gêneros literários e não-
-literários, aprofundando sua materialidade e/ou organização, partindo
do material para as possíveis leituras e olhares.

Analisando alguns itens


Para ilustrar como as habilidades de leitura podem ser trabalha-
das para auxiliar em análises pedagógicas e revelar informações sobre o
comportamento dos respondentes, a seguir, analisamos dois exemplos
de itens descritos e comentados em Língua Portuguesa, referentes ao
9º ano do Ensino Fundamental, em avaliação aplicada no Estado da
Bahia. Os itens compõem o banco de itens da Fundação CAEd.
São apresentados o código do item, a habilidade, o detalhamento
da habilidade, o gabarito, a imagem do item e a análise.
Primeiro item
Código: P050286EX
Habilidade: Localizar informação explícita em texto verbal.
Detalhamento da habilidade: A habilidade de localizar informa-
ção explícita em texto verbal é uma condição de fundamental impor-
tância para a compreensão de textos de diferentes gêneros. Refere-se à

813
identificação de elementos que se encontram na superfície textual. O
nível de complexidade no qual a habilidade pode ser mobilizada guarda
relação com o nível de complexidade do texto: extensão, léxico, sintaxe
e, ainda, tema tratado. Isso se relaciona com a habilidade (EF69LP49)
da BNCC por estimular o universo de expectativas, que representem
um desafio em relação às possibilidades e às experiências de leitura do
leitor, apoiando-se nas marcas linguísticas, em seu conhecimento sobre
os gêneros e sobre a temática, e nas orientações dadas pelo professor.
Além disso, a quantidade de informações apresentadas pelo texto e a
natureza dessas informações também são fatores importantes para o ní-
vel de complexidade da tarefa de localizar informações, bem como a
posição da informação solicitada no texto: se a informação se encontra
no início do texto, sua localização pode ser facilitada; quando se encon-
tra no meio ou no final do texto, sua localização pode ser dificultada.
Essa perspectiva de análise vem sendo investigada pelas pesquisadoras
Begma Tavares Barbosa, Hilda Linhares Micarello e Rosângela Veiga
Ferreira, conforme artigo “Avaliações em larga escala de língua portu-
guesa: uma pesquisa sobre a complexidade dos textos que dão suporte
a itens que avaliam a leitura”, resultante da Pesquisa em Avaliação Caed
2016-2019, área de Língua Portuguesa, em recorte específico sobre a
complexidade dos suportes dos itens que avaliam o desempenho em lei-
tura de estudantes do 5º ao 12º ano de escolarização. As pesquisadoras
analisaram quatro descritores que integram a Matriz de Referência para
Avaliação do CAEd: D06- Localizar informação explícita em textos;
D07- Reconhecer o assunto de um texto; D08- Inferir o sentido de
uma palavra ou expressão; D09- Inferir informação em um texto verbal.

814
Gabarito: D
Imagem do Item:

Fonte: Banco de itens da Fundação CAEd.

Breve análise: o item avalia a habilidade de localizar uma informa-


ção explícita em um texto. Essa habilidade integra o currículo desde os
anos iniciais do Ensino Fundamental. O texto que dá suporte ao item,
do campo jornalístico, é uma notícia, extraída do site Terra, que infor-
ma acerca da mobilização da Polícia para retirar a cabeça de um gato de
dentro de um vidro. A tarefa é facilitada, uma vez que a informação so-
licitada pelo item se encontra nas linhas 5-6 do texto: “O próprio gato
foi quem conseguiu resolver a situação. Ele bateu várias vezes o vidro
contra o chão até quebrá-lo.”
Os estudantes respondentes que marcaram a alternativa D, o gaba-
rito, demonstram dominar a habilidade avaliada, localizando a infor-
mação explicitada na tessitura textual. Aqueles que marcaram qualquer
uma das outras alternativas tomaram outro caminho cognitivo que,
provavelmente, levou-lhes ao erro, impedindo que conseguissem iden-
tificar o fragmento explícito no texto base. Assim, podem ter identifi-
cado menção à Porta-voz ou à Polícia, entendendo se tratar de quem
resolveu a questão ou, ainda, que o gato se escondeu no pote, deixando

815
de perceber que, na verdade, quem se abrigou foi o rato, sendo perse-
guido pelo gato.
Vale a pena destacar ainda que a estrutura pedagógica do item é
adequada, haja vista que o texto-base oferece subsídios necessários para
ancorar as alternativas, garantindo sua plausibilidade, dando a possibi-
lidade de se abordar a habilidade (EF69LP49).
Segundo Item:
Código: P050184EX
Habilidade: Identificar o gênero de um texto.
Detalhamento da habilidade: a habilidade de identificar o gênero
de um texto está diretamente relacionada à dimensão do letramento,
ou seja, ao reconhecimento dos objetivos com que um texto foi escrito,
das condições em que será recebido, de sua função social etc. Por essa
razão, os níveis de complexidade envolvidos nessa habilidade depen-
dem do gênero e, consequentemente, do campo de atuação em que ele
circula. Gêneros que circulam em campos de atuação mais diretamente
relacionados às experiências de vida dos estudantes, sejam eles da vida
cotidiana ou da vida escolar (campos de atuação das práticas de estu-
do e pesquisa ou artístico-literário), são mais facilmente identificáveis,
pois a frequência com que os estudantes têm contato com esses textos
contribui para facilitar seu reconhecimento. No caso de gêneros perten-
centes a campos de atuação menos relacionados à experiência de vida
cotidiana dos estudantes, sua identificação tende a ser mais difícil, dada
a baixa frequência com que os estudantes têm contato com eles, como
expõe Carvalho (2014).
Vale a pena destacar também que a estrutura pedagógica do item é
adequada, haja vista que o texto-base oferece subsídios necessários para
ancorar as alternativas, garantindo sua plausibilidade.

816
Gabarito: C
Imagem do Item:

Fonte: Banco de itens da Fundação CAEd.

Breve análise: o item avalia a habilidade de identificar o gênero de


um texto. Essa habilidade é parte do currículo desde os anos iniciais
do Ensino Fundamental. Nesse caso específico do item, a habilidade
(EF69LP44) da BNCC é avaliada em um texto, do âmbito jornalístico,
do gênero notícia, que traz informações acerca da mobilização da Polícia
para retirar a cabeça de um gato de dentro de um vidro. Em se tratando
de estudantes que cursam o nono ano do Ensino Fundamental, a fami-
liaridade com o gênero notícia, de comum circulação em seu cotidiano,
pode conduzir à resposta correta, uma vez que os distratores trazem
outros gêneros. Além disso, na referência do texto consta a palavra “no-
tícia”, o que pode também facilitar a identificação do gênero.
Dessa forma, os estudantes respondentes que assinalaram a alterna-
tiva C, o gabarito, demonstram já dominar a habilidade avaliada, con-
seguindo identificar o gênero notícia. Aqueles que marcaram as demais
alternativas, por outro lado, demonstram que ainda não se apropria-
ram dessa habilidade. Os que marcaram a alternativa A, provavelmente

817
relacionaram a menção a gato e a rato com o gênero fábula; no entanto,
não perceberam que, apesar de o texto fazer menção a animais, não são
personificados e, assim, não há características típicas de uma fábula.
Quem selecionou a alternativa B, provavelmente se ateve ao fragmento
que menciona um desenho animado e, assim, equivocadamente inter-
pretou se tratar de um fragmento de lenda contado em forma de de-
senho. Aqueles que selecionaram a alternativa D, provavelmente inter-
pretaram que o fato de o gato ficar preso ao perseguir o rato evidencia
um episódio cômico e, por isso, interpretaram equivocadamente que se
trata de uma piada.

Considerações finais
Considerando o recorte a partir dos itens analisados, percebemos
que diferentes habilidades presentes na BNCC podem ser traduzidas
na prova do 9º ano de Língua Portuguesa do estado da Bahia, entre as
quais as de:
• (EF69LP44) identificação do gênero de um texto relacionado à
dimensão do letramento, ou seja, ao reconhecimento dos obje-
tivos com que um texto foi escrito e das condições em que será
recebido e, portanto, de sua função social;
• (EF69LP48) identificação dos efeitos de humor e ironia em
textos diversos por meio da atividade inferencial de leitura; e
• (EF69LP49) localização de informação explícita em texto
verbal.
Levando em conta nosso curto espaço deste texto e nosso objetivo,
ficou evidente que, no tocante à qualidade técnico-pedagógica, os itens
analisados estão bem elaborados e permitem que o estudante respon-
dente que domina as habilidades avaliadas possa ter acesso à resposta
adequada.
Além disso, em se tratando de um trabalho que versa sobre a leitura
e o papel da avaliação no processo de formação de professores, não po-
deríamos terminar este texto sem antes mencionar a importância de se

818
abordar as práticas de linguagem presentes na BNCC, considerando de
forma especial o cotidiano do estudante para despertar o interesse pelo
estudo e a compreensão de que a linguagem que o cerca contribui para
o processo de leitura.

Referências
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Veiga. Avaliações em larga escala de língua portuguesa: uma pesquisa sobre a comple-
xidade dos textos que dão suporte a itens que avaliam a leitura. Revista Pesquisa e
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outubro de 1988. Disponível em: <www.planalto.gov.br/>. Acesso em: 12 maio 2022.

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819
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

AS INTERSECCIONALIDADES E(M) ETHÉ DE


VIRILIDADE: UMA ANÁLISE DISCURSIVA
DE DUAS CENAS DA PROSTITUIÇÃO
MASCULINA BRASILEIRA

Marcos da Silva Cruz (UFMG/SEDUC-PA)

RESUMO: As práticas de prostituição enfrentam uma série de coerções


sociais, sufocando seus integrantes em suas possibilidades de exercício da
desejabilidade e suas formas de mediação. Nessa ambientação, as práticas de
prostituição masculina entre homens parecem estar situadas em um lugar de
entremeio, que intersecciona um conjunto de enunciados sobre o corpo viril.
Interpretamos que as imagens de virilidade são o cerne de concretização da
prostituição masculina, contornando as performances de gênero e sexualidade
dos michês e garotos de programa a partir de trocas tarifadas. A fim de
justificar nossa afirmação, analisamos duas cenas da prostituição masculina
no Brasil, visando compreender os modos de constituição enunciativa do
ethé de virilidade nas práticas discursivas de prostituição masculina. Para
isso, analisamos as formas de subjetivação da virilidade nas dinâmicas de
sexo tarifado em ruas e em saunas paulistas, ambientações perscrutadas
partir das noções de práticas discursivas (MAINGUENEAU, 1993, 2008),
ethos discursivo (MAINGUENEAU, 2008, 2010, 2016, 2018, 2020) e
interseccionalidade (AKOTIRENE, 2020). O processo de gestão dos ethé
de virilidade sustenta-se pela articulação dos enunciados acerca dos traços
interseccionais de idade, de raça, classe sociais e motivação para a integração
na prostituição, bem como pela historicidade que os sustentam. Concluímos
que o funcionamento enunciativo da imagem viril dos integrantes das cenas
de prostituição movimenta-se constantemente entre uma leitura hegemônica
e articulações que irrompem com uma lógica unilateral de masculinidade.
PALAVRAS-CHAVE: Ethos discursivo. Práticas discursivas. Virilidade.
Interseccionaldade. Prostituição masculina.

ABSTRACT: Prostitution practices face a series of social constraints,


suffocating their members in their possibilities of exercising desirability and
their forms of mediation. In this setting, male prostitution practices among
men seem to be situated in an in-between place, which intersects a set of
statements about the virile body. We interpret that the images of virility are

820
the core of the realization of male prostitution, circumventing the gender and
sexuality performances of the hustlers and call boys from exchanges with fees.
In order to justify our statement, we analyzed two scenes of male prostitution
in Brazil, aiming to understand the modes of enunciative constitution of the
ethé of virility in the discursive practices of male prostitution. For this, we
analyzed the forms of subjectivation of virility in the dynamics of sex charged
on the streets and in saunas in São Paulo, settings scrutinized from the notions
of discursive practices (MAINGUENEAU, 1993, 2008), discursive ethos
(MAINGUENEAU, 2008, 2010, 2016, 2018). , 2020) and intersectionality
(AKOTIRENE, 2020). The management process of the virility ethé is
supported by the articulation of statements about the intersectional traits
of age, race, social class and motivation for integration into prostitution, as
well as by the historicity that sustain them. We conclude that the enunciative
functioning of the virile image of the members of the prostitution scenes
constantly moves between a hegemonic reading and articulations that erupt
with a unilateral logic of masculinity.
KEYWORDS: Discursive ethos. Discursive practices. Virility. intersectional-
ity. Male prostitution.

Introdução
A prostituição foi instituída, em diferentes contextos sociais, como
um tipo de acontecimento a ser rechaçado. Essa projeção ocasionou
uma leitura culpabilizante e marginalizante das práticas e dos sujeitos,
concretizando um processo de invisibilização dos indivíduos e o au-
mento da dificuldade de acessibilidade social (médico, jurídico, midiá-
tica, entre outros)144. No caso da prostituição masculina homoerótica,
há a desestabilização de um conjunto referencial de comportamentos
pretensamente instituídos aos homens, i.e., da reversão das relações de
amor romântico (relacionar-se amorosa e/ou sexualmente com alguém
somente por amor) e do exercício de relações entre homens. Portanto, a

144
Além do viés qualitativo, é importante destacar que a circulação de enunciados
estereotipados sobre a prostituição também se revela nas produções científicas
sobre o tema. A partir do levantamento bibliográfico realizado por Oliveira
(2019), verificamos a tímida produção que tem como objeto as práticas de sexo
tarifado e seus elementos constituintes.

821
prostituição masculina homoerótica era (e ainda é) situada como algo a
ser reprimido, negado e abafado socialmente.
Ao mesmo tempo, em recortes temporais e espaciais pontuais, os
corpos dos michês e dos garotos de programa145 adquirem um teor va-
lorativo diferenciado, como Oliveira (2019, p.213) descreve:

Ser gepê é estar em um lugar de privilégio. É estar numa posi-


ção precária ao mesmo tempo em que se é adulado e valorizado
por índices positivamente valorados - ser homem, ser viril etc.
Muitas vezes isso se dá como o oposto da experiência das putas
trans e cis. Aqui a gente ganha para ser admirado e pisar no
cliente.

Do lugar enunciativo de garoto de programa, somos convidados


a pensar sobre o conjunto de procedimentos epistemológicos para a
elucidação das relações de poder que se constituem por meio dos dis-
cursos. O lugar social ocupado pelo relator-vivente inscreve na histori-
cidade a lógica de percepção dos corpos dos sujeitos nas dinâmicas de
sexo tarifado, em que há um paradigma de precariedade, marcado pela
criminalização (RIBEIRO, 2016), pela patologização (GUIMARÃES;
MERCHÁN-HAMANN, 2005) e pela representação estereotipada em
veículos midiáticos. Contudo, o patamar de precarização também é
acompanhado por seu outro lado, sua dupla face, o privilégio.
Quando o relato ratifica a ideia de privilégio, tomamos conheci-
mento de quais aspectos condicionam a valoração dos corpos dos ga-
rotos de programa. Nesse sentido, os sujeitos se tornam “corpos que
importam” (LOURO, 2001) a partir do momento em que “ganha[m]
para ser[em] admirados e para pisar[em] no cliente”, o que materia-
lizaria a imagem de um sujeito como “homem” e “viril”. Portanto, a
virilidade institui as múltiplas categorizações e os direcionamentos aos
corpos na dinâmica da prostituição masculina.
145
Adotamos as duas denominações porque cada uma reflete uma condição enun-
ciativa específica, marcada pela historicidade que mitiga. Em certa medida, elas
também são aproximadas, pois lidamos com as cenas analisadas como um mo-
saico, em que os enunciados são explicitados em suas relações.

822
No regime de desejabilidade, a virilidade ocupa um lugar distintivo
no processo de hierarquização dos corpos. As formas de significação
culturalmente situadas contornam os elementos éticos e estéticos que
atravessam as formas de caracterização de sujeitos entendidos como
homens, um regime de condutas que visem ratificar um modelo com-
portamental e estético. No caso da prostituição masculina, a virilidade
apresenta-se como referencial impositivo que condiciona o funciona-
mento das interações pelas quais os garotos de programa devem estimu-
lar os clientes-em-potencial, além de identificarem como integrantes na
própria dinâmica da prostituição. Logo, a virilidade perfila e é perfilada
pela demanda socioeconômica específica de constrangimento da corpo-
reidade em torno da aparência de heterossexualidade.
Diante da centralidade do corpo viril, os garotos de programa são
impulsionados a cumprirem as demandas culturais de identificação de
si a fim de lograrem êxito na dinâmica de sexo tarifado. Assim sendo,
verificamos a incidência de um regime de inteligibilidade de gênero e
sexualidade (BUTLER, 2019) pautado na leitura hegemônica da virili-
dade. Todavia, esse projeto esbarra na multidirecionalidade de significa-
ções da virilidade, posto que esta tenta ser enquadrada em um modelo
unilateral de valorização dos corpos. Nesse cenário, interessa-nos o se-
guinte questionamento: como os integrantes da prostituição masculina
agenciam corporalmente os enunciados sobre virilidade?
Estruturalmente, apresentamos o quadro teórico acerca da prosti-
tuição masculina, argumentando sobre seu funcionamento como uma
comunidade discursiva por meio de certas regularidades dos traços in-
terseccionais. Em seguida, interpretamos as estratégias discursiva de ela-
boração de uma imagem viril no exercício performático e interseccional
em duas cenas da prostituição masculina, as ruas e as saunas paulistanas.
Encerramos o texto com a conclusão de que os traços interseccionais
são mobilizados para imposição e para subversão do modelo de virili-
dade, ressaltando quatro zonas de estruturação pelas quais o cerne da
prostituição masculina se torna maleável.

823
A comunidade discursiva dos garotos de programa: as práticas
discursivas e as interseccionalidades
Ao nortear a forma de organização da prostituição masculina, a vi-
rilidade contorna as formas de significação dos sujeitos em níveis com-
portamentais e de apresentação visual. Essa forma de entendimento da
estruturação da prostituição masculina homoerótica se aproxima da no-
ção de comunidade discursiva proposta por Dominique Maingueneau
(1993, 2008a). Para o autor, a ideia de comunidade discursiva compõe
uma tríade que tenta responder como os textos atuam na organização
de coletivos sociais, sem perder de vista as singularidades de cada um
dos integrantes de um grupo. Assim, a circulação de determinados tipos
de textos, de posicionamentos e de lugares enunciativos garante a im-
pressão de homogeneidade de um conjunto de indivíduos.
A comunidade discursiva estabelece vínculos com outras duas noções,
as “práticas discursivas” e de “formações discursivas”. No intento de eluci-
dar os modos de articulação dos termos, Maingueneau (1993, p.56) afirma:

A noção de prática discursiva integra, pois, estes dois elementos:


por um lado, a formação discursiva, por outro, o que chamare-
mos de comunidade discursiva, isto é, o grupo ou organização
de grupos no interior dos quais são produzidos, gerados os tex-
tos que dependem da formação discursiva.

No entendimento do linguista francês, a prática discursiva norteia


a estruturação das formas de significação dos contextos sociais, porque,
enquanto sujeito situados na e pela linguagem, atribuímos sentidos ao
mundo e a partir deles agimos. O entendimento sobre os espaços so-
ciais, os sujeitos, os contextos de interação, bem como os modos de
comportamento nesses cenários nutrem o funcionamento das práticas
discursivas. Nos múltiplos campos discursivos (MAINGUENEAU,
2008a, p.33), todos os interactantes recuperam sentidos historicamente
situados acerca de determinados aspectos que compõem as práticas dis-
cursivas, o que permite a adoção e a defesa de um ponto de vista e am-
para a relação de percepção-significação-ação por meio dos discursos.

824
Uma forma de visualização da tríade em um contexto situado está
na pesquisa de Pessoa e Moreira (2016). Na ocasião de análise do papel
enunciativo do inquérito policial, os autores constatam que o gênero
discursivo em questão mobiliza as condutas de diferentes atores envol-
vidos no processo judicial, como vítimas, testemunhas, policiais, escri-
vães e investigadores. Para cada um desses sujeitos, o inquérito funciona
como um tipo de texto que norteia uma forma de tratamento da reali-
dade social e dos sujeitos, impelindo os envolvidos com o documento a
adotarem um tipo de conduta específicos para seus papéis enunciativos
e, simultaneamente, sentirem-se como integrante do lugar social que
ocupam.
Os discursos sobre virilidade são considerados constituintes da
prática discursiva da prostituição masculina porque amparam minima-
mente a imagem de coletividade dos michês e dos garotos programa. A
partir dos diferentes textos (verbais ou multimodais), as significações
sobre a virilidade ganham forma, que, de acordo Maingueneau (2008b,
p.39), “serve de norma e garantia aos comportamentos de uma coleti-
vidade da coletividade” e contorna “lugares-comuns da coletividade”.
Uma leitura da virilidade, entrelaçada por intentos hegemônicos, jus-
tifica-se como referencial para a congregação dos sujeitos no grupo de
integrantes da dinâmica de sexo tarifado e sustenta o reconhecimento,
por outrem, dos participantes e de seus intentos comunicativos.
No caso da virilidade na prostituição masculina, as formações dis-
cursivas direcionam-se para os corpos dos michês e dos garotos de pro-
grama. Ao recuperar determinadas formas de ser e estar no mundo, os
corpos são compelidos à realização de determinada forma de compor-
tamento social e sexual aos clientes em vista. Assim, do entendimento
sobre o que significa ser viril, os integrantes da prostituição masculina
precisam concretizar um tipo de exercício ético pautado na imagem
heterossexualizante norteante do regime de desejabilidade que os sujei-
tos integram, o que permite justificar e ratificar sua pertença ao grupo.
Logo, além da verbalidade do escrito e do oral, o corpo apresenta-se
como a textualidade pela qual se verifica o exercício da virilidade, e que

825
também permite investigar os processos discursivos constituintes das
práticas sociais.
Ao analisar o cenário da prostituição masculina brasileira, Cruz
(2022) defende o corpo como uma tessitura discursiva. De um lado,
o corpo é alvo de uma série de regulações, recortes sobre os limites de
ser, querer e fazer, condicionando a recepção social como “normais” ou
abjetos. Por outro, ao perceberem o teor impositivo de certas condutas,
os sujeitos se valem de técnicas para adequação às demandas colocadas,
elaborando estratagemas corporais eficiente na confirmação uma ima-
gem uníssona. Sob a ótica da virilidade, os integrantes da dinâmica de
sexo tarifado precisam recuperar determinados traços de identificação,
manifestá-los corporalmente de forma aparentemente coerente, o que
permite lograrem êxito.
Alvo de diferentes instâncias sociais, a significação do corpo viril
perpassa pela articulação dos traços interseccionais. A partir das colo-
cações de Akotirene (2020), os traços interseccionais podem ser en-
tendidos como as formas simbólicas de diferenciação dos corpos, pelas
quais lógicas dissimétricas de poder tentam se efetivar. Questões raciais,
de gênero e sexualidade, classe social, localização geográfica, idade, são
alguns dos pontos diferenciais entre os sujeitos, pelos quais estes podem
ser alvos da valorização ou da marginalização. Em ambas as direções ve-
rificamos a ocorrência de forma de significação dos corpos, perfilando
imagens específicas para os sujeitos, o que baliza o trabalho diferencial
dos sujeitos pelo contextual cultural em que se inserem e forja a preten-
sa naturalidade dos agrupamentos sociais.
De maneira mais enfática, entendemos que a noção de prática
discursiva converge com o conceito de interseccionalidade. As forma-
ções discursivas indexam para um agenciamento mais ou menos es-
tável de enunciados acerca dos traços de subjetivação em raça, classe,
gênero, sexualidade, entre outros, promovidos por instâncias médicas,
jurídicas e midiáticas. Esse agenciamento resulta em uma conformação
mínima de uma imagem social acerca dos traços éticos e estéticos dos
garotos de programa, o que implica a tentativa de réplica de uma ideia

826
unilateral sobre virilidade. Ainda, essa “demanda de mercado” contorna
o horizonte de expectativas dos pares integrantes na prostituição, dos
clientes e do próprio sujeito que comercializa fantasias146.
A ambientação em que os corpos dos michês e dos garotos de pro-
grama são comprimidos é marcada pela negociação dos enunciados e
suas formas de articulação a fim de garantirem uma imagem coerente
de virilidade. Para Cruz (2020), os processos de subjetivação das iden-
tidades masculinas perpassam necessariamente por um regime de “de-
bilidades performativas”. Embora a leitura superficial do autor sobre o
caráter movediço das sexualidades147, suas constatações fornecem dados
significativos acerca das relações de contingência sobre os sentidos que
compõem as subjetividades viris, pois o cerne processual são os rearran-
jos, as adequações ao quadro situado em que cada sujeito elabora sua
vida (sexual), manejando os traços interseccionais em um projeto de
valorização de si.
Ao voltarmos nossa atenção ao cenário da prostituição masculina,
também propomos que há menos um regime maniqueísta de disposi-
ção dos traços do que uma movimentação suplementar contínua entre
os termos. Essa suplementaridade é nutrida pela associação de formas
de significação de cada um dos elementos diferenciais constituintes da
imagem de virilidade, significantes que têm seus significados orques-
trados historicamente e, com efeito, delimitam os lugares positivados
146
Com base em um conjunto de entrevistas com mulheres que se prostituem,
Guimarães e Merchán-Hamann (2005) desmistificam a ideia de que a prostitui-
ção seriam a venda do corpo. Diferentemente, os autores advogam, mediante os
apontamentos das informantes, em direção a uma leitura da prostituição como
um processo discursivo pautado na realização das fantasias sexuais dos clientes,
fantasias que são, em menor ou maior grau, constrangidas em outras práticas
discursivas.
147
É importante sublinhar que noção de “debilidade performativa” é abandonada
posteriormente pelo autor, tendo em vista que percebia as subjetividades apenas
em máximas, não capturando as movimentações e arbitrariedades como uma
dimensão constituinte da linguagem que perfaz as performances de gênero e
sexualidade. Em estudos posteriores (CRUZ, 2022), verificamos a modalização
das categorizações, refletindo o rearranjo dos referenciais bibliográficos do autor
e das observações dos fenômenos sociais.

827
ou não dos sujeitos como cumpridores da imagem de “homem viril”.
Nessa ambientação, a ideia de agenciamento emerge, como um pro-
cesso de percepção das condições de enunciabilidade e a disposição de
tentativas de adequação ao modelo de subjetivação vigente148.
De modo geral, defendemos a ideia de que a imagem de virilida-
de imputada aos integrantes da prostituição masculina só é realizável
mediante a retomada e a atualização dos enunciados acerca dos traços
interseccionais. São esses enunciados corporificados que permitem o
rastreamento mínimo das condições enunciativas em que se encontram
os garotos de programa, identificando as forças enunciativas que per-
filam a efetividade das imagens projetadas e a pertinência articulató-
ria dos elementos interseccionais que as sustentam. Ao mesmo tempo,
esse rastreamento garante a ilustração sobre os modos de agenciamento
das condições enunciativas mobilizada pelos garotos de programa, seu
modo de funcionamento em projetos situados e os efeitos ao lograr
êxito na prostituição masculina.

Ethé discursivos: a in(corpo)ração da virilidade


Ao reconhecermos a simultaneidade no processo de imposição e de
rearranjos das condições enunciativas que permeiam a concepção dos
corpos viris na prostituição masculina, presenciamos a centralidade da
virilidade como um ponto referencial de alto impacto na imagem dos
integrantes da comunidade discursiva. Essa imagem resulta de um pro-
cesso discursivo de incorporação nas condições enunciativas, ao mesmo
tempo em que se encontra diluída nas versões elaboradas pelos traba-
lhadores sexuais.
A centralidade da imagem de virilidade nos permite uma proposi-
ção, em que associamos a concepção plural das virilidades com o con-
ceito de ethos discursivo (doravante ethos), promovida por Dominique
Maingueneau (2008b). De acordo com o autor, a noção de ethos dis-
cursivo é definida nos seguintes termos:
148
Por conta dos limites de extensão do texto, priorizamos o destaque do teor de
agência na análise dos dados.

828
A prova pelo ethos consiste em causar uma boa impressão me-
diante a forma como se constrói o discurso, em dar uma ima-
gem de si capaz de convencer o auditório, ganhando sua con-
fiança. O destinatário deve, assim, atribuir certas propriedades
à instância que é posta como fonte do acontecimento enuncia-
tivo” (MAINGUENEAU, 2008b, p.56).

Nas palavras do autor, o ethos configura-se como um projeto co-


municativo em que os usuários de uma língua tentam imprimir uma
imagem positiva de si, o que garante o compartilhamento de argumen-
tos, a ratificação de determinados comportamentos, entre outros aspec-
tos. Logo, os interactantes, ao reconhecerem a cena enunciativa em que
interagem e os lugares enunciativos que ocupam, mobilizam estratégias
linguageiras a fim de consolidar uma imagem positivada de si, o que
permite “ganhar a confiança” de outrem.
No projeto de construção de uma imagem de si no discurso, as es-
tratégias englobam o trabalho com o corpo e os enunciados que o atra-
vessam. Isto é, a forma de realizar um pronunciamento, de defender um
ponto de vista, das vestimentas, do comportamento, todas dimensões
que indexam a uma projeção de conduta ética que um locutor aparenta
aos seus interlocutores. Por meio delas que o regime de desejabilidade é
impulsionado, incutindo nos clientes a percepção, a avaliação, a apro-
vação (ou não) e a concretização do contrato sexual. Conclui-se que os
integrantes da prostituição masculina precisam ter um olhar analítico
para si, para o outro e para a situação comunicativa.
Em um levantamento bibliográfico sobre a noção de ethos, perce-
bemos, contudo, a existência de um conjunto de pesquisas que mobili-
za o conceito de maneira abafada. Essa adjetivação, talvez pouco preci-
sa, ilustra a condição pela qual a noção de ethos é contornada, em que
não há uma explicitação dos pontos referenciais pelos quais as imagens
dos locutores são projetadas e avaliadas nas situações comunicativas.
Por outro caminho, engajamo-nos em uma postura cautelar e prioriza-
mos uma associação entre a noção de ethos e sua premissa discursiva, a
incorporação.

829
Em diferentes textos ao longo de sua carreira, Maingueneau
(2008b, 2008c, 2016, 2018 e 2020) sublinha que o elemento distintivo
da noção de ethos, aquilo que garante o teor discursivo, é o processo em
que o locutor de um discurso se torna sujeito por meio da tomada da
palavra. De fato, não há nada de inocente nesse gesto, pois pressupõem
três ocorrências simultâneas, em que

- a enunciação da obra confere uma ‘corporalidade’ ao fiador,


ela lhe dá corpo;
- o destinatário incorpora, assimila um conjunto de esquemas
que correspondem a uma maneira específica de se remeter ao
mundo habitando o próprio corpo;
- essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de
um corpo da comunidade imaginária dos que aderem ao mes-
mo discurso (MAINGUENEAU, 2008c, p.18).

A “comunidade imaginária” citada pelo autor retoma a noção de


comunidade discursiva, em que se articulam as práticas e as formações
discursivas. Essa comunidade materializa-se por meio das interações en-
tre os sujeitos e os textos que os constituem, o que permite sustentar
certa homogeneidade na identificação de determinados grupos sociais.
Em conjunto, a sustentação é mediada pelo compartilhamento de um
“conjunto de esquemas” que remetem aos corpos e suas maneiras de
habitarem o mundo, garantindo um parâmetro ético e estético para
os sujeitos tomarem a palavra. Incrustrado na tomada da palavra, en-
quanto textualidade da prostituição masculina, está o corpo como uma
tessitura discursiva.
No caso prostituição masculina, a comunidade discursiva elabora-
da pode ser resumida pelos epítetos “michê” e “garoto de programa”.
Do lado do cliente, esses termos funcionam como formas remissivas de
identificação dos sujeitos integrantes de formas de interação amorosas
e/ou sexuais mediadas por transações monetárias, os quais são reconhe-
cíveis por sua “virilidade exacerbada”, pela apresentação de um com-
portamento e visual estereotipados. Do lado dos trabalhadores sexuais,
essa leitura implica uma demanda de realização da imagem de virilidade

830
esperada pela sociedade e pelos clientes-em-potencial, tendo em vis-
ta que é condição de êxito para inventariar os retornos financeiros e
uma forma de integração ao grupo dos homens viris na prostituição
masculina.
Até aqui abordamos a noção do ethos em sua estrutura morfoló-
gica no singular, mas é importante assinalar sua marcação plural, os
ethé discursivos. Como veremos nas análises, a decisão de ratificação do
termo no plural justifica-se pela sinalização pluridirecional dos espaços
sociais de comunicação pelos quais os garotos de programa transitam e
nos quais os sentidos sobre virilidade são rearranjados constantemente.
Além disso, os rearranjos dos traços interseccionais promovidos pelos
integrantes da dinâmica de sexo tarifado depõem sobre a fluidez e a
diversidade das formas de corporificação da virilidade.
Tendo em mãos as informações acerca das relações entre as práti-
cas discursivas e as interseccionalidade, bem como entre as noções de
ethé discursivos e o espectro da virilidade mediante as possibilidades de
combinação entre os traços interseccionais, prosseguimos para as análi-
ses nas duas cenas elegidas.

As ruas e as saunas
Antes de enveredarmos pela análise dos dados coletados, é impor-
tante resumir os procedimentos metodológicos que nos conduzem na
organização das informações acerca do fenômeno observado. Como
uma pesquisa de teor bibliográfico, utilizamos como base de dados as
plataformas Google Acadêmico e Scielo, recorrendo aos marcadores
“prostituição masculina”, “virilidade” e “discurso”. Com o levantamen-
to, encontramos dois textos que, embora apartados temporalmente149,
149
A diferença temporal de dez anos entre os textos poderia levantar questionamen-
tos como: “não haveria um equívoco sobre as condições de enunciação entre o
corpus analisado por Perlongher (1986) e o corpus analisado por Santos e Pereira
(2016)?” (CRUZ, 2022, p.30). Nessa seara, respondemos, baseados em Trevisan
(2018), que a recuperação da história da sexualidade não é regular, mas dispersa
em situações de “altos e baixos”, momentos em que, maior ou menor grau, a ho-
mossexualidade como algo perigoso. Ainda, no campo dos estudos do discurso,

831
são considerados norteadores na seara do tema: o primeiro é o livro “O
negócio do Michê”, de Nestor Perlongher (1986), considerado a pri-
meira etnografia acerca da prostituição; o segundo é o artigo “Amores
e vapores: sauna, raça e prostituição viril em São Paulo”, de Ércio
Nogueira Santos e Pedro Paulo Gomes Pereira (2016), sobre o regime
de pigmentocracia vigente nas saunas paulistanas, que retoma as sinali-
zações de Perlongher.
Diante dos dados coletados pela observação das cenas fornecidas
pelos textos, elaboramos uma síntese que esquematiza as linhas de
orientação pelas quais os corpos dos michês e dos garotos de programa
são atravessados. Nesse sentido, percorremos o funcionamento enun-
ciativo dos traços interseccionais relacionados à idade, à classe social, à
raça e ao trabalho.

Figura 1 – Síntese dos elementos interseccionais que atravessam


os corpos dos garotos de programa nas ruas e nas saunas

Fonte: Cruz, 2022.

O primeiro aspecto relatado por Perlongher (1986) diz respeito às


diferenciações etárias que contornam a concretização da virilidade. Nas
andanças entre as ruas do centro de São Paulo, o antropólogo constata
Maingueneau (2008a) nos auxilia ao enfatizar que as textualidades materializa-
doras de discursos funcionam em um regime disperso, no qual os discursos são
rastreáveis em múltiplas formas e em situações várias.

832
o recorte decenal em que a virilidade seria performada de forma mais
efetiva, isto é, a faixa etária entre quinze e vinte e cinco anos seria o mo-
mento de manifestação mais pontual de uma leitura da virilidade em
direção a sua perspectiva hegemônica, de uma aparente heterossexuali-
dade. Todavia, esse próprio recorte já carrega em si uma arbitrariedade,
porque apresenta como corolário o risco que os michês mais jovens
podem apresentar ao compatibilizar seus traços comportamentais com
o efeminamento.
Em contrapartida, coexistem outros dois agrupamentos etários em
que sujeitos podem ser categorizados. Por um lado, os michês com ida-
de inferior a quinze anos, os quais são desejados pelos clientes por conta
de sua jovialidade, mas ao mesmo tempo são interpretados como um
risco, uma vez que suas performances de virilidade abrem margens para
um lugar de abjeção. Por outro lado, os sujeitos com idade acima de
vinte e cinco anos são entendidos como os que melhor cumprem as
demandas de representação corporificada da virilidade, embora sejam
pouco quistos pela clientela, porque não apresentam a jovialidade al-
mejada. Portanto, há a regência de um processo de esquadrinhamento
dos corpos e de disposição tripartida entre eles, a partir da relação entre
jovialidade e o cumprimento da imagem de virilidade.
Kaye (2004) chama atenção para a sutileza estruturante das rela-
ções homoeróticas no século XX, a fetichização de sujeitos mais novos
e pobres. A partir da análise da construção discursiva do “pseudoho-
mossexual”, o autor elucida que estes eram os sujeitos detentores de
um lugar social privilegiado por conta de seu nível de poder aquisitivo.
Eram homens de classe média e classe média-alta, embebidos em rela-
cionamentos heterossexuais, acima dos 30 anos, entre outros caracteres.
Desse lugar enunciativo, institui-se uma dupla direcionalidade sobre o
posicionamento associativo desses sujeitos, pois poderiam categorizar a
si próprios e aos outros, mas também eram reféns da projeção modelar
em relação aos homens mais jovens.
No caso da prostituição masculina, essa configuração se traduz por
meio da procura dos michês mais jovens. Embora a certa advertência

833
sobre o risco de manifestação de efeminamento, Perlongher (1986) des-
creve que homens com idade superior a 30 anos procuravam os michês
mais novos como forma de ratificação dos corpos mais velhos como
desejáveis. A prática era parte do cotidiano e verificava-se por meio da
conquista dos clientes como clientes fixos, i.e., da recorrência de um
cliente com o mesmo michê. Assim sendo, os michês acima de vinte
e cinco anos se encontravam com clientes efêmeros, sem assiduidade
na rotina de sexo tarifado, enquanto os michês mais novos detinham
clientes fixos, o que sublinha o índice máximo de sucesso.
O traço etário também estabelece vínculo com a diferenciação em
classe social. Sua forma de manifestação se dá por meio do pressupos-
to de que todos os jovens integrados na dinâmica de sexo tarifado são
pobres, o que os comprime a submissão dos desejos do cliente-em-po-
tencial. Assim, além do aspecto de enaltecimento do corpo do cliente
enquanto alvo desejado, a busca pelos michês mais novos é assentada na
reprodução de uma lógica maniqueísta entre quem detém o poder eco-
nômico e quem deve se submeter a ele. Portanto, a organização da práti-
ca de sexo tarifado não tem apenas o viés econômico como um alvo, mas
também estruturada pelas diferenciações que o viés econômico propaga.
Por sua vez, a distinção entre classes sociais ecoa em direção a ou-
tro interseccional, implícito dentro da própria condição de um sujeito
pertencente a um grupo econômico, a distribuição dos espaços geográfi-
cos. Perlongher (1986) constata que o exercício da virilidade pressupõe
o rechaço a sua antonímia, a feminilidade e/ou o efeminamento, o que
funcionaria como um ponto negativado na corporeidade dos michês.
A valorização da virilidade atinge seu ápice quando esta é destinada ao
recorte geográfico das zonas de michetagem, logradouros em que os inte-
grantes devem apresentar uma imagem comportamental e visual conso-
nante a heterossexualidade, caracterizada pela cisgenericidade, pelo papel
de ativo sexual e pela evidência de pelos, músculos e dos órgãos genitais.
Embora a regência latente da versão unilateral sobre a virilidade, os
michês realizavam também os papéis sexuais de passivos. Inicialmente
destinados as zonas residenciais, a passividade integra funcionamento

834
atividade laboral de sexo tarifado, sendo arquitetada por meio da ela-
boração de um conjunto de subterfúgios que garantam a preservação
da imagem de virilidade e o atendimento dos desejos dos clientes. Em
outras palavras, alguns garotos de programa informam a Perlongher
(1986) que atuavam como passivos durante as relações sexuais após
uma negociação com o cliente. Todavia, não havia, nas práticas públi-
cas, o questionamento da virilidade do sujeito.
De que maneira os michês conseguiam exercer o papel de passivi-
dade sexual e preservar a imagem de si viril na comunidade discursiva
que integra? Em primeiro lugar, é preciso entender que os michês rear-
ranjam a lógica de funcionamento da virilidade, propondo um tipo de
“passividade viril”. Essa proposta se traduz por meio da elaboração de
um subterfúgio socioeconômico, pelo qual o aumento do preço do pro-
grama justificaria o remanejamento do papel sexual do michê. Segundo
Russo (2007), o preço ampara publicamente o possível esfacelamento
da imagem viril do sujeito, contornando um dos pontos referenciais da
prostituição masculina.
Em relação às motivações que conduzem os michês ao labor da
prostituição masculina, Kaye (2004) permite elucidar dois grupos, os
homens-subsistência e os homens-soldados. Em decorrência de um
cenário de desemprego e consequentemente da ausência dos aspectos
básicos para a sobrevivência humana (como a alimentação), os ho-
mens-subsistência integravam a prostituição como formas de angariar
recursos para fomentar o ceio familiar. Com interesses distintos do pri-
meiro grupo, os homens-soldados, em face das condições fisiológicas
(PRECIADO, 2014), psicológicas e financeiras em que voltavam das
guerras, não almejavam o sustento familiar ou qualquer objetivo mais
imediato. Ao contrário, adentravam a esfera da prostituição masculina
a fim de angariarem um cliente que fosse capaz de inseri-los no mundo
da aristocracia, o que findaria as condições pouco afortunadas pelas
quais chegavam às localidades em que viviam.
Essa necessidade é encrustada no traço interseccional de classe so-
cial, pois dialoga com a hipótese de que “quanto mais próximos da

835
pobreza, mais viril seria o homem (CRUZ, 2022, p.37). O maquinário
social e discursivo institui como condição de vida, na regência da ter-
ceira fase do capitalismo (ANTUNES, 2009), duas frentes de trabalho,
em que a pobreza estimula a inserção dos sujeitos na prostituição e
ratifica a divisão michê/cliente, mantendo as relações de poder dissimé-
tricas nos meandros de cada interação situadas entre os interlocutores.
Das ruas, passamos para as saunas paulistas, a fim de acompanhar
o funcionamento do processo de pigmentocracia. Segundo Santos e
Pereira (2016), o traço interseccional de raça estrutura as significações
sobre os corpos negros, dispondo-os como valorizados, rechaçados ou
em uma condição limítrofe. Os enunciados sobre negritude que cir-
culam pelas saunas indexam para a potência e a atividade sexual dos
homens negros, ao mesmo tempo em que correm o risco constante
de serem interpretados como “monstros sexuais”. De todo modo, situ-
am-se em uma linha tênue entre a valorização objetificante e a abjeção
patologizante-criminalizante.
Esses dois direcionamentos pelos quais os corpos negros podem
incorrer são mitigados pela instância midiática. Em produções porno-
gráficas (BIBIANO, 2019), somos apresentados aos “negros pauzudos”,
homens que, durante os atos sexuais, são valorizados pelo tamanho dos
órgãos genitais e um comportamento sexual considerado acima da mé-
dia. Em outra direção, aquém do ato sexual, são considerados como
desumanos e pervertidos. Em conjunto, as novelas (BELELI; NIETO
OLIVAR, 2011) também reiteram essa distinção ao apresentarem o ho-
mem negro como um sujeito pobre (articulações interseccionais que
intentam a negativação do corpo), discernível por ser um “monstro se-
xual” e/ou um “corruptor da vida sexual de outros personagens”.
Como forma de rearranjar os enunciados negativados acerca do
corpo negro, os garotos de programa mobilizavam a noção de “more-
no”. Essa subjetividade representa a tentativa de matização dos traços
positivados e negativados da negritude mediante a perfilação do tônus
muscular, a impressão de jovialidade, das posturas e do exercício de
um papel sexual. Isso significa que os garotos de programa precisam

836
se apresentar como os morenos sarados, jovens, com comportamento
indexadores à heterossexualidade e atuarem como ativos sexualmente.
O efeito reside na maior possibilidade de regulação da feminilidade/
efeminamento e maior possibilidade de êxito no processo de angaria-
mento de cliente.
Discursivamente, a mobilização da subjetividade étnica do more-
no representa uma movimentação discursiva produtiva e perniciosa.
Conforme Cruz (2022, p.34-35),

(…) o corpo moreno funciona como noção simultaneamen-


te perniciosa e produtiva: do ponto de vista das condições de
êxito no sexo tarifado, ter o corpo moreno é produtivamente
pernicioso, pois garante ao garoto de programa a possibilidade
de maior rendimento monetário a partir do maior número de
clientes que o desejam. Do ponto de vista da realização corpori-
ficada dos enunciados que caracterizam o corpo moreno, confi-
gura-se de forma perniciosamente produtiva na medida em que
demanda um acompanhamento regulado do corpo a fim de não
evidenciar em nenhum traço de feminilidade.

A produtividade reside na garantia do estímulo desejante aos clien-


tes por meio do cumprimento de certas características corporais e de
corporeidade, enquanto o teor pernicioso atua por meio do escamote-
amento da negritude, de suas raízes culturais, das práticas sociais e das
intencionalidades exploratórias do corpo negro. Em viés interseccional
entre raça e classe social, a pesquisa de Melo e Moita Lopes (2014)
ilustra com precisão a tenuidade do papel do dinheiro no embranque-
cimento do homem negro. Na ocasião, os autores constatam que o ga-
roto de programa não é entendido como negro, pois detém um nível
de poder aquisitivo semelhante aos homens que o contratam (leia-se
homens brancos).
Diante dessa breve incursão sobre os sentidos e movimentações
acerca da virilidade e como ela é estrutura e rearranjada por meio dos
traços interseccionais, tecemos algumas conclusões.

837
O jogo regrado ou a regra do jogo
A virilidade constitui o cerne da organização e estruturação das
práticas discursivas na prostituição masculina, demandando o orques-
tramento de uma imagem viril por parte de seus integrantes. Michês
ou garotos de programa, ambos são situados historicamente em di-
reção a uma leitura hegemônica, o que prevê um conjunto de traços
éticos e estéticos, condicionando a participação e a congregação na
comunidade discursiva dos sujeitos participantes da dinâmica de sexo
tarifado. Essa imagem viril é arquitetada pelos enunciados acerca dos
traços interseccionais, os quais, articulados, oferecem um conjunto
de esquemas de significação balizadores da concretização das trocas
tarifadas.
Com a breve análise de duas cenas da prostituição masculina bra-
sileira, verificamos a ocorrência de quatro direcionamento enunciati-
vos acerca dos traços interseccionais. Assim, idade, classe social, raça
e a dimensão de trabalho são ativadas, por um lado, para concretizar
um projeto hegemônico de representação da virilidade como sinôni-
mo da heterossexualidade. Por outro lado, os dados coletados nas ruas
e nas saunas, evidenciaram a construção situada de articulações dos
traços interseccionais, comprovando o viés de agência dos garotos de
programa em cumprir, aos seus modos, as demandas do mercado do
sexo.
Por conta do acirramento entre o cumprimento das demandas de
funcionamento da prostituição masculina e os agenciamentos realiza-
dos, concluímos que a incorporação dos sujeitos ocorre em um jogo
regrado. Sua característica explicita-se pelo entendimento acerca das
significações sobre os traços interseccionais, avaliando suas formas de
corporificação exitosa e validando a integração dos sujeitos. Em con-
comitância, o funcionamento apresenta, como implicitude, a execução
de rearranjos enunciativos de entremeio, capazes de recuperar as cono-
tações positivadas sobre o corpo viril e manter a salvo das conotações
negativadas.

838
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840
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

PRÁTICAS POLÍTICAS EMERGENTES DE


RESSIGNIFICAÇÃO DA NEGRITUDE - UM
ESTUDO SOBRE PERFORMATIVIDADE A
PARTIR DAS LETRAS DE EMICIDA

Maria Clara Schaeffer de Souza - UFF 150

RESUMO: O trabalho tem como objetivo descrever e analisar as concepções


e forma de atuação do rapper Emicida no contexto de lutas antirracistas no
Brasil. Pretende fazer esse percurso de pesquisa a partir da análise de suas
canções e, também, de seus discursos em espaços públicos, de forma a
produzir uma compreensão da ação desse artista por meio dos seus discursos.
Pretende também refletir sobre a construção de uma identidade negra
brasileira a partir de uma concepção afrodiaspórica, bem como entender
“o que é ser negro no Brasil?” a partir do rap, em específico do Emicida.
A investigação será desenvolvida, primeiramente, por meio de pesquisa
documental, com leitura de bibliografia específica sobre o tema e a partir de
um ponto de vista teórico decolonial. Trata-se, dessa forma, de atividade de
proposta bibliográfica, principalmente focada no estudo e aprofundamento
dos temas, conceitos e questões da pesquisa. Posteriormente, proceder-se-á a
análise dos dados existentes, quais sejam documentários, entrevistas e letras
do artista, assim como arquivos oficiais levantados mesmo em suas próprias
mídias sociais de forma a compreender as estratégias de luta e construção de
identidade apontadas em suas canções. Tendo em vista o caráter bibliográfico
dos estudos, os resultados da pesquisa até o presente momento são de leituras
para aprofundamento teórico e realização de disciplinas da área.
PALAVRAS-CHAVE: Emicida. Rap. Raça. Decolonialidade. Identidade.

ABSTRACT: The present study aims to describe and analyze the conceptions
and manners in which the rapper Emicida acts in the context of antiracist
fights in Brazil. It plans to unfold the research by analyzing his songs and,
also, his discourses in public spaces, in order to make an understanding of this
150
Mestranda da Linha de Pesquisa 3: História, Política e Contato Linguístico, do
programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal
Fluminense (UFF). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordena-
ção de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), sob orientação
do professor-doutor Joel Windle.

841
artist’s actions through his speeches. It also aims to reflect on the development
of a Brazilian black identity stemming from an Afrodiasporic conception. In
addition, to understand “What does it mean to be black in Brazil?” from
Emicida’s rap music. Firstly, the investigation will be developed through
documental research, by reading specific literature about the themes and
from a theoretical decolonial perspective, focusing on studying the themes,
concepts, and research questions. Subsequently, it will proceed with the
analysis of the data from the documentary and his album called “AmarElo
- É tudo pra ontem”. The results of the research thus far are its theoretical
deepening and the completion of disciplines related to the area.
KEYWORDS: Emicida. Rap. Race. Decoloniality. Identity.

Introdução
Iniciarei por falar um pouco sobre a minha trajetória, considerando
que a metodologia narrativa permite uma recontextualização e ressig-
nificação por parte do pesquisador, fazendo ver as experiências como
acessíveis por meio das narrativas dos sujeitos. Assim sendo, é possível
considerar a narrativa como uma performance, em que as pessoas que
narram suas histórias relacionam os eventos da narrativa e se envolvem
em uma certa performance de quem são nessa experiência de narrar
(MOITA-LOPES, 2009, apud LOPES et al., 2018). A perspectiva da
narrativa como uma performance dá ênfase aos enunciados como ações
no mundo, em que contar sobre algo não é apenas uma descrição está-
tica da realidade, mas também é a alteração dela (WINDLE et. al., no
prelo).
Venho do interior do Rio de Janeiro, de uma cidade chamada
Cordeiro. Tenho uma família grande, formada pela família de minha
mãe, majoritariamente de pele branca, e a família de meu pai, formada
predominantemente por pessoas de pele negra retinta. Por isso, minha
pele é de um tom mais claro que a do meu pai, porém mais escuro que
o da minha mãe, o que, muitas vezes, fez com que eu me sentisse no
“meio do caminho” e “em lugar nenhum”.
Assim que terminei a escola, eu comecei a trabalhar em uma farmá-
cia como balconista. Nesta época eu era a única renda da minha família,

842
mas após alguns meses, meu irmão e minha mãe conseguiram outros
empregos o que me deu a possibilidade de mudar e trabalhar como
secretária em um curso de inglês em troca do término do curso. Lá, eu
fui reconhecida como uma boa aluna e chamada para dar aulas de inglês
para uma turma de iniciante. Após isto, eu continuei como professora,
que já sou há 13 anos. Acredito que ser professor é um espaço de cons-
tante performatividade, pois com cada turma e em cada escola, sou uma
pessoa diferente, ou seja, a minha performance muda de acordo com o
contexto em que estou inserida.
Como professora eu sempre trabalhei muito, às vezes em até três lu-
gares (entre cursos e escolas) ao mesmo tempo. Sempre que podia, usava,
em minhas aulas, as minhas paixões: livros, jogos de videogame, RPG151
e música. Depois de quatro anos lecionando, eu finalmente consegui
ingressar na Universidade Federal Fluminense no ano de 2013, para
cursar a graduação em Letras Português-Inglês, conquista que resultou
do governo feito pelo Partido dos Trabalhadores (PT), responsável por
investimento nas áreas sociais e diminuição de desigualdades. Durante
esse período, eu continuei trabalhando, algumas vezes em projetos com
remuneração em forma de bolsa, como o Programa de Universalização
em Línguas Estrangeiras (PULE)152 e Inglês Sem Fronteiras (ISF), ofe-
recidos na universidade.
No decorrer da graduação foi quando eu conheci o trabalho do ra-
pper Emicida e percebi que muitas de suas músicas falavam sobre como
eu me sentia. Trabalhava durante todo o dia para pagar as contas e me
manter na cidade de Niterói e nos estudos. Nesta época, tal qual em
outros momentos de minha vida, eu usava a música como uma ferra-
menta para me manter mentalmente saudável, tentando equilibrar cor-
po, mente e sentimentos através do que escutava. Por exemplo, quando
ele canta “Eu sei, sei cansa/ Quem morre ao fim do mês/ Nossa grana

151
RPG é um tipo de jogo em que os jogadores assumem papéis de personagens
e criam narrativas colaborativamente. Disponível em: https://bit.ly/3pYS6dJ.
Acesso em: 01 nov. 2021.
152
Disponível em: https://centrodelinguas.uff.br/pule/. Acesso em: 05 jan. 2022

843
ou nossa esperança?” na canção “Levanta e Anda”153, me ajudava saber
que eu não era a única pessoa a passar por aquele tipo de situação. Neste
caso, a arte dele influenciou a minha vida, assim como Volóchinov
(2019) mostra em seu trabalho com o Círculo de Bakhtin “[...]a arte é
imanentemente social: o meio social extra-artístico, ao influenciá-la de
fora, encontra nela uma imediata resposta interior. Nesse caso, não é o
alheio que age sobre o alheio, mas uma formação social sobre a outra.”
Outras canções do artista já me mostravam referências das quais
nunca havia escutado sobre, assim como na canção “Ismália”, que é ins-
pirada no poema do poeta mineiro, Alphonsus de Guimaraens. Além
disso, Emicida sempre foi alguém que fez muitas de suas canções em
colaboração com outros artistas, o que, consequentemente, fez com que
eu conhecesse mais sobre a cena da música brasileira e as pautas que
outras pessoas defendem como o feminismo negro ou a luta LGBTQ+
por exemplo. Apesar de músicas não fazerem parte de um ensino dito
formal, é possível ver o letramento acontecendo através das letras cria-
das pelo artista e pela relação que eu via com a minha própria vida.
Ainda assim, em meio aos trabalhos e correrias do dia a dia, cheguei
à Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da UFF, contexto que ini-
cia esse texto e em que me encontro hoje.
Como defendido por Lopes et. al. (2018, p. 683), “as histórias que
contamos sobre nós mesmos são sempre influenciadas por histórias de
outras pessoas.”, e a escolha do tema de minha pesquisa de mestrado
surgiu a partir da vontade de analisar como se dá a influência dos atos
de fala do músico Emicida nas pessoas que se identificam como negras
no Brasil. Para isso, é necessário comentar acerca do que se entende
por identidade e, mais especificamente, da identidade negra brasileira,
que tem se tornado uma discussão cada vez mais presente e necessária
em diferentes âmbitos acadêmicos e sociais. Para este propósito, usarei
a ideia de performatividade que é fundada em discussões levantadas
por Austin (1990), Derrida (1988) e Butler (1997) a luz de pensadoras
153
Disponível em: https://www.letras.mus.br/emicida/levanta-e-anda/. Acesso em:
08 mar. 2022.

844
como Melo (2022) e Muniz (2009). A escolha desta teoria foi feita jus-
tamente por acreditar que raça não é algo estático, mas sim construído,
um conceito que está em constante movimento.

Contextualização
Vivemos tempos incertos para dizer o mínimo. Desde que o atual
presidente assumiu o governo, nosso país tem passado por um verda-
deiro desmonte do que vinha sendo feito em governos anteriores. A
educação básica e superior sendo sucateada a todo momento, uma taxa
de desemprego avassaladora que atinge nosso país juntamente com uma
recessão econômica catastrófica, perseguição de pessoas negras, indíge-
nas e LGBTIQ+, sem falar em inúmeras outras atrocidades que viven-
ciamos nesses últimos anos. Moita (2020) nos mostra que:

[...]enfrentam-se agora governos ou partidos políticos de extre-


ma-direita, ferozmente empenhados em retroceder os avanços
vividos nas práticas sociais que nos levaram a compreender a vida
social em outras bases. Temos nos defrontado diariamente com
os efeitos de discursos racistas, misóginos, LGBTIQ+fóbicos,
anti-imigrantes, contrários à diversidade religiosa, negacionistas
da ciência, etc. em muitos países.

Podemos ver acontecimentos parecidos em outros países que tam-


bém elegeram governantes de partidos da extrema direita como EUA,
Hungria, Polônia, Índia, Alemanha, entre outros (MOITA, 2020). O
autor afirma também que “é sabido que a Internet é a casa da nova
direita, por assim dizer” ao mencionar que ações como as aqui mencio-
nadas anteriormente partem de “grupos de baderneiros com outros de
milícias digitais de extrema-direita”.
Santos (2016 apud MOITA, 2020) faz importantes contribuições
para esta discussão e afirma, por exemplo, que várias de nossas socieda-
des são socialmente fascistas, embora democráticas. Moita (2020) nos
mostra também que estamos em tempos que retomam ideais fascistas,
o que o autor descreve como fascimos social. Estes pensamentos nos

845
ajudam a entender a razão de, apesar de estarmos em um governo dito
democrático, não é isso que vivenciamos quando nos deparamos com
o atual presidente atropelando a constituição da país e/ou liberando
o porte de armas ao passo que apoia a exclusão de grupos que estão à
margem da sociedade graças a abismos socioeconômicos fomentados
por nosso atual governo.
O rap hoje em dia, tem outros desafios diferentes dos que tínha-
mos nos anos 90 e até, arrisco a dizer, no início dos anos 2000. Nos
encontramos em um momento de recessão, depois de muitos brasilei-
ros terem conquistado um espaço social e econômico importante. Essa
mudança abriu caminho para que os negros ocupassem espaços outros,
desde shoppings, restaurantes, festas, até museus e universidades. Estas
questões são bem relacionadas por Moita

In Brazil, queer rap has come on the back of social movements


that question the borders of racism, classism and homophobia.
Government policies implemented by two successive left-wing
presidents, Luiz Inácio Lula da Silva and Dilma Rousseff, suppor-
ted this kind of concern from 2003–2013. Long-marginalized
groups ascended during that period, as a consequence of an
accelerated process of social inclusion (Souza 2016)154. In an
unprecedented shift in the history of the country, the gap be-
tween the rich and the poor decreased. Underprivileged factions
of society broke free from the contempt they had continuous-
ly suffered. They started to share unexpected realms of leisure,
consumption and education as a result of access to cultural and
symbolic capitals formerly reserved for the middle- and upper-
-class. Nevertheless, along with social mobility, fear and hatred
thrived. (2018, p.7)

Hoje assistimos tudo que conquistamos durante anos e com muita


luta, ser tirado de nós de uma forma violenta. Vemos a sociedade voltar
para o que antes fomos, com o abismo da diferença social nos empur-
rando novamente para as margens da sociedade.
154
Souza, J. (2016) A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enga-
nado. São Paulo: LEYA Editora.

846
Dito isso, querer enxergar o rap como exatamente a mesma coisa
que foi nos anos 90, assim como o Teperman (2015), seria um erro.
O rap fala sobre o que as pessoas vivenciam, suas lutas e suas alegrias,
que estão diretamente ligadas ao contexto social em que se encontram.
Acredito que este estilo musical precisa ser reinventado, revisto, sem
esquecer o que um dia foi, mas percebendo que, assim como todos
nós, o rap também passou por mudanças consideráveis ao longo desses
últimos anos.

Pressupostos teóricos básicos


Este trabalho se situa numa perspectiva decolonial (MUNANGA,
2009; SOUZA, 2009; MUNIZ, 2009; NASCIMENTO, 2019). Farei
uso, mais especificamente, da ideia de performatividade através da lin-
guagem para analisar a influência do artista Emicida sobre seu público
quanto ao que é ser negro no Brasil nos dias atuais. Para isto, parto
dos pressupostos teóricos XYZ, mas principalmente nos abordados por
Austin (1990), Derrida (1988) e Butler (1997).
Austin (1990) afirma que “a linguagem é vista como ação e como
forma de atuação sobre o real e, portanto, de constituição do real, e
não meramente de representação ou correspondência com a realidade.”
(1990, p.10, apud Kassandra) Isto significa ver a linguagem como ação
no mundo; se você fala, você está agindo, não apenas descrevendo algo.
Segundo Muniz (2009), a partir desta ideia Austin atribui uma perfor-
matividade à linguagem, que se manifesta através dos atos de fala.
Antes de continuarmos neste pensamento, é de suma importância
dizer que:

(...) com base em pesquisadores dos estudos raciais,


Mbembe(2015) e vários outros, podemos dizer que raça é uma
invenção eurocêntrica que partiu das pessoas brancas para de-
nominar as pessoas não brancas que ganha sua existência pelo
processo de iterabilidade e de citacionalidade da linguagem pro-
postos por Derrida, ou seja, pela repetição. (Melo, p.300, 2022)

847
Derrida (1988) afirma que não há intencionalidade fora do dis-
curso, ela está sempre dentro do contexto. Somando a esta ideia, há o
processo de iterabilidade que é a repetição de algo até que isto se na-
turalize como normal. Esta repetição, porém, é sempre feita em outros
contextos, nunca exatamente da mesma forma. Além disso, temos a
citacionalidade, que é uma repetição feita ao trazer diretamente a voz
do outro. Tomemos como exemplo a expressão “cabelo de bombril”,
que compara o cabelo negro com a palha de aço, aqui referenciada pela
marca. Esta expressão, ao ser proferida repetidas vezes (iterabilidade),
faz com que a sociedade a internalize como algo natural, ocasionan-
do assim com que as pessoas que identifiquem seus cabelos como um
“cabelo bombril” acreditem que não tem cabelos bonitos (de acordo
com o padrão de beleza imposto pela sociedade). Esta fala desencadeia
efeitos como, por exemplo, o alisamento do cabelo (técnica que muda
a estrutura do cabelo para que ele pareça liso) ou a falta de apreço pelo
próprio corpo e imagem.
A partir destes pensamentos, pretendo trabalhar a ideia de perfor-
matividade, que tem por sua vez, duas faces distintas. Uma face desta
teoria é o discurso que é naturalizado através da repetição; a outra, é que
nesse repetir, essa repetição falha, o que possibilita a entrada do novo, a
transformação daquela crença, daquele valor. Esta transformação é algo
de muito valor para este trabalho, pois é por meio dela que se verifica
a modificação do que é ser negro, que nos possibilita criar uma nova
narrativa, de nos curarmos através da linguagem. A performatividade
permite que as pessoas negras possam agir de diversas formas, encenan-
do performances diferentes em contextos diferentes, desconstruindo a
ideia de que a pessoas negra precisa ser de uma forma única.

É subalterno ou subversão?
O hip hop é um estilo de música conhecido por funcionar de acordo
com a vida das pessoas que estão à margem da sociedade, tendo elas e
suas histórias como foco de suas letras e rimas. Este estilo de música tem
uma extensa trajetória e se modifica de acordo com as movimentações
da sociedade.

848
Autores como Teperman e Santos ressaltam a diferença entre as ge-
rações de rappers, separando-as entre a “velha escola”, que seriam artis-
tas da geração anos 90, anterior aos da “nova escola”, após os anos 2000.
Segundo Santos, uma das principais características que diferencia esses
dois grupos é de que “vários rappers da ‘nova geração’ tiveram acesso
à educação superior, ao contrário da realidade dos rappers dos anos
1990”, o que difere Emicida, formado em técnico de Design, e o Mano
Brown, que estudou até a oitava série (atual 9º ano). Esta mudança é
advinda do governo feito pelo Partido dos Trabalhadores (PT) no qual
foram implementadas uma série de políticas de ações afirmativas que,
segundo Santos, “[...] contribuíram ao surgimento de uma nova sensi-
bilidade sobre a negritude no país e o seu lugar social e simbólico”.
Além disso, outra importante característica que separa essas duas
gerações é o acesso à informação e a forma de veiculação de músicas au-
torais. Com o advento e o progresso da internet, a forma como a socie-
dade consome todas as coisas mudou. Atualmente, plataformas como
Spotify, YouTube e Deezer, por exemplo, recebem e distribuem músi-
cas feitas por artistas independentes e, junto a isso, redes sociais como
Instagram e Facebook divulgam diversos projetos através de suas plata-
formas. Logo, essa série de fatores faz com que artistas independentes
da “nova escola” não estejam limitados apenas a produtores fonográfi-
cos para que suas músicas circulem. Segundo Teperman (2015 c):

A relativa melhoria no nível de renda, a democratização do aces-


so à internet banda larga e à tecnologia em geral, associados
à maior escolarização, são algumas das mudanças recentes que
impactaram as trajetórias de produtores e consumidores de rap.

Ademais, para Teperman (2015 c), os rappers da “nova geração”


mostram uma maior desenvoltura no que tange a forma de lidar com
suas próprias carreiras, na qual a relação de dinheiro e sucesso é estreita
para eles. O rapper Emicida, desde 2009, é produzido pelo seu irmão
Evandro Fióti e juntos, eles fundaram uma gravadora, produtora, loja e
selo chamada Laboratório Fantasma, tendo hoje mais de 10 anos.

849
Ainda seguindo o pensamento do antropólogo (2015 b, p.41),
“se a expressão ‘nova classe média’ é precipitada ou imprecisa, é certo
que as transformações do Brasil nos últimos vinte anos bagunçaram
a identidade de classe no rap”. Neste momento, me encontro em um
ponto fundamental da minha pesquisa, no qual reconheço que todo o
estudo feito até aqui é crucial para que consigamos compreender o rap
no Brasil, porém, entendo que precisamos ter um novo olhar para os
rappers dos dias de hoje, lançando mão de uma visão engessada que te-
mos sobre estes artistas e entendendo que é preciso entender a sociedade
de hoje, da qual eles fazem parte.
O autor afirma em seu artigo para o jornal Nexo que “O proble-
ma de ‘fazer sucesso’ e ao mesmo tempo ‘ser contra o sistema’, am-
plamente tematizado pelo Racionais, é visto pela nova geração como
questão superada”. Mas seria mesmo possível fazer tal afirmação? O
próprio Teperman (2015 c, p. 82) afirma que o rapper Mano Brown,
do Racionais MC’s, teria se tornado, “em tom provocativo: mais branco
e tolerante”, o que retoma a premissa de que essa mudança seria uma
questão. Ora, quais seriam as regras para transitar entre duas classes
sociais sem mudar quem se é nesse processo? Seria isso possível? E, seria
a mudança tão significativa a ponto de dizermos que rappers são agora
mais uma parte da “nova classe média” e não esperar mais uma militân-
cia por suas “antigas” causas?
Acredito que o rap vai estar politicamente posicionado de alguma
maneira, assim como afirma Colima (2017):

Podemos dizer que este rap politicamente consciente e marginal


(rap social, como é chamado pelos e pelas rappers no Chile) é
uma luta ideológica na dimensão sócio-política, cuja articulação
é possível através da linguagem. É importante salientarmos que
a luta ideológica da qual falamos não consiste num discurso ca-
ótico, ou precário, pelo único fato de surgir do marginal; muito
pelo contrário, corresponde a um uso sofisticado da linguagem.
Os padrões de métrica e rima constituem uma das característi-
cas mais notáveis do rap, pois isso exige grande habilidade dos

850
criadores nas escolhas linguísticas precisas e na organização har-
moniosa de ideias. Isto evidencia a alta elaboração da linguagem
utilizada no rap. (p.28)

Corroboro com o pensamento de Rocha (2020) quando ele afirma


que

Resumidamente, analisar o modo como se comporta um indi-


víduo que ascendeu da classe trabalhadora para a ‘nova classe
média’, da mesma forma com que se analisa um indivíduo de
classe média que nasceu e permaneceu durante toda a vida na
mesma classe, torna-se problemático. (p. 33)

Reitero aqui, a importância de minha pesquisa. A partir de


pesquisas empíricas podemos revelar novos conflitos sociais, nos quais
se encontram pessoas marginalizadas. Logo, mostrando também alguns
dos conflitos e disputas que perpassam a vida não somente de rappers,
mas de seus ouvintes e simpatizantes.

AmarElo
AmarElo é um CD no qual o rapper Emicida mistura diferentes
gêneros musicais, seja através de samples, instrumentos distintos ou
até mesmo parceria com outros artistas. Além disso, há também uma
grande quantidade de referências a tópicos distintos como cultura
negra, racismo, religião, entre outras coisas que abordarei aqui.
No site da produtora “Laboratório Fantasma”, fundada por Emicida
em 2009155, há uma breve explicação sobre o álbum AmarElo:

Para um mundo em decomposição, Emicida optou por escrever


como quem manda cartas de amor. O resultado desse exercício
é o novo projeto de estúdio do rapper paulista, AmarElo, em
que ele propõe um olhar sobre a grandeza da humanidade. Com
o título inspirado em um poema de Paulo Leminski (amar é um

155
Conforme dito na linha temporal do próprio artista em seu site: http://www.
emicida.com.br/conheca?lang=ptbr

851
elo | entre o azul | e o amarelo), o artista busca – ao longo das 11
faixas – reunir heranças, referências e particularidades encon-
tradas na magnitude da música brasileira e aplicar a elas olhares
e aprendizados que acumulou desde o lançamento da sua pri-
meira (e clássica) mixtape Pra Quem Já Mordeu um Cachorro
por Comida Até Que Eu Cheguei Longe (2009). Usando o rap
como fio condutor, Emicida soma o clássico ao moderno em
uma incursão que ele ousa chamar de neo-samba, também res-
ponsável por elevá-lo ao mesmo patamar dos grandes mestres.
Produzido por Nave, AmarElo (volume 1) entra nas platafor-
mas de música pela Laboratório Fantasma e com distribuição
da Sony Music.156

Há uma preocupação do artista, transcrita também nesse trecho,


em ao mesmo tempo que reconhece a influência do rap, se apresenta
como algo novo. De fato, o álbum tem como propósito chegar em novas
pessoas através de novas formas de comunicação. O projeto AmarElo
ganhou o nome também de “AmarElo PRISMA” visando dar a ideia de
pluralidade como mote central de suas atividades. Nesse sentido

Emicida descreve o projeto como um PRISMA. Ou seja, um


experimento social que se expande a partir de um centro co-
mum. No caso, mensagens de amor, paz e espiritualidade. Mas
sabemos que não é só isso, né? AmarELO é, também, um belo
de um experimento transmídia.157

É interessante (e importante) entender esse projeto como transmí-


dia porque essa intenção de ser muitas coisas ao mesmo tempo dialoga
com as mensagens de fundo que são apresentadas pelo artista: o negro,
a periferia, os mais humildes, podem ser mais coisas do que o que a
vida apresenta. A ideia de pluralidade é justamente esse exercício cons-
tante da empatia e de tentar entender o lugar de existência do outro.
Só que no caso desse projeto AmarElo, isso se dá através das canções,

156
Disponível em: http://www.labfantasma.com/amarelo/ acesso em 29/04/2022.
157
Disponível em: https://culturadoria.com.br/amarelo-e-o-universo-transmidia-
-de-emicida/ acesso em 28/04/2022

852
do documentário (AmarElo – É tudo pra ontem, 2020), dos podcasts
(AmarElo Prisma) e também de suas redes sociais.
Há uma preocupação de Emicida em tentar, através de narrativas
pessoais, construir um discurso que possa ter uma potência de construir
um novo imaginário de identidades. Como o próprio artista comenta
em seu site:

Emicida projetou tudo o que aprendeu ao longo dos anos como


um raio de luz em AmarElo, numa espécie de prisma. “Quando
você tem um ambiente de paz, consegue alcançar a serenidade
e observar a realidade com maior clareza e capacidade de refle-
xão”, explica o artista. “Daí, é possível se conectar com a sua
própria compaixão, se colocar no lugar do outro e, assim, mu-
dar a realidade”, continua. Trocando em miúdos: com AmarElo
Prisma, Emicida pretende promover - por meio da empatia -
uma mudança de comportamento que permita um respeito à
pluralidade do Brasil. Para isso, ele parte de narrativas pessoais
(a dele e a de múltiplos e diversos entrevistados) para chegar em
soluções coletivas158.

Para além disso, é importante começar a análise do mesmo pela


sua base de maior alcance: suas mensagens escritas e cantadas no álbum
AmarElo.

Principia
A primeira música do álbum, intitulada Principia, começa trazendo
o som do agogô, instrumento característico do Candomblé. Logo após,
há um coro de mulheres com participação de Pastoras da comunidade
do Rosário e no final da música há, também, a contribuição com uma
fala do Pastor Henrique Vieira.
Para analisar essa letra é importante pensar alguns critérios que
atravessam a canção. O primeiro deles são as referências à cultura negra.

158
Disponível em: http://www.emicida.com.br/noticia/10-Emicida-anuncia-ini-
ciativa-multiplataforma-AmarElo-Prisma?lang=ptbr acesso em 15/04/2022.

853
Essas referências se misturam com os elementos musicais e ajudam a
trazer o ouvinte para dentro da cultura que o artista quer mobilizar. O
coro de mulheres regido por um agogô, característico do Candomblé,
dialoga já com a primeira frase da música que fala sobre o “cheiro doce
da arruda”. A arruda é uma planta aromática muito utilizada nos rituais
do Candomblé para afastar maus fluidos e assim abre tanto a canção
quanto o álbum do autor. É como se nesses segundos o mesmo estivesse
deixando energias ruins de fora desse momento e, ao mesmo tempo,
trouxesse tanto quem conhece a cultura do Candomblé (de matriz afri-
cana) para dentro dessa segurança quanto quem não a conhece.
Essa canção tem uma série de referências religiosas de origem cristã
(para além do candomblé). Há, assim, um verdadeiro sincretismo reli-
gioso como podemos ver no trecho seguinte, o segundo verso da músi-
ca, em que após se referir a arruda o autor rima com “buda”.
Mais adiante, no verso “Invado cela, sala, quarto”, o autor ao se
referir a invasão de todos os lugares faz questão de marcar a cela. A
cela, nesse contexto, é não só o local onde Jesus passou seus últimos
momentos (e a letra, nesse trecho, faz referência a Barrabás em “Nações
em declive na mão desse Barrabás”) como também ao encarceramento
em massa no Brasil que tem como maioria a população negra.
No trecho seguinte da música, de Fabiana Cozza, a letra vai di-
zer que “tudo que bate é tambor” e depois “tudo é África” e por fim
“enquanto a terra não for livre, eu também não sou”. Essa última fala
remete a escravidão e dialoga com a seguinte que chama para a prática,
para a ação, o ouvinte. Na seguinte “Enquanto ancestral de quem tá
por vir, eu vou”, esse verso chama para si a responsabilidade de agir no
agora. É um chamado para a militância em alguma medida pois ela se
completa com a ideia de “quer que eu tire de tu a dor”. Tirar a dor do
outro, na prática, é um ato performado pelos ancestrais e nesse trecho é
interessante pensar sobre como o artista entende a sua responsabilidade
social para com a dor dos que vem adiante.
Ao voltar para Emicida, temos mais algumas referências a escravi-
dão e a cultura negra como “cana de açúcar” e “gueto”. Nesse trecho é

854
importante perceber como o autor enuncia que “A rua é nóis”. Quem
seríamos nós? Seguindo uma interpretação lógica desse trecho, se “no
caminho da luz, todo mundo é preto” e o “nóis” da rua é “todo mun-
do”, podemos interpretar que “todo mundo é preto”. A letra dá sinais
dessa interpretação ao dizer, no mesmo trecho, “não julgue o playboy”.
É uma marca de Emicida esse tipo de pensamento, pois essa não é uma
luta contra o outro, é uma luta por igualdade. Há um chamado por
empatia.
Ademais, o autor, além dos recursos musicais, traz uma linguagem
com algumas gírias e com marcações específicas da fala, julgada por
muitos, de pessoas que estão à margem da sociedade. Esse recurso pare-
ce ser utilizado com o propósito de, mais uma vez, trazer o ouvinte para
dentro do ambiente que ele planeja mobilizar. “Só no que nóis ta vendo
memo”, “tudo que nóis tem é nóis”, “um sorriso ainda é a única língua
que todos entende”, “simbora que o tempo é rei” ou ainda “tio, gente é
pra ser gentil” demonstram essa intenção.
Emicida, em Principia, faz diversos movimentos para trazer o ou-
vinte para dentro da cultura periférica ao mesmo tempo que tenta apre-
sentar um viés de empatia, compreensão e harmonia com os problemas
enfrentados pela sociedade (em especial pela negritude). A potência
desta canção se encontra justamente em um chamado para um ativis-
mo positivo, ciente do tempo e espaço que ocupa, sem perder de vista
as dificuldades que o sincretismo religioso pode gerar (assim como as
diversas posições políticas do mundo trabalhadas na canção).

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858
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

REFLEXÕES SOBRE O PORTUGUÊS FALADO


POR POVOS INDÍGENAS: CONTRIBUIÇÕES
DA LINGUÍSTICA APLICADA

ISSUES ABOUT PORTUGUESE SPOKEN


BY INDIGENOUS PEOPLE: APPLIED
LINGUISTICS CONTRIBUTIONS

Maria Gorete Neto (UFMG)

RESUMO: Os estudos sobre o português falado por povos indígenas –


português indígena – são ainda poucos e necessitam de aprofundamento.
O aumento de estudantes indígenas na universidade tem oportunizado um
maior contato com as culturas, epistemologias e cosmovisões indígenas e ainda
uma maior visibilidade do uso que indígenas fazem de suas línguas, dentre
elas a língua portuguesa. É também neste contexto que o português indígena
entra em conflito com o português acadêmico, exigido na academia, conflito
este em boa parte gerado pelo desconhecimento que se tem das realidades e
línguas indígenas. Considerando este cenário, este trabalho discute algumas
características do português indígena e analisa duas dissertações de mestrado
escritas por indígenas, com o intuito de compreender como essa variedade
aparece em textos acadêmicos. A análise está ancorada nos pressupostos da
Linguística Aplicada Indisciplinar que, ao passo que problematiza conceitos
como línguas e identidades, centrais na discussão aqui apresentada, busca
compreender os significados que os próprios falantes constroem sobre suas
línguas. A expectativa é que a reflexão contribua para uma maior compreensão
do significado do português indígena para os povos indígenas e para a sua
promoção e valorização, principalmente nas universidades. Espera-se ainda
explicitar as contribuições da Linguística Aplicada nos debates que envolvem
as línguas faladas por povos indígenas.
PALAVRAS-CHAVE: português indígena; Linguística Aplicada; línguas indí-
genas, ensino superior.

ABSTRACT: Studies on Portuguese spoken by indigenous peoples are few and


need to be deepened. Indigenous students’ presence at the brazilian university

859
has been increasing in the last years. Universities are improving the contact with
indigenous cultures, epistemologies and cosmovisions. Indigenous students
have been contributing to show indigenous languages, including indigenous
variety of Portuguese. It is in this context that indigenous Portuguese comes
into conflict with academic Portuguese, required in academia, a conflict
largely generated by the lack of knowledge about indigenous realities and
languages. Considering this issue, this work discusses some characteristics
of indigenous Portuguese and analyzes two master’s dissertations written by
indigenous candidates, in order to understand how this variety appears in
academic texts. The analysis is based in the assumptions of Applied Linguistics
which problematizes concepts such as languages and identities, central to the
discussion presented here, and seeks to understand the meanings that speakers
themselves construct about their languages. It is expected that the discussion
would contribute to understand how indigenous students uses their languages
in academic texts. It is argued that Applied Linguistics has contributed a lot to
the research about indigenous languages, inclunding Portuguese.
KEYWORDS: indigenous Portuguese; indigenous languages; Applied
Linguistics; university education.

Introdução
Em 2016, a Assembleia Geral da ONU – Organização das Nações
Unidas – proclamou o ano de 2019 como o Ano Internacional das
Línguas Indígenas. As discussões empreendidas durante esse ano tive-
ram como resultado a Resolução A/RES/74/135 (UNESCO, 2020),
que decretou o período de 2022-2032 como a Década Internacional
das Línguas Indígenas (doravante IDIL 2022-2032). A UNESCO –
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
– ficou encarregada de coordenar e centralizar as atividades da Década
que tem por objetivo chamar a atenção para a situação de perigo em que
estão as línguas indígenas ao redor do mundo e propor ações para pro-
mover e revitalizar essas línguas. Neste sentido, vem sendo construído
um plano global de ação, com intensa participação dos povos indígenas,
com a cooperação de organizações indigenistas, universidades, dentre
outros aliados das causas indígenas.

860
Do documento ‘Declaración de Los Pinos [Chapoltepek] –
Construyendo un Decenio de Acciones para las Lenguas Indígenas’
(2020), que recomenda princípios, orientações estratégicas e procedi-
mentos a serem adotados na construção do plano global para a Década,
saiu o lema “Nada para nós sem nós”, reivindicando a centralidade e
protagonismo indígenas, em todos os assuntos de seu interesse no decê-
nio. Considerando essas orientações, foram criados grupos de trabalho
(GT), coordenados por indígenas, com o intuito de fazer o plano global
e tomar outras providências para a realização da IDIL 2022-2032.
No Brasil, sob a coordenação da professora indígena Altaci Rubim
Kokama, da Universidade de Brasília, representante dos povos indíge-
nas brasileiros no GT UNESCO, foi criado o GT Nacional que se
subdivide em GT Línguas Indígenas, GT Línguas de Sinais Indígenas
e GT Português Indígena. As reuniões dos GT’s iniciaram-se ainda em
2021, durante a pandemia, com o intuito de elaborar o plano de ação
para o contexto indígena do Brasil. Em seguida, esse plano foi apresen-
tado e discutido em encontros regionais, tudo ainda de forma remota.
Como o documento está sempre em construção, a ideia é que ele seja
aprimorado ao longo do decênio.
Para contribuir com as ações e discussões que vêm sendo realizadas
no âmbito da Década, este trabalho faz uma reflexão sobre o português
falado por povos indígenas, enfocando a contribuição de linguistas apli-
cados. Espera-se favorecer uma maior compreensão do significado do
português indígena para os povos indígenas bem como incentivar sua
promoção e valorização.

Português indígena: como nomear, como definir


Duas questões vêm sendo debatidas no âmbito do GT Português
Indígena: uma é como nomear o português falado por povos indígenas,
haja vista as várias formas pelas quais pesquisadores têm se referido a
esse português. A outra questão é como chegar a uma definição, a um
conceito de português indígena que esteja em conformidade com os
anseios dos povos indígenas.

861
Em um levantamento não exaustivo, foram encontradas pelo
menos cinco formas de nomear o português falado por indígenas: 1.
Português indígena (ABRAM DOS SANTOS, 2018; FERREIRA;
AMADO; CRISTINO, 2014; GORETE NETO, 2012, 2018;
MAHER, 1996); 2. Português étnico (AMADO, 2015; BRAGGIO,
2015; COSTA; RAZKY; GUEDES, 2020; FERREIRA, 2005); 3.
Português intercultural (NASCIMENTO, 2012); 4. Português de con-
tato (BONIFÁCIO, 2019; CAZUZA, 2021; EMMERICH, 1984;
LUCCHESI; MACEDO, 1997; PACHECO, 2005); 5. Português
segunda língua (ABRAM DOS SANTOS, 2011, 2005; GORETE
NETO, 2005; KOGA; SOUZA; AMADO, 2010; LIMA E SILVA,
2012), dentre outras. Todas essas formas de nomear são legítimas, mas
os povos indígenas têm debatido qual seria a definição que melhor visi-
biliza a especificidade do português indígena e consensuaram que essa
será uma tarefa para os próximos dez anos.
Uma outra estratégia que vem sendo utilizada é o uso da constru-
ção “português + povo” com o intuito de demonstrar a diversidade des-
se português, que varia conforme a realidade sociolinguística e cultural
de cada comunidade. Desta forma, ao invés de português indígena, ou
correlatos, são ditos: português Pataxó, português Xakriabá, português
Maxakali, dentre outros.
No que se refere à definição, em primeiro lugar, é preciso conside-
rar a ambiguidade que engendra o uso do português pelos povos indí-
genas: de um lado, língua imposta pela violência do contato; de outro,
língua ressignificada e apropriada para a luta pelos direitos.
Um trabalho seminal, que nos ajuda a compreender o que é o por-
tuguês indígena, é a tese de doutorado da linguista aplicada Teresinha
de Jesus Machado Maher, defendida na UNICAMP – Universidade
Estadual de Campinas – em 1996. A autora, cujo trabalho inspirou e
continua inspirando muitos outros sobre essa temática, em sua pesqui-
sa, observou o uso que povos indígenas do curso de formação de profes-
sores da Comissão Pró-Índio do Acre faziam da língua portuguesa e in-
formou “Parece estar havendo, entre os professores-índios em questão,

862
um processo, não de mera assimilação da língua portuguesa, mas de
uma apropriação, antropofágica, desta língua exógena, com o objeti-
vo de marcá-los como não cariú159.” (MAHER, 1996, p. 37). Maher
(1996, p. 37) descreve “A emergência e algumas particularidades de
um Português Índio utilizado para este fim, bem como a utilização da
língua dominante para o estabelecimento de uma identidade indígena
pan-étnica”.
A pesquisadora afirma ainda que “embora a língua portuguesa não
seja, tradicionalmente, vista como símbolo de identidade indígena, os
professores índios do projeto “Uma Experiência de Autoria” vêm utili-
zando, em suas práticas discursivas, uma variedade específica desta lín-
gua, através da qual constroem e sinalizam indianidade.” (MAHER,
1996, p. 182). As características deste português índio, de acordo com
Maher (1996, p. 208-209), referem-se ao fato de, ao usarem essa língua,
os indígenas “comportarem-se, sócio pragmaticamente, de modo dife-
renciado” e ainda de exibirem “comportamentos lexicais, morfológicos,
sintáticos e semânticos também particulares quando interagem em por-
tuguês”. A autora ensina que “Ao moldar a língua dominante para se
enunciar, o índio dela se apropria.” (MAHER, 1996, p. 210).
Desta forma, a língua portuguesa apropriada, ressignificada, indi-
genizada mostra marcas da memória das lutas, da construção coletiva
de saberes, das línguas ancestrais, das culturas e cosmovisões de cada
povo, marcas estas que aparecem na estrutura da língua, na organização
textual, no léxico, no discurso, conforme informam também outras lin-
guistas aplicadas, como Gorete Neto (2005, 2021) e Abram dos Santos
(2005, 2018). O português indígena é a língua para a luta pelos direitos
indígenas, face ao não indígena, e mais uma língua para a produção e
circulação de identidades e saberes indígenas (HALL, 1992; MAHER,
1996).
Mais recentemente, os estudos sobre o português indígena vêm
apresentando novas perspectivas, especialmente devido ao fato de que
159
Cariú é o termo utilizado pelos indígenas pesquisados para definir o não indíge-
na (cf. MAHER, 1996, p. 37)

863
pesquisadores indígenas estão, em suas investigações, demonstrando o
seu ponto de vista a respeito dessa língua. Uma dessas pesquisadoras é
Eunice Tapuia (doravante RODRIGUES, 2018). Ao investigar o por-
tuguês em uso pelo seu povo, Rodrigues (2018) define:

O Português Tapuia é a expressão do sentimento de pertenci-


mento ao ser indígena e ao ser Tapuia no Carretão. Para além
de fonemas, morfemas, monemas, sememas, sintagmas, frases
e orações, as línguas têm palavras que constroem sentidos, que
contam histórias armazenadas, mantidas em silêncio e em segre-
do, em nome da sobrevivência do povo. A língua de um povo é
muito mais que gramática e léxico, é sentimento, é vínculo com
o passado, com a realidade e com a irrealidade. Ao reconhecer o
Português Tapuia como sua língua indígena, os Tapuias se reco-
nhecem e se assumem, ao mesmo tempo, indígenas e Tapuias.
(RODRIGUES, 2018, p. 148-149).

O português Tapuia, tomado como língua desse povo, é a língua da


memória, da resistência e do pertencimento étnico. Importante frisar: é
a língua do povo Tapuia, ainda que isso possa ser objeto de questiona-
mentos externos. “Assim, contra o ideal de língua única, pura e correta,
expresso na concepção de monolinguismo, que os situa socialmente,
os Tapuia defendem a existência do Português Tapuia como sua língua
materna.” (RODRIGUES, 2018, p. 147).
Esses são alguns elementos que indicam ser necessárias mais pes-
quisas sobre o uso que povos indígenas fazem da língua portuguesa.

O português indígena em duas dissertações de mestrado


Analiso nesta seção trechos de duas dissertações de mestrado de
autoras indígenas reconhecidas pela academia e por seus povos: Célia
Xakriabá (doravante CORREA XAKRIABÁ, 2018) e Anari Pataxó (do-
ravante BOMFIM, 2012). A escolha pelo texto acadêmico ‘dissertação
de mestrado’ deve-se ao fato de que são textos fortemente monitorados
e negociados entre orientandos e orientadores. Mesmo que se tente mi-
nimizar, há uma assimetria de poder entre orientador e orientando, o

864
que pode influenciar na maneira como o texto é escrito. Ao analisar as
referidas dissertações, meu objetivo é mostrar que, mesmo com os as-
pectos apontados, as autoras indigenizam o português acadêmico, com
o uso do português indígena.
Correa Xakriabá (2018), em sua dissertação de mestrado intitulada
O barro, o genipapo e o giz no fazer epistemológico de autoria Xakriabá:
reativação da memória por uma educação territorializada, defendida na
Universidade de Brasília (UnB), inicia seu trabalho subvertendo a lín-
gua portuguesa já no título, ao escrever jenipapo com a letra ‘g’. A au-
tora explica esse uso da seguinte forma:

TRECHO 1
Faço opção por escrever genipapo com G e não com J. A grafia
com G me remete à nossa relação com G do Gerais, e sempre
que vou me apresentar faço questão de dizer que só conhece
bem Minas quem conhece o Gerais. Internamente, na nossa
língua, também nos reconheceremos mais na escrita com G,
foi assim que aprendi a escrever na escola a palavra genipapo.
(CORREA XAKRIABÁ, 2018, p. 40, nota de rodapé 4).

A reinvenção da grafia da palavra jenipapo mostra o pertencimen-


to da autora a um local específico – G dos Gerais –, bioma típico do
norte de Minas Gerais, onde fica o território Xakriabá. A pesquisadora
ainda explica que na aldeia, “internamente, na nossa língua”, jenipapo
com “g” é mais reconhecido. Desta forma, pode ser compreendido que
“Genipapo” é um indício da apropriação do português, de sua reconfi-
guração e indigenização realizadas pela autora.
Em outro trecho, Correa Xakriaba indigeniza conceitos:

TRECHO 2
Aqui, lançamos mão de dois conceitos importantes, um deles
– já anunciado – é o amansamento, que é um conceito nati-
vo que meu povo utiliza para denominar a escola. Ao invés de
usar o conceito de reapropriação que é muito utilizado na an-
tropologia, recorremos o amansamento porque é um conceito

865
elaborado a partir da resistência de amansar aquilo que foi bra-
vo, que era valente, portanto, atacava e violentava a nossa cultu-
ra. Fizemos esta escolha porque o conceito reapropriação, em-
bora possa trazer um sentido próximo, não expressa o impacto,
a violência do que foi a chegada e o propósito de implantação
das escolas nos territórios indígenas. (CORREA XAKRIABÁ,
2018, p. 137).

A autora utiliza ‘amansamento’ no lugar de ‘reapropriação’ para tra-


zer a memória e o modo do seu povo lidar com a escola. ‘Reapropriação’,
no sentindo antropológico, de acordo com Correa Xakriaba, apaga a
luta do seu povo com a/pela escola. O verbo amansar contrapõe-se ao
que é bravo, que precisa ser amansado, o que implica dizer que a escola
é feroz e precisa ser domesticada.
Nos trechos 1 e 2, o uso de “genipapo” e “amansamento” são indí-
cios da indigenização da língua portuguesa e indicadores do português
Xakriabá.
Por sua vez, Bomfim (2012), em sua dissertação de mestrado de-
nominada Patxohã, “língua de guerreiro”: um estudo sobre o processo de
retomada da língua Pataxó, defendida na Universidade Federal da Bahia
(UFBA), também indigeniza seu texto com a criação da categoria “pes-
quisadores Pataxó”:

TRECHO 3
A categoria ‘Pesquisadores Pataxó’, a princípio, foi um termo
apropriado que utilizei para designar os Pataxó, conhecedores
da escrita ou não, cujo papel é pesquisar, conhecer, registrar, na
escrita ou na memória, os conhecimentos do universo socio-
cultural e histórico do povo Pataxó, para contribuir no forta-
lecimento da cultura Pataxó, seja nas atividades desenvolvidas
dentro da comunidade ou em outros espaços. A condição de
ser ‘um pesquisador Pataxó’ não surgiu na academia, surgiu na
aldeia mesmo, no desejo de saber mais e registrar sobre sua pró-
pria história, tendo a preocupação de refletir e repassar, a partir
de ações, para os outros mais novos. Para a pesquisa não se tem
um método pronto, é um processo que vai sendo construído na

866
medida da necessidade e da dinâmica social vivida pelo povo
Pataxó. Porém, uma coisa eu sei que é certo: primeiro, ir até os
nossos intelectuais, os mais velhos e os mais experientes, para
aprender o que eles têm para nos ensinar e, junto com eles,
construir o melhor para nós. Foi nesse processo que surgiu o
grupo de pesquisadores Pataxó e foi assim que aprendi a ser uma
pesquisadora Pataxó também, antes de entrar na universidade.
(BOMFIM, 2012, p. 58).

A palavra “pesquisador”, embora possa ser atribuída a qualquer


um que faça pesquisa, é marcadamente associada à academia. Bomfim
(2012, p. 58) subverte essa premissa e afirma que criou a categoria “pes-
quisadores Pataxó” para, inicialmente, se referir a qualquer Pataxó “co-
nhecedores da escrita ou não, cujo papel é pesquisar, conhecer, registrar,
na escrita ou na memória, os conhecimentos do universo sociocultural
e histórico do povo Pataxó”. A autora amplia o significado da palavra
“pesquisador” para incluir o modo próprio Pataxó de ser pesquisador
e fazer pesquisa. Essa estratégia pode ser também compreendida como
indícios do português Pataxó.
Os três trechos analisados indicam como o português indígena – o
português Xakriabá e o português Pataxó – aparece no texto acadêmico
“dissertação de mestrado”. A proposição de novas grafias, a ressignifica-
ção de determinados vocábulos, a criação de conceitos e categorias com
o intuito de incluir o ponto de vista indígena anuncia a indigenização
do português.

Considerações Finais
Neste artigo, apresentei uma reflexão sobre o uso que povos indíge-
nas fazem da língua portuguesa. Procurei apresentar algumas definições
e características do português indígena e compreender o significado des-
ta língua para esses povos. Para isso, analisei duas dissertações de mestra-
do de autoria indígena, com o intuito de vislumbrar como o português é
mobilizado pelas autoras. Foi observado que as pesquisadoras indígenas
subvertem o modelo padrão do texto acadêmico “dissertação”, através da

867
construção de sentidos que podem ser considerados não usuais para cer-
tos vocábulos, da (re)escrita de grafias, da elaboração de novos conceitos
e categorias de análise de forma a transparecer a epistemologia indígena.
Por um lado, esses aspectos desafiam e aumentam a responsabili-
dade das universidades no que se refere à abertura para o entendimento
e reconhecimento do português indígena. Por outro lado, a estratégia
colonial de silenciamento das línguas indígenas pode se repetir, caso o
português indígena, que deve ser considerado como língua indígena,
não seja valorizado e promovido em contextos acadêmicos.
Algumas alternativas podem ser buscadas com o intuito de melho-
rar a recepção e o entendimento sobre o português indígena. Uma delas
é ampliar o conhecimento sobre a realidade sócio, histórica, cultural e
linguística indígenas. Há ainda no país uma ignorância bastante grande
sobre os povos indígenas, e isso também ocorre nas universidades.
Uma segunda possibilidade é admitir que as línguas indígenas, in-
cluído aqui o português indígena, estão sempre em conflito e disputa
com a língua majoritária. Neste sentido, o texto acadêmico deve ser
compreendido como um território em disputa pelos povos indígenas.
Docentes não indígenas devem se atentar para este aspecto, devem cons-
truir interações menos assimétricas, elementos estes que poderão favo-
recer a utilização do português indígena pelo universitário indígena.
Uma terceira alternativa é a escuta atenta aos povos indígenas pela
universidade. A presença indígena na academia vem se consolidando
e, com isso, novas teorias, epistemologias e metodologias necessitam
ser cocriadas com esses povos, uma vez que construtos cristalizados e
eurocentrados, característicos de boa parte da produção acadêmica, não
são suficientes para o entendimento da nova realidade na qual a univer-
sidade está inserida.
Para além disso, a entrada e a permanência de indígenas na universi-
dade devem ser garantidas através de políticas específicas de acolhimen-
to aos povos indígenas e, por conseguinte, à suas culturas e línguas. Isso
significa não só oportunizar a entrada de estudantes indígenas, em varia-
dos cursos, mas também garantir o financiamento de cursos específicos,

868
de moradia, transporte, alimentação e de todas as demais condições para
a permanência do indígena enquanto dure seu estudo. Também é ur-
gente que concursos públicos específicos para docentes indígenas sejam
realizados, haja vista que são ainda raros os professores indígenas em
universidades públicas brasileiras e que, assim, estudantes indígenas não
têm tido a oportunidade de se verem representados nos seus docentes e
nem de verem suas línguas faladas por professores universitários.
Por fim, em se tratando de qualquer língua indígena, somente a
garantia da demarcação da terra é que possibilita a vitalidade destas
línguas faladas pelos povos indígenas. Desta forma, a luta pelo território
indígena significa a luta pela saúde, pela educação e, principalmente,
pela sobrevivência física desses povos. Sem a terra demarcada não existe
vida e, portanto, sem vida não existem línguas faladas.

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872
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

RESSIGNIFICAÇÃO E RESISTÊNCIA NO
SINTAGMA “DISTANCIAMENTO SOCIAL”:
UMA ANÁLISE DISCURSIVA SOBRE A LUTA
PELOS SENTIDOS EM TEMPOS DE COVID-19
NO BRASIL 160

Mariana Jantsch de Souza - IFSul


Naiara Souza da Silva - UFPel

A pandemia magnífica as tensões dilacerantes da organização


social do nosso tempo: globalizada nas trocas econômicas, mas
enfraquecida como projeto político global, interconectada digi-
talmente porém impregnada de desinformação, à beira de co-
lapso ambiental, mas dominantemente não sustentável, carente
de ideais políticos, mas tão avessa à política e a projetos comuns.
A pandemia nos coloca diante do espelho, que nos revela um
mundo atravessado por muitas crises e carente de mudanças.
LIMA, BUSS, PAES-SOUSA, 2020.

RESUMO: Neste texto, apresentamos um exercício teórico-analítico de leitura


construído a partir da Teoria do Discurso de Michel Pêcheux, Análise de
Discurso Materialista (AD), nos moldes em que é trabalhada no Brasil. Nosso
objeto de análise é uma discursividade imagética produzida no contexto da
pandemia da Covid-19 que ressignifica o sintagma “distanciamento social”.
Para esta leitura, levamos em conta um discurso dominante, que produz
efeitos de sentido de negação e silenciamento em relação à gravidade da
situação epidemiológica vivenciada no Brasil, sobretudo para as classes sociais
mais vulneráveis social e economicamente, bem como o gesto de resistência
materializado na discursividade imagética em pauta. Compreendemos que,
na discursividade em análise, a expressão “distanciamento social” passa a
remeter não apenas às questões de saúde pública em jogo no cenário político
atual, mas também à desigualdade social em seus aspectos mais graves que
limitam o acesso aos direitos humanos elementares para a subsistência digna.
Considerando a crise humanitária decorrente da Covid-19, sobretudo a fome
160
Uma versão mais completa e aprofundada deste exercício analítico está publicada
na Revista Fragmentum, nº 59 , Jan-Jun. 2022.

873
como uma realidade material, compreendemos o discurso analisado como um
grito de socorro dos sujeitos que estão representados nas estatísticas da FAO
sobre o agravamento da insegurança alimentar no período pandêmico.
PALAVRAS-CHAVE: Análise de discurso. Covid-19. Desigualdade social.
Resistência e ressignificação.

ABSTRACT: In this text, we present a theoretical-analytical reading exercise


built from Michel Pêcheux’s Discourse Theory, Materialist Discourse Analysis
(AD), in the same way it is worked in Brazil. Our object of analysis is an
imagery discursivity produced in the context of the Covid-19 pandemic
that resignifies the phrase “social distance”. of the epidemiological situation
experienced in Brazil, especially for the most socially and economically
vulnerable social classes, as well as the gesture of resistance materialized in
the imagery discursivity in question. to the public health issues at stake in
the current political scenario, but also to social inequality in its most serious
aspects that limit access to elementary human rights for a dignified subsistence.
Considering the humanitarian crisis resulting from Covid-19, especially
hunger as a material reality, we understand the discourse analyzed as a cry for
help from the subjects who are represented in FAO statistics on the worsening
of food insecurity in the pandemic period.
KEY WORDS: Discourse Analysis. Covid-19. Social inequality. Resistance
and resignification.

1. Considerações iniciais sobre crise sanitária, crise econômica


e desigualdade
A crise sanitária que assombra o Brasil desde janeiro de 2020, de-
vido à pandemia da Covid-19 vem expondo o desequilíbrio econômico
e a desigualdade no acesso e na fruição dos direitos fundamentais. Em
nosso entender, a questão que se impõe, nesta conjuntura, vai além do
antagonismo entre classes sociais nos moldes corriqueiros.
Em razão das formas de transmissão desse vírus, a OMS, por meio
de diferentes meios de comunicação, explica como ocorre o contágio e
salienta a importância das medidas de proteção e prevenção para que
se possa evitar uma escalada ainda maior na taxa de mortalidade. As
principais medidas indicadas pela Organização referem-se ao uso de

874
máscaras, à higiene adequada e constante das mãos – evitando o toque
nos olhos, nariz e boca –, e também, ao distanciamento físico.
Essa última medida de proteção, de acordo com as orientações sa-
nitárias, é caracterizada pelo seguinte padrão: “Manter, pelo menos, 1
metro de distância entre si e os outros para reduzir o risco de ficar infec-
tado quando as outras pessoas tossem, espirram ou falam. Manter uma
distância ainda maior entre si e os outros, quando se encontrar num
ambiente fechado. Quanto mais longe, melhor”161 (OMS, 2020).
Frisarmos que o sintagma utilizado pela Organização Mundial de
Saúde, quanto ao necessário afastamento para evitar a contaminação e
a transmissão da Covid-19, é “distanciamento físico”. No Brasil, quan-
do tais medidas foram discursivizadas em documentos institucionais
oficiais162 e em meios de comunicação, o sintagma produzido é “distan-
ciamento social”163.
Um dos aspectos que emergiu nas práticas sociais no contexto da
crise sanitária foi o acirramento da luta de classes no âmbito da saúde
pública, da luta pela sobrevivência diante da possibilidade de contami-
nação pelo Coronavírus, especialmente, quando estão em jogo, nes-
sa disputa, os direitos fundamentais, a dignidade humana. Ao mesmo
tempo, esse acirramento abriu espaço para a retomada da própria com-
preensão da divisão material da sociedade no âmbito econômico, uma
vez que a crise da saúde pública global veio acompanhada de uma crise
econômica.

161
Disponível em:
<https://www.who.int/pt/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/advi-
ce-for-public?gclid=CjwKCAjwsNiIBhBdEiwAJK4khvZfIOkqnTophllk8PVy-
TGgcu-uRlAenpwJjQIcpjVLJ9GSG5J50XhoCiQoQAvD_BwE>.
162
A título de exemplo, podemos citar os seguintes documentos oficiais: Nota téc-
nica nº 04/2020 da Anvisa; informativos oficiais do Senado; Portaria Conjunta
nº 20, de 18 de junho de 2020, do Ministério da Economia/Secretaria Especial
de Previdência e Trabalho.
163
Para exemplificar o uso da expressão em pauta, remetemos o leitor às seguintes
notícias: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-53343977>;<https://g1.glo-
bo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/06/05/oms-divulga-novas-orienta-
coes-para-uso-e-fabricacao-de-mascaras-de-pano-contra-a-covid-19.ghtml>.

875
Sendo assim, a pandemia trouxe para os discursos em circulação
social discussões sobre vulnerabilidade em todas as esferas da vida hu-
mana, em especial, econômica, posto que impactou no acesso aos bens
de consumo mais básicos. Neste cenário, voltamos a falar sobre fome,
sobre insegurança alimentar, sobre aumento da miséria, sobre agrava-
mento de distâncias sociais das mais diversas ordens.
Diante de nosso objeto de análise, então, nosso olhar retoma a re-
lação distanciamento social e desigualdade social, tendo em vista, es-
pecialmente, o chamado Mapa da Fome das Nações Unidas como um
indicador da desigualdade e exclusão social de uma parcela (cada vez
maior) da população no acesso e fruição de direitos humanos básicos
para uma existência digna.
No final de 2021, a Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e Agricultura (FAO) publicou “Panorama de la Seguridad
Alimentaria y la Nutrición en América Latina y el Caribe: estadísticas y
tendendias” (FAO, 2021). Neste relatório, a ONU alerta para o severo
agravamento da fome164:

La alimentación es fundamental para el desarrollo de las per-


sonas a lo largo de su vida. El hambre y la pobreza impiden
el goce de los derechos fundamentales. En los últimos años,
diversos factores han desviado al mundo del camino hacia la
erradicación del hambre, la inseguridad alimentaria y todas las
formas de malnutrición para 2030, como parte de la Agenda de
Desarrollo Sostenible. La pandemia del COVID-19 ha exa-
cerbado esta tendencia, y nuestra región no es una excepción
[...] En 2020, 59,7 millones de personas padecían hambre.

164
Para compreender a noção de insegurança alimentar, pedimos licença e trazemos
as definições da FAO: “ La inseguridad alimentaria moderada describe una
situación en la que la capacidad de una persona para obtener alimento está so-
metida a ciertas incertidumbres, y se ha visto obligada a reducir, a veces a lo largo
de un año, la calidad y/o cantidad de la comida que consumen debido a la falta
de dinero o de otros recursos. Por otra parte, la inseguridad alimentaria grave,
refiere a un escenario en que a una persona lo más probablemente se le acabó la
comida, padece hambre y, en su versión más extrema, lleva días sin alimentarse,
poniendo su salud y bienestar en gran riesgo” (FAO, 2021, p. 46, grifamos).

876
Entre 2019 y 2020, la prevalencia del hambre en América Latina
y el Caribe aumentó en 2 puntos porcentuales, lo que significa
que 13,8 millones de personas más sufrieron hambre que
en 2019. En el mismo período, el aumento de la inseguridad
alimentaria moderada o severa fue aún más pronunciado, con 9
puntos porcentuales. El 41% de la población de la región pa-
dece inseguridad alimentaria moderada o severa, lo que se
traduce en 267 millones de personas cuyo derecho humano
a la alimentación se ve afectado (FAO, 2021, p. V, grifamos).

Quando os levantamentos da FAO são considerados em níveis


mundiais e em termos numéricos, os dados são impactantes:

Cerca de 2,3 bilhões de pessoas no mundo (29,3%) estavam em


insegurança alimentar moderada ou grave em 2021 – 350 mi-
lhões a mais em relação a antes do início da pandemia de covid-19.
Quase 924 milhões de pessoas (11,7% da população global) en-
frentaram insegurança alimentar em níveis graves, um aumento de
207 milhões em dois anos (Unicef Brasil, 2022, grifamos).

Recentemente, a imprensa nacional repercutiu intensamente tal


documento da FAO. Em uma das notícias consultadas, os dados são
específicos sobre a situação do Brasil em relação à insegurança alimen-
tar: “O percentual de brasileiros que não têm certeza de quando vão
fazer a próxima refeição está acima da média mundial. [...] São 61
milhões de brasileiros que enfrentaram dificuldades para se alimentar
entre 2019 e 2021; 15 milhões deles passaram fome” (Portal G1,
2022, grifamos). É por este caminho que construímos nosso gesto ana-
lítico acerca do sintagma “distanciamento social”.
Neste percurso, para analisar o movimento e a luta pelos sentidos é
necessário retomarmos Pêcheux (2009 [1988], p. 146) e esclarecermos
que os sentidos atribuídos à expressão em pauta não estão pré-estabele-
cidos semanticamente em cada palavra, tampouco, desfiguram a reali-
dade material em que são (re)produzidos, pois, referem-se a processos
discursivos resultantes de determinadas posições-sujeitos, em diferentes
condições de produção e matriz de sentido distinta.

877
Diante do que nos inquieta, então, em textos distintos165, já pro-
pomos pensar sobre os sentidos acerca da Covid-19, na medida em que
defendemos, a partir de nossas análises, que a pandemia pode, sim, pro-
vocar consequências distintas para cada polo de relações sociais dicotô-
micas, em uma sociedade cuja estrutura material é dividida em classes.
No presente trabalho, ao tomarmos como objeto de análise central a
referida expressão, propomos pensar sobre: como a luta pelos sentidos
pode ser compreendida a partir do sintagma “distanciamento social”?
Por fim, entendemos que neste exercício analítico emergem ques-
tões que evidenciam a relação entre Linguagem e Direitos Humanos (ou
fundamentais). O discurso mostra-se uma das arenas em que é possível
observar, compreender e analisar o modo como circulam socialmente
saberes acerca dos direitos mais elementares para a existência humana,
bem como seus processos de significação.

2. Distanciamento social e dignidade humana: práticas de (in)


visibilidade e resistência
Vejamos o enunciado:

Figura 1: Sequência discursiva imagética.

Fonte: ARAÚJO, 2020.


165
Conforme: SILVA, SOUZA 2021a, 2021b e 2022; SOUZA, 2022.

878
Esse é um dos enunciados que se propagou nas redes sociais166, sen-
do repetido a cada vez que as medidas de prevenção à disseminação e
contágio por Covid-19 eram repercutidas. Ao tomá-lo como objeto de
análise, buscamos compreender os processos discursivos que atribuem
sentido a uma classe social que, por sua vez, são parte do funcionamen-
to imaginário da sociedade brasileira e fazem emergir o caráter exclu-
dente dessa formação social.
Distinguindo compreensão de interpretação, conforme ensinamen-
tos de Orlandi (2012), ao nos aproximarmos do nosso objeto de análise,
atentamos para a primeira parte desta oração - “Distanciamento social
sempre existiu” (grifamos) - em que o sintagma, usualmente atrelado
aos discursos sobre a Covid-19, é utilizado no fio do discurso acompa-
nhado de uma sequência que traz um advérbio e um verbo (sempre e
existir, respectivamente), formando um enunciado de caráter afirmativo.
Tal formulação, assim proposta, indica uma determinada posição-sujeito
em relação às condições materiais de produção da sociedade brasileira.
O advérbio de tempo “sempre” que caracteriza/modifica o verbo
que o precede, “existiu”, sinaliza, pela leitura que fazemos, que embora
o sintagma tenha agora recebido visibilidade e repercussão quando rela-
cionado à crise sanitária, o sentido que também produz não se trata de
uma novidade na realidade social brasileira no que tange aos aspectos
sociais e econômicos. Nessa leitura, o termo “sempre” funciona no nível
intradiscursivo como um operador que reforça e intensifica a ideia de
que o “distanciamento social” entre os sujeitos brasileiros existe, ou seja,
trata-se de uma realidade material já vivenciada e já conhecida por uma
parcela da sociedade (apesar do índice de pobreza e de desemprego ter
aumentado consideravelmente em tempos de Covid-19).

166
O enunciado em análise circulou intensamente nas redes sociais no segundo
semestre de 2020 e, em outubro daquele ano, tornou-se notícia em diferentes
veículos eletrônicos de comunicação após ser publicado em uma rede social no
perfil de um sujeito famoso. Dessa forma, nosso objeto de análise encontra-se
online em uma conta privada nas redes sociais, mas em um contexto público de
circulação de dizeres através de meios de comunicação. Ressaltamos que não é
considerado, nos pressupostos da AD, o sujeito empírico que o publicou.

879
O advérbio marca, no fio do discurso, a existência passada e pre-
sente daquilo que é representado no/pelo sintagma precedente (distan-
ciamento social), por meio da retomada de um discurso que nega a
existência de diferenças sociais de classe. O uso do tempo verbal no
pretérito perfeito do modo indicativo, em “existiu”, complementa o
efeito de sentido sobre uma realidade concreta e factual em relação à
ação (existir), evidenciando a posição do sujeito enunciador.
Nessa perspectiva, “distanciamento social” move-se para outra ma-
triz de sentido que faz o sintagma funcionar discursivamente como pos-
sibilidade parafrástica para a expressão “exclusão social”, por exemplo.
Também, no eixo parafrástico, podemos pensar em possibilidades de
paráfrase como: distanciamento social/ desigualdade social/ exclusão
social. Instaura-se, portanto, uma relação metafórica entre os referidos
sintagmas. Ou, conforme Indursky:

Os sentidos, à força de se repetirem, podem acabar por se modi-


ficar, de modo que as redes discursivas de formulação, formadas
a partir de um regime de repetibilidade, vão recebendo novas
formulações que, ao mesmo tempo que vão se reunindo às já
existentes, vão atualizando as redes de memória. Tais formu-
lações podem trazer o mesmo sentido e, nesse caso, produzem
uma relação de metáfora em que uma palavra é tomada pela ou-
tra, mas produzindo o mesmo sentido, tal como ocorre em uma
família parafrástica que funciona como uma matriz de sentido
(2011, p. 76).

Na relação metafórica instaurada entre distanciamento, desigualdade e


exclusão, as questões relacionadas à pandemia e seus desdobramentos sani-
tários passam a ser associadas às desigualdades sociais e econômicas viven-
ciadas há muito na sociedade brasileira. Assim, a partir da língua, sujeitos
posicionam-se, produzindo efeitos de sentido de denúncia, de resistência,
de procura por visibilidade diante dessa conjuntura política atual que as-
sumiu uma postura que inviabiliza sujeitos de determinada parcela.
Quanto aos elementos verbais, o enunciado em análise é finaliza-
do com a exclamação/proposição “bem vindos ao Brasil….”, sequência

880
esta que sustenta e reforça o imaginário e sentidos já instaurados pelos
elementos anteriores: esse é o Brasil que existe e sempre existiu, aqui
distanciamento social não é uma novidade trazida pela Covid-19, pois,
essa recomendação da OMS é uma prática que ocorre há muito tempo,
mas, por outras razões que são denunciadas nessa discursividade.
Dessa forma entendido, os efeitos de sentido que até hoje nos sub-
metem ao “distanciamento social” são os que silenciam a historicidade
da sociedade dividida em classes. Sentidos que circulam socialmente
dissimulando a desigualdade social estrutural e, no contexto da pande-
mia, buscam minimizar as diferenças de classe na prevenção e proteção
contra os riscos sanitários decorrentes da Covid-19 - e na sobrevivência
às crises sociais. E, então, ao observarmos práticas sociais e discursivas
como esta em análise, atentamos para o seu funcionamento como um
gesto de resistência, denunciando as diferenças de classe, que são deter-
minantes para a sobrevivência, para a proteção à saúde dos sujeitos das
classes vulneráveis.
Atentando para o texto como um todo, observando os elementos
verbais e não-verbais que o compõem, é apresentada a imagem de um
lugar desfavorecido economicamente cuja estrutura encontra-se destru-
ída, com tijolos e canos de saneamento aparentes, materializa a situação
vivida por parte dos brasileiros. E somada, portanto, ao nível linguís-
tico, a dimensão imagética reforça as questões sociais relacionadas à
pobreza, à desigualdade, à exclusão e ao abandono de alguns espaços
públicos por parte do Estado. E, repetimos, isto nos permite ler essa
discursividade em consonância com o relatório da FAO sobre segurança
alimentar e nutrição no período pandêmico.
Esse funcionamento discursivo ancorado na repetição remete-nos,
logo, às bases teóricas da AD, pois o sintagma em pauta, ao desestabi-
lizar o processo de saturação/regularização de sentidos por nós salienta-
do, torna-se outro167. Orlandi (2012) ao tratar das relações de sentido,

167
A esse respeito, vale retomar Pêcheux (2008 [1983]): “todo enunciado é intrinse-
camente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discur-
sivamente de seu sentido para derivar para um outro (a não ser que a proibição

881
acentua que é pelo funcionamento do interdiscurso que a exterioridade
é inscrita no próprio interior da textualidade. Nesse ponto, recorremos
a Indursky, ao refletirmos sobre a noção de memória no âmbito da AD,
quando a autora ressalta que

se há repetição é porque há retomada/regularização de senti-


dos que vão constituir uma memória que é social, mesmo que
esta se apresente ao sujeito do discurso revestida da ordem do
não-sabido. São os discursos em circulação, urdidos em lingua-
gem e tramados pelo tecido sócio-histórico, que são retomados,
repetidos, regularizados. [...] Repetir, para a AD, não significa
necessariamente repetir palavra por palavra algum dizer, embo-
ra frequentemente esse tipo de repetição também ocorra. Mas
a repetição também pode levar a um deslizamento, a uma
ressignificação, a uma quebra do regime de regularização
dos sentidos (INDURSKY, 2011, p. 71, grifamos).

Assim, a repetição é entendida como um modo de manifestação


da memória no discurso e pode associar-se ao efeito de regularização de
sentidos, quando se realiza no eixo parafrástico, ou como deslocamento
e ressignificação, quando se realiza no eixo polissêmico da linguagem.
A expressão em análise permite-nos distinguir que repetir não é apenas
renovar o mesmo, já que a repetição pode produzir movimentos polis-
sêmicos, pode romper com processos de significação já instalados.
Ao analisarmos o efeito parafrástico e o efeito polissêmico do dis-
curso, temos em vista que repetir não significa necessariamente a fi-
xação ou o enrijecimento de sentidos, e, por isso, evidenciamos a sua
movência, uma vez que “também é a repetição que responde por sua
movimentação/alteração. Ou seja, os sentidos se movem ao serem pro-
duzidos a partir de outra posição-sujeito ou de outra matriz de sentido”
(INDURSKY, 2011, p. 77).
Em nosso objeto, observamos que a repetição altera o curso do
processo de significação das mesmas palavras, justamente porque a

da interpretação própria ao logicamente estável se exerça sobre ele explicitamen-


te)” (p. 53).

882
produção de sentido é uma questão de determinação ideológica, de
relações com a exterioridade, com o interdiscurso. O sentido, nessa
perspectiva a qual nos filiamos, não é apenas um produto da língua
enquanto estrutura, é efeito, um processo resultante da língua enquanto
estrutura, mas, também, como fato social que se realiza na interseção do
histórico e do ideológico.
Além disso, considerando os dados da FAO sobre insegurança
alimentar no período de 2019 a 2021, podemos ler esse sintagma e
compreender que uma parcela da população sobrevive à emergência
de saúde pública global e, também, à fome (ou vivendo a insegurança
alimentar). Entendemos, ainda, que o gesto de resistência em tela reto-
ma as relações de dominação/subordinação que estruturam a sociedade
brasileira.
Com nossa análise, compreendemos que confrontar o sentido de
“distanciamento social” como medida de proteção de saúde (saturado e
dominante) com o sentido de exclusão social (ressignificação, resistên-
cia e denúncia) mostra como a língua é, também, arena política para
a luta de classes, para a luta pela sobrevivência, para a luta pelos senti-
dos. Por isso, também lemos tais movimentos discursivos de repetição
e de ressignificação como um grito de socorro de sujeitos socialmente
invisibilizados.

Considerações finais
Neste gesto de análise, observamos, com amparo teórico em Orlandi,
“o fato de que há um repetível que retorna indefinidamente nessa pro-
dução de sentidos” (1990, p. 242). No movimento discursivo de ressig-
nificação do sintagma “distanciamento social” a partir de outro processo
discursivo e outra matriz de sentido, irrompem efeitos que evidenciam
a relação entre saúde e classe social, denunciando que a saúde pública
não deve ser significada de modo igual para toda a população brasileira,
pois o direito à saúde não é uma realidade material que se apresenta de
modo igual para todos (entre tantos outros direitos fundamentais). Para
alguns, pois, a crise sanitária foi/é vivida junto com a fome.

883
A repetição instaurada a partir do eixo polissêmico, como gesto
de ressignificação, resistência e denúncia, ao demarcar a luta pelos sen-
tidos, evidencia que distanciamento social produz sentidos diferentes
conforme a classe social dos sujeitos. Para classes sociais vulneráveis eco-
nomicamente, distanciamento social produz sentidos que vão muito
além da crise sanitária e, assim, podemos perceber que “é aí que os
sentidos se dividem inexoravelmente”, tal como propõe Orlandi (1990,
p. 239), uma vez que “podem ser muito diferentes se recortamos as
histórias em diferentes perspectivas do contar” (p. 239).
Assim, “distanciamento social” passa a remeter não apenas às
questões de saúde pública em jogo no cenário político atual, mas tam-
bém à desigualdade social em seus aspectos mais graves que limitam
o acesso aos direitos humanos elementares para a subsistência digna.
Considerando a crise humanitária decorrente da Covid-19, sobretudo
a fome como uma realidade material, compreendemos o discurso anali-
sado como um grito de socorro dos sujeitos que estão representados nas
estatísticas da FAO sobre insegurança alimentar.

Referências
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niza: ‘Condomínio, segurança armada, você que o diga’. DCM. Publicado em 01
de outubro de 2020. Disponível em: <https://www.diariodocentrodomundo.com.br/
essencial/luciano-huck-posta-foto-de-periferia-e-seguidor-ironiza-condominio-segu-
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biente de trabalho. Publicado em 19 junho 2020. Disponível em: <https://www.gov.br/
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Brasil volta ao Mapa da Fome das Nações Unidas. Portal G1. Publicado em 06 de julho
de 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/07/06/
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884
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www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/relatorio-da-onu-numeros-globais-
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Unicef Brasil. Publicado em 12 julho 2021. Disponível em: <https://www.unicef.org/
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885
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análise discursiva da desigualdade social estrutural materializada em discursos acerca da
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SOUZA, M. J. Crise sanitária e violência simbólica: uma análise de práticas discursivas


do Presidente da República Federativa do Brasil. Cadernos de Linguística, v. 3, n. 1,
2022.

886
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO DO SOM [ɫ]


EM FALAS DE LICENCIANDOS EM LETRAS:
IMPLICAÇÕES PARA O TESTE ORAL DO
EPPLE E PARA A PROFICIÊNCIA ORAL
DO PROFESSOR DE LÍNGUA INGLESA NO
CONTEXTO BRASILEIRO

AN ANALYSIS OF THE PRODUCTION OF


THE SOUND [ɫ] IN ORAL PRODUCTIONS OF
UNDERGRADUATE LETTERS STUDENTS:
IMPLICATIONS FOR THE EPPLE ORAL TEST
AND FOR THE PROFICIENCY OF ENGLISH
TEACHERS IN THE BRAZILIAN CONTEXT

Marina Melo Cialdini


UNESP – São José do Rio Preto
marina.cialdini@unesp.br

RESUMO: Neste trabalho, investiga-se a produção do som [ɫ] em 53


amostras de desempenho oral de (futuros) professores de língua inglesa (LI).
Desse modo, objetiva-se sugerir aprimoramentos para os critérios de avaliação
da pronúncia no teste oral EPPLE (Exame de Proficiência para Professores
de Língua Estrangeira), assim como contribuir para encaminhamentos para
a formação fonológica do professor de LI no contexto brasileiro. Como
fonte complementar de dados, tem-se a aplicação de um questionário a
professores de LI com o intuito de analisar as suas percepções acerca do som
[ɫ]. A escolha por esse segmento justifica-se pela tendência entre os aprendizes
brasileiros a substitui-lo por [w] (BARATIERI, 2006; RODRIGUES, 2014).
Todavia, essa substituição não compromete a inteligibilidade (JENKINS,
2000) e é, do mesmo modo, recorrente em determinadas variantes da LI
(JOHNSON & BRITAIN, 2007; DURIAN, 2008). Conforme a análise dos
dados das gravações, realizada por meio do software Phon (ROSE, 2020), há
a substituição de [ɫ] por [w] em 51% das ocorrências. A análise dos dados
obtidos por meio do questionário sugere que os respondentes possuem um
escasso conhecimento sobre a articulação do som [ɫ].

887
PALAVRAS-CHAVE: Avaliação. Formação de professores. Inteligibilidade.
Língua inglesa. Proficiência oral.

ABSTRACT: This study examines the production of the sound [ɫ] in 53 oral
production samples of in-service and pre-service English teachers with the
aim of suggesting improvements for the pronunciation assessment criteria in
the EPPLE (Proficiency Examination for Foreign Language Teachers) oral
test, as well as contributing to the phonological education of English teachers
in the Brazilian context. As a complementary source of data, a questionnaire
was administered to English teachers in order to obtain information about
their perceptions of the sound [ɫ]. Previous studies have indicated that
Brazilian English learners tend to substitute [w] for [ɫ] (BARATIERI, 2006;
RODRIGUES, 2014). However, this production pattern does not affect
intelligibility (JENKINS, 2000) and is also common in many varieties of
English (JOHNSON & BRITAIN, 2007; DURIAN, 2008). According to
the analysis of the oral production samples, which was conducted on the Phon
software, [ɫ] was substituted with [w] in 51% of occurrences. The analysis of
the data obtained via the questionnaire suggests that the teachers are unaware
of the main articulatory characteristics of the sound [ɫ].
KEYWORDS: Assessment. Teacher education. Intelligibility. English. Oral
proficiency.

1. Introdução
Este trabalho dedica-se a expor um recorte da pesquisa de mes-
trado intitulada “A flexibilização da pronúncia dos sons /θ/, /ð/ e [ɫ]:
implicações para o teste oral do EPPLE e para a proficiência oral do
professor de língua inglesa no contexto brasileiro”, a qual encontra-se
em andamento (CIALDINI, em andamento) sob a orientação do Prof.
Dr. Douglas Altamiro Consolo, da UNESP (campus de São José do
Rio Preto). Tendo em vista a extensão da pesquisa e os limites pré-es-
tabelecidos para a redação e a apresentação deste trabalho, optou-se
por apresentar os dados referentes a apenas um dos sons focalizados no
estudo supracitado.
A ideia de analisar a produção do som [ɫ] em falas de (futuros)
professores de LI (doravante LI) advém da observação da existência de

888
dificuldades entre aprendizes e professores brasileiros em relação à pro-
núncia desse segmento.
Esta investigação vem sendo conduzida no escopo do EPPLE
(Exame de Proficiência para Professores de Línguas Estrangeiras) e tem
como objetivos: sugerir aprimoramentos para os critérios de avaliação
das faixas de proficiência analíticas do aspecto “pronúncia” do referi-
do exame (OLIVEIRA, 2021)168, assim como contribuir para encami-
nhamentos para a formação fonológica do professor de LI no contexto
brasileiro.
O EPPLE se propõe a avaliar a proficiência linguístico-comuni-
cativa-pedagógica do (futuro) professor de LI nas quatro habilidades
linguísticas (compreensão oral, compreensão escrita, produção oral e
produção escrita), com o objetivo impactar positivamente as diretrizes
que norteiam os cursos de Licenciatura em Letras, uma vez que são evi-
dentes as lacunas na formação de professores de línguas estrangeiras no
Brasil (CONSOLO & TEIXEIRA DA SILVA, 2014).
Este artigo encontra-se organizado em sete seções. Nesta seção in-
trodutória, foram apresentados os objetivos da pesquisa, assim como
uma justificativa pela escolha do tema. As seções 2, 3 e 4 contêm a
fundamentação teórica que embasa este trabalho: as características do
som [ɫ], estudos anteriores que investigaram a produção deste som em
falas de aprendizes brasileiros de LI, a abordagem do som [ɫ] à luz da
inteligibilidade e do inglês como língua franca e a produção deste
segmento em variantes da LI. Em seguida, nas seções 5 e 6, apresentam-
-se a metodologia da pesquisa e os resultados obtidos, respectivamente.
Por fim, a seção 7 traz uma discussão baseada na análise dos dados.

2. Características e particularidades do som [ɫ]


O som [ɫ] corresponde à realização do /l/ em coda silábica no
português europeu (COLLISCHONN & QUEDNAU, 2009) e nas
168
Maiores informações sobre as faixas de proficiência utilizadas para a avaliação
dos desempenhos orais no EPPLE podem ser encontradas no trabalho de Olivei-
ra (2021).

889
variantes da LI consideradas como “padrão” (CARR, 2013). No tocante
ao português brasileiro, esse fenômeno é restrito à poucas localidades da
região sul do Brasil. Nas demais regiões do país, a realização deste fone-
ma em final de sílaba é predominantemente vocalizada, ou seja, como
[w] (COLLISCHONN & QUEDNAU, 2009).
Por se tratar de um alofone do fonema /l/, se faz necessário discorrer
sobre as características de ambos os sons. A consoante /l/ é produzida
por meio de uma articulação alveolar. Durante a sua produção, a ponta
da língua toca o cume posterior dos dentes superiores ou dos alvéolos,
obstruindo a corrente de ar na linha central do trato vocal, enquanto
o ar é expelido pelas laterais da língua. Portanto, esse som é deno-
minado “consoante lateral” (SILVA, 1998). Quando a esse processo é
acrescentada uma articulação dorsal, que corresponde ao levantamento
do dorso da língua em direção ao véu palatino, o fonema /l/ realiza-se
com o alofone [ɫ] (SILVA, 1998). Essa articulação dorsal denomina-se
“velarização”. No entanto, segundo Carr (2013) e Sproat e Fujimura
(1993), a articulação dorsal pode consistir em apenas uma retração e ao
abaixamento do dorso da língua, ao invés da velarização.
Em suma, a produção do fonema /l/ ocorre por meio de uma úni-
ca articulação – a alveolar –, enquanto a produção do seu alofone [ɫ]
envolve duas articulações – a alveolar e a dorsal, também denominadas
“primária” e “secundária”, respectivamente (SILVA, 1998).
Quanto à sequência das articulações, White, Gananathan e
Mok (2017) afirmam que a articulação secundária precede a articu-
lação primária. Porém, para Silva (1998), as articulações ocorrem
concomitantemente.
Frente à essas considerações, podemos ponderar que as peculia-
ridades envolvidas na produção do som [ɫ] favorecem a existência de
características inerentes a cada falante. Segundo Ladefoged e Johnson
(2011), por exemplo, é comum que alguns falantes dobrem o corpo da
língua para trás ao produzir esse segmento, o que provoca um apaga-
mento do traço consonantal (articulação primária).

890
3. Estudos anteriores: a produção do som [ɫ] por brasileiros
Baratieri (2006) e Rodrigues (2014) analisaram a produção da
consoante lateral velarizada [ɫ] entre aprendizes brasileiros de LI. Em
ambos os estudos, os dados foram coletados por meio de produções
controladas e examinados por meio da análise acústica.
O estudo de Baratieri (2006) contou com vinte participantes de
nível avançado. Os resultados obtidos a partir da análise de 2.134 itens
lexicais revelaram três padrões de produção: (i) totalmente vocalizado
em 35,5% das produções; (ii) não-vocalizado (isto é, equivalente à pro-
dução do som /l/ em início de palavras); (iii) parcialmente vocalizado
em 61,8% das ocorrências (ou seja, foram observadas ambas as articula-
ções primária e secundária, porém com a presença de arredondamento
dos lábios). Segundo o pesquisador, este último padrão de produção se
aproxima, mas não caracteriza a maneira como o som [ɫ] é produzido
pelos falantes nativos da LI, devido à presença do arredondamento dos
lábios.
Rodrigues (2014) analisou a produção do som [ɫ] em 288 palavras
produzidas por doze aprendizes de LI de níveis básico e avançado. Os re-
sultados gerais indicam a produção do som [ɫ] em 43% das ocorrências,
enquanto a sua substituição pela semivogal [w] foi observada em 57%
dos casos. Considerando os resultados de acordo com os níveis de
proficiência, a autora concluiu que: (i) os aprendizes de nível iniciante
apresentaram um maior índice de produções vocalizadas [w] (88%);
(ii) os aprendizes de nível avançado apresentaram um maior índice de
produção do som [ɫ] (78%).

4. A produção do som [ɫ] segundo a fonologia do inglês como


língua franca e em diferentes variantes da língua inglesa
Jenkins (2000) nos apresenta o Lingua Franca Core (LFC): um
inventário de traços de pronúncia que se fazem necessários para uma
comunicação inteligível nas situações em que a LI tem a função de lín-
gua franca, isto é, nas interações entre falantes que não compartilham

891
da mesma língua materna. O LFC divide-se em duas categorias: Core
features (características essenciais para uma comunicação inteligível) e
Non-core features (características que não contribuem para uma comu-
nicação mais inteligível). A consoante lateral velarizada [ɫ] é um dos
três sons consonantais presentes no segundo grupo.
Segundo Jenkins (2000), é aceitável a substituição do som [ɫ] por
[w]. Além de se apoiar em evidências empíricas de que essa substituição
não compromete a inteligibilidade169, Jenkins (2000) fundamenta a sua
posição no princípio learnability-teachability. Esse conceito está relacio-
nado à viabilidade de aprendizagem caso um aspecto da pronúncia seja
ensinado em sala de aula. Além da demonstração da articulação do som
[ɫ] ser demasiadamente difícil para os professores, Jenkins (2000) a
considera pedagogicamente irrelevante, pois a sua substituição por [w]
está se tornando cada vez mais comum no inglês britânico devido à
influência do Estuary English. Trata-se de uma variante originária da
cidade de Londres, cujas características, dentre as quais se destaca a
vocalização do /l/, vêm se irradiando pelo país e ocasionando mudanças
na Received Pronunciation, a variante considerada como “padrão” na LI
(JENKINS, 2000).
Outrossim, a substituição de [ɫ] por [w] é comum na variante
African American Vernacular English (AAVE), do inglês americano, a
qual se encontra presente principalmente nas cidades de Nova York e
Philadelphia e nos estados de Ohio e Pennsylvania (DURIAN, 2008).
Austrália, Nova Zelândia e Ilhas Falkland são outras localidades nas
quais esse fenômeno é recorrente, conforme afirmam Johnson e Britain
(2007).

5. Metodologia da pesquisa
Nesta pesquisa, a produção do som [ɫ] em falas de licenciandos em
Letras foi analisada em 53 amostras de desempenho oral provenientes
169
Neste trabalho é adotado o conceito de inteligibilidade proposto por Munro e
Derwing (1995, p. 76, tradução minha): “a medida em que um enunciado de
um falante é realmente compreendido por um ouvinte”.

892
de dois corpora: (i) 29 gravações do teste oral do EPPLE170 referentes
à aplicação do exame em 2015 e em 2017. O tempo de cada gravação
varia entre quatro e oito minutos; (ii) e 24 gravações de aulas de uma
disciplina de LI de um curso de Letras de uma universidade pública
paulista. As aulas foram ministradas entre os anos de 2020 e 2021. Nos
trechos selecionados para transcrição e análise, cuja duração média é de
30 minutos, os alunos apresentam seminários na língua-alvo.
O software Phon (ROSE, 2020), disponibilizado gratuitamente
pelo projeto Talk Bank, foi utilizado para a transcrição e coleta de dados
das gravações. Dentre os principais recursos disponibilizados pelo Phon
destacam-se a realização de transcrição ortográfica, a geração automáti-
ca de transcrição fonética e a geração de relatórios acerca dos segmentos
produzidos.171
O reconhecimento da realização do som [ɫ] foi realizado de forma
exclusivamente auditiva. Como critério, estabeleceu-se que cada
segmento de fala fosse ouvido por, no mínimo, três vezes. Após esse
processo de análise, foram gerados, no software Phon, relatórios referen-
tes à produção do som [ɫ] no âmbito de cada corpus. Posteriormente,
as informações dos relatórios foram exportadas para o Excel, no qual
conduziu-se a junção dos dados de ambos os corpora e a geração dos
dados quantitativos.
Esta investigação ainda conta com a aplicação de um questioná-
rio que visa a geração de dados quantitativos e qualitativos acerca das

170
O teste oral do EPPLE é composto por 5 tarefas: na tarefa 1, o candidato fala
sobre as suas experiências acadêmicas e suas experiências como aprendiz de LI;
a segunda tarefa consiste em uma produção oral baseada em duas gravuras que
ilustram situações típicas de sala de aula; a tarefa 3 divide-se em compreensão e
produção oral: o candidato responde a questões de múltipla escolha após assistir
a um vídeo e, em seguida, emite a sua opinião sobre o assunto; a tarefa 4, por sua
vez, consiste numa simulação de uma situação típica de sala de aula: o candidato
deve fornecer instruções, a uma turma fictícia, sobre como realizar uma determi-
nada atividade; por fim, na tarefa 5, é solicitado ao candidato que esclareça uma
dúvida gramatical de um aluno fictício.
171
Maiores informações sobre o projeto Talk Bank e sobre o Phon encontram-se nos sites
https://talkbank.org/ e https://www.phon.ca/phon-manual/getting_started.html.

893
percepções de professores de LI em relação ao som [ɫ]. Por se tratar
de uma fonte complementar de dados, espera-se que esse instrumento
proporcione um enriquecimento das reflexões acerca da formação
fonológica dos professores de LI no contexto brasileiro.
O questionário é composto por 20 questões172 e é aplicado via
Google Formulários. Antes de responde-lo, é solicitado aos partici-
pantes que leiam e preencham um Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido.
Até o momento de escrita deste trabalho, obteve-se retorno de ape-
nas sete respondentes. Todos eles são professores de LI em exercício,
com tempo de experiência profissional que varia entre menos de cinco
anos e mais de 15 anos. Coincidentemente, dois respondentes do ques-
tionário também tiveram as suas falas analisadas nesta investigação.

6. Resultados
O gráfico 1, a seguir, ilustra a produção da consoante lateral ve-
larizada [ɫ] em todas as amostras analisadas nesta investigação. Foram
analisadas 3.077 ocorrências deste som.

Gráfico 1:

Fonte: A autora.
172
O questionário aborda os sons /θ/, /ð/ e [ɫ]. Porém, neste trabalho, serão apresen-
tados somente os dados obtidos das respostas às questões referentes ao som [ɫ].

894
De acordo com o gráfico 1, a produção do som [ɫ] como segmento
exclusivamente vocalizado foi constatada em 51% das ocorrências. A
sua produção de maneira igual ou semelhante às variantes “padrão” da
LI – Received Pronunciation e General American English – foi constatada
em 34% das ocorrências. Essas produções são consideradas “semelhan-
tes” às variantes padrão pois, embora a articulação primária tenha sido
detectada, também foi observado o arredondamento dos lábios, assim
como no estudo de Baratieri (2006). A sua realização como consoante
lateral /l/ foi observada em 1% das ocorrências de fronteiras de palavras,
ou seja, em ocasiões nas quais há a junção do /l/ em posição final de
uma palavra com um som vocálico em posição inicial na palavra se-
guinte, um fenômeno também recorrente entre os falantes nativos da LI
(LADEFOGED & JOHNSON, 2011). O reconhecimento do padrão
de produção desse som não foi possível em 14% das ocorrências.
Passa-se, agora, à interpretação dos dados obtidos por meio da apli-
cação do questionário.
Apenas dois respondentes, R3173 e R7, declararam nunca ter recebi-
do instrução formal sobre a pronúncia do som [ɫ].
No que diz respeito às suas percepções em relação à pronúncia do
som [ɫ], quatro respondentes afirmam não ter dificuldades ao pronun-
ciá-lo. Apenas R3 informa que nunca se atentou às características desse
som, ao passo que R5 admite ter dificuldades ao pronunciá-lo e, por-
tanto, acredita que não o faz com naturalidade.
Na última pergunta do questionário é solicitado que o respondente
discorra sobre a articulação do som [ɫ] a um aluno hipotético. Embora
trate-se de uma questão aberta, suas respostas encontram-se organiza-
das em um quadro devido ao emprego de uma metodologia segundo
a qual os dados qualitativos são transformados em dados quantitativos
(NUNAN, 1992).

173
Visando preservar o anonimato dos respondentes, atribuiu-se a cada indivíduo
uma sigla composta pela letra “R”, referente a “respondente”, e a um número,
referente à sua ordem de participação na pesquisa.

895
Quadro 1: Descrição da articulação do som [ɫ]
pelos respondentes do questionário.

R1 R2 R3 R4 R5 R6 R7
Articulação primária: a ponta da língua
toca o cume posterior dos dentes superiores X X
(SILVA, 1998)
Articulação primária: a ponta da língua
X
toda o céu da boca (SILVA, 1998).
Articulação secundária: levantamento do
dorso da língua em direção ao véu palatino
(velarização) (SILVA, 1998).
Articulação secundária: retração ou abaixa-
mento do dorso da língua (CARR, 2013;
SPROAT & FUJIMURA, 1993).
Sequência das articulações.
A língua se dobra (LADEFOGED &
X X
JOHNSON, 2011).
O ar é obstruído na porção central do trato
vocal (SILVA, 1998).
O ar escapa pelas laterais da língua (SILVA,
X
1998).
Não saberia como explicar. X
Resposta não aplicável. X X

Fonte: A autora.

Segundo os dados presentes no quadro 1, a articulação primária é


mencionada por apenas dois respondentes (R2 e R3). Todavia, nenhum
respondente faz menção à articulação secundária e à obstrução do ar na
porção central da cavidade oral. A saída de ar pelas laterais da língua é
apontada apenas por R7, que também indica que a língua se sobra. Este
aspecto é também mencionado por R1.
As respostas de R4 e R5 são classificadas como não aplicáveis, pois
estes respondentes não mencionam as características do som [ɫ] que se
encontram na literatura.

896
É relevante destacar que R5 e R6, em suas respostas, expressam
suas dificuldades em relação à demonstração da pronúncia desse som.
R6 reconhece que não saberia fazê-lo, enquanto R5 revela que se esse
fonema é um desafio para ele. Cabe aqui uma observação importante:
ambos os respondentes são os que possuem o maior tempo de expe-
riência profissional declarada entre os participantes (mais de 15 anos).
Além disso, ambos declararam já ter recebido instrução formal sobre a
pronúncia desse som.
Coincidentemente, os respondentes R3 e R7 tiveram suas falas ana-
lisadas nesta investigação. Sendo assim, os dados obtidos a partir da aná-
lise das suas falas são correlacionados às suas respostas ao questionário.
Na figura 1, a seguir, é possível observar um resumo da produção
do som [ɫ] por R3.

Figura 1: A produção o som [ɫ] na amostra de desempenho oral de R3

Fonte: A autora.

Segundo os dados da figura 1, foram observadas 139 ocorrências do


som [ɫ] na amostra de desempenho oral de R3174. Em 21 ocorrências, a
sua pronúncia foi reconhecida de acordo com a forma padrão. Por outro
lado, em 93 ocorrências, o segmento foi produzido de forma totalmente
vocalizada. Em 24 ocorrências, não foi possível o seu reconhecimento.
174
R3 e R7 são identificados nas amostras de desempenho oral como ISM e ISV, res-
pectivamente, siglas que equivalem às iniciais dos seus prenomes e sobrenomes.

897
No questionário, R3 declara nunca ter recebido instrução formal
em relação à pronúncia do som [ɫ]. Apesar de já ter tido uma curta
experiência (4 meses) de imersão em um país onde a LI é língua cor-
rente, esse respondente diz nunca ter se atentado às características dessa
pronúncia. Em relação à descrição das características articulatórias do
som [ɫ], R3 apenas diz que “a ponta da língua deve ir ao céu da boca”.
Na figura 2, a seguir, encontra-se um resumo da produção do som
[ɫ] na fala de R7.

Figura 2: A produção do som [ɫ] na amostra de desempenho oral de R7

Fonte: A autora.

Segundo os dados presentes na figura 2, R7 produziu 123 palavras


que contêm o som [ɫ]. Em 19 ocorrências, não foi possível o reconheci-
mento da realização desse som. A sua produção de acordo com a forma
padrão foi constatada em 37 ocorrências, ao passo que a sua produção
totalmente vocalizada foi observada 63 vezes. No questionário, R7 de-
clara nunca ter recebido instrução formal acerca da pronúncia desse
som, porém acredita que o pronuncia com naturalidade. No tocante à
descrição da articulação desse som, este respondente diz que “a língua
deve se dobrar para trás e o ar deve fluir pelas laterais da língua”.
Ao estabelecer uma relação entre os dados acerca da produção do
som [ɫ] de R3 e R7 e as características das suas falas, é possível afir-
mar que a considerável recorrência de substituições por [w] não tornam
as suas falas menos inteligíveis. Por outro lado, determinados desvios

898
segmentais observados nas suas falas caracterizam-se como ameaçadores
à inteligibilidade. A título de exemplo, R3 pronuncia a palavra bachelors
como [ˈbeɪʃəlɚz] em vez de [ˈbæʧəlɚz].

7. Discussão
Diante da análise das amostras de desempenho oral de (futuros)
professores de LI e da fundamentação teórica apresentada, conclui-se
que a substituição de [ɫ] por [w] não compromete a inteligibilidade
nas falas analisadas e não representa um erro de pronúncia, uma vez
que se trata de um fenômeno recorrente em variantes da LI. Isto pos-
to, é possível afirmar que há uma “flexibilização” da pronúncia desse
segmento. Desse modo, sugere-se que essa substituição não seja tratada
como um desvio segmental na avaliação da pronúncia no teste oral do
EPPLE.
Levando em consideração a análise dos dados obtidos por meio do
questionário, conclui-se que os professores de LI possuem um escasso
conhecimento sobre a articulação do som [ɫ]. Entretanto, é importante
esclarecer que o baixo número de respondentes é uma limitação que nos
impede de fazer generalizações.
Embora a BNCC (BRASIL, 2018) defenda um rompimento com
aspectos relativos à “correção” e proponha que os usos locais da LI não
sejam tratados como exceções, não se faz menos necessário o conheci-
mento, por parte do professor, sobre a produção do som [ɫ] nas varian-
tes “padrão”. A pronúncia do professor de LI é, na maioria das vezes,
a única fonte de insumo (oral) acessível aos alunos (CONSOLO &
BORGES-ALMEIDA, 2011) e, portanto, faz-se necessário que o pro-
fessor tenha o conhecimento sobre a produção dos sons nas variantes
da LI consideradas como “padrão” caso tenha de explicá-la aos alunos.
Considerando-se a fundamentação teórica, os dados e a discussão
apresentados neste artigo, recomenda-se que a fonética e a fonologia
da LI sejam enfatizadas nos cursos de Licenciatura em Letras tendo em
vista a perspectiva da inteligibilidade e a heterogeneidade da pronúncia
da LI.

899
Referências
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acoustic-articulatory analysis. Dissertação (Mestrado em Letras/Inglês e Literatura
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901
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

PRÁTICAS DE LINGUAGEM DOS


ESTUDANTES DE PEDAGOGIA EM AULAS
VIRTUAIS

Mario Ribeiro Morais (UFT)

RESUMO: Pautado pela abordagem Indisciplinar da Linguística Aplicada, o


artigo objetiva investigar como práticas de linguagem podem contribuir para
um possível fortalecimento de habilidades de leitura e escrita e também para
o aumento do repertório literário dos estudantes de Pedagogia, a partir de
aulas virtuais no contexto pandêmico. As interações nas aulas remotas virtuais
e as leituras e produções discursivas de gêneros acadêmicos (síntese, resenha,
perguntas de leitura subjetiva) e literários (mudando a história, memórias
literárias) das estudantes são focalizadas. A pesquisa é de natureza qualitativa e
de análise descritiva documental. As atividades realizadas parecem contribuir
com o desenvolvimento linguístico, com as práticas de letramentos acadêmicos
e literários dos estudantes com a ampliação de competências linguísticas,
discursivas e sensíveis a questões sociais no âmbito da linguagem. Desvelou,
entretanto, a partir de categorias analíticas, a necessidade de um trabalho
formativo contínuo de leitura, escrita, reescrita, atividades contextualizadas
com as vivências dos estudantes, para o possível fortalecimento de suas práticas
letradas, que devem refletir no exercício futuro de sua profissão, como agentes
de letramentos.
PALAVRAS-CHAVE: Letramento acadêmico; Letramento literário; Formação
de professores; Pandemia.

ABSTRACT: Guided by the Interdisciplinary approach of Applied Linguistics,


the article aims to investigate how language practices can contribute to a
possible strengthening of reading and writing skills and also to increase the
literary repertoire of Pedagogy students, from virtual classes in the pandemic
context. The interactions in the virtual remote classes and the students’
readings and discursive productions of academic (synthesis, review, subjective
reading questions) and literary (changing history, literary memories) genres are
focused. The research is of a qualitative nature and of descriptive documental
analysis. The activities carried out seem to contribute to the linguistic
development, with the students’ academic and literary literacies practices,
with the expansion of linguistic, discursive and sensitive to social issues in

902
the field of language. It revealed, however, from analytical categories, the
need for a continuous formative work of reading, writing, rewriting, activities
contextualized with the students’ experiences, for the possible strengthening
of their literate practices, which should reflect on the future exercise of their
profession, as literacy agents.
KEYWORDS: Academic literacy; Literary literacy; Teacher training;
Pandemic.

Considerações iniciais
O surto da Covid-19 afetou a saúde pública de forma assustado-
ra, causou muitos retrocessos, prejuízos econômicos, educacionais, so-
ciais, emocionais, culturais e milhares de mortes. Para conter o avanço
da pandemia, logo no início do ano de 2020, algumas medidas fo-
ram adotadas, como fechamento das unidades de ensino básico e as
universidades. O Ministério da Saúde decretou Emergência em Saúde
Pública de Importância Nacional, em fevereiro de 2020. A Portaria
do MEC nº 345/2020, de 17 de março de 2020, autorizou a subs-
tituição das disciplinas presenciais “por aulas que utilizem meios e
tecnologias de informação e comunicação, por instituição de educa-
ção superior integrante do sistema federal de ensino”. O parecer nº
05/2020 do Conselho Nacional de Educação (CNE), homologado pelo
Ministério da Educação (MEC), em 29 de maio de 2020, dispôs sobre
a “Reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de cômputo
de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária
mínima anual, em razão da Pandemia da Covid-19.”
Até o encerramento do segundo semestre letivo de 2021, seguindo
o que ocorreu em todas as universidades públicas brasileiras, estudan-
tes, professores, técnicos e colaboradores da Universidade Federal do
Tocantins (UFT) desempenharam suas funções de maneira remota. Para
desenvolver as aulas, professores se apropriaram de tecnologias, de am-
bientes virtuais de aprendizagem, como o Ava Moodle, Google Classroom.
Os planos de disciplinas foram preparados contemplando encontros
síncronos nas plataformas e atividades assíncronas, de modo geral.

903
Tendo em vista esse contexto pandêmico e complexo no âmbito do
ensino e da aprendizagem, investigamos as práticas de linguagem dos
estudantes de Pedagogia, a partir das interações nas aulas em sessões
virtuais na modalidade remota e da produção de vários gêneros acadê-
micos e literários. Faz-se necessário que os futuros docentes de Língua
Portuguesa ampliem seus domínios linguísticos para fins de usos pe-
dagógicos na sala de aula, no exercício futuro da função. Nesse senti-
do, esta pesquisa investiga como atividades de práticas de linguagem
podem contribuir para um possível fortalecimento de habilidades de
escrita e também para a ampliação do repertório literário dos estudantes
de Pedagogia, a partir de aulas virtuais durante a pandemia.
A complexidade do problema de pesquisa e das interações sociais
e as práticas de letramentos do professor formador trabalhadas com
os futuros professores de Língua Portuguesa em formação inicial na
licenciatura de Pedagogia, da UFT, Campus de Palmas, justificam
essa investigação sob o campo de estudo/metodologia da Linguística
Aplicada (doravante LA). Por mobilizarmos conhecimentos de fontes
diversas, assumimos uma abordagem investigativa da LA Indisciplinar
(MOITA-LOPES, 1998, 2006; PENNYCOOK, 2001). A pesquisa é
do tipo qualitativa e o procedimento adotado é o de análise descritiva
documental o qual, segundo Gerhardt e Silveira (2009, p. 37), “recorre
a fontes mais diversificadas e dispersas, sem tratamento analítico”.

Práticas de letramentos e mitigação das aprendizagens


A formação inicial de professores de Língua Portuguesa nas
Licenciaturas de Pedagogia neste contexto pandêmico demanda um en-
foque investigativo que mobilize pressupostos teóricos de várias áreas de
conhecimento, visto que o coronavírus complexificou ainda mais a vida
e as práticas pedagógicas das aulas remotas. A LA, como “uma aborda-
gem constantemente dinâmica e mutável para questões de linguagem e
educação” (PENNYCOOK, 2001, p. 172), pode assumir a investigação
deste objeto complexo, pois “os limites disciplinares não dão conta da
complexidade do que se estuda”, afirma Moita Lopes (1998, p. 126).

904
Ainda, “o interesse pela linguagem a partir do enfoque de objetos de en-
sino construídos ou interações escritas instauradas, aspectos linguísticos,
pedagógicos e sociais, característicos dos objetos de pesquisa, são foca-
lizados no campo indisciplinar da LA” (SILVA; DINIZ, 2014, p. 340).
Em vistas da importância de se trabalhar práticas letradas no âm-
bito da escrita e de leitura em contexto de formação das professores
de língua materna, foram desenvolvidas propostas pedagógicas media-
das por gêneros discursivos, no segundo semestre de 2021, no curso
de Pedagogia (UFT/Palmas), na Atividade Integrante175 ‘Letramento
Acadêmico e Literário’, tendo 25 professores matriculadas, seguindo de-
manda do trabalho pedagógico que favorece as transformações nas prá-
ticas de ensino de linguagem, como apresentam Silva, Lima e Moreira
(2016). O objetivo do componente curricular era focalizar práticas de
linguagem, de leitura e escrita, na esfera dos letramentos acadêmico e
literário, trabalhando com os professores em formação inicial a leitura e
a (re)escrita de gêneros discursivos, buscando contribuir com um possí-
vel fortalecimento de habilidades de escrita e também para o aumento
do repertório literário, com efeito, mitigando eventuais defasagens de
aprendizagens provocadas pela pandemia.
Nesse sentido, cabe destacar a possível contribuição dos estu-
dos no campo da Linguística Aplicada (MOITA LOPES, 2006;
PENNYCOOK, 2001), que têm potencial de abrir campo para a busca
de soluções, possibilitar reflexões e construção de novos conhecimentos,
que podem contribuir com o desenvolvimento linguístico dos graduan-
dos, quanto aos usos da leitura e da escrita. Exercer domínio das práticas
letradas nos espaços acadêmicos, escolares e sociais é imprescindível para
a formação e atuação sólidas dos graduandos em Pedagogia, visto que,
as práticas letradas são produtos da cultura, da história e dos discursos.
O trabalho de fortalecimento das práticas letradas dos professores em
formação, que deve ser constante e de muitas mãos, favorece o domínio
175
Para cumprir a carga horária mínima exigida, os estudantes de Pedagogia devem
cursar disciplinas optativas e/ou atividades integrantes. Este componente curri-
cular de 60 horas-aula foi aprovado pela coordenação do curso de Pedagogia para
oferta em 2021.2 como complementação curricular acadêmica.

905
da escrita, como ferramenta tecnológica, de poder e ideológica, que as
nossas relações, (des)construindo identidade(s) e (des)legitimando for-
mas de dominação, nos seus diversos formatos e suportes.
Como não há práticas letradas neutras (STREET, 2014), é funda-
mental a potencialização dos usos das habilidades técnicas de leitura e
escrita pelos graduandos, sobretudo dos usos dessas habilidades para
atender às demandas sociais e culturais, o que caracteriza o letramen-
to, segundo Kleiman (2004) e Tfouni (2002). De acordo com Street
(2014), a natureza do letramento evidencia as formas que as práticas
sociais de leitura e escrita assumem em determinados contextos ou do-
mínios sociais, e isso depende, essencialmente, das políticas e ideologias
das instituições que propõem e exigem essas práticas.

Práticas de letramento dos estudantes de pedagogia


Em conversa com os pares do colegiado do Curso de Pedagogia,
percebemos a necessidade de propormos uma Atividade Integrante que
pudesse contribuir com as práticas de leitura e escrita dos graduandos.
Para um possível fortalecimento de habilidades linguísticas, elaboramos
um plano de disciplina focalizando abordagens teóricas dos estudos do
letramento, do letramento acadêmico e do literário, práticas de leitura e
(re)escrita de textos acadêmicos, de textos literários, e práticas de (re)es-
crita acadêmica e literária a partir do texto literário. A carga horária era
de 60 horas. A dinâmica da disciplina da graduação, em vista do con-
texto pandêmico, foi operacionalizada em encontros síncronos (via pla-
taforma Meet aos sábados, período matutino) e assíncronos, de forma
alternada. Para viabilizar a proposta, havia um cronograma organizado
com rotas de aprendizagem semanais em que se previam as atividades
síncronas e assíncronas a serem desenvolvidas. A plataforma Moodle foi
utilizada como repositório dos textos para leitura, atividades propostas
e avaliações dos estudantes de Pedagogia. Como suporte e direciona-
mento de algumas práticas de leitura e escrita e agenda da disciplina,
foi criado um grupo no WhatsApp. Para esta investigação, fizemos um
recorte das discussões, das atividades, das produções realizadas.

906
No grupo do WhatsApp e na plataforma do Moodle, repassamos as
primeiras orientações sobre a organização pessoal de estudos, disponi-
bilizamos textos, esclarecemos a dinâmica da disciplina, a avaliação das
produções e os estudos da semana. Os encontros síncronos foram uti-
lizados para discussão teórica; leitura de textos literários; análise da pri-
meira versão da escrita das atividades propostas, com encaminhamentos
para a reescrita, quando necessário, apresentação dos aspectos de cada
gênero. Os momentos assíncronos eram destinados para a leitura de
textos e (re)escrita dos gêneros.
Nos encontros síncronos, discutimos aspectos conceituais sobre le-
tramento (SOARES, 2014), letramentos sociais (STREET, 2014), letra-
mento acadêmico (SILVA, 2017; MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010),
letramento literário (COSSON, 2014a; 2014b) e realizamos análise se-
mânticas, ortográficas e morfossintáticas pontuais a partir da primeira
versão da escrita dos graduandos. Nas primeiras interações, procuramos
deixar evidente a distinção de eventos de letramento e de práticas de
letramento, problematizando as nossas práticas letradas, que são atra-
vessadas por questões ideológicas, políticas e de poder. Utilizamos como
base Street (2012, 2014) para distinguir eventos e práticas letradas. Para
esse autor, eventos referem-se a qualquer ocasião que envolve a leitura e/
ou a escrita e a sua integração à natureza das interações dos participantes
e em seus processos interpretativos, como verificar horários, tomar um
ônibus, folhear uma revista, ler sinais para escolher a estrada, as aulas
síncronas, conversas no grupo do WhatsApp, entre outros. Já práticas de
letramento remetem a concepções ideológicas, culturais e sociais amplas
de modos particulares de pensar sobre a escrita e/ou a leitura, de se com-
portar diante delas e de realizá-las em contextos socioculturais, como as
propostas e a finalidade das escritas dos gêneros acadêmicos e literários
na disciplina em tela. As práticas incorporam os eventos.
Ao longo da disciplina, trabalhamos com a produção discursiva
dos gêneros acadêmicos (síntese, resenha), literários (mudando a his-
tória, memórias literárias) e acadêmico-literário (Perguntas de Leitura
Subjetiva, a partir de leitura de contos). Nos encontros no Meet, à

907
medida que íamos passando as atividades de escrita, fazíamos uma abor-
dagem e apresentação dos elementos macroestruturais de cada gênero.
Para a análise dos gêneros acadêmicos e literários, estabelecemos os se-
guintes critérios: adequação ao gênero, progressão temática, aspectos
gramaticais, originalidade, coesão e coerência (referenciação, paragrafa-
ção). Convém esclarecer que tomamos como referência para analisar a
adequação dos gêneros literários propostos os elementos narratividade,
enredo, espaço, tempo, personagens e literariedade.

Análise das práticas de letramento acadêmico


As análises desta investigação do âmbito do letramento acadêmico
focalizam, predominantemente, aspectos linguísticos formais em vir-
tude da relevância da proposta das práticas de leitura e escrita dos gra-
duandos que, no futuro exercício da docência, poderão mobilizar tais
competências linguísticas no ensino de Língua Portuguesa. Entretanto,
isso não nos faz distanciar da proposta de letramento acadêmico, dos
usos da escrita de gêneros científicos, como a resenha, comum no con-
texto universitário, e a escrita de resumos, sínteses, comuns também no
contexto escolar.
Silva (2017, p. 722), discutindo a formação sustentável do profes-
sor, cita a definição de letramento acadêmico sublinhada por Fischer
(2008): “’fluência em formas particulares de pensar, ser, fazer, ler e
escrever peculiares’ ao contexto universitário”. Silva afirma que os es-
tudos do letramento acadêmico – que geralmente focalizam crenças
sobre a escrita do aluno ingresso na universidade – se contrapõem ao
discurso da crise da escrita supostamente provocada pela escola. Para
ele, “o aluno do ensino básico é preparado para responder às práticas
escolares de escrita, possibilitando sua travessia para o mercado de tra-
balho ou para a universidade” (p. 722), entretanto o egresso da escola
básica, muitas vezes, é surpreendido com demandas de letramento não
familiares presentes nas universidades e mercado de trabalho. Por essa
razão, a proposta de trabalhar os usos sociais da leitura e da escrita na

908
universidade e fora dela e os aspectos formais e estruturais de alguns
gêneros acadêmicos com os estudantes de Pedagogia constituiu-se de
extrema relevância.
Para as análises, destacamos aulas, discussões e produções dos en-
contros virtuais e atividades assíncronas. Como parte da dinâmica do
encontro síncrono, sempre selecionávamos atividades dos estudantes
elaboradas nos momentos assíncronos para apresentarmos a análise na
sala virtual176 a partir das categorias, além de recomendarmos a re-
escrita, quando necessário. Uma síntese do texto ‘O que é letramen-
to?’ de Magda Soares foi a primeira atividade manuscrita que solicita-
mos. A figura 1 traz a produção de uma graduanda que devolvemos
para reescrita, visto que apresentava problemas ortográficos (acentu-
ação: ‘compara-lo’, ‘atraves’, ‘praticas’); de coesão por referenciação
(CAVALCANTE, 2013): repetição excessiva de ‘termo’; e de paragra-
fação: problemas de encadeamento sintagmático nos períodos longos.
Ao lado do manuscrito, trazemos a sua transcrição para facilitar a lei-
tura. Nela sublinhamos e negritamos alguns desses aspectos que foram
indicados para reescrita.

Figura 1. Escrita e transcrição de uma síntese

O livro de Magda Soares traz como ơtulo “O que é letramento” e discorre sobre esse
processo inevitável na vida de todo ser humano. O termo letramento é recente no ce-
nário da educação, desde seu surgimento até os dias atuais ganhou muitas definições
que se interessaram a defini-lo e compara-lo com outros termos, por isso podemos
reconhecer o termo letramento como o uso da escrita, que se envolve em praƟcas
sociais na escola podemos reconhecer o letramento como o contexto da criança no
mundo da leitura, atraves do folheamento de livros, contação de histórias e etc. Po-
de-se perceber o letramento como um processo disƟnto da alfabeƟzação, mas muito
necessário no processo de ensino e aprendizagem.

176
Pautado por uma atitude ética em LA, elaboramos um Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido, via formulário google, para que os futuros docentes autori-
zassem o uso de fragmentos de seus textos nas sessões virtuais e em eventuais pu-
blicações. Por e-mail, o artigo foi compartilhado com os estudantes que tiveram
seus fragmentos selecionados para esta análise para que elas fizessem observações.

909
Fonte: acervo do pesquisador (grifos nossos)

Além de aspectos formais, a síntese da figura 1 apresenta proble-


mas macroestruturais, quanto à adequação do gênero com abordagens
muito detalhadas que se aproximavam de outro gênero, o resumo. Na
síntese em tela, há problemas de encadeamento sintagmático, de orga-
nização e sequenciamento dos enunciados, como na passagem negrita-
da. Quanto a esta passagem destacada, na sessão virtual, afirmamos que
o letramento não é o contexto da criança no mundo da leitura, mas os
usos pelos estudantes da leitura em contextos escolares, sociais.
No âmbito do letramento, o professor formador procurava apre-
sentar para os estudantes a importância de se dominar minimamente
a escrita e leitura dos gêneros acadêmicos em estudo e como eles são
utilizados na e fora da universidade. Nesse processo, embora o trabalho
de reescrita fosse visto como trabalhoso por parte dos futuros docentes
nas sessões virtuais, em razão do pouco tempo que elas tinham para
a realização de atividades de todos os componentes, éramos incisivos
quanto à devolução da reescrita para aperfeiçoamento da escrita e do-
mínio do gênero.
A maioria das sínteses apresentava problemas ortográficos (uso de
há ou a; traz ou trás), uso de virgulação, concordância nominal e verbal,
regência, uso do acento grave, emprego de onde. Equívocos quanto
ao uso de pontuação e de construção sintagmática - uso inadequado

910
de preposição na sequência textual descrita, quanto à aspectualização
(CAVALCANTE, 2013) são apresentados na seguinte escrita de ou-
tra professora (grifos nossos): “Magda Soares, destaca um ponto muito
interessante que diz a respeito a responsabilidade e de uma pessoa ser
alfabetizada e não letrada”.
Para encaminhar a reescrita, destacamos alguns momentos das au-
las síncronas para apresentarmos regras e exemplos sobre concordância,
uso de crase e emprego de vírgula, de onde, aonde, no qual, do qual e
em que e de traz e trás. Para finalizar esta análise e indicação de sínte-
ses para reescrita, propomos a escrita coletiva de uma síntese sobre o
mesmo texto na sala virtual. Os estudantes iam discutindo, ditando as
sentenças e nós íamos escrevendo e sugerindo alguma alteração, even-
tualmente. Destacamos a seguir a produção coletiva, atividade muito
elogiada pelos futuros professores:

O capítulo ‘O que é letramento’ de Magda Soares trata da ori-


gem e significado da palavra letramento. Para a autora, muitos
confundem o termo com a expressão alfabetização. Letramento
foi inserida no dicionário há dez anos, do termo literacy origi-
nário da língua inglesa, e significa condição e estado de quem
mobiliza a leitura e escrita nas práticas sociais, levando em con-
sideração as questões de poder, de cultura, entre outras.

Na produção do gênero acadêmico resenha, notamos a escolha le-


xical inadequada do termo ‘dialeto’ na seguinte escrita da professora:
“[a] leitura é de dialeto simples, mas não deixa de ser apaixonante”.
Apontamos outros problemas apresentados na escrita inicial de outros
graduandos, como o uso coloquial do ‘pra’, a recorrência de elemen-
tos, sem acrescentar novas instruções de sentidos, comprometendo a
construção de paralelismo (KOCK, 2002). Quanto aos aspectos estru-
turais da resenha (apresentação, descrição, avaliação e recomendação
(MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010), verificamos que alguns textos
traziam uma apresentação longa dos autores da obra resenhada, outros
careciam de aprofundamento na avaliação e recomendação. A Figura 2
traz a a reescrita de uma graduanda, em cuja refacção textual (a partir

911
da intervenção que o professor formador realizou), houve o acréscimo
da quantidade e descrição dos capítulos do livro para atender a carac-
terísticas do gênero apresenta por Motta-Roth; Hendges (2010). Na
sequência da figura, apresentamos a transcrição dessa passagem textual:

Figura 2. Reescrita de uma resenha

No livro “Sistema de escrita alfabéƟca”, dividido em sete capítulos: revisão de anƟgas


formas de alfabeƟzar, a teoria da psicogênese da escrita, a escrita alfabéƟca como
sistema notacional e seu aprendizado como processor evoluƟvo, consciência fonológica
e alfabeƟzação: superando preconceitos teóricos e mantendo a coerência, ajudamos
nossos alfabeƟzandos, práƟcas de ensino do SEA: princípios gerais e aƟvidades voltadas a
compreender as propriedades do sistema, práƟcas de ensino do SEA: aƟvidades voltadas a
consolidação das correspondências letra-som e alternaƟvas de avaliação do conhecimento
das aprendizagens. O autor defende a “reinvenção” da alfabeƟzação para a [...]

Fonte: Arquivo do pesquisador.

Observemos que a reescrita, embora a estudante tenha acrescen-


tado a divisão e composição dos capítulos do livro resenhado, o modo
como foi construído não facilita a leitura. Nesse sentido, fizemos uma
intervenção, indicando para a graduanda que na divisão dos capítulos
poderia utilizar o ponto e vírgula. Além disso, afirmamos que o ponto
de continuidade da última linha do fragmento foi utilizado inadequa-
damente antes da expressão ‘O autor defende’, visto que esse enunciado
é uma sequência da passagem que abriu a parágrafo: ‘No livro Sistema
de escrita alfabética’ ... o autor defende.
Como forma de potencializar o desenvolvimento linguístico dos
estudantes de Pedagogia quanto aos usos sociais da leitura e da escrita

912
e de verificar se realmente os gêneros discursivos foram produzidos a
próprio punho, adotamos como critério a ‘originalidade’. Sempre fazía-
mos uma busca por uma eventual apropriação de texto alheio. De todas
as produções, detectamos três cópias com trechos de texto plagiados.
A Figura 3 apresenta o recorte de um pedido de desculpas escrito na
sequência de uma reescrita de uma resenha (bem escrita, por sinal) por
uma professora.

Figura 3. Pedido de desculpas por realizar atividade de plágio

Fonte: Arquivo do pesquisador

Esse bilhete é uma evidência das práticas de letramento. Ele desvela


o engajamento e o compromisso que os estudantes precisam ter nos
usos que fazem da escrita no contexto de formação inicial e da futura
atuação profissional. Observemos que este bilhete, embora não se trata
de um gênero trabalhado, está bem escrito. Essa futura professora real-
mente tem uma escrita diferenciada. A síntese e as três atividades sub-
sequentes à resenha foram bem escritas por ela. Quanto aos usos sociais
da escrita, está em evidência a atitude crítico-reflexiva de mudança de
postura dessa futura docente após a intervenção do professor formador
em um texto seu copiado da internet.

Análise das práticas de letramento literário


Antes de apresentar a proposta de produção dos gêneros discur-
sivos narrativos, dedicamos encontros síncronos para discutirmos as

913
perspectivas do letramento literário, numa interface ou composição
com outras manifestações artísticas, os chamados avatares da literatura
de caráter híbrido, que se retroalimentam, como o filme, desenhos ani-
mados, minisséries a partir do texto literário, entre outros, em variados
suportes potencializadores do ato de ler (COSSON, 2014a, 2014b;
LAJOLO, 2001; PETIT, 2009, CHARTIER, 1998, NECCHI, 2009).
Realizamos ainda a leitura de ‘obras das margens’, do ‘Sul’, que de-
nominamos de avatares da literatura infanto-juvenil, como “Robson
Crusoé”, de Daniel Defoe, em HQ; “Um garoto chamado Rorbeto”,
um rap narrativo de Gabriel, O Pensador; “O menino invisível”, obra
grafitada em muros em Brasília; “As tranças de Bintou”, de Sylviane
Diouf; “A bruxinha curiosa”, de Lieve Baeten; “Meninos carvoeiros”,
de Manuel Bandeira. O objetivo dessas leituras e das produções das
margens era fortalecer o pensamento crítico e a atitude dos estudantes
de Pedagogia, empoderando o Sul, haja vista que ‘estamos no Sul’, e
que devemos aprender a partir do ‘Sul’ e com o ‘Sul’ (SANTOS, 2010).
Consideramos esses textos como sendo ‘das margens ou do sul’ em
virtude de o formato, o gênero e temáticas de grupos oprimidos (HQ,
rap narrativo, literatura negra, exploração de vulneráveis, a reinvenção
de uma personagem que é símbolo de maldade, a bruxa) terem ocupa-
do por muito tempo uma posição secundária, marginal, em relação ao
cânone literário ocidental, europeu. O fortalecimento das minorias do
sul, o predomínio dos meios de comunicação de massa e a expansão de
variados suportes de veiculação textual, em curso nos últimos decênios,
vêm forçando “um reexame das fronteiras clássicas no âmbito do estudo
da cultura, o ‘multiculturalismo’ [...] desafia o modo como o Ocidente
vem concebendo sua identidade e articulando-a em um cânone de obras
de arte.” (EAGLETON, 2006, p. 358). Segundo o autor, “[o] resultado
foi a abrupta criação de um cânone ocidental estreitamento concebido,
recuperando as culturas execradas de grupos e pessoas ‘marginalizadas’”
(p. 358, grifos do autor).
Para a produção da primeira atividade, “mudando a história”,
selecionamos e discutimos os contos do “sul” “Nós matamos o Cão

914
Tinhoso”, do moçambicano Luís B. Honwana e “Nós choramos pelo
Cão Tinhoso”, do angolano Ondjaki. A narrativa de Honwana, pu-
blicada no ano de 1964, no contexto da luta pela independência de
Moçambique da opressão colonial portuguesa, denuncia o racismo, o
machismo, as mazelas da colonização, fazendo crescer um sentimento
anticolonial do povo moçambicano. Como produção textual, os estu-
dantes de Pedagogia mudariam o final da história, dando um final al-
ternativo, ao primeiro conto.
A atividade proposta favoreceu a produção de textos criativos e
encantadores. Os textos atenderam às características do gênero conto,
quanto aos aspectos microestruturais da narratividade, enredo, espaço,
tempo, personagens. Num viés autoral, há uma abundância de inven-
tividade, cuja literariedade enlaçou, sobretudo, modos de salvação do
Cão Tinhoso de morte certa. Algumas produções apresentavam pro-
blemas formais que, por intervenção do professor formador, eram en-
caminhadas para a reescrita. O fragmento a seguir é uma amostra de
uma sequência narrativa bem construída, na qual se situam os aspectos
estruturais do gênero em análise: personagens, narrador, espaço, tempo,
literariedade. As intervenções formais foram poucas para esta constru-
ção textual, destacadas na transcrição ao lado do manuscrito (grafia,
letra maiúscula em substantivos próprios).

Figura 4. Escrita da atividade ‘Mudando a história’

Com o cão Ɵnhoso.


A Isaura agarrou o Cão
e não soltou mais impedindo
que o Quim e toda a sua tropa
aƟrassem. Foi então que saíram
furiosos para as suas casas, me
chamando de borra botas, pois eu
estava com tanto medo de matar
o Cão Ɵnhoso que errei o Ɵro.
O Cão Ɵnhoso parecia estar
descançado e aliviado no colo de
Isaura que o levou para a sua casa e

915
Fonte: Arquivo do pesquisador (grifos nossos)

Nas sessões virtuais, no âmbito do letramento literário, discutimos,


além da importância de se dominar as peculiaridades estruturais e for-
mais de cada gênero discursivo literário, sobre a continuidade da his-
tória do conto “Nós matamos o Cão Tinhoso”, questões relacionadas à
libertação de povos oprimidos por países colonizadores e como o enga-
jamento a partir do texto literário (do autor e leitores) pode contribuir
com esse processo de libertação. Nas produções e nas participações na
aula síncrona, os estudantes saíram em defesa do Cão Tinhoso, resga-
tando-o no matadouro e denunciando a brutalidade da “malta”. Apenas
três textos mantiveram a morte de cão como fora construída pelo autor
da narrativa, mudando apenas a sequência final do enredo no retorno
após a matança do Tinhoso. Em uma perspectiva crítica, o professor
formador fazia intervenção mostrando que o Cão Tinhoso, de olhos
azuis (simbolizava o colonizador), sempre cheios de lágrimas e com os
ossos e feridas à mostra, representava o sistema decadente dos explora-
dores e que deveria ser destruído.
A produção da escrita das “Memórias literárias” dos estudantes de
Pedagogia foi antecedida por apresentação dos elementos microestru-
turais do gênero e por leitura dos seguintes textos conduzidas nos en-
contros síncronos pelo professor formador: “Lembranças que o tempo
não apagou”, de Danley Dênis da Silva; “Transplante de menina”, de

916
Tatiana Belinky; e “O valentão que engolia meninos e outras histórias
de Pajé”, de Kelli Carolina Bassani. Destacamos alguns dos títulos pro-
duzidos pelas cursistas: “Memória marcante”; “A sala”; “A rua da minha
casa”; “Lembranças de uma leitora”; “O terrível monstro da água”; “O
sonho de criança”; “Iniciação na vida acadêmica”; “Assim como o sol
se vai”; “Doces lembranças do meu tempo de criança”; “Recordando a
infância”; “Férias de julho”. Revisitar as cinzas das lembranças deixadas
pelas chamas de vivências passadas era uma forma de valorizar quem
ou o que os estudantes de graduação amavam, cativavam. Era uma
maneira de fortalecer o momento presente, pelo resgate de marcantes
lembranças.
No encontro virtual, na perspectiva do letramento literário, o pro-
fessor formador discorreu sobre a relevância do trabalho com as me-
mórias narrativas na educação básica. Como as crianças, por exemplo,
podem aprender nas rodas de conversas com os familiares mais velhos,
com a declamação de poemas e contação de histórias dos graduandos.
Disse também que as histórias narradas e vividas vão marcando e cons-
truindo nossa identidade. Nesse sentido, falou do objetivo da atividade
proposta como um momento de revisitarmos memórias do passado e
como elas podem nos ajudar a viver, provocando um sentimento agra-
dável, saudades, fortalecendo nossos projetos de vida, nos fazendo so-
nhar ou chorar outra vez. Afirmamos ainda que o jogo da memória,
que funda ou constrói a identidade, é feito de lembranças evocadas e
esquecimentos. A memória é a identidade em ação. As lembranças que
guardamos de cada época de nossa vida se reproduzem sem cessar e
permitem que se perpetue o sentimento de nossa identidade (Ricoeur,
2007; Candau 2011). Somos quem somos porque nos lembramos de
quem somos, parafraseando Izquierdo (1989).
Candau (2011, p. 98-99) afirma que

[...] cada memória é um museu de acontecimentos singulares


aos quais está associado certo nível de evocalidade ou de memo-
rabilidade. Eles são representados como marcos de uma trajetó-
ria individual ou coletiva que encontra sua lógica e sua coerência

917
nessa demarcação. A lembrança da experiência individual resul-
ta, assim, de um processo de seleção mnemônica e simbólica
de certos fatos reais ou imaginários – qualificados de aconteci-
mentos – que presidem a organização cognitiva da experiência
temporal. São como átomos que compõem a identidade.

O momento da leitura das memórias foi singular, visto que des-


pertou a sensibilidade, a emoção dos envolvidos na interação. Na aula
virtual, concedemos um momento para a realização da leitura das me-
mórias. Enquanto o ato de ler avançava sobre as linhas das memórias,
os pensamentos viajavam com os fatos narrados, os sentimentos sacu-
diam o coração dos ouvintes. Letramento literário é também compar-
tilhamento de afetos, sentimentos, dor, alegria, durante a contação de
memórias.
As escritas dos estudantes de graduação, lastreadas de originalidade,
empregavam apropriadamente a narratividade, o enredo, o espaço, o
tempo, os actantes. Entretanto, das categorias de análise, observamos
que boa parte das escritas evidenciava uma inadequação na articulação
da literariedade, que é caracterizada como “uma organização diferente
(por exemplo, mais densa, mais coerente, mais complexa) dos mesmos
materiais linguísticos cotidianos” (COMPAGNON, 1999, p. 42). A
maioria dos textos narra os episódios passados tais quais ocorreram,
padecendo de inventividade, recriação da realidade por figuras de lin-
guagem, por jogos de palavras e imagens, sem, contudo, desvencilhar-se
da verossimilhança. Isso revela, provavelmente, que a trajetória leitora,
as histórias de letramento desses estudantes foram marcadas por poucas
leituras literárias desde a infância.
Nas sessões virtuais, o professor formador, quanto aos aspectos for-
mais, gramaticais e à literariedade, fazia encaminhamentos de algumas
produções para a reescrita. Além disso, destacava a importância de se
dominar, minimamente, os usos da leitura e escrita literária e o papel
de cada estudante como agente de letramento literário na escola. Nesse
processo, torna-se imprescindível a intensificação do contato dos estu-
dantes, em todas as etapas de escolarização, com o texto literário, visto

918
que, para muitos deles, futuros professores, a biblioteca escolar, a peda-
goga e a professora de português serão os meios, talvez os únicos, que
mediarão o contato com o livro literário.
O quadro 1 traz fragmentos de duas memórias literárias com abun-
dância em literariedade, com os jogos de ideias, de inventividade, apre-
sentado leveza ao narrado e intensidade ao vivido.

Quadro 1. Fragmentos de memórias literárias dos estudantes de Pedagogia

A sala O terrível monstro da água


Aquele dia foi diferente. Comecei a
andar pela escola diferente e esquecível.
Via rostos diferentes, esquecíveis e de-
sinteressantes. Porém, observei que ha-
via um lugar ainda inexplorado. Era uma
sala fria, sem muitas janelas, com várias
luzes arƟficiais que lutavam contra a es-
curidão para manter o lugar iluminado. Transcrição:
Havia ali, rostos diferentes, esquecíveis Mais uma rajada corou o breu
e desinteressados, contrastando com o da noite, seguida do estrondo do
lugar que me era comum, inesquecível e trovão que assustou a todos nós,
interessante: uma biblioteca. mas revelou a face da imagem
Com tantas opções, nem sabia por que nos atormentava, não era
onde começar. Fiquei ali estagnada, ten- uma criatura tenebrosa ơpica das
tando absorver cada detalhe. O cheiro lendas do lago Ness, era apenas
de livros velhos e empoeirados se mos- um imenso galho com algas ema-
trando com o perfume forte dos adoles- ranhadas. Uma expressão de alí-
centes; estantes a perder de vista; rostos vio transpareceu ao meu corpo,
cheios de espinhas. Fui Ɵrada do meu êx- seguida de uma troca de olhares
tase, por uma voz fraca e monótona, per- entre nós, então risadas ecoaram
guntando se eu precisava de algo. Não nas margens do rio, presenciando
respondi, apenas me meƟ mais ainda aquela alegria pós medo, percebi
dentro daquele lugar, nem pensando se que agora Ɵnha minha primeira
poderia me perder e não encontrar no- história de pescadora para contar,
vamente a saída. Acho que lá no fundo exceto para a minha mãe que iria
eu queria isso. pirar no hospital com essa expe-
riência assustadora e perigosa em
[...] meio a tempestade.
Fonte: arquivo do pesquisador

Como atividade final, numa interseção dos letramentos acadêmico


e literário, realizamos a leitura de três contos dramáticos e disponibili-
zamos Perguntas de Leitura Subjetiva para os estudantes responderem a

919
partir de suas impressões, fortalecendo as suas práticas letradas críticas,
sobre temas como feminicídio, exploração do trabalho infantil, maus
tratos de animais, tráfico de crianças. As perguntas foram retiradas e
adaptadas de um questionário aplicado em pesquisa doutoral do profes-
sor formador, no campo do letramento científico literário, para alunos
do ensino médio. As perguntas são sensíveis e provocam uma reflexão,
uma tomada de atitude em relação à leitura e escrita, às práticas le-
tradas e temáticas veiculadas nas narrativas, oportunamente, discutidas
nas sessões virtuais. Os contos lidos foram: “Crianças à venda – Tratar
aqui!”, de Rosa Amanda Strausz; “Biruta” e “Venha ver o pôr do sol”,
ambos de Lygia Fagundes Telles.
Das cinco perguntas do questionário, destacamos a última, cujo
objetivo era sensibilizar os estudantes de Pedagogia quanto ao papel
da literatura enquanto fator de humanização (CANDIDO, 2002). O
quadro 2 traz algumas das respostas dos futuros docentes, desvelando a
influência que a arte literária pode desempenhar no processo de apro-
priação das práticas letradas no âmbito da literatura.

Quadro 2. Escritas dos estudantes sobre manifestação


artística como fator de humanização

Estudantes Respostas à quinta pergunta: Você acredita que uma música,


uma peça teatral, um texto literário ou outra manifestação artística
pode nos tornar mais humanos? Justifique
1 A literatura tem um papel importante em nosso meio, pois nos
leva à reflexão sobre várias situações reais, isso de certa forma
mexe com o nosso interior, nos faz questionar nossas posições e a
falta de posição também.
2 As verdades escondidas explicitamente nas entrelinhas buscam o EU ver-
dadeiro. Sentimentos, vontades, pensamentos são rebuscados enquanto
deparamos com situações vividas em aventuras plantadas em cenários
fictícios. Essas manifestações artísticas quando conseguem chegar à nossa
alma verdadeira, nos fazem entender que somos tudo e somos muito
pouco: Somos humanos! Somos fortes para certas situações e muito fra-
cos em outras; somos verdadeiros guerreiros nessa aventura que é a vida
e que deve ser vivida plenamente enquanto vida for. Fazem-nos mais
humanos quando conseguem nos colocar diante de nossos próprios me-
dos, decepções, constrangimentos, força, culpa e nos desnudam para nós
mesmos

920
3 A leitura nos leva a refletir sobre a temática através do olhar do
outro. Gera uma empatia que talvez não teríamos sozinhos.
4 É inegável que os textos contribuam na formação/construção do
ser humano, oportunidades para (re)fazer retomadas e amadu-
recer das ações e adotarmos novas práticas e comportamentos,
como: empatia, amor, respeito e outros.
5 Sim, pois abordam de uma maneira poética fatos do nosso coti-
diano e nos fazem olhar acontecimentos “comuns” do nosso dia a
dia sob outra perspectiva.
Fonte: elaborado pelo pesquisador (grifos nossos).

As respostas dos estudantes desvelam que eles, teoricamente, com-


preendem o papel da arte (literária) como influenciadora, transforma-
dora de realidades, de sujeitos. Pelos fragmentos sublinhados, os futuros
professores afirmaram que uma manifestação artística pode nos levar
a reflexão sobre várias situações, nos tornar mais humanos, gerar uma
empatia, nos fazer adotar novas práticas e comportamento, a olhar os
acontecimentos comuns sob outra perspectiva. Discutimos na aula sín-
crona que estudantes, engajadas em práticas letradas a partir do texto
literário, encaixadas em eventos de letramento, como a sala de aula nas
escolas de educação infantil e séries iniciais, podem promover a forma-
ção de leitores críticos, sensíveis, éticos e atuantes em causas sociais.

Considerações finais
As interações nas aulas virtuais parecem que contribuíram para o
enfrentamento do isolamento provocado pela pandemia. Os encontros
proporcionam momentos de diálogo, de compartilhamentos das pro-
duções próprias dos graduandos, de valorização da autoria das narrati-
vas, das escritas acadêmicas. O espaço virtual se constituiu como um
lugar de trocas enriquecedoras, de possível fortalecimento (emocional,
linguístico) da formação de professores em contexto de crise.
A apropriação de práticas letradas é um processo importante, quan-
to necessário para os graduandos em Pedagogia. “Todo professor precisa
ser um agente de letramento, na condição de que seja significativamente

921
letrado” (SILVA; DINIZ, 2014, p. 335). É fundamental que os futuros
professores, desde a incursão em eventos letrados na academia, tenham
familiaridade com uma quantidade maior de práticas letradas sociais,
visto que elas podem impactar os seus alunos, tornando-os mais huma-
nos a partir de leituras envolventes e atividades de escrita contextualiza-
das com as vivências dos alunos, como a produção proposta ‘Mudando
a história’ e ‘Memórias literárias’.
A abordagem mostrada neste artigo não tem quase nada de diferen-
te de outras que orientam a reescrita de diferentes gêneros. Certamente
essa prática se faz em muitos contextos de ensino de escrita e de outros
conhecimentos que são construídos por meio da escrita e da leitura.
Talvez, a potencialização, ampliação do repertório e apropriação do tex-
to literário pela leitura e escrita de gêneros solicitados possam se consti-
tuir como diferenciadores, no contexto da formação de professores em
um Curso no qual a leitura literária tem pouco espaço. Nesse sentido,
embora as atividades tenham sido pontuais, elas potencializam o tra-
balho com o letramento literário no curso de Pedagogia e na futura
atuação dos graduandos.
Os eventos e práticas letradas com os gêneros acadêmicos e li-
terários, se desenvolvidos ao longo do tempo, de forma sistemática e
contínua, na formação de professores, podem contribuir para o for-
talecimento e desenvolvimento de habilidades de escrita e de leitura
dos graduandos, com repercussão na aprendizagem dos estudantes da
educação básica.
Como evidência de um possível desenvolvimento linguístico dos
graduandos de Pedagogia no campo das práticas letradas acadêmicas e
literárias, destacamos: a) as intervenções nas escritas dos gêneros pro-
postos pelo professor formador e a devolutiva com melhorias na se-
gunda versão do texto, o que não significa que os estudantes vão dei-
xar de apresentar os mesmos problemas ou semelhantes na escrita, por
isso a necessidade de um trabalho contínuo de reescrita em qualquer
curso de graduação; b) a apropriação dos elementos macroestruturais
dos gêneros discursivos apresentados e elaborados; c) a participação dos

922
estudantes nas discussões sobre temáticas sociais conjunturais, como
feminicídio, violência, exploração, descolonização do sul; d) o desen-
volvimento de competências na escrita de gêneros narrativos a partir da
contextualização das experiências dos estudantes de graduação, como
as memórias produzidas, articulando aspectos socioemocionais e forta-
lecendo a identidade das docentes; e) a consolidação da compreensão
de que uma manifestação artística pode nos impactar, (re)direcionar as
nossas pensamentos e atitudes.
Nesse sentido, o trabalho desenvolvido pelo professor formador é
visto como um ensaio e uma proposta pedagógica de trabalho no âm-
bito do letramento que deve ser melhorada, aprofundada, na formação
de professores de Língua Portuguesa na Licenciatura em Pedagogia.
A experiencia mostrada poderá inspirar ações semelhantes, que têm
o potencial de contribuir com o desenvolvimento linguístico de pro-
fessores em formação inicial. Fortalecer o trabalho com os diferentes
letramentos, como o acadêmico e o literário, as leituras sem margens,
em um processo de escrita vai (produção inicial) e escrita vem (reescri-
ta), pode aperfeiçoar as práticas pedagógicas do professor formador e,
consequentemente, potencializar a profissionalização dos estudantes de
língua materna na futura atuação nos espaços escolares.

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925
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

EXPERIÊNCIAS LEITORAS DE GRADUANDOS


DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Míriam Martinez Guerra (UFNT)

RESUMO: O presente estudo objetivou investigar experiências leitoras de


estudantes ingressantes no curso de Ciências Sociais vinculado à Universidade
Federal do Norte do Tocantins. Compreendemos que conhecer as experiências
leitoras dos estudantes universitários é parte das necessidades relacionadas à
caracterização dos alunos matriculados. Além disso, as experiências leitoras
dos estudantes revelam como eles tomam parte nos eventos onde textos
escritos estão presentes, quer seja no conjunto de evento que constituem
as aulas na universidade, quer seja em eventos de outros domínios. A
partir dos eventos, pode-se notar práticas de letramento ligadas às vidas
desses estudantes, contribuindo para melhor compreensão do grupo que
constitui o curso de graduação em foco. A pesquisa foi desenvolvida a partir
da perspectiva sociocultural dos Estudos de Letramento, ligada à área da
Linguística Aplicada e embasada pela concepção bakhtiniana de linguagem.
Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa-interpretativista e do tipo
estudo de caso. Os participantes da pesquisa são estudantes que recentemente
ingressaram no Curso de Ciências Sociais, nos anos 2020, 2021 e 2022. Para
coleta e geração de dados foi utilizado questionário de pesquisa, diário de
campo e documentos cedidos pela secretaria acadêmica. Os resultados obtidos
denotam como tais estudantes evidenciam gêneros discursivos mais próximos
de suas vidas e revelam alguns dos eventos de letramento que eles tomam parte
no cotidiano acadêmico e não acadêmico.
PALAVRAS-CHAVE: Evento de letramento. Estudantes universitários.
Leitura.

ABSTRACT: The present study aimed to investigate the reading experiences of


students entering the Social Sciences course linked to the Universidade Federal
do Norte do Tocantins. We understand that knowing the reading experiences
of university students is part of the needs related to the characterization
of enrolled students. In addition, students’ reading experiences reveal how
they take part in events where written texts are present, whether in the set
of events that constitute university classes, or in events in other domains.
From the events, it is possible to notice literacy practices linked to the lives

926
of these students, contributing to a better undestanding of the group that
constitutes the undergraduate course in focus. The research was developed
from the sociocultural perspective of Literacy Studies, linked to the area of
Applied Linguistics and based on the Bakhtinian conception of language. It
is a research with a qualitative-interpretative approach and a case study. The
research participants are recently joined the Social Sciences Course, in the
years 2020, 2021 and 2022. For data collection and generation, a research
questionnaire, field diary and documents provided by the academic secretary
were used. The results obtained show how these students evidence discursive
genres that are closer to their lives and reveal some of the literacy events that
they take part in academic and non-academic daily life.
KEY-WORDS: Literacy events. Lecture. Undergratuate.

Introdução
O que pretendemos tomar como objeto de estudo, nesta proposta,
são as experiências leitoras de estudantes ingressantes no curso de Curso
de Ciências Sociais (licenciatura), vinculados à Universidade Federal do
Norte do Tocantins.
Investigar as experiências leitoras dos estudantes ingressantes na
universidade pode favorecer o conhecimento de como se constitui o
grupo de estudantes matriculados no curso. Esse tipo de estudo pre-
tende visualizar práticas de leituras desenvolvidas pelos estudantes em
diferentes contextos sociais, no intuito de tornar evidente traços de
suas histórias de letramentos, quase sempre pouco visíveis aos olhos das
agências e agentes de letramento177.
Os modos como os estudantes ingressantes na universidade, aces-
sam materiais escritos para leitura acadêmica ou por fruição, seus luga-
res para ler, as pessoas que influenciam suas leituras, o que eles leem,
que autores apontam ter lido, quais memórias eles têm de seus pais ou
responsáveis quanto à mobiliação de textos escritos no lar, por exemplo,

177
Por “agência de letramento” compreendemos os espaços sociais onde o texto
escrito é um elemento relevante, tal qual a escola, a igreja, o local de trabalho etc.
(KLEIMAN, 1995).

927
são indagações ligadas à compreensão de letramento numa perspecti-
va “ecológica”, como expõe Barton (1994), com base na compreensão
de que o processo de se constituir letrado envolve interação com uma
multiplicidade de gêneros discursivos (orais, escritos e imagéticos) que
tomam parte em “práticas de letramento”178 mobilizadas por eles, liga-
das aos “eventos de letramento”179 que eles participam.
A noção de letramento aqui defendida parte de uma concepção
sociocultural, advinda do campo dos Estudos de Letramento, na qual
letramento é tido como um conjunto de práticas sociais de uso da es-
crita, num sentido mais amplo que as práticas escolares que envolvem a
linguagem escrita, ainda que estas estejam inclusas (KLEIMAN, 2010).
Nessa perspectiva, letramento é entendido como um “conjunto de
práticas sociais relacionadas ao uso, à função e ao impacto da escrita na
sociedade” (KLEIMAN, 2000, p. 19). Essa concepção de letramento,
conforme nos mostra a autora, funda-se na pesquisa de antropólogos,
historiadores, sociólogos que defendem que as práticas de uso da escrita
são determinadas culturalmente, com “modos específicos de funciona-
mento” que “têm implicações importantes para as formas pelas quais
os sujeitos envolvidos nessas práticas constroem relações de identidade
e poder” (KLEIMAN, 1995, p. 11). Essa compreensão de letramento
traz o entendimento de que o processo de tornar-se letrado é identitário
(KLEIMAN, 2010, p. 376).
Assim, podemos considerar que o ingresso do jovem ou adulto
numa instituição de ensino, como a universidade, é um marco em sua
história de letramento, dado que a pessoa passa a experienciar even-
tos e práticas de letramento distintos da vida ordinária, num contexto

178
A ideia de “prática de letramento” (HAMILTON, BARTON, 2000; KLEI-
MAN, 1995; STREET, 1984) está relacionada às maneiras culturais ligadas ao
evento onde a pessoa é participante. Assim, uma prática pode ser visibilizada
a partir do evento, por meio dos discursos que permeiam tal evento.
179
A noção de “evento de letramento” é compreendida aqui com base nas palavras
de Heath (1983, p. 196) – “um evento diz respeito à situação em que um por-
tador qualquer de escrita é parte integrante da natureza das interações entre os
participantes e de seus processos de interpretação”.

928
social diferenciado de outros contextos educacionais. Moss (1987, p. 46
APUD IVANIC, 1998, p. 7) aponta que o ensino superior é definido
por estudos relativamente isolados que ocorrem num processo autôno-
mo de ensino e aprendizagem, no qual os estudantes são encorajados
a construir pensamentos e formas de aprender “independentes”, num
espaço institucional tradicionalmente marcado por valores que todos
os estudantes ingressantes devem aprender – uma cultura institucional
acadêmica.
Ao tratar da questão identitária do estudante universitário, Ivanic
(1998) representa o momento de ingresso na universidade por meio de
uma metáfora baseada nas experiências vividas por Roach (1990 APUD
IVANIC, 1998, p. 8), descritas num artigo intitulado “Marathon”: “a
academia me fez sentir como um boneco de marionete, como um Alien
de outro planeta [...]”180. Tal fala traz indícios de que o momento de
ingresso no ensino superior, por vezes, é associado a uma fase da vida
ligada à mudança, dificuldade, sentimentos estranhos, crise de confian-
ça e à necessidade de descobrir as regras de um mundo não familiar
(IVANIC, 1998).
No momento de ingresso nesse espaço institucional, a não familia-
ridade dos estudantes com a cultura acadêmica está ligada aos conflitos
entre saberes advindos de mundos diferentes – o mundo das experiên-
cias vividas pelos estudantes ingressantes não é constituído pelos mes-
mos comportamentos e valores que compõem a cultura acadêmica. Isso
em razão de as histórias de letramentos dos estudantes se constituirem
parte de uma “cultura subjetiva” (BAKHTIN, 2010), construída no
âmbito do

mundo da vida (este é o único mundo em que cada um de nós


cria, conhece, contempla vive e morre) – o mundo no qual se
objetiva o ato da atividade de cada um e o mundo em que tal ato
realmente, irrepetivelmente, ocorre, tem lugar. O ato da ativida-
de de cada um, da experiência que cada um vive [...] Somente o
180
Tradução nossa de: “Academia has made me feel like a puppet on strings, like an
Alien from another planet [...].” (ROACH, 1990, p. 5 APUD IVANIC, 1998, p. 8).

929
evento singular do existir no seu efetuar-se pode constituir esta
unidade única (BAKHTIN, 2010, p. 43).

O mundo da vida é o mundo em que o “ato”, no sentido bakh-


tiniano, realmente se desenvolve, é um momento unitário e singular
concretamente vivido: é um mundo visível, audível, tangível, pensável,
inteiramente permeado pelos tons emotivos-volitivos da validade de va-
lores assumidos como tais. Cada estudante tem um centro de valores e
de vivências que parece entrar em choque nos momentos introdutórios
na universidade, esse momento conflituoso está ligado às formas de
uso da língua(gem) vinculadas ao discurso acadêmico, tal qual demons-
tram Lea e Street (2014), Bezerra (2015), Fuza, Fiad e Gomes (2015),
Fischer (2008), para citar alguns.
Pode-se afirmar que os autores desses estudos são unânimes em
afirmar que, ao investigarmos as práticas letradas em que os estudantes
ingressantes na universidade estão envolvidos, “em vez de destacar os
déficits dos alunos, a abordagem do modelo de letramentos acadêmicos
coloca em primeiro plano a variedade e a especificidade das práticas ins-
titucionais e a luta dos estudantes para que essas práticas façam sentido”
(LEA, STREET, 2014, p. 491).
Tais colocações foram fundamentais para o desenvolvimento deste es-
tudo, que pretendeu, como já exposto, conhecer práticas leitoras de estu-
dantes que há pouco tempo ingressaram na cultura universitária, no sentido
de entender os “lugares” que gêneros escritos estão inscritos em suas vidas.
Este artigo foi organizado em três partes. A primeira sessão está
centrada em questões de ordem metodológica. Em seguida, focaliza-
remos as experiências leitoras na vida cotidiana dos estudantes e, pos-
teriormente, trataremos das maneiras como as experiências leitoras no
âmbito universitário são declaradas/evidenciadas por eles, a seguir.

Caminhos metodológicos
Os caminhos metodológicos percorridos para a realização desta
pesquisa, de abordagem qualitativa e do tipo estudo de caso (NUNAN,

930
1995), envolveu a participação de estudantes ingressantes, entre os anos
de 2020, 2021 e 2022, no curso de Ciências Sociais – UFNT, locali-
zado na cidade de Tocantinópolis, estado de Tocantins, região norte
brasileira conhecida como Bico do Papagaio (parte da Amazônia Legal),
circunvizinha ao estado de Maranhão e Pará.
Este estudo, apreciado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Universidade Federal do Tocantins181, contou com a participação de
uma aluna bolsista PIBIC-CNPQ, por meio do desenvolvimento
do projeto intitulado: “Percepções leitoras de alunos ingressantes na
Universidade Federal do Norte do Tocantins”182. A partir da coleta de
dados jundo à Secretaria de Cursos e Secretaria Acadêmica da universi-
dade foi possível acessar documentos sobre o grupo de estudantes refe-
rentes, por exemplo, à matrícula, ao local de origem e moradia, forma
de entrada à universidade e outras informações pertinentes ao conheci-
mento do grupo.
Os dados da pesquisa foram gerados com uso de instrumentos
como diário de campo e questionário de pesquisa183. Vale destacar que
o desenvolvimento da pesquisa ocorreu entre o período pandêmico
(Covid-19) e o de retorno gradual ao modo presencial de aulas e, em
decorrência disso, muitos dos alunos participantes iniciaram suas vidas
acadêmicas durante esse período, marcado por formas de interação de
modo remoto, o que, por vezes, aumentou os distanciamentos entre
calouros, veteranos e docentes e dificultou o diálogo face a face com
os estudantes, por exemplo, no momento de apresentação da pesquisa.
Nessas condições, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE) foi enviado, por e-mail, aos estudantes e o questionário pode
ser preenchido on-line (via Google Forms) ou por meio de cópia im-
pressa, conforme as possibilidades de interação com eles no momento

181
CAE – 49235221.0.0000.5519.
182
Estudo realizado, entre 2021.1-2022.2, por Larissa R. F. da Costa, bolsista PIBI-
C-CNPQ e aluna do curso de Ciências Sociais/UFNT.
183
O questionário de pesquisa elaborado para este estudo teve como base o questio-
nário proposto por Vóvio (2007).

931
entre a oferta de aulas remotas e o retorno gradual às aulas presenciais
na universidade. A partir dos dados gerados, foi possível visualizar al-
gumas das formas de suas participações em atividades letradas, a seguir.

Experiências leitoras nas vidas dos graduandos


Para compreendermos os modos como a pessoa ou grupo se engaja
no ensino formal é necessário compreender partes de sua história de
vida (BARTON ET AL., 2007), em razão de a participação em even-
tos letrados (ligados a instituições como a família, por exemplo) trazer
implicações para o momento de construção identitária do estudante no
ambiente acadêmico. Ou seja, as vivências construídas no lar/família
e na comunidade local podem interferir no preparo do estudante para
o ingresso na cultura acadêmica, o que nos leva a crer que os sentidos
atribuídos à leitura/escrita são regulados pelos contextos sociais (GEE,
1999), embora tais vivências não representem fronteiras sólidas para o
“sucesso/fracasso” do estudante.
É consenso, especialmente dentre os docentes, que os estudantes
adentram os espaços acadêmicos trazendo consigo forma(s) de utilizar a
língua(gem) e experiências plurais relacionadas aos usos de textos escri-
tos. Assim como é notório o fato de os docentes terem expectativas rela-
cionadas ao “como deve agir o estudante no que diz respeito às práticas
acadêmicas” (BEZERRA, 2015, p. 62), estritamente ligadas à leitura e
à escrita, porém, por vezes, pouco é considerado o fato de os estudantes
se constituírem um grupo heterogêneo, ainda que eles tenham nascido,
concluído o ensino básico e adentrado à universidade na mesma mi-
crorregião geográfica, como é o caso dos estudantes participantes deste
estudo.
Diversos indícios evidenciam marcas de homogeneidade entre os
estudantes ingressantes, denotando certa “unidade” ao grupo - majori-
tariamente constituído por mulheres jovens, estudantes sem filhos, estu-
dantes solteiros, afrodescendentes (pardos), tocantinenses e maranhen-
ses que tiveram seus processos de escolarização (incluindo pré-escola)
em escolas públicas, localizadas na região circunvizinha à universidade

932
na qual ingressaram - região geográfica muito próxima ao local onde
nasceram, cresceram e experienciaram dimensões das “culturas do escri-
to”184 (GALVÃO, 2010).
De fato, os modos de ser no lugar de origem ou de residência, cozi-
nhar, falar, assim como o comportamento perante um texto escrito são
atividades vinculadas a maneiras culturalmente construídas, por meio
de práticas sociais naturalizadas numa comunidade, onde está posto o
que Bakhtin (2010) denomina como “cultura objetiva” – constituída
por elementos objetivamente válidos, imersos no domínio da cultura
a qual certos objetos pertencem - porém, é algo que está fora da expe-
riência subjetivamente vivida. A experiência vivida pode ser concebida
como parte do mundo da vida, algo construído no interior dos objetos
de uma sociedade já estruturada/institucionalizada.
Aparentemente em consonância a tal posicionamento, Jorge Larossa
Bondía (2002) traz a noção de experiência como algo intrinsecamente
ligado à linguagem, ao uso subjetivo das palavras. A experiência estaria
relacionada aos sentidos subjetivos atribuídos “ao que nos acontece”,
“ao que nos toca”. Fora do interior subjetivo do indivíduo e de sua pa-
lavra não há lugar para a experiência. O “saber da experiência”, segundo
o autor, é entendido como algo individual, subjetivo, particular que não
está fora de nós, e sim toma parte no nosso conjunto de valores, posi-
cionamentos, formas de estar no mundo, nas práticas ligadas às ativida-
des que tomamos parte. O saber da experiência se dá na relação entre o
conhecimento (socialmente validado) e as atividades vivenciadas.
Assim, podemos conceber que as histórias de letramentos são cons-
truídas com base nas experiências individuais com textos escritos, aces-
sados em distintos eventos letrados e “vias de entrada” às culturas do
escrito, tal qual informa Galvão (2010): a escola, a igreja, a família, a
biblioteca, o trabalho, a feira, o teatro, o cinema, manifestações cultu-
rais etc.

184
Compreendemos que a cultura escrita é o “lugar – simbólico e material – que
o escrito ocupa em/para determinado grupo social, comunidade ou sociedade”
(GALVÃO, 2010, p. 218).

933
No caso dos estudantes, eles informam que o lugar da cidade que
mais frequentam é “casa de familiares”. Para os estudantes, a instituição
familiar se constitui uma dimensão trazida por meio das memórias que
eles têm sobre as práticas leitoras de seus pais, por exemplo. Quando
crianças, os estudantes declaram ver seus pais lendo jornal, panfleto e,
principalmente, ensinando ou acompanhando crianças em tarefas esco-
lares. Nota-se, tal qual afirma Galvão (2010), a figura da família como
importante via de acesso a textos escritos.
Ao lado da instituição familiar, a escola é tida como a principal agên-
cia de letramento de nossa sociedade (KLEIMAN, 1995), relevante via
de entrada e circulação de materiais de leitura (GALVÃO, 2010) e isto
aparece implícito nas palavras escritas por um dos estudantes do grupo,
ao responder a seguinte pergunta do questionário de pesquisa: “você
lembra de autores da literatura que considera bons ou importantes?”:
Resposta escrita pela estudante de graduação no questionário de
pesquisa:

Maurício de Sousa [...] considero que seja a forma mais divertida de introduzir
as crianças a gostar de leitura, me lembro de ler na infância. Monteiro Lobato,
com as histórias do Sítio do pica-pau amarelo. Leituras, no início da construção
da personalidade, são importantes porque acabam sendo influentes na vida das
crianças e perduram até a vida adulta.

A escrita da estudante evidencia algumas de suas práticas leitoras na


infância (“me lembro de ler na infância”). Ambos os autores evidencia-
dos são consagrados por agentes e agências sociais, tal qual os professo-
res da escola. Embora não tenha ficado claro em qual das instituições
(escola ou família) o evento de letramento ocorreu, ao lembrar de ler na
infância, é possível notar marcas valorativas da estudante em relação: à
importância que ela enxerga quanto ao tipo de leitura introdutória na
infância; à escolha de autores; à relevância de introduzir as crianças à
leitura por meio de certos gêneros escritos literários e quanto à influ-
ência de práticas leitoras desenvolvidas na infância nas demais fases da
vida (as leituras “acabam sendo influentes na vida [...] e perduram até
a vida adulta”).

934
Uma das maneiras de a leitura na infância “perdurar” na vida adulta
diz respeito ao gosto da pessoa pela leitura. Ainda que a relevância da
leitura para as vidas das pessoas seja algo inquestionável nas afirmações
dos estudantes (predomina a ideia de que a leitura é essencial para o
desenvolvimento da pessoa), a expressão “gostar mais ou menos de ler”
aparece na mesma proporção que “gosto muito de ler”, indicando que
o gosto pela leitura é algo individualmente construído no mundo sub-
jetivo de cada um, a partir de textos escritos socialmente circulantes na
sociedade, num momento sócio-histórico específico, e está fortemen-
te relacionado à disponibilidade de materiais escritos e às experiências
construídas a partir do acesso a certos gêneros escritos.
Sem dúvida, a escola e seus agentes têm papel central na constru-
ção das experiências leitoras dos estudantes. A figura do educador da
escola/universidade aparece como o maior influenciador pela formação
do gosto pela leitura e das indicações de leitura desses estudantes. Os
professores e colegas de escola/faculdade são citados como as pessoas
que mais costumam conversar sobre o que eles leem. Por outro lado,
dentre as declarações, é pouco evidenciado os modos de participação da
família nas atividades leitoras desses estudantes.
Outras vias de acesso a textos escritos são apontadas como partes
das experiências leitoras dos estudantes, tais como a igreja (por meio da
participação em cultos religiosos), a visita à casa de amigos, participação
no comércio local (lojas e academia) e o contato com o objeto livro. A
leitura de livro figura dentre as atividades que os estudantes declaram
exercer no tempo livre. Na vida desse grupo de alunos, a disponibilida-
de de livros está predominantemente ligada ao espaço acadêmico – bi-
blioteca escolar e biblioteca universitária – e à internet, principalmente
por meio de downloads de livros digitais ou digitalizados.
Os estudantes citaram diversos autores e obras que conhecem e/
ou já leram. Os títulos de livros citados voltam-se majoritariamente à
literatura ficcional estrangeira, títulos escritos por autores como George
Orwell, Jane Austen e Agatha Christie figuram dentre as indicações.
Dentre os autores conhecidos por eles, os estudantes citaram diversos

935
autores da literatura brasileira, com predomínio de Machado de Assis.
Além de autores como Raquel de Queiroz, Eça de Queiroz e Clarice
Lispector.
Ainda que o ambiente urbano onde muitos deles vivem não favore-
ça a formação de leitores de livros, por não haver biblioteca (ou sala de
leitura) municipal pública, e a atual condição financeira dos estudantes
limite sua posse de livros (dado que a renda familiar predominante no
grupo é de um a menos de dois salários mínimos mensais), a internet
torna-se uma importante via de acesso a livros e outros materiais escri-
tos, uma maneira estratégica de “quebrar” fronteiras (físicas e finan-
ceiras, por exemplo) que podem limitar a participação dos estudantes
nos mundos do escrito. Via internet, os estudantes afirmam (além de
fazer download de filmes e livros) ler e-mails, ler no Twitter, Instagram,
Kindle e em sites onde circulam, predominantemente, gêneros escritos
jornalísticos – G1, Uol notícias e BBC.
Interessante notar que não foi citado nenhuma manifestação cul-
tural popular como um espaço para leitura de textos escritos, embora
diversas festas populares ocorram na cidade de Tocantinópolis e locais
circunvizinhos, onde os alunos vivem. Além disso, observa-se que não
foi mencionado a participação deles em espaços culturais, como cine-
ma, museu, teatro e clubes, o que nos leva a crer que tais espaços (ainda
que existissem fisicamente no local, como é o caso de um clube recre-
ativo privado - AABB) não aparecem, dentre os dados gerados, como
ausências significativas às suas experiências leitoras.
Por outro lado, percebe-se a presença dos ambientes acadêmicos
locais (escola e universidade) como agências propulsoras tanto da parti-
cipação dos estudantes em eventos diversos quanto da formação de lei-
tores. Embora tais agências não sejam as únicas envolvidas nos proces-
sos formativos do leitor, elas são altamente significativas na construção
da identidade leitora do estudante e, por conseguinte, na aproximação
do estudante a modos de argumentar e se comportar frente aos gêneros
escritos que permeiam os espaços nos quais as atividades estão centradas
no tipo de discurso acadêmico.

936
Práticas leitoras da/na universidade
As práticas leitoras “da” universidade (ou seja, aquelas socialmente
dominantes e legitimadas) são distintas de outras práticas de leituras
familiares aos estudantes, as que os estudantes carregam consigo à uni-
versidade, portanto, são práticas leitoras presentes “na” instituição de
ensino, ainda que não sejam reconhecidas nesse ambiente. (Elas são
práticas pertencentes ao que Street (1984) denominou como “letra-
mentos marginalizados”).
Tornar-se parte do mundo acadêmico é adentrar uma cultura di-
ferente, constituída por discursos acadêmicos e gêneros discursivos
acadêmicos, desconhecidos para os estudantes ingressantes no mundo
universitário. A leitura desses gêneros figura dentre os elementos da
cultura acadêmica e, portanto, o ato de ler pode se constituir ativida-
des de descobertas, mas também uma fronteira a ser atravessada, o que
significa que o estudante terá de ampliar suas experiências com textos
escritos, criar estratégias de estudo, dentre outras inúmeras demandas
que aparecem com caráter de urgência no início do percurso acadêmico
na universidade.
Esse cenário torna-se mais obscuro quando o estudante pertence a
um grupo minoritário. No caso de estudantes pertencentes às minorias
linguísticas (quer seja alunos imigrantes, como mostram Lea e Street
(2014), ou, no caso de alunos usuários de outra variante linguística que
não a “padrão/culta” e que, por vezes, se sentem distantes de diversas
dimensões das culturas do escrito), tomar parte nas atividades acadêmi-
cas exigidas para o estudante universitário passa a ser algo ainda mais
complexo.
Como inicialmente mencionado, o ingresso na universidade está
ligado a um processo identitário (KLEIMAN, 2010; IVANIC, 1998),
“o estudante de graduação precisa construir sua persona social no am-
biente acadêmico” (BEZERRA, 2015, p. 63). Mas, por vezes, esse pro-
cesso identitário com o mundo universitário, centrado na linguagem
acadêmica, é atravessado por realidades sociais, políticas e econômicas
que não favorecem. Para os estudantes provenientes de famílias sem ou

937
com pouca escolaridade (e com parcos recursos financeiros), o processo
identitário com o mundo acadêmico não é algo tranquilo – trata-se de
um processo de “aculturação” (KLEIMAN, 2010). O que está em jogo
é a negociação entre práticas ligadas às experiências do mundo da vida
e as práticas de linguagens “da” universidade, parte de um universo ob-
jetivo e estruturado.
O grupo de estudantes participantes deste estudo ingressou no
curso de Ciências Sociais-UFNT, majoritariamente, via SISU – ampla
concorrência. O acesso ao mundo universitário, para muitos deles, se
deu logo na primeira tentativa de entrada. Para parte significativa do
grupo, o ingresso na universidade representou um marco para a famí-
lia. Em diversos casos, o ingresso na universidade significou a entrada
da primeira pessoa da família a cursar ensino superior - oportunidade
que a maioria de seus pais/responsáveis não teve, pois muitos deles não
concluíram a segunda etapa do ensino fundamental.
No ambiente universitário, os estudantes se depararam com dificul-
dades diversas. A maior parte delas está ligada aos usos da “linguagem
acadêmica”, tal qual eles afirmam por escrito no questionário de pesqui-
sa. Segundo eles, esse tipo de linguagem “é um fator de dificuldade”. A
leitura de textos “da” universidade é um fator que motiva a afirmação
de que eles se depararam com “textos mais complexos”, em relação aos
gêneros escritos que já estão familiarizados.
Interessante notar a comparação, entre o momento anterior ao in-
gresso na universidade e o momento atual, evidenciada na escrita de
um estudante: “anteriormente, a falta da leitura contínua, o hábito de
ler estava esquecido. E, atualmente, falta tempo para dedicar à leitu-
ra, devido ao trabalho. Ler através do notebook ou celular atrapalha
um pouco, devido às restrições da visão”. Nas palavras dessa estudante
fica claro a pouca experiência leitora relacionada a certos gêneros escri-
tos, num momento de ingresso à universidade, e alguns dos percalços
enfrentados para o desenvolvimento da leitura de textos acadêmicos,
especialmente no momento pandêmico. (As leituras requeridas pelos
docentes no período pandêmico foram predominantemente realizadas

938
por meio de textos digitalizados, dado o acesso restrito à biblioteca nes-
se período).
Adentrar o ambiente universitário possibilita ampliação das expe-
riências leitoras do estudante, o que pode repercutir em mudanças de
comportamento/nas práticas discursivas, ainda que as condições não
sejam ideais – parte significativa dos estudantes afirma desenvolver suas
leituras (de livros ou textos digitalizados) com o uso de celular e alguns
conciliam trabalho remunerado e estudo na faculdade no período no-
turno, dentre outras situações não ideiais.
A palavra “tempo” é recorrentemente mencionada pelos estudantes,
no que tange às práticas de leitura que desempenham com fins acadê-
micos. Diversos estudantes informam ter tempo escasso para realização
de leituras de textos escritos demandados na universidade. Um ponto
relacionado à tal colocação diz respeito às horas dedicadas aos estudos
acadêmicos (em casa ou outros espaços) declaradas pela maioria dos es-
tudantes participantes da pesquisa - duas horas diárias, o que pode (ou
não) causar prejuízo ao bom desempenho acadêmico do aluno. Poucos
desses estudantes declaram estudar quatro ou mais horas diárias. Porém,
o tempo cronológico dedicado aos estudos (elemento que traz possibi-
lidade de construção reflexiva sobre as leituras realizadas) faz parte do
processo de imersão do estudante na cultura universitária, o que signi-
fica afirmar que a dedicação aos estudos traz implicações diretas à cons-
trução de experiências (incluindo as leitoras) e da identidade acadêmica.
Concordamos com Bezerra (2015, p. 65-66) quanto à importância do

envolvimento contínuo e crescente do aluno com a leitura e a


produção dos gêneros mais valorizados na universidade, ou seja,
a sua imersão nas práticas e eventos de letramento que cercam
o discurso acadêmico, será um fator decisivo para a construção
da sua identidade como participante legítimo e legitimado do
ambiente acadêmico.

A participação do aluno em situações letradas como, por exemplo,


o desenvolvimento da prática de leitura de gêneros escritos acadêmicos,

939
individualmente ou em pequenos grupos, representa um dos meios que
permitirá ao estudante universitário amenizar fragilidades encontradas
nos anos iniciais nesse ambiente.
Ao observamos o relato de um dos estudantes: “a base da escrita é
a leitura, então, minha maior dificuldade foi no início, quando vim do
ensino médio para a faculdade, porque além de não ter muita base de
leitura, ainda tinham palavras que eu não conhecia [...]”, percebemos
algumas das fragilidades que muitos dos graduandos se deparam. A re-
lação entre as experiências leitoras/escritoras anteriores à universidade é
rememorada no momento de construção de novas experiências leitoras/
escritora. A leitura e a escrita são postas, pela estudante, como ativida-
des interrelacionadas (“a base da escrita é a leitura”) e ligadas a dificulda-
des com a linguagem – o uso de um novo vocabulário, provavelmente
voltado à área específica do conhecimento.
As experiências dos estudantes na universidade voltam-se a uma
variedade de gêneros acadêmicos imbricados no discurso acadêmico –
autoritário e organizado por diversas regras institucionalizadas. Uma
das regras lembradas e apontadas pelos estudantes diz respeito às nor-
mas para trabalho acadêmico propostas pela Associação Brasileira de
Normas Técnicas (ABNT). Tais normas são apontadas como elemen-
to impeditivo da escrita acadêmica, mas não são tidas como algo que
poderia dificultar a leitura de gêneros escritos acadêmicos, quanto à
compreensão das referenciações e das vozes presentes no texto escrito,
por exemplo.
Quanto à familiaridade/mobilização de gêneros discursivos acadê-
micos (por meio da leitura ou da produção escrita), o gênero mais infor-
mado pelos estudantes é a resenha crítica, seguido do diário de aula, o
diário de leitura e o artigo científico. O ensaio, o trabalho de conclusão
de curso (TCC) e o resumo expandido aparecem como gêneros menos
familiares a eles, portanto, gêneros menos lidos e/ou produzidos por
esse grupo de estudantes, no período inicial da graduação.
A indicação de gêneros discursivos acadêmicos, feita por estudantes
em fase inicial na graduação, traz algumas “pistas” sobre como tem sido,

940
até o momento, seus percursos de experiências leitoras na universidade.
Por vezes, o reconhecimento e/ou a diferenciação de gêneros discursivos
acadêmicos (e a própria noção do que vem a ser gênero textual/discursi-
vo) pode parecer estranho a eles, por ser algo inteiramente novo. A clara
proposição de atividades didáticas “a partir” de um determinado gênero
poderia favorecer e intensificar as experiências dos estudantes, tornan-
do os gêneros acadêmicos lidos e/ou produzidos algo mais familiar aos
graduandos.

Palavras Finais
É preciso que as experiências acadêmicas dos estudantes sejam
permeadas por sentidos – sentidos para ler, para escrever etc. As
experiências leitoras tornam-se carregadas de significados quando o
estudante compreende as razões pelas quais ele foi convidado a ler. Por
outro lado, a construção de experiências pertence ao mundo subjetivo
do estudante, por isto, ela não é algo que acontece externamente, como
assistir uma aula ou ler um texto descompromissadamente.
A experiência é algo que “nos acontece” internamente, razão pela
qual duas pessoas, numa mesma situação, não constroem a mesma ex-
periência (BONDÍA, 2002). Os modos como cada estudante constrói
sentido(s), em relação às suas práticas, são particulares/individuais. Para
uns estudantes:

Depois de assistir a uma aula ou a uma conferência, depois de


ter lido um livro ou uma informação, depois de ter feito uma
viagem ou de ter visitado uma escola, podemos dizer que sabe-
mos coisas que antes não sabíamos, que temos mais informa-
ção sobre alguma coisa; mas, ao mesmo tempo, podemos dizer
também que nada nos aconteceu, que nada nos tocou, que com
tudo o que aprendemos nada nos sucedeu ou nos aconteceu.
(BONDÍA, 2002, p. 22).

Dentre as atividades acadêmicas, muitas coisas “se passam”, e,


por vezes, muito pouco ou quase nada “nos acontece”, devido a uma

941
multiplicidade de fatores: falta de tempo, excesso de informação, interes-
ses divergentes, dificuldades com a linguagem acadêmica ainda não supe-
radas, dentre outras razões que o estudante tem de aprender a “driblar”.
As maneiras de estudos fora da sala de aula, expostas pelos estudan-
tes participantes da pesquisa, revelam que a prática mais utilizada por
eles é a de “assistir vídeos on-line sobre o assunto estudado”. A leitura
de texto acadêmico indicado pelo docente aparece como segunda tática
mais utilizada por eles, embora eles tenham indicado que também leem
o texto e escrevem o que entenderam. Ou, “leem o texto duas vezes ou
mais”. E, num menor número de indicação aparece a prática: “leem o
texto uma vez e grifam trechos”.
Apesar de os estudantes terem declarado desenvolver tais práticas
de estudo, as leituras propostas no âmbito acadêmico nem sempre fa-
zem sentido ao estudante e, por tal razão, as práticas de leituras que eles
participam não se configuram experiências leitoras significativas para
eles. Diferentemente das experiências leitoras voltadas aos gêneros lite-
rários ficcionais indicados por eles, as experiências leitoras de gêneros
escritos acadêmicos podem ser vistas como algo não prazeroso, enfado-
nho, repleto por palavras desconhecidas pertencentes ao mundo objeti-
vo no qual os saberes de uma cultura dominante estão postos. Isso pode
levar o estudante a entender que tais práticas de leitura representam
um amontoado de informações aparentemente desconexas entre si, por
ocuparem espaço em distintos campos disciplinares.
Quando há pouco (ou ausência de) sentido relacionado às ativida-
des acadêmicas, o estudante sente dificuldades de se inserir no mun-
do acadêmico, de ampliar suas experiências leitoras e consolidar sua
identidade acadêmica. Esse pode ser o caso de alguns dos estudantes
que participaram desta pesquisa, ao revelarem incertezas quanto à per-
manência no curso de graduação e/ou a probabilidade de imersão na
pós-graduação num momento futuro. Isso denota que, para alguns, o
processo identitário acadêmico na universidade está, nesse momento
pós-pandêmico, fragilizado e demanda atenção por parte dos agentes
envolvidos.

942
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944
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

A CONSTRUÇÃO DE MURAIS DIGITAIS EM


PRÁTICAS DE LEITURA DE “QUARTO DE
DESPEJO”: UMA ANÁLISE NA PERSPECTIVA
INTERCULTURAL E DECOLONIAL À LUZ DOS
MULTILETRAMENTOS

Naiara Chaves de Carvalho - CERB185


Layse Oliveira Ferreira Marques – IFBA186

RESUMO: As mudanças na sociedade contemporânea, especialmente


em relação aos meios de comunicação, apontam para a necessidade de
identificarmos novos caminhos para o ensino, sobretudo de línguas, que se
fundamentem em práticas sociais e historicamente situadas, com viés crítico e
reflexivo, acerca do que se estuda. Nesse sentido, este trabalho discute como a
construção de murais digitais a partir da leitura da obra “Quarto de despejo:
diário de uma favelada”, de Carolina Maria de Jesus, favoreceu práticas sociais
de linguagem que permitiram aos estudantes assumir uma postura ativa e
crítica nas aulas de Língua Portuguesa, durante o ensino remoto no contexto
pandêmico. Com base no caráter dialógico da linguagem (BAKHTIN, 2003
[1952]), em uma pesquisa-ação, foram desenvolvidas atividades direcionadas à
produção de um mural digital no padlet, a partir do estudo da obra caroliniana,
em uma perspectiva decolonial e intercultural, com estudantes do 2º ano do
ensino médio, do Colégio Estadual Rui Barbosa, localizado na cidade de
Boninal, interior da Bahia. Na análise, são considerados os estudos sobre
multiletramentos (GRUPO NOVA LONDRES 2021 [1996]; AZEVEDO,
2021), as discussões sobre colonialidade e decolonialidade (WALSH,
2009,2013; MALDONADO-TORRES, 2020) e interculturalidade (FREIRE,
1996; STREET, 2007; CANCLINI, 2009; CANDAU, 2013, 2020) para
apresentamos considerações sobre a potencialidade da utilização do padlet

185
Mestranda em Estudos Linguísticos no Programa de Pós-graduação em Estudos
Linguísticos, na Universidade Estadual de Feira de Santana. Professora da rede
estadual da Bahia no Colégio Estadual Rui Barbosa.
carvalho.nah@gmail.com
186
Doutoranda em Estudos Linguísticos no Programa de Pós-graduação em Estu-
dos Linguísticos, na Universidade Estadual de Feira de Santana. Professora do
Instituto Federal da Bahia de Ciência e Tecnologia.
laysemarquesprof@gmail.com

945
como ferramenta pedagógica (JUNIOR; MONTEIRO, 2021) para o ensino
de Línguas. Os dados alcançados apontam que o uso da ferramenta padlet,
aliado ao trabalho de leitura numa perspectiva decolonial e intercultural crítica,
proporcionou aos estudantes uma prática transformadora, possibilitando-
os assumir posicionamentos, negociar pontos de vista e realizar interações e
diálogos com a referida obra.
PALAVRAS-CHAVE: Multiletramentos. Perspectiva decolonial e intercultu-
ral. Quarto de despejo.

ABSTRACT: The contemporary society changes, especially about the media,


point to the need to identify new ways of teaching, especially languages,
that are based on social and historically situated practices, with a critical and
reflective bias, about what is studied. In this sense, this work discusses how the
construction of digital murals from the reading of the book “Quarto de despejo:
diário de uma favelada” (“Trash Room”), by Carolina Maria de Jesus, benefited
social practices of language that allowed students to assume an active and
critical attitude in Portuguese language classes, during remote teaching in the
pandemic context. Based on the dialogical character of language (BAKHTIN,
2003 [1952]), in an action research, the activities developed aimed at the
production of a digital mural on the padlet, from the study of Carolinian
work, in a decolonial and intercultural perspective, with students from the
2nd year of high school, from Rui Barbosa State School, located in the city
of Boninal, in the countryside of Bahia state. The analysis considers studies
on multiliteracies (GRUPO NOVA LONDRES 2021 [1996]; AZEVEDO,
2021), discussions on coloniality and decoloniality (WALSH, 2009, 2013;
MALDONADO-TORRES, 2020) and interculturality (FREIRE, 1996;
STREET , 2007; CANCLINI, 2009; CANDAU, 2013, 2020) to present
considerations about the potential of using the padlet as a pedagogical tool
(JUNIOR; MONTEIRO, 2021) for language teaching. As a result, this
investigation reveals that the use of the padlet tool, combined with the work
of reading from a critical decolonial and intercultural perspective, provided
students with a transformative practice, allowing them to assume positions,
negotiate points of view and carry out interactions and dialogues with the
book.
KEYWORDS: Multiliteracies. Decolonial and intercultural perspective.
Trash Room.

946
Considerações Iniciais
O contexto educacional, sobretudo brasileiro, demanda reinven-
ção, considerando-se os processos culturais que o circunda. A conscien-
tização do rompimento de caráter homogeneizador, monocultural da
educação escolar e, ainda, da necessidade de construção de práticas edu-
cativas que contemplem a diferença, o multi e interculturalismo tem ga-
nhado adeptos. Entretanto, constitui-se desafiadora, uma vez que essas
concepções não são advindas das Universidades e do contexto acadêmi-
co, mas próprias de lutas dos grupos sociais discriminados e excluídos,
dos movimentos sociais, especialmente, os referidos às questões étnicas,
que constituem o espaço de produção multicultural (CANDAU, 2013).
Assim, espera-se que a sala de aula de Línguas seja também um es-
paço de oportunidades para construção de mecanismos sobre o enten-
dimento da realidade, a partir do re/conhecimento da própria cultura e
da cultura do outro; do respeito às diferenças de ordens diversas, dentre
elas as linguísticas; da tolerância; da participação crítica na sociedade;
da promoção de uma comunicação responsável e culturalmente sensí-
vel entre as pessoas (FREIRE, 1996; BORTONI-RICARDO, 2004;
MENDES, 2011). Soma-se a isso que as questões culturais, de gênero,
de raça, de classe, de crença e tantas outras, não podem ser ignoradas,
sob o risco de que a escola cada vez mais se distancie dos universos sim-
bólicos, das mentalidades e das inquietudes de crianças e jovens de hoje
(CANDAU, 2013).
Diante desse cenário, esta pesquisa adota como objeto de estudo a
obra “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, de Carolina Maria de
Jesus. Ademais, prevê como objetivo geral compreender como a cons-
trução de murais digitais favoreceu práticas sociais de linguagem que
permitiram aos estudantes assumir uma postura ativa e crítica nas aulas
de Língua Portuguesa, durante o ensino remoto no contexto pandêmi-
co, e, para tanto, almeja-se, especificamente, em uma perspectiva de-
colonial e intercultural apresentar considerações sobre a potencialidade
da utilização do padlet como ferramenta pedagógica para o ensino de
Línguas.

947
Com relação às naturezas das fontes para abordagem e tratamento
do referido objeto de estudo, optou-se em uma pesquisa-ação. O corpus
desta pesquisa foi obtido por meio de atividades direcionadas à produ-
ção de um mural digital no padlet, a partir do estudo da obra carolinia-
na, com estudantes do 2º ano do ensino médio, do Colégio Estadual
Rui Barbosa, localizado na cidade de Boninal, interior da Bahia. Para o
trabalho com a obra literária e a construção dos murais digitais, adota-
mos a concepção dialógica de linguagem com base na teoria bakhtinia-
na (BAKHTIN, 2003 [1952]). Na análise, são considerados os estudos
sobre multiletramentos (GRUPO NOVA LONDRES 2021 [1996];
AZEVEDO, 2021), as discussões sobre colonialidade e decolonialida-
de (WALSH, 2009, 2013; MALDONADO-TORRES, 2020) e inter-
culturalidade (FREIRE, 1996; STREET, 2007; CANCLINI, 2009;
CANDAU, 2013,2020).

2. Tecendo relações entre as perspectivas intercultural e


decolonial à luz dos multiletramentos
Com a difusão das Tecnologias Digitais da Informação e
Comunicação (TDICs), as práticas do capitalismo global construídas
discursivamente têm impactado a vida pública, pessoal e profissional.
Atentos a esse fato, o Grupo de Nova Londres (GNL) publicou no ano
de 1996 o manifesto The Pedagogy of Multiliteracies: Designing Social
Futures, ressaltando as principais mudanças que as sociedades têm vi-
venciado nesses três campos da vida. Ao discutir tais mudanças, os au-
tores propuseram uma pedagogia na qual a multiplicidade de tecno-
logias de informação e comunicação e a crescente diversidade cultural
e linguística existente no mundo, especialmente em práticas escolares,
fossem fatores essenciais no ensino de línguas.
A Pedagogia dos Multiletramentos aponta para a necessidade de
um ensino que abarque diferentes práticas e saberes da contemporanei-
dade, considerando a inclusão da diversidade de linguagens, semioses e
mídias presentes nos textos contemporâneos. No Brasil, essa pedagogia
é reconhecida e disseminada, integrando diversos estudos. Nos espaços

948
acadêmicos, a discussão em torno da inserção de práticas de ensino
de línguas pautado nos multiletramentos é uma realidade há mais de
vinte anos, no entanto, com a homologação da Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2018) no Brasil, essa discussão chegou mais for-
temente nas escolas, e os multiletramentos têm sido considerados nos
currículos, motivando o trabalho com essa multiplicidade de linguagens,
semioses e mídias, além da diversidade cultural e linguística.
A proposta da Pedagogia dos Multiletramentos tem sido revisitada
por diversos pesquisadores que têm atualizado as discussões e pensando
os multiletramentos para outros contextos diferentes daqueles pensado
pelo Grupo de Nova Londres. Adotamos neste estudo as concepções
apresentadas por Azevedo (2021) a qual apresenta uma proposta de
multiletramentos em perspectiva decolonial, a fim de “sulear” as pes-
quisas em Linguística Aplicada.
Segundo Azevedo (2021, p. 76), com as reflexões produzidas pelos
integrantes do GNL, cresceu o interesse em dar visibilidade e presença a
temas e culturas que costumavam estar distantes da sala de aula. A auto-
ra enfatiza que os tipos de violência social (massacres de rua, lutas entre
gangues, silenciamento da voz de certos grupos sociais etc.) e os valores
das culturas minorizadas, entre as quais se encontra a cultura juvenil,
são temas que começaram a ter visibilidade nos espaços escolares. Para
a autora, “as visões de mundo e os valores axiológicos que constituem
tais culturas deixam de estar na “periferia” das práticas pedagógicas” e
passaram a assumir o “centro” das atenções, em um movimento de
diálogo.
Dar espaço às culturas juvenis é um meio para dar visibilidade a
um grupo social que, por vezes, pode ser calado pela opressão esco-
lar (AZEVEDO, 2021. p. 77). Nesse sentido, Azevedo (2021) desta-
ca ainda que, ao partir de um paradigma apoiado exclusivamente em
critérios técnicos e eurocentrados, estes limitam o papel constitutivo
dos grupos de estudantes na construção de saberes, o que impacta as
configurações identitárias e as relações sociais. Nessa discussão, a au-
tora apresenta seis critérios que podem orientar a prática da Pedagogia

949
dos Multiletramentos em perspectiva decolonial. Nestes critérios estão
incluídos:

1. ter nas necessidades dos estudantes, que têm a escola como


referência para as relações sociais, o ponto de partida do plane-
jamento de práticas de linguagem; 2. mapear as determinações
que impactam as relações sociais; 3. articular os mundos da vida
aos saberes construídos socialmente; 4. promover sensibilidades
distintas do mundo, construídas a partir do espaço (natural e
simbólico) habitado; 5. associar os modos de ler a realidade à
diversidade de recursos e instrumentos disponíveis para a pro-
dução discursiva; 6. diversificar as oportunidades de produção
cultural local, considerando os ambientes disponíveis dentro e
fora da escola (AZEVEDO, 2021, p. 83).

Segundo Azevedo (2021), esses critérios ajudam a compor ações


formativas que estejam abertas ao outro, à variedade de saberes e de
sensibilidades, aos valores locais, à diversidade de recursos discursivos e
tecnológicos disponíveis em sociedade. Para Azevedo (2021, p. 84), por
meio das relações sociais cada estudante pode produzir cultura e agir
como designer de aprendizagem, além de participar do jogo dialógico
da linguagem de maneira ativa, consciente e ética.
Nesse sentido, Walsh (2013, p. 19) chama a atenção para que as
pedagogias decoloniais possam ser compreendidas como metodologias
produzidas em contextos de luta, marginalização e resistência. A deco-
lonialidade, nessa perspectiva, ajuda a repensar a forma como as pessoas
levam as suas vidas a partir de uma postura crítica-reflexiva que busca
investigar os efeitos do colonialismo e uma tentativa de ruptura com es-
ses efeitos na construção de novos modelos que considerem os diversos
saberes, diversas vozes, identidades, maneiras de ser, e novas formas de
se constituir e organizar a sociedade.
Logo, em um contexto de ensino de Línguas é urgente romper com
as colonialidades que influenciam a prática docente. Daí a relevância de
se recorrer à pedagogia decolonial para que se consiga transgredir com
as práticas docentes, considerando que há muito para aprender com

950
aqueles outros que a modernidade tornou invisíveis (MALDONADO-
TORRES, 2009)
Nessa vertente, Canclini (2009) concebe a interculturalidade como
confrontação e entrelaçamento daquilo resultante das relações e trocas
dos grupos sociais. Outrossim, para Walsh (2001), a interculturalida-
de é um processo dinâmico e permanente da relação, comunicação e
aprendizagem entre culturas em condições de respeito, legitimidade
mútua, simetria e igualdade. Um intercâmbio que se constrói entre pes-
soas, conhecimentos, saberes e práticas culturalmente diferentes, bus-
cando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferença, seja de
desigualdade social, econômicas ou políticas, e as relações e os conflitos
de poder da sociedade não são mantidos ocultos e sim reconhecidos e
confrontados.
Por essa perspectiva, Walsh (2009) defende uma abordagem crítica
da interculturalidade, que se encontra enlaçada com uma pedagogia e
práxis orientadas ao questionamento, transformação, intervenção, ação
e criação de condições radicalmente distintas de sociedade, humanidade,
conhecimento e vida. A interculturalidade crítica está pautada não ape-
nas em lutar por transformações estruturais que envolvem questões de or-
dem política, social e cultural, mas “se preocupa também com a exclusão,
negação e subalternização ontológica e epistêmico-cognitiva dos grupos
e sujeitos racializados” (WALSH, 2009, p. 23), além de também se opor
criticamente às práticas que naturalizam relações assimétricas de domi-
nação, na medida em que não destacam as desigualdades e as diferenças.
A interculturalidade, pois, é vista não apenas como uma política
de fortalecimento dos saberes tradicionais, mas também como estraté-
gia de convivência com a diferença entre os povos, pautada pelos
princípios de respeito às diferenças, na perspectiva de construir um sa-
ber descolonizado que considere a heterogeneidade identitária entre as
pessoas (WALSH, 2009).
Dessa forma, ao traçar um diálogo com o pensamento de Freire
e Fanon sobre (des)colonização e (des)humanização, Walsh (2009,
p. 38) sugere o “re-existir e re-viver como processos de re-criação”,

951
propondo uma pedagogia de cruzamento que possibilita um “pensar
a partir de” e “pensar com”, ou seja, a partir da necessidade de assumir
com responsabilidade e compromisso uma ação dirigida à transforma-
ção, à criação e ao exercer projeto político, social, epistêmico e ético da
interculturalidade.
Almeida Filho (2010) destaca que o professor deve assumir uma
prática reflexiva contínua, não apenas para desenvolver-se profissional-
mente, mas também para contribuir na busca pela transformação em
alguma medida da realidade social na qual está inserido. Dessa forma,
assumir uma postura intercultural e decolonial exige a capacidade de
reconhecer, respeitar e valorizar a multiplicidade de perspectivas que os
alunos trazem com eles todos os dias para a sala de aula, considerando
que esses sujeitos fazem parte de outros espaços, para além do espaço
escolar.

3. A Construção de murais digitais em práticas de leitura de


“Quarto de despejo”
Ensinar e aprender línguas engloba culturas, experiências, trocas,
acontecimentos e múltiplas linguagens. Soma-se a isso as constantes
mudanças tecnológicas e sociais e as transformações nos processos de
comunicação e construção de significados que atravessam o contexto
escolar. Adota-se o processo de ensino, no ambiente escolar, enquanto
espaço de vivências compartilhadas em busca de significados, produ-
ção de conhecimento e experimentação na ação; e, subjacente a ele, o
processo de aprendizagem, que supõe a reconstrução do conhecimento
advindo da vida cotidiana do indivíduo, anterior e paralelo à escola,
atribuindo-lhe sentido, significado e intencionalidade (SACRISTÁN;
PÉREZ GÓMEZ, 1998).
Esse processo é dialógico a partir das subjetividades, identidades
e conhecimentos partilhados. Nesse sentido, este estudo discute como
a construção de murais digitais a partir da leitura da obra “Quarto de
despejo: diário de uma favelada”, de Carolina Maria de Jesus, favoreceu
práticas sociais de linguagem que permitiram aos estudantes assumirem

952
uma postura ativa e crítica nas aulas de Língua Portuguesa, durante o
ensino remoto no contexto pandêmico.
O referido livro é uma obra da escritora brasileira Carolina Maria
de Jesus, lançado em 1960. A escritora era uma mulher negra, catadora
de lixo, semianalfabeta que com seus escritos, revelou a visão de dentro
da favela, retratando o cotidiano da exclusão e seu impacto sobre os
sujeitos que ali vivem. Carolina traz em seu diário uma escrita realista
e sensível, marcada por relatos do que viu, viveu e sentiu nos anos em
que morou na comunidade do Canindé, em São Paulo. Temas como
fome, violência doméstica, pobreza, racismo e invisibilidade social são
discutidos nesta obra a partir das experiências vividas pela autora.
A obra caroliniana é marcada por uma série de denúncias das ma-
zelas sofridas pela população que habitava/habita as favelas brasileiras.
Já no título da obra é possível verificar esse caráter da escrita enquanto
espaço de resistência e de denúncia social. O nome “Quarto de despejo”
é uma metáfora criada por Carolina. Conforme Bastos e Lima (2020, p.
78), “despejo é o local onde lixos são jogados. No caso da favela, o lixo
se refere às pessoas, aos pobres, que não cabem na cidade e são deposi-
tados na favela, como lixos. Assim, lixos e favelados se confundem na
luta diária contra a fome”.
Segundo Bastos e Lima (2020), apesar de ter sua obra traduzida
para dezenas de países e ter se tornado um sucesso editorial, o lugar
reservado a Carolina Maria de Jesus é o do “outro”. Para os autores,
a ênfase no termo favelada parece indicar a necessidade de não a in-
cluir como parte do cânone literário. A obra caroliniana acaba por
esbarrar em fronteiras de uma classe letrada elitista, o que faz com
que a autora permaneça desconhecida por grande parte da população.
Lélia Gonzalez (2020), destaca que mulheres amefricanas e amerín-
dias sofrem um duplo apagamento pois carregam o duplo caráter de
sua condição biológica (racial e sexual), fazendo com que elas sejam
mais oprimidas e exploradas em um estado capitalista patriarcal-racis-
ta dependente. Para a autora, esse sistema transforma “diferenças em
desigualdades, a discuriminação que sofrem assume um caráter triplo,

953
dada a sua posição de classe: as mulheres ameríndias e amefricanas
são, na maioria, parte do imenso proletariado afro-latino-americano”
(GONZALEZ, 2020, p. 146).
Assim, “Quarto de Despejo” é uma obra que, não só denuncia as
opressões por Carolina vivenciadas, mas, sobretudo, em razão de sua
própria existência, contesta a falta de reconhecimento da mulher negra
e pobre enquanto escritora (CORONEL, 2014, p. 276). A partir dessas
ideias, pode-se inferir que Carolina acaba por sofrer um certo apagamen-
to dentro do contexto literário. Isso acontece porque muitas instituições
privilegiam o cânone, garantindo a manutenção de um olhar coloniza-
dor para o ensino de literatura. Embora os documentos187 que norteiam
a elaboração dos currículos das escolas brasileiras sinalizem a necessidade
de se contemplar uma literatura que seja reflexo da diversidade cultural,
fazer uso dessa literatura que por muitos é tida como “marginal e perifé-
rica”, ainda se configura um desafio na Educação Básica.
Nesse sentido, a fim de um trabalho pautado na/para descoloni-
zação de saberes, apresentamos neste artigo algumas reflexões a partir
do trabalho realizado com a leitura da obra “Quarto de despejo: diário
de uma favelada”. As atividades foram planejadas à luz da pedagogia
dos multiletramentos, sendo pautadas nos quatro fatores que integram
essa pedagogia: a prática situada, a instrução explícita, o enquadramen-
to crítico e a prática transformada. Esses fatores foram considerados
dentro de uma perspectiva revisitada da epistemologia da pluralidade
(AZEVEDO, 2021). Para privilegiar as culturas juvenis e suas relações
com os novos gêneros digitais, optamos por trabalhar com o gênero
mural digital, utilizando a ferramenta padlet. O padlet (https://padlet.
com) é uma plataforma disponível na internet na qual pode-se criar
novos murais ou participar de um já existente, a partir de blocos de
conteúdo em conjunto com texto, arquivos de áudio, imagens, vídeos
e outros conteúdos por meio de linkagem. Nesta proposta, os murais

187
Documentos oficiais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997, 1998)
e a Base Nacional Comum Curricular (2018) apontam para a necessidade de um
trabalho literário que seja reflexo da diversidade cultural.

954
foram construídos a partir das relações dialógicas estabelecidas na/com
a leitura da obra.
Os murais digitais foram produzidos por estudantes oriundos de
diferentes espaços do território boninalense. Boninal é um municí-
pio brasileiro localizado na Chapada Diamantina, no estado da Bahia.
Segundo o último censo188, sua população estimada é de 13.695 habi-
tantes, com uma quantidade significante rural, incluindo comunida-
des remanescentes quilombolas. O Colégio Estadual Rui Barbosa, local
onde a pesquisa foi desenvolvida, é o único colégio de Ensino Médio
situado na cidade. A instituição atende estudantes dos mais diversos
espaços do território e de diferentes classes sociais, além de receber estu-
dantes de comunidades rurais das cidades vizinhas.
As atividades foram desenvolvidas em uma turma da 2ª série do ensino
médio, com 38 estudantes. O público participante das atividades é majori-
tariamente rural e quilombola. Azevedo (2021) tematiza a Pedagogia dos
Multiletramentos atentando para a heterogeneidade do espaço habitado.
Para a autora, “observar o espaço também possibilita confirmar a ação de
homens, mulheres, crianças e jovens, etc., mediada por variados instrumen-
tos, provoca, ao mesmo tempo, a produção do próprio espaço e a criação
de objetos culturais (AZEVEDO, 2021, p. 79). Abaixo temos um quadro
com a síntese das atividades que foram desenvolvidas nesta pesquisa-ação.

Quadro 01- Síntese das atividades desenvolvidas

Etapa/ fatores da pedagogia dos


Atividade desenvolvida
multiletramentos
Levantamento do conhecimento
Prática situada/Enquadramento crítico prévio, discussão sobre a autora e os
temas que aparecem na obra
Instrução Explícita/Enquadramento crítico Leitura e análise da obra
Prática Transformada/Enquadramento Construção de murais digitais no
crítico padlet
Fonte: elaborado pelos autores
188
Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/boninal/panorama. Acesso
em: 27 jun. 2022.

955
As atividades desenvolvidas buscaram acionar os conhecimentos
prévios dos estudantes e foram apoiadas em situações que dialogavam
com suas experiências, proporcionando momentos nos quais os edu-
candos estiveram imersos em práticas que apresentassem algo familiar.
Essa proposta está apoiada na prática situada, um dos fatores que inte-
gra a Pedagogia dos Multiletramentos. Nela, os sujeitos são imersos em
práticas que lhe sejam significativas, por isso está prevista a assunção
de múltiplos e diferentes papéis com base nas experiências de cada um
(AZEVEDO, 2021, p. 78).
O enquadramento crítico perpassou por todas as etapas da ativi-
dade. Para Azevedo (2021, p. 81) este fator se alinha plenamente às
proposições da decolonialidade. Seguindo essa lógica, buscamos com as
atividades desenvolvidas, mobilizar os estudantes para que, a partir das
interações dialógicas com a obra, pudessem assumir uma postura críti-
ca. Segundo Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020), analisar criticamente
sugere avaliação das perspectivas, dos interesses e dos motivos daqueles
envolvidos na construção de conhecimento, em que os aprendizes in-
terrogam os propósitos relacionados aos significados ou às ações, com
base na interpretação do contexto sociocultural.
A instrução explícita é um fator da pedagogia dos multiletramen-
tos que possibilita intervenções ativas por parte do professor mediador.
Como o trabalho com as múltiplas linguagens, modalidades e semioses
favorecem esforços colaborativos, a relação pedagógica deixa de ser uni-
direcionada (do professor para os estudantes), pois todos contribuem
na consecução das variadas tarefas (AZEVEDO, 2021, p. 78).
A combinação desses fatores possibilita o quarto componente, a prá-
tica transformada. Em aulas de Língua Portuguesa, a produção discursiva
e multissemiótica se configura, então, como um meio privilegiado para a
expressão dos jovens, principalmente quando o docente quer privilegiar
as culturas juvenis nas práticas pedagógicas (AZEVEDO, 2021, p. 79).
Abaixo faremos a análise de 6 comentários elaborados pelos estu-
dantes, extraídos do mural digital construído nesta atividade, a partir
das interações dialógicas com a obra.

956
Figura 01 - Comentário 01

Fonte: Elaborado pelos autores. Disponível em https://padlet.com/


naiarachaves_/760senixte5j28ra

No comentário 01, observamos a relação que o estudante estabele-


ce entre a voz da autora e a de tantas outras mulheres que, assim como
Carolina, permaneciam em situação de exclusão e abandono. O estu-
dante evidencia que a autora, ao escrever, não se posiciona apenas como
negra, mas como mulher, negra, catadora de lixo, pensadora, e toda a
sua subjetividade e resistência que emerge junto à sua obra reverbera na
voz de outras mulheres.

Figura 02 - Comentário 02

Fonte: Elaborado pelos autores. Disponível em https://padlet.com/


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No comentário acima podemos observar o posicionamento assu-


mido no discurso do estudante que estabelece uma relação entre o livro
e a vida real, ao assumir que “o que fala no livro é uma realidade”, além
de destacar que as discussões apresentadas no livro são “necessárias”.

957
Figura 03 - Comentário 03

Fonte: Elaborado pelos autores. Disponível em https://padlet.com/


naiarachaves_/760senixte5j28ra

No comentário 03, observa-se como a estudante faz uma crítica


social ao descrever a personagem como “uma mulher guerreira”, que
mesmo trabalhando o dia inteiro, não conseguia o dinheiro o suficiente
para alimentar os seus filhos. Além disso, a partir da identificação das
temáticas presentes na obra, tais como fome, racismo, pobreza, a con-
dição da mulher na sociedade, a estudante demonstra não ser passiva
e indiferente, mas assume uma postura ativa, uma vez que, na ação
comunicativa, manifesta seu ponto de vista, reflete, participa e dialoga
com o texto de forma crítica.

Figura 04 - Comentário 04

Fonte: Elaborado pelos autores. Disponível em https://padlet.com/


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As relações dialógicas estabelecidas pelo estudante do comentário


04 evidenciam a denúncia e a perspectiva reveladas a partir da leitura
da obra caroliniana ao tornar visível a face silenciada da fome, da ex-
clusão e da miséria existente nas favelas do Brasil nas décadas de 1950
e 60. A partir desse comentário, evidencia-se a compreensão de Walsh
(2009), p. 244) de que “a decolonialidade é uma postura ofensiva de
intervenção, transgressão e reconstrução”, por isso, entende-se aqui o
pensamento decolonial como uma forma de promover reflexões sobre

958
os nossos modos de vida, a fim de romper paradigmas étnico-raciais,
político-econômicos, socioculturais e de gênero que nos foram impos-
tos como verdade absoluta pelos processos de colonialidade.

Figura 05 - Comentário 05

Fonte: Elaborado pelos autores. Disponível em https://padlet.com/


naiarachaves_/760senixte5j28ra

No comentário 5, evidencia-se no discurso do estudante uma pro-


blematização e um desejo de intervenção e mudança na sua própria rea-
lidade, especialmente na parte em que afirma “O livro desperta em nós
a necessidade da sociedade e das autoridades públicas, olharem para es-
sas pessoas com olhar solidário e justo”. Nesse sentido, pode-se perceber
que a atividade proporcionou uma vivência significativa e mobilizou os
estudantes a assumirem uma postura transformadora, com um olhar
para além da sala de aula. Além disso, o posicionamento assumido pela
estudante elucida o que Bastos e Lima (2020) sinalizaram: Carolina
perpassa o limite de apenas denúncia para chegar a uma agenda de luta,
na medida em que torna a literatura possível àqueles que pretendem.
“O poder de fazer literatura torna-se próximo aos favelados, com gran-
de força expressiva, pretende chegar à liberdade através de seus escritos”
(BASTOS, LIMA, 2020, p. 83).

959
Figura 06 - Comentário 06

Fonte: Elaborado pelos autores. Disponível em https://padlet.com/


naiarachaves_/760senixte5j28ra

No comentário acima percebe-se que, ao estabelecer relação entre


as situações vivenciadas pela autora com a realidade de muitas famílias,
a estudante evidencia como Carolina não pertence a um passado ou
presente fixo, ou a um local determinado, mas que se encontra em um
espaço atemporal. Ao manifestar em seu enunciado que “deu pra sentir
a dor dela”, a estudante assume uma postura empática se colocando no
lugar da personagem autora. Para Street (2007), as práticas de letra-
mento são constitutivas da identidade e da pessoalidade, uma vez que
quaisquer que sejam as formas de leitura e escrita que aprendemos e
usamos, elas são associadas a determinadas identidades e expectativas
sociais acerca de modelos de comportamento e papéis a desempenhar.
A construção do mural digital permitiu que os estudantes assumis-
sem posicionamentos, negociassem pontos de vista e realizassem inte-
rações e diálogos com a referida obra. Além disso, com a interação no
padlet, puderam aprender colaborativamente, uma vez que a colabora-
ção pode incentivar o pensamento crítico, a criatividade, a curiosidade,
objetivando transmitir informações que poderão ser apresentadas para
os demais alunos que terão acesso ao padlet, dessa forma permitindo a
interação entre os grupos (JUNIOR; MONTEIRO, 2021).

960
Considerações finais
As considerações feitas neste artigo buscaram edificar um arcabou-
ço teórico-metodológico que possa servir de meio para compreensão de
práticas educativas, pautadas nas mudanças da sociedade e nas formas
de comunicação. Dessa forma, os dados alcançados apontam que o uso
da ferramenta padlet, aliado ao trabalho de leitura numa perspectiva
decolonial e intercultural crítica, proporcionou aos estudantes uma prá-
tica transformadora, possibilitando-os assumir posicionamentos, nego-
ciar pontos de vista e realizar interações e diálogos com a referida obra.
A partir dessas reflexões iniciadas em contexto de sala de aula, os
estudantes podem começar também um movimento de reconstrução de
seus padrões de vida, modos de pensar, saber, existir e viver (WALSH,
2013). Nessa perspectiva, o estudante é considerado um indivíduo que
apresenta suas singularidades e identidades que precisam ser valorizadas
no processo de ensino e de aprendizagem, ao ocupar um papel cen-
tral em relação à construção de sentidos e à formação do pensamento
crítico.
A prática docente pautada nessa relação contempla tanto o conhe-
cimento produzido no âmbito institucional de educação como o oriun-
do da pluralidade de saberes, advindos da comunidade; viabiliza além
da aproximação escola-comunidade, a atuação dos alunos enquanto
emancipados em sua realidade local, seja pesquisando-a ou propondo
intervenções para modificá-la (GIROUX, 1997).
Em consonância com a perspectiva Intercultural e Decolonial no
ensino de línguas, o professor é visto como um mediador intercultural
(SERRANI, 2005). Esse professor mediador, segundo Kalantzis, Cope
e Pinheiro (2020), deve buscar para além de deslocar o foco do tradi-
cional, do texto escrito, para a diversidade de linguagens, sentidos e cul-
turas, para a heterogeneidade de fontes, autores e mídias, deve incluir
temas que infelizmente ainda provocam tensões, reações de intolerância
e discriminação, tais como as relações étnico-raciais, diversidade sexu-
al, questões de gênero, pluralismo religioso e relações geracionais, de
forma a suscitar um enfoque intercultural efetivo e trabalhar o ensino

961
de Línguas, numa perspectiva que promova a afirmação democrática, o
respeito mútuo, a aceitação da diferença e a construção de ambientes de
aprendizagem em que todos e todas possam se expressar na múltiplas
linguagens.

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964
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

“E SE FOSSE VOCÊ?”: UMA ANÁLISE DE


REPRESENTAÇÕES IMAGÉTICAS SOBRE
IMIGRAÇÃO À LUZ DA MULTIMODALIDADE
E DOS MULTILETRAMENTOS

Naira Gomes Lamarão - UFMG

“Primeiro, temos que entender que a migração não é um problema


e nem uma crise: é um fenômeno social que aconteceu, acontece e
acontecerá sempre [...]. Temos de ir em direção ao diálogo, ao en-
contro. O contato com as pessoas é o que muda.
(Padre Paolo Parise)189

RESUMO: O mundo moderno e globalizado nos impôs novas práticas


de interação social e, consequentemente, de comunicação. Nesse sentido,
a linguagem, que sempre foi dinâmica e mutável, tem acompanhado as
transformações da sociedade contemporânea e exigido de nós competências
linguísticas que ultrapassam as habilidades tradicionais de comunicação. Assim,
este trabalho tem o objetivo de, primeiramente, analisar as produções de sentido
em um cartaz sobre imigração, exposto em um local de ampla circulação na cidade
de Boa Vista-RR. Para isso, baseamo-nos na perspectiva da Multimodalidade,
considerando que todos os textos são multimodais e apresentam vários modos
de representação para expressar sentidos, e da Gramática do Design Visual,
desenvolvida por Kress e van Leeuwen (2006) abordagem metodológica para a
análise de imagens que se baseia no princípios teóricos da Semiótica Social e da
Gramática Sistêmico-Funcional (HALLIDAY,1994). Em seguida, propomos
uma prática pedagógica, à luz da multimodalidade e dos multiletramentos, para
ser aplicada nos anos finais do ensino fundamental, enfatizando a importância
que as novas práticas de letramento assumem no atual cenário de transformações
socioculturais. A análise realizada aponta para o potencial comunicativo dos
textos multimodais, como textos que carregam novas identidades e modos
de representação para gerar e distribuir sentidos, sendo capazes de promover
uma aprendizagem mais significativa e crítica aos alunos, tendo em vista uma
formação colaborativa e cidadã.
189
Diretor da Missão de Paz e uma das principais referências em refúgio e imigração
no país (CARRARO e SOUZA, 2020).

965
PALAVRAS-CHAVE: multimodalidade, multiletramentos, imigração.

ABSTRACT: The modern and globalized world imposed on us new practices


of social interaction and, consequently, of communication. It makes sense,
to language, that it has always been dynamic and mutable, accompanied by
the transformations of contemporary society and required of us linguistic
skills that surpass traditional communication skills. Likewise, this work had
the objective of, firstly, analyzing the productions of meaning in a letter on
immigration, exhibited in a local of wide circulation in the city of Boa Vista-
RR. For this, we base ourselves on the Multimodality perspective, considering
that all texts are multimodal and present various modes of representation to
express meanings, and the Grammar of Visual Design, developed by Kress and
van Leeuwen (2006), a methodological approach for the analysis of images
based on theoretical principles of Social Semiotics and Systemic-Functional
Grammar (HALLIDAY, 1994). Next, we propose a pedagogical practice, in the
light of multimodality and two multiliteracies, to be applied in the final years
of fundamental education, emphasizing the importance that new practices
of literacy assume no current scenario of sociocultural transformations. The
analysis carried out points to the communicative potential of two multimodal
texts, as texts that carry new identities and modes of representation to generate
and distribute meanings, being able to promote a more significant and critical
learning to students, with a view to a collaborative formation and city.
KEYWORDS: multimodality, multiletters, immigration.

Introdução
A imigração hoje é uma das pautas mais importantes na agenda
global e tem se configurado como objeto de estudos em diversos cam-
pos das Ciências Humanas e Sociais. Em Roraima, os últimos cinco
anos têm sido marcados pela intensificação do fluxo migratório de
venezuelanos fugindo da crise social, política e econômica instaurada
na Venezuela nos governos dos presidentes Hugo Chavéz e Nicolás
Maduro.
Segundo a Agência da ONU para os refugiados (ACNUR), em
2018, 5 mil pessoas deixavam a Venezuela por dia, 94% da população
vivia na pobreza. Em 2019, 7 milhões de venezuelanos necessitavam de

966
ajuda humanitária, estima-se que 4,9 milhões de venezuelanos deixa-
ram o país de 2014 até março de 2020. Ainda de acordo com a ONU,
esse êxodo venezuelano teria ultrapassado 6 milhões de pessoas até o
final de 2020, não fosse a pandemia da Covid-19 ter alterado o fluxo
migratório.
A principal porta de entrada dos venezuelanos no Brasil é a cida-
de fronteiriça de Pacaraima, em Roraima, distante 215 quilômetros da
capital Boa Vista. Antes do fechamento da fronteira190, em março de
2020, devido à pandemia da Covid-19, dados da Operação Acolhida191,
coordenada pelas forças armadas em Roraima, apontavam que, diaria-
mente, cerca de 500 venezuelanos atravessam a fronteira com destino à
Boa Vista. Um total de 15 abrigos já foram construídos e estruturados
para receber e acolher essas pessoas. Nesses locais, são oferecidas refei-
ções, atendimentos básicos de saúde e um espaço estruturado para os
abrigarem, tirando-os, assim, das ruas.
Os números advindos da imigração expressam as mudanças e de-
mandas sociais e econômicas do estado. Setores da saúde, educação e
segurança pública são os que mais sentem as consequências da imigra-
ção. Na educação, atualmente, são mais de 6.000 alunos venezuelanos
matriculados na rede estadual de ensino192. Os imigrantes, além da si-
tuação de vulnerabilidade em que se encontram, precisam lidar com o
preconceito relacionado à língua, discriminação e xenofobia, já que a
população os culpa pela saturação dos serviços públicos e aumento da
criminalidade. Esse cenário gera uma gama de discursos e práticas so-
ciais que colidem entre si.
Nesse sentido, considerando as mudanças que a imigração vene-
zuelana provocou no cenário social de Roraima, inclusive no ambiente
190
A Venezuela reabriu oficialmente a fronteira com o Brasil no dia 24 de fevereiro
de 2022, após dois anos de fechamento por causa da pandemia da Covid-19.
191
A Operação Acolhida tem o objetivo de recepcionar, identificar, triar, imunizar,
abrigar e interiorizar imigrantes em situação de vulnerabilidade (desassistidos)
decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária. A operação é
conjunta, interagências e de natureza humanitária.
192
Dados da Secretaria Estadual de Educação de Educação de Roraima (SEED-RR).

967
escolar, este trabalho tem o objetivo de analisar como os sentidos são
produzidos semioticamente em um cartaz sobre imigração, exposto
em um local de ampla circulação de pessoas na cidade de Boa Vista-
RR. Para empreendermos esta análise, utilizamos a perspectiva da
Multimodalidade, considerando que todos os textos são multimodais
e apresentam vários modos de expressar sentido, e da Gramática do
Design Visual, empreendida por Kress e van Leeuwen (2006) aborda-
gem metodológica para a análise de imagens que se baseia no princí-
pios teóricos da Semiótica Social e da Gramática Sistêmico-Funcional
(HALLIDAY,1994), uma vez que o gênero analisado carrega diversos
modos semióticos de representação discursiva. Assim, de acordo com
Gualberto e Pimenta (2021) Gunther Kress aponta que qualquer análi-
se que se fundamente na Semiótica Social precisa

a) partir do social, das observações cotidianas; b) considerar a


multiplicidade de modos envolvidos nos textos selecionados; c)
estabelecer conexões com outras áreas do conhecimento de que
o objeto estudado faz parte; d) tecer reflexões sociais a partir das
análises, considerando questões como poder, identidade, con-
trole etc. (p. 389)

Pensando nas mudanças sociais complexas e na importância de


explorarmos as práticas de multiletramentos a partir dos textos mul-
timodais, neste trabalho, primeiramente, apresentamos uma breve
discussão teórica acerca da multimodalidade e multiletramentos, com
base em Kalantzis, Cupe e Pinheiro (2020), Dias (2015). Em segui-
da, fazemos uma análise da imagem do cartaz a partir da abordagem
da Gramática do Design Visual, de acordo com Kress e van Leeuwen
(2006) e Nascimento, Bezerra e Herbele (2011), por fim, apresentamos
uma proposta pedagógica para se aplicada nos anos finais do ensino
fundamental, à luz da multimodalidade e do multiletramentos, com
o objetivo de instrumentalizar os alunos para terem uma postura mais
crítica em relação às mudanças sócio-culturais locais.

968
Multimodalidade e Multiletramento: um olhar para além do
texto verbal
Todas as pesquisas e estudos no âmbito da multimodalidade e do
multiletramento partem da premissa básica que não há textos mono-
modais, pois até os textos essencialmente verbais utilizam recursos vi-
suais como a formatação, por exemplo. De acordo com Dias (2015, p.
307) a multimodalidade, portanto, diz respeito aos “vários modos de
representação para expressar sentidos em textos de variados gêneros, na
modalidade oral e na escrita, por meio de affordances (potencialidades)”
dos diversos meios de comunicação. Os modos, por sua vez, referem-
-se a “um conjunto de recursos socialmente e culturalmente moldados
para a produção de sentido” (GUALBERTO e SANTOS, 2019, p. 10).
Assim, a multimodalidade é uma característica inerente a todos os tex-
tos, em que vários modos semióticos se articulam para construir e dis-
tribuir sentidos, a partir das práticas sociais e discursivas significativas
de cada contexto sócio-cultural.
Na Pedagogia dos Multiletramentos, o “multi refere-se a dois aspec-
tos principais da construção do significado”, o primeiro é a diversidade
social e cultural na construção de significados em diferentes situações
culturais, sociais e domínios, nos quais todos nós estamos envolvidos.
Os textos variam de acordo com os contextos sociais, e essas diferenças
estão cada vez mais significativas no modo como interagimos e cons-
truímos significados (KALANTZIS; COPE e PINHEIRO, 2020, p.
19). O segundo aspecto diz respeito à multimodalidade, pois os senti-
dos são produzidos cada vez mais multimodalmente, ou seja, o aspecto
textual está amplamente integrado ao oral, visual, sonoro, espacial, tátil
e gestual, devido à expansão dos novos meios de comunicação que de-
mandam uma integração dos modos de construção de significados e
representação.
Nesse sentido, Dias (2015, p. 312) argumenta que o foco de
uma pedagogia para os multiletramentos não está somente no modo
linguístico, mas em outros meios de comunicação para complementá-
lo, tendo em vista “seus layouts multimodais criados pelas affordances

969
das tecnologias”. Os alunos, enquanto público-alvo dessa pedagogia,
devem ser concebidos como sujeitos colaborativos, com uma tendência
a serem mais ativos na resolução de problemas pela lógica. As práticas
educativas dessa era moderna e digital devem oportunizar ao aluno o
desenvolvimento da competência comunicativa multimodal, que diz
respeito ao uso dos recursos semióticos como os gestos, sons, imagens
presentes na comunicação contemporânea.
Essas novas pedagogias, comprometidas com as questões linguís-
ticas e comunicativas que envolvem as intensas transformações sociais
da atualidade, devem buscar formar indivíduos capazes de encarar as
mudanças, compreender a diversidade, comunicar-se de maneira eficaz
em contextos variados, e de construir significados e participar deles em
uma ampla variedade de configurações culturais.

“E se fosse você?”: análise das representações imagéticas


baseadas na Gramática do Design Visual (GDV).
Nesta seção, analisaremos uma imagem com o objetivo de discu-
tir as representações sobre imigração e imigrantes no contexto de Boa
Vista-RR.
De acordo com Resende (2021), entendemos representação como
formas de conhecimento socialmente construídas sobre algum aspecto
da realidade e que se projetam e influenciam a própria realidade social.
Na perspectiva da Semiótica Social, isso revela interesses sobre os mo-
dos como os recursos semióticos são utilizados e distribuídos.
Essa concepção também se aplica à Gramática do Design Visual,
enquanto uma abordagem voltada para a análise de textos visuais, em
que as estruturas visuais refletem interpretações da experiência e da in-
teração social, elas “não produzem somente estruturas da realidade, mas
produzem imagens da realidade vinculadas a interesses institucionais
sociais (RESENDE, 2021, p 442). Tanto a linguagem verbal quanto
a visual nos permite construir significados e representações de mundo.
Nesse sentido, Kress e van Leeuwen (2006), adaptaram as metafunções

970
da Gramática Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994) da linguagem
verbal para a linguagem visual, com o objetivo promover uma análise
mais ampla de textos multimodais. Assim, as três categorias de aná-
lise da GDV considerando os significados propostos por Kress e van
Leeuwen (2006) são: representacionais, interacionais e composicionais.
Apresentamos abaixo uma imagem do gênero textual cartaz, o qual
estava fixado na entrada de um dos supermercados de uma grande rede
varejista em Boa Vista, capital de Roraima. Esta rede varejista é conhe-
cida por empregar um considerável número de imigrantes em seus es-
tabelecimentos, desde o início da intensificação do processo migratório
de venezuelanos para Roraima.

Figura 1 – Cartaz sobre imigração

Fonte: arquivo da autora

Empreendemos a análise da imagem com foco nas três metafun-


ções da GDV mencionadas. A metafunção representacional descreve os
participantes presentes na imagem. Na imagem, a metafunção repre-
sentacional é narrativa, pois há a presença de participantes (4 pessoas),
há vetores indicando a ação de caminhar, orientados pela posição cor-
poral (uma perna na frente e outra atrás), direção (os participantes ca-
minham em fila). Nesse aspecto da análise Kress e van Leeuwen (2006,
p. 46) destacam que

971
[...] os modos semióticos de escrita e comunicação visual têm,
cada um, seus próprios meios particulares de realizar o que po-
dem ser relações semânticas bastante semelhantes. O que na
linguagem verbal é realizado por palavras da categoria ‘verbos
de ação’, visualmente é realizado por elementos que podem ser
formalmente definidos como vetores. (tradução nossa)193

Estes participantes estão inseridos num pano de fundo que, em


primeiro plano, indica uma linha reta (representada pela estrada) e um
fundo branco (que representa o destino de chegada).
O processo de ação dos participantes é o não-transacional, pois,
embora haja mais de um participante na imagem, estes não executam
ação um sobre o outro, cada um pratica a ação (caminhar) de maneira
individual, sem afetar diretamente o outro. Em relação ao processo de
reação dos participantes, a imagem ilustra um processo de reação tran-
sacional. Esse processo diz respeito à linha do olhar dos participantes,
enquanto leitores, podemos identificar para onde os participantes estão
olhando, neste caso, todos estão olhando para frente, em direção ao
horizonte.
Ainda em termos representacionais, as roupas dos participantes
e os volumes que eles carregam nesse processo de caminhada são in-
terpretados como indicativos da sua condição de imigrante, aquelas
pessoas que saem do seu local de origem com a “roupa do corpo” e
levando apenas aquilo que conseguem carregar. Esse processo classifica-
tório dos participantes é denominado pela GDV como taxonomia im-
plícita. Segundo Nascimento, Bezerra e Herbele (2011, p. 537) “o foco
dessa representação são as características dos participantes enquanto
integrantes de um grupo, quer sejam transitórias, como as roupas que
as pessoas usam, por exemplo, ou mais permanentes, como as feições
dessas pessoas.”
193
Do original: the observation that the semiotic modes of writing and visual
communication each have their own quite particular means of realizing what
may be quite similar semantic relations. What in language is realized by words
of the category ‘action verbs’ is visually realized by elements that can be formally
defined as vectors.

972
O processo simbólico é representado pelo pano de fundo branco,
o qual representa metaforicamente, um lugar indefinido, desconheci-
do, incerto, mas, ao mesmo tempo, algo positivo, simbolizado pela cor
branca, a qual tradicionalmente remete à paz e à bonança.
Os significados da metafunção interacional dizem respeito ao ali-
nhamento (ou não) dos participantes representados (PR) e os parti-
cipantes observadores (PO), aqueles que veem a imagem, ou seja, os
leitores. Nessa imagem analisada, o contato entre os participantes é im-
pessoal, pois o PR não estabelece contato do olhar direto com o leitor,
os participantes, ao olharem para o horizonte, de costas para o leitor,
ficam expostos ao olhar do leitor, o que é denominado de oferta.
Em relação à distância social, com o foco no tipo de enquadra-
mento utilizado, o plano é aberto (long shot), o que confere maior im-
pessoalidade entre o PR e o PO. A atitude, em que se focaliza o ângulo
adotado em relação ao posicionamento do corpo do participante repre-
sentado em relação ao leitor, nesse caso, o ângulo destacado é o oblíquo
que confere mais distanciamento entre participantes e leitores. A última
subcategoria de análise da metafunção interacional é o poder, a qual
está relacionada ao ponto de vista do leitor em relação ao participante.
Na imagem, o leitor observa os participantes no nível do olhar, o que
confere posição de igualdade de poder entre eles.
A metafunção composicional tem o foco nos recursos semióticos
que operam na composição da imagem como um todo: o verbal e o
visual. Na imagem, o valor informacional é identificado pela posição
dos elementos no centro/margem, o elemento verbal “E se fosse você?”,
no centro; e o elemento visual, os participantes caminhando em fila,
elemento visual, localizado na margem, com o objetivo de completar os
significados produzidos pelo elemento verbal.
Nesta imagem, a saliência, que define a relevância dos elementos
dando maior ou menor destaque a eles, está no elemento verbal “E se
fosse você?”, escrito em letras maiúsculas, na cor preta, fazendo contraste
com o fundo branco, é o elemento que possui maior destaque em toda
a composição da imagem. Nesse sentido, Kress e van Leeuwen (2006,

973
p. 202)194 destacam “os espectadores de composições espaciais são in-
tuitivamente capazes de julgar o ‘peso’ dos vários elementos de uma
composição, e quanto maior o peso de um elemento, maior sua saliên-
cia.” Portanto, a saliência em determinado elemento tem o objetivo de
atrair a atenção do leitor, ela é determinada pela localização, tamanho,
contraste de pano de fundo, contraste de cores. Dessa forma, a saliência
cria uma hierarquia de importância entre os elementos, fazendo com
que uns chamem mais atenção que outros.
Na imagem analisada, o aspecto da saliência é fundamental para o
objetivo comunicativo do gênero. Ele é o elemento que promove uma
interação mais “direta” com o leitor, uma vez que esta saliência é ex-
pressa em forma de pergunta, incitando o leitor a respondê-la ou re-
fletir sobre ela. Assim, o efeito discursivo dessa imagem é de interação,
provocando a empatia entre o leitor e os participantes representados na
imagem.
Nessa breve análise, a partir da GDV, podemos perceber o potencial
comunicativo dos textos multimodais, como textos que carregam no-
vas identidades e vários modos de representação para gerar e distribuir
sentidos. Essas representações são motivadas por interesses específicos,
uma vez que o“uso do signo visual nunca é neutro” (NASCIMENTO,
BEZERRA, HERBELE, 2011, p. 531), posto que é uma definição da
realidade social. Assim, o fato de este cartaz estar exposto em uma das
maiores empresas privadas da cidade, denota o engajamento social da
empresa frente à crise migratória e o comprometimento em combater
práticas discriminatórias contra os imigrantes, estimulando o acolhi-
mento destes.

194
Do original: The viewers of spatial compositions are intuitively able to judge the
‘weight’ of the various elements of a composition, and the greater the weight of
an element, the greater its salience.

974
Análise de imagens à luz da multimodalidade e
multiletramentos: uma proposta pedagógica para os anos
finais da educação básica
Considerando o que foi discutido até aqui acerca de textos mul-
timodais, multiletramentos, as categorias analíticas de significados da
GDV e o atual cenário sócio-cultural de imigração em Roraima, nesta
seção apresentamos uma proposta de análise de imagem a ser desenvol-
vida na aula do componente curricular Língua Portuguesa, com alunos
da educação básica, mais especificamente alunos do 9º ano, os quais
acreditamos terem um maior amadurecimento intelectual para esse tipo
de atividade.
Assim, essa proposta tem objetivo de:
1. Mostrar como texto verbal e o visual se articulam na construção
de sentidos em uma imagem;
2. Estimular os alunos a construírem textos multimodais a partir de
suas leituras e percepção de mundo;
3. Promover um pensamento crítico sobre o cenário local de imi-
gração e refúgio, fomentando a integração, a empatia e o acolhimento
aos alunos imigrantes.
Como bem sabemos, a era digital e novas tecnologias provocaram
impactos nos textos contemporâneos e na forma como nos comuni-
camos. Os alunos estão cada vez mais conectados, expostos a textos
multimodais e modos semióticos que se imbricam e se inter-relacio-
nam, seja na página, na tela do computador ou nos dispositivos móveis
(DIAS, 2018). Dessa forma, as “novas pedagogias” devem considerar
as mudanças que a sociedade atual vem sofrendo e seus efeitos práticos
sobre as novas tecnologias de comunicação. Devem promover o desen-
volvimento de aprendizes flexíveis e colaborativos, capazes de pensar de
modo divergente, capazes de se posicionarem criticamente em contex-
tos complexos e cada vez mais sujeitos a mudanças. Sujeitos que possam
transitar confortavelmente entre multiletramentos e terem uma postura
ativa e crítica diante de novas configurações sócio-culturais.

975
Nessa proposta, primeiramente, apresentaremos (com auxílio de
projetor) a imagem abaixo, que é um post retirado da rede social insta-
gram, da conta oficial da ACNUR Brasil, em seguida estimulamos um
debate sobre o tema. É importante destacar, nesse momento, a presença
de alunos imigrantes na sala, e enfatizar que o debate deve ser realizado,
acima de tudo, respeitando a opinião de todos.

Figura 2: post do instagram.

Fonte: página do instagram da ACNUR Brasil (@acnurbrasil)

O debate será conduzido a partir das seguintes perguntas


norteadoras:

- Vocês reconhecem esse gênero textual?


- O que este post representa para você?
- Qual a mensagem principal?
- Qual/quais as mensagens secundárias?
- Quais as cores utilizadas no texto verbal?
- O que representa a imagem de fundo?
- Qual a intenção do autor ao utilizar tamanho e cores de fonte diferentes?
- Quem é o autor do texto verbal e o que representa o nome dele ali?
- Qual a importância da marca da ACNUR no post?
- Vocês conseguiriam criar um post semelhante?

976
Essas questões apresentadas perpassam pelas categorias de análise
da Gramática do Design Visual. Assim, podemos perceber que mesmo
a abordagem da GDV sendo tão ampla e complexa, podemos adaptá-la
de maneira exequível para a sala de aula e, assim, promover uma análise
de imagem mais significativa para os alunos.
Após a discussão coletiva, vamos propor que cada aluno produza
um post sobre imigração e refúgio, enfatizando a importância da recep-
tividade, acolhimento, da empatia, do respeito às diferenças, e de que
maneira é possível ajudar um imigrante recém-chegado.
Para desenvolver essa atividade, os alunos precisarão pesquisar
em diversas fontes como sites, blogs, jornais online, revistas, páginas
de redes sociais, e outros, o que os colocarão diante de vários textos
multimodais, levando-os a observar a composição, a construção de
sentidos e as representações destes. Além de aprofundarem seu conhe-
cimento sobre questões que envolvem o processo migratório, fazen-
do-os a refletir criticamente sobre um tema que é de relevância global
e local. Nessa perspectiva Kalantzis, Cupe e Pinheiro (2020, p. 27)
afirmam que

Espaços de aprendizagem mais variados e engajadores são mais


relevantes para o tipo de mundo no qual a “geração P” atua em
sua vida cotidiana. [...] possibilita que esses “novos aprendizes”
assumam maior responsabilidade sobre a sua própria aprendiza-
gem porque lhes são dado maior autonomia.

Assim, entendemos que esse tipo de proposta possibilita ao aluno


mais engajamento e autonomia, na qual ele pode gerenciar suas esco-
lhas, refletir criticamente, adotar posicionamentos, tornando-se assim
produtores do seu conhecimento e se autoavaliando continuamente.
Por fim, os alunos serão avaliados pela capacidade de estabelecer
as relações de sentido entre o verbal e o visual na composição dos seus
posts. Além disso, será facultado a eles compartilhar os posts feitos.

977
Considerações Finais
Cada momento da história nos impõe desafios diferentes. Hoje esta-
mos diante do desafio de lidarmos com o advento das novas tecnologias
e sua gama de novas práticas textuais. Os novos modos de comunicação
exigem de nós o desenvolvimento de uma “competência comunicati-
va multimodal” (NASCIMENTO, BEZERRA, HERBELE, 2011, p.
530) para atuarmos em um mundo em que o verbal está cada vez mais
sendo substituído pelo visual. Dessa forma, é premente a inclusão de
práticas de multiletramentos nas escolas, de modo que os aprendizes
sejam instrumentalizados para serem atuantes e protagonistas diante
das exigências comunicativas que o moderno exige.
Neste trabalho, vimos a potencialidade que os textos multimo-
dais possuem no sentido de construir e propagar sentidos, e que os
recursos semióticos nesses textos traduzem uma realidade socialmente
construída.
As duas imagens trazidas aqui tratam de um tema de extrema re-
levância social no atual contexto de Roraima e associar essa discussão
a práticas de letramentos é muito oportuno no sentido de promover
uma aprendizagem mais significativa e crítica aos alunos, tendo em vis-
ta uma formação colaborativa e cidadã. Conforme preconiza Kalantzis,
Cupe e Pinheiro (2020) e Dias (2015), os aprendizes de hoje traba-
lham de forma colaborativa, constroem de forma conjunta e continuam
aprendendo além da sala de aula usando as mídias sociais para expandir
seu conhecimento. Por meio de uma aprendizagem ubíqua, são capazes
de se autoavaliar criticamente, negociar diferenças e agir proativamente
com responsabilidade social para transformar a realidade.
Portanto, esse aluno demanda professores que sejam “designers de
ambientes de aprendizagem” (KALANTZIS, CUPE E PINHEIRO,
2020, p. 27) que também sejam colaborativos e gerenciem ambientes
de aprendizagem multifacetados, promovendo uma educação linguís-
tica crítica que de fato trabalhe os dois “multi” dos multiletramentos.

978
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979
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

OS CAMINHOS DE UM CONCEITO
ACADÊMICO: O MARCO LEGAL DOS
MULTILETRAMENTOS NOS PLANOS
NORMATIVOS E NAS PRÁTICAS DISCURSIVAS
DE EXTENSÃO ACADÊMICA NO BRASIL

Patricia Pinho Andrade/UNICAMP195

RESUMO: A BNCC surgiu em um conturbado contexto histórico em


volta da transição de lógicas de governo, que passam a advogar pelo “Estado
mínimo” para condição do desenvolvimento econômico. A concepção do
documento que se propõe a ser base das práticas educacionais em todo o
país é engendrado nos bastidores de práticas sociais e discursivas fortemente
tensionadas por ideologias antagônicas. Composição convidativa a uma
análise sistêmico funcional da Teoria Social do Discurso do Fairclough (2016)
em paralelo aos constructos analíticos dos Multiletramentos de Kalantzis,
Cope e Pinheiro (2020) para analisar o impacto do discurso normativo na
heterogeneidade de práticas discursivas e culturais articuladas pelos centros
acadêmicos do país, a partir da investigação cartográfica da midiatização
de suas práticas colaborativas de pesquisa em Multiletramentos. A fim de
analisar se as abordagens na LA contemplam análises pedagógicas para além
das premissas dos objetos linguísticos. Como também o impacto do discursos
inovacional econômico influenciam no (re)design do conceito para defender
um multiculturalismo liberal apontado por Meher(2020), no modernismo
linguístico para camuflar retrocessos educacionais nas práticas situadas e
concepções de sujeito e acima de tudo de aprendizagens na educação básica.
Uma abordagem quantitativa e de caráter documental, parte de uma pesquisa
em andamento de mestrado a partir de uma cartografia nacional em torno do
mapeamento dos eventos de letramentos universitários realizados na última
década. Há uma multiplicidade de defesas multimodais e de tecnologização
dos gêneros discursivos em primazia a abordagens interculturais. A base
fortemente defensora de uma pedagogia ainda autônoma e meritocrática
explora esse fluxo acadêmico.

195
Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia, Professora de Ati-
vidades da Educação Básica da Secretaria de Educação do Distrito Federal e
mestranda em Linguística Aplicada pela Unicamp.

980
PALAVRAS-CHAVE: normatividade; práticas discursivas; pesquisa acadêmi-
ca; formação de professores de línguas; Multiletramentos.

ABSTRACT: The National Common School Curriculum Base (BNCC in


Portuguese) has arisen from a troubled historic context about transition of
government logics, which has come to recommend the “night-watchman
state” as a condition for economic development. The conception of this
document, which is proposed to be a basis for education practices throughout
the country, is engendered in the background of social and discursive
practices high tensioned by ideologies that are antagonic to each other. It is
a material serving as an invitation for a functional systemic analysis of the
Social Theory of Discourse by Fairclough (2016), in parallel with the analytic
construct by the Multiliteracy by Kalantzis, Cope and Pinheiro (2020), in
order to analyze the normative discourse in the heterogeneity of discursive and
cultural practices, as they are expressed by the country academic centers, from
the mapping research of mediatization of its practices agreeable to research
on Multiliteracy, in order to analyze whether the Applied Linguistics (AL)
approaches takes into account pedagogical analysis far beyond the premises
of the linguistic objects, as well as the impact of the economics discourse of
innovation influence the (re)designation of the concept to recommend for
a liberal multiculturalism, pointed out by Meher (2020), in the linguistic
modernism, so that to conceal education regression in these practices, ideas on
subject and, above all, on learning in the basic education. It is a quantitative
approach, based on documental analysis, as part of an undergoing Master’s
degree research from a national mapping of university literacy events that have
been carried out during the last decade. There is multiplicity of multimodal
defenses and technologization of discourse genres taking into account the
primacy of intercultural approach. It is a highly defending basis of how a yet
autonomous and meritocratic pedagogy explores this academic flow.
KEYWORDS: normativity; academic research, Discursive Practice; Language
teacher education; Multiliteracies;

1. Introdução
Em uma perspectiva sócio interacionista Vigotskiana não há um
sujeito de linguagem não permeado em um sistema sociointeracional de
agenciamentos diversos para além de uma ethos crítica e argumentativa,

981
como aborda Duboc (2020), ou seja, um sujeito de cultura. Todo obje-
to linguístico implica na necessidade de imersão em práticas discursivas
culturais em determinado contexto sócio-histórico de aprendizagem,
no qual conceber habilidades e competências linguísticas sem conceber
em quais práticas processuais e interacionais dos diversos atores envol-
vidos nos múltiplos espaços, implica em uma abordagem unilateral e
hierárquica de uma ciência em detrimento de outras. Assim, o conceito
de aprendizagem envolto ao termo linguístico dos Multiletramentos,
suscita uma análise em torno da Pedagogia dos Multiletramentos, pro-
clamada nos estudos do Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020).
Parte-se de princípio solidário de Duboc, que a investigação da
“prática social, deveria ser o ponto de partida, com a definição e o es-
tabelecimento de práticas pedagógicas a posteriori. Qualquer estabe-
lecimento de uma prática pedagógica a priori é fadada ao fracasso.”
(DUBOC, 2020, p.2338)” Neste estudo ampliaremos como uma
premissa de pesquisa contemplando a ciência pedagógica pelo prisma
de Saviani(2000) da problematização da prática social inicial. Algo
contemplado nos processos de conhecimento apresentados pelo New
London Group, alicerçados na defesa por uma prática situada que expe-
riencia o novo. Assim, pesquisas interdisciplinares são imperiosas para
analisar esses fenômenos de linguagem que compõem em um mesmo
plano comunicacional elementos em forças e coerências talvez distintas
com os fenômenos educacionais, principalmente didáticos.
Assim, pode ocorrer uma assimetria entre objeto linguístico expres-
so na normativa federal perante as linguagens didáticas plurais do plane-
jamento docente. Movimentos inversamente proporcionais atendendo a
concepções divergentes de educação. Uma ambivalência potencial como
contemplada por Fairclough (2016) no qual a força textual de compo-
nentes prescritivos coexiste nos enunciados proposicionais no mesmo
campo documental. Para tal, é importante analisar para além do con-
texto precedente dos conhecimentos teóricos expressos, mas o contexto
situacional que envolve o processo de produção, antes mesmo da dis-
tribuição e consumo de determinados materiais linguísticos na cultura.

982
Este foco problematiza um possível uso animado dos termos aca-
dêmicos para camuflar autorias normativas em forças distintas, riscos a
pesquisas envoltas com o compromisso apenas nos legados tradicionais
teóricos e não contemplando perspectivas mais decoloniais na investi-
gação dos dilemas situados. Focalizar, a partir do prisma de especialis-
tas, marca presente em muitas linhas de pesquisa, podem corroborar
com a produção de discursos de culpabilização de sujeitos históricos
em detrimento de análises hermenêuticas, analisando amplos agen-
ciamentos políticos e acadêmicos relacionais ao ensino de línguas no
país, outro ponto sendo investigado e problematizado na pesquisa em
andamento do mestrado. Masscheilein(2014) e Simons(2014) alertam
para o domínio das perspectivas de narrativas de especialista na análise
dos fenômenos relacionados a pedagogia, no qual o distanciamento de
análise torna a construção do enunciado e das práticas discursivas, uma
convergência aos temas de conhecimento e objetos científicos e não
das problematizações didática vivenciadas no espaço escolar. De acordo
com Maher(2010) ao abordar os estudos de Wilkins(2010, p.35) muito
do fracasso em políticas linguísticas pode ser explicado “porque a sua
formatação fica a cargo de outsiders, os quais, embora quase sempre
muito bem intencionados, tem conhecimento apenas parcial da cultura
local e sua dinâmica social.” Existem significados interpessoais oriundos
da experiência no qual a problematização irá convergir com o conheci-
mento em instrumentalização como aponta Saviani (2000) e não como
subordinação como alguns núcleos apresentam ao defender para o en-
sino de línguas uma produção de designs superiores em um viés crítico.
O que implicitamente se apoia em um princípio de uma ethos solitária
e independente aos meios e culturas.
Os estudos linguísticos se apresentam em primazia à concepção de
pedagogia, apresentada em algumas linhas como uma prática de execu-
ção (por isso o enfoque comum na área pelo ensino e não contemplar
conceitos de aprendizagem) e não como uma ciência, tornando os es-
paços de capacitação profissionais docentes em escopos IN(formativos)
aos núcleos acadêmicos e não uma concepção de form(ação) contínua

983
as práticas situadas docentes em país tão plural e complexo como o
Brasil. Em minha pesquisa de mestrado parto em defesa da reflexão e
problematização de determinados termos na LA, a partir dos conceitos
de aprendizagem. Por isso, defendo a distinção de políticas de exten-
são de IN(formação) universitária, das políticas situadas na form(ação)
continuada dos ambientes educacionais, no qual formas e teorias estão
alicerçadas a perspectiva situacional e cultural. Assim nesta etapa quan-
titativa apoiada nas reflexões sistêmico funcionais de Fairclough(2016),
no qual qualquer enfoque na linguagem, implica em compreender os
usos discursivos em quadro tridimensional, para muito além do texto e
seus designs e composições, mas analisar as práticas discursivas e sociais.
“O discurso como política é não apenas um local de luta de poder, mas
também um marco delimitador na luta de poder, ideologias particulares
e as próprias convenções, e os modos em que se articulam são um foco
de luta.” (FAIRCLOUGH, 2016. p.99).
Para Maher (2010, p.37) “a representação é um processo discur-
sivo, um processo de significação culturalmente determinado e sócio-
-historicamente construído.” Para tal se torna necessário analisar para
além de enunciados, as identidades que são desenvolvidas nos proces-
sos de conhecimento coletivo. Aliado às contribuições dos constructos
analíticos dos Multiletramentos quanto a análise da espacialidade e a
sua relação com as práticas colaborativas acadêmicas de produção de
conhecimento. No qual, “espaços moldam fluxos, que são maneiras pe-
las quais nos movemos através dos espaços cujos significados são base-
ados em suas funções, projetadas por pessoas.” (KALANTZIS, COPE
E PINHEIRO, 2020, p.274). Assim o mapeamento estatístico do qual
apresentaremos um elemento parte do princípio que esse fluxo permite
possibilitar um direcionamento da nossa atenção em outras dimensões
menos lineares e mais dimensionais que permite contemplar a situa-
cionalidade e não a funcionalidade de determinado campo comuni-
cacional. Para tal, nos apoiaremos na estrutura das práticas discursivas
colaborativas e na intencionalidade dos estilos de eventos acadêmicos

984
das Universidades Públicas em todo o país. Não compreender o caráter
longitudinal com determinado contexto é assumir que qualquer traba-
lho de divulgação de tópicos acadêmicos se constitui em formação con-
tinuada, no qual separa as Universidades de um comportamento básico
imperioso na ciência educacional, investigar os dilemas plurais do seu
público alvo, que não são apenas os objetos linguísticos. Santos (2020,
p.09) alerta para o impacto deste distanciamento dos núcleos acadê-
micos a uma cidadania, não de um “megacidadão”, mas do comum
das práticas cotidianas, no qual “a política que deveria ser a mediadora
entre as ideologias e as necessidades e aspirações dos cidadãos, tem se
demitido dessa função Se mantém algum resíduo de mediação, é com as
necessidades e as aspirações dos mercados.” Street(2014) alertava para
a exploração do analfabetismo como uma retórica predominante do
discurso político e condicionador das práticas e eventos de letramen-
tos, em discursos de culpabilização de sujeitos a condições muito mais
amplas. Monte Mór (2015) apresentava a dupla dimensão que envolve
o conceito de crítica em planos diferentes. No qual há um “criticism”
não necessariamente vinculado a uma critique. Por isso a ambivalência
se torna um foco interessante nesse viés fronteiriço entre as duas áreas
de pesquisa.

Eventos de letramentos acadêmicos na última década


A teoria dos Multiletramentos, apesar de incipiente no discurso te-
órico nacional, tem sua rápida profusão em diversas práticas formativas
em todo o país, nos últimos anos por parte de heterogêneos núcleos lin-
guísticos acadêmicos. Para Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020, p.22), a
alfabetização contemporânea precisa ampliar o forte conceito enraizado
de “mero letramento”, para possibilitar uma aprendizagem multimo-
dal de textos, com o intuito de estabelecer uma “comunicação eficiente
em diversos ambientes e usos de ferramentas de design de textos que
são multimodais, em vez de depender apenas da modalidade escrita.”
Contudo no documento da BNCC encontramos um outro enunciado
expresso.

985
Podemos perceber a ambivalência expressa por Fairclough (2016)
nesse fragmento presente no campo 5.1 denominado: A área de
Linguagens e suas Tecnologias. No qual o termo Multiletramentos
já aparece relacionado a um campo semântico vinculado a um viés
fortemente vinculado a um conceito de tecnologia em um populismo
tecnófilo. Como apropriação de recursos técnicos e um complemento
ao letramento valorizado. No qual vincula a sua concepção a uma nova
prática social dependente de novos ambientes midiáticos de apren-
dizagem. Assim, começa a oração declarando um duplo movimento
entre proposições e prescrições no mesmo enunciado. O que para a
Linguística Aplicada em tese não seria tão preocupante, é alarmante
para a ciência educacional perceber a prescrição tecnicista e que clara-
mente condiciona o interculturalismo a uma submissão a escrita da lín-
gua uno nacional considerava valorizada ao pluralismo linguístico em
modalidades e em interculturalidades. Como os letramentos poderiam
apagar uma valorização da escrita? Por qual razão é expresso em tom
prescritivo uma série de condicionamentos às práticas discursivas rela-
cionadas a presença da perspectiva, reduzindo a um uso e não premis-
sa pedagógica na organização do trabalho pedagógico em Linguagens?
Em uma disposição espacial fica claro a presença do termo como um
animador e não autor das práticas de conhecimentos relacionadas à di-
dática da língua portuguesa em sala de aula.

986
Quadro 1: Ambivalências entre normatividades
didáticas e proposições linguísticas.

Fonte: Elaborado pela autora (2022).

Kleiman na década de 90 já reconhecia a escola, ainda analógi-


ca, como a mais importante das agências de letramento da sociedade.
Contudo, a autora já sinalizava, o que no futuro ainda se apresenta como
um desafio para esta nova formação polivalente, que a mesma “(...) pre-
ocupa-se não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo
de letramento, a alfabetização, o processo de aquisição de códigos, pro-
cesso geralmente concebido em termos de uma competência individual
necessária para o sucesso e promoção na escola.” (KLEIMAN,1995,
p.20). Assim um ambiente cultural e de ações precisam estar alinhados
aos princípios epistemológicos de aprendizagem defendidos nas linhas
e não somente uma conceituação de área. O crítico expresso nesse frag-
mento está alicerçado a um viés ao qual para a linha seria um paradoxo.
Contudo a perspectiva de designs está envolta de uma ideia de poli-
valência, na BNCC vinculada a manipulação de técnicas e crítica de
recursos, nos quais poderíamos inferir uma concepção de língua como
um produto de manipulação e não a perspectiva de manipulação se
sobressai a perspectiva crítica de análise proposta na área.

987
Para tal, exploraremos o materialismo cibernético arquivado pelos
núcleos acadêmicos em torno da publicização de suas práticas discur-
sivas de produções científicas e de compartilhamento temáticos, cole-
tados em abril de 2022 parte de um projeto temático solicitado pela
Orientação. Em uma breve pesquisa recente no Google, em julho de
2022, em um simples cruzamento de parâmetros fechados encontrare-
mos a seguinte tendência. A predominância do pilar da multimodalida-
de ao pilar do multiculturalismo, ambas premissas interseccionadas dos
Multiletramentos. O segundo termo, tem o seu uso cultural muito mais
amplo do que o atrelado à perspectiva linguística. Então, acrescentando
o valor multiletramentos chegamos a esta performatividade, no qual o
termo letramento digital tem mais densidade de produção que o termo
multiculturalismo. Ambos abaixo do impacto do termo multimoda-
lidade na plataforma. O protagonismo do termo pode suscitar uma
defesa acadêmica ligada a práticas de ensino e a exploração de designs
discursivos como pontos de partida ao planejamento docente.

Quadro 2: Parâmetros de comportamento de interface no ambiente digital.

Parâmetros Páginas jul.2022

“curso” “multiletramentos” 41.200


“curso” “multimodalidade” 98.900
“curso” “multiletramentos ““multimodalidade” 13.000
“curso” “multiculturalismo” 825.000
“curso” “multiletramentos ““multiculturalismo” 8.890
“curso” “letramento digital” 79.100
“curso” “multiletramentos” “letramento digital” 12.000
“curso” “letramento” 1.430.000
Fonte: Elaborada pela autora (2022).

Se cruzarmos essa percepção, em um plano hermenêutico, ao anali-


sar algumas titulações de práticas acadêmicas ofertadas por importantes
núcleos teóricos para espaços docentes da educação básica de acordo
com os constructos analíticos de design dos Multiletramentos quanto a

988
intenção, referência e estrutura relacionadas ao campo de produção de
determinado gênero publicitário.

Figura 1: Representação publicitária pela Universidade de Pernambuco.

Fonte: GRE Sertão Médio São Francisco. Disponível em: <https://www.youtube.


com/watch?v=MweS2N5c5II> Acesso em 20 out.2022

Figura 2: Representação publicitária produzida


pela Universidade Federal do Ceará

Fonte: Laboratório Digital Educacional (UFC) Disponível em: <https://www.


youtube.com/watch?v=UNv6B-ktgtY> Acesso em 20 out. 2022

989
No campo de referência percebemos na titulação de ambos os even-
tos, o protagonismo da expressão multimodalidade, no primeiro a um
viés de ensino de Língua Portuguesa e no segundo evento as práticas de
Interação como potencialidade para a educação. O diálogo a ser esta-
belecido são por lives em formato comunicacional streaming no qual o
caráter de profusão predomina e centraliza nos palestrantes e no controle
enunciativo. No primeiro evento uma especialista de conhecimento e
no segundo ocorre a presença de ambos os pólos, especialista e professo-
res atuantes na rede municipal, tornando a estrutura de ambos eventos
coerentes, uma especialista focada no ensino não necessariamente nas
aprendizagens e no segundo evento o foco claro na premissa da interação
para potencializar relações na educação, oportunizando o protagonismo
dos educadores em um contexto situado. No segundo flyer a professora
aparece em paralelismo ao especialista no campo central da imagem.
Por fim, analisaremos a performatividade do termo Multiletramentos
na composição temática de eventos de letramentos acadêmicos publiciza-
dos nas plataformas públicas nacionais universitárias em todo o país, dados
coletados em abril de 2021 durante o período de ensino remoto provocado
pela tragédia do coronavírus, no qual uma série de análises paralelas são
possíveis e instigantes para compreender os caminhos diversos e heterogê-
neos dos termos a depender da região e da intenção in ou formativa.

Gráfico 1: Percepção do termo Multiletramentos


na titulação de eventos acadêmicos.

Fonte: Elaborado pela autora (2021).

990
Percebe-se no gráfico a centralidade por práticas de divulgação aca-
dêmica pontuais e de baixa carga horária, no qual o foco é comparti-
lhamento de práticas de pesquisa científica e não atuação em práticas
sociais diante de dilemas de aprendizagem. Destaque para os seminários
como principal evento de letramento acadêmico para compartilhamen-
to entre pesquisadores sobre suas compreensões relacionadas à perspec-
tiva dos Multiletramentos. A região Nordeste se destaca em relação às
demais, apresentando ações em quase todos os tipos e gêneros discursi-
vos colaborativos em contraposição a região norte. Importante ressaltar
que bastava um seminário organizado pela Universidade para registrar
um S no seu espaço, assim, quando se aponta no gráfico, sinaliza que
o termo apresentado estava em estudos de 47% das Universidades, o
que não significa que os eventos anuais são parte contínua do debate.
A sensação pós pesquisa são de projetos pioneiros em alguns centros,
tanto nos Seminários como nos cursos de extensão.
O silenciamento universitário foi evidenciado no gráfico, mesmo
com a expressiva pesquisa acadêmica contemplando a perspectiva de
multiletramentos, quase não foram ofertadas lives das universidades so-
bre o tema. Para chegar a esses índices foi pesquisado se a Universidade
ofertou alguma live relacionada ao tema multiletramentos, ou até letra-
mentos no plural. Com destaque ao Sul (35% das universidades partici-
param) e o Nordeste (46% das Universidades participaram). Contudo,
quando buscamos referências a políticas menos transmissíveis e mais
interativas de mediação comunicação coletiva sobre o tema, os índices
foram desanimadores. Uma alta predominância de cursos de curta du-
ração e apenas medidas espaçadas de alguns pesquisadores em seminá-
rios e colóquios.
O termo multiletramentos é muito recente, mas a proporção de
citação em pesquisas em políticas extensivas sinaliza o comportamento
das Universidades de atrelar apenas como base de pesquisa e não como
base formativa a sociedade. Neste mapeamento inicial encontramos
práticas que dialogam diretamente com a BNCC, pois os poucos cur-
sos articulados e disponibilizados arquivados em nosso levantamento

991
priorizaram a abordagem multimodal ou até mesmo de um letramento
digital a abordagens que contemplam o multiculturalismo na compo-
sição dos eventos, o que talvez convidasse a pesquisa de conhecimento
a caminhar próximo dos seus públicos heterogêneos e plurais nos am-
bientes escolares.

Conclusão
O desafio que se apresenta é compreender que o processo de atri-
buir sentidos e significar não pode ser compreendido desprendendo o
ser do impacto do meio e das suas materialidades e apenas considerando
o discurso primário, em suas relações conscientes. O conceito de multi-
letramentos apresentado por Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) devota
ao design um duplo significado (substância e fluxo). A materialidade da
língua irá se reverter em um design disponível que ali será ressignifica-
do por sujeitos e irá compor culturas. Esse processo de representação é
único a cada posição do sujeito em suas configurações subjetivas, mas
há determinadas representações que são herdadas pelas tensões ao qual
se apresentam nos discursos culturais e históricos.
Pesquisadores defendem a divulgação científica ao público comum
como uma forma de mediar e equilibrar desvios intencionais no uso
desses conceitos, contudo um fato se apresenta como um desafio às
Universidades, o seu raio de profusão comunicacional e a sua não in-
tenção formativa nas práticas de pesquisa. Nesta abordagem é possível
perceber uma heterogeneidade de defesas compreensões por parte dos
núcleos acadêmicos em torno da concepção dos Multiletramentos, lon-
ge de ser uma performatividade homogênea e coesa.
As Universidades, sem recursos federais dificilmente oferecem for-
mações continuadas de longa extensão, encontramos apenas algumas
ações pioneiras, mas diante do global são exceções, o foco maior são
práticas situadas IN(formativas), vinculadas a pesquisas científicas e
práticas discursivas entre especialistas, que irão se converter em mini
cursos ou cursos de extensão, divulgadas a uma restrita comunidade. A
divulgação científica não necessariamente concebe o seu material para

992
o amplo entendimento e dilemas do cidadão docente no exercício didá-
tico e diantes dos dilemas situacionados, mesmo que assim conseguis-
sem, seria o suficiente para contrapor o discurso federal em normativas
e plataformas federais financiadas por verbas federais e consumida por
toda uma nação?
O intuito da pesquisa não é conceber causas determinísticas e si-
lenciar ou apagar sujeitos da análise, contudo é lançar problematização
a um espaço meso-social, no qual é preciso compreender para além de
sujeitos e suas relações locais, como a sociedade brasileira se organizou
dentro de um determinado período nas práticas formativas e quais de-
safios se apresentam a essas novas propostas assíncronas para mediar
a formação continuada no país em tempos tão complexos. Para tal é
preciso compreender uma certa dimensão realista crítica, não como
leis universais modeladoras de comportamentos humanos, mas um pa-
norama nacional de como estamos produzindo discussões ou não em
torno de problematizações sociais. A realidade não é algo constatável e
imutável, mas algo que apresenta discursos em estabilidades e hierar-
quias e é interessante perceber as tensões que se apresentam na cultura
e no design da formação continuada. Há uma multiplicidade de defesas
multimodais e de tecnologização dos gêneros discursivos em primazia a
abordagens interculturais dentro dos núcleos acadêmicos e respaldados
por um poder público que recentemente se empenhou por incorporar
nessas plataformas termos como literacia. A base fortemente defensora
de uma pedagogia ainda autônoma e meritocrática explora esse fluxo
acadêmico, no qual a ambivalência pode ser um caminho para uma
nova composição de designs para a políticas não meramente transmis-
síveis mas como compromisso a uma ação situada, no qual as formas
atuam em convergências a aprendizagens e não a ideologias behavioris-
tas e neoliberais.

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LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

DIFICULDADES, POSSIBILIDADES E
REFLEXÕES DE UMA PROFESSORA DE
INGLÊS ACERCA DO ENSINO REMOTO
EMERGENCIAL NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Raiane Ferreira Sombra Pires de Campos196


UFMT

RESUMO: Este trabalho objetiva apresentar o relato de experiência de uma


professora de língua inglesa de uma escola pública da rede básica de ensino do
estado de Mato Grosso no contexto de pandemia da Covid-19. A base teórica/
metodológica utilizada para fundamentar o relato de experiência é qualitativa
interpretativista de cunho autoetnográfico, Ludke e André (1986) apontam
que esse método tem sido muito utilizado em pesquisas na área da educação,
os textos utilizados como fundamentação são de Moita Lopes (2006), Flick
(2013) e Ludke e André (2018), visto que o ensino de língua inglesa em
contexto da educação básica pública deve considerar os aspectos sociais,
econômicos, culturais e no contexto desta pesquisa, acrescer a realidade de
uma pandemia que acentuou os aspectos socioeconômicos e danos para
a educação, investigar e refletir sobre os acontecimentos desse período é
relevante. A pesquisa autoetnográfica tem como principal característica a não
dissociação do pesquisador e objeto de pesquisa, levando em consideração
as subjetividades do autor, Ono (2018) destaca que esse procedimento pode
tornar a ciência algo mais humano e ao refletir e analisar a respeito de suas
próprias experiências terá maiores chances de proporcionar melhorias em seu
contexto. Os dados provisórios apontam que o ensino remoto emergencial
apresentou diversos obstáculos e anseios quanto ao processo de ensino-
aprendizagem. Contudo, diante da globalização e o uso da tecnologia em
todas as áreas da vida humana, o letramento digital se faz necessário. Desse
modo, o espaço físico de ensino deve promover o letramento digital e novos
meios de aprendizagem.
PALAVRAS-CHAVE: Língua Inglesa; Ensino Remoto Emergencial;
Experiência.

196
Professora efetiva de Língua Inglesa (SEDUC-MT) e Mestranda do Programa
de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal de Mato
Grosso, raiane.pcampos@gmail.com

995
ABSTRACT: This article aims to present the experience of an English
language teacher from a public school in the basic education network of
the state of Mato Grosso in the context of the Covid-19 pandemic. The
theoretical/methodological basis used to substantiate my experience report
is a qualitative, interpretive, auto-ethnographic nature, Ludke and André
(1986) point out that this method has been widely used in research in the
field of education, the texts used as a foundation are by Moita Lopes ( 2006),
Flick (2013) and Ludke and André (1989), since English language teaching in
the context of public basic education must consider social, economic, cultural
aspects and, in the context of this research, add the reality of a pandemic that
emphasized the socioeconomic aspects and damage to education, investigating
and reflecting on the events of that period is relevant. Autoethnographic
research has as its main characteristic the non-dissociation of the researcher
and the research object, taking into account the author’s subjectivities, Ono
(2018) highlights that this procedure can make science something more
human and by reflecting and analyzing its own experiences will be more likely
to provide improvements in their context. The provisional data indicate that
emergency remote teaching presented several obstacles and anxieties regarding
the teaching-learning process. However, in the face of globalization and the
use of technology in all areas of human life, digital literacy is necessary. In this
way, the physical teaching space should promote digital literacy and new ways
of learning.
KEYWORDS: English language; Emergency Remote Teaching; Experience.

1. Introdução
O ano de 2020 iniciou com uma notícia infeliz, a pandemia cau-
sada pela Covid-19197. As medidas de biossegurança transformaram os
modos de trabalhar, estudar, interagir e realizar tarefas cotidianas. No
Brasil, assim como em outros países, a única alternativa possível para o
desenvolvimento das atividades escolares era o ensino remoto em cará-
ter emergencial, apesar da extrema relevância do espaço físico escolar,
naquele momento, o mais importante era preservar vidas. Em março de
2020, quando o ministério da saúde regulamentava a primeira quaren-
197
A Covid-19 é uma doença infecciosa causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e
tem como principais sintomas febre, cansaço e tosse seca.

996
tena visando conter a propagação do vírus, poucos imaginavam ser só o
começo de um árduo período que se arrastaria por dois anos.
Desse modo, no estado de Mato Grosso, as aulas na rede públi-
ca de ensino foram suspensas e após um período de planejamento e
formação continuada para os profissionais, teve início o ano letivo na
modalidade remota, vale destacar que as circunstâncias do referido con-
texto e o caráter emergencial impossibilitou uma formação completa,
crítica-reflexiva e de qualidade que possibilitasse o melhor proveito das
TDIC (Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação) no pro-
cesso educacional.
Desafios são uma constância no exercício da docência em escolas
públicas no Brasil, diariamente professores têm de lidar com discursos
que desvalorizam a profissão, escolas com estruturas precárias, falta de
recursos e materiais adequados, violência, crianças/adolescentes oriun-
dos de realidades tão difíceis que o processo de aprendizagem fica com-
prometido. No que concerne especificamente ao ensino de uma Língua
Adicional (LA), há o fato da carga horária reduzida que prejudica muito
o desenvolvimento das atividades escolares. No contexto pandêmico
todos esses obstáculos ganharam maior dimensão acrescidos de novas
adversidades, das quais trataremos adiante.
Tendo em vista as consequências da pandemia para a educação no
mundo todo, o objetivo deste texto é compartilhar uma experiência
com o ensino remoto de língua inglesa no contexto pandêmico em uma
escola pública, pretendendo contribuir para discussões, reflexões e es-
tudos da área.

2. Metodologia
O relato, apontamentos e reflexões aqui apresentados serão abor-
dados pelo método qualitativo-interpretativista de cunho autoetnográ-
fico. Estudos na área educacional, com frequência, buscam compreen-
der, analisar e investigar contextos específicos visando o processo e o
significado dos eventos ali ocorridos, ou seja, não buscam um resultado

997
definitivo quantificado, como apontam Ludke e André (1986) apud
Bodgan e Biklen (1982), o processo é mais importante do que o pro-
duto. “O interesse do pesquisador ao estudar determinado problema
é verificar como ele se manifesta nas atividades, nos procedimentos e
nas interações cotidianas.”, dado que o objetivo aqui é compreender e
ressignificar a experiência de lecionar inglês remotamente no contexto
pandêmico e por se tratar de um cenário ímpar o melhor caminho a se
tomar para a análise dos dados é o interpretativismo, pois “[...] na visão
interpretativista, os múltiplos significados que constituem as realidades
só são passíveis de interpretação. É o fator qualitativo, ie, o particular,
que interessa.” (MOITA LOPES, 1994, p. 332).
Com referência a autoetnografia é um método de pesquisa quali-
tativa com base na etnografia, seus aspectos reflexivos e subjetivos po-
dem acarretar resultados positivos para o contexto pesquisado, já que
diferente da etnografia, nessa abordagem pesquisador e pesquisado
são os mesmos, Ono (2018) argumenta que as reflexões e significados
construídos na utilização da escrita autoetnográfica podem favorecer o
crescimento profissional e intelectual do pesquisador, além de que “[...]
o processo autoetnográfico expande as possibilidades de se investigar
questões educacionais que não focalizem a busca por um padrão ou
uma verdade, mas as verdades localizadas e contextualizadas.” (ONO,
2018, p.57), ou seja, as experiências, emoções e significados atribuídos
pelo pesquisador/objeto de pesquisa são o foco central.
Dessa maneira, por se tratar de um relato de experiência, a autoet-
nografia se mostrou apropriada, além de possibilitar mudanças profis-
sionais, acadêmicas e contribuir para discussões referentes a um contex-
to tão ímpar ocorrido na educação mundial.
Isto posto, trago neste texto um relato de experiência de uma pro-
fessora de inglês da rede estadual mato-grossense de educação. O ensino
remoto em caráter emergencial foi instituído no período de agosto de
2020 a julho de 2021. O objetivo principal deste trabalho é a partir
da minha experiência como docente com o ensino remoto em caráter
emergencial em uma escola pública discutir, refletir e compreender as
situações, desafios e aspectos do ensino no contexto pandêmico.

998
3. O ensino remoto em caráter emergencial
As pessoas vivem em constante processo de mudança, sempre bus-
cando soluções práticas e rápidas, a tecnologia tem sido a grande res-
ponsável pelas mudanças mais significativas na vida humana. No âm-
bito educacional não poderia ser diferente, as crianças e adolescentes
aprendem de formas diferentes, por vezes, apresentam habilidades que
seus pais e avós não possuem. Um exemplo das novas demandas edu-
cacionais é o letramento digital. Rezende (2016) explica que estamos
diante de um “novo ethos”, vivemos a era digital e da informação, as
práticas de leitura e escrita foram modificadas, o acesso à informação se
tornou mais fácil e disponível.

Ao refletirmos sobre o letramento na atualidade, verificamos


a necessidade de considerar a presença das tecnologias digitais
em nossas atividades cotidianas, cujo uso é fruto de deman-
das sociais e do grande investimento no desenvolvimento de
Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) [...] Essas
demandas da sociedade vinculam-se a uma nova mentalidade
que se forma e que determinou o que se tem denominado letra-
mento digital [...] (REZENDE, 2016, p.104)

Nesse sentido, Botelho e Leffa (2009) argumentam que o professor


deve considerar outros meios além do quadro, livro didático ou mate-
rial impresso, pois

Vivemos num mundo dinâmico e multimidiático, muito além


da bidimensionalidade estática do papel e do quadro-negro; é
um mundo em movimento, visual e sonoro, todo ele perpassado
pela língua que falamos e que ensinamos. Ignorar esse mundo
é reduzir e empobrecer a língua que ensinamos (BOTELHO;
LEFFA, 2009, p.121).

Além disso, a profissão de educador requer uma postura crítica-


-reflexiva ininterrupta, educar requer um olhar para além da sala de
aula, ao planejar seu trabalho o docente deve considerar o contexto
social, cultural, temporal e selecionar os melhores meios para mediar o

999
processo de aprendizagem dos alunos. Celani (2008) afirma que educar
vai além do conhecimento específico da disciplina, “[...] pela função
moral da ação de educar, esse conhecimento tem de estar colocado à
disposição da sociedade mais ampla. Educar não é apenas um ato de
conhecimento; é também um ato político.” (CELANI, 2008, p.26).
O uso das tecnologias no processo de ensino e aprendizagem já era
algo demandado há algum tempo, porém, por vários motivos como
resistência por parte dos docentes na utilização de mídias e tecnolo-
gias, infraestrutura inadequada ou precária, fatores socioeconômicos
que inviabilizam a aquisição de recursos tecnológicos pelos discentes,
etc., vinha acontecendo de forma lenta e insuficiente, principalmente
nas escolas públicas. Então, o inesperado aconteceu, a pandemia da
Covid-19 impôs uma mudança radical para todos os professores, sem
meios termos, as aulas aconteceriam exclusivamente de forma remota e
em circunstâncias dramáticas.
Diante desse contexto, Voltero, Fioroto e Silva (2021) defendem
que fatores externos influenciam diretamente no trabalho do professor,
ou seja, além de adotar novas ferramentas de trabalho havia o elemento
emergencial que somado às novas adversidades tornaram o ensino re-
moto uma atividade laboriosa para muitos professores. Teoricamente,
professor e estudantes utilizariam uma plataforma e as aulas acontece-
riam de forma síncrona ao mesmo tempo que atividades seriam dispo-
nibilizadas virtualmente, contudo, na prática, não foi o que aconteceu.
Ensinar durante o período pandêmico na modalidade remota en-
volveu trabalhar com medo, emocional e psicológicos afetados nega-
tivamente pela doença que se alastrava, a crise econômica que acabou
intensificando a desigualdade social e a exclusão digital, em meio a
tudo isso, estavam, de um lado, os professores tendo que participar de
formações, utilizar recursos próprios para o desenvolvimento das au-
las, sobrecarregados de tarefas burocráticas e tendo que elaborar ma-
teriais didáticos para as aulas, do outro, estudantes, em sua maioria,
sem orientação ou acompanhamento da família para desenvolver as
atividades escolares, abalados psicologicamente, tanto pelo isolamento

1000
quanto por problemas financeiros, pessoais e emocionais causados pela
pandemia e excluídos digitalmente. Refletindo sobre isso, Andrade e
Mariano (2021, p.128) destacam que “O momento abre fendas para
o aumento da desigualdade de conhecimentos, ou seja, crianças com
estruturas familiar, com recursos financeiros, em que a família reconhe-
ce a importância da rotina da organização e cuidados com os materiais
apresentam melhor desempenho.”
O ensino remoto exigiu como fator substancial que professores
e discentes possuíssem acessibilidade digital, o que não aconteceu,
como mostrou uma pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos sobre
Política Educacional e Trabalho Docente da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), em parceria com a Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Educação (CNTE) intitulada Trabalho docente em
tempos de pandemia, de acordo com os resultados, um terço dos estu-
dantes não possuíam recursos para participar das aulas remotas, o que
resultou na baixa participação dos estudantes. No mesmo viés, Alves
e Oliveira (2021) constataram que 45% dos estudantes matriculados
na rede pública de ensino estadual de Mato Grosso não dispunham de
uma rede para acessar o espaço virtual.
Como apontado por Leite e Júnior (2020), as aulas de língua es-
trangeira em escolas particulares sempre distinguiram das escolas públi-
cas, apesar disso, a pandemia fez com que essa diferença se acentuasse
ainda mais, enquanto nas escolas particulares professores e alunos têm a
sua disposição todos os instrumentos para o desenvolvimento das aulas
síncronas, nas escolas públicas as aulas se dão, quase sempre, de forma
assíncrona como consequência do baixo poder aquisitivo dos estudantes.
Isso não quer dizer que devemos aceitar e replicar o discurso de que
um ensino inovador não pode acontecer no âmbito público, ao invés
disso é preciso compreender que no período pandêmico as condições
eram limitadas e continuar de onde paramos, o processo de mudança é
lento e começa quando reconhecemos e investigamos os artifícios pre-
sentes na sociedade que fomentam a exclusão digital para pensar e pôr
em prática políticas públicas de inclusão e equidade.

1001
Além disso, outro fator importantíssimo para o processo de ensi-
no-aprendizagem afetado pela pandemia foi a interação. Mesmo os que
tinham a possibilidade de interagir virtualmente alegavam dificuldades,
quiçá os que por falta de acessibilidade ficaram em casa isolados e sem
contato nenhum com colegas e professores. A BNCC (Base Nacional
Comum Curricular) defende a interação como elemento indispensável
para o processo de ensino e aprendizagem e a escola é de extremo valor
por ser um ambiente controlado onde as atividades são pensadas para
garantir êxito ao processo. Essa perspectiva de ensino-aprendizagem, o
sociointeracionismo, atrela o desenvolvimento humano ao contexto so-
cial/cultural e afirma que o indivíduo é influenciado pelo ambiente que
o cerca, tal perspectiva tem como base as teorias de Vygotsky, o mesmo
afirmava que a aprendizagem é um fenômeno social, ou seja, a interação
é indispensável para que o ser humano aprenda.
Dessa forma, entendo que o ensino exclusivamente de forma re-
mota evidenciou a importância da escola como espaço de aprendiza-
gem e interação, já que por meio das atividades propostas os estudantes
podem colaborar uns com os outros e ter a orientação dos professores
quando necessário, com isso, eles aprendem habilidades que vão além
dos conteúdos curriculares, tais como: aprender a compartilhar, respei-
tar diferenças, autocuidado, responsabilidade, cidadania, ter empatia,
colaborar/ajudar, etc.

4. Narrativa autoetnográfica acerca do trabalho docente na


modalidade remota em caráter emergencial
Durante a pandemia lecionava em uma escola pública periférica
localizada no município de Várzea Grande-MT. Nos anos de 2020 e
2021 trabalhei com turmas do 6° ao 9° ano do ensino fundamental e 1°
ao 3° ano do ensino médio. No total atendi 600 alunos por ano. No en-
sino fundamental ministrava duas aulas semanais de 50 minutos cada,
já no ensino médio a quantidade era de uma aula semanal.
A maioria dos discentes advinha de famílias carentes e viviam em
situações de vulnerabilidade, como consequência muitos não possuíam

1002
meios para assistir às aulas online e meu público nas aulas síncronas
era mínimo, tanto por problemas financeiros que impossibilitavam a
aquisição de aparelhos e internet como pela indispensabilidade dos es-
tudantes trabalharem para contribuir com a renda familiar, dessa forma,
muitos optaram pelo estudo de forma assíncrona, isto significava bus-
car e entregar uma vez por mês o material impresso na escola.
No primeiro ano de ensino remoto a participação dos alunos nas
aulas síncronas além de escassa, oscilava muito, a plataforma utilizada
pela rede de ensino, Microsoft Teams, não foi bem aceita pelos alunos,
que alegavam uma funcionalidade ruim no aparelho celular, visto que
muitos possuíam aparelhos antigos e com pouca memória, além da falta
de dados para trafegar pela internet, com isso a comunicação ocorria,
na maior parte do tempo, pelo aplicativo whatsApp que já era de uso
frequente por todos e beneficiado com dados ilimitados por diversas
operadoras de telefonia. Já no segundo ano, a plataforma escolhida foi
a Google classroom que se mostrou mais prática e acessível, o que causou
uma melhor participação dos alunos nas aulas. Porém, a meu ver, o
ensino remoto não foi bem visto pelo público estudantil, muitos recla-
mavam, diziam sentir saudade da escola, alegavam que não conseguiam
se concentrar nos estudos em casa e que as instruções e explicações dos
professores faziam falta. Sobre isso, a pesquisa de Médici, Tatto e Leão
(2020), feita com estudantes de escolas públicas mato-grossenses, evi-
denciou, além das diferenças do ensino remoto em escolas públicas e
privadas, o descrédito dos alunos pelo ensino a distância.
Apesar disso, a preocupação com os alunos que optaram pelo ensi-
no assíncrono era grande, receber uma apostila respondida não fornecia
um feedback satisfatório sobre o desempenho do discente, ademais, ha-
via o montante que desistiu de estudar. A pandemia e suas consequên-
cias foram avassaladoras para muitos alunos, problemas como fome,
saúde, desemprego, depressão, abandono familiar, violência doméstica
nunca atrapalharam tanto o acesso à educação como no contexto pan-
dêmico. Nesse sentido, corroboro com Santos (2020) quando afirma
que a pandemia não foi sentida da mesma forma por todos e que pes-
soas de grupos minoritários foram as mais afetadas.

1003
Ademais, enquanto professora, tive dificuldades para me adaptar a
ministrar aulas para “telas”, nas quais quase sempre nem via meu públi-
co, pois mantinham as câmeras desligadas, era inevitável a sensação de
solidão, a ausência do feedback instantâneo que temos quando estamos
em sala de aula, como expressões faciais e corporais, comportamento
nos dizem muito sobre o andamento da aula. Outro fator negativo foi
a sobrecarga de trabalho, apesar de estarmos em casa, o cansaço era
maior e era muito mais difícil se desligar do trabalho, não responder
uma dúvida enviada pelo WhatsApp, não atender uma solicitação da
coordenação ou editar um material, por exemplo, me percebi cheia de
funções burocráticas, a demanda de elaboração de materiais didáticos
aumentou consideravelmente, o que causava uma sensação de robotiza-
ção do trabalho e ausência de momentos para refletir e repensar minhas
práticas e planejamentos.
Diante de uma realidade tão delicada como a pandemia, o pro-
fessor foi bombardeado com diversas demandas e obrigações, além de
prover os próprios equipamentos de trabalho: energia elétrica, internet,
computador, etc. Tudo isso de sua residência, consequentemente, a pri-
vacidade da vida pessoal foi posta em xeque, se desligar do trabalho
passou a ser um problema para muitos professores, o lar que deveria ser
um local privado e de descanso virou sinônimo de trabalho e preocu-
pações, já que a nova modalidade de ensino em um cenário de pande-
mia mundial tornava as coisas mais difíceis. De acordo com Cipriano e
Almeida (2020), ao tratarem sobre a educação em tempos de pandemia
e seus impactos para a saúde mental de todos os envolvidos no processo
concluíram que

[...] professores e alunos estão passando por dificuldades de es-


trutura e oferta de serviços destinados a realização de atividades
educativas por meio dos sistemas escolares e que por esse mo-
tivo, apresentam dificuldades, tais como a ansiedade, o estresse
emocional, a privação de sono, o distanciamento social e o iso-
lamento social (necessários para conter o avanço da Covid-19).
(CIPRIANO; ALMEIDA, 2020, p.9)

1004
Não posso deixar de evidenciar e valorizar o acompanhamento e
participação de uma pequena parcela dos discentes que, apesar das di-
ficuldades de uma nova modalidade de ensino e as suas demandas, se
fizeram presentes. No entanto, esses alunos não tinham todas as neces-
sidades supridas, faziam muito com o mínimo, fato que exemplifica o
quão diferente seria o cenário do ensino remoto se a acessibilidade di-
gital e outras necessidades básicas como alimentação e moradia fossem
direitos garantidos.
Em suma, ensinar durante a pandemia foi uma tarefa laboriosa
devido às incertezas e preocupações advindas do momento, porém de
muito aprendizado, por isso acredito ser de extrema importância re-
fletir, repensar e investigar tudo que ocorreu no âmbito educacional
durante esse período visando melhorias, adequações e/ou mudanças,
pois a obrigatoriedade do uso de tecnologias foi uma prova inegável da
necessidade de adequar as práticas educacionais.

5. Considerações finais
Tratar sobre o trabalho docente durante o período pandêmico, so-
bretudo a modalidade remota, não é um processo simples, olhar para
trás e pensar no que poderia ter sido feito melhor ou diferente é dolo-
roso, mas aprender é algo intrínseco à vida humana, estamos constan-
temente aprendendo, na profissão de educadores, acredito que estamos
em vantagem sobre isso, Freire (1996) afirma que ensinar exige reflexão
crítica sobre a prática, visto que “É pensando criticamente a prática de
hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática.” (FREIRE,
1996, p.39). Logo, o momento é de pensar, refletir e investigar para
que mudanças e melhorias sejam postas em prática, já que as evidên-
cias alertam para a urgência de promover multiletramentos no contexto
educacional, dentre eles, o digital.
A experiência também evidenciou a importância da participação
da família para um bom desenvolvimento acadêmico dos estudantes,
a falta de acompanhamento e orientação fez com que jovens e crianças
não conseguissem estabelecer uma rotina de estudos e realizar as tarefas,

1005
pois para a maioria dos discentes, a única orientação que recebiam era
dos professores, com a pandemia e os problemas financeiros acentua-
dos, muitos não dispunham de meios para manter uma comunicação
com os docentes, ou seja, a exclusão digital foi o principal vilão do en-
sino remoto insatisfatório. Sobre isso, Botelho e Leffa (2009) orientam
que apesar de ser um fato, o que se deve fazer é compreender os arti-
fícios utilizados pela sociedade para que a exclusão digital ocorra para
então buscar meios de superação.
Ademais, o ensino durante a pandemia mostrou que frequentar o
espaço físico da escola e a interação presencial com professor e colegas são
indispensáveis para a garantia de um bom processo de ensino-aprendi-
zagem na educação básica, dessa forma, entendo que ambos são primor-
diais para o desenvolvimento humano. Portanto, instituições e profissio-
nais da educação devem incorporar com mais frequência as tecnologias,
mídias e plataformas digitais ao contexto educacional através de uma
perspectiva crítica-reflexiva, nesse sentido, pactuo com Temóteo (2021)
quando defende que “Nunca foi tão necessário reconhecer a importância
da inclusão digital, nas instituições de ensino, e, para isso, devemos re-
querer a otimização no gerenciamento das políticas públicas para a edu-
cação, em nível federal, estadual e municipal [...].” (TEMÓTEO, 2021,
p.82). Isto é, as inovações e novas formas de aprendizagem proporciona-
das pela tecnologia não anulam a importância da escola e do professor
como essenciais ao processo de aprendizagem, ao contrário, reforçam a
importante missão de ambos para a promoção dos multiletramentos.

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DE UMA PROFESSORA DE INGLÊS

Raquel Siqueira Buonocore FURB199


Cyntia Bailer FURB200

RESUMO: A educação especial inserida no cenário da educação básica brasileira


encontra-se embasada em documentos oficiais (BRASIL, 1996, 2001, 2006a,
2006b). No entanto, sentiu-se a necessidade de ampliar o repertório de materiais
que auxiliam na prática pedagógica em língua inglesa para deficientes visuais em
contexto de escola de idiomas. Desta forma, esta comunicação visa relatar a
experiência de uma professora nesse contexto. A instituição segue um material
e metodologia padronizados que atendem às necessidades de estudantes típicos,
não suprindo as necessidades de estudantes com deficiência visual. Diante deste
contexto, a professora realizou adaptações para contextualizar conteúdos, como
a confecção de mapas com relevo para localização geográfica e material tátil
para o trabalho com preposições. O trabalho com instrumentos musicais, por
exemplo, utilizou-se de estratégias para a introdução aos sons de instrumentos
por meio da plataforma online YouTube. As adaptações descritas neste relato
foram inspiradas no trabalho realizado por Retorta (2017), Teaching English to
the visually impaired: a handbook for Brazilian teachers, a qual propõe uma série
de estratégias para o ensino de língua inglesa para estudantes com deficiência
visual no Brasil. A utilização dessas estratégias combinadas ao feedback constante
da estudante permitiu a reflexão e o realinhamento constante da metodologia
desenvolvida frente aos desafios da prática pedagógica com público em questão.
PALAVRAS-CHAVE: Prática pedagógica. Ensino de inglês. Deficiência
Visual. Inclusão.
198
“Olhar de Sarinha” se refere ao perfil @olhardesarinha na rede social Instagram,
pertencente a uma aluna cega, a qual a primeira autora deste trabalho teve o
privilégio de ensinar inglês e em cuja experiência se baseia este relato.
199
Graduada em Ciências Teológicas. Graduanda em Letras Inglês. Pós-graduada
em Neuropsicopedagogia. Mestranda em Educação pela Universidade Regional
de Blumenau (FURB). E-mail: rbuonocore@furb.br.
200
Graduada em Letras Português/Inglês, Mestre em Letras e Doutora em Estu-
dos da Linguagem. Docente no Programa de Pós-Graduação em Educação da
FURB. E-mail: cbailer@furb.br.

1009
ABSTRACT: Special education in the Brazilian basic education scenario
is based on official documents (BRASIL, 1996, 2001, 2006a, 2006b).
Nonetheless, it is needed to expand the repertoire of materials that help in
the pedagogical practice in English for the visually impaired in the context of
a language school. Thus, this communication aims to report the experience
of a teacher in this context. The institution follows standardized material
and methodology that meet the needs of typical students, not meeting the
needs of students with visual impairment. Given this context, the teacher
made adaptations to contextualize content, such as making maps with relief
for geographic location and tactile material for working with prepositions.
The work with musical instruments, for instance, used strategies to introduce
the sounds of instruments through the online platform YouTube. The
adaptations described in this report were inspired by the work carried out
by Retorta (2017), Teaching English to the visually impaired: a handbook for
Brazilian teachers, who proposes a series of strategies for teaching English to
visually impaired students in Brazil. The use of these strategies combined
with the constant feedback from the student allowed reflection and constant
realignment of the methodology developed in the face of the challenges of
pedagogical practice with the public in question.
KEYWORDS: Pedagogical practice. Teaching of English. Visual impairment.
Inclusion.

1. Introdução
Embora a Educação Especial esteja amparada por documentos ofi-
ciais no cenário da educação básica brasileira, como a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), Diretrizes Nacionais
para a Educação Especial na Educação Básica (BRASIL, 2001), Saberes
e Práticas da Inclusão (BRASIL, 2006) e Ensaios Pedagógicos: cons-
truindo escolas inclusivas (BRASIL, 2005), educadores enfrentam
grandes desafios para pôr em prática a inclusão através da Educação
Especial na Educação Básica (AMORIM et al., 2018). Tais desafios se
acentuam levando em consideração as limitações impostas pelo ensino
de inglês para estudantes cegos (RETORTA, 2017). No contexto de
escolas de idiomas, em que se utilizam materiais didáticos e metodolo-
gia padronizados geralmente destinados às necessidades de estudantes
típicos, este desafio se torna ainda mais intenso.

1010
Nesse contexto, sentiu-se a necessidade de ampliar o repertório de
materiais que auxiliam na prática pedagógica em língua inglesa para
deficientes visuais em contexto de escola de idiomas com a finalidade
de multiplicar seu capital social e cultural e promover inclusão na escola
para que sejam bem-sucedidos em uma comunidade global baseada em
informação. Desta forma, esta comunicação visa relatar a experiência
de uma professora inserida neste contexto, bem como demonstrar pos-
sibilidades de inclusão para alunos com deficiência visual em escolas de
idiomas.
Para isto, fez-se necessário ampliar a compreensão a respeito da
Educação Especial e suas fases, eventos marcantes na trajetória da
Educação Especial no contexto brasileiro, bem como de possibilidades
práticas para a inclusão de alunos cegos.

2. As quatro fases da Educação Especial


A Educação Especial foi e tem sido palco de diversas transforma-
ções. Blanco (2003) as organiza em quatro fases: exclusão, segregação,
integração e inclusão total. A fase da exclusão, no período anterior ao
século XIX, caracteriza-se pela exclusão da pessoa com deficiência e
condições excepcionais a categorizando como “indigna da educação
escolar” (BLANCO, 2003, p. 72). Em relação à fase da segregação,
Amaral (2001) chama a atenção do leitor para o final do século XVIII e
início do século XIX onde, segundo ele, houve uma divisão no exercício
da educação, dando gênese a instituições especializadas no tratamento
à pessoa com deficiência. Seria, portanto, este o marco do nascimento
da Educação Especial. A principal característica desta educação era a
segregação dos indivíduos conforme seu quociente intelectual diagnos-
ticado. Tais instituições possuíam núcleos especializados que constitu-
íam uma educação diferenciada, ou seja, um subsistema que não se
integrava à educação regular.
A partir de 1970, observa-se a terceira fase da Educação Especial,
a fase da integração (BLANCO, 2003), em que a pessoa com deficiên-
cia passou a ter acesso à educação regular. No entanto, era necessário

1011
que se “adaptasse e não causasse nenhum transtorno” (p. 28). Dessa
forma, as escolas regulares passaram a aceitar estudantes com deficiên-
cia sem, contudo, realizar qualquer modificação em seu sistema. Só a
partir de 1990 é que se observa a ideia da Educação Inclusiva, apoiada
em um movimento global de inclusão social marcado pela Conferência
Mundial Sobre Necessidades Educativas Especiais, na Espanha em 1994
(UNESCO, 2022). Nasce então a Educação Inclusiva, com intuito de
se opor de forma crítica às “práticas marginalizantes encontradas no
passado, inclusive as da própria Educação Especial” (NASCIMENTO,
2014, p. 18). Constitui-se, então, uma forma mais intensa de legitimar
a inclusão de toda pessoa com deficiência na educação regular.
Nesse ínterim, observa-se uma anfibologia entre Ensino Inclusivo e
Educação Especial. Lima (2006) explica que embora o Ensino Inclusivo
contemple a Educação Especial, ambos não devem ser confundidos.
Enquanto a Educação Especial tem intrínseca à sua origem a proposta
de promover uma educação para todos, a Escola Inclusiva reivindica
o direito de todos os alunos estarem juntos e encontra-se baseada nos
direitos humanos.

3. Breve panorama de marcos históricos da Educação Especial


no Brasil
O primeiro marco histórico da Educação Especial no contexto
brasileiro é a criação do Instituto dos Meninos Cegos, em 1854, e do
Instituto dos Surdos-Mudos em 1857 (MAZZOTTA, 1982). Outro
marco relevante é a criação da primeira escola especial da Associação
de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) em 1954 (CORSINI;
CASAGRANDE, 2016). Romero (2006) elucida que houve um perío-
do de ampliação das instituições especializadas privadas como resposta
à omissão do poder público. E Bueno (1993) esclarece que no fim dos
anos 1970 registrou-se o início das movimentações relativas à formação
de professores para a Educação Especial.
A Conferência Mundial Sobre Necessidades Educativas Especiais
de 1994 marcou o início das movimentações para a fundamentação da

1012
educação inclusiva no Brasil (UNESCO, 2022). No entanto, Corsini e
Casagrande (2016) ressaltam que só se observa mudança nas políticas
com a Lei nº 10.172/2001, do Plano Nacional de Educação, que pre-
coniza a formação de recursos humanos além de ambientes adaptados
a oferecer atendimento aos educandos especiais e a resolução CNE/CP
nº 1/2002 voltada à formação de professores para as especificidades da
pessoa com deficiência.

4. Deficiência visual e ensino de inglês


No tocante à deficiência visual, Ochaita e Rosa (1995) definem
cegueira como o comprometimento total ou parcial de um dos canais
de informação sensorial, a visão. Quanto à aprendizagem e desenvolvi-
mento, Souza e do Nascimento (2019) comentam sobre as consequên-
cias deste déficit na vida da pessoa deficiente visual, seja cega ou com
baixa visão, e a necessidade de elaboração de diferentes metodologias
para que se facilite a construção do saber.
Tendo em mente as possibilidades de percepção do mundo pre-
sentes na vida da pessoa deficiente visual advindas das modalidades
sensoriais que possui (SOUZA; DO NASCIMENTO, 2019) e a ne-
cessidade de orientações às práticas pedagógicas, houve uma movi-
mentação no sentido de equipar profissionais da educação por meio de
documentos como o Programa Educação Inclusiva: direito à diversi-
dade (2003 a 2007), o Programa de Implantação de Salas de Recursos
Multifuncionais (2005 a 2008) e o Programa de Formação Continuada
de Professores na Educação Especial – modalidade à distância (2010).
Para além dessas orientações, Retorta (2017) propõe uma série de estra-
tégias para o ensino de língua inglesa para estudantes com deficiência
visual no Brasil, base para experiência relatada neste trabalho.

5. Relato: O “olhar de Sarinha”


Este trabalho relata a experiência de adaptar atividades para o en-
sino de inglês a uma estudante cega em contexto de escola de idiomas,

1013
mais especificamente, as adaptações efetivadas pela primeira autora de-
safiada, após 20 anos de docência, a ensinar uma estudante com defici-
ência visual, sob orientação da segunda autora.
A estudante Sara, perspicaz e altamente engajada com as questões
de inclusão de pessoas com deficiência visual, é chamada de influencer
por conta de seu perfil @olhardesarinha na rede social Instagram, onde
apresenta informação, curiosidades e dicas para auxiliar deficientes vi-
suais em tarefas do dia a dia. Sara tem como sonho aprender a falar
inglês e se tornar professora. Por isso, procurou uma escola de idiomas
em Blumenau/SC, onde reside, o que a trouxe ao contato da primeira
autora deste trabalho, professora e coordenadora pedagógica. Em um
primeiro momento após entrevista com a direção, muitas dúvidas sur-
giram em relação ao preparo da escola para recebê-la. A instituição faz
parte de uma franquia nacional e a matriz, localizada em outro estado,
foi contatada para verificar as possibilidades de receber a aluna e a exis-
tência de material adaptado. Todavia, a franquia não dispõe de material
adaptado, possui um método próprio majoritariamente visual, e por es-
tes motivos aconselhou a escola que orientasse a jovem a procurar outra
escola com uma metodologia mais flexível e adaptada.
Entretanto, a diretoria da unidade optou por fazer um teste, ofe-
receu à Sara a oportunidade de experienciar e auxiliar uma professora
da instituição a desenvolver uma forma própria de aprender através do
material da franquia, adaptando a metodologia às suas necessidades. O
material didático escrito foi enviado pela estudante à sua professora de
inclusão e traduzido para Braille, pois a estudante possui o equipamen-
to linha baile que promove a leitura e escrita de textos em Braille para
alunos com deficiência visual.
Neste contexto, a primeira autora recebeu Sara como sua estudante
e pode dizer abertamente que Sara tem a auxiliado muito a quebrar
barreiras que ela mesma não sabia que tinha. Uma dessas barreiras está
relacionada ao material didático e metodologia da franquia. Como pro-
fessores, principalmente no contexto de escola de idiomas, corremos
um grande risco, de acordo com Giesta (2007), de conferir ao livro

1014
didático o papel dominante na nossa abordagem teórico-metodológica.
Nessa experiência, o livro didático precisou retornar ao seu papel de
apoio, dando lugar a novas práticas inclusivas e adaptadas.
Como professora, a primeira autora tinha mais dúvidas que respos-
tas, pois nunca havia vivenciado situação semelhante. Buscou então o
auxílio da segunda autora, que indicou literaturas que pudessem ofere-
cer algum suporte, como o trabalho de Retorta (2017), e se apropriar
da literatura e conviver semanalmente com Sara, começou a vislumbrar
novos horizontes para sua práxis.

5.1 Descrição de imagens


Um dos primeiros desafios foi a descrição de imagens. Segundo
a Nota Técnica nº 21/2012/MEC/SECADI/DPEE, “A descrição de
imagens é a tradução em palavras, a construção de retrato verbal de pes-
soas, paisagens, objetos, cenas e ambientes sem expressar julgamentos
ou opiniões pessoais a respeito.” (BRASIL, 2012, p. 2). A metodologia
da escola se divide em duas partes: oral e escrita, que precisaram ser
adaptadas. Durante a fase oral, o professor se utiliza de figuras, prin-
cipalmente para ensinar vocabulário e trabalhar o conteúdo linguísti-
co através de pequenas histórias ilustradas. As imagens relacionadas ao
vocabulário e ilustração das histórias foram descritas, todas em inglês,
conforme recomendado pela escola. Em alguns casos, foi necessário uti-
lizar-se da língua portuguesa como suporte na descrição e conforme a
estudante foi desenvolvendo suas habilidades na língua inglesa, o uso de
português foi diminuindo.

5.2 Recursos táteis


Embora a estudante possuísse o material didático da escola de idio-
mas adaptado em Braille por sua professora de inclusão, para o desen-
volvimento da parte escrita principalmente relacionado às preposições,
mapas e localização, a primeira autora percebeu que seria insuficiente
apenas a leitura do material e a descrição em inglês das imagens. Desta
forma, foi necessário explorar outras possibilidades de percepção do

1015
mundo (SOUZA; DO NASCIMENTO, 2019). Inspirada pelo traba-
lho de Retorta (2017), confeccionou mapas com relevo para localização
geográfica e material tátil para o trabalho com preposições. Com mate-
riais simples que possuía à mão e sem muita experiência prática, buscou
proporcionar à estudante uma experiência mais completa e imersiva,
repleta de significados.
Na figura 1, são apresentadas as adaptações realizadas para a aula
na qual trabalhamos os países Itália, Índia e Tailândia e seus respectivos
gentílicos. Para este fim, os mapas foram impressos, contornados com
cola glitter para adquirir relevo. Desta forma, a estudante foi capaz de
conhecer o formato dos mapas e aprender vocabulário referente aos
nomes e gentílicos em inglês.

Figura 1: Material confeccionado para o trabalho com mapas

Fonte: arquivo pessoal

1016
Na figura 2, apresenta-se o material utilizado sobre preposições em
inglês. O objetivo era ensinar as preposições sem precisar da tradução.
O material adaptado foi feito com materiais simples como fita dupla
face e adesivos de folhas. A estudante demonstrou interesse pela ativi-
dade e a professora criou um jogo, no qual ela falava uma preposição
e a estudante apontava com as mãos a posição (em baixo, em cima, ao
lado). Outros jogos foram realizados: a professora misturava as folhas
e entregava a ela uma a uma e ela fazia o reconhecimento tátil mencio-
nando a preposição em inglês. Também, a estudante dizia um número
que correspondia a uma preposição misteriosa que somente a professora
sabia, que entregava a ela o papel com a preposição selecionada miste-
riosamente e ela deveria utilizá-la para criar uma frase em inglês.

Figura 2: Material confeccionado para o trabalho com preposições

Fonte: arquivo pessoal

1017
5.3 Recursos auditivos
Retorta (2017) enfatiza o uso de recursos auditivos para estu-
dantes com deficiência visual. Em uma aula sobre instrumentos mu-
sicais, a professora fez a descrição das imagens do material didático,
o que parecia não fazer muito sentido para a estudante. A partir das
práticas sugeridas por Retorta, a professora fez uso do YouTube para
conectar os instrumentos com os sons que cada um produz. Como
de costume, após a aula, ela solicitou à aluna feedback em relação às
atividades. A estudante relatou que, pela primeira vez, havia com-
preendido o que era uma bateria, achou curioso que é constituída de
várias partes e se surpreendeu ao poder escutar o som de cada parte
daquele instrumento separadamente e depois no contexto musical
em um solo.

6. Considerações finais
Há profissionais e instituições que acreditam que a presença de
um estudante com deficiência acarretará uma quebra na rotina escolar
(CUNHA, 2015). Se Sara e a direção da escola tivessem dado ouvi-
dos ao posicionamento da franquia, questionamos o que teria sido do
seu potencial. Blanco (2003) nos provoca a pensar uma escola onde é
possível não somente o acesso, mas a permanência de todos os alunos,
constituindo assim realmente uma educação inclusiva, uma sociedade
inclusiva, melhor e digna para todos (NASCIMENTO, 2014).
Isso não quer dizer que o caminho é fácil, mas em nosso caso, a
utilização de estratégias combinadas ao feedback sempre presente da es-
tudante permitiu a reflexão e o realinhamento constante da metodolo-
gia resultando em aprendizagem. Além de apresentar visível desenvolvi-
mento, as notas da estudante nas avaliações da escola, com os mesmos
instrumentos aplicados aos alunos típicos, foram excelentes com res-
postas na forma oral e escrita em formato digital. A estudante é capaz
de se comunicar de maneira excelente no nível básico e se prepara para
seguir ao nível intermediário de inglês.

1018
Tal desenvolvimento só foi possível pois a estudante teve a oportu-
nidade de tentar. E a professora recebeu a oportunidade de se desafiar,
de buscar conhecimento e de aprender sobre o mundo do deficien-
te visual. Sara nos tornou profissionais mais sensíveis, mais engajadas.
Gratidão à Sara por ter nos aberto os olhos para que pudéssemos enxer-
gar o mundo por seus olhos, o “olhar de Sarinha”.

Referências
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1020
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

LETRAMENTO IDEOLÓGICO E AÇÃO


DIALÓGICA EM CÍRCULO DE LEITURA NO
ENSINO BÁSICO

Reinaldo da Silva Kreppke (UFJF)

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar um evento de


letramento literário em turmas do 9º ano do ensino fundamental na disciplina
de Língua Portuguesa em uma escola da rede estadual de Minas Gerais,
com foco nos procedimentos e práticas empreendidas a partir da leitura do
“O Diário de Anne Frank” (adaptação de Ari Folman, ilustração de David
Polonsky e tradução de Raquel Zampil, 2018). Do direito à literatura à
perseguição ideológica, das inquietações das juventudes às perseguições
morais e apagamentos, nos embasamos, para esta análise, no debate acerca
do direito à Literatura de Antonio Candido (1995), nas epistemologias
do Sul de Boaventura de Sousa Santos (2019), na ação dialógica proposta
por Paulo Freire (2021), nos letramentos ideológico e autônomo segundo
Brian Street (2014) e, por fim, na identificação e empatia na leitura literária
a partir de Lynn Hunt (2009). A metodologia para este trabalho parte da
narrativização e da reflexão epistêmica da prática docente (CADILHE, 2017;
2020) do Círculo de Leitura atravessada ainda pela análise da obra da esfera
artístico-literária mobilizada, considerando ainda a participação dos alunos
e as implicações subjetivas e contextuais no desenvolvimento da atividade.
Reafirmando o compromisso com uma educação em Direitos Humanos que
busque uma cultura de respeito à dignidade humana, de forma preliminar,
o trabalho demonstra como a educação linguística, o letramento literário e
crítico e o caráter humanizador da literatura podem ampliar a visão crítica dos
discentes e o seu posicionamento diante dos conflitos atuais.
PALAVRAS-CHAVES: Letramento literário; Pedagogia crítica; Direitos
Humanos.

ABSTRACT: This work aims to analyze a literary literacy event in classes of


the 9th grade of elementary school in the subject of Portuguese Language
in a state school in Minas Gerais, focusing on the procedures and practices
undertaken from the reading of “O Diário de Anne Frank” (adaptation by Ari
Folman, illustration by David Polonsky and translation by Raquel Zampil,
2018). From the right to literature to ideological persecution, from youth

1021
concerns to moral persecution and erasures, we base this analysis on the debate
about the right to literature by Antonio Candido (1995), in the epistemologies
of the South by Boaventura de Sousa Santos (2019), in the dialogic action
proposed by Paulo Freire (2021), in the ideological and autonomous literacies
according to Brian Street (2014) and, finally, in the identification and empathy
in literary reading from Lynn Hunt (2009). The methodology for this work
starts from the narrativization and epistemic reflection of the teaching practice
(CADILHE, 2017; 2020) of the Reading Circle, crossed by the analysis of the
work of the mobilized artistic-literary sphere, also considering the participation
of the students and the subjective and contexts in the development of the
activity. Reaffirming the commitment to an education in Human Rights that
seeks a culture of respect for human dignity, in a preliminary way, the work
demonstrates how linguistic education, literary and critical literacy and the
humanizing character of literature can broaden the critical view of students
and its position in the face of current conflicts.
KEYWORDS: Literary literacy; critical pedagogy; Human rights.

“Recebemos da biblioteca um livro com o polêmico título de


‘O que você acha da jovem moderna?’ Gostaria de tratar desse
assunto hoje. A escritora critica a ‘juventude atual’ da cabeça
aos pés, ainda que não condene todos como ‘casos sem espe-
rança’. Pelo contrário, ela acredita que os jovens têm poder de
construir um mundo maior, melhor e mais belo, mas que se
ocupam com coisas superficiais, sem pensar na beleza verdadei-
ra.” Anne Frank
“Para que a literatura chamada erudita deixe de ser privilégio
de pequenos grupos, é preciso que a organização da sociedade
seja feita de maneira a garantir uma distribuição equitativa dos
bens.” Antonio Candido

1. Introdução: Professor, mas como eles sabiam quem era


judeu?
Este trabalho tem como objetivo analisar um evento de letramento
literário em turmas do 9º ano do ensino fundamental na disciplina de
Língua Portuguesa em uma escola da rede estadual de Minas Gerais,

1022
com foco nos procedimentos e práticas empreendidas a partir da leitura
do “O Diário de Anne Frank”201. Do direito à literatura à perseguição
ideológica, das inquietações das juventudes às perseguições morais e
apagamentos, nos embasamos para esta análise no debate acerca do di-
reito à Literatura de Antonio Candido (1995), as epistemologias do Sul
de Boaventura de Sousa Santos (2019), a ação dialógica proposta por
Paulo Freire (2021), os letramentos ideológico e autônomo segundo
Brian Street (2014) e, por fim, a identificação e empatia na leitura lite-
rária a partir de Lynn Hunt (2009).
A metodologia para este trabalho parte da narrativização e da re-
flexão epistêmica da prática docente (CADILHE, 2020) do Círculo
de Leitura atravessada ainda pela análise da obra da esfera artístico-
-literária mobilizada, considerando ainda a participação dos alunos e
as implicações subjetivas e contextuais no desenvolvimento da ativi-
dade. Reafirmando o compromisso com uma educação em Direitos
Humanos que busque uma cultura de respeito à dignidade humana, de
forma preliminar, o trabalho demonstra como a educação linguística, o
letramento literário e crítico e o caráter humanizador da literatura po-
dem ampliar a visão crítica dos discentes e o seu posicionamento diante
dos conflitos atuais.
Nos encontrávamos semanalmente em 5 horas/aulas. Destas, pelo
menos uma era dedicada exclusivamente à leitura literária. A partir des-
sas aulas, no ano de 2019, desenvolvemos os círculos de leitura em
dois movimentos: as leituras individuais – com obras escolhidas pelos
alunos, fossem elas trazidas de casa, virtuais ou tomadas de empréstimo
na biblioteca da escola, com a recorrência cíclica bimestral, uma vez que
encerrávamos os bimestres com o seminário de apresentações e troca
de leituras –; e as leituras coletivas – com destaque aqui à adaptação da
obra de Anne Frank.
Para esta narrativa, foco nos procedimentos e práticas mobilizadas
a partir de “O diário de Anne Frank” com as duas turmas de 9º ano
201
Adaptação de Ari Folman, ilustração de David Polonsky e tradução de Raquel
Zampil, 2018.

1023
do ensino fundamental com que trabalhei durante os 2º e 3º bimestres
do ano letivo de 2019. As turmas compunham-se, em média, de 35
alunos, frequentes, de diferentes bairros da cidade, com idade média de
14 anos. Uma das turmas, de maneira geral, era mais comunicativa que
a outra, contudo ambas eram bem proativas. Os poucos alunos que se
recusavam a participar de alguma proposição logo foram percebendo
que isso não os distinguia como independentes ou indiferentes, mas os
excluía do conjunto da classe – acredito que foram percebendo que as
participações eram diferentes, ao modo de cada um, e que ambas eram
valorizadas.
Com o cuidado de não reduzir o letramento literário202 às estraté-
gias de leitura empenhadas a tal tipologia – sobretudo pelo viés de uma
literatura com um fim em si mesma, como por muitas vezes é tratada
no processo de escolarização –, não só busquei com que ela dialogasse
com outras atividades propostas, fossem elas direta ou indiretamente
ligadas à obra em questão, mas que pudessem colocar em evidência o
caráter humanizador das obras da esfera artístico-literária.
Em relação ao desenvolvimento deste círculo de leitura, foram pro-
gramadas 20 aulas exclusivas para apreciação do texto, distribuídas ao
longo do 2º e 3º bimestres, entre outras, talvez mais que vinte, em des-
dobramentos, que trataremos adiante. Por se tratar de um longo perío-
do de trabalho com a mesma obra, tentei empenhar práticas diversifi-
cadas de leitura – silenciosa, protocolada, compartilhada – alternadas e
que fossem provocativas, pelo menos na intenção, e também em acordo
com a tessitura textual.
Em tese, nossa viagem tinha uma rota, pontos breves de ancora-
gem e destinos possíveis, eu apenas os convidei à embarcação. Contudo,
os alunos de fato é que se colocaram como mediadores, eu me tornei
junto a eles um leitor colaborativo. Nossa bússola foi a curiosidade e o
202
Letramento literário, neste artigo, baseia-se na concepção da apropriação do
texto literário em suas diversas esferas, não distintas, mas complementares, da
experiência de leitura, do mergulho estético à apropriação crítica das temáticas
com vistas à reflexão tanto da interação texto-leitor quanto de uma percepção de
justiça social. (PAULINO; COSSON., 2004)

1024
empenho desses pequenos navegantes. A exemplo, tínhamos uma leitu-
ra compartilhada a ser feita em sala de aula por questão dos desdobra-
mentos aos quais eu me guiava, mas alunos argumentaram que havia
um sol lindo, diante daquele frio estranho/juizforano pela manhã, e que
se empenhariam em fazer leituras em um tom mais alto. E arcaram com
o compromisso leitor.
Explorávamos ao máximo os espaços da escola, além da própria sala
de aula, para fazermos a leitura: abaixo das árvores, nas escadarias, no
palco externo. O importante era haver o mínimo de confortabilidade
e a possibilidade de imersão na leitura, uma vez que “a coisa de sair de
sala” tem um ar transgressor, no entanto, efêmero, pois não se perde o
objetivo da leitura e aqueles mais dispersos vão percebendo aos poucos
que a “galera” está lendo, que o professor está lendo, que os funcioná-
rios que passam pelos corredores estão observando os alunos lerem. Ler,
neste espaço/tempo, é enturmar-se. Poderia ser receio também de, ao
voltar à sala, ver-se diante de uma provocação acerca da leitura e mais
uma vez não estar enturmado.
Ainda sobre as estratégias de leitura, a adaptação de “O Diário de
Anne Frank” preservava, em alguns momentos, longos trechos do di-
ário, limitando-se a alguma ilustração. Nesse tipo de trecho do texto,
eu priorizava a leitura silenciosa, seguida de conversas sobre as reflexões
feitas por Anne, tentando sempre partir dos elementos que chamaram
a atenção dos alunos. Foram raras as vezes em que tive que recorrer a
indagações pré-estruturadas, o que não significa que as participações
fossem sempre amplas, no entanto seu aumento durante o desenvolvi-
mento do círculo era perceptível, especialmente ao tratar de conflitos
familiares ou das reflexões mais subjetivas da protagonista.
Nas leituras protocoladas e compartilhadas, a participação dos alu-
nos era pré-estruturada, diretamente quando ao fim da aula escolhíamos
quem seriam os próximos leitores, divididos em narrador e personagens,
e indiretamente quando eu pedia alguma pesquisa prévia de conceitos
que seriam importantes para as próximas leituras, como holocausto,
nazismo, ou ainda, com uma frequência muito maior, questões que

1025
iam sendo levantadas durantes as leituras, como a que dá nome a esta
introdução: “Professor, como eles sabiam quem era judeu?”. Indagações
como essa iam moldando nosso percurso de leitura, pesquisa e relação
com o texto.
Além da leitura propriamente dita, mantínhamos um diário pesso-
al que eu apenas registrava frequência de escrita, não analisava ou lia o
conteúdo. Aquele era um espaço íntimo para o aluno. Eu me limitava,
neste exercício de escrita, a provocar reflexões que pudessem se mate-
rializar na escrita dos alunos. Essas reflexões iam desde questões mais
específicas do gênero discursivo diário pessoal a proposições reflexivas:
a exemplo, em determinado recorte lido na aula, eu questionava do que
Anne estava falando, se era uma reflexão subjetiva, se era um comen-
tário sobre o contexto vivido ou se era uma descrição da rotina, então
perguntava se eles percebiam diferenças na forma de registrar cada eixo
desses. Outra reflexão neste sentido, é que Anne reescreve seu diário
quando tem a esperança de que ele seja um registro daquele momento
histórico, daí ponderamos a relação entre público e privado, tanto no
diário dela quanto no diário dos próprios alunos.
Ademais a escrita do diário pessoal, também desenvolvemos outras
atividades, porém não com a dedicação necessária, pois o corpo docente
estava em luta contra o governo do estado e tivemos várias paralisações,
o que acabou limitando algumas propostas como a construção coleti-
va de um RPG baseado no Diário. Além disso, muitos temas foram
emergindo no decorrer da leitura – intolerância religiosa, machismo e
feminismo, sexualidade, direito à vida – foram tópicos para a produ-
ção textual argumentativa, comparando o contexto vivido por Anne
Frank e o atual. Embora não tenhamos conseguido levar a cabo o jogo
colaborativo, as várias práticas que acompanharam o processo formam
um conjunto propositivo riquíssimo: a leitura em si, as pesquisas, os
debates, os exercícios de fala e escuta, as escritas pessoais e as coletivas,
abstração empática.
Por fim, destaco a participação dos alunos que foram percebendo
que a aula acontecia porque eles se envolviam proativamente diante

1026
dos desafios da leitura, levantavam questões, propunham temas além
dos que eu julgava serem os mais importantes ou interessantes. Em
síntese, romperam a lógica silenciadora do conteúdo pelo conteúdo, do
comentário vazio que apenas reproduz sem reflexão e se apropriaram da
leitura e da escrita como instrumentos de liberdade e denúncia, seja no
âmbito subjetivo ou dos conflitos sociais. No apanhado geral do ano
letivo, percebo que as enumerações do cotidiano que apareciam na au-
tobiografia do 1º bimestre foram se aprofundando tanto em conteúdo
e reflexão quanto em realização estética, as opressões sociais e subjetivas
foram ganhando novas dimensões, seja na exposição fotográfica, seja
nas clássicas avaliações, seja no debate e cartazes de denúncia das violên-
cias contra as mulheres desenvolvido junto com as estagiárias do curso
de Letras.

2. Por uma análise possível - “Mas com as mulheres é diferente”

(FRANK, 2018, p. 143)

Em O direito à literatura, Antonio Candido (1988) faz a defesa da


fruição da arte e da literatura como bens inalienáveis, em todas as suas
modalidades e níveis. Embora figure no texto, de certa forma, uma re-
lação de poder conflituosa, ou ainda colonizada, entre cultura erudita e
popular, a ideia de fruição de bens culturais marca importante distinção
do que se acumula no senso comum, como se o papel da literatura, por

1027
exemplo, estivesse limitado à recreação ou à instrução pela instrução.
Exatamente pelo fato de ser muito mais que isso, ou seja, a literatura
não é uma experiência inofensiva, que no contexto escolar ela gera con-
flitos, “porque o seu efeito transcende as normas estabelecidas” (p. 176).
Os conflitos existirão e são fundamentais na prática escolar. O que
não deve ser prática é a censura, como o movimento de pais, que em
nome de uma moral excludente, condenou a leitura da adaptação de “O
Diário de Anne Frank” – versão, inclusive, indicada pela UNICEF –
mas que, por outro lado, aceitaram uma outra versão em que trechos re-
flexivos de Anne sobre o corpo feminino e sexualidade foram retirados.
A questão que não se resolve com a exclusão da obra ou permuta por
outra versão é de fato mais complexa: Em tal ato, há uma preservação
da infância e da juventude ou a manutenção da lógica patriarcal sobre
os corpos femininos?
Como nos alerta Boaventura (2019), o não reconhecimento de uma
linha abissal e as exclusões, silenciamentos e violências que ela promove
pode nos levar a uma falsa caracterização dos conflitos sociais, ou ain-
da pode nos levar a um enfrentamento das opressões por vias em que
não seriam reconhecidas suas reais matrizes. Ou seja, acionar os Direitos
Humanos, tal qual foram concebidos, em um ideal de humanidade em
que todos seriam iguais perante a lei seria ignorar não só o limite desta
universalização homogênea como uma série de violências da estrutura so-
cial colonialista que são intrínsecas à dominação capitalista e patriarcal.
Uma importante distinção feita na análise de Santos (2019) é que
com o “fim” do colonialismo histórico “a linha abissal mantém-se sob a
forma de colonialismo de poder, de conhecimento, de ser, e continua a
separar a sociabilidade metropolitana da sociabilidade colonial” (p. 44-
45). Logo, teríamos exclusões abissais e não-abissais e daí a importância
de perceber que a dominação moderna é uma articulação global entre
elas. Portanto:

A agenda política dos grupos que lutam contra a dominação


capitalista, colonial e patriarcal deve, por isso, aceitar como

1028
princípio orientador a ideia de que as exclusões abissais e não-a-
bissais funcionam em articulação e que a luta pela libertação só
será bem sucedida se as várias lutas contra os vários tipos de ex-
clusões forem devidamente articuladas (SANTOS, 2019, p. 44)

Não me espantaria se, a partir da decisão do conselho McMinn


Country School de um distrito do estado norteamericano do Tennessee
em abolir a novela gráfica Maus, de Art Spiegelman, das obras obras re-
comendadas aos alunos da oitava série da rede pública de ensino203, ini-
ciasse-se no Brasil um movimento conservador de caça aos “ratos”, assim
como ocorreu com a adaptação do Diário de Anne aqui mencionada.
Embora possa haver exclusões diversas, na perspectiva da linha
abissal, ou seja, das relações entre regulação/emancipação e apropria-
ção/violência, em nome da “moral e dos bons costumes” movimentos
conservadores articulam-se, quase sempre, na defesa de uma família
abstrata – como se tal fosse homogênea socialmente. No entanto, tal
defesa oblitera as relações entre capitalismo, colonialismo e patriarca-
lismo ao reivindicar como inapropriado, pronográfico ou sexualizado a
escrita de uma menina de 14 anos que abaixo reproduzo:

[...] A parte superior tem dois buraquinhos, e é onde sai a urina.


A parte de baixo parece só pele, e mesmo assim é ali que fica a
vagina. Mal dá para achá-la porque as dobras de pele escondem
a entrada. O buraco é tão pequeno que mal consigo imaginar
como um homem poderia entrar ali, e muito menos como um
bebê pode sair. Já é difícil tentar colocar o dedo indicador lá
dentro. É só isso, e mesmo assim tem um papel tão importante.
(FRANK, 2018, p. 120)

203
Escola dos EUA censura “Maus”, HQ sobre o Holocausto vencedora do Pu-
litzer. Disponível em: https://veja.abril.com.br/ideias/escola-dos-eua-censura-
-maus-hq-sobre-o-holocausto-vencedora-do-pulitzer/. Acesso em: 05 mar. 2022.

1029
Não é aleatório que, de acordo com a BNCC, os mecanismos
reprodutivos e a sexualidade sejam objetos de conhecimento dos alu-
nos do 8º ano do Ensino Fundamental, uma vez que boa parte dos
adolescentes está vivenciando o período de puberdade, que segundo o
Ministério da Saúde tem seu início entre os 8 e 13 anos, para meninas,
e 9 e 14 anos, para meninos (BRASIL, 2018b, p. 429). Assim, orien-
tam as habilidades de Ciências sobre a temática: “(EF08CI08) Analisar
e explicar as transformações que ocorrem na puberdade considerando
a atuação dos hormônios sexuais e do sistema nervoso.”, “(EF08CI11)
Selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da se-
xualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética).” (BRASIL,
2018a, p. 351).
Seria justificável, a partir do trecho da obra destacado acima, proi-
bir a leitura do livro com o fundamento de que a sexualidade seria uma
tarefa exclusiva do âmbito familiar? Ou ainda que o trecho configure
sexualização ou pornografia? Se pensarmos que um dos contextos em
que houve contestação da obra no Brasil foi em um rede de educação
privada que atende à elite paulista, poderíamos pensar em uma exclusão
não-abissal, cujo intento é regulatório, pois em tese as exclusões que
permeariam aquele grupo social também mantém seus privilégios.
Quando analisamos a imagem que ilustra o trecho do diário, per-
cebemos que o incômodo está além do frágil véu de uma sexualização,
pois temos uma intensificação de que o teor da escrita é provocativo em
relação à estrutura patriarcal, primeiro por colocar Peter como um ig-
norante frente à complexidade do corpo feminino, segundo porque há
uma valorização desse corpo. Ao extrapolar a análise do próprio corpo,
enveredando por uma dimensão da sexualidade humana e de descober-
ta de si, não só por compará-lo ao corpo masculino de fotos ou pintu-
ras, mas também pelos desejos que permeavam sua pubescência – “Se
ela soubesse do desejo que eu tinha de beijá-la… [...] Tenho de admitir:
sempre que vejo uma mulher nua, entro em êxtase” (FRANK, 2018, p.
96-97). Anne estaria, aos olhares conservadores, “emancipando-se”, o
que é inadmissível, portanto, a regulação.

1030
Por outro lado, tal regulação não se limita ao núcleo elitista que o
reivindica, pois busca se impor enquanto norma social, seja através dos
discursos conservadores capilarizados em diversas esferas sociais que se
alimentam e perpetuam exclusões, seja através da influência do capital
que lhes dão entrada na máquina estatal, fazendo a manutenção do
círculo vicioso de opressões. Daí, então, a força conservadora de movi-
mentos como o Escola Sem Partido, Brasil Paralelo, Movimento Brasil
Livre, Escolas Abertas que se colocam como defensores de valores como
a família, religião e educação. No entanto, tais defesas não são plurais,
ou seja, buscam silenciar quaisquer expressões que difiram de suas or-
todoxias. Então, aquela exclusão que num primeiro momento parecia
ser não-abissal, e assim busca discursivamente se conservar, quando se
amplia a outras esferas sociais, aprofunda de forma violenta a sociologia
das ausências.
Do discurso de que sexualidade não é tema da escola, mas exclu-
sivo da formação familiar, acusando-o em vários contextos de “aula de
sexo”, corroboram não só com uma estrutura familiar não homogênea,
como não faz parte da realidade do Brasil profundo. Segundo os dados
da UNICEF, de 2017 a 2020, 180 mil crianças e adolescentes sofreram
violência sexual204, sem contar o fato de que o número é subestimado
em 10%, ou seja, 90% dos casos sequer foram notificados ou enten-
didos como abuso, sem contar, ainda, o período pandêmico em que
estes dados se ampliaram205 , sobretudo pelo fato das escolas terem sido
fechadas por razões sanitárias.
Neste outro cenário, está escancarada a linha abissal, pois a apro-
priação do outro se dá em usurpar-lhe o corpo, em ignorar sua huma-
nidade, em objetificá-lo. Estão em evidência não só os exercícios de

204
Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil.
Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/relatorios/panorama-da-violen-
cia-letal-e-sexual-contra-criancas-e-adolescentes-no -brasil. Acesso em: 16 mar.
2022.
205
Violência contra crianças aumenta durante a pandemia no Brasil. Disponível
em:https://agemt.pucsp.br/ noticias /violencia -contra-criancas-aumenta- du-
rante-pandemia-no-brasil. Acesso em: 16 mar. 2022.

1031
violência como os de silenciamento, que se encarnam, muitas vezes, em
uma experiência traumática. Teriam sido esses 180 mil violentados e
os outros tantos milhares, que não denunciaram as vítimas, se tivessem
lido o trecho que abaixo se reproduz:

(FRANK, 2018, p. 93)

Isto demonstra que, mesmo que a escola, especialmente a pública,


venha sendo atacada por discursos conservadores, ela ainda se configura
como um espaço de formação e de resistência necessário. A potência da
leitura libertadora dá-se não apenas pelo escrito, mas pelo que dele toca,
sensibiliza e por tocar subjetividades, potencializa transformações.
Mira-se que, entre a linha abissal e não-abissal que aqui de algu-
ma forma delineadas foram, não se configuraram problemas diretos no
projeto proposto do círculo de leitura temático com a obra, ou seja,
no meu contexto da escola em que a leitura foi desenvolvida, nenhum
responsável veio a mim, ou a um superior, reclamar acerca do conteúdo
do livro que o aluno estava lendo. O que não significa que discursos
conservadores ou excludentes não façam parte da vivência dos discen-
tes, seja no contexto familiar ou social.
Segundo Santos, “A sociologia das emergências implica a valoriza-
ção simbólica, analítica e política de formas de ser e de saberes que a
sociologia das ausências revela estarem presentes no outro lado da linha
abissal.” (2019, p. 53). Assim, do holocausto à teoria da reprodução
social marxista, das inquietudes da juventude à violência psicológica e
física impostas à mulher, as leituras e conversas em sala de aula iam aos

1032
poucos descortinando sensos comuns, conflitando, às vezes, com posi-
cionamentos pessoais, geralmente religiosos, através da ação dialógica,
principalmente pela co-laboração e pesquisa.
Embora, para a maiorida dos discentes, a temática do holocausto
pudesse parecer distante ou ainda um fato histórico que não reverbera
em nosso tempo, o esforço analítico empenhado era de a todo momen-
to fazer relações com nossas vivências. Se nos fechássemos à temática
classificatória de inquietações das juventudes, indicada pelo PNLD,
manteríamos a invisibilidade da linha abissal, e então o empenho analí-
tico e de valorização simbólica do objeto em estudo seria inócuo. Assim,
buscamos o diálogo de três eixos – antissemitismo, imperialismo e tota-
litarismo – com as inquietações subjetivas de Anne, apoiados nas refle-
xões de Hannah Arendt.
Segundo a autora:

As condições em que hoje vivemos no terreno da política são re-


almente ameaçadas por essas devastadoras tempestades de areia.
O perigo não é que possam estabelecer um mundo permanen-
te. O domínio totalitário, como a tirania, traz em si o germe da
sua própria destruição. Tal como o medo e a impotência que
vem do medo são princípios anti-políticos e levam os homens
a uma situação contrária à ação política, também a solidão e
a dedução do pior por meio da lógica ideológica, que advém
da solidão, representam uma situação anti-social e contêm um
princípio que pode destruir toda forma de vida humana em
comum. (ARENDT, 2012, p. 639)

Assim, a prática reflexiva e crítica que foram empenhadas na leitura


da adaptação do Diário de Anne Frank tinha o objetivo de trazer à luz
os elementos opressivos e excludentes, como eles se aninham nas estru-
turas sociais e que não são fatos isolados no percurso histórico da hu-
manidade. Se, em um primeiro momento, os alunos enxergaram Anne
como uma adolescente revoltada, naturalizando suas ações como algo
típico de adolescentes, no processo de leitura era preciso desnaturalizar
tal concepção, entendendo, por exemplo, que os conflitos com a mãe

1033
eram mais profundos, pois Edith reproduzia ideologias de um sistema
que negava à mulher a emancipação humana.
Por fim, voltamos ao trecho que dá abertura a esta seção:

“Mas quantas pessoas veem as mulheres também como solda-


dos? As mulheres, que sofrem e suportam a dor para garantir
a continuação de toda a raça humana, seriam soldados muito
mais corajosos do que todos aqueles heróis falastrões, que di-
zem lutar pela liberdade, juntos. Para os homens é fácil falar
- eles não suportam nem nunca terão de suportar os fardos da
mulher!”

Não se trata aqui de uma comparação ingênua entre mulheres e sol-


dados, mas uma crítica à sub-humanidade a que estão colocadas as mu-
lheres na estrutura social, uma vez que ilustra a teoria da reprodução so-
cial marxista e as devidas interpretações recentes (BHATTACHARYA,
2013). Um dos caminhos de resistência a tais opressões e exclusões é por
via da educação, desde que ela se empenha à ação libertadora (FREIRE,
2021).

“Felizmente, a educação, o trabalho e o progresso abriram os


olhos das mulheres. Em muitos países, elas adquiriram direitos
iguais; muitas pessoas percebem agora como foi errado tolerar
essa situação durante tanto tempo. As mulheres modernas que-
rem o direito de ser completamente independentes!” (FRANK,
2018, p. 143).

3. Segundo movimento - letramento literário, ideológico e


ação dialógica

“Bem no fundo, os jovens são mais solitários do que os adultos.”


Li isso em algum livro, e ficou na minha mente. Até onde eu
sei, é verdade. Então, se você está se perguntando se ficar aqui
é mais difícil para os adultos do que para os jovens, a resposta
é não, com certeza. Os mais velhos têm uma opinião formada

1034
sobre tudo, são seguros de si e de seus atos. Para nós, jovens, é
duas vezes mais difícil sustentar nossas opiniões numa época em
que os ideais são estilhaçados e destruídos, quando o pior lado
da natureza humana predomina [...]. (FRANK, 2018, p. 147)

O trecho em destaque faz parte dos registros do dia em que Anne


comenta sobre o livro “O que você acha da jovem moderna?” e traz
sua defesa diante das críticas presentes na obra. Seguindo a metodolo-
gia utilizada em sala durante o desenvolvimento do círculo de leitura,
como se tratava de uma longa reprodução do diário, fizemos uma lei-
tura silenciosa, seguida de diálogo. Além de não ter sido necessário re-
correr ao roteiro para aula, foi uma discussão que se expandiu por quase
uma semana. Presumindo que o tema os tocou sensivelmente, grande
parte dos alunos fizeram suas contribuições, apresentando pontos de
vistas, deixando emergir narrativas, confrontando colaborativamente
perspectivas mais conservadoras, ouvindo os colegas – mesmo que em
alguns momentos pontuais fosse preciso alertá-los do respeito aos tur-
nos de fala.
Talvez a imagem mais comum de representação de uma sala de aula
seja a de alunos enfileirados, “bem comportados”, em silêncio, olhando
para o quadro, copiando matéria ou fazendo prova. Ações que diver-
gem dessa imagem muitas vezes não são consideradas como aulas. Na
educação antidialógica, bancária, como o aluno está objetificado como
um receptáculo, as manifestações como a voz são permissíveis em tare-
fas burocráticas, em leituras-protocolo, o que nos remete à cultura do
silêncio, metodologia do opressor (FREIRE, 2021).
O cenário de diálogo entre meus alunos e com eles, se por um lado
mostra que o tema gerador os colocou ativamente diante do debate, por
outro lado mostrou a ânsia do desejo de fala, de apresentar a própria
palavra, de ser ouvido. De acordo com Freire (2021, p. 82), “[...] refle-
tindo a sociedade opressora, sendo dimensão da “cultura do silêncio”, a
“educação” “bancária” mantém e estimula a contradição.” educador-e-
ducando, o que coloca o professor numa posição totalitarista: é ele quem
sabe, é ele quem pensa, é ele quem diz a palavra. Minhas intervenções

1035
eram as mínimas possíveis. Havia uma, no entanto, que foi perdendo a
recorrência durante o desenvolvimento do círculo: “Você está falando
para mim ou com a gente?”.
Ainda, segundo Paulo Freire, “Para o ‘educador-bancário’, na sua
antidialogicidade, a pergunta, obviamente, não é a propósito do con-
teúdo do diálogo, que para ele não existe, mas a respeito do programa
sobre o qual dissertará a seus alunos. E a esta pergunta responderá ele
mesmo, organizando seu programa.” (2021, p. 116). Na cena de aula
aqui apresentada, eu não só não recorri ao roteiro para aula, como tive
de acrescentar a ele pontos muito importantes trazidos pelos alunos.
Um deles foi uma citação ao Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) que, posteriormente, levou-nos ao próprio ECA, ao Artigo 5º da
Constituição e à Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Embora Brian Street, analisando as perspectivas atuais dos letra-
mentos, apresenta avanços, chama nossa atenção a usos que sejam de
fato significativos. Neste sentido afirma que “A tarefa política, por
conseguinte, é complexa: desenvolver estratégias para programas de
alfabetização/letramento que lidem com a evidente variedade de ne-
cessidades letradas na sociedade contemporânea.” (STREET, 2014, p.
41). Em nosso contexto, a BNCC está em processo de implementação
nas escolas e mesmo que seu processo de construção não tenha sido
democrático – pelo menos tanto quanto o discurso oficial afirma – é
preciso atentar-se às estratégias que o reafirmam como normativa das
ações educacionais. Então, é importante complementar à contribuição
de Street as relações de contradição entre “educador-bancário” e “educa-
dor-educando” apresentadas por Freire. A BNCC está posta e o uso que
dela se faz tem relação direta com a concepção de educação de quem a
instrumentaliza.
Se pensarmos na relação do círculo de leitura proposto com a
BNCC, no contexto do ensino fundamental, das 10 habilidades espe-
cíficas de Língua Portuguesa, 7 delas estão contempladas nas atividades
desenvolvidas com os alunos, em síntese. No entanto, as mesmas habi-
lidades habitam trabalhos docentes com perspectivas que reproduzem

1036
as opressões, por mais que tal pareça contraditório, quando ainda não
se limitam exclusivamente às análises linguísticas e semióticas da escrita.
O que reforça, mais uma vez, as perspectivas apresentadas a partir de
Freire e Street.
Neste caminho, poderíamos relacionar, de alguma forma, a ação
antidialógica em contraste com a ação dialógica, proposta por Freire,
com as perspectivas de letramento autônomo e ideológico apresentados
por Street. Tanto a ação antidialógica quanto o letramento autônomo
pressupõem certa passividade em relação aos agentes do ato de educar,
sejam os docentes aprisionados aos programas, sejam os discentes limi-
tados a uma tábula rasa, além de objetivos que estão atrelados à manu-
tenção de ordens opressoras e excludentes,impostas via estado ou por
pressões conservadoras. Já, ao que pese em outra via, as ações dialógicas
e os letramentos ideológicos levam em consideração não apenas o con-
texto dos sujeitos envolvidos, embora seja elemento crucial e metodo-
lógico, mas buscam a valorização e emancipação de suas humanidades,
chamando atenção para o fato de que as práticas, as ações e as lingua-
gens/discursos estão intrínsecas a ideologias e políticas de dominação.
Como afirma Street:

Um modelo “ideológico”, por outro lado, força a pessoa a fi-


car mais cautelosa com grandes generalizações e pressupostos
acalentados acerca do letramento “em si mesmo”. Aqueles que
aderem a este segundo modelo se concentram em práticas so-
ciais específicas de leitura e escrita. Reconhecem a natureza ide-
ológica e, portanto, culturalmente incrustada dessas práticas.
(STREET, 2014, p. 44)

Embora fosse um lamento não ter outras obras à escolha, em pro-


porção para o trabalho a ser desenvolvido, não se perdeu, no processo
do círculo de leitura, as dimensões de que aquele episódio histórico po-
deria conversar com inquietações presentes no universo dos alunos, na
maioria das vezes, fazendo o caminho das subjetividades aos contextos
e o caráter ideológico neles presente, seja no contexto histórico da obra,
seja nas situações narradas pelos alunos.

1037
Apesar de não ter registros das conversas sobre a obra e não ter
acesso aos diários que os alunos desenvolveram, para finalizar esta seção
trago dois exemplos, que de longe representam a riqueza do que foi
desenvolvido criticamente com os alunos, mas que, de algum modo,
representam tanto a capacidade analítica do contexto, por exemplo,
distinguir fatos históricos e subjetivos, ou ainda verter-se em palavra
no mundo.

Fonte: Arquivo pessoal, 2019.

4. Um salto temporal como reflexão última - ”Uai, não tinha


direitos humanos não?”
Acreditando na dialética da história, entendendo, pois, que um
discurso conservador, excludente, discriminatório ou ações autocráticas
carregam em si suas contradições que fomentam enfrentamento e resis-
tência, é que eu luto por uma educação libertadora, para que não nos
entreguemos ao fatalismo e que sejamos capazes de lutar um futuro hu-
manamente possível. Não imaginei, em 2019, que reencontraria meus
alunos do ensino fundamental em um cenário tão conturbado, mesmo
sabendo que naquele ano, no Brasil, uma caixa de pandora havia sido
aberta, que em 2020 iniciou-se uma pandemia que interrompeu mi-
lhares de vidas e ainda nos afeta ainda hoje com o surgimento de novas

1038
variantes. E vamos percebendo que as contradições mais se aprofundam
do que se resolvem.
Além de uma pontual organização de atividades bimestrais, inda-
guei aos alunos se eles utilizavam redes sociais: a grande maioria faz uso
do instagram, alguns do tiktok e uma minoria do twitter. Em seguida,
perguntei quais eram os temas relevantes naquele momento. Fui fazen-
do anotações no quadro à medida em que iam falando, perguntando
os contextos o que achavam daqueles fatos, de forma bem informal.
Conversamos sobre Big Brother Brasil, em que não pude deixar de in-
dicar a leitura de 1984 de George Orwell, mas o coro maior se fez em
relação ao caso “Monark”206, trazendo para a discussão limites entre
liberdade de expressão e apologia ao nazismo. Alguns alunos menciona-
ram a leitura feita no 9º ano.
Quando fiz a proposição em 2019 da leitura do Diário de Anne
Frank adaptado, recém-chegado na escola, eu tinha dúvidas, não dá
importância da temática, mas se ela tinha de fato alguma ancoragem
no contexto de vivência dos alunos. Pela análise construída até aqui é
perceptível que questões relacionadas às inquietações da juventude en-
contravam maior ressonância e despertavam maior interesse, mas que
também o exercício reflexivo da influência do momento histórico – na-
zismo, antissemitismo, totalitarismo – em tais inquietações não pode-
riam ignorados, exatamente por serem base das forças opressoras que
afetavam a subjetividade da protagonista.
Na semana seguinte, a aula começa com uma manchete do jornal
local sobre uma pichação de apoio ao nazismo em uma das principais
avenidas da cidade207. Fui observando na fala dos alunos não só a fami-
liaridade com a temática, mas também o senso crítico diante do fato.
No entanto, notei ainda um certo distanciamento, como se fosse algo a
206
Disponívelem:https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2022/02/09/%E2%80%-
98Nazismo-passou-por-um- processo-de-norm aliza%C3%A7%C3%A3o-p%-
C3%BAblica%E2%80%99. Acesso em: 18 mar. 2022.
207
Disponível em: https://tribunademinas.com.br/noticias/cidade/22-02-2022/
pjf-repudia-pichacao-de-apoio-ao -nazismo-em-muro na-itamar-franco.html.
Acesso em: 1 mar. 2022.

1039
ser criticado ou repudiado, mas que não tem tanto impacto direto em
suas vivências.
Lynn Hunt, na obra A invenção dos Direitos Humanos, defenderá que

[...] ler relatos de tortura ou romances epistolares teve efeitos fí-


sicos que se traduziram em mudanças cerebrais e tornaram a sair
do cérebro como novos conceitos sobre a organização da vida
social e política. Os novos tipos de leitura (e de visão e audição)
criaram novas experiências individuais (empatia), que por sua
vez tornaram possíveis novos conceitos sociais e políticos (os
direitos humanos). (2009, p. 32).

De alguma forma, a leitura do livro no círculo de leitura fomen-


tou uma série de reflexões e ampliou perspectivas que parecem ainda
reverberar entre os alunos. Assim, no campo da generalização, nenhum
aluno afirmaria que os judeus devem ser perseguidos ou que se defen-
da uma supremacia racial. Ao serem questionados se já sofreram racis-
mo ou perseguição religiosa, que foram postulações apresentadas por
eles relacionadas ao nazismo, vários alunos se manifestaram, contudo,
quando a pergunta passa à questão da prática, ou seja, se já foram ra-
cistas ou excluíram alguém de outra religião, o silêncio foi imperioso.
Nosso desejo empático não quer, em tese, ser identificado com va-
lores “negativos” como preconceito, intolerância, tirania. A literatura
tem em si a potência humanizadora exatamente por nos colocar diante
das nossas contradições, seja nos aproximando ou nos afastando do ide-
al de humanidade. Como aponta Hunt, “aprendemos a sentir empatia
por alguém que não é nós mesmos e não pode jamais ter contato direto
conosco (ao contrário, digamos, dos membros da nossa família), mas
que ainda assim, de um modo imaginativo, é também nós mesmos,
sendo esse um elemento crucial na identificação” (2009, p. 55)
Embora distantes do contexto histórico da Segunda Guerra
Mundial, ao lerem a vida que nos oferece Anne através da escrita nos
vemos nela, ao menos de forma abstrata, ou seja, não é preciso que eu
tenha sido perseguido, passado por uma carestia ou tido a liberdade
negada para entender que a dignidade humana o tenha sido negada.

1040
Por fim, “Aprender a sentir empatia abriu o caminho para os direitos
humanos, mas não assegurava que todos seriam capazes de seguir ime-
diatamente esse caminho” (HUNT, 2009, p. 69).

Referências
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1041
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

LETRA MENTO E ENSINO DE


ARGUMENTAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA NA
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Renata da Silva Posso (UESC/PMF)


Isabel Cristina Michelan de Azevedo (UESC/UFS)

RESUMO. Esta experiência faz parte dos estudos desenvolvidos a partir do


projeto de extensão Ensino de Argumentação na Escola (ENARE), vinculado
a Universidade Federal de Sergipe (UFS) e a Universidade Estadual de Santa
Cruz (UESC). Dentre as ações previstas no projeto, abordaremos o curso
de formação continuada destinado aos professores de língua portuguesa que
atuam em turmas do primeiro segmento da Educação de Jovens e Adultos
(EJA), voltado a construção colaborativa de materiais didáticos a serem
utilizados pelos professores em escolas públicas do município de Ilhéus (BA),
considerando a prática de leitura, escrita, oralidade e analise linguística, tendo
como foco o ensino-aprendizagem da argumentação na educação básica
e com alinhamento à competência geral n. 7 da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC). Este projeto assume uma natureza teórico-prática e se
inscreve na intersecção dos campos da linguística aplicada, dos estudos da
argumentação e das metodologias de ensino, além disso foram previstos
encontros presenciais e momentos remotos, considerando ações coletivas
partindo de reflexões realizadas mediante temáticas selecionadas em função
das necessidades dos docentes envolvidos; das problematizações indicadas por
eles e pelos formadores, da recuperação de referências e de práticas que podem
colaborar com as ações implementadas em sala de aula. Espera-se que o estudo
teórico, a análise de metodologias de ensino- aprendizagem e a produção de
materiais subsidiem a elaboração de propostas de ensino da argumentação
comprometidas com o aprendizado qualificado da língua portuguesa, a
humanização e a formação para a cidadania (educação emancipatória).
PALAVRAS-CHAVE: Educação de Jovens e Adultos. Ensino de argumenta-
ção. Letramento.

ABSTRACT. This experience is a part of the studies developed from the


university extension project Ensino de Argumentação na Escola (ENARE),
bound to the Universidade Federal de Sergipe (UFS) and the Universidade
Estadual de Santa Cruz (UESC). Among the actions planned in the project,

1042
we will address the continuing education course for the Portuguese teachers
who work in the elementary education classes of Youth and Adult Education
(YAE), aimed at the collaborative construction of teaching materials to
be used by teachers in public schools in the municipality of Ilhéus (BA),
considering the practice of reading, writing, speaking and linguistic analysis,
focusing on the argumentation teaching and learning in basic education and
aligned with the general competence No. 7 of the Base Nacional Comum
Curricular (BNCC). This project assumes a theoretical and practical aspect.
In addition, it is inscribed in the intersection of the applied linguistics fields,
argumentation studies and teaching methodologies. Furthermore, face-to-
face meetings and remote moments were planned, considering collective
actions based on reflections carried out through themes selected according
to the needs of the teachers involved; the problematizations indicated by
them and by the trainers, the recovery of references and practices that can
collaborate with the actions implemented in the classroom. It is expected that
the theoretical study, the analysis of teaching and learning methodologies,
and the production of materials will support the development of proposals
for the argumentation teaching committed to the qualified learning of the
Portuguese, humanization, and the citizenship formation (emancipatory
education).
KEYWORDS: Youth and Adult Education. Argumentation Teaching.
Literacy.

Introdução
Este texto está apoiado na experiência desenvolvida a partir do pro-
jeto de extensão “Ensino de Argumentação na Escola” (ENARE), vincu-
lado ao Departamento de Letras Vernáculas e ao Mestrado Profissional
em Letras da Universidade Federal de Sergipe, sob a coordenação da
Dra. Isabel Cristina Michelan de Azevedo. Neste momento, as ações
romperam os limites do Estado de Sergipe, foram ampliadas e alcan-
çaram o Estado da Bahia, por meio da parceria entre UFS e UESC,
o ENARE também passou a ser projeto de extensão conduzido pelo
Centro de Estudos de Argumentação e Discurso (CEAD/UESC), sob a
responsabilidade do Dr. Eduardo Lopes Piris, contanto com a colabo-
ração de doutorandas, mestrandas e graduandas das duas universidades.

1043
O ENARE se apoia na perspectiva da argumentação na interação
e visa a promover a articulação de estudos que possam subsidiar as prá-
ticas pedagógicas destinadas ao ensino de argumentação e tem na pro-
blematização e na colaboração/cooperação os meios privilegiados para
compor o planejamento de ações didáticas que podem ser implemen-
tadas na escola.
Dentre as ações desenvolvidas pelo projeto, está o curso de for-
mação continuada destinado aos professores que atuam na educação
básica: educação infantil, ensino fundamental (series iniciais e finais) e
a modalidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA). O curso tem sido
sistematizado no formato de minicursos e/ou oficinas, com a orienta-
ção voltada para a elaboração de insumos educacionais, tendo como
foco o ensino-aprendizagem da argumentação na educação básica e
com alinhamento à competência geral n. 7 da Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2018).
A experiência vivida em 2021, aconteceu com ações de formação de
professores para o Ensino da Argumentação nas séries iniciais da educação
básica envolvendo Educação Infantil, Ensino Fundamental e Educação
de Jovens e Adultos (EJA), em formato essencialmente remoto, devido ao
momento em que enfrentávamos com a pandemia do Covid -19.
No ano de 2022, em parceria entre a UFS e a Secretarias de
Educação de São Cristóvão/SE, o curso de formação de professores al-
cançou os professores titulados em Pedagogia, Letras ou áreas afins, que
atuam nos anos inicias do ensino fundamental da rede pública muni-
cipal, com cronograma previamente definido e com atividades de na-
tureza teórico-prática, que promoveram a intersecção dos campos da
linguística aplicada, dos estudos da argumentação e das metodologias
de ensino hibrido, com encontros presenciais e momentos remotos.
Na Bahia, a parceria entre a UESC e a Secretaria de Educação de
Ilhéus tem suscitado o ensino de argumentação na escola em ações de
formação continuada destinadas a professores que atuam na Educação
de Jovens e Adultos, nas modalidades presencial e remota, voltado à
construção colaborativa de materiais didáticos a serem utilizados pelos

1044
professores em escolas públicas do município. Por entendermos, com
Pimenta (1997), que a profissão professor constitui uma identidade
mutável com base nas experiências vividas nos contextos de trabalho,
nos de formação continuada, nos pessoais etc., reconstruídas histori-
camente, assumimos que a reflexão em torno de práticas pedagógicas
consagradas culturalmente e renovadas em função das mudanças sociais
pode promover impactos no cotidiano e escolar e na identidade profis-
sional, pois permitem avaliar os valores mobilizados no agir educativo.
Nesse processo, são articulados os três tipos de saberes docentes
– decorrentes das experiências socialmente acumuladas, dos conheci-
mentos construídos ao longo do tempo, das ações pedagógicas – a fim
de possibilitar a articulação entre as práticas pedagógicas em curso nas
escolas e as renovações necessárias em função das necessidades sociais e
das exigências legais. Embora a discussão em torno dos saberes dos pro-
fessores venha sendo realizada há mais de quarenta anos mundo afora,
os processos formativos de professores tanto em São Cristóvão quanto
em Ilhéus nem sempre consideram esse tripé e são observadas ações
fundadas exclusivamente em informações decorrentes de estudos reali-
zados em nível superior, por vezes com pouca sensibilidade para os pro-
cessos de humanização que são tão necessários à formação de cidadãos.
Com base nesse contexto, para esta comunicação, nos debruça-
remos em algumas das experiências vivenciadas e nos conhecimentos
construídos ao longo das duas edições do ENARE, com ênfase nas dis-
cussões voltadas à educação de jovens e adultos, com o objetivo de con-
tribuir com as discussões relativas ao ensino de argumentação tomada
como prática social de linguagem. Nessa concepção, os sujeitos sociais
participam de atividades de linguagem que permitem defender opiniões
em meio de um processo interacional realizado a partir de uma proposta
de ensino situada, vivencial e não simulada. Assim, as reflexões reunidas
ao longo do projeto de extensão pretendem contribuir para a ressignifi-
cação da prática escolar, a fim de suplantar os limites das ações cotidia-
nas e vislumbrar novas possibilidades de o trabalho com a argumentação
acontecer por meio de práticas de letramento em turmas de EJA.

1045
2. Por que o ensino de argumentação na escola?
Na sociedade contemporânea, a oposição de ideias e a existência de
conflitos discursivos constituem as práticas sociais cotidianas devido a
distintas razões, entre as quais se encontram as relações de poder em que
uns subjugam outros, opressão que pode acontecer por motivos econô-
micos, de gênero, de sexualidade etc., e as violências da colonialidade
que impõem certos modos de pensar acerca a vida social (BRAGATO,
2016), por exemplo. Nessas circunstâncias, a dicotomia de ideias em
torno de temas como fé e razão, sagrado e profano, opressor e oprimido
pode gerar divergências de pontos de vista e espaço para haver uma
“reposta necessária tanto às falácias e ficções das promessas de progresso
e desenvolvimento que a modernidade contempla, como à violência da
colonialidade”, segundo Mignolo (2017, p. 13).
No entanto, as tensões geradas entre elementos contrários e dis-
cursos conturbados têm causado polarização de opiniões e gerado um
clima de intolerância e a divisão dos cidadãos em lados contrários,
o que pode inibir o professor a desenvolver esse tipo de trabalho na
escola. Durante a realização dos cursos vinculados ao ENARE em
2021 e 2022, diferentes professores manifestaram insegurança em ge-
rar divergências de opiniões dentro da classe por considerarem que
isso causaria problemas entre os integrantes da turma e até entre as
famílias.
Em seguimento às ideias de Mignolo (2013), entendemos que, em
lugar de a sala de aula valorizar a contenção disciplinar e de ideias, a
repressão de posições, bem como a discussão em relação aos direitos
e deveres, inventada pelos humanistas do Renascimento europeu, o
esforço dos professores pode estar direcionado a auxiliar os estudan-
tes a compreender a origem dos discursos de superioridade, sobretudo
quando tratam de questões de natureza cultural. Isso porque os modos
de agir em sociedade sempre dependem dos valores que sustentam as
diferentes visões, por isso é tão relevante criar oportunidades para que
sejam colocados em questão, que as crenças sejam explicitadas e que a
racionalidade seja exercida na relação dialógica.

1046
Sensibilizar os professores para esse tipo de necessidade, propor-
cionou aos participantes do curso voltar o olhar, por exemplo, para
a situação vivida com a pandemia da COVID-19, no último triênio,
o que ocasionou emoções variadas, como o medo da perda de pesso-
as queridas ou mesmo da própria vida, e a discussão acerca do valor
dos procedimentos sugeridos para evitar o contágio pelo vírus. Ou seja,
foi possível auxiliar os docentes a perceber que as práticas cotidianas
de linguagem constituem a base para argumentar e assumir posições
discursivas.
Particularmente, ao considerar os impactos da pandemia, os pro-
fessores, como outros especialistas, por exemplo, têm observado que a
adoção de mudanças nos hábitos, como o uso obrigatório de máscara
e o isolamento social, acirrou ainda mais a polarização de opiniões ge-
rada em torno da negação; que algumas práticas discursivas provoca-
ram a minimização da gravidade da doença, a subnotificação dos dados
epistemológicos, o boicote às ações recomendadas pela Organização
Mundial da Saúde (OMS); que o incentivo a tratamentos terapêuticos
sem validação científica foi reforçado por discursos proferidos por dife-
rentes sujeitos sociais, inclusive ligados ao campo da medicina; que as
tentativas de descredibilizar a eficácia da vacina foi uma das estratégias
argumentativas utilizadas por políticos brasileiros.
No campo educacional, especificamente, esse novo contexto so-
cial provocou altos índices de evasão escolar, levando a uma queda de
270 mil estudantes na EJA, segundo o Censo Escolar compilado pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(INEP), e algumas lacunas estão sendo consideradas irreparáveis no
aprendizado dos estudantes. Entre as recomendações da UNICEF em
relação ao cenário de exclusão escolar no Brasil durante a pandemia
(BRASIL, 2021), encontra-se a indicação de oferecer formação para
dirigentes escolares e docentes a fim de repensar o currículo e a organi-
zação dos tempos e espaços da escola.
Os transtornos econômicos, emocionais e sociais avolumaram
a dicotomia presente no país e ressaltaram a necessária preocupação

1047
de professores, coordenadores e gestores em lidar com a diferença e o
dissenso. Nesse sentido, o trabalho com a argumentação na educação
básica se apresenta como uma oportunidade para os cidadãos assumi-
rem sua posição ideológica ao defenderem pontos de vista, lutarem por
direitos e modificarem as situações existentes a fim de fortalecer a de-
mocracia por meio do exercício da cidadania. Esse esforço pode estar
alinhado às exigências encontradas nos documentos que orientam as
ações dos professores.
A Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), em particu-
lar, elenca competências específicas para cada área do conhecimento,
perpassando todos os segmentos da educação básica e define o termo
competência como “[...] a mobilização de conhecimentos, habilidades,
atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana,
do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL,
2018, p. 8). As competências estão associadas a cinco áreas do conhe-
cimento e visam a favorecer a comunicação entre os conhecimentos e
saberes dos diferentes componentes curriculares (BRASIL, 2010).
Embora tenhamos críticas à vinculação das competências e habili-
dades encontradas na Base aos processos de avaliação de larga escala que
ocorrem regularmente no Brasil (AZEVEDO; DAMACENO, 2017),
reconhecemos que esse documento incentiva o ensino da argumentação
desde a educação infantil até o ensino médio. Nele, a argumentação está
incluída entre as dez competências gerais para toda a educação básica,
com vistas a que o estudante aprenda:

Argumentar com base em fatos, dados e informações confiá-


veis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista
e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos hu-
manos, a consciência socioambiental e o consumo responsável
em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético
em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta
(BRASIL, 2018, p. 9).

É nesse contexto que se faz necessário pensar no ensino de


argumentação em uma dimensão discursiva, ou seja, trata-se de organizar

1048
o trabalho em associação às práticas pedagógicas que visam a superar o
uso de estratégias de um sujeito consciente interessado em vencer o
oponente ou persuadir o ouvinte, para se constituir como um sujeito
social que se empenha em considerar as amplas questões que afetam a
vida de todos, para seja possível identificar meios de ação global, regional
e local (PIRIS, 2021). Para tanto, torna-se imprescindível possibilitar
aos estudantes a participação em situações argumentativas, tanto na
escola quanto fora dela, capazes de gerar argumentos que coloquem
pontos de vista e posições ideológicas em discussão.
Para tanto, as competências e as habilidades não são priorizadas,
mas o desenvolvimento de capacidades argumentativas tanto pelos es-
tudantes quanto pelos professores. A partir das reflexões de Azevedo
(2016; 2022), entendemos que, desde os estudos retóricos na Grécia
Antiga, temos exemplos de como “as capacidades podem se transformar
em função das interações com as circunstâncias, com os discursos, com
os conteúdos, com outras capacidades, são consideradas construções in-
ternas dos sujeitos que dependem das interações sociais” (AZEVEDO,
2022, p. 3).
Na visão de Azevedo (2016), essas capacidades argumentativas, por
estarem associadas à condição humana, à ação de linguagem e à expres-
são discursiva, promovem o desenvolvimento dos sujeitos em práticas
de linguagem argumentativas, ou seja, sobretudo quando acontecem
em um contexto argumentativo oriundo de situações sociais concre-
tas. Assim, para ensinar a argumentar, a aprendizagem é tomada como
um tipo de ação de linguagem realizado em um processo interacional,
por isso os eventos de letramento podem desencadear capacidades argu-
mentativas, bem como podem guiar as ações, os saberes e os fazeres dos
docentes, discentes e, quiçá, da comunidade escolar (FERNANDES,
2021).
Nesse sentido, a argumentação também pode ser tomada como um
esforço para construir a perspectiva de civilidade, uma maneira de se
resolver problemas relacionados a questões políticas, sociais e de con-
vivência, ou seja, ela é compreendida como um viés importante para

1049
resolver conflitos com o auxílio da palavra, sem precisar recorrer à força,
à violência (GRÁCIO, 2011). Dessa forma, a argumentação pode pos-
sibilitar aos indivíduos o desenvolvimento e/ou o aprimoramento do
senso crítico, do exercício da cidadania e, consequentemente, da luta
por direitos e por uma sociedade mais justa e igualitária.
Por considerarmos que é pela linguagem que interagimos discur-
sivamente, expressamos nossos pensamentos e nos relacionamos com
o outro, entendemos que nos constituímos como sujeitos quando es-
tamos inseridos em um ambiente social (VOLÓCHINOV, 2017).
Nessas relações, construímos nossa identidade e ainda desenvolvemos
capacidades comunicativas específicas que estão relacionadas às práticas
de leitura, de escrita e de oralidade.
Assumimos, então, que o trabalho com as práticas de linguagem,
quando ocorrem de maneira significativa, para que estudantes e profes-
sores, porque estão vinculadas a problemas sociais que são discutidos
entre todos os envolvidos, pode efetivamente colaborar com o ensino
de argumentação na escola. Isso requer que todos estejam dispostos a
participar de atividades que não se restringem a exercícios mecânicos
e repetitivos, mas que se constituem como ações sociais concretas, daí
a necessidade de se estabelecer uma relação coerente entre a área dos
estudos de letramento e a da argumentação.
Em particular, para lidar com a complexidade das situações atinen-
tes às interações vividas no cotidiano da EJA, que, atualmente, atende
a adolescentes, jovens, adultos e idosos, consideramos pertinente que
os cursos de formação de alfabetizadores estejam adequados às recen-
tes demandas desse segmento educacional. Para tanto, os professores
podem direcionar “[...] as práticas pedagógicas para uma ação em que
não apenas constatem os problemas, mas para que possam aprender a
resolvê-los em sala de aula” (BARBATO, 2012, p. 314) e fora dela.
A EJA, historicamente, vem sendo tratada como uma modalida-
de estigmatizada no âmbito educacional, em função do fracasso es-
colar identificado entre os estudantes matriculados nela. Ou seja, as

1050
dificuldades no acesso e na permanência na escola continuam gerando
altas taxas de analfabetos, devido à falta de domínio no uso da norma-
-padrão da língua portuguesa, e isso acaba afetando a vida daqueles
que, em algum momento, foram/são excluídos do sistema de ensino
brasileiro e afastando cada vez mais dos bancos da escola.
Trabalhar com a EJA é um desafio múltiplo ao professor, pois as
diferentes culturas pertinentes à variação etária e aos diferentes níveis
de aprendizado dos estudantes compõem a heterogeneidade das tur-
mas e se consolidam como um fator que torna o trabalho docente
ainda mais desafiador, exigindo do professor um empenho maior no
planejamento das práticas educativas, considerando também a elabora-
ção e a utilização dos materiais didáticos que podem compor a rotina
da sala de aula.

3. Como o ENARE acontece?


Durante a vigência dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PNC),
mas sobretudo desde a publicação da Base Nacional Comum Curricular
(BRASIL, 2018), que recuperou algumas das indicações anteriormente
recomendadas, os professores das redes federal, municipal, estadual e
privada foram orientados a elaborar planejamentos de práticas de ensi-
no para atender às competências gerais da educação básica, conforme a
competência n. 7. Contudo, muitos desses profissionais de educação da
educação básica carecem de formação específica para um trabalho mais
sistematizado em torno do ensino de argumentação, tal como foi iden-
tificado em Sergipe (CARVALHO; SCHRAMM, AZEVEDO, 2018),
o que se constitui como uma oportunidade para haver colaboração en-
tre as unidades escolares e as universidades. Diante dessa necessidade e
do objetivo de colaborar com a formação se sujeitos participativos em
sociedade, concebemos o projeto ENARE.
Tal projeto tem como propósitos: (i) articular estudos que possam
subsidiar as práticas pedagógicas voltadas ao ensino da argumentação;
(ii) orientar a composição de recursos teórico-práticos que possam

1051
servir como materiais didáticos destinados ao ensino-aprendizagem da
argumentação; (iii) colocar em diálogo os sujeitos que queiram partici-
par da construção de um novo modo de pensar que se desvincula, em
parte, das cronologias construídas pelo viés europeu e ocidental, em
busca de identificar novas bases para discutir os problemas que afetam
as sociedades afetadas pelo colonialismo; (iv) constituir-se como uma
referência aos professores comprometidos em colaborar com necessida-
des sociais e cumprir com as exigências legais definidas em diferentes
níveis (federal, estadual e municipal, prioritariamente).
Para tanto, três metas foram estabelecidas: (i) promover a formação
continuada de professores de todos os níveis de ensino da educação bá-
sica de maneira sistemática e sistêmica, quando possível; (ii) ampliar o
alcance do projeto ENARE para diferentes regiões do Brasil; (iii) iden-
tificar meios para o cumprimento com as exigências legais definidas em
diferentes níveis (federal, estadual e municipal) possa acontecer vincu-
lado ao trabalho com práticas sociais de linguagem.
Por se tratar de um projeto de natureza teórico-prática, que articu-
la conhecimentos oriundos de diferentes campos de estudos e pesqui-
sas, optou-se por uma abordagem sócio-histórico-cultural (LIBÂNEO,
2004; MAGALHÃES; OLIVEIRA, 2018) e decolonial (DUSSEL,
1980; MIGNOLO, 2017), que possibilita o desenvolvimento de mé-
todos de intervenção pedagógica que visam à emancipação dos sujeitos
(FREIRE, 1999; TONET, 2005). Assim, o desenho do projeto par-
te dos saberes da experiência (ver Figura 01), ou seja, das ações que
são identificadas em turmas dos anos iniciais do ensino fundamental,
para que sejam provocadas reflexões a partir de temáticas associadas
às necessidades dos docentes envolvidos, bem como problematizações
durante as formações. A recuperação de referências e de práticas que
podem colaborar com a legitimidade das ações que serão implemen-
tadas em sala de aula tem gera confiança entre os participantes e o
interesse pelos estudos mais aprofundados em torno da argumentação
(BEHRENS, 2007).

1052
Figura 1. Caderno de Projetos.

Fonte: AZEVEDO et al., 2022.

O Caderno de Projetos (Figura 01), também chamado de cardápio208


pelos docentes, é entregue inicialmente aos professores que participam
do curso de formação e visa a apresentar um material de qualidade que
sirva de ponto de partida para o encaminhamento do ensino da argu-
mentação, principalmente em práticas de língua portuguesa. As propos-
tas reunidas no Caderno incluem atividades com assuntos específicos,
como trabalho infantil, automedicação, proteção ambiental e consci-
ência negra, temas que são correntes na realidade das escolas de Ilhéus
(BA), organizadas a partir de diferentes gêneros que costumam circular
no ambiente escolar (tirinha, charge, artigo de opinião), com o intuído
de indicar que há múltiplas possibilidades para o desenvolvimento de
propostas com ênfase no ensino da argumentação.

208
A metodologia de formação por meio de “cardápio de projetos” foi desenvolvi-
da no Programa Escola Que Vale (PEQV) e amplamente divulgada por Beatriz
Cardoso e Regina Scarpa. Segundo as autoras, essa proposta parte da “premissa
de que não é possível desenvolver um material único que se adapte a qualquer
contexto”, mas que a diversidade de soluções pode partir de práticas pedagógicas
conhecidas para a criação de novas propostas de ensino-aprendizagem, desde que
sejam oferecidas condições materiais e conceituais para isso acontecer (CARDO-
SO; SCARPA, 2002, p. 22).

1053
Os encontros formativos são articulados em três momentos distin-
tos e complementares: (i) tematização; (ii) problematização; (iii) inves-
tigação didático-metodológica. As ações formativas são decorrentes de
atividades favoráveis ao ensino da argumentação por meio de práticas de
linguagem, tal como é indicado na Base, mas tem como foco central as
interações entre os sujeitos, que precisam ser sempre contextualizadas,
fundadas em relações que acontecem em um espaço-tempo específico
e entendidas na historicidade de cada participante e das comunidades
envolvidas (KOZOULIN, 2013).
Durante a formação continuada de professores são utilizados re-
cursos elaborados especificamente pelo grupo do ENARE com intui-
to de contribuir com o estudo teórico – como o livro Ensino de argu-
mentação na educação básica e o Guia teórico-prático para professores da
educação básica (ver Figuras 02 e 03) –, de promover pensamentos/
sensibilidades/fazeres estritamente interconectados, de permitir a análi-
se de metodologias de ensino-aprendizagem e a produção de materiais
que subsidiem a elaboração de propostas de ensino da argumentação
comprometidas com o aprendizado qualificado da língua portuguesa
visando à formação integral dos estudantes para a cidadania em prol da
educação emancipatória.

Figura 2. Ensino de Argumentação na Educação Básica.

Fonte: AZEVEDO et al, 2021.

1054
Figura 3. Guia teórico-prático para professores de educação básica.

Fonte: AZEVEDO, 2022.

O livro digital foi elaborado colaborativamente ao longo do desen-


volvimento do curso Ensino de Argumentação na Escola (ENARE),
em 2021, na Universidade Federal de Sergipe, campus São Cristóvão.
Está organizado em torno de dez questões que visam a oportunizar
o conhecimento de conceitos que fundamentam o trabalho com a
argumentação em diferentes níveis de ensino e contribuir com reflexões
a partir de roteiros que permitem discutir as adequações necessárias a
cada realidade. As discussões realizadas colaboram com a construção de
alternativas para a efetivação desse tipo de ação docente nos diferentes
espaços de atuação profissional. As questões incluídas na obra são: O
que nos leva a argumentar na vida cotidiana? Como colocar um assunto
em questão? Como justificar uma posição diante do outro? Como
perspectivar um assunto? Como assumir posições ao argumentar?
Argumenta-se em situações polarizadas? Onde está a argumentação?
Com que se parece a argumentação? Como explicar a argumentação aos
pais? Há vantagens em ensinar a argumentar? (AZEVEDO et al., 2021)
O Guia foi elaborado por AZEVEDO (2022) e tem como objetivo
auxiliar os professores no entendimento de um conceito particular – a
capacidade argumentativa –, uma vez que cabe a escola proporcionar
meios para haver o desenvolvimento de capacidades de linguagem ao

1055
longo da vida escolar e contribuir para que os estudantes participem de
práticas argumentativas que ocorrem na vida, além das didático-peda-
gógicas, que ocorrem tanto em espaços públicos quanto privados.
Além desses recursos, são configurados, a cada edição dos cursos,
um conjunto de materiais didáticos elaborados com a contribuição das
reflexões realizadas em parceria com os professores participantes da for-
mação continuada. As sugestões de atividades contribuem para as práti-
cas pedagógicas acontecerem efetivamente em classe e estão organizadas
em práticas sociais de oralidade, leitura, escrita e análise linguística, que
são articuladas em Roteiros de Trabalho. Neles, as ações educativas são
detalhadas, visando a contribuir para a consecução de práticas argu-
mentativas apoiadas em gêneros discursivos, com o envolvimento de
diferentes sujeitos sociais. Também são elaborados Planos de Aula, que
auxiliam os professores a estabelecer relações entre as exigências legais
e as necessidades sociais, com destaque para os modos que favorecem o
desenvolvimento de distintas capacidades argumentativas.

4. Discussões (nada) finais


De acordo com as experiências vivenciadas durante a formação
continuada de professores realizadas a partir dos objetivos do Projeto
de Extensão do Ensino de Argumentação na Escola (ENARE), atu-
almente vinculado tanto à Universidade Federal de Sergipe quanto à
Universidade Estadual de Santa Cruz, Bahia, observamos que a me-
todologia adotada vem se consolidando de maneira a permitir a cola-
boração de doutores, doutorandas, mestrandas, graduandas das duas
universidades e os professores que estão em plena atividade nas escolas.
Durante a realização dos minicursos e das oficinas, os encontros
formativos têm proporcionado o estudo teórico, a revisão dos processos
de apropriação dos instrumentos socioculturais que são constituídos
historicamente e objetivados na cultura material, a construção de meto-
dologias de ensino-aprendizagem e a produção de materiais didáticos, a
partir de estratégias colaborativas, que também visam a atender às exi-
gências da competência n. 7 da BNCC (BRASIL, 2018). Ao mobilizar

1056
os conhecimentos, as atitudes e os valores em circulação na vida cotidia-
na, os professores e os estudantes “aprendem como pensar teoricamente
a respeito de um objeto de estudo e, com isso, formam um conceito
teórico apropriado desse objeto para lidar praticamente com ele em
situações concretas da vida” (LIBÂNEO, 2004, p. 122).
Nesse sentido, a capacidade de argumentar não é vista como con-
dicionada ou restrita apenas à compreensão de aspectos estruturais
relacionados ao discurso argumentativo, mas está embasada em uma
concepção de argumentação como prática social de linguagem, sobre-
tudo porque a degradação da vida humana é cada vez mais intensa na
sociedade contemporânea, gerando crise da produção material, crise de
valores etc., o que afeta todos os aspectos da vida em sociedade (éticos,
políticos, ideológicos, educacionais etc.) e, consequentemente, as for-
mas de sociabilidade (TONET, 2005).
Entendemos, assim, que possibilitar aos sujeitos sociais a defesa de
opiniões e a avaliação de pontos de vista, em um processo interacional,
situado, vivencial e não simulada (AQUINO, 2018), torna-se um meio
para as ações, apoiadas em necessidades, emoções e saberes etc., regis-
trarem as relações estabelecidas entre os objetos da vida, com os outros
sujeitos e as diferentes linguagens (LIBÂNEO, 2004).
Como os educadores envolvidos com a EJA têm o desafio peda-
gógico de motivar o diálogo entre os oprimidos para a superação dessa
condição, entendemos que os sujeitos escolares podem se tornar os ato-
res agentes de letramento, alinhados a uma educação libertadora, para
suplantar um ensino pautado no domínio mecânico de técnicas para
tornar os estudantes capazes de ler e escrever. Como o termo “agência”
em Linguística Aplicada, está apoiado em uma perspectiva teórico-crí-
tica, concebemos como um tipo de ativismo que possibilita aos sujeitos
construir posicionamentos acerca de um acontecimento social local, a
fim de colaborar com a consecução de práticas comunitárias. Esse tipo
de postura mobiliza as capacidades individuais na defesa de grupos ou
situações que merecem atenção, transformação e, por vezes, superação do
status quo (VIANNA; STETSENKO, 2019).

1057
Desse modo, o professor é comprometido a assumir um papel ati-
vo em favor daqueles que são menos favorecidos a fim de promover
conexões entre os mundos da vida, as concepções produzidas em di-
ferentes espaços sociais, sobretudo os não hegemônicos. Esse tipo de
comprometimento inter-relaciona os conhecimentos, os discursos, as
distintas linguagens, as atitudes de criação e recriação, para que seja
possível orientar as reflexões e acompanhar as ações que são realizadas
colaborativamente, enquanto são colocadas em diálogo as marcas iden-
titárias e as valorações axiológicas de cada grupo de estudantes. Assim,
os sujeitos escolares se tornam capazes de opinar, interagir, argumentar
quando desafiados, para concretizar um papel responsável pela constru-
ção histórica do conhecimento.
A partir das ideias de Freire (1999, p. 68), consideramos que “nin-
guém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se edu-
cam entre si, mediatizados pelo mundo”. Além disso, entendemos que
a convivência mútua, em diferentes espaços, possibilita a transformação
de todos os sujeitos implicados nas ações formativas/colaborativas, por
isso não apenas instigam a manutenção das ações de pesquisa e exten-
são, como motivam a manutenção de meios favoráveis a manter aberto
os meios para realizar novas partilhas e trocas acadêmicas e humanas.
Desse modo, pretende-se contribuir efetivamente com a reflexão relati-
va às práticas escolares, visando a suplantar os limites das ações cotidia-
nas e vislumbrar novas alternativas para a concretização da argumenta-
ção por meio de práticas sociais de letramento.

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1060
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

DO PROGRAMA ISF À REDE ISF: ENSINO,


INTERNACIONALIZAÇÃO E FORMAÇÃO DE
PROFESSORES NO NUCLI-UFS DE INGLÊS

Rodrigo Belfort Gomes - UFS


Elaine Maria Santos - UFS

RESUMO: O Programa Idiomas sem Fronteiras, lançado em 2012 ainda


como Inglês sem Fronteiras (BRASIL, 2012), teve, desde seu início, a
internacionalização como foco central, na medida em que seu objetivo
principal foi o de auxiliar os alunos em processo de mobilidade acadêmica
pelo Ciência sem Fronteiras. Várias portarias foram responsáveis pela
estruturação e ampliação do Programa, culminando com a Resolução 1/2019
da ANDIFES, que regulamentou a vinculação do IsF à Associação Nacional
dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior. Diante desse
cenário, esse trabalho tem como objetivo inicial situar o modo pelo qual o
Programa IsF-Inglês foi estruturado na UFS, relacionando as ações ligadas ao
ensino e à formação de professores voltados para a internacionalização. Com
a desvinculação do programa ao MEC, vários ajustes foram necessários ao
programa, de modo que, esse trabalho também se propõe a fazer uma análise
sobre as mudanças e ajustes que foram necessários no Núcleo da Universidade
Federal de Sergipe, para que as ações anteriormente desenvolvidas pudessem ter
continuidade. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de estudo de caso, uma vez
que investiga o IsF-Inglês da UFS de forma holística, apontando os ajustes que
se fizeram necessários para que o Programa se mantivesse em funcionamento.
Como resultados preliminares é possível identificar a importância das ações
de formação de professores desenvolvidas no NucLi, uma vez que podem ser
consideradas como os pilares para que toda a equipe pudesse ter em mente
não somente os objetivos do programa, mas, principalmente como as ações
desenvolvidas estão relacionadas à internacionalização.
PALAVRAS-CHAVE: Idiomas sem Fronteiras; Língua Inglesa;
Internacionalização; Formação de Professores; Ensino de Línguas

ABSTRACT: The Languages without Borders Program, launched in 2012,


still as English without Borders (BRASIL, 2012), had, since its inception,
internationalization as a central focus, insofar as its main objective was to
assist students in the process of academic mobility by Science without Borders.

1061
Several ordinances were responsible for structuring and expanding the
Program, culminating in ANDIFES Resolution 1/2019, which incorporated
the program to the National Association of Directors of Federal Institutions
of Higher Education. In view of this scenario, the initial objective of this
work is to situate the way in which the LWB-English Program was structured
at UFS, listing actions related to teaching and teacher training aimed at
internationalization. With the disengagement of the program from the
Ministry of Education, several adjustments were necessary to the program, so
that this paper also analyzes the changes and adjustments that were necessary
in the Nucleus of the Federal University of Sergipe (UFS), so that the actions
previously developed could have continuity. This is a case study qualitative
research, since it investigates the LWB-English at UFS in a holistic way,
pointing out the adjustments that were necessary for the Program to remain
in operation. As preliminary results, it is possible to identify the importance of
teacher training actions developed in the Language Nucleus, since they can be
considered as the pillars so that the entire team could keep in mind not only
the objectives of the program, but, mainly, the actions developed are related
to internationalization.
KEYWORDS: Languages without Borders; English language;
Internationalization; Teacher training; Language Teaching

Introdução
O Programa Inglês sem Fronteiras (IsF), promulgado em 2012,
em decorrência de uma parceria estabelecida com o Ministério da
Educação (MEC), teve como objetivo principal auxiliar os alunos do
Programa Ciência sem Fronteiras, com o desenvolvimento linguístico
necessário para que pudessem passar nas provas de proficiência requeri-
das nos programas de mobilidade acadêmica, nos quais estavam inscri-
tos (BRASIL, 2012).
A Universidade Federal de Sergipe (UFS) ingressou no Programa
IsF ainda em 2012, participando das discussões iniciais sobre diretrizes
e ações do Programa, nas quais duas questões eram frequentes: a in-
dependência do programa e a inclusão de outros idiomas. Esse último
item foi assegurado na Portaria nº 973, de 14 de novembro de 2014,

1062
que ampliou o Programa, a partir da inserção de mais seis idiomas:
alemão, espanhol, francês, italiano, japonês e português como língua
estrangeira (BRASIL, 2014). A sigla IsF permaneceu, mas agora se
referindo ao Programa Idiomas sem Fronteiras, que passou por nova
profunda modificação em 2019, quando foi oficializada a sua vincula-
ção à ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior). A partir de então, o Programa passou a
ser chamado de Rede Andifes IsF, mantendo os mesmos objetivos de
promover o desenvolvimento linguístico da comunidade acadêmica, a
partir de ações relacionadas ao processo de internacionalização do ensi-
no superior, e imersos em práticas de formação de professores que sejam
condizentes com os objetivos de internacionalização propostos pela IES
(BRASILIA, 2019).
A independência do programa pôde ser gradativamente percebida,
quando as ações de formação de professores começaram a ser mais in-
centivadas (a partir de 2014) e quando o Ciência sem Fronteiras che-
gou a seu fim, em 2017. Com o término do CsF, todas as ações do IsF
começaram a ser pautadas nas suas próprias necessidades e objetivos.
Assim, esses objetivos precisaram ser bem definidos, o que fez com que,
no edital de (re)credenciamento, o IsF começasse a exigir a apresentação
de políticas linguísticas no momento da submissão de suas propostas.
É nesse contexto que o presente artigo se insere, de modo a ser
possível fazer um estudo de caso sobre o funcionamento do NucLi da
Universidade Federal de Sergipe (UFS), destacando as ações de ensino,
internacionalização e formação de professores que vêm sendo executa-
das e de que forma foram adaptadas para alguns novos cenários, como
o rompimento com o MEC, a pandemia e o cenário pós-pandêmico.

O IsF na UFS: um programa voltado para o ensino


Apesar de termos, na UFS, ações voltadas para o francês, espanhol
e português para estrangeiros, as atividades aqui descritas se referem,
apenas ao IsF-Inglês. Em 2012, a UFS foi credenciada ao Programa IsF,
com as ações iniciais de oferta de provas do TOEFL ITP, que deveriam

1063
ser aplicadas apenas para os alunos que estavam em processos de mobi-
lidade acadêmica. As atividades relacionadas ao ensino de língua inglesa
foram percebidas, em 2013, com a disponibilização de senhas para o
curso do My English Online, com 5 níveis de cursos, destinados a alunos
dos níveis básico, intermediário e avançado.
O contexto de uma IES que não possui Centro de Línguas, como
a UFS, faz com que as ações desenvolvidas tenham uma receptividade
ainda maior, por se constituir, em muitos casos, como a única opor-
tunidade institucional e gratuita para o desenvolvimento linguístico.
Assim, na Universidade Federal de Sergipe, os cursos iniciados em 2014
fizeram com que houvesse um grande número de inscrições, o que ge-
rou longas listas de espera e um alto índice de finalização de alunos nos
cursos. Até 2017, no entanto, em decorrência da ligação do programa
ao CsF, o sistema de ranqueamento privilegiava alunos dos cursos con-
siderados como prioritários para os processos de mobilidade do Ciência
sem Fronteiras. A partir de então, todos os alunos passaram a ter as
mesmas chances na busca por uma vaga, e o sistema passou a ser mais
democrático, como era desejado pelo Núcleo Gestor do Programa e
todos os especialistas credenciados.
A inscrição nos cursos presenciais era realizada via sistema nacional,
com a possibilidade de geração de listas de espera, já que, até a finaliza-
ção do período de inscrição, todos os alunos que desejavam uma vaga,
conseguiam se inscrever. Em 2019, o IsF-Inglês da UFS tinha 6 profes-
sores bolsistas, e como cada professor ficava responsável por 3 turmas
de 25 alunos, cada, tínhamos um total de 75 turmas e 1.875 vagas, por
oferta. Com uma média de 5 ofertas anuais, a UFS disponibilizava,
para a comunidade acadêmica 9.275 vagas, distribuídas em 375 tur-
mas. Como cerca de 60% dos alunos finalizavam os seus cursos, o IsF-
Inglês da UFS teve uma média de 5.565 alunos com cursos finalizados,
todos focados na vivência acadêmica.
De acordo com os relatórios gerenciais do Núcleo Gestor do IsF,
a UFS, até 2018, conseguiu obter uma média de 140% de inscrições
(SANTOS; GOMES, 2021), o que dava, em algumas turmas, listas

1064
de espera de 100 alunos. Essa quantidade represada de alunos que não
conseguiam uma vaga sintetiza a necessidade urgente em termos mais
programas como o IsF e maiores investimentos, de modo que mais
vagas possam ser ofertadas. A orientação para a oferta de cursos que
privilegiassem os níveis de proficiência B1 e B2 não representavam a
demanda de IES que não possuem centros de línguas, já que um grande
número de alunos, que poderiam ser contemplados nos centros de lín-
guas, acaba procurando o IsF.
A sistemática de funcionamento dos cursos presenciais privilegia os
conteúdos acadêmicos, uma vez que apenas cursos disponibilizados em
um catálogo nacional podem ser ofertados. Nesse catálogo, os cursos
são divididos em 4 áreas (Inglês para fins específicos, Inglês para fins
acadêmicos, cultura e exames de proficiência). Entre os cursos dispo-
nibilizados, temos, até 2021, um total de 327 possibilidades de cursos
a serem ofertados, combinando nomes de curso, carga horária possível
(16, 32, 48 ou 64 horas) e nível de proficiência linguística (A1, A2,
B1, B2 ou C1). Entre os cursos mais demandados na UFS, destacamos
cinco: compreensão escrita – abstracts; Compreensão oral – palestras
e aulas; Produção escrita – parágrafos; Produção Oral – comunicações
acadêmicas e Produção Oral – debates, o que comprova o teor acadêmi-
co das aulas disponibilizadas para a sociedade acadêmica.
Após o cadastro dos cursos e inscrição, o ranqueamento era feito
pelo próprio sistema, e o acompanhamento era conduzido localmente
pelos coordenadores de cada NucLi, juntamente com a formação de
professores conduzida, o acompanhamento de evasão e as atividades
relacionadas ao processo de preparação de materiais.

1065
Figura 1: Fluxograma de acompanhamento de evasão, preparado pelo IsF-UFS

Fonte: SANTOS; GOMES, 2021, p. 186

O controle da evasão na UFS é feito seguindo-se o fluxograma


apresentado na Figura 1, no qual a presença do aluno é acompanhada
pelo professor bolsista, sob a supervisão do coordenador pedagógico do
programa. O acompanhamento é feito primordialmente por e-mail, de
modo que a cada aula perdida, o aluno recebe instruções do professor,
que incluem desde orientações para que eles possam voltar ao curso
sem prejuízos no assunto perdido a indagações sobre dificuldades de
acompanhamento e oferta de outros horários de turmas, em caso de
uma possível troca.
A partir de 2019, com a perda do sistema nacional de inscrições,
em decorrência da vinculação ao MEC, toda a oferta dos cursos passou
a ser coordenada localmente. No caso da UFS, passou a ser feita pelo

1066
sistema SIGAA, com três consequências diretas, por conta da mudança
de procedimentos. Inicialmente, é importante destacar que, quando do
uso do sistema de inscrição do MEC, ao se logar ao sistema, o aluno
apenas entrava em contato com os cursos disponibilizados para o nível
linguístico identificado como correspondente ao do discente, já que o
sistema reconhecia as notas obtidas no TOEFL ITP e no MEO, requi-
sitos para a inscrição nos cursos e ofertados regularmente e de forma
gratuita nas instituições. No SIGAA, esse procedimento foi modifica-
do, ficando o aluno responsável por anexar um comprovante de profi-
ciência no ato da matrícula, acarretando em um trabalho adicional ao
coordenador pedagógico, que agora precisaria conferir essa documenta-
ção, ou repassá-la aos professores das turmas.
Como segunda consequência, temos a contabilização no número
de inscrições, já que ao ser atingido o número de vagas disponibilizadas,
o sistema de inscrição fecha automaticamente. Assim, sem a existência
de listas de espera, não temos como saber a verdadeira procura por cur-
sos e não temos como substituir os alunos faltosos, o que gera aumento
no índice de absenteísmo, já que, anteriormente, com a falta na pri-
meira semana de aula, outros alunos eram chamados e a turma iniciava
com as vagas totalmente preenchidas. É comum termos alunos que se
inscrevem nos cursos assim que as vagas são abertas, já que elas são ra-
pidamente preenchidas, e, ao constatar que não podem frequentar, não
comparecem à aula, deixando aquelas vagas ociosas.
Uma terceira consequência foi sentida no acúmulo de trabalho, an-
teriormente feito de forma automática ou pelos professores bolsistas, e
que agora foi repassada para o coordenador pedagógico do programa.
Ao término de cada turma, no caso da UFS, o coordenador precisa ca-
dastrar cada presença e fazer relatórios individualizados de cada turma,
por terem sido cadastradas como ações de extensão, o que faz com que
seja necessário seguir os protocolos da IES. Somente após essas fases
concluídas, o certificado é gerado automaticamente para o aluno.
Com a pandemia, novos ajustes foram necessários, já que todas as
aulas foram migradas para o modo remoto, com aulas ministradas pela

1067
Plataforma da Microsoft Teams. Professores e coordenadores precisaram
aprender a utilizar o sistema e a organizar todas as aulas, utilizando fer-
ramentas digitais. Novos desafios foram somados, como a dificuldade
em oportunizar momentos de interação, a constatação de que a maioria
dos alunos não ligavam suas câmeras e a busca por maior participação
na aula, com o aluno utilizando o chat e sua voz. Outros desafios ti-
veram também que ser superados, como a instabilidade da internet,
não só dos alunos, como também dos professores, o acompanhamento
de discussões em pequenos grupos, a motivação dos alunos nessa nova
modalidade de ensino, e problemas de ruído, muitas vezes impossíveis
de ser previstos ou, até mesmo corrigidos, e que acometem professores
e alunos.
Mesmo com todos os problemas, novas práticas foram instauradas
e os resultados foram satisfatórios. Tivemos, durante a pandemia, na
modalidade remota, de 2020 a 2022, quarenta e três cursos de 16 horas
sendo ofertados, e, em todos, 25 alunos inscritos, o que perfaz um total
de 1.075 vagas disponibilizadas. Em virtude dos problemas menciona-
dos acima, apenas cerca de 40 a 50% dessas inscrições foram encerradas
com sucesso, ou seja, com a conclusão dos alunos nos cursos nos quais
estavam inscritos. Importante destacar, mais uma vez, que todos os cur-
sos foram retirados do catálogo de cursos e estavam focados na vivência
acadêmica e na preparação dos alunos para a internacionalização, na
medida em que foram trabalhadas estratégias para a compreensão e/ou
expressão escrita e oral, a partir de interações acadêmicas, abstracts, ar-
tigos e debates, por exemplo. Assim, os alunos podem estar preparados
para interações acadêmicas na língua inglesa, nas quais trocas científicas
podem ser estabelecidas, com resultados positivos para a UFS.

O IsF na UFS: um projeto de formação voltado para a


internacionalização
O projeto de formação de professores do IsF-Inglês desenvolvido
na UFS pode ser dividido em quatro fases: 1) de 2013 a 2019, quan-
do o programa estava ligado ao MEC; 2) de 2019 a 2020, quando

1068
o programa passou por um ajuste, para se adaptar à nova realidade,
quando da vinculação à ANDIFES; 3) de 2020 a 2022, quando o IsF
precisou se ajustar à nova realidade imposta pela pandemia, e 4) a partir
de 2022, quando do retorno às atividades presenciais.
O projeto de formação de professores instituído na fase 1 esta-
va baseado na leitura, fichamento e discussão de textos e workshops,
acompanhados de um processo de formação voltado diretamente para
a preparação de aulas, no qual os professores eram divididos em duplas
e cada dupla ficava responsável pela preparação dos materiais didáticos
para os cursos, previamente selecionados em reunião entre professores e
coordenadores. Os materiais eram, então, apresentados na reunião pe-
dagógica semanal, com uma sessão de feedback coletivo, na qual todos
eram convidados a contribuir com ideias ou tirar suas dúvidas. As aulas
eram ajustadas pelos professores e enviadas por e-mail para que pudes-
sem ser validadas e inseridas no drive local do Programa. Esse modelo
pode ser mais bem compreendido com a análise da Figura 2, a seguir, na
qual podemos encontrar o detalhamento das atividades.

Figura 2 - Esquema de modelo de formação de


professor(a) desenvolvido no NucLi IsF-UFS

Fonte: SANTOS; GOMES, 2021, p. 172.

1069
É importante destacar que a reflexão coletiva é incentivada no
Programa, não somente no momento das discussões dos textos lidos,
como também durante as aulas que são apresentadas para todo o grupo.
A partir desses momentos, observa-se que o grupo começa a teorizar
a partir de suas práticas e a praticar conforme suas teorias, conforme
defendido por Kumaravadivelu (2006), demostrando mais consciência
em relação às escolhas metodológicas feitas, com objetivos mais condi-
zentes com as necessidades de cada turma.
O IsF tem como diferencial o fato de ter suas atividades relacio-
nadas às ações e práticas de internacionalização da IES, o que pode ser
comprovado quando percebemos as relações estabelecidas entre o IsF e
as Relações Internacionais das instituições de ensino superior, e o teor
dos cursos ofertados. Os coordenadores do IsF, dessa forma, passaram
por um processo de estudo teórico sobre internacionalização e políticas
linguísticas e essas questões começaram, também, a fazer parte das dis-
cussões promovidas no processo de formação de professores desenvol-
vido pela UFS. As primeiras turmas, em consequência do, ainda, pou-
co contato teórico com o tema, por parte dos coordenadores, tiveram
uma quantidade menor de oportunidades de trocas nesse campo, mas,
paulatinamente, questões relacionadas à internacionalização do ensino
superior passaram a fazer parte da realidade do NucLi.
A fase b foi caracterizada por momentos de turbulência e insta-
bilidade, uma vez que todas as práticas tiveram que ser ajustadas, em
virtude da desvinculação ao MEC. Ao invés de 3 turmas, cada professor
passou a ter apenas 1, já que o valor das bolsas foi reduzido a quase
1/3 do que era anteriormente pago. Toda a parte conceitual do progra-
ma continuou a acontecer, mas a execução ficou comprometida pelos
ajustes que tiveram que ser feitos, como, por exemplo, o trabalho extra
dedicado para a análise do nível de proficiência dos alunos, durante a
inscrição nos cursos, as inscrições pelo SIGAA e o gerencialmente ma-
nual estabelecido e incrementado pelo uso de planilhas de excel.
A maior diferença na fase b foi percebida em consequência da redu-
ção no valor das bolsas, uma vez que a captação de professores bolsistas

1070
ficou mais difícil, e o nível de proficiência exigido foi afetado, já que,
no passado tínhamos professores com nível C1, ou discentes no nível
B2 que conseguiam, ao final de 1 ano obter o C1. Como um dos pré-
-requisitos para continuar no programa era conseguir se tornar C1 em
um ano, os professores investiam em seus projetos pessoais de desen-
volvimento linguístico. Com bolsas menores, a motivação intrínseca
ficou mais difícil de ser acionada e, com isso, foi inserido, no projeto
de formação, um momento dedicado ao desenvolvimento linguístico.
Durante todas as reuniões semanais, cada aluno tem que apresentar
o que conseguiu cumprir do seu plano de desenvolvimento linguístico,
relatando o que foi estudado e que habilidade foi trabalhada. Quando o
aluno não consegue, por ter tido uma semana mais atribulada, são feitos
novos acordos verbais para que, na semana seguinte, ele possa apresen-
tar o seu novo plano, sinalizando o que foi cumprido.
Com a pandemia, novos ajustes precisaram ser feitos, já que todas
as reuniões tiveram que ser feitas de forma remota, com todas as dificul-
dades inerentes a esse momento, como problemas de conexão, ruídos e
câmeras desligadas. Mesmo com os ajustes necessários, o modelo esta-
belecido na Figura 2 foi cumprido, com a constatação de que o peer ob-
servation foi mais intenso, já que, como não havia mais o deslocamento
para a UFS, os professores bolsistas começaram a assistir as aulas dos
outros e as sessões de feedback estabelecidas foram ricas e contribuíram
para a formação de professores autônomos e crítico-reflexivos, já que
eles começaram a procurar uns aos outros, pedindo ajudas e contribui-
ções. Em decorrência de todas as dificuldades inerentes a um período
pandêmico, a comprovação de proficiência para ingresso nos cursos foi
substituída por um sistema de autodeclaração, no qual o aluno passou
a se inscrever no nível em que se sentia mais confortável e os ajustes
eram feitos in loco, ou seja, os professores orientavam os alunos na troca
de turmas de níveis mais ou menos avançados. O resultado obtido foi
considerado de sucesso, já que poucas foram as trocas feitas.
Na fase d, a atual, estamos em busca de um retorno ao modelo ini-
cial, tentando incorporar algumas práticas adquiridas nos últimos anos,

1071
como o aumento no número de sessões de peer observation. Uma outra
mudança foi também inserida, na tentativa de incrementar o processo
de desenvolvimento linguístico dos alunos, a formação de grupos de
estudo com a English Teaching Assistant (ETA) da UFS. O projeto de
ETAs está vinculado à Comissão Fulbright e visa auxiliar o processo de
desenvolvimento linguístico nas IES brasileiras, com o envio de 1 a 2
estadunidenses que, durante 9 meses, desenvolverão atividades linguís-
ticas na universidade, focando na interculturalidade.
Atualmente, a equipe é composta por cinco professores bolsistas
e quatro professores voluntários. Os professores foram divididos em
duas equipes e, quinzenalmente, eles se reúnem de forma ora remota
ora presencial. Nesses encontros, a ETA trabalha de forma mais intensa
com uma habilidade linguística, privilegiando as habilidades de pro-
dução (speaking e writing), já que são as habilidades sinalizadas pelos
professores como as de maior dificuldade de desenvolvimento nos seus
planos individuais, sendo necessários momentos de interação síncronos.

Algumas considerações
O Programa Inglês sem Fronteiras foi criado com o propósito de
auxiliar alunos em processos de mobilidade acadêmica propiciados em
decorrência do Ciência sem Fronteiras. Várias foram as críticas vindas
por muitos membros da comunidade acadêmica, por não ter existido
um espaço específico para o plurilinguismo e a formação de professo-
res. O IsF, no entanto, passou por vários processos de reconfiguração e
ajustes, incorporando outros idiomas e adquirindo independência no
desenvolvimento de suas ações e dos espaços formativos que passaram
a ser construídos, a exemplo da Especialização em línguas estrangeiras
para a internacionalização, que está em fase de elaboração e será admi-
nistrada em rede.
A vinculação à Andifes fez com que a Rede IsF se reconfiguras-
se e alcançasse uma maior independência no desenho das ações a se-
rem realizadas. É importante destacar, no entanto, que os mesmos
princípios permaneceram inalterados, no que se refere ao foco dado à

1072
internacionalização, ao ensino de línguas e à formação de professores.
Os cases de sucesso do programa podem ser utilizados como exemplos
a serem analisados não somente por integrantes da rede, mas por qual-
quer especialista voltado para a formação de professores e que desejem
se aprofundar no contexto da internacionalização, trabalhando com te-
máticas acadêmicas.
A liberdade de ação da Rede foi fundamental para que os ajus-
tes pudessem ser feitos durante a pandemia da COVID19. Em mui-
tos contextos, como no da UFS, por algum tempo, o IsF se constituiu
como único vínculo que os alunos contemplados mantiveram com a
IES, já que as aulas permaneceram suspensas por alguns meses. Nesse
período, ficou mais evidente, para alunos, professores e coordenadores,
a importância do programa, pois não foram apenas aulas em língua
inglesa que foram disponibilizadas, mas espaços de trocas baseadas em
contextos acadêmicos, o que aproximou ainda mais os alunos às ques-
tões relacionadas aos contextos universitários.
Na UFS, o Programa se faz presente desde o ano de 2012, incialmente
apenas com ações do idioma inglês e posteriormente do francês, espanhol e
português para estrangeiros. Ao longo desse tempo, todo o trabalho de for-
mação de professores foi aprimorado e adaptou-se aos diferentes contextos,
desde bolsas maiores, pagas pela Capes, a bolsas bem menores, passando
por aulas presenciais e ao ensino remoto emergencial imposto em 2020.
Esse trabalho do NucLi tem oferecido a toda a comunidade acadêmica da
UFS cursos de inglês com vistas à internacionalização, com formação de
listas de espera, o que demostra o interesse do público por essas ações e
aponta para um potencial de expansão do programa nessa instituição.

Referências
BRASIL. Portaria nº 1466, de 18 de dezembro de 2012. Institui o Programa Inglês
sem Fronteiras.] Diário Oficial da União, seção 1, n. 244, de 19 de dezembro de 2012.
Disponível em: http://bit.ly/2lyrMzC. Acesso em: 01 jun. 2020.

BRASIL. Portaria nº 973, de 14 de novembro de 2014. Institui o Programa Idiomas


sem Fronteiras. Disponível em: http://bit.ly/2T0hDjy. Acesso em: 01 jun. 2020.

1073
BRASIL. Ministério da Educação. Edital de Recredenciamento nº 29. Brasília, DF:
Ministério da Educação, 13 abr. 2017. Disponível em: http://isf.mec.gov.br/ima-
ges/2017/Edital_29_2017.pdf. Acesso em: 01 ago. 2020.

BRASÍLIA. Resolução do Conselho Pleno da ANDIFES nº 01/2019, de 12 de


novembro de 2019. Cria na estrutura da Associação Nacional dos Dirigentes das
Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), a Rede Andifes Nacional de
Especialistas em Língua Estrangeira - Idiomas sem Fronteiras, denominada Rede
Andifes IsF. Novembro, 2019. Disponível em: <https://www.andifes.org.br/wp-con-
tent/uploads/2021/05/Resolucao-Conselho-Pleno-01_2019.pdf>. Acesso em: 10 jun.
2022.

KUMARAVADIVELU, B. Understanding language teaching: from method to post-


method. Marhwah: Erlbaum, 2006.

SANTOS, Elaine Maria; GOMES, Rodrigo Belfort. O impacto do IsF-Inglês na for-


mação de especialistas e professores de inglês na gestão pedagógica do programa. In:
ABREU-E-LIMA et al. (Orgs.). Sistemas de gestão e ações do núcleo gestor: a ex-
periência do Programa Idiomas sem Fronteira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2021.

1074
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

IDENTIDADE FRACTALIZADA DE DOCENTES


DE LÍNGUAS EM FORMAÇÃO: UM RECORTE
EPISTÊMICO-METODOLÓGICO

Rosyanne Louise Autran Lourenço (CMB)

RESUMO: Este artigo visa a apresentar um recorte epistêmico-metodológico


da noção de identidade fractalizada no âmbito de um estudo de doutoramento,
desenvolvido na área da Linguística Aplicada, entre professores de espanhol
como língua adicional em formação inicial. À luz de pressupostos relativos
aos campos da Transdisciplinaridade, da Complexidade e da Ecologia dos
fenômenos pertinentes à linguagem, abordo a conformação e o desenvolvimento
de uma das manifestações identitárias do Eu-humano, a partir do processo de
fractalização de aspectos relacionados com as histórias de formação leitora dos
participantes de pesquisa, por meio do processo de cristalização dos dados
empíricos. Tal perspectiva metodológica viabiliza a observação da emergência
do TODO da identidade fractalizada do Eu-leitor a partir das inter-relações
entre as suas PARTES, representadas pelos fractais identificados por meio
de observação participante, de entrevistas semiestruturadas, de memoriais
de leitura, de grupos focais e de notas de campo descritivas e reflexivas. A
metáfora do cristal analítico possibilita, igualmente, a produção de distintas
imagens interpretativas do fenômeno sob estudo e da sua representação com
apoio de recursos variados, englobando tanto a produção de textos verbais
quanto não verbais, outorgando ao professor-pesquisador possibilidades de
expressão dos resultados de pesquisa de forma mais ampla e criativa.
PALAVRAS-CHAVE: identidade fractalizada, complexidade, cristalização

ABSTRACT: This article aims to present an epistemic-methodological


approach to the notion of fractalized identity within the scope of a doctoral
study, developed in the area of Applied Linguistics, among teachers of Spanish
as an additional language in initial training. In the light of assumptions related
to the fields of Transdisciplinarity, Complexity and the Ecology of phenomena
relevant to language, I approach the conformation and development of one of
the identity manifestations of the human Self, from the fractalization process
of aspects related to the stories of reading training of research participants,
through the process of crystallization of empirical data. This methodological
perspective enables the observation of the emergence of the WHOLE of the

1075
fractalized identity of the I-reader from the interrelationships between its
PARTS, represented by the fractals identified through participant observation,
semi-structured interviews, reading memorials, focus groups and descriptive
and reflective field notes. The metaphor of the analytical crystal also
enables the production of different interpretive images of the phenomenon
under study and its representation with the support of various resources,
encompassing both the production of verbal and non-verbal texts, giving the
teacher-researcher possibilities of expression of the results of research more
broadly and creatively.
KEYWORDS: complexity, fractalized identity, cristalization

Apresentação
Este artigo tem como objetivo apresentar o conceito de identidade
fractalizada a partir de um recorte epistêmico-metodológico da pesqui-
sa de doutorado que desenvolvo no âmbito da Linguística Aplicada209,
mais especificamente, no contexto da formação inicial de docentes de
línguas.
Epistemologicamente, o estudo se circunscreve ao marco ecotrans-
disciplinar da produção do conhecimento (BRONFENBRENNER,
1979; NICOLESCU, 1999; GALATI, 2017) e dos fenômenos rela-
cionados com a linguagem (VAN LIER, 2010), à luz do pensamento
complexo (MORAES, 2021; MORIN, 2015). A investigação conta,
ainda, com a cristalização (ELLINGSON, 2008; RICHARDSON; ST.
PIERRE, 2005) dos dados empíricos gerados pelos instrumentos de pes-
quisa empregados, a saber: memoriais de leitura (ABRAHÃO, 2011),
entrevistas semiestruturadas audiogravadas (COHEN; MANION;
MORRISON, 2005) e grupos focais (GATTI, 2005).
Desse modo, subdivido este texto em seis seções que tratam, respec-
tivamente, de uma introdução, contendo um breve panorama histórico
209
Doutorado pelo Programa Pós-Graduação em Linguística, do Departamento de
Linguística, Português e Línguas Clássicas, do Instituto de Letras da Universida-
de de Brasília. Área de Concentração: Linguagem e Sociedade. Linha de Pesqui-
sa: Língua, interação sociocultural e letramento, sob a orientação da Profa. Dra.
Mariney Pereira Conceição.

1076
acerca do tratamento atribuído ao construto da identidade; da apresen-
tação das bases epistemológicas que delineiam a noção de identidade
fractalizada; da noção de fractal e da concepção do construto identitário
sob a ótica do pensar complexo; da metáfora analítica por meio da qual
se cristalizam e se analisam os dados gerados no contexto da pesquisa,
e, finalmente, das minhas considerações finais. Ao final, disponho as
referências consultadas para a elaboração deste estudo.

Introdução
Historicamente, o entendimento sobre o que vem a ser a identi-
dade do ser humano experimenta um amplo processo de mudanças
estruturais que rompem com paradigmas tradicionais, deslocando sua
concepção seminal de uma configuração cêntrica e fixadora do Eu em si
ao seu entendimento como entidade fluida e dinâmica (HALL, 2003).
Dessa forma, salientam-se três perspectivas distintas do construto
identitário: a primeira refere-se ao sujeito do Iluminismo, um “indiví-
duo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão,
de consciência e de ação.” (HALL, 2003, p. 10), designando um Eu-
indiviso, homogêneo e estável, por consistir em essência inata e imutá-
vel ao longo da vida.
A segunda concepção consiste na do sujeito sociológico que, segun-
do o autor, apresenta a sua origem nas mudanças do mundo moderno
e na tomada de consciência da impossibilidade da existência de um
núcleo interior autônomo, homogêneo e autossuficiente, deslocando
a sua compreensão para a de um Eu-múltiplo que se refrata por meio
das suas relações com o Outro, dos valores, dos sentidos e dos símbolos
pertencentes a contextos socioculturais compartilhados.
Esse mesmo processo de fragmentação dá origem à terceira visão de
identidade, a do sujeito pós-moderno, em constante processo de forma-
ção e de transformação, segundo sejam as formas de representação ou
de interpelação dos sistemas culturais onde se inserem os indivíduos, o
que os leva a assumirem variadas e distintas conformações identitárias.

1077
Ainda de acordo com Hall (2003), a mobilidade do sujeito pós-moder-
no, facilitada e promovida pela globalização (WOODWARD, 2000)210,
imprime um caráter aberto às identidades, implicando novas articula-
ções identitárias, na sua pluralidade e na sua fragmentação inevitáveis.
Em meio a tantas articulações de variáveis pertinentes ao construto
da identidade, Norton (2000) propõe, desde uma perspectiva heurísti-
ca, uma visão mais abrangente desse construto, contemplando-o como
a maneira de entender as relações de cada indivíduo com o meio, segun-
do coordenadas têmporo-espaciais, e o modo como essas relações se (re)
constroem no decurso da sua vida.
Entendo que, na era da pós-modernidade, a noção em torno da
constituição identitária do ser humano reafirma e potencializa as ideias
de multiplicidade, de mutabilidade e de lugar de disputas ideológicas
e de poder (BAXTER, 2016; HALL, 2003), caracterizando-se, marca-
damente, não exatamente por sua fragmentação mas por um processo
de refração cada vez mais intenso, como resposta à própria celeridade
das mudanças ocasionadas pela globalização, que lhe exigem maior mo-
bilidade e fluidez na demanda por novas e constantes (re)adaptações a
contextos de vida cada vez mais complexos.
Nesse sentido, penso que os processos identitários, em realidade,
fractalizam-se, em um movimento de resposta do ser humano, por
meio da manifestação de seu self complexo (MERCER, 2011), a todo
um cenário global e local continuamente cambiante que lhe impõe
a necessidade vital de pulverizar-se em múltiplos e transitórios selves
(ROBERTS, 2000) sem, no entanto, perder-se de si mesmo.
Para que o meu leitor possa melhor compreender a noção de identi-
dade fractalizada, abordo, a seguir, as três bases epistemológicas a partir
das quais concebo esse construto.

210
De acordo com a autora, o processo de globalização caracteriza-se pelas intera-
ções entre fatores econômicos e culturais que suscitam mudanças nos padrões de
consumo, demandando tanto a construção de novas e globalizadas identidades
quanto a produção de efeitos de convergência e de divergência entre culturas e
estilos de vida.

1078
Condições iniciais epistemológicas
No âmbito do diálogo epistemológico que constitui as condições
iniciais da emergência da identidade fractalizada, entendida como um
sistema adaptativo complexo (SAC), saliento três abordagens: a primeira
é a da Transdisciplinaridade, no que tange à produção do conhecimento
científico ocidental, cujo objetivo, em linhas gerais, consiste na compre-
ensão do mundo presente e do sentido da vida, pressupondo a liberdade
entre as fronteiras disciplinares (GALATI, 2017; NICOLESCU, 1999).
Suas características principais englobam a abertura, o diálogo e a
reconciliação entre distintas áreas do saber e da expressão humanos,
incluindo-se a arte, a literatura, a poesia e a experiência interior de cada
indivíduo (FREITAS, MORIN, NICOLESCU, 1994), reafirmando a
multirreferencialidade, a multidimensionalidade e a indissociabilidade
entre indivíduo e conhecimento como traços imanentes do olhar trans-
disciplinar sobre os mais diversos fenômenos, entre eles, a constituição
identitária do Eu-humano, por exemplo.
A segunda abordagem refere-se ao tratamento ecológico dos fenômenos
relacionados com a linguagem, meio de expressão pelo qual estudo o fenôme-
no da identidade fractalizada. Nesta perspectiva, filio-me tanto à visão sistê-
mica de ecologia do desenvolvimento do homem (BRONFENBRENNER,
1979), o qual se define como um estado de mudanças constantes nas formas
como o indivíduo percebe e lida com os seus contextos, entendidos como
sistemas dinamicamente aninhados, interconectados em um gradiente de
níveis, quanto ao tratamento dos fenômenos linguísticos, que se caracte-
rizam, sobretudo, na atenção às relações, ao contexto, à emergência de pa-
drões, à sua qualidade, ao valor, à perspectiva crítica, à variabilidade e à
agência dos agentes neles involucrados (VAN LIER, 2010).
Por último, a complexidade, que emerge, sob o marco transdis-
ciplinar da produção do conhecimento, a partir da tessitura de pres-
supostos advindos de diversas perspectivas teórico-metodológicas, no
exercício de uma forma mais aprofundada de pensar e de compreender
o homem, a vida, o mundo, suas múltiplas inter-relações e suas im-
plicações (DITTRICH; LEOPARDI, 2015; LARSEN-FREEMAN;
CAMERON, 2008; MORIN, 2015).

1079
Em meio às articulações entre distintas áreas do saber, apresento,
a seguir, a noção de fractal e a relaciono com a ideia da fractalização
identitária do Eu-humano.

O que é fractal?
Termo cunhado pelo matemático francês Benoît Mandelbrot
(1924-2010), no ensejo de responder a indagações relacionadas com
a complexidade de determinadas formas da natureza, até então, não
solucionadas pela denominada geometria euclidiana (ou clássica)211
(SILVA; BORGES, 2016), o fractal designa uma estrutura de aspec-
to quebradiço, irregular, emaranhado, com padrões espaço-tempo-
rais (ABRAHAM, 1993), replicando-se de forma iterativa e recursiva
(LARSEN –FREEMAN, 2019), a partir de uma estrutura matriz, em
distintas escalas, desde o mundo macrofísico à sua expressão microfísica.
Disponho, a seguir, na Figura 1, a ilustração relativa à Curva de
Koch, denominação atribuída ao matemático sueco Niels Fabian Helge
von Koch (1870 - 1924), em razão da descrição de um dos primeiros
fractais de curvas, conhecido como o floco de neve de Koch, em que é
possível notar a replicação de inúmeros fractais, sinalizada pelo sentido
ascendente da seta à direita, a partir de uma dada estrutura, neste caso,
uma linha reta, abaixo da imagem.

Figura 1 - A curva de Koch

Fonte: https://vicmat.com/la-dimension-fractal-la-curva-koch-la-longitud-las-costas-
gran-bretana/, adaptado. Acesso em: 29 jul. 2022.

211
A geometria das retas, das semirretas e dos segmentos de retas.

1080
Na sequência, ilustro outras manifestações fractais abundantemen-
te encontradas na natureza:

Figura 2 – Representações fractais

Fontes: (A) https://m.facebook.com/criptofficial/


posts/538644856695955?locale2=hi_IN; (B) https://br.pinterest.
com/pin/189010515596970909/; (C) https://br.pinterest.com/
pin/478648266650570944/. Acesso em: 29 jul. 2022.

Na imagem (A), visualizam-se os padrões fractais de uma flor, assi-


nalados pelas diversas figuras geométricas triangulares dispostas em um
gradiente escalonar, permitindo observar que, da composição entre suas
PARTES212, conforma-se o TODO da planta. Ao lado, na imagem (B),
os padrões fractais inerentes ao pulmão humano, à esquerda, e a copa
de uma árvore, à direita, indicando os atributos de autossemelhança e
de recursividade que caracterizam a estrutura fractal. Já na imagem (C),
as sugestivas e irrepetíveis imagens emergentes a partir dos distintos
padrões e escalas gerados pelas múltiplas interações entre as peças de
um caleidoscópio que as reproduz ao ser movimentado, sinalizando o
fenômeno complexo da emergência do TODO em função das intera-
ções entre as suas PARTES.
À luz das suas condições iniciais epistemológicas, apontadas
anteriormente, a fractalização inicia-se a partir dos movimentos de
auto-organização e de readaptação realizados por um dado sistema
212
Destaco o registro dos termos todo e parte com letras maiúsculas em razão da
sua compreensão à luz dos princípios epistemológicos que norteiam o estudo
da emergência do SAC da identidade como expressão fractal do self complexo
(MERCER, 2011) do Eu-humano.

1081
complexo, em resposta às demandas das interações que estabelece com
o meio e com outros SACs (GLEICK, 1987).
Nesse processo, o fractal se replica iterativamente, conservando,
por um lado, características que são próprias à estrutura complexa ma-
triz (TODO), e por outro, apresentando especificidades (PARTES) em
razão das trocas de energia e de informação exercidas nas inter-relações
das que participa com diferentes agentes. Esse comportamento reflete
os seus atributos de autossimilaridade e de recursividade.
Em razão da dinamicidade implicada no referido processo, con-
cebo a constituição identitária do Eu-humano igualmente como SAC
emergente das inter-relações entre os seus diversos e distintos fractais
identitários, tema que, de forma breve, apresento na sequência.

O que é identidade fractalizada?


Parto da concepção do self complexo (MERCER, 2011) do ser hu-
mano como um TODO cognoscente, coerente e emergente, responsá-
vel pelas imagens de si (BEIJAARD; MEIJER; VERLOOP, 2004), que
se fractaliza em múltiplos selves transitórios (ROBERTS, 2000) à medi-
da que realiza suas interações sociais, reorganizando-se e readaptando-
-se, como sistemas complexos que são, a fim de ajustar-se às distintas
situações vivenciadas no decurso da vida e de transformar-se, em res-
posta ao novo (DESCHAMPS; MOLINER, 2014) que se lhe impõe,
em função do seu potencial estado de caoticidade, viabilizado por sua
inesgotável capacidade imaginativa e criadora diante das circunstâncias
do momento histórico vivido.
Dessa forma, no âmbito da lógica ternária que rege a integralidade
da constituição humana, isto é, das contínuas inter-relações entre as suas
dimensões auto-hetero-ecoformativas (MORAES, 2021), entendo a iden-
tidade fractalizada do Eu-humano como o TODO emergente a partir das
interações entre os seus múltiplos fractais identitários, suas PARTES, am-
bas as noções correspondentes às expressões de ser, de estar, de pensar, de
sentir e de agir no mundo, respectivamente, do seu self complexo e dos
selves transitórios que o constituem, conforme ilustro na Figura 3, a seguir:

1082
Figura 3 – Identidade fractalizada

Fonte: a autora

Na representação sugerida, concebo o self complexo do Eu-humano


na sua unidualidade constitutiva: uma natureza marcada tanto por as-
pectos bio-fisio-psicocognitivos e afetivos da manifestação do seu Eu-
indivíduo quanto pelas interações sociais que estabelece ao longo do seu
desenvolvimento, por meio dos seus inúmeros selves transitórios relati-
vos ao seu Eu-sujeito, os quais, por sua vez, apresentam-se com os seus
respectivos fractais identitários, de cujas interações emerge, então, a sua
identidade fractalizada.
Dessa forma, entendo que o atributo da autossemelhança que ca-
racteriza a estrutura fractal desvela-se na essência do TODO do self
complexo, traduzida pela ideia de um Eu consciente de si mesmo,
que se reflete e que também se refrata em todos os fractais identitários
que dos seus selves transitórios se replicam, à medida que as condi-
ções dos meios nos quais interagem demandem respostas que atendam
às particularidade contingenciais vividas pelo Eu-humano, segundo
coordenadas de tempo e de espaço, de modo a criar a necessidade
de reconfigurar, constante e recursivamente, ainda que sutilmente, as
imagens que elabora de si. Tal movimento complexo encontra-se sim-
bolicamente sugerido, na figura em questão, pela representação das
setas espiraladas.
Finalmente, com o intuito de apresentar a metáfora de análise desse
fenômeno identitário, elemento constitutivo do recorte metodológico
anunciado no início deste texto, trato, a seguir, do processo de cristali-
zação dos dados gerados.

1083
O cristal analítico
No marco do arcabouço metodológico emergente da pesquisa que
desenvolvo, utilizo-me da cristalização no processo de análise dos dados
empíricos em razão da possibilidade da composição de uma variedade
de formas, de transmutações, de multidimensionalidades e de ângulos
de visão sobre o fenômeno estudado, possibilitando-me, como pesqui-
sadora, compreendê-lo de forma mais profunda, sem perder de vista as
suas especificidades e imbricações, rasgando as fronteiras configuradas
pelos instrumentos de pesquisa (RICHARDSON; ST. PIERRE, 2005),
postulado ecotransdisciplinar complexo contemplado, igualmente, pela
fundamentação teórica aqui apresentada.
Quanto aos benefícios para o trabalho do pesquisador, salienta-se
a sua liberdade de expressão, uma vez que o processo de cristalização

combina múltiplas formas de análise e múltiplos gêneros de re-


presentação em um texto coerente ou em uma série de textos
relacionados, construindo uma explicação rica e aberta de um
fenômeno que, por sua vez, problematiza a sua própria cons-
trução, salientando o posicionamento e as vulnerabilidades do
pesquisador, reivindicando a construção social dos significados
[...] (ELLINGSON, 2008, p. 4).

Na Figura 4, a seguir, disponho a representação do processo de cristaliza-


ção dos dados tal como o concebo no âmbito do estudo empírico que realizo:

Figura 4 - Processo de análise por meio da cristalização dos dados

Geração e refração dos Análise e cristalização Interpretação das


dados dos dados imagens cristalizadas
(A) (B) (C)

Fonte: Viastral, 2015; Grupoescolar, 2018 e Superiorwallpapers, 2018, em


LOURENÇO (2018, p. 91)

1084
Na sequência de imagens ilustrada acima, entendo cada feixe de luz,
indicado pelos números 1, 2, 3..., como representação da geração de
dados com o apoio de cada instrumento de pesquisa utilizado, configu-
rando as faces do cristal (A). Desse modo, os dados gerados se refratam
em seu interior, sendo, então, cristalizados por meio da análise realizada
à luz dos aportes teóricos e metodológicos que norteiam a proposta do
estudo levada a cabo, conforme sugere o apartado (B) na referida Figura,
gerando, como se observa em (C), imagens representativas do fenômeno
em questão, cuja interpretação, a partir de distintos ângulos de obser-
vação, auxilia-me na sua melhor compreensão (LOURENÇO, 2018).

Considerações finais
Neste artigo, apresentei um recorte epistêmico-metodológico da
pesquisa de doutorado que desenvolvo no contexto da formação inicial
de docentes de línguas. Nele, apresentei as três macrodimensões episte-
mológicas correspondentes à Transdisciplinaridade, no que diz respeito
à produção científica do conhecimento; à Ecologia, no tratamento dos
fenômenos relacionados com a linguagem, e à Complexidade, como
abordagem teórico-metodológica do fenômeno investigado, permitin-
do-me pensá-lo de forma relacional e mais aprofundada.
Em linhas gerais, explicitei, igualmente, a noção de fractal, apon-
tando a sua manifestação em diferentes formas da natureza e da consti-
tuição humana, assim como a minha interpretação acerca da sua função
como elemento-base da constituição e do comportamento da noção de
identidade fractalizada, entendida como SAC. Ao final, referi-me ao re-
corte metodológico da cristalização, por meio do qual analiso os dados
empíricos relativos a esse processo de emergência identitária.
Espero que o conteúdo aqui explicitado possa, de alguma forma,
instigar e inspirar novos trabalhos no campo da LA, em especial, no
marco dos estudos identitários sob as perspectivas transdisciplinar, eco-
lógica e complexa que venham a contribuir para a expansão do enten-
dimento acerca das manifestações que caracterizam a complexa gênese
ontológica do ser humano.

1085
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1088
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

LEITURA E LEITOR COMPETENTE:


SIGNIFICADOS REPRESENTACIONAIS
ATRIBUÍDOS POR ESTUDANTES
BRASILEIROS

Edgleuba de Carvalho Queiroz de Andrade (CMB)


Rosyanne Louise Autran Lourenço (CMB)

RESUMO: Esta comunicação tem como objetivo apresentar os resultados


de pesquisa acerca dos significados representacionais de leitura e de leitor
competente atribuídos por estudantes do Ensino Médio de uma instituição
brasileira da rede federal pública de ensino, na disciplina de Língua
Portuguesa/Literatura. Trata-se de uma pesquisa qualitativa interpretativista
(CHIZZOTTI, 2006; MOITA LOPES, 1994), na modalidade estudo
de caso (STAKE, 1994), de base etnográfica virtual (SANTOS; GOMES,
2013), em que se analisaram os dados gerados com o apoio de questionários
(MARCONI; LAKATOS, 1999), narrativas verbais escritas (CLANDININ,
2006; LIEBLICH; PAIVA, 2008, 2019; POLKINGHORNE, 1988) e
entrevistas abertas audiogravadas (COHEN; MANION; MORRISON,
2005; ROSA; ARNOLDI, 2006). A triangulação (FLICK, 2009) desses dados,
à luz do arcabouço teórico caracterizado pela interface entre a perspectiva
enunciativa de Benveniste (1989, 1995) e categorias de análise do sistema
da Transitividade, sob a ótica da linguística sistêmico-funcional de Halliday
(1994, 1999) e Halliday e Mathiessen (1999, 2014), sugere a emergência de
três grupos de significados representacionais, predominantemente de natureza
ascendente, porém, caracterizados por aspectos tangenciais entre os modelos
de leitor descendente e interativo, conforme paradigmas elencados pela
literatura especializada. Os resultados de pesquisa apontam a necessidade de
atenção cuidadosa, por parte do corpo docente, no tocante à complexidade
da formação leitora dos estudantes, marcada por imbricações propulsoras e
inibidoras de tal processo, segundo o modo como seja realizada a articulação
entre as diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), as práticas
escolares de leitura e os significados representacionais de leitura e de leitor
competente conferidos pelos próprios estudantes.
PALAVRAS-CHAVE: Leitura. Leitor competente. Linguística sistêmico-funcional.

1089
ABSTRACT: This paper aims to present the results of research on the
representational meanings of reading and competent reader attributed by
high school students of a Brazilian institution of the federal public education
network, in the discipline of Portuguese Language/Literature. This is an
interpretative qualitative research (CHIZZOTTI, 2006; MOITA LOPES,
1994), in the case study mode (STAKE, 1994), with a virtual ethnographic
basis (SANTOS; GOMES, 2013), in which the data generated with
the support of questionnaires (MARCONI; LAKATOS, 1999), written
verbal narratives (CLANDININ, 2006; LIEBLICH; PAIVA, 2008, 2019;
POLKINGHORNE, 1988) and audio-recorded open interviews (COHEN;
MANION; MORRISON, 2005; ROSA; ARNOLDI, 2006) ). The
triangulation (FLICK, 2009) of these data, in the light of the theoretical
framework characterized by the interface between the enunciative perspective
of Benveniste (1989, 1995) and categories of analysis of the Transitivity
system, from the perspective of the systemic-functional linguistics of Halliday
(1994, 1999) and Halliday and Mathiessen (1999, 2014), suggest the
emergence of three groups of representational meanings, predominantly of
an ascending nature, however, characterized by tangential aspects between the
top-down and interactive reader models, according to the paradigms listed
in the specialized literature. The research results point to the need for careful
attention, on the part of the teaching staff, regarding the complexity of the
formation of a reader, marked by imbrications that propell and inhibit such a
process, according to the way in which the articulation between the guidelines
of the Base National Common Curricular (BNCC), school reading practices
and the representational meanings of reading and competent reader given by
the students themselves.
KEYWORDS: Reading. Competent reader. Systemic-functional linguistics.

Introdução
Este artigo tem como objetivo apresentar os resultados de pesquisa
acerca dos significados representacionais inerentes às noções de leitura e
de leitor competente (bom leitor)213, em Língua Portuguesa, atribuídos
por um grupo de estudantes do Ensino Médio (EM) de uma escola
pública federal, situada na região centro-oeste do Brasil.

213
Neste estudo, não fazemos distinção entre os termos leitor competente e bom leitor.

1090
Sua realização se justifica por consistir na primeira etapa de um
projeto de extensão pedagógica, a ser desenvolvido no ambiente escolar,
voltado para a formação leitora desses estudantes em face das dificul-
dades de compreensão e de interpretação de textos, geralmente mani-
festadas por eles, e do desinteresse demonstrado, sobretudo, quando da
leitura de textos literários.
Teoricamente, este estudo se circunscreve ao marco da perspectiva
linguística dos estudos da significação (semântica), concebendo a pro-
dução de sentidos a partir da interrelação entre o homem, o mundo e
a linguagem.
Por ser um fenômeno próprio da condição humana, a significação
na linguagem se dá segundo a intervenção volitiva do indivíduo, premis-
sa que abre caminho para a necessidade de se pensar a questão da subje-
tividade nos estudos linguísticos, traduzida na problematização de “[...]
como o aspecto subjetivo da linguagem é representado por palavras,
membros de frases, formas gramaticais e pelo plano geral de cada lín-
gua.” (GUIMARÃES, 1995, p. 16) que, ao serem apropriadas pelo in-
divíduo, semantizam e fazem significar (BENVENISTE, 1989, 1995).
Nesse âmbito, portanto, apoiamos nosso marco teórico na interfa-
ce entre pressupostos da perspectiva enunciativa de Benveniste (1989,
1995) e a visão sistêmico-funcional da linguagem, de acordo com
Halliday (1994, 1999) e Halliday e Mathiessen (1999, 2014) que a en-
tendem como um sistema sociossemiótico complexo que compreende
“sistemas materiais, físicos, biológicos, imateriais, sociais e semióticos.”
(VIAN JÚNIOR, 2013, p. 133), os quais, articulados, desvelam as sig-
nificações atribuídas pelo homem na apreensão da sua relação com o
mundo e nas formas de expressá-la. Ademais, pautamo-nos na tipologia
analítica da léxico-gramática do Modo da Transitividade da Metafunção
Ideacional da linguagem, responsável pelo tratamento dispensado à ora-
ção como mensagem, isto é, como forma de representação do mundo e
das experiências humanas.
A investigação desenvolvida possui natureza qualitativa e interpre-
tativista (CHIZZOTTI, 2006; MOITA LOPES, 1994) e caracteriza-se

1091
como um estudo de caso (STAKE, 1994), de base etnográfica virtu-
al (SANTOS; GOMES, 2013). Os dados foram gerados com o apoio
de questionários de tipo aberto e fechado (MARCONI; LAKATOS,
1999), narrativas verbais escritas (NVEs) (CLANDININ, 2006;
PAIVA, 2008, 2019) e entrevistas abertas audiogravadas (COHEN;
MANION; MORRISON, 2005; ROSA; ARNOLDI, 2006). O cor-
pus, constituído de um total de 38 documentos (19 questionários e
19 NVEs) foi analisado por meio do método da triangulação (FLICK,
2009) entre esses três instrumentos.
Para melhor orientar o nosso leitor, subdividimos este texto em três
seções. Na primeira, apresentamos o marco teórico-metodológico em
que se fundamenta este estudo; na segunda, apresentamos e discutimos
os resultados alcançados e na terceira seção, tecemos nossas considera-
ções finais.

Marco teórico-metodológico
Um dos planos de organização da linguagem, entendida como a
faculdade de representar o real por meio de signos, consiste na “[...]
comunicação de significados, substituindo os acontecimentos ou as ex-
periências pela sua evocação.” (BENVENISTE, 1995, p. 30). Essa ação
realiza-se por meio do símbolo linguístico, “[...] elo vivo entre homem,
língua e cultura” (BENVENISTE, 1995, p. 32) que organiza o pensa-
mento de forma peculiar, isto é, de acordo com os sistemas estruturais,
organizacionais e funcionais de uma determinada língua que, neste es-
tudo, consiste na Língua Portuguesa como língua materna (LP/LM).
Nesse contexto, salienta-se o imanente papel da cultura, concebida
como tudo o que dá forma, sentido e conteúdo à vida e às atividades
humanas (BENVENISTE, 1995). Fenômeno inteiramente simbólico,
apresenta-se como uma complexa rede de representações, organizadas
por um código de relações e de valores profundamente impregnados
na consciência humana, conduzindo as atitudes em todas as formas de
ação realizadas pelo indivíduo (BENVENISTE, 1995), entre elas, as re-
lacionadas à sua formação leitora. No trabalho que aqui apresentamos,

1092
os dados pertinentes a esse âmbito da vida dos participantes foram ge-
rados com o apoio dos questionários de sondagem sociocultural, con-
templando as esferas familiar e acadêmica associadas à formação leitora
dos estudantes.
Já a noção de referência (FLORES, 2013), enunciado discursivo
que remete a uma situação “objetiva”, correspondente à categoria da
não pessoa (BENVENISTE, 1995, p. 282), consiste na própria signifi-
cação atribuída às noções de leitura e de leitor competente, temas ine-
rentes à relação dos colaboradores com a prática de aprendizagem no
meio escolar, e que foi analisada a partir dos dados primários gerados
pelas NVEs, correspondentes às atividades de produção textual a eles
solicitadas.
Com a finalidade de dirimir dúvidas e solicitar eventuais explicita-
ções atinentes aos dados gerados, utilizamo-nos, ao longo do procedi-
mento analítico, de entrevistas audiogravadas, com o apoio do aplicati-
vo WhatsApp, em função da praticidade comunicacional desse recurso
digital.
Por tratar-se de uma modalidade de enunciação escrita, filiamo-nos
aos deslocamentos teóricos propostos por Naujorks (2011) com relação
às instâncias do discurso, entendido como “[...] atos discretos e cada
vez únicos pelos quais a língua é atualizada em palavra pelo locutor.”
(BENVENISTE, 1995, p. 277). Dessa forma, assumimos com a autora
(NAUJORKS, 2011, p.87) que “[...] toda leitura procede de um locu-
tor que se propõe como sujeito” no exato momento em que se põe a ler
um texto, concebido como a materialidade da enunciação.
Em síntese, o primeiro deslocamento diz respeito à passagem de
locutor a sujeito na leitura, implicando uma dupla instância conjugada
entre as posições de locutor-leitor (aquele que lê), que emerge no exer-
cício da leitura do nosso corpus de pesquisa, e de sujeito-leitor (aquele
que se marca singularmente no ato de leitura), instância que se instaura
quando nos apropriamos dos enunciados das NVEs e também produzi-
mos sentidos ao construirmos conhecimento científico em nosso fazer
investigativo sob a influência do momento histórico que vivenciamos

1093
(NAUJORKS, 2011). Todo esse cenário se constitui à medida que
triangulamos os dados, balizando-os com a categorização circunscrita
pelos três modelos de leitura e de leitor competente, tradicionalmente
elencados pela literatura especializada, quais sejam, os modelos ascen-
dente, descendente e (socio) interacional (KLEIMAN, 2011; LEFFA,
1999).
O segundo deslocamento remete à (inter)subjetividade na leitura e
relaciona-se com as duas instâncias supracitadas visto que concebe o ato
de ler como ato enunciativo de um sujeito-leitor historicamente situa-
do. Nesse caso, ela se caracteriza pelo diálogo entre o eu-locutor-leitor
das pesquisadoras e os textos produzidos pelos colaboradores, conside-
rados, portanto, o tu com o qual estabelecemos uma troca, propondo-
-nos como sujeitos-leitoras, ao instaurar um sistema de referências, o
ele (NAUJORKS, 2011), isto é, os significados representacionais inves-
tigados, delineando, assim, o marco ao que se circunscreve a situação
enunciativa da pesquisa que relatamos neste trabalho.
O terceiro deslocamento trata da leitura como modalidade de
enunciação e destaca a questão da significação, da produção de sentido
a partir da atualização das unidades linguísticas que compõem o enun-
ciado. Nesse momento, abre-se espaço para o quarto deslocamento,
o da relação entre a forma e o sentido que, juntamente com o terceiro
deslocamento, viabilizam, a nosso ver, a proposta da interface entre o
pressuposto enunciativo de Benveniste (1989, 1995) da significação da
linguagem e a sua visão sistêmico-funcional, defendida por Halliday
(1994, 1999) e Halliday e Mathiessen (1999, 2014), suscitando, a nos-
so ver, a complementariedade entre esses construtos.
À luz da perspectiva enunciativa da leitura, compartilhamos com
Naujorks (2011, p. 99) a ideia de que as palavras são semantizadas por
meio das formas como se organizam e das relações que estabelecem
dentro de uma dada configuração sintática. Nesse sentido, compreen-
der um texto implica, primeiramente, a consideração da organicidade
como traço fundamental da língua, visto que as palavras encadeadas no

1094
enunciado apresentam um sentido como resultado do agenciamento214
e das circunstâncias contextuais do sujeito, características que se en-
trelaçam à visão de Halliday (1994, 1999) e de Halliday e Mathiessen
(1999, 2014).
No entendimento de Mathiessen (1999), a cognição humana é sig-
nificado, construído por meio de uma léxico-gramática. Em outras pa-
lavras, uma atividade metacognitiva de reflexão, de avaliação e de ação
que, neste trabalho, desvela-se, em sua totalidade, por meio da análise
dos dados gerados pelas NVEs dos estudantes participantes215.
Na visão de Halliday e Mathiessen (1999), em virtude da singula-
ridade das suas propriedades como um sistema sociossemiótico estrati-
ficado, a linguagem é capaz de transformar experiências em significado,
o que justifica a sua opção pela descrição desses processos representa-
cionais por meio de um modelo de gramática funcional que, no caso
deste estudo, circunscreve-se à Metafunção Ideacional e ao sistema ana-
lítico do Modo da Transitividade, que concebe a oração como mensa-
gem, isto é, como forma de representação do mundo e das experiências
humanas.

Resultados de pesquisa
No percurso enunciativo que realizamos como eu-reconstrutoras, le-
mos, descrevemos e analisamos a totalidade do corpus da pesquisa, tra-
tando de investigar as marcas da enunciação da categoria da não pessoa
(ele) deixadas na materialidade linguística (texto/enunciados verbais),
por meio da articulação orgânica entre os sentidos produzidos na di-
mensão semiótica da língua e as formas e os sentidos próprios do seu
214
Noção entendida como organização (relações sintáticas), isto é, as palavras es-
colhidas e ordenadas de acordo com a ideia que a frase exprime, o seu sentido
(BENVENISTE, 1989).
215
A respeito das considerações éticas desta investigação, um Termo de Consenti-
mento Livre e Esclarecido foi enviado a cada um dos participantes, antes do iní-
cio da geração dos dados, com o propósito de garantir-lhes o sigilo a respeito das
informações por eles fornecidas. Solicitou-se, igualmente, que cada colaborador
escolhesse um pseudônimo com o qual seria identificado no trabalho.

1095
domínio semântico, correspondentes, respectivamente, aos sintagmas
(agenciamento de palavras) e às ideias expressas pela frase (referência).
Paralelamente a esses procedimentos, assumimos a nossa posição
enunciativa do eu-produtoras de sentidos, apropriando-nos dos senti-
dos dos textos na busca pela significação de leitura e de leitor compe-
tente atribuída pelos participantes, discutindo e interpretando os resul-
tados alcançados.
Nesse sentido, os resultados obtidos com a triangulação dos dados
sugerem uma equivalência (45%) entre os significados representacionais
de leitura como processamento ascendente e descendente do texto, com
apenas 10% das referências analisadas apontando o que denominamos
tangenciamentos do modelo interacional, uma vez que a análise dos dados
desvela a presença de características desse significado representacional em
poucos relatos. É o que se ilustra no enunciado produzido por Amorim:

Como diz Carolina no livro ´´Quarto de despejo´´, a leitura


é uma forma de sair da realidade, a qual, muitas vezes, pode
ser bastante complicada. De maneira semelhante, eu acredito
que ler tenha o poder de me direcionar para um pensamento
mais crítico da vida e me possibilita ver além da minha própria
realidade. (NVE, 20/04/21, grifo nosso)

Já os significados representacionais de leitor competente foram as-


sim analisados:

Quadro 1- Significados representacionais de leitor competente

Fonte: as autoras

1096
Os gráficos sugerem a predominância do perfil decodificador de
leitor competente, grupo em que 42% do corpus analisado tangencia
traços de leitor descendente, isto é, o de atribuidor de sentidos ao texto,
perfil que se desvela com mais plenitude nos significados representacio-
nais atribuídos por 22% dos participantes. Vale salientar que 5% deles
não reconheceram a existência de um perfil competente de leitor em
função de conceber a leitura como uma experiência humana, vivencia-
da de modo muito particular por cada indivíduo, tal como sinaliza o
enunciado de Carolina: “[...] cada um pode desfrutar dela de maneira
única, não cabendo um julgamento externo.” (NVE, 27/04/21).
Com relação à leitura, as análises da léxico-gramática, realizadas
por meio do sistema da Transitividade, sinalizam a prevalência de pro-
cessos relacionais atributivos que a denotam como capacidade de deco-
dificação de símbolos, de reconhecimento e de interpretação da mensa-
gem extraída do texto. Entre os efeitos provocados por essa habilidade,
desvelados pelos processos mentais, encontram-se os da descoberta e da
ressignificação de informações. Os processos materiais analisados sinali-
zam a possibilidade da mudança, caracterizada pelo fluxo de ideias, e os
processos verbais evidenciam a valoração positiva do ato de ler. O gráfi-
co a seguir ilustra a distribuição percentual das ocorrências referenciais
dos processos analisados.

Quadro 2 - Análise do Sistema da Transitividade (Leitura)

Fonte: as autoras

No âmbito da significação de leitor competente, a análise dos da-


dos aponta o seguinte resultado:

1097
Quadro 3 - Análise do Sistema da Transitividade (Leitor competente)

Fonte: as autoras

Observa-se, portanto, a representação de um leitor competente


possuidor do hábito da leitura (42%), caracteristicamente cerebral por-
que evidencia-se como experienciador racional do fenômeno da leitura
à medida que identifica e analisa a mensagem transmitida pelo texto,
sintetiza, pensa e reflete sobre ela para entendê-la, compreendê-la e in-
terpretá-la, processos esses traduzidos pelas escolhas léxico-gramaticais
expressas na maior parte dos enunciados analisados (52%). Por outro
lado, esse processo racional é permeado por um envolvimento afetivo
do bom leitor, pois ele gosta da leitura, aprecia e admira o que lê (6%).
Finalmente, apresentamos um mapeamento categórico dos signi-
ficados representacionais dos dois construtos analisados neste estudo,
ranqueados segundo a frequência da sua ocorrência, a partir da triangu-
lação dos dados gerados.

1098
Quadro 4 - Leitura e leitor competente: mapeamento categórico

Fonte: as autoras

A seguir, a partir dos resultados alcançados, convidamos o leitor a


uma reflexão final.

Considerações finais
Conforme expusemos na seção anterior, os resultados de pesquisa
denotam significados representacionais de leitura e de leitor competen-
te ancorados em modelos que não pressupõem a participação crítica do
leitor no mundo.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018),
documento que determina as diretrizes que regem a Educação Básica
no Brasil, preconiza, no âmbito do Ensino Médio, o redimensionamen-
to da competência leitora trazida pelos estudantes, ao longo da sua vida
acadêmica, sinalizando o necessário imbricamento entre conhecimen-
tos, atitudes e valores culturais presentes nas interações que caracteri-
zam atividades humanas realizadas nas práticas sociais, como no caso
da leitura.
Dessa forma, em virtude dos resultados alcançados, questionamos
qual o tratamento que vem sendo atribuído à leitura no contexto esco-
lar em questão. Estaríamos ainda na esteira de uma tradição decodifica-
dora de leitura e de formação de um leitor competente? Se a BNCC, no
tocante ao Ensino Médio, prevê a realização de procedimentos rotinei-
ros de práticas crítico-reflexivas para que os estudantes tornem signifi-
cativo todo tipo de leitura que vierem a realizar, os resultados sugerem

1099
que ainda nos encontramos distantes do horizonte dessa realidade tão
complexa em que consiste o trabalho com a leitura e com a formação
do bom leitor no ambiente escolar.

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1102
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

A LEITURA-ESCRITA PARA O PROJETO DE


PESQUISA: NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS
DE MESTRANDAS

Samanta Henriques Pinto - UFF


Yasmim Pereira de Oliveira - UFF
Jéssica do Nascimento Rodrigues - UFF

RESUMO: O ato responsável e ético de ler-escrever é prática social indissociável


(FREIRE, 2019) por meio da qual os sujeitos históricos se expressam no mundo
e dele participam na relação com o/s outro/s, considerando que as esferas
discursivas, sendo esferas de uso social da linguagem, situam os letramentos ali
produzidos. Nesse bojo, opera o letramento ideológico (STREET, 1984) visto
que tais práticas discursivas se inserem em arenas sociais permeadas por relações
ideológicas, hierárquicas e de poder (STREET, 2004). Na pós-graduação,
especialmente em cursos de mestrado, estudantes sentem-se desorientados
quando da necessidade de elaboração do projeto de pesquisa, que demanda
leitura, síntese de ideias, assunção de uma posição enunciativa, diálogo com
os/as autores/as daquele campo, linha e área (BAZERMAN, 2009), talvez
porque ainda não tenham participado daquela comunidade disciplinar
(MOITA-LOPES, 2013). Diante desses apontamentos introdutórios, este
relato intenciona apresentar uma reflexão possível, ainda que incipiente, de
mestrandas do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem de
uma Universidade Federal acerca de seus processos de ler-escrever o projeto de
dissertação, no intuito de elaboração de suas narrativas autobiográficas como
autoimplicação responsiva das pesquisadoras (PROENÇA, 2015), ainda
em formação para a e por meio da pesquisa. Para tanto, além de revisão da
literatura em busca de pesquisas afins, mormente que focalizam narrativas de
pós-graduandos/as, refletimos sobre nossas práticas de ler-escrever o projeto
de pesquisa, numa abordagem dialógica da linguagem. Reconhecemos, por
ora, a necessidade de criação de expedientes pedagógicos para a inclusão,
manutenção e formação para a pesquisa desses pós-graduandos/as em seus
cursos, muitas vezes alijados nessas práticas sem antes conhecer os processos
de elaboração para a pesquisa acadêmica.
PALAVRAS-CHAVE: Letramentos acadêmicos. Leitura-escrita. Projeto de
pesquisa. Narrativas autobiográficas.

1103
ABSTRACT: The responsible and ethical act of reading-writing is an
inseparable social practice (FREIRE, 2019) through which historical subjects
express themselves in the world and participate in it in the relationship with
the other/s, considering that discursive spheres, being spheres of social use
of language, place the literacies produced there. In this bulge, ideological
literacy operates (STREET, 1984) since such discursive practices are inserted
in social arenas permeated by ideological, hierarchical and power relations
(STREET, 2004). In graduate courses, especially in master’s courses, students
feel disoriented when they need to prepare a research project, which demands
reading, synthesis of ideas, taking an enunciative position, dialogue with the
authors of that field, line and area (BAZERMAN, 2009), perhaps because
they have not yet participated in that disciplinary community (MOITA-
LOPES, 2013). In view of these introductory notes, this report intends to
present a possible, albeit incipient, reflection of master’s students from the
Postgraduate Program in Language Studies at a Federal University about their
processes of reading-writing the dissertation project, in order to elaborate of
their autobiographical narratives as the researchers’ responsive self-implication
(PROENÇA, 2015), still in training for and through research. In order to
do so, in addition to reviewing the literature in search of similar research,
especially those that focus on postgraduate students’ narratives, we reflect on
our practices of reading-writing the research project, in a dialogical approach
to language. We recognize, for now, the need to create pedagogical resources for
the inclusion, maintenance and training for the research of these postgraduate
students in their courses, often jettisoned in these practices without first
knowing the elaboration processes for academic research.
KEYWORDS: Academic literacies. Read-write. Research project.
Autobiographical narratives.

Palavras iniciais
Paulo Freire (2019) assume que o ato ético de ler-escrever é prática
social indissociável. Analogamente, Lillis e Curry (2010 apud FIAD,
2017, p. 86) também situam a leitura-escrita como prática social, ao
suscitar que

Uma abordagem ao letramento como prática social concebe lei-


tura e escrita como atividades fundamentalmente sociais [...]

1104
prática sinaliza que usos específicos de linguagem – textos fa-
lados e escritos – não existem isoladamente mas estão ligados
ao que as pessoas fazem – práticas – no mundo material, social
(LILLIS; CURRY, 2010, p. 9).

Logo, compreendemos a leitura-escrita como prática social, tendo


em vista sua inserção em diferentes contextos sociais nos quais há inte-
ração entre sujeitos, em espaços discursivos onde a atividade humana é
processada, como na escola, na igreja, na universidade, na família etc.
É na escola que o ensino-aprendizagem sistematizado de leitura-escrita
se inicia. Este é o ambiente onde a criança adquire habilidades relacio-
nadas ao ler-escrever, essenciais ao longo da vida, para o exercício da
cidadania e para o acesso a bens e serviços disponíveis na comunidade
onde vive. O sujeito, quando não respeitado o seu direito ao letramento
no contexto escolar, é fadado à marginalização constituída pela própria
sociedade, pois o letramento autônomo pressupõe uma esfera discursiva
de prestígio, a escolarizada, que embora imprescindível na formação
do indivíduo para o usufruto de seus direitos sociais, desconsidera os
demais contextos sociais de aprendizagem da leitura-escrita, reforçando
sua primazia (STREET, 2014). O mesmo autor relata que há uma rela-
ção tão forte do letramento com áreas como a escola e a pedagogia, sen-
do difícil reconhecer sua presença em esferas discursivas que não essas.
O modelo ideológico de letramento, por sua vez, conforme afirma
Jung (2003), leva em conta não apenas o ler-escrever nas instituições
educacionais, mas nas instituições sociais em geral, o que inclui a famí-
lia, a roda de amigos, o trabalho etc. Ou, como nos lembra Bakhtin,
com o conceito de esferas discursivas. O letramento ideológico reconhe-
ce que ler-escrever é prática social e, portanto, contextualizada que se
revela, em cada espaço discursivo, de modo/s diferente/s. Street (1984),
ao relatar sobre o letramento ideológico, entende que as práticas discur-
sivas se inserem em arenas sociais permeadas por relações ideológicas,
hierárquicas e de poder (STREET, 2004).
Logo, percebemos, tendo por base Street (2014), que existem le-
tramentos dominantes e letramentos marginalizados. Os primeiros

1105
vigoram em espaços educacionais onde se oficializou um modelo domi-
nante de ler-escrever, valorizado socialmente, pois no interior da socie-
dade capitalista, posições de poder, status e conhecimento são associadas
aos sujeitos habilitados para o ler-escrever com formação no espaço es-
colar, enquanto os letramentos marginalizados, que acontecem a todo
momento, em diálogos cotidianos, sem pressões em relação ao escrever
conforme a norma padrão, são desvalorizados. Todavia, a aquisição de
competências associadas ao ler-escrever emerge em diferentes contextos
fora do campo de visão de um/a professor/a, do ambiente disciplinar
da sala de aula, das várias avaliações para medição da aprendizagem e/
ou de políticas educacionais, sendo a escola/universidade apenas um
espaço privilegiado. Assim, conforme compartilha Street,

Muito, então, do que vem junto com o letramento escolar se


revela como o produto de pressupostos ocidentais sobre escolari-
zação, poder e conhecimento, mais do que algo necessariamente
intrínseco ao próprio letramento. O papel exercido por pers-
pectivas desenvolvimentistas na escolarização, por exemplo, faz
com que a aquisição do letramento se torne isomórfica a partir
do desenvolvimento pela criança de identidades e posições so-
ciais específicas: seu poder na sociedade fica associado ao tipo e
nível de letramento que elas adquirem (STREET, 2014, p. 125).

Nesse ínterim, compreendemos que o letramento escolar atende


aos interesses de uma sociedade capitalista, na qual imperam o poder e
a competição. As crianças e os jovens são formados/as, para contribuir
com o alcance dos objetivos desenvolvimentistas, e a leitura-escrita, no
âmago dessa formação, está condicionada a um tipo específico de iden-
tidade, posição e conhecimento que correspondam aos domínios eco-
nômicos, sociais, culturais, tecnológicos, políticos e linguísticos dessa
sociedade.
No ambiente acadêmico, especialmente na arena da pós-gradua-
ção, quando do ingresso em um programa de Mestrado, as habilidades
de leitura-escrita se complexificam, demandando do estudante-pes-
quisador familiaridade com a linguagem acadêmico-científica, com os

1106
diferentes gêneros discursivos (BAKHTIN, 2011) desse espaço e com
a mobilização de conhecimentos provenientes da graduação, como re-
alizar fichamentos, escrever resumos e resenhas, buscar por referenciais
teóricos alinhados a sua área de pesquisa, adicionando a isso a inten-
sificação da escrita de artigos (que, na graduação, ocorre com menos
intensidade), bem como a construção do projeto de pesquisa e da futu-
ra dissertação. Os alunos sentem-se desorientados, principalmente no
momento de elaboração do projeto de pesquisa, pois demanda leitura,
síntese de ideias, assunção de uma posição enunciativa, diálogo com os/
as autores/as daquele campo, linha e área (BAZERMAN, 2009).
Logo, buscamos, neste artigo, apresentar uma reflexão possível,
mesmo que inicial, de duas mestrandas do Programa de Pós-Graduação
em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense (UFF)
acerca de seus processos de ler-escrever o projeto de dissertação de
mestrado, já que nossas pesquisas versam sobre letramentos acadêmi-
cos. Nosso objetivo é elaborar nossas narrativas autobiográficas, como
autoimplicação responsiva das próprias pesquisadoras (PROENÇA,
2015), ainda em formação para a e por meio da pesquisa. Assim, utili-
zamos a metodologia narrativa, por nos propiciar a reflexão de nossas
próprias práticas de ler-escrever o projeto de pesquisa, numa aborda-
gem dialógica da linguagem, baseada no Círculo de Bakhtin. Dessa for-
ma, a partir de nossas próprias experiências formativas, podemos pensar
nas vivências de outros futuros pesquisadores durante esse processo de
escrita.

Letramento Acadêmico: ler e escrever na universidade


O ingresso na universidade, especialmente na pós-graduação, sig-
nifica a continuação do contato do estudante - antes no âmbito da gra-
duação - com gêneros discursivos complexos, gerados a partir das ativi-
dades humanas constituídas na esfera acadêmica. Da leitura de Bakhtin
(2011), é possível depreender os gêneros discursivos como tipos relati-
vamente estáveis de enunciados nascidos em dada esfera comunicativa
e imprescindíveis ao atendimento dos objetivos sociais de tal espaço,

1107
no qual a interação entre sujeitos - interlocutores - acontece, como na
universidade, onde há constante produção de conhecimento mediante
pesquisas corporificadas e divulgadas através de artigos científicos, dis-
sertações, teses etc.
Os gêneros discursivos podem ser subdivididos em primários e se-
cundários (BAKHTIN, 2011). Os gêneros primários são aqueles asso-
ciados às atividades cotidianas, sendo menos formais e mais imediatos
no atendimento a demandas comunicativas do dia a dia, como é o caso
de uma chamada telefônica. Por sua vez, os gêneros secundários corres-
pondem a uma reformulação dos gêneros primários, de tal modo que
adquirem maior complexidade, conectando-se a situações mais formais,
tal qual um projeto de pesquisa. À guisa de exemplificação, é possí-
vel que uma conversa ao telefone, na qual o sujeito desabafa com seu
amigo sobre as dificuldades experimentadas para equilibrar trabalho e
vida acadêmica, se transforme em tema de projeto de pesquisa, median-
te uma reflexão sobre os desafios da jornada dupla de ser estudante e
trabalhador.
Salientamos que os gêneros discursivos circundantes na academia
são diversos. Posto isso, o conhecimento e a capacidade de produção
dessa diversidade de gêneros favorecem o desenvolvimento de letra-
mentos acadêmicos, ou seja, participam do processo de introdução do
aluno nas práticas de escrita e leitura típicas do espaço universitário
(VIEIRA; FARACO, 2020).
O letramento acadêmico, segundo nos explica Fischer (2007, p.
45), pode ser associado “a outros contextos que envolvam ambientes e
práticas formais de escolarização (Ensino Fundamental, Ensino Médio,
Educação de jovens e adultos etc.)”. No entanto, essa dimensão do le-
tramento, na esfera universitária, comporta particularidades, como a
utilização de linguagens especializadas e contextualizadas.
Em consonância, Vieira e Faraco (2020), citando uma entrevista
concedida por David Russel, intitulada Letramento acadêmico: leitura e
escrita na universidade, indicam que para o linguista, o grau de especia-
lização da escrita e a necessidade de o estudante aprender novos gêneros

1108
ou formas são características que diferenciam escrever na universidade
de escrever na escola. Ademais, a escrita universitária possibilita o exa-
me, a manipulação, a síntese e a exploração de ideias.
A leitura, no que lhe concerne, possibilita a compreensão dos sen-
tidos mobilizados num texto e o aprimoramento do domínio da escrita
(VIEIRA; FARACO, 2020). Entendemos que a leitura auxilia a inter-
pretação das informações contidas em determinado escrito, a produção
de sentidos e de efeitos de sentido, para que assim possamos produzir
novos conhecimentos.
Quando lemos, também dialogamos com o autor do texto, com ele
concordamos ou discordamos. Nesse ponto, percebemos que há uma
relação espaço-temporal na qual há um eu em diálogo com um tu, isto
é, existe uma “recepção ativa do discurso de outrem [...]”, com a “incor-
poração do outro no diálogo, de modo que o outro passe a constituir
o sujeito emissor” (SCORSOLINI-COMIN, 2014, p. 250). Assim,
conforme salienta Bakhtin (2006):

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro,


senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da
interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo”
num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em
voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação
verbal, de qualquer tipo que seja. (BAKHTIN, 2006, p. 125)

É por meio desse movimento dialógico de produção de saberes


que também geramos reflexões a serem sistematizadas/consolidadas
pela escrita, a fim de que nossas ideias não «morram» conosco, mas
alcancem outros sujeitos-pesquisadores. Na esfera discursiva acadêmica,
o ato ético-responsável de ler-escrever é imprescindível para promover
a continuidade das discussões já iniciadas em certo campo de pesquisa.
Sobre isso, Bianchetti et al (2018, p. 165) afirmam que “Ao vazar, a es-
critura espalha-se, provoca tensões, crises estimuladoras e cria explosões
de ideias e de ações que movem os sujeitos a desafiarem os limites de
verdades absolutas [...]”.

1109
O sujeito academicamente letrado desenvolve uma visão crítica
de mundo. Ele consegue “dilatar os horizontes das próprias percep-
ções, horizontes dos muitos mundos abertos à inventividade humana”
(MARQUES, 2006, p. 12). Ainda, ser academicamente letrado indica
a abertura para constante busca pelo saber. É realizar descobertas a par-
tir da leitura-escrita coletiva, bem como estar aberto para ouvir novas/
outras vozes sociais e com elas dialogar. Dessa forma, compreendemos
que ninguém chega à universidade portando o letramento necessário
a essa esfera, todavia, torna-se letrado ao longo de sua vida acadêmica.
Boughey (2000, p. 4 apud ZONTA, 2018, p. 63) discorre sobre a pas-
sagem do indivíduo a sujeito letrado: “As pessoas se tornam letradas ao
observarem e interagirem com outros membros do discurso até que os
modos de dizer, agir, pensar, sentir e avaliar comuns àquele discurso se
tornem naturais para elas”.

A elaboração do projeto de pesquisa do Mestrado

Cada um de meus pensamentos, com o seu conteúdo, é um


ato singular responsável meu; é um dos atos de que se compõe
a minha vida singular inteira como agir ininterrupto, porque a
vida inteira na sua totalidade pode ser considerada como uma
espécie de ato complexo: eu ajo com toda a minha vida, e cada
ato singular e cada experiência que vivo são um momento de
meu viver-agir (BAKHTIN, 2010, p. 44).

Entendemos que como um sujeito único, os atos acontecem, le-


vando em consideração a história, a cultura, o meio social e a relação
com os outros indivíduos. Nesses ambientes, de acordo com Bakhtin
(2011), são produzidos discursos “próprios” e “específicos”, é organi-
zado o “agir”, o “falar”, por meio de formas “relativamente estáveis de
enunciados”, denominados gêneros discursivos.
Partindo dessa compreensão, somos implicadas a refletir acerca de
nossas próprias experiências enquanto mestrandas/pesquisadoras do
Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade

1110
Federal Fluminense (UFF), bem como rememorar nossos processos de
elaboração do projeto de dissertação, documento fundamental para
participar do processo seletivo de admissão ao curso.
No edital POSLING, n.º 1/2022216 de mestrado, há a seguinte
orientação de elaboração do projeto a ser seguido:

[...] O projeto deve ser redigido em língua portuguesa, em no


máximo cinco páginas (mais folha de rosto e bibliografia), e con-
templar os itens especificados a seguir: delimitação do tema, jus-
tificativa, objetivos, metodologia e bibliografia mínima. Na folha
de rosto, deverá constar a indicação da linha de pesquisa a que se
vincula o pré-projeto. (Universidade Federal Fluminense - UFF)

O gênero acadêmico solicitado e a maneira como é detalhado no


edital subentendem que o candidato/a já esteja familiarizado com esse
padrão, que demanda leitura, síntese de ideias, assunção de uma po-
sição enunciativa, diálogo com os/as autores/as daquele campo, linha
e área e imersão em uma cultura disciplinar em um curto período de
tempo. Para exemplificar, narramos nossas experiências durante a ela-
boração do projeto de pesquisa, “como autoimplicação responsiva das
pesquisadoras” (PROENÇA, 2015).

Narrativa autobiográfica: Samanta (ingresso em 2021.1)


Sou professora da Secretaria Municipal de Educação do Município
do Rio de Janeiro e, atualmente, exerço a função de diretora de uma
escola municipal dos anos finais do Ensino Fundamental. É impossível
narrar minha própria experiência durante a elaboração do projeto de
dissertação do mestrado, sem lembrar de como foi a leitura do edital
em agosto de 2020.
Recebi esse edital, através da conversa de Whatsapp com uma amiga
da escola onde trabalho e adiei a leitura, pois naquele período, tomada
por angústias e incertezas pela pandemia de Covid-19, não passava pelo
216
http://www.posling-uff.com.br/sipos/processos-seletivos/documentos/2022.07.
28-23.33.26edital.pdf (04 de agosto de 2022).

1111
meu imaginário cursar um mestrado. Todas as instituições de ensino
estavam fechadas em razão do período de isolamento social, sem previ-
são de retorno presencial e algumas longe de pensar em ensino remoto.
Mesmo assim, abri o arquivo alguns dias depois e ainda que parecesse
impossível, uma esperança surgiu e decidi participar do processo seletivo.
Após 9 anos de conclusão do curso de graduação de Licenciatura
em Letras era esperado que eu já não me lembrasse de todas as referên-
cias bibliográficas solicitadas. Já tinha algum material separado, por-
que queria muito voltar ao mundo acadêmico, participar de grupos de
pesquisa e passar para o mestrado, mas nada que me preparasse para a
seleção, de fato. Após algumas semanas, atualizei o Currículo Lattes e
comecei a tentar entender o que seria o Projeto de Pesquisa. Entretanto,
ainda pensava se fazia a inscrição ou não, por não saber como começar
a escrever esse gênero do discurso.
Considero aqui o meu maior desafio para conseguir ingressar em
um curso de pós-graduação strictu sensu: a leitura-escrita exigida na ela-
boração do projeto. Percebi que faltavam conhecimentos para conse-
guir passar por essa etapa de modo produtivo. Eu não me lembrava
de nenhuma aula ou material da graduação que pudessem me auxiliar
naquele momento. Além disso, no final da graduação, só precisei fazer
um trabalho de conclusão de curso (TCC), falando de algum tema es-
tudado em alguma disciplina, mas não no formato de uma monografia
padrão. Então, pedi ajuda para seis amigas/os que já tinham passado
por essas experiências, pois precisava transformar as ideias que eu tinha
em forma de texto escrito acadêmico, conforme solicitado no edital do
programa, e não conseguia isso sozinha.
Com a parceria das/os amigas/os, pude iniciar aquele primeiro mo-
mento de escrita tão enigmático pra mim. Foram semanas de reuniões
virtuais com muitas horas de duração no Zoom, no Whatsapp, ao tele-
fone e até presencialmente. Realmente tive uma verdadeira ajuda com
as melhores aulas particulares que eu poderia ter. Assim, tive mais segu-
rança para fazer a inscrição no processo seletivo e coragem para as etapas
posteriores, pois todo esse processo de escrita foi inédito para mim.

1112
Ao passar pelas demais etapas, com sucesso, o projeto de dissertação
ainda caminhava comigo, pois escolhi um tema que poucos professores
poderiam orientar. Precisei fazer algumas adequações e mudar de tema
por três vezes, mas com a ajuda da minha orientadora, após um ano de
mestrado, conseguimos definir melhor isso e hoje já estou trilhando os
caminhos da escrita da minha dissertação, com dificuldades, mas devi-
damente orientada.

Narrativa autobiográfica: Yasmim (ingresso em 2022.1)


Quando me perguntam como ingressei no Programa de Mestrado
da UFF, a primeira resposta que vem à minha mente não diz respeito à
parte burocrática, isto é, a realização da inscrição, da prova e a entrega
do projeto de pesquisa. O que verdadeiramente eu respondo é: entrei
“pulando de paraquedas”, pois, assim como Samanta, eu não esperava
ingressar em um curso de Mestrado, nem mesmo me sentia preparada
para o que demanda uma pós-graduação desse nível.
Posso dizer que tudo começou quando uma amiga, em fase de qua-
lificação, enviou-me o edital do programa, incentivando-me a tentar
o ingresso. Despretensiosamente, resolvi me desafiar. Li o edital, fiz
minha inscrição e comecei a estudar para a prova. Tendo sido aluna
da UFF na graduação em Letras/Literatura, senti-me tranquila para a
realização da prova. Todavia, pensei em desistir quando percebi que
não tinha desenvolvido os conhecimentos necessários para escrever um
projeto de pesquisa. Afirmo, inclusive, que o mais difícil foi eleger um
objeto de estudo a ser lido à luz de dado campo teórico-metodológico
da linguística. As dúvidas e incertezas eram inúmeras e me deixavam
imóvel frente à folha em branco do Microsoft Word e do cursor do
mouse piscando insistentemente, como um convite para que eu (não)
escrevesse.
Após longas reflexões, buscando me situar dentro da minha pró-
pria realidade, uma ideia nasceu. Era período de pandemia devido ao
Covid-19, muitas propagandas e campanhas estavam sendo veicula-
das pelos estados e municípios. Desse modo, tornei esse meu objeto

1113
de estudo, constituindo como aporte teórico-metodológico a análise
do discurso de Bakhtin e do Círculo, com o qual tenho afinidade. A
partir deste ponto, foi iniciado o meu processo de leitura-escrita para o
projeto de pesquisa.
Comecei buscando ajuda com essa amiga que havia me indicado o
programa, solicitando auxílio sobre como estruturar um projeto de pes-
quisa, tendo em vista que nunca havia construído esse gênero discursi-
vo anteriormente. Inclusive, nesse ponto, defendo que há uma grande
necessidade de que, desde a graduação, sejam criados espaços para a
leitura-escrita dos diferentes gêneros discursivos acadêmicos, a fim de
que não sejam um mistério para o aluno, ao longo de sua formação uni-
versitária. Dito isso, tendo recebido as devidas orientações, alavanquei
a busca por obras de Bakhtin e do Círculo, bem como pela bibliografia
de autores bakhtinianos, como Beth Brait e Carlos Alberto Faraco, que
poderiam enriquecer meu texto. Autores cujas obras eu poderia ler e, a
partir disso, arquitetar novos sentidos.
A sensação que constantemente me perseguia durante a produção
do projeto de pesquisa era a de que o que estava escrevendo nunca estava
bom o suficiente e que não sabia escrever conforme requer a academia.
A necessidade de adequação às normas de produção textual constituía
um entrave à minha escrita. Quais conceitos abordar em cada seção do
projeto de pesquisa parecia ser um enigma. Igualmente, constituía um
desafio tanto sintetizar as ideias para tornar clara a discussão que eu
gostaria de iniciar, quanto conectar os autores e textos relacionados a
minha pesquisa, bem como interpretar a informação lida em artigos e
livros, para produzir sentidos e enriquecer meu texto.
Atualmente, apesar de não ter prosseguido com o tema inicial,
devido à necessidade de adequação do meu tema à linha de pesquisa
da minha orientadora, percebo-me completamente implicada com o
assunto que pesquiso: o processo de orientação acadêmica para elabo-
ração da monografia.
Noto que, a partir do ingresso no Mestrado e o encontro de um
orientador, o processo de ler-escrever o projeto de pesquisa tornou-se

1114
muito mais fluido, pois o grupo de pesquisa no qual fui inserida, co-
ordenado por minha orientadora, possibilitou-me um espaço de dis-
cussão e diálogo de temas relevantes para o meio acadêmico, como o
trabalho pedagógico de orientar alunos em processo de construção do
trabalho de conclusão de curso (TCC) e a prática social de ler-escrever
na universidade.
Assim, a minha participação no referido grupo de estudos permi-
tiu-me, além do que já fora exposto, desenvolver o espírito investigativo
e a autoria; praticar a leitura-escrita acadêmica; ampliar a capacidade de
pesquisar, principalmente nos portais de relevo como Scielo e Capes;
conhecer autores que dialogam com meu tema de pesquisa; formular
argumentos sobre o assunto analisado etc. Todos esses aspectos estão
colaborando para a leitura-escrita do meu projeto de pesquisa, ainda
em fase inicial.
Ademais, o encontro de vozes em constante diálogo e de sujeitos
apontando para um mesmo objetivo de pesquisa realimenta as minhas
forças para continuar atuando nesse processo de leitura-escrita, desmis-
tificando a minha visão inicial de escrita como ato difícil de realizar,
como algo sobre o qual eu não tenho competência, já que os sujeitos
com os quais interajo compartilham dos mesmos sentimentos que eu.
Essa sensação de acolhimento/pertencimento corrobora para que a re-
dação do meu projeto de pesquisa caminhe.
A partir de nossas narrativas autobiográficas, pudemos compreen-
der que a escrita acadêmica demanda prática social situada, que se pro-
cessa pelo contato com os diversos gêneros discursivos dessa esfera de
produção. Vislumbramos que um dos pontos em comum entre nossas
reflexões é a concordância de que o diálogo com outros sujeitos implica-
dos na prática social do ler-escrever incentiva nossa escrita. Admitimos
que a produção textual, na academia, requer o enquadramento de nossa
escritura a convenções de escrita acadêmico-científica comuns a tal esfe-
ra discursiva, o que gera em nós a sensação de que escrever é um proces-
so frio, sem interlocução com o/s outro/s. No entanto, é pelo contato
humano, diálogo, compartilhamento e troca de saberes/experiências

1115
que, realmente, escrevemos sem a tensão gerada por prazos e normas
de escrita. Ademais, a sensação inicial, de ambas, frente à escrita do
projeto de pesquisa, é de que éramos inabilitadas para ler-escrever, por
não termos tido a oportunidade, durante a graduação, de produzir gê-
neros variados da esfera acadêmica no processo de pesquisar, elaborar,
investigar. Todavia, um dos fatores-chave para a potencialização de nos-
sa prática de leitura-escrita tem sido, além da participação em grupos
de pesquisa e contato com os gêneros discursivos, a própria orientação
acadêmica ora coletiva ou individual.

Considerações finais
Mesmo no mestrado, nível do ensino superior sobre o qual se es-
pera do estudante - pesquisador um maior grau de experiência com a
leitura-escrita, experienciamos dificuldades que nos travam quando de
frente à responsabilidade de escrever um artigo científico, um ensaio
e, principalmente, o trabalho que nos preparará para a qualificação - o
projeto de pesquisa da dissertação.
Admitimos que não chegamos à universidade com o tipo de letra-
mento requerido nesse espaço. Todavia, no contato com os gêneros dis-
cursivos da esfera acadêmica, através dos diálogos com os professores/
orientadores e por meio da participação em grupos de pesquisa, que
nos permite constante interação com outras vozes, conseguimos desen-
volver competência de leitura-escrita, fulcral para a produção textual
na academia e para desenvolvermos a capacidade de pesquisa, comuni-
cação e divulgação de resultados de nossas investigações, tornando-nos
responsáveis por aquilo que escrevemos, pois Bakhtin (2010) nos pro-
porciona entender que temos uma responsabilidade ética com a comu-
nidade para a qual nossa produção de saberes é veiculada.
Em suma, por ora reconhecemos a necessidade de criação de ex-
pedientes pedagógicos para a inclusão, manutenção e formação para a
pesquisa desses pós-graduandos/as em seus cursos, muitas vezes alijados
nessas práticas sem antes conhecer os processos de elaboração para a
pesquisa acadêmica.

1116
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1118
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO


DE PROFESSORES PARA O ENSINO E
APRENDIZAGEM DE INGLÊS NO PERÍODO
PRÉ E PÓS-PANDEMIA: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA

Sandra Mari Kaneko-Marques


UNESP-FCLAr

RESUMO: Sabemos que o cenário atual para ensino e aprendizagem de


língua inglesa é marcado por questões voltadas para a interculturalidade e
internacionalização. Dessa maneira, é de suma importância que cursos de
formação de professores preparem seus docentes para esse contexto globalizado.
Com esse intuito, o Centro de Línguas e Desenvolvimento de Professores da
Faculdade de Ciências e Letras da UNESP-Araraquara (CLDP/FCLAr), desde
2013, vem desenvolvendo diferentes ações para promover a aprendizagem
de línguas estrangeiras, dentre elas o inglês, para a comunidade interna e
externa, bem como favorecer formação crítico-reflexiva de futuros professores
de línguas. Durante a pandemia do novo coronavírus (COVID-19), todos
os contextos educacionais passaram por diversas transformações. Segundo
Coscarelli (2020, p. 15), o ensino remoto, tal como vem sendo chamado
é “[...] uma ação emergencial, são cursos presenciais, que, devido aos
impedimentos impostos pela fácil disseminação do coronavírus, impedem os
estabelecimentos de ensino de manterem suas atividades presenciais”. Tendo
em mente essa definição, o presente trabalho procura fazer um relato sobre o
ensino remoto e o processo de formação de professores de língua inglesa, no
contexto do CLDP, no período pré e pós-pandemia, buscando compreender
os impactos do uso de tecnologias e recursos digitais em sala de aula, além
de abordar dificuldades, anseios e mudanças, vivenciados durante esse
período. Além disso, a partir da experiência adquirida durante a pandemia,
estabelecemos novas propostas de formação docente com uso de tecnologias e
recursos digitais para ampliação de nossos espaços formativos e investigativos.
Compreendemos que, a formação inicial de professores deve fornecer subsídios
teórico-prático-metodológicos para que futuros docentes possam teorizar sua
prática e praticar o que teorizam, tornando-se pesquisadores de suas ações em
sala de aula, buscando a autonomia e o desenvolvimento profissional contínuo,
tal como preconizam Kumaravadivelu (2003; 2006) e Almeida Filho (2010).

1119
PALAVRAS-CHAVE: Formação docente, língua inglesa, pandemia, ensino
remoto.

ABSTRACT: The current scenario for English Language Teaching and


Learning is marked by issues related to interculturality and internationalization.
Thus, it is extremely important that teacher education courses prepare their
teachers for this globalized context. Bearing this in mind, the Language
and Teacher Development Center of the Faculty of Sciences and Letters
of UNESP-Araraquara (CLDP/FCLAr), since 2013, has been developing
different actions to promote foreign language learning, including English, for
the internal and external community, as well as stimulating critical-reflective
education of future language teachers. During the coronavirus (COVID-19)
pandemic, all educational contexts underwent several transformations.
According to Coscarelli (2020, p. 15), remote teaching, as it has been called,
is “[...] an emergency action, they are face-to-face courses, which, due to
the impediments imposed by the easy spread of the coronavirus, prevent
establishments of teaching to maintain their face-to-face activities”. Taking
this definition into consideration, this paper seeks to discuss remote teaching
and the process of preparing English language teachers, in our context, during
pre and post-pandemic period, seeking to understand the impacts of the use of
technologies and digital resources in the classroom, in addition to addressing
difficulties, anxieties and changes experienced. Furthermore, based on the
experience acquired during the pandemic, we established new proposals
for teacher education using technologies and digital resources to expand
our training and investigative contexts. We understand that pre-service
teacher education courses must provide theoretical-practical-methodological
foundations so that future teachers can theorize their practice and practice
what they theorize, becoming researchers of their actions in the classroom,
seeking autonomy and continuous professional development, as advocated by
Kumaravadivelu (2003; 2006) and Almeida Filho (2010).
KEYWORDS: Teacher education, English, pandemic, remote teaching.

Introdução
A pandemia do vírus COVID-19, iniciada em 2020, obrigou estu-
dantes e professores a migrarem do ensino presencial para o ensino re-
moto emergencial, forçando instituições de diversos níveis a utilizarem

1120
ferramentas tecnológicas e recursos digitais para o ensino. O ensino
remoto, diferente de cursos on-line, precisou ser feito sem planeja-
mento prévio, com pouco preparo de professores para adequar e pro-
duzir materiais didáticos para esse novo tipo de contexto de ensino e
aprendizagem.
Ainda nesse contexto, é importante salientar que alguns aprendizes
tinham boas condições, como acesso à internet, equipamentos neces-
sários (computador, tablet ou celulares), mas muitos não dispunham
dessas facilidades, ou as possuíam com restrições ou ainda haviam aque-
les sem condição alguma para uso desses suportes tecnológicos. Além
disso, em muitas instituições, atividades práticas tiveram que ser sus-
pensas, tais como as práticas de laboratório, as pesquisas de campo e os
estágios supervisionados. Atrelado a esse cenário, têm-se ainda muitas
dificuldades enfrentadas, como por exemplo: o despreparo de docentes
para trabalho nessa modalidade de ensino, para o uso de recursos tec-
nológicos, para o desenvolvimento de atividades de envolvimento ativo
de alunos, para acompanhamento e avaliação da aprendizagem, dentre
outras (GATTI, 2020).
Erarslan (2021) aponta, além dessas dificuldades, outros desa-
fios como: conhecimento insuficiente de alunos e professores sobre
ensino e aprendizagem on-line, falta de familiaridade de professores
com plataformas de ensino e ausência de atividades variadas e ativas
para a promoção da interação entre alunos (BAILEY; LEE, 2020;
HUANG ET AL., 2021; NARTININGRUM; NUGROHO, 2020;
SEPÚLVEDA-ESCOBAR; MORRISON, 2020; SHAABAN, 2020
apud ERARSLAN, 2021, p.355).
O retorno das aulas presenciais no contexto educacional brasileiro
se deu de forma gradual, a partir do segundo semestre de 2021, com
a oferta das primeiras vacinas a serem aplicadas para a população de
maior risco, idosos e pessoas com comorbidades, além de profissionais
da saúde que atuavam na linha de frente do combate ao coronavírus.
Após a imunização dessa população, professores e profissionais da edu-
cação passaram a ser prioridade para que o retorno do ensino presencial

1121
fosse possível. Atualmente, todos os níveis de ensino da rede pública e
privada retomaram as aulas presenciais, tomando as devidas providên-
cias sanitárias.
Especificamente, em nosso contexto de pesquisa, uma universidade
pública do interior paulista, o ensino presencial foi retomado recente-
mente, em abril de 2022, após dois anos de ensino remoto emergencial.
Acreditamos que, após a experiência de uso de recursos tecnológicos
e digitais, durante o ensino remoto emergencial, docentes e discentes
passaram a ter um novo modo de lidar com os conteúdos desenvolvidos
em sala de aula.
Dessa maneira, neste artigo, trataremos das práticas voltadas para a
formação inicial de professores de inglês, no período pré, durante e pós-
-pandemia, no contexto do Centro de Línguas e Desenvolvimento de
Professores (CLDP) da UNESP, Araraquara. Para tanto, faremos uma
breve descrição do Centro de Línguas, abordando, posteriormente,
nossa compreensão sobre o ensino remoto emergencial e seus impactos
no processo de ensino e aprendizagem. Em seguida, traremos algumas
reflexões sobre as experiências vividas no período da pandemia.

Caracterização do Centro de Línguas e Desenvolvimento de


Professores (CLDP)
O Centro de Línguas e Desenvolvimento de Professores (doravante
CLDP) é um projeto de extensão que vem sendo desenvolvido, desde o
segundo semestre de 2013, na Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, campus de Araraquara. O CLDP atua em três unida-
des diferentes, sendo presente em campus que possuem o curso de gra-
duação em Letras. Neste trabalho, abordaremos as práticas do CLDP
de Araraquara, embora, algumas discussões gerais se apliquem a todas
as unidades.
O CLDP procura atender ao caráter educativo e formativo da ex-
tensão universitária, buscando responder às demandas que se fazem
presentes nas realidades dos contextos educacionais. Assim, possui três
objetivos gerais principais:

1122
1) Oferecer à comunidade araraquarense e interna a possibili-
dade de ampliar e aprimorar seus conhecimentos em línguas
(inglês, alemão, espanhol, português como língua estrangeira,
francês, italiano e LIBRAS);
2) Criar oportunidades para futuros professores e coordenado-
res relacionarem teoria e prática durante a formação de profes-
sores de línguas estrangeiras;
3) Propiciar um espaço para o desenvolvimento de pesquisas
acerca do processo de ensino e aprendizagem de línguas, objeti-
vando o aprimoramento profissional e acadêmico dos bolsistas.

As abordagens utilizadas em sala de aula no âmbito do CLDP são


aquelas que concebem o ensino de línguas estrangeiras inserido em si-
tuações reais de comunicação, reconhecendo as particularidades cultu-
rais e contextuais de uso da língua estrangeira (LEFFA; IRALA, 2014,
KUMARAVADIVELU, 2006; ALMEIDA FILHO, 2006, BROWN,
2002). Busca-se, dessa forma, atender às necessidades e especificidades
do público-alvo, levando em consideração seus objetivos de aprendiza-
gem, as características de seus contextos educacionais de origem, assim
como suas experiências prévias de aprendizagem de línguas. O CLDP
também pode ser caracterizado como um eixo articulador entre teoria
e prática na formação de professores de línguas, dando orientação e
supervisão para os professores-bolsistas atuantes no Centro, constituin-
do-se como um campo para o desenvolvimento de estudos sobre dife-
rentes aspectos em ensino e aprendizagem de línguas, como avaliação,
desenvolvimento e análise de material didático, tradução, formação de
professores, dentre outros temas.
Tendo apresentado o contexto de nosso estudo, suas características
e seus objetivos gerais, na próxima seção, discutiremos brevemente o
ensino remoto emergencial.

Ensino Remoto Emergencial


Com a instauração da pandemia do novo coronavírus, no início
de 2020, o isolamento social se tornou obrigatório, como uma das

1123
principais recomendações dos órgãos locais e mundiais de saúde para
a prevenção da contaminação e disseminação da doença. Todas insti-
tuições de ensino, em nível global, se viram obrigadas a migrar para
a modalidade remota de ensino. Observou-se que a transição para o
ensino remoto emergencial impactou todos os contextos educacionais
mundialmente. Muitas instituições se viram despreparadas devido à
transição não-planejada e abrupta para o que se define como ensino
remoto emergencial.
Normalmente, diante desse contexto, notamos muitos termos sen-
do utilizados indistintamente, tais como ensino híbrido, educação à
distância, ensino on-line e ensino remoto emergencial. Para Angeluci
et al (2017 apud NASCIMENTO, 2021, p. 16), ensino híbrido pode
ser compreendido como uma “convergência dos modelos educacionais:
o presencial, em que o processo ocorre em sala de aula, como acontece
há tempos, e o modelo on-line, que utiliza as tecnologias digitais para
promover o ensino”. Já a educação ou ensino à distância, tal como prevê
o artigo 1º do Decreto lei nº 9.057 de 25 de maio de 2017,

[...] considera-se a modalidade educacional na qual a media-


ção didático-pedagógica nos processos de ensino aprendizagem
ocorra com utilização de meios e tecnologias de informação e
comunicação, com pessoal qualificado, com políticas de acesso,
com acompanhamento e avaliação compatíveis, entre outros,
e desenvolva atividades educativas por estudantes e profissio-
nais da educação que estejam em lugares e tempos diversos.
(BRASIL, 2017, p.3)

Em contrapartida, o ensino on-line e remoto emergencial têm


sido utilizados intercambiavelmente para se referir às práticas educa-
cionais durante a pandemia. No entanto, Hodges et al. (2020a apud
ERARSLAN, 2021) explica que o ensino on-line ou à distância, assim
como o ensino presencial, é cuidadosamente planejado e organizado,
pedagogicamente e administrativamente, antes de sua implementação.
Diferente do ensino remoto emergencial que foi uma solução encontra-
da como alternativa nas circunstâncias pandêmicas, pois era temporário

1124
e não planejado. Além disso, entendia-se que, com o término ou me-
lhora das condições sanitárias na pandemia, o ensino presencial volta-
ria, abandonando o ensino remoto emergencial (ERARSLAN, 2021).
E assim, gradativamente, o ensino presencial foi sendo retomado,
com restrições sanitárias, nas instituições de ensino em 2021, com o
oferecimento de vacinas para a população de maior risco. Vimos que,
desde o início da pandemia, houve um crescimento de estudos e de
discussões em nível global sobre o uso e efetividade de recursos tec-
nológicos e digitais para o desenvolvimento de atividades de ensino e
aprendizagem (GREGOLIN, 2020).
Muitos foram os temas abordados em pesquisas, tendo como pano
de fundo a pandemia, apresentando não só resultados positivos sobre o
uso de tecnologias digitais e suas mídias, mas também, descrevendo a di-
ficuldade de alunos e professores no período. Por exemplo, Nascimento
(2021), destaca a valorização do professor como mediador do processo
de ensino aprendizagem, uma vez que, mesmo com a utilização das
diversas ferramentas de tecnologias da informação e comunicação, esse
profissional é primordial para atuar como mediador do ensino.
Denardi, Marcos e Stankoski (2021) defendem a noção do profes-
sor como tutor no processo de ensino e aprendizagem, “pois é ele quem
pode assumir o papel de guia dos alunos para a execução de tarefas de
forma ativa e com uma postura crítica (op.cit. p.117)”. Concordamos
com as autoras, que apontam que as tecnologias digitais não substituem
professores, mas podem ser alternativas para desenvolver diferentes prá-
ticas pedagógicas.
Erarslan (2021) ressalta em seu estudo sobre as diferentes temáticas
de pesquisas sobre o ensino na pandemia que, na perspectiva de docen-
tes, muitos não receberam formação teórica ou prática sobre o ensino
on-line. O autor assevera a importância de cursos de formação na pre-
paração de futuros docentes não apenas para o ensino presencial, mas
também para o ensino on-line. Ele prevê que, a médio e longo prazo,
tais cursos poderão tratar de tecnologias educacionais e ensino on-line
na formação de professores.

1125
Já com relação aos alunos, como resultado de sua pesquisa sobre o
ensino remoto de inglês em contextos de escolas de idiomas, escola pri-
vada e pública, Denardi, Marcos e Stankoski (2021, p.125) salientam
que “os aprendizes se tornaram mais responsáveis pela busca de conhe-
cimento, uma vez que tomaram maior consciência sobre o processo
de aprendizagem”. Diante dessas constatações, segundo Gatti (2020,
p.37-38):

O que parece mais efetivo é a integração no trabalho pedagó-


gico dentro dos espaços escolares daquilo que as diferentes mí-
dias podem oferecer à educação, com mediações motivadoras
dos professores, criando nova distribuição dos tempos para as
aprendizagens e utilizando espaços variados, com a utilização de
dinâmicas didáticas em que alunos sejam protagonistas ativos.
(GATTI, 2020, p.37-38).

Assim, valendo-se dessa afirmação, acreditamos que muitas práticas


pedagógicas do ensino presencial foram, de inúmeras maneiras (efetivas
ou não), de certa forma, transpostas para o ensino remoto emergencial.
Após aproximadamente dois anos nessa modalidade, acreditamos que
a experiência com o uso de diferentes mídias e recursos tecnológicos
durante a pandemia, pode acarretar uma ampliação de técnicas e estra-
tégias de ensino e aprendizagem de língua estrangeira. Essa ampliação
(ou não) pode estar relacionada às competências digitais de professo-
res, pois devemos considerar que “[...] os docentes apresentam perfis
profissionais diversos, com níveis diferentes de proficiência dos recur-
sos tecnológicos aplicados à educação” (FERNANDES; ISIDORIO;
MOREIRA; 2020, p. 6).
Nesse período, também notamos que muitas mudanças ocorre-
ram não somente no âmbito educacional, mas também nas relações
interpessoais, no que diz respeito ao círculo familiar e profissional.
Concordamos com Gatti que,

O impacto repentino das mudanças de rotinas no trabalho,


no estudo, nas relações, nas necessidades, nesses tempos de

1126
isolamento social, provocou rupturas com hábitos arraigados e
reflexões sobre o que é essencial e o que é supérfluo, bem como
demandou exercício de paciência, desenvolvimento de ativida-
des de modo diferente. O uso de recursos virtuais entrou em
foco e suas qualidades e seus problemas estão sendo experimen-
tados (GATTI, 2020, p. 39).

Reconhecendo essas mudanças, na seção seguinte, descreveremos


as práticas de formação docente implementadas em nosso CLDP no
período pré-durante e pós-pandemia.

Práticas do CLDP pré-pandemia


No período pré-pandêmico, desde sua criação em 2013, o CLDP
procurava atuar em dois grandes eixos teóricos embasadores: a forma-
ção de professores para ensino de língua e cultura e formação crítico-
-reflexiva de professores de línguas, ambos atrelados às políticas de in-
ternacionalização da universidade. Desses eixos, decorrem outras ações,
descritas de modo breve, a seguir.
O processo de formação profissional de professores do Centro de
Línguas procura desenvolver questões como o multilinguismo, a trans-
culturalidade e a cultura brasileira, com tolerância e respeito às dife-
renças culturais (KRAMSCH, 2011). Tais princípios estão presentes
no documento de Política de Idiomas da universidade, elaborado em
2016, por professores-pesquisadores da área de ensino e aprendizagem
de línguas, coordenadores dos Centros de Línguas, e representantes
das pró-reitorias de Graduação, Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão.
Tal documento contém ações de ensino, pesquisa e extensão em prol
da internacionalização da UNESP (ROZENFELD; SALOMÃO;
KANEKO-MARQUES, 2018, não publicado).
Além de oferecer cursos de línguas estrangeiras à comunidade ex-
terna e acadêmica, o CLDP tem também o interesse em contribuir
para a formação crítico-reflexiva de professores de línguas. Para tan-
to, o trabalho de desenvolvimento e aperfeiçoamento profissional de
futuros professores se fundamenta no paradigma crítico-reflexivo na

1127
formação docente, tal como preconizado por Schön (1983), Zeichner
e Liston (1996), Gil (2005), Vieira-Abrahão (2007), dentre outros.
(ROZENFELD; SALOMÃO; KANEKO-MARQUES, 2018, não
publicado).
Desde o ingresso do licenciando no CLDP, ressalta-se aos futuros
professores a importância de sua participação em todas as ações e ati-
vidades, pois, conforme mencionado, uma de nossas metas, além da
formação acadêmica, profissional e científica, é o incentivo à formação
sociocultural e humanística dos alunos de nossos cursos. As aulas de-
vem, assim, envolver os participantes do grupo de forma colaborativa,
priorizar o contexto dos aprendizes, suas práticas sociais, os valores de
sua comunidade e partir de uma visão crítica de aprendizagem da lín-
gua (LEFFA; IRALA, 2014).
Para que isso ocorra, além de participar das reuniões com seus res-
pectivos coordenadores de área, os futuros professores tinham reuniões
pedagógicas mensais, nas quais coordenadores e professores-bolsistas
discutiam questões teórico-metodológicas relevantes às línguas aten-
didas pelo Centro. Alguns dos temas tratados nessas reuniões e em
oficinas de formação pedagógica foram: professor reflexivo; abordagens
e métodos de ensino; ensino de gramática como habilidade; planeja-
mento de aulas e utilização da plataforma Moodle; a produção de uma
unidade didática: ensinando de forma significativa; modelos de leitura
e formação de professores: interligando teoria e prática em sala de aula;
validade, praticidade e confiabilidade: como elaboramos nossos instru-
mentos de avaliação; dentre outros.
Os materiais didáticos elaborados pelos professores-bolsistas fica-
vam disponibilizados na plataforma Moodle, utilizada como ambiente
virtual de aprendizagem. Seu uso possibilitou a familiarização do futuro
professor de línguas com recursos tecnológicos e digitais, favorecen-
do o estímulo ao letramento digital, atendendo às demandas sociais
que envolvem o uso desses recursos na atualidade (ROZENFELD;
SALOMÃO; KANEKO-MARQUES, 2018, não publicado).
Ressaltamos que, além dessas ações, desde 2014, organizamos
um evento anual para promover o encontro dos centros de línguas da

1128
universidade, em que coordenadores e professores-bolsistas podem tro-
car experiências e discutir suas práticas pedagógicas. Tal evento conta
com a participação de professores-pesquisadores de outras universida-
des e abre espaço para nossos professores-bolsistas apresentarem suas
experiências na forma de comunicação ou relato de experiência. São
oferecidas oficinas envolvendo questões específicas acerca das línguas
oferecidas no CLDP, ministrada por ex-bolsistas, bolsistas e pós-gradu-
andos. Na próxima seção, abordaremos as ações e atividades do CLDP
durante a pandemia.

Práticas do CLDP durante a pandemia


Considerando a importância dos recursos digitais no ensino de lín-
guas, sua utilização foi essencial durante os dois anos de isolamento
social. Devido às dificuldades na implementação do ensino remoto –
principalmente, por ter sido algo novo para a maioria dos professores
e escolas – foi necessário a procura por ferramentas que trouxessem di-
nâmica para as aulas e auxiliassem no processo de formação dos alunos
(ALVES, 2022), uma vez que tal ensino “[...] precisou ser feito sem pla-
nejamento prévio, sem um ambiente virtual de aprendizagem escolhido
com cautela, sem que os professores tivessem tempo de se preparar, de
produzir e selecionar materiais e estratégias de ensino adequadas para
atividades on-line.” (RIBEIRO e VECCHIO, 2020, p.15).
Dentre os diversos desafios que isso acarretou, é possível mencionar
a falta de acesso aos recursos necessários para a realização das aulas; a fal-
ta de interesse dos alunos em participar de maneira remota; a ausência
de aulas dinâmicas e dificuldade em prender a atenção de aprendizes;
alta cobrança de resultados, além de diferentes métodos e ferramen-
tas de avaliação, compatíveis com esse contexto. “No cenário atual, o
professor de LE faz o que é possível, dentro de suas possibilidades e
dos recursos tecnológicos à disposição, levando em conta adversidades
e precariedades” (COSTA, BORSATTI, GABRIEL, 2021, p. 11).
Compartilhando dessas dificuldades e anseios, as aulas de línguas
do CLDP foram também oferecidas na modalidade remota. Para tanto,

1129
coordenadores dos três Centros de Línguas idealizaram uma oficina,
de duas horas de duração, intitulada: “Reflexões teóricas sobre a aula
de língua estrangeira: organizando materiais, analisando contextos, de-
finindo percursos”, ministrado pela coordenadora da área de alemão
e vice-coordenadora geral, oferecida de forma síncrona para todos os
professores-bolsistas e coordenadores das três unidades do CLDP. A
partir dessa iniciativa, surgiu a ideia de se oferecer um curso de for-
mação profissional para preparar nossos professores-bolsistas dos três
campus, antes que eles iniciassem suas aulas por meio do ensino remoto
emergencial.
O curso, intitulado “Formação de Professores-Tutores para o Uso
de TDIC no Ensino de Línguas”, foi coordenado por uma coordena-
dora de área com experiência em tecnologias, contando com o apoio de
três doutorandos, pesquisadores em questões sobre ensino e aprendiza-
gem de línguas. O curso teve 32 horas de duração, sendo desenvolvido
de forma síncrona e assíncrona, com o uso de um ambiente virtual de
aprendizagem, o Moodle. Dentre os conteúdos abordados na oficina,
temos: educação a distância, ensino remoto, tecnologias de informação
e comunicação (TIC) e tecnologias digitais de informação e comunica-
ção (TDIC), cibercultura, gamificação, abordagens-metodológicas de
ensino de línguas, planejamento de aulas e planejamento de curso.
Alves (2022) realizou uma pesquisa com três professores-bolsistas
da área de inglês do CLDP em Araraquara, na qual buscou-se apon-
tar quais as principais dificuldades no uso de recursos tecnológicos e
digitais e quais seus impactos positivos. Dessas participantes, uma era
ex-bolsista e as demais eram atuantes no CLDP no momento da coleta
de dados. Todas afirmaram que o curso de formação para o uso de re-
cursos tecnológicos e digitais contribuiu para prepará-las para a sala de
aula na modalidade remota. Quanto às dificuldades e anseios, podemos
afirmar que se pautavam mais em questões técnicas como: conexão de
internet, microfone e fones, câmera, a falta desses recursos ou o mau
funcionamento deles. Outro ponto levantado pelas participantes foi a
familiaridade com ferramentas digitais e como utilizá-las para o ensino.

1130
Já com relação aos aspectos positivos do ensino remoto emergen-
cial, foram apontados:
- a interação, por meio das ferramentas digitais que conheceram e
aprenderam a usar em suas salas de aula;
- o deslocamento, por não haver a necessidade de se deslocar até a
cidade-sede do CLDP, muitos alunos de outros campus da universidade
se inscreveram nos cursos;
- a descoberta, de novas formas de interação, de desenvolvimento
de conteúdos que atendessem às necessidades de seus aprendizes no
contexto remoto;
- o desafio, para buscar novas maneiras de ensinar e aprender na
modalidade remota (ALVES, 2022).
Notamos que, o embasamento teórico oferecido pelo CLDP para
o uso de tecnologias foi importante para que os professores-bolsistas
pudessem ser preparados para lidar com as especificidades do ensino
remoto. Podemos afirmar que, a experiência de se ensinar na modali-
dade remota (emergencial) possibilitou a descoberta de novas técnicas
e estratégias de ensino, bem como ferramentas digitais para uso em sala
de aula.
Tendo apresentado e discutido as ações e práticas do CLDP no
antes e durante a pandemia, na próxima seção, realizaremos um relato
das possibilidades viabilizadas em decorrência das experiências durante
o isolamento social e ensino remoto emergencial.

Práticas do CLDP pós-pandemia


Em pesquisa realizada com 24 professores de escolas de idiomas,
rede privada e pública de ensino, Denardi, Marcos e Stankoski (2021),
apontaram aspectos positivos e negativos com relação ao uso de recur-
sos digitais na pandemia. Assim como em, Erarslan (2021), notou-se
que alguns professores já haviam incorporado muitos desses recursos
em suas aulas, mesmo antes da pandemia. No entanto, muitas dessas
pesquisas foram realizadas sobre o ensino e aprendizagem durante a

1131
pandemia. Poucas pesquisas têm como foco as implicações do ensino
remoto após o retorno das aulas presenciais.
Concordamos que, com o retorno presencial do ensino em todos
os níveis, “é provável que haja elevados graus de disposição e abertu-
ra por parte de toda comunidade escolar (estudantes, profissionais da
Educação, famílias) para introduzir, de vez, a tecnologia como instru-
mento pedagógico (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020, p.24)”.
Frente a essas considerações, o CLDP encontrou oportunidades de
expansão para atuar em outros dois campus da universidade, que não
possuem um Centro de Línguas próprio. As diretorias das duas uni-
dades (Franca e Bauru) se responsabilizam pelo apoio financeiro dado
aos professores-bolsistas e a seleção, coordenação e orientação desses
professores fica sob a responsabilidade do CLDP. Em uma das unidades
(Franca), foram oferecidos quatro cursos de línguas on-line síncrono,
sendo duas turmas de espanhol e duas turmas inglês, ambas de nível
básico, no segundo semestre de 2021. Em 2022, estão sendo oferecidas
oito turmas, sendo quatro de inglês e quatro de espanhol, de nível bá-
sico e intermediário.
Nos mesmos moldes, outra unidade universitária (Bauru) apresen-
tou demandas um pouco distintas da primeira parceria. A procura era
por cursos avançados de conversação para docentes e pós-graduandos
e por cursos de inglês de nível básico para a comunidade interna. Para
tanto, no primeiro semestre de 2022, foram oferecidas duas turmas de
conversação e duas turmas de básico que tem previsão de continuidade
no segundo semestre. Ressaltamos que essas parcerias só puderam ser
concretizadas devido à possibilidade de se manter as aulas on-line sín-
cronas com o uso do Google Meet (utilizado pela universidade).
Fora das parcerias com essas unidades universitárias, no primeiro
semestre de 2022, as aulas do CLDP, em Araraquara, se mantiveram
na modalidade on-line e síncrona, com apoio do ambiente virtual de
aprendizagem, Google Classroom, para envio de materiais, tarefas, ativi-
dades e comunicação entre professores e alunos. Mesmo com o retor-
no presencial das aulas e atividades de graduação e pós-graduação, o

1132
CLDP optou por manter as aulas on-line, pois para o retorno presencial
em nossa instituição, toda a comunidade acadêmica deveria apresentar
comprovante de vacinação, fazendo upload de uma cópia nos sistemas
de recursos humanos, graduação, administração ou pós-graduação.
Pensando em como membros da comunidade externa poderiam
frequentar o campus, optamos por manter as aulas on-line. Ao fim
do primeiro semestre, foi aplicado um questionário para os alunos de
cada curso oferecido para consultá-los sobre a preferência em manter
as aulas on-line ou voltar para o presencial. Das 17 turmas, oferecidas,
duas turmas não responderam ao questionário; três turmas optaram
por voltar presencialmente (dessas turmas, duas tiveram apenas uma
resposta, e uma teve três respostas, sendo todos vinculados ao campus
de Araraquara); e o restante, 12 turmas preferiram continuar na moda-
lidade remota. Dessas turmas, a maioria tem alunos de outros campus
e de outras cidades.
Entendemos que o ensino on-line permite a participação de um
número maior de alunos, para além daqueles vinculados ao campus de
Araraquara. Além disso, nossos professores-bolsistas foram preparados
para atuar em sala de aula on-line, desenvolvendo conhecimentos teó-
rico-práticos acerca de tal contexto e expandindo seu campo de atuação
no futuro.

Algumas Considerações e Reflexões


Acreditamos que, as mídias e recursos digitais e tecnológicos, utili-
zados durante a pandemia, possam ter se tornado instrumentos lúdicos
a serem considerados em práticas de ensino presenciais, “acarretando
em novas formas de interação, gerando novas experiências e expectativas
em estudantes e professores” (DENARDI, MARCOS, STANKOSKI,
2021, p.126). Concordamos com os autores, pois após dois anos de
ensino remoto emergencial, professores de todos os níveis se viram im-
buídos de buscar novas formas de ensinar e novas ferramentas para o
ensino. Essas descobertas e desafios, de certa forma, impactaram na prá-
tica de ensino desses professores.

1133
Alves (2022) apontou, em sua pesquisa, que foi possível chegar a
conclusões que evidenciam, apesar das dificuldades, resultados muito
positivos acerca do uso de recursos digitais no ensino de língua inglesa,
além de outros aprendizados e mudanças que o contexto pandêmico
trouxe para a educação como um todo.
Acreditamos que, dentre essas mudanças, temos a expansão do
ensino remoto, devido à familiaridade com as ferramentas de vídeo
chamadas e ambientes virtuais de aprendizagem, adquirida durante a
pandemia.

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1136
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

STORYTELLING E GAMIFICAÇÃO: RELATO


DE UMA EXPERIÊNCIA NOS ANOS FINAIS
DO ENSINO FUNDAMENTAL

Tatiana Ramalho Barbosa (UFPB)217


Laurênia Souto Sales (UFPB)218

Uma aula de língua inglesa como língua estrangeira começa com um professor
diante de um grupo de alunos. Os atores desse processo, que provavelmente
pertencem a gerações distintas, têm características pessoais e de aprendizagem
diferentes. O que acontece entre eles nos quase 60 minutos pode resultar
em compreensão e afeto, provocar reações positivas e desenvolver conexões.
Ou exatamente o contrário. Certamente não há uma fórmula secreta para
atingir o resultado desejado, mas a busca pela melhor estratégia para ensinar
seguramente faz parte da lida diária de professores neste início do século XXI.
Nesse sentido, a arte de contar histórias, ou utilizando o termo comum na
atualidade, o storytelling, pode constituir uma ferramenta de grande valor.
Em outra vertente, vários autores (PRENSKY, 2012; BOLLER; KAPP, 2018;
FARDO, 2013) apontam a gamificação como metodologia ativa eficaz entre
alunos das gerações Z e Alpha. Nesse contexto, objetiva-se com esse trabalho
relatar uma experiência de storytelling gamificada de forma a demonstrar a
pertinência e as implicações da utilização destes elementos em aulas de língua
inglesa. Assim, com base metodológica na pesquisa-ação (THIOLLENT,
1986), foi desenvolvida uma proposta didática e aplicada com alunos da 8ª
série do Ensino fundamental de uma escola privada da cidade de João Pessoa,
Paraíba. Os resultados mostraram um maior engajamento e protagonismo dos
alunos envolvidos. Ademais, a experiência teve um alto índice de avaliação
positiva pelos participantes.
PALAVRAS-CHAVE: Storytelling. Gamificação. Inglês como língua estran-
geira. Pesquisa-ação.

217
Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); Licenciada
em Letras com habilitação em língua inglesa (UFPB) e Bacharel em Jornalismo
(UFPB); E-mail: tatiramalho@hotmail.com
218
Docente do Departamento de Letras e do Programa de Mestrado Profissional em
Letras (PROFLETRAS) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail:
laureniasouto@gmail.com

1137
An English as a Foreign Language class begins with a teacher before a group
of students. Those involved in this process, who probably belong to different
generations, have distinct personal and learning characteristics. What happens
between them within 60 minutes may mean understanding and affection,
induce positive reactions and develop connections. Or quite the opposite.
Certainly, there is no secret formula to achieve the desired result, but the
search for the best strategy to teach is surely part of the daily work of teachers
at the beginning of the 21st century. In this sense, the art of the narrative,
or to use the common term today, the storytelling, can be a valuable tool. In
another aspect, several authors (PRENSKY, 2012; BOLLER; KAPP, 2018;
FARDO, 2013) point to gamification as an effective active methodology
among students of generations Z and Alpha. In this context, the objective of
this work is to report a gamified storytelling experience in order to demonstrate
the relevance and implications of using these elements in English language
classes. Thus, with a methodological basis in action research (THIOLLENT,
1986), a didactic proposal was developed and applied with students from the
8th grade of Elementary School, in the city of João Pessoa, Paraíba. The results
displayed a greater engagement and students involved acted as protagonist in
the process. In addition, the experience had a high rate of positive evaluation
by the participants.
KEYWORDS: Storytelling. Gamification. English as a Foreign Language.
Action research.

1. Introdução
Aqueles que decidem ter a docência como trajetória de vida nor-
malmente a escolhem porque acreditam que podem fazer a diferença na
formação das outras pessoas e, consequentemente, melhorar o mundo
que as cerca. Independente da habilidade que tenham ou adquiram
com estudos ou experiência prática, em algum momento de suas carrei-
ras (ou em vários) questionam como conseguir que os alunos aprendam
tudo que eles têm para ensinar. Isso porque, geralmente, os professores
ministram aula tal qual foram ensinados, pois acreditam que se fun-
cionou para eles, também servirá para seus alunos. O problema é que
docentes e discentes não pertencem à mesma geração e, por isso, a fór-
mula para o ensino pode ficar bem distante daquela para o aprendizado.

1138
No Brasil, os alunos que agora estão nos últimos anos da escola per-
tencem à Geração Z (MCCRINDLE; FELL, 2021). Existe, ainda, um
número cada vez mais crescente de estudantes da Geração Alpha, a mais
recente descrita por psicólogos e pesquisadores sociais, que compreende
pessoas nascidas a partir do ano 2010. Para Prensky (2012), não há
dúvidas que, ao receber estímulos de vários tipos, esta nova geração
processa as informações de forma diferente das anteriores.
É nesse contexto que têm surgido diversas possibilidades
pedagógicas visando encontrar metodologias mais adequadas à realidade
vivida no século XXI. É notável que hodiernamente a tecnologia
exerce expressiva influência na vida das pessoas, especialmente após a
pandemia de Covid-19. Por isso, um primeiro aspecto a ser considerado
é a inserção, nas salas de aula, das Tecnologias Digitais de Informação
e Comunicação (TDIC) de forma consciente e planejada, visando
promover mais eficácia ao processo de ensino-aprendizagem.
Nessa direção, diversos autores (PRENSKY, 2012; BOLLER;
KAPP, 2018; SANTAELLA; FEITOZA, 2009) têm defendido a me-
diação do ensino, através da utilização de jogos (convencionais, digitais
ou on-line) bem como da gamificação, considerada por Alves (2015,
p. 119) “uma ferramenta de design instrucional” que pode apresentar
tarefas a serem executadas pelos alunos de forma a colecionar pontos e
receberem recompensas. Fardo (2013, p. 2), por sua vez, defende o uso
da gamificação no ensino “com a finalidade de tentar obter o mesmo
grau de envolvimento e motivação que normalmente encontramos nos
jogadores quando em interação com bons games”. Ademais, a gamifi-
cação pode aproveitar o conteúdo programático já existente no material
didático adotado, tornando-o mais atraente para os alunos, sem alterar
o cronograma previamente estabelecido.
Levando em consideração os aspectos previamente mencionados,
foi feita a seguinte indagação: como utilizar efetivamente a gamificação
como ferramenta instrucional para facilitar o ensino de língua inglesa
nos anos finais do ensino fundamental? A partir deste questionamento,
foi elaborada e aplicada uma proposta de intervenção em duas turmas

1139
do 8° ano do ensino fundamental de uma escola privada do município
de João Pessoa, capital do estado da Paraíba.
A proposta didática foi construída sob os pilares da storytelling,
através da construção de uma narrativa ficcional criada pela profes-
sora-pesquisadora, e dos preceitos da pesquisa-ação (THIOLLENT,
1986). Para tanto, foram utilizadas diversas Ferramentas Virtuais de
Aprendizagem (FVA) que serão descritas mais adiante.
Objetiva-se com este artigo, portanto, relatar os procedimentos e
resultados de uma experiência de storytelling gamificada, de forma a de-
monstrar a pertinência e as implicações da utilização destes elementos
em aulas de língua inglesa. Para melhor didatizar os conteúdos aqui
apresentados, este texto está estruturado em quatro seções, além destas
considerações introdutórias. A primeira diz respeito à fundamentação
teórica, em que são detalhados os princípios norteadores da pesquisa
sobre storytelling, gamificação e utilização de FVA. Em seguida, foi des-
crito o percurso metodológico da pesquisa-ação realizada e, na sequên-
cia, são apresentados e discutidos os resultados obtidos. Por fim, são
relatadas as considerações finais desta pesquisa.

2. As metodologias ativas e sua contribuição para as práticas


pedagógicas
Entre as práticas pedagógicas presentes na atualidade estão as meto-
dologias ativas, que têm sido a escolha de educadores dispostos a tentar
mudar o estilo tradicional de ensino. A aprendizagem ativa pressupõe
um maior protagonismo do aluno, ou seja, as aulas devem ser centradas
nos alunos, que devem participar da construção do conhecimento e não
apenas receberem passivamente as instruções dadas pelos professores.
De acordo com Sales e Barbosa (2021, p. 224) acreditam que “as me-
todologias ativas apresentam-se como bastante eficazes neste contexto,
pois as aulas tendem a ser menos expositivas e passam a ser cada vez
mais colaborativas”.
Ffield (2016, p. 40) defende que as crianças são “instintivamente
ativas tanto do ponto de vista físico quanto cognitivo”. Portanto, as

1140
práticas pedagógicas mais eficazes devem promover sua participação ple-
na de forma que possam, gradativamente, explorar e expressar suas ideias,
além de praticar novas habilidades. Para tanto, existem diversas possibi-
lidades de aprendizagem ativa, entre elas a gamificação e o storytelling,
práticas usadas nesse estudo e que serão definidas no tópico a seguir.

2.1 Gamificação e Storytelling na Educação


Huizinga (2019, p. 5) argumenta que o jogo existe em todas as par-
tes e em todos os tempos, pois “existe antes da própria cultura, acom-
panhando-a e marcando-a desde as mais distantes origens até a fase
atual”. De igual maneira, Alves (2015, p. 18) complementa que “o jogo
parece ser mais do que uma manifestação biológica, ele é uma função
significante e isso é muito importante quando o transportamos para o
gamification”.
Estando tão presentes no dia a dia das pessoas, trazer os jogos para
a sala de aula é um movimento natural, por isso, a gamificação tem sido
bastante usada na atualidade na área de educação. Com relação à defi-
nição do termo, Fischer, Grimes e Vicentini (2019, p. 1171) explicam
que “a gamificação se constitui na utilização de princípios de jogos em
cenários de não jogo, criando espaços de aprendizagem mediados pelo
desafio, pelo prazer e entretenimento.” Ademais, a prática promove a
motivação e o engajamento para a resolução de problemas e para reten-
ção de conteúdos.
Uma grande vantagem da gamificação é o fato de poder trabalhar
o próprio conteúdo do material didático, porém estruturando-o com
a mecânica dos jogos. E, para unir os elementos e dar forma a estru-
tura gamificada, foi escolhido o storytelling, pois, de acordo com Alves
(2015, p. 44) o uso de uma narrativa promove “um sentimento de co-
erência, um sentimento de todo” de forma que “os jogadores estabele-
çam uma correlação com o seu contexto, criando conexão e sentido”.
Valença e Tostes (2019, p. 224) explicam que o uso pedagógico do
storytelling “se inspira na tradição oral e soma a ela práticas e ferramen-
tas para a representação e perpetuação de estruturas mentais e morais de

1141
comunidades, em ambientes pedagógicos planejados”, potencializando
a aprendizagem ativa dos alunos.
Destarte, a proposta didática apresentada neste artigo foi baseada
nos princípios da gamificação através de uma narrativa ficcional rela-
cionada com o conteúdo didático e executada com FVA, conforme será
detalhado no próximo item.

2.2 Ferramentas Virtuais de Aprendizagem


Matos (2020, p. 16) define o termo “ferramenta” como sendo
“todo tipo de objeto, ação, procedimento, dentre outros, que possa ser
observado como instrumento de uso real ou potencialmente real, in
loco ou não”. Já “virtual”, refere-se a tudo que se encontra no ciberespa-
ço e que possa ser utilizado na prática pedagógica. Ou seja, Ferramentas
Virtuais de Aprendizagem (FVA) são plataformas, aplicativos, sites ou
jogos digitais que estão disponíveis para docentes e discentes e que po-
dem ser usados para mediar o ensino, especialmente a partir do olhar
do professor, que tem o papel de curador e deve selecionar quais desses
instrumentos servem a seus objetivos pedagógicos.
Para este estudo, foram utilizadas as plataformas digitais: Kahoot!219
e Nearpod220, ambas para avaliação (assessment) e com participação dos
alunos em tempo real, utilizando seus dispositivos móveis. Também foi
utilizada a ferramenta de gamificação Classcraft221 para dividir os alunos
em equipes e computar os pontos das atividades. As cenas e persona-
gens foram criados a partir do site Storyboard That222.
Os passos seguidos foram resultado de um planejamento pedagógi-
co realizado pela professora-pesquisadora e serão detalhados na próxima
seção.

219
https://kahoot.it/
220
https://nearpod.com/
221
https://www.classcraft.com/
222
https://www.storyboardthat.com/pt

1142
3. O percurso metodológico
A presente pesquisa se insere no campo dos estudos da Linguística
Aplicada, especialmente no que se refere à área de multiletramentos em
favor do ensino de inglês como língua estrangeira (English as a Foreign
Language – EFL). Trata-se de uma pesquisa-ação, de cunho interven-
cionista, e os dados gerados possibilitaram uma análise qualitativa
interpretativista.
A escolha por esta metodologia se deu pelo contexto em que os
participantes estavam inseridos: o estudo foi realizado ainda durante as
restrições provocadas pela pandemia de Covid-19, no período de ensi-
no que foi chamado de híbrido, em que parte dos alunos compareciam
às aulas de forma presencial e parte acompanhava de forma remota e
síncrona. Foi um momento de dificuldade para todos, tendo em vista
a necessidade de adaptação a esta nova realidade, além de lidar com
situações decorrentes da Covid-19. Os alunos estavam desmotivados
e os professores em busca da melhor estratégia de ensino que pudesse
alcançar todos os discentes. Assim, a pesquisa-ação foi preferida, pois
busca “engajar as pessoas diretamente na formulação de soluções para
os problemas que elas encontram em suas comunidades e vidas organi-
zacionais” (STRINGER, 2014, p. 31, tradução nossa223).
De igual maneira, Thiollent (1986, p. 24) esclarece que a pesqui-
sa-ação deve ter como objetivo contribuir para a resolução de proble-
mas centrais no dia a dia das pessoas “com levantamento de soluções e
proposta de ações correspondentes às ‘soluções’ para auxiliar o agente
(ou ator) na sua atividade transformadora da situação”. Por esse moti-
vo, a professora-pesquisadora, teve um papel fundamental na escolha
da intervenção proposta, consciente de não ser apenas “um usuário do
conhecimento produzido por outros pesquisadores, mas se propõe tam-
bém a produzir conhecimentos sobre seus problemas profissionais, de
forma a melhorar sua prática” (BORTONI-RICARDO, 2008, p. 46).

223
No original: “Action research seeks to engage people directly in formulating so-
lutions to problems they confront in their community and organizational lives.”

1143
A proposta de intervenção foi organizada da seguinte forma: os
alunos, divididos em equipes, deveriam seguir as pistas dadas para des-
vendar um crime, permeado de mistério e suspeitos. No primeiro dia
foram apresentados os elementos básicos que envolviam a história e as
regras da experiência foram negociadas.
Em seguida, as informações a respeito do crime eram passadas a cada
aula e dependiam do desempenho dos alunos nas equipes e nas tarefas
individuais. Durante quatro semanas, tempo que durou a intervenção,
as aulas foram classificadas por níveis: básico, médio e difícil, de acordo
com o conteúdo. Quanto mais assunto a ser visto no dia, mais elevado o
nível, cada um com uma pontuação e recompensa equivalentes, confor-
me mostra a figura 1, a seguir. Os alunos também eram pontuados quan-
do realizavam a leitura de algum texto ou respondiam perguntas, tanto
de forma voluntária, como através de sorteio. O último dia de aula da
semana, geralmente às sextas-feiras, era reservado para tarefas em grupos,
quando cada equipe deveria preparar e apresentar algum tema, projeto
ou atividade, de acordo com o conteúdo estudado durante a semana. As
apresentações visavam estimular a oralidade e aumentar a participação
efetiva dos estudantes durante o tempo da aula, desviando o foco do
professor, que passa a não ser o único detentor do conhecimento.

Figura 1 – Dinâmica das aulas

Fonte: Elaboração própria (2022)

1144
Ao final de cada aula de nível básico e médio, eram feitas perguntas
a três alunos sorteados aleatoriamente, através do Classcraft de forma
a avaliar a compreensão geral da turma com relação ao que foi visto
naquele dia. Caso pelo menos dois alunos acertassem, a pontuação era
dada a todos os presentes. Ao contrário, havendo só um acerto, nin-
guém recebia pontos e o conteúdo daquele dia era revisado no início do
próximo encontro. No caso das aulas de nível hard (difícil), a avaliação
era feita por todos, utilizando uma FVA e, havendo resultado positivo
(percentual de acerto acima de 70%), além da pontuação correspon-
dente ao nível, as equipes vencedoras recebiam informações adicionais
(pistas extras) sobre o mistério a ser desvendado. Na seção a seguir serão
detalhados e discutidos os resultados da experiência realizada.

4. Discussão e apresentação dos resultados


Uma das vantagens da gamificação, conforme exposto anterior-
mente, é o fato de poder ser utilizada a partir do conteúdo já existente
no material didático, sem que haja necessidade de inclusão de assuntos
novos ou alteração do cronograma previamente estabelecido. Dito isto,
cabe frisar que a intervenção pedagógica aqui descrita foi elaborada a
partir do livro adotado na escola: Metro 2, da editora Cambridge. A
figura 2, na sequência, apresenta mais detalhes sobre o tema da unidade
que foi gamificada.

Figura 2 – Capa da unidade trabalhada

Fonte: STYRING, 2017

1145
A unidade trabalhada traz vocabulário sobre o tema de crimes e
tem como assuntos gramaticais a comparação entre Past Progressive e
Simple Past, bem como o uso dos Adverbs of manner. Por isso, a história
criada para dar suporte à gamificação girou em torno do personagem
Mr. West, que havia sido encontrado morto na sala de sua casa. No
primeiro dia da intervenção, os alunos receberam informações sobre
o enredo e alguns personagens que faziam parte da trama, conforme
ilustra a figura 3, abaixo.

Figura 3 – The Plot / O Enredo

Fonte: Elaboração própria (2022)

Os slides acima, apresentados na introdução, feita no primeiro dia,


detalham algumas informações sobre a cena do crime e sobre alguns
personagens, tais como a esposa da vítima, Mrs. West, o filho mais
velho do casal, Jack, e o que eles contaram sobre o incidente ao policial
que fez os primeiros interrogatórios. Em seguida, outros personagens
aparecem: o jardineiro da família, Rob, que também estava na casa no
dia do assassinato, o investigador Mr. Brown, que assume o caso, e a
ex-secretária e suposta amante de Mr. West, Emilia.
À medida que as atividades eram realizadas, os pontos eram
computados e os grupos recebiam mais informações sobre o crime e
juntavam as pistas para descobrir: 1- O/a assassino/a e 2- A motivação

1146
para o crime. Estas duas respostas foram dadas no último dia da
experiência, cada uma também valendo pontos para quem acertasse.
Ao final da quarta semana, a equipe que, somando todas as pontua-
ções individuais de seus integrantes, acumulou mais pontos, era dispen-
sada da segunda prova bimestral. Ademais, o aluno com maior pontu-
ação de cada equipe recebeu uma medalha de Star Student. A seguir, a
tela do Classcraft com o resultado final de um dos grupos.

Figura 4 – Tela Classcraft e aluno destaque

Fonte: Elaboração própria (2022)

Após a divulgação dos resultados, os alunos responderam um ques-


tionário on-line, elaborado no Google Forms, expressando suas opiniões
sobre as atividades e as ferramentas utilizadas. Foram atribuídas ape-
nas avaliações positivas (98%) ou neutras (2%) à experiência, em geral.
Além disso, a maioria dos participantes (96,2%) afirmaram ter gostado
de desvendar o mistério enquanto aprendiam conteúdo. De igual ma-
neira, as atividades em equipe foram identificadas como positivas por
69,2% dos respondentes, por estimularem os participantes do grupo a
se ajudarem mutuamente. Já 61,5% dos alunos consideraram que as
tarefas individuais os estimularam a participar mais das aulas e ganhar
pontos no jogo, ajudando sua equipe a sair vencedora.
Nas perguntas abertas, os alunos tiveram a oportunidade de expres-
sar suas opiniões pessoais e, apesar de ser opcional, a grande maioria dos

1147
participantes deixaram seus comentários e/ou sugestões. O aluno A224,
por exemplo, afirmou que “foi uma maneira divertida e dinâmica em
sala, tanto que na sexta, dia da atividade em grupo, vinha só por causa
da aula de inglês”. Já o aluno B comentou que “ao mesmo tempo que
aprendi o assunto, eu me diverti muito com meus amigos tentando des-
cobrir quem era o assassino”. A competição foi vista de forma positiva,
pois como destacou o aluno C, a turma se esforçou para “descobrir o
caso e ganhar pontos para receber prêmios e tirar 10 na prova”.
Ao comentarem com sugestões de melhoria à atividade realizada,
das 25 respostas dadas, 11 (44%) afirmaram estar satisfeitos e não terem
nada a acrescentar para aperfeiçoar a experiência. No entanto, merece
destaque que 28% dos que deram sugestões se referirem ao aumento
das atividades em grupo. Acredita-se que este fato esteja relacionado
com o receio de alguns alunos de participarem de forma individual,
visto que esta prática, bastante presente nas metodologias ativas, não é
comum no modelo de aula tradicional, geralmente centrado na exposi-
ção do professor.

5. Considerações finais
Ao longo deste artigo, foram destacados as qualidades e o poder de
engajamento de metodologias de aprendizagem ativas, em especial a ga-
mificação e o uso do storytelling, tendo ainda exercido um papel consi-
derável o uso das TDIC como suporte na construção do conhecimento.
Conforme apontado anteriormente, a gamificação, como ferra-
menta de aprendizagem, oferece também a oportunidade de promover
o trabalho em equipe e a construção de andaimes (scaffolding), concei-
to proposto originalmente por Jerome Bruner, baseado nas teorias de
Vygotsky (BORTONI-RICARDO, 2008). Nesse contexto, o sucesso
das equipes estava baseado na pontuação de cada participante e, por
isso, os alunos com mais habilidade na língua inglesa se dedicaram a as-
sistir os menos experientes. Já a prática de storytelling, promove a criação

224
Os nomes foram omitidos para preservar a identidade dos alunos.

1148
de conexões entre os discentes e o conteúdo estudado, desenvolvendo
aprendizado significativo.
É importante destacar, ainda, que há indicativos de valorização da
inserção de FVA, especialmente de jogos digitais, e da gamificação no
contexto educacional, dado o crescimento do assunto em congressos
de professores, publicação de artigos e criação de Grupos de Trabalho
voltados para o tema. No entanto, as práticas ativas, em geral, são pouco
encontradas na ponta da cadeia da educação no Brasil, ou seja, nas salas
de aula da rede básica de ensino.
Enfim, tendo em vista as respostas dos alunos no questionário apli-
cado ao final da pesquisa realizada, acredita-se que a experiência desen-
volvida cumpriu seu papel de promoção de engajamento e aumento
da motivação para o aprendizado, levando professores e alunos a supe-
rarem as dificuldades encontradas no contexto anterior à aplicação da
proposta didática.

Referências
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Um guia completo: do conceito à prática. 2.ed. São Paulo: DVS Editora, 2015.

BOLLER, Sharon. KAPP, Karl; Jogar para Aprender: tudo que você precisa saber so-
bre o design de jogos de aprendizagem eficazes. São Paulo: DVS Editora, 2018.

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sa qualitativa. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

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RENOTE – Revista Novas Tecnologias na Educação. UFRGS: Porto Alegre, v.11
n.1, jul 2013, p.1-9.

FFIELD, Mary. Aprendizagem ativa na educação infantil. IN: VICKERY, Anitra.


Aprendizagem ativa nos anos iniciais do ensino fundamental. Porto Alegre: Penso,
2016, p.21-42

FISCHER, Adriana; GRIMES, Camila; VICENTINI, M. Aparecida. A Escrita


Gamificada de fanfictions com o apoio de tecnologias digitais em um clube de inglês.
Trab. Linguist. Apl., Campinas, n. (58.3): 1164-1196, set./dez. 2019.

1149
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo:
Perspectiva, 2019

MATOS, Denilson Pereira de. FVNexA - Ferramentas Virtuais Não exclusivas


à Aprendizagem em tempos de COVID-19. João Pessoa: Editora UFPB, 2020.
Disponível em: <http://www.editora.ufpb.br/sistema/press5/index.php/UFPB/catalog/
book/763>. Acesso em: 25 jul. 2022.

MCCRINDLE, Mark; FELL, Ashley. Generation Alpha: understanding our children


and helping them thrive. Australia: Hachette, 2021. [E-book]

PRENSKY, Marc. Aprendizagem baseada em jogos digitais. São Paulo: Editora


Senac, 2012.

SALES, Laurênia Souto; BARBOSA, Tatiana Ramalho. Utilização de metodologias ati-


vas através da gamificação e de jogos digitais interativos: uma proposta didática. Revista
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SANTAELLA, Lucia; FEITOZA, Mirna. Mapa do Jogo: A diversidade cultural dos


games. São Paulo: Cengage Learning, 2009.

STRINGER, Ernest T. Action Research. Thousand Oaks, California: Sage


Publications, 2014.

STYRING, James; TIMS, Nicholas. Metro. Vol. 2. Oxford University Press, 2017.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez Editora,


1986.

VALENÇA, Marcelo M; TOSTES, Ana Paula Balthazar. O Storytelling como ferra-


menta de aprendizado ativo. Ver. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 14, n. 2, 2019. p.
221-243.

1150
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

LETRAMENTOS CRÍTICOS NA ARENA


PEDAGÓGICA DE INGLÊS PARA FINS
ACADÊMICOS: NOTAS SOBRE UM MATERIAL
DIDÁTICO DO CURSO INGLÊS PARA
GRADUANDOS (UFRJ)

Thais Sampaio225, PIPGLA-UFRJ


Gabriel Martins, PIPGLA-UFRJ
Matheus Lage226, PIPGLA-UFRJ

RESUMO: Ao passo que o neoliberalismo redesenha sistemas educacionais aos


mandos do mercado, instituições de educação superior ganham tons corporativos,
se limitando à formação neotecnicista voltada para o mundo do trabalho
(SAVIANI, 2007). Em vista disso, o campo de Inglês para Fins Acadêmicos (IFA)
— um campo interdisciplinar dedicado ao ensino especializado de língua inglesa
orientando por demandas acadêmicas de ordem social, cognitiva e linguística
(HYLAND, 2006) — tem apresentado forte inclinação à comoditização de
subjetividades e da educação por uma ótica de sucesso acadêmico medido pela
economia de mercado (CHUN, 2009), operando por uma lógica monológica e
apagando fatores identitários, emocionais e afetivos (BENESCH, 2001). Frente
a essa tradição, alinhamos nossa prática pedagógica a teorizações que compõem o
que se convencionou chamar de IFA Crítico (IFAC) e ao ensino por letramentos
(acadêmicos) (LEA; STREET, 2006; TILIO, 2019). Embebido dessa perspectiva
teórica, o curso Inglês para Graduandos (IpG) foi concebido como uma iniciativa
centrada no desenvolvimento de letramentos acadêmicos em língua inglesa de
estudantes de Letras Português-Inglês (UFRJ). Nesteartigo, investigamos uma
unidade didática autoral, desenhada para uma turma de módulo-único (2021.2)
desse curso, a fim de analisar: i) a forma como a unidade foi mobilizada para que
o trabalho com letramento crítico fosse transversal ao estudo de práticas letradas

225
Thais Sampaio é bolsista de mestrado na linha de Discurso e Letramentos no
Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ
e gostaria de agradecer ao fomento da CAPES, que financiou parcialmente a
condução deste estudo.
226
Matheus Lage é bolsista de mestrado na linha de Discurso e Práticas Sociais no
Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ
e gostaria de agradecer ao fomento da CAPES, que financiou parcialmente a
condução deste estudo.

1151
acadêmicas; e ii) as agentividades projetadas nesestudantes frente a fenômenos
da vida profissional, pública e privada tematizados nas atividades da unidade.
Para conduzirmos a investigação, realizamos uma análise de cunho documental
(FLICK, 2009) da unidade didática, interpretando nossas observações a partir
de teorizações produzidas no campo da filosofia da linguagem bakhtiniana, do
IFA(C) e do letramento crítico (FREEBODY, 2008; LUKE, 2012; TILIO,
2019). Esperamos que essa análise possa contribuir para uma tradução do
IFAC aos contextos de ensino superior latino-americanos, tensionando práticas
pedagógicas mais situadas.
PALAVRAS-CHAVE: Inglês para Fins Acadêmicos Crítico; Letramentos aca-
dêmicos; Material didático

ABSTRACT: Whereas educational systems are redesigned by neoliberalism’s


market orders, higher education institutions assume a corporate profile, restraining
to neotechnicist training targeted at the labor world (SAVIANI, 2007). On that
account, the field of English for Academic Purposes (EAP) — an interdisciplinary
field aimed at the specialized teaching of English oriented by academic demands on
social, cognitive and linguistic levels (HYLAND, 2006) — has displayed a strong
tendency to commodify subjectivities and education, according to market economy’s
ruler of academic success (CHUN, 2009). Such a monological logic EAP has been
operating on makes identity, emotional and affective factors unseen (BENESCH,
2001). In face of such tradition, we align our pedagogical practice with theories
that make up what has been called Critical EAP, and with theories on (academic)
literacy-based teaching (LEA; STREET, 2006; TILIO, 2019). On that note, the
Inglês para Graduandos (IpG) course was conceived to develop academic literacies in
English of undergraduate students majoring in Portuguese-English Letters (UFRJ).
In this article, we investigate an in-house pedagogical material unit, designed for a
single-semester class (late 2021), aspiring to analyze: i) the way the unit managed to
have critical literacy be cross-sectional in the study of academic literate practices; and
ii) the agency projected on pupils in face of professional, public and private life events
that were themed by the unit. In order to carry out our investigation, we performed
a documental analysis (FLICK, 2009) of the pedagogical unit, interpreting our
observations upon theories produced in the field of Bakhtinian language philosophy,
of (C)EAP and of critical literacy (FREEBODY, 2008; LUKE, 2012; TILIO,
2019). We hope to contribute to a translation of CEAP to Latin-American higher
education settings, aiming at more context-oriented pedagogical practices.
KEYWORDS: Critical English for Academic Purposes; Academic literacies;
Pedagogical materials

1152
1. Introdução
Ao passo que o mundo pós-moderno tem operado sob a lógica do
neoliberalismo, os espaços e instrumentos educacionais têm condicio-
nado seus objetivos às economias de informação, de meios de comuni-
cação e de símbolos (SAVIANI, 2007). Nesse cenário político-econô-
mico, a educação — orientada, sobretudo, por critérios de eficiência,
eficácia e competência individual — é comoditizada como “um inves-
timento em capital humano individual que habilita as pessoas para a
competição pelos empregos disponíveis” (SAVIANI, 2007, p. 430), re-
sultando em uma formação neotecnicista voltada exclusivamente para
o mundo do trabalho. Com a subjugação da educação aos interesses
do mercado, educadorus227 e instituições atuam como prestadorus de
serviço que, ao comercializarem a educação como produto valorável, as-
semelham sues estudantes a potenciais clientes. No entanto, em última
instância, a educação serve à clientela formada por entidades do poder
público e privado, que encomendam cidadães nos moldes que melhor
atendem aos seus interesses.
Em meio a isso, o ensino de língua tem operado dentro de merca-
dos linguísticos internacionais de comercialização de línguas nacionais
para fins de expansão político-econômica (LAGARES, 2018). Nesse
sentido, “[é] compreensível, portanto, que línguas de elite e lucrati-
vas sejam cobiçadas, e que as línguas de comunidades desprivilegiadas
sejam ignoradas” (CANAGARAJAH, 2017, p. 16, trad. nossa). Das
línguas de maior proeminência nos mercados linguísticos, o inglês tem
atuado como a língua da ciência (LAGARES, 2018). Sob influência das
tendências neoliberais na educação, o ensino de línguas (sobretudo a
inglesa) é encarnado por um “espírito empreendedor” fecundo das ne-
cessidades do mercado, que orienta o ensino linguístico por capacidades
técnicas para o impulsionamento individual acadêmico, laboral e de

227
Neste artigo, fazemos uso da linguagem neutra para contemplar as identidades
de gênero dentro e fora do paradigma binário (feminino e masculino). Essa esco-
lha se estende às nossas traduções livres de citações diretas a textos originalmente
escritos em inglês.

1153
ascensão socioeconômica pessoal (CANAGARAJAH, 2017). Nesse ce-
nário, o campo de Inglês para Fins Acadêmicos (IFA) emerge como uma
área interdisciplinar dedicada ao ensino especializado de língua inglesa
orientando por demandas acadêmicas (HYLAND, 2006). Em sua ver-
tente tradicional, o IFA tem apresentado forte inclinação à comoditiza-
ção de subjetividades e da educação por uma ótica de sucesso acadêmico
medido pela economia de mercado (CHUN, 2009), operando por uma
lógica monológica e apagando fatores identitários, emocionais e afeti-
vos (BENESCH, 2001). Neste artigo, buscamos revisitar as fundações
teórico-metodológicas desse campo, suas idiossincrasias no contexto la-
tino-americano e uma revisão da sua vertente crítica (PENNYCOOK,
1994; BENESCH, 1993, 2001, 2009, 2013; MACALLISTER, 2016),
ao nos debruçarmos sobre as premissas do currículo e dos materiais
didáticos do curso de Inglês para Graduandos228 da Faculdade de Letras
da UFRJ.
Este artigo tem como objetivo investigar uma unidade didática
autoral, produzida no contexto do curso de Inglês para Graduandos
(IpG), um curso de Inglês para Fins Acadêmicos Específicos (IFAE)
voltado para o desenvolvimento de letramentos acadêmicos de estu-
dantes de Letras Português-Inglês, atualmente financiado pelo Núcleo
de Línguas FL-UFRJ do Idiomas sem Fronteiras229. Este estudo focaliza
228
A despeito de nosso posicionamento no uso da linguagem neutra ao longo do
artigo, ao nos referirmos ao título do curso cuja atividade pedagógica é parcial-
mente analisada aqui, ainda fazemos uso do masculino genérico por se tratar de
um nome oficial; algo merecedor de revisão futura.
229
Desde 2013, o curso de Inglês para Graduandos vem passando por diversas “ges-
tões” e apoios financeiros. Inicialmente foi vislumbrado pela então técnica de
assuntos educacionais (TAE) do projeto de extensão Cursos de Línguas Abertos
à Comunidade (CLAC FL-UFRJ) para contemplar uma exigência curricular da
graduação em Letras Português-Inglês de conhecimento oral e escrito da língua
inglesa. Assim, até 2019 o IpG funcionou com apoio financeiro e administra-
tivo do CLAC. Em meio à pandemia de COVID-19, entre 2020 e 2021, hou-
ve a oferta de dois semestres subsequentes de IpG (módulo de dois níveis) sob
a forma de disciplina optativa do Setor de Inglês da FL-UFRJ. Finalmente, o
módulo-único em análise neste artigo foi o primeiro no formato de curso no
âmbito do NucLi UFRJ da Rede Idiomas sem Fronteiras, com apoio financeiro
da própria FL-UFRJ.

1154
uma unidade didática do módulo-único do curso IpG, que foi minis-
trado por nós no segundo semestre de 2021, sob orientação do Prof.
Dr. Rogério Tilio e da Profa. Dra. Paula Szundy, do Departamento de
Letras Anglo-Germânicas da Faculdade de Letras (UFRJ). Para condu-
zirmos a investigação, realizamos uma análise de cunho documental da
unidade didática em questão, interpretando nossas observações a partir
de teorizações produzidas no campo de Inglês para Fins Acadêmico, do
letramento crítico e da filosofia da linguagem bakhtiniana. Ao longo
deste breve estudo, esperamos contribuir para uma tradução do IFA aos
contextos de ensino superior latino-americanos, tensionando práticas
pedagógicas mais situadas.
Na próxima seção, tecemos um diálogo entre as teorias que fun-
damentaram a concepção do curso de IpG e o design de seus materiais
didáticos. Na sequência, descrevemos de forma mais detalhada nosso
lócus de pesquisa e o nosso objeto de estudo. Além disso, propomos
uma reflexão sobre o nosso fazer investigativo enquanto professorus-
-pesquisadorus alinhades com a Linguística Aplicada Indisciplinar e,
a partir disso, delineamos os procedimentos analíticos envolvidos no
estudo. Em seguida, conduzimos a análise da unidade didática. Por fim,
concluímos o artigo com reflexões prospectivas para o curso de Inglês
para Graduandos, bem como para demais práticas pedagógicas e inves-
tigativas no campo de IFA(C) no Brasil e na América Latina.

2. Particularidades no IFA: histórico internacional, contexto


vernáculo e criticidade
O campo de Inglês para Fins Acadêmicos (IFA) origina-se como um
braço da esparsa área de estudos e ensino de Inglês para Fins Específicos
(IFE), cujo crescimento coincidiu com o boom econômico-industrial
de países do Norte global em meados do século XX (HYLAND, 2006).
Originalmente, o IFA direcionava-se a fins práticos situados por con-
textos locais e orientados por necessidades acadêmicas de ordem so-
cial, cognitiva e linguística de instituições do Norte global e sues es-
tudantes nacionais e estrangeires, no tocante ao design de documentos

1155
curriculares, de instrumentos de análise de necessidades e de materiais
didáticos (HYLAND, 2006; HYLAND; SHAW, 2016). Ao passo que o
IFA tem se tornado um campo mais teoricamente e empiricamente fun-
damentado, em diálogo interdisciplinar com variados campos de cons-
trução do conhecimento, surge um crescente ímpeto de responder, de
forma teórico-prática, às demandas contemporâneas de sujeitos consti-
tuintes das instituições de ensino superior. A exemplo de algumas das
questões proeminentes para o campo, Hyland e Shaw (2016) destacam
a interconectividade de contextos sócio-discursivos na esfera acadêmica;
a complexidade de práticas de linguagem envolvidas em tais contextos;
e os novos papéis que es estudantes — natives ou não-natives — têm de
assumir frente às novas práticas sociais acadêmicas.
Na América Latina, o IFE e o IFA encontram peculiaridades as-
sentes tanto nas distintas práticas sociais às quais a língua inglesa está
atrelada, quanto no perfil demográfico das dinâmicas sociais de seus
países. Em linhas gerais, Salager-Meyer et al. (2016) observam uma
predominância da linguagem verbal escrita nas práticas de IFE para
os países latino-americanos. Partindo desse escopo, o IFA está também
preocupado com a construção de cursos acadêmicos voltados para o
desenvolvimento de instrumentos linguísticos e retóricos que poderiam
instrumentalizar pesquisadorus para o engajamento em um diálogo in-
ternacional da ciência contemporânea que se materializa, sobretudo, em
língua inglesa (SALAGER-MEYER et al., 2016). Ademais, Martínez
(2011) sugere que caraterísticas demográficas das comunidades acadê-
micas latino-americanas — a saber, o compartilhamento de um mesmo
repertório cultural e linguístico230, e, portanto, uma maior afinidade de
necessidades específicas — sejam reconhecidas e potencializadas como
230
Evidentemente, não assumimos que os contextos latinoamericanos sejam homo-
gêneos e indistinguíveis, mas chamamos atenção aqui para o fato de o ensino de
IFA na América Latina orientar-se por práticas acadêmicas em língua inglesa que
dizem respeito à realidade local de acadêmiqueslatinoamericanes e não preveem
necessariamente sua atuação profissional/formação acadêmica em espaços inter-
nacionais. Práticas acadêmicas como leitura e publicação de resenhas, artigos
científicos, participação em fóruns, mesa-redondas e apresentação conferências
orais costumam ser o foco do ensino de IFA latinoamericano.

1156
fatores de vantagem. Em nosso lócus de pesquisa, o curso de Inglês para
Graduandos, aspiramos a uma prática de IFA informada pelas especi-
ficidades sociais, culturais, linguísticas, políticas e econômicas de estu-
dantes brasileires, nos subscrevendo, então, à vertente crítica de IFA.
Dentre os países latino-americanos, o Brasil tem se destacado na
ampliação teórico-prática da área de IFE, sobretudo devido aos esforços
da professora e pesquisadora Maria Alba Celani (SALAGER-MEYER
et al., 2016). Sua iniciativa de longa data, o conhecido Projeto ESP, foi
responsável por difundir no Brasil conhecimentos oriundos do IFE e
traduzi-los aos contextos locais, em diálogo com docentes e institui-
ções por todo o país (CELANI, 2009). Dentre os frutos científicos do
Projeto ESP, destacamos a solidificação do campo no Brasil e o esta-
belecimento de um terreno fértil para o desenvolvimento de práticas
pedagógicas para fins acadêmicos, no âmbito de cursos de graduação e
pós-graduação, projetos de extensão e programas nacionais.
Aportando em contribuições iniciais do campo de IFA, encontra-
mos um forte apreço por habilidades de estudo, entendidas em um pa-
radigma individual-cognitivo. Além disso, cursos e materiais didáticos
de IFA têm se subscrito ao modelo de socialização acadêmica, aspiran-
do à reprodução de padrões linguístico-comunicacionais hegemônicos.
Embora ambos esses modelos de habilidades e de socialização ainda
tenham espaço em práticas pedagógicas vigentes de IFA, professorus-
-pesquisadorus têm tensionado teoria e prática com vistas a práticas
pedagógicas voltadas para o trabalho com letramento(s) acadêmico(s)
(LEA; STREET, 2006; HYLAND, 2006). De modo geral, o modelo
de letramentos acadêmicos se ocupa da “construção de significado,
identidade, poder e autoridade”, trazendo para o primeiro plano “a
natureza institucional do que conta como conhecimento em qualquer
contexto acadêmico particular” (LEA; STREET, 2006, p. 369, trad.
nossa). Em meio às diferentes acepções de letramento(s) acadêmico(s),
Lillis e Scott (2007) discorrem sobre posicionamentos político-ideoló-
gicos atrelados aos usos desse sintagma. Em breves palavras, as autoras
defendem um uso de ordem epistemológica do termo “letramento(s)

1157
acadêmico(s)” — seja no singular ou no plural — que contemple o
caráter contingencial das práticas e convenções sociais e dos recursos de
linguagem para a negociação de sentido na academia.
Na contramão da suposta neutralidade e a-politicidade do IFA tra-
dicional (cf. BENESCH, 1993), a vertente crítica do IFA tem “amplia-
do as lentes das finalidades acadêmicas para levar em consideração o
contexto sociopolítico de ensino e aprendizagem”, sem abdicar do tra-
balho com demandas linguístico-discursivas pragmáticas (BENESCH,
2009, p. 82, trad. nossa). Assim, o IFA Crítico (IFAC) aprofunda as
preocupações do campo de IFA para contemplar teorias e práticas que
problematizam suas razões políticas (MACALLISTER, 2016). Benesch
(2009) enfatiza que apesar da variedade de contextos, metodologias e
pedagogias que subjazem essa vertente, es diferentes autorus de IFAC
compartilham de algumas premissas teórico-metodológicas: todes con-
cebem a língua/linguagem como discurso(s); todes se preocupam com a
relação entre teoria e prática — i.e., a práxis — de forma reflexiva; e to-
des situam a práxis nos contextos de discentes, docentes e instituições.
Partindo dessas premissas, no curso de Inglês para Graduandos, temos
advogado por uma estrutura curricular que situe a língua/linguagem
em práticas discursivas, que esteja apoiada em pesquisa, e que seja con-
cebida em colaboração com diferentes agentes envolvides no processo
pedagógico.
Em linhas gerais, o IFAC explora “os arranjos hierárquicos nas so-
ciedades e instituições em que o IFA se dá, examinando relações de
poder e suas relações recíprocas com variades agentes e materiais envol-
vidos” (BENESCH, 2009, p. 82, trad. nossa). Benesch (2013) estabe-
lece ainda um diálogo com o entendimento de Pennycook quanto ao
IFA e à Linguística Aplicada Crítica (LAC). Reconhecendo a dificul-
dade de situar o fazer do IFAC em algum campo disciplinar, Benesch
(2013) recorre à LAC como uma “forma de práxis anti-disciplinar”
(PENNYCOOK, 2001, p. 164), uma postura de contínuo questiona-
mento de teoria e prática, ao invés de como uma disciplina demarcada.
Ao propor uma teoria da linguagem pós-estrutural, Pennycook (1994)

1158
concebe a linguagem como um espaço de luta por legitimidade, ine-
rentemente atravessado por relações de poder. Sendo assim, Pennycook
(1994, p. 19, trad. nossa) propõe um IFAC que “evite a divisão con-
teúdo/linguagem, [que] evite o foco liberal um tanto insípido em ‘pro-
blemas sociais’, e [que] evite o utilitarismo pragmático de abordagens
baseadas em gênero.” A partir das leituras de Pennycook, o que Benesch
(2013) sugere é que o IFAC convide es estudantes “a examinarem suas
complexas relações e reações ao inglês acadêmico, incluindo possíveis
ambivalências, e a desenvolverem novos entendimentos à luz de seus
posicionamentos subjetivos” (p. 2, trad. nossa).
Juntamente com as teorizações de IFAC, lançamos mão dos estu-
dos em torno de letramento crítico. Luke (2012) traça um panorama de
teorias e práticas que confluíram nos entendimentos contemporâneos
de letramento crítico. O autor conclui que, apesar de nuances distintas,
há um relativo consenso de que letramento crítico refere-se a um pro-
gressivo engajamento informado com textos (lato sensu). Nesse sentido,
o letramento crítico pressupõe o entendimento de que a vida social não
é um elemento anterior às práticas discursivas; pelo contrário, são os
textos que “constituem materialmente as relações de poder, dão corpo
a essas relações e podem naturalizá-las e legitimá-las, tanto quanto po-
dem adaptar, desafiar e repaginá-las” (FREEBODY, 2008, p. 116, trad.
nossa). Portanto, podemos dizer que letramento crítico traduz-se em
um savoir-faire para lidar com textos de forma a “nomear e renomear o
mundo, vendo seus padrões, designs, e complexidades, e desenvolvendo
a capacidade de redesenhá-lo e remodelá-lo” (LUKE, 2012, p. 9, trad.
nossa); i.e., questionar o que é construído como verdade nos discursos
e conceber novas realidades.
Cabe ressaltar que as práticas pedagógicas críticas vigentes se subs-
crevem a acepções variadas de criticidade, se alinhando a esquemas
ideológicos distintos constituídos sócio-historicamente. Tilio e Szundy
(2021) recorrem a quatro acepções de criticidade observadas por
Pennycook (2004) — a princípio no contexto de práticas investigativas
no âmbito da LAC — para postular um entendimento de educação

1159
linguística crítica. No quadro abaixo, sistematizamos os diferentes en-
tendimentos de criticidade observados peles autorus e os aproximamos
da vertente crítica do IFA. Embora as diferentes acepções de criticidade
sejam subsequentes temporalmente, elas coexistem e, por vezes, se so-
brepõem contemporaneamente.

Quadro 1 – Acepções de criticidade na Linguística Aplicada

Pensamento Modernismo Prática proble-


Relevância social
crítico Emancipatório matizadora
Teorias pós-co-
Liberal-huma- Liberalismo plu-
Fundações teó- Teoria crítica e lonialistas, teo-
nista ral, funcionalismo
rico-políticas neomarxismo rias feministas e
Cognitivismo e construtivismo
teoria queer
A construção Crítica ideológica
Distanciamento significados em (ideologia entendi-
crítico; Ativi- contextos sociais da como distorção Engajamento
dade cognitiva delimitados; Estu- da realidade); com a diferen-
individual; do de fenômenos Análise crítica ça; Mapeamen-
Premissas
Trabalho de linguístico-discur- de texto a fim de to, resistência e
compreensão de sivos em relação desvelar opressões e apropriação de
significados con- aos contextos instrumentar e es- discurso
tidos em textos sociais em que se tudante para lutar
situam pela emancipação
Tendência a adap-
Foco determinista Possível rela-
Negligência das tação a contextos
na desigualdade tivismo; Irrea-
relações de po- e reprodução de
Limitações estrutural; Restri- lismo; Ênfase
der que atraves- padrões; Não
ção de agência e demasiada no
sam os textos aspiração à trans-
diferença discurso
formação social
Posicionamento
epistemológico
Práticas de Linha de sociali-
de letramentos
pensamento/ zação acadêmica
acadêmicos
leitura crítico/a voltado para ‘Primeira onda’ do
(LILLIS; SCO-
voltados para a reprodução IFAC pautada na
Situação no TT, 2007) e
os critérios de de padrões co- pedagogia freireana
IFA (Crítico) diálogo do
avaliação defini- municacionais (MACALLISTER,
IFAC com
dos por exames situacionalmente 2016)
teorias pós-mo-
internacionais de e contextualmente
dernas (BE-
proficiência delimitados
NESCH, 2001,
2013)

Fonte: adaptado de Pennycook (2004) e de Tilio e Szundy (2021)

1160
No curso de Inglês para Graduandos, cultivamos um entendimen-
to epistemológico-ideológico-político de letramento(s) acadêmico(s)
crítico(s), i.e., como conhecimento(s) sócio-historicamente situado(s) e
inerentemente ideológico(s), que viabilizam a manipulação de diversas
linguagens, reconhecendo e desconfiando (d)as práticas sociais (não-)
convencionais que elas materializam. Nesse sentido, entendemos que
o(s) letramento(s) crítico(s) viabiliza(m) a prática problematizadora,
por meio da qual es estudantes assumem uma postura de ceticismo
frente aos discursos com os quais se deparam, questionando os significa-
dos que se pretendem naturais, verdadeiros e oficiais (PENNYCOOK,
2001; 2004).

3. O curso de Inglês para Graduandos: currículo e materiais


O curso de Inglês para Graduandos tem sido caracterizado como
um curso de Inglês para Fins Acadêmicos Específicos (IFAE), ao passo
que seu currículo contempla um perfil acadêmico-disciplinar particu-
lar: discentes do curso de Letras Português-Inglês da UFRJ que preci-
sam lidar com uma série de convenções e práticas sociais letradas que
dão corpo à experiência acadêmica. Desse modo, a construção curricu-
lar do curso visa a abarcar padrões interacionais, gêneros discursivos e
práticas de linguagem particularmente relevantes para agir discursiva-
mente no dado contexto institucional (HYLAND, 2006). Sendo assim,
o curso de IpG tem buscado responder às expectativas que a FL-UFRJ
tem quanto ao corpo discente de Letras Português-Inglês. Em nossa
interpretação dessa demanda institucional, entendemos que ela com-
preende uma gama de letramentos acadêmicos que se sobrepõem siste-
maticamente (mapeadas na Figura 1).

1161
Figura 1 – Mapa de atividades acadêmicas circundantes da FL-UFRJ

Fonte: Autoria própria

Sem negar ae estudante um espaço de desenvolvimento dos letra-


mentos descritos na Figura 1, temos feito um esforço para equilibrá-
-los com os direitos des estudantes do IpG conforme Benesch (2001,
2013) defende. Sendo assim, desde 2020, a arquitetura curricular dos
cursos de IpG tem se dado de forma colaborativa e processual. A uni-
dade didática sob análise neste estudo é um primeiro indício desse ím-
peto colaborativo da concepção do curso, uma vez que, sob o título de
Unidade 0, seu objetivo no macro-plano do curso é (des)familiarizar
es estudantes com a matriz institucional, política e cultural acadêmica,
de forma a problematizar as fundações ocidentais e Norte-cêntricas
da universidade. Entendemos que a Unidade 0 abre um espaço de
acolhimento aes estudantes, resultando em um processo dialógico de
reflexão, problematização e reformulação do currículo inicialmente
proposto.

1162
Como mencionado anteriormente, neste estudo, nos debruçamos
sobre a Unidade 0 do curso de módulo-único do IpG. Essa unidade
visava a problematizar as raízes históricas da universidade e o pragmatis-
mo laboral da academia voltada para as demandas definidas pelo merca-
do. Para atender a esses objetivos, a unidade incorpora e explora diver-
sos textos multimodais (a saber, vídeos institucionais acadêmicos, um
verbete enciclopédico, um artigo/ensaio de blog acadêmico, uma vi-
deorreportagem, vídeo-publicações testemunhais de veículo midiático
universitário, e resenhas em uma plataforma de avaliação universitária)
para situar a universidade contemporânea em face a questões sociais,
econômicas, políticas, históricas, culturais, identitárias etc., justapondo
variadas percepções subjetivas que são projetadas sobre a universida-
de contemporânea no Brasil e no mundo. Em última instância, es es-
tudantes são estimulades a refletir sobre sua experiência acadêmica na
UFRJ, por meio de uma análise sistemática e criteriosa, ao produzir um
comentário avaliativo a ser divulgado em uma plataforma acadêmica.

4. Fazendo análise documental na LAC


Situamos a nossa prática pedagógica no curso de Inglês para
Graduandos e o nosso fazer investigativo no Programa Interdisciplinar
de Pós-Graduação em Linguística Aplicada (UFRJ), comprometidos
com uma vertente indisciplinar da linguística aplicada. Nesse senti-
do, entendemos essa indisciplina enquanto um exercício contínuo de
proximidade crítica (SOUZA SANTOS, 2013 [1994]), que valoriza “a
performance do/a pesquisador/a (sic), entendendo que modos de falar,
sentir, sofrer, gozar etc. são inseparáveis do ato de pesquisar” (MOITA
LOPES; FABRÍCIO, 2019, p. 713). Sendo assim, rejeitamos veemen-
temente “quaisquer perspectivas epistemológicas que busquem se exi-
mir de e/ou neutralizar questões políticas e ideológicas em pesquisas
sobre línguas(gens)” (SZUNDY; FABRÍCIO, 2019, p. 70), visto que
entendemos que nosso objeto de estudo é inerentemente ideológico e
que nossas práticas interpretativas são atravessadas por nossas subjetivi-
dades. Isso significa que, ao analisarmos uma unidade didática de nossa

1163
autoria, assumimos o desafio de nos posicionarmos de dentro e de fora
desse material, entendendo que nossas premissas teórico-metodológi-
cas são constituintes de seu desenho pedagógico, mas não são por isso
eximidas de nosso compromisso autorreflexivo e autocrítico, em con-
cordância com a prática problematizadora da LAC (PENNYCOOK,
2004, 2006).
No decorrer da análise da unidade didática objeto deste estudo,
lançamos mão de uma investigação de cunho documental, posto que
a entendemos para além da “mera análise de textos”, ao enxergar do-
cumentos como “dispositivos comunicativos em vez de contêineres de
conteúdos” (FLICK, 2009, p. 236). Isso significa que entendemos nos-
sa unidade didática como um documento, não no sentido de registro
estático de informações, mas como um enunciado dialógico, em termo
bakhtiniano, um material discursivo inserido sócio-historicamente em
uma infinita cadeia dialógica pedagógica e extra-pedagógica. Por isso,
nossa unidade didática é repleta “de ecos e ressonâncias de outros enun-
ciados” (BAKHTIN, 2016 [1952/53], p. 59) que se inserem no largo
repertório de materiais didáticos, e que também intercalam enuncia-
dos alheios — os textos multimodais que são tematizados e explorados
pedagogicamente — que, por sua vez, carregam consigo ecos de suas
cadeias dialógicas específicas.
Nossa análise visa a interpretar a forma como a unidade foi mobi-
lizada para que o trabalho com letramento crítico fosse transversal ao
estudo de práticas letradas acadêmicas; e fenômenos da vida profissio-
nal, pública e privada tematizados nas atividades da unidade projetas-
sem posicionamentos agentivos nes estudantes. Para isso, lançamos o
nosso olhar sobre i) a seleção de enunciados que incorporam a unidade
didática, bem como as relações dialógicas que são estabelecidas entre
eles e discursos que extrapolam os limites do material didático; ii) o
acabamento discursivo que a unidade didática dá a esses enunciados
através de contextualizações, comandos e atividades pedagógicas; iii)
as atitudes responsivas des estudantes que são antecipadas / provocadas
pelo material didático em seus comandos e atividades.

1164
5. Observações práxicas sobre a unidade didática “The
academicinstitution”
Como dito anteriormente, a unidade didática em análise neste es-
tudo versa sobre as raízes históricas da universidade e o pragmatismo
laboral da academia, sob o título “The academicinstitution”. Para per-
corrermos nossa análise de forma dinâmica, disponibilizamos o acesso
digital à unidade didática231 e um breve panorama geral de suas seções
e respectivos objetivos específicos na Tabela 1 abaixo. Desse modo, ao
longo da análise, fazemos menção não sequencial ao material, de forma
a ilustrar nossas observações e comentários.

Tabela 1 – Descrição dos objetivos das seções da


unidade didática “The academicinstitution”

Refletir sobre a história da instituição universitária de


origem greco-romana e seus fundamentos e premissas de
base; Debater sobre a (não-)manutenção histórica desses
1. Contextualização
fundamentos e premissas em instituições acadêmicas
contemporâneas, com ênfase em universidades públicas
brasileiras.

Perspectivar a universidade pelo olhar de discentes e suas


experiências contemporâneas; Observar premissas da
2. Discutindo Ensi- universidade greco-romana sobreviventes ou não na uni-
no Superior versidade contemporânea; Alargar o conceito de universi-
dade espaço-temporalmente; Questionar a naturalização
de traços da universidade ocidental.

Correlacionar os papéis institucionais acadêmicos na


criação, perpetuação e desconfiguração de questões só-
cio-identitárias que permeiam a sociedade contemporâ-
3. Questões con- nea; Refletir sobre as percepções de estudantes de nível
temporâneas na superior sobre ações curriculares e/ou físicas de modo a
academia abranger perfis identitários interseccionais de estudantes;
Perspectivar essas questões sócio-identitárias de proemi-
nência contemporaneamente sob o olhar para si e para es
outres.

231
Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1J9SL_KeioHqfvAsiOENC-
d1Yh9c1UA84K/view?usp=sharing.

1165
Explorar avaliações sobre universidades em uma platafor-
ma acadêmica; Transitar de um contexto de percepções
4. Avaliando uma
acadêmicas sobre instituições de ensino superior situadas
instituição acadê-
no Norte global para instituições situadas no Sul global;
mica
Refletir sobre a própria experiência enquanto discente de
uma universidade brasileira.
Fonte: Autoria própria

Os textos multimodais selecionados pelo material fazem diferentes


recortes espaço-temporais da instituição universitária, propiciando uma
percepção contingencial, não-monolítica da academia. Na seção 1, tra-
balha-se com um vídeo promocional232 de uma palestra acadêmica dada
pela Dra. Edith Hall sobre a fundação da universidade como se concebe
hoje em grande parte do ocidente; na seção 2, enfocam-se um vídeo
promocional de uma universidade britânica,233 um verbete enciclopé-
dico234 sobre ensino superior e um artigo/ensaio235 sobre universidades
não-ocidentais; na seção 3, exploram-se questões sócio-identitárias na
academia contemporânea a partir de atividades em torno de uma entre-
vista236 com a acadêmica negra estadunidense Dra. Johnetta Cole, uma
videoreportagem237 e vídeo-publicações testemunhais238 de um veículo

232
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YRfw57PO9hM, acesso em
6 dez. 2021.
233
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tZK29NVcwVU, acesso
em 9 dez. 2021.
234
Disponível em: https://www.britannica.com/topic/higher-education, acesso em
9 dez. 2021.
235
Disponível em: https://www.dailysabah.com/feature/2017/03/04/what-is-a-u-
niversity-for, acesso em 9 dez. 2021.
236
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=v0hdsjKclvo, acesso em 13
dez. 2021
237
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ayF_laqwlTk, acesso em 13
dez. 2021.
238
Disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=ZX86F313Zkc; https://
www.youtube.com/watch?v=rnbnF8QAnsY; https://www.youtube.com/watch?-
v=g5-c0kwUL6I; https://www.youtube.com/watch?v=XkjOOGhat5g, acesso
em 16 dez. 2021.

1166
midiático universitário; na seção 4, analisam-se resenhas239 de institui-
ções acadêmicas internacionais do Sul global. Não obstante, é relevante
destacar que a seleção de enunciados tende a privilegiar em larga escala
percepções de universidade sob a ótica do Norte ocidental, sendo em
sua maioria oriundas dos Estados Unidos ou do Reino Unido.
Nesse sentido, o material retoma as premissas fundacionais da
universidade greco-romana, fortemente assentes em universidades do
Norte global, embora procure traduzi-las e repensá-las para o aqui-ago-
ra de sues estudantes-alvo; é o caso da caixa de reflexão final da seção
1 e da caixa de reflexão no início da seção 2 (sinalizadas com um ícone
de lâmpada). Entretanto, essa retomada de premissas não é eximida de
problematizações. A partir do verbete enciclopédico na seção 2, o mate-
rial direciona-se para uma discussão acerca das diferenças características
entre os sistemas de ensino superior em algumas nações de influência
internacional. É notável que destas nações apenas Rússia foge do eixo
ocidental, fora uma breve menção aos chamados “países em desenvol-
vimento”. Além de questionar esse espaço marginal a países indexica-
lizados em posição hierarquicamente inferior, o material promove um
debate em torno do artigo/ensaio do acadêmico turco entürk, explo-
rando uma desconstrução da suposta estabilidade do conceito ocidental
de universidade como imutável e homogênea. Embora seja discutível a
posição não-central dessa problematização no espaço da seção 2, procu-
ra-se levar es estudantes-alvo a indagarem sobre a legitimidade exclusiva
do modelo ocidental e Norte-cêntrico de academia, sobretudo no que
concerne seu acesso e seus objetivos.
Ainda, é importante atentarmos ao acabamento discursivo que o
material (em seus textos de contextualização, comandos e atividades)
dá aos enunciados que integra em sua composição. Embora trabalhe-se
com alguns vídeos promocionais ou publicísticos, dentre outros textos,
do Norte global, há um esforço para situá-los em um diálogo direto ou
indireto com práticas acadêmicas concretas do horizonte social des es-
tudantes-alvo. Pensando nos blocos de atividades 6, 7 e 8 apresentados
239
Disponíveis em: https://www.eduopinions.com, acesso em 21 dez. 2021.

1167
na seção 3, enfocam-se respectivamente a perspectiva docente, midiá-
tica e discente de questões sócio-identitárias da academia contempo-
rânea. O material reconstrói a sócio-história dos vídeos em questão e
de suas plataformas, para que seja possível contemplá-los pela via do
letramento crítico; i.e., mapear seus trajetos discursivos, reconstruindo
as dimensões micro e macro das relações de poder (PENNYCOOK,
2004), podendo desafiá-las e repaginá-las em suas problematizações
(LUKE, 2012; FREEBODY, 2008).
A fim de tensionar uma práxis de IFA em que e discente rea-
ja ativamente às demandas institucionais impostas unilateralmente
(BENESCH, 2001), o material didático estabelece um equilíbrio en-
tre vozes de autoridade da academia (e.g., instituições universitárias,
docentes e pesquisadores) e vozes de discentes de universidades. Essa
relação dialógica (BAKHTIN, 2016 [1952/53]) ocorre entre os textos
multimodais que apresentam definições para a universidade, seja ela em
sua concepção greco-romana ou nos distintos formatos contemporâ-
neos: ao passo que as origens históricas da universidade são traçadas e
problematizadas pela Dra. Edith Hall e pelo Dr. Recep entürk, respec-
tivamente. Nesse percurso, o papel da universidade contemporânea é
também (re)construído nas vozes de estudantes de cursos de graduação,
a exemplo das discussões acerca do vídeo WhyHigherEducation?, orga-
nizado pela LoughboroughUniversity. De modo similar, fatores identi-
tários — atravessados por questões de ordem afetiva, sócio-econômica
e ideológica — também são incorporados através de um diálogo insti-
tuição-alunado: a princípio, problemas estruturais de raça localizados
no bojo das universidades estadunidenses são introduzidos por veícu-
los midiáticos universitários e jornalísticos fazendo coro a figuras reco-
nhecidamente engajadas em atividades acadêmicas e burocráticas em
universidade; contudo, a discussão ganha novas nuances nas palavras
de graduandes e pós-graduandes que experienciam as desigualdades
estruturais — sejam elas pautadas em raça, gênero, sexualidade e/ou
faculdades psicomotoras.
Esse contraponto de vozes — que interagem em consenso ou dis-
senso — impelem es estudantes a responderem aos discursos construídos

1168
com base em suas próprias subjetividades. Nas atividades do bloco 8
que acompanham os vídeos testemunhais do The Chronicle ofHighe-
rEducation na seção 3, por exemplo, es estudantes escolhem interagir
discursivamente com a experiência acadêmica de ao menos une (pós-)
graduande presente nos vídeos. Essa escolha aponta para duas possibi-
lidades de exercício da alteridade (BAKHTIN, 2011 [1924-27]): por
um lado, e estudante pode optar por experienciar a vivência de outre
através dos enunciados que essuoutre constrói, possibilitando, assim,
que e estudante retorne seu olhar para si mesme, revisando suas práticas
sociais e sua ética; por outro lado, e estudante pode escolher lidar com
vivências similares às suas próprias, encontrando ne outre uma resso-
nância de suas próprias questões e preocupações, ajudando-e, portanto,
a posicionar-se no mundo de forma mais intencional e segura.
A unidade didática conclui as discussões propostas por meio
das atividades agrupadas na seção 4. Neste ponto do material, e estu-
dante é estimulade a revisitar todos os conhecimentos — disciplinares,
institucionais e sobre si mesme — construídos ao longo da unidade e
articulá-los em uma avaliação criteriosa da instituição de que faz par-
te. No decorrer do material, observam-se diversas instâncias em que
es estudantes-alvo são chamades a se posicionarem frente às questões
sócio-políticas que põem noções naturalizadas de academia ocidental
em cheque; a título de exemplo, podemos citar as caixas de reflexão que
demandam que estudantes tracem paralelos entre concepções mais ou
menos hegemônicas de convenções universitárias e suas próprias expe-
riências nesse espaço. Dessa forma, suas vozes são postas em primeiro-
plano, fazendo com que as demandas institucionais que condicionam
o seu sucesso na universidade não se sobreponham aos seus direitos
(BENESCH, 2001, 2013).

6. Palavras finais
Este artigo teve como objetivo investigar uma unidade didática
autoral, produzida no contexto do curso de Inglês para Graduandos.
Nossa análise se debruçou em duas dimensões do material pedagógico:

1169
i) a forma como a unidade encaminhou um trabalho transversal do le-
tramento crítico por práticas letradas acadêmicas concretas; e ii) a pro-
jeção de posicionamentos agentivos des estudantes frente a fenômenos
da vida profissional, pública e privada. De modo geral, observamos que,
embora a unidade didática ainda privilegie contextos acadêmicos loca-
lizados no Norte global — sobretudo em função da disponibilidade de
textos multimodais na língua-alvo em espaços digitais — o arcabouço
institucional, epistemológico e ideológico da universidade contemporâ-
nea foi submetido a práticas problematizantes, que propuseram deses-
tabilizar preceitos que se pretendem naturais, universais e atemporais.
Por fim, concluímos o artigo com vistas ao futuro do curso de
IpG, dada sua nascente nova gestão em um espaço próprio, o insípido
Laboratório de Letramentos Acadêmicos em Linguística Aplicada (Lab-
LA), vinculado ao PIPGLA-UFRJ. Esse espaço de pesquisa e ensino
ainda recente visa, dentre outros objetivos, a nutrir um solo para ensaiar
novas práticas pedagógicas de IFA(C) com especial ênfase em contextos
latino-americanos. Como bem observado em colocações deste estudo,
o contexto latino-americano, em especial brasileiro, de ensino de IFA
apresenta particularidades que devem ser mais adequadamente incor-
poradas ao design de currículos e materiais didáticos de seus cursos.
Assumimos que este é um trabalho indissociável de uma visão de lin-
guística aplicada indisciplinar (MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2019),
uma Linguística Aplicada Crítica (PENNYCOOK, 2004), que conti-
nuamente questione suas próprias práticas.

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1173
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

O MATERIAL DIDÁTICO DIGITAL EM


LÍNGUA ESPANHOLA COMO LA NO VIÉS
PARA A FORMAÇÃO LINGUÍSTICA DOCENTE

Valéria Jane Siqueira Loureiro (UFS)

RESUMO: A abordagem do conteúdo linguístico-gramatical que alcance e


supere as necessidades e expectativas dos estudantes de uma língua, surge com
o aporte da elaboração de materiais didáticos digitais que inclua os recursos
tecnológicos digitais para que promova a contextualização da linguagem.
A abrangência desta perspectiva na cultura digital defendida por Antunes
(2007; 2014), Costa (2011), Loureiro (2008) se faz necessária para se trazer
o material digital para a formação linguística no âmbito acadêmico. No
processo de formação linguística, o estudante aprende o sistema normativo
da língua meta, entretanto, a questão a se levantar é como proporcionar uma
aprendizagem linguística-gramatical do espanhol como língua adicional (LA)
no contexto de sala de aula de forma que os estudantes se capacitem para se
expressar e interagir tanto na linguagem oral como na escrita (Miki Kondo,
2002). O ensino do conteúdo gramatical normativo tem que responder a
um aspecto amplo de apropriação da linguagem como um instrumento de
interação comunicativa na língua meta e objetivar a aproximação do estudante
ao sistema da língua para que consiga a competência gramatical como algo
com significado que permita compreender e manejar a comunicação pelo
uso e funcionamento das regras da língua de forma consciente e autônoma
(García García, 2001; Gelabert e outros, 2002; Martín Peris, 2004). A partir
deste enfoque se realiza uma reflexão sobre a questão do papel da gramática no
processo de ensino/aprendizagem de espanhol LA na prática docente. O que se
espera deste trabalho é que os recursos tecnológicos digitais possam promover
um ensino-aprendizagem mais significativo das estruturas gramaticais da
língua espanhola.
PALAVRAS-CHAVE: Língua espanhola. Língua Adicional. Competência
linguística-gramatical. Recurso tecnológico digital.

ABSTRACT: The approach of the linguistic-grammatical content that reaches


and exceeds the needs and expectations of the students of a language, comes
with the contribution of the elaboration of digital teaching materials that
include digital technological resources to promote the contextualization of the

1174
language. The scope of this perspective in digital culture defended by Antunes
(2007; 2014), Costa (2011), Loureiro (2008) is necessary to bring digital
material to language training in the academic realm. In the language training
process, the student learns the normative system of the target language,
however, the question to be raised is how to provide a linguistic-grammatical
learning of Spanish as an additional language (AL) in the classroom context
so that students empower themselves to express themselves and interact
in both oral and written language (Miki Kondo, 2002). The teaching of
normative grammatical content has to respond to a broad aspect of language
appropriation as an instrument of communicative interaction in the target
language and aim to bring the student closer to the language system so that he
can achieve grammatical competence as something with meaning that allows
understanding and manage communication through the use and functioning
of language rules in a conscious and autonomous way (García García, 2001;
Gelabert et al., 2002; Martín Peris, 2004). Based on this approach, a reflection
is made on the issue of the role of grammar in the teaching/learning process
of Spanish LA in teaching practice. What is expected from this work is that
digital technological resources can promote a more significant teaching and
learning of the grammatical structures of the Spanish language.
KEYWORDS: Spanish language. Additional Language. Linguistic-
grammatical competence. Digital technological resource.

1. Introdução
Na esfera da língua espanhola como língua adicional (E/LA) o en-
sino do conteúdo sistêmico sempre suscitou um grande debate sobre
as vantagens e desvantagens de ensinar o componente gramatical nas
aulas, sobre até que ponto o ensino da gramática ajuda a desenvolver
a competência comunicativa dos estudantes de língua estrangeira, no
caso o espanhol. Sempre se debateu e se tratou o conteúdo gramatical
normativo e descritivo em todas as metodologias, visto que se apre-
sentam nos programas de ensino, nos materiais didáticos e na própria
prática pedagógica dos docentes.
Os professores de espanhol encontram no ensino e no desenvolvi-
mento do conhecimento sistêmico da LA um dos desafios fundamentais
na sua prática docente cotidiana. No processo de ensino/aprendizagem

1175
do conteúdo gramatical normativo e descritivo em espanhol, o estu-
dante aprende as normas, as regras e o funcionamento dos elementos
que fazem parte da língua, porém, em geral, fazem parte da gramática
tradicional da língua. A partir do aporte da cultura digital que está
presente nas diversas esferas da sociedade, rompendo fronteiras entre o
espaço físico e digital, dando espaço a um lugar híbrido de conexões às
mais variadas formas de informação, abre-se espaço e flexibilidade para
conviver com diferentes fluxos de informações e letramentos múltiplos,
ao que incluímos a gramática (ROJO, 2010. ROJO e MOURA, 2019).
As tecnologias digitais, cada vez mais inseridas no nosso cotidiano,
trazem enormes transformações e desafios para a sociedade. Entre as
transformações estão a alteração da relação espaço-temporal permitida
pelo ambiente virtual, assim como novas práticas comunicacionais e
novas relações sociais marcadas pelos recursos eletrônicos (CASTELLS,
2009. LEMOS, 2002). O avanço de novos recursos, meios disponí-
veis no ambiente on-line permite que se vislumbrem novas abordagens
educacionais, através de maior interação e colaboração entre alunos e
professores em comunidades virtuais no ciberespaço, fundamentadas
na organização de redes de aprendizagem.
Contrariamente a este viés tradicional, podemos relativizar a re-
levância do conteúdo sistêmico. A controvérsia sobre ensinar ou não
gramática dá lugar a duas interrogantes que segundo Antunes (2007;
2014) e Loureiro (2008) tem sido objeto de investigação no panorama
da metodologia de E/LE: como o ensino pode favorecer a aprendizagem
de una língua? E como elaborar/realizar atividades que conjuguem a
gramática com a comunicação? Como as metodologias ativas, a apren-
dizagem híbrida e a sala de aula invertida podem favorecer à aquisição
e a formação linguística de E/LE dos alunos?
De esta maneira, a questão consiste em como proporcionar uma
aprendizagem da competência gramatical, em espanhol como língua
estrangeira, que capacite os estudantes a que se expressem e, princi-
palmente, se comuniquem tanto na língua escrita quanto na oral em
língua estrangeira (KONDO, 2002). Sabe-se que os alunos adquirem

1176
os mecanismos da língua espanhola que se baseiam nos estudos nor-
mativos, gramática, já que se trata de um dos componentes que leva a
alcançar a competência comunicativa (PERIS, 1998).
Entretanto, durante o processo de ensino/aprendizagem da com-
petência comunicativa se incluem outras competências, e, a gramatical
recebe um destaque nas aulas. Por isto, se tem que refletir sobre como
tratar o componente gramatical como um elemento que permita com-
preender e manejar a comunicação e a interação e as regras de uso da
língua de forma consciente e autônoma.

2. A formação linguística e gramatical tratada no ensino de


E/LA na sala de aula.
Na prática docente, os professores de E/LA utilizam frequentemen-
te a palavra gramática. Não obstante, se forem observados os contextos
nos que aparece e as intenções com as que os falantes a utilizam, resul-
tam obvio que nem sempre aludem ao mesmo referente. Além disso,
os usos desta palavra vão acompanhados de uma série de preconceitos
e pontos de vista sobre o que é língua. Assim sendo, se pode distinguir
três acepções muito nítidas, entretanto não excludentes, que costumam
estar associadas ao uso da palavra gramática.
Primeiramente, se define como um conjunto de regras implícitas
de um sistema linguístico ou princípio de organização interna própria
de una determinada língua: o que alguns linguistas denominam compe-
tência linguística. No âmbito do ensino/aprendizagem de línguas, em
particular de E/LA, se realizamos uma análise detida desta acepção, nos
levará a uma reflexão sobre porquê e para que se ensina gramática nas
aulas de língua espanhola. Ser usuário de uma língua equivale a dispor
de uma série de conhecimentos e habilidades linguísticas das quais nem
sempre somos conscientes. Os falantes nativos de uma língua dispõem
de um conhecimento “instrumental” ou “procedimental”, sabem usar
de forma espontânea um complexo sistema de regras gramaticais e de
redes de palavras e significados para transmitir as suas mensagens no
transcurso das suas inter-relações comunicativas.

1177
Este conhecimento se diferencia do “declarativo”, o conhecimento
metalinguístico sobre/da língua. Não todos os que falam uma língua
possuem um conhecimento declarativo sobre esta língua. Ao observar
os dois tipos de conhecimentos gramaticais nos deparamos com a ques-
tão do tratamento didático do componente gramatical na sala de aula
de língua estrangeira que nos leva como professores a deslocar o foco
do conhecimento declarativo em direção da aquisição da denominada
competência comunicativa.
Na atualidade, a controvérsia sobre ensinar ou não gramática deu
lugar a duas indagações que, segundo Antunes (2007; 2014) e Loureiro
(2008), têm sido objeto de investigação no panorama da metodologia
de espanhol LE: como o ensino pode favorecer a aprendizagem de una
língua? E como elaborar/realizar atividades que conjuguem a gramática
com a comunicação?
Estas questões não são tópicos deste trabalho, entretanto não se
pode pensar no ensino da competência gramatical pela prática docente
sem que se tenha em consideração que o código, o sistema e a estrutura
de uma língua devem receber uma abordagem que se transforme em
comunicação, ação e cultura. Em outras palavras, que a gramática se
insira contextualmente no processo de ensino/aprendizagem de ELA,
se transformando em um meio de intercambio e negociação de infor-
mações que leve os estudantes a produção e compreensão em espanhol.
Antunes (2014, p. 47) afirma que “A relevância dessa gramática
contextualizada está, exatamente, na decisão de não isolar os elementos
gramaticais de outros lexicais ou textuais, mas, ao contrário, ver a gra-
mática tecendo, junto com outros constituintes, os sentidos expressos”.
Como afirma a autora, o estudo da gramática requer a contextualização
de outros elementos que fazem parte da língua, como, por exemplo, o
semântico, o pragmático, o lexical etc.
No processo de ensino/aprendizagem de E/LA, os professores dão
muito prestígio ao ensino da gramática durante as suas aulas, oferecem
para os estudantes um conhecimento reflexivo das regularidades, regras
ou normas características da língua estrangeira que estão ensinando,

1178
levando os alunos a desenvolver a competência linguística240. Não obs-
tante, isto acarreta o detrimento do desenvolvimento das habilidades
discursivas, que é uma das destrezas na que os estudantes encontram
mais dificuldade em se expressar.
Na história das diversas metodologias de ensino de línguas adicio-
nais, a relação entre a língua estrangeira e a gramática sempre foi muito
próxima. Até os anos sessenta e setenta, os estudantes aprendiam regras
gramaticais e aplicavam estes conhecimentos em traduções diretas e in-
versas. Nos anos setenta, os métodos áudio orais e audiovisuais encaram
o ensino da gramática voltada para o desenvolvimento da habilidade
oral. Assim, na aula de língua espanhola, o professor se restringia a
utilizar os conteúdos linguísticos gramaticais ensinados na prática oral
previa. Os exercícios que eram propostos se tornavam repetitivos, posto
que se tratava de exercícios de repetição de estruturas linguísticas gra-
maticais aprendidas oralmente na forma escrita.
A partir do surgimento da gramática transformacional de Chomsky
(1957) ocorre um questionamento sobre os fundamentos teóricos dos
métodos áudio orais. Dentro da sua corrente, os alunos devem criar
a sua própria língua em um ato de comunicação seja oral ou escri-
to. Desde esta concepção de ensino/aprendizagem de língua se destaca
o enfoque comunicativo que propõe uma grande mudança na forma
de encarar a gramática. Para o enfoque comunicativo, a habilidade de
compor orações não é suficiente para que haja a comunicação. A co-
municação oral ou escrita só tem lugar quando é utilizada para realizar
una serie de conduta social como descrever, narrar, argumentar, entre
outras.
A partir desse enfoque, se aborda a escrita desde o princípio da
aprendizagem e não da aquisição da língua. Ademais, a expressão es-
crita não funciona só como reforço do aprendido da “fase” oral, o seu
ensino e aprendizagem parte do princípio de que é uma habilidade que
possui técnicas e estratégias próprias, diferentes da oral e que ao mesmo
240
A competência linguística se refere à competência gramatical, aos conhecimentos
metadiscursivos que o estudante possui sobre a língua que aprende.

1179
tempo interage ambas interagem entre si e com as demais habilidades
que fazem parte da competência comunicativa. No processo de ensino/
aprendizagem de uma língua meta as habilidades se interrelacionam e
integram (CASAÑ; VIAÑO, 1996; LOUREIRO, 2008).
Convém ressaltar que uma gramática contextualizada requer, tam-
bém e sobretudo, que as descrições que dela são feitas encontrem apoio
nos usos reais, orais e escritos da língua estrangeira/ adicional, nos textos
que se ouvem e se podem ler na imprensa, nos documentos oficiais, nos
livros ou revistas de divulgação científica etc. Implica, pois, ter como
respaldo o que, de fato, pode ser comprovado nos textos que circulam
aqui e ali pelo país ou países em que o idioma é língua de interação e
comunicação (ANTUNES, 2014). Esses recursos para o ensino da gra-
mática contextualizada permitem ao sujeito adquirir domínio da leitura
e da escrita, principalmente, apoiado em assuntos que fazem parte de
seu cotidiano.
No ensino da gramática, desde a perspectiva da competência co-
municativa incluem-se a competência linguística, a competência gra-
matical, a competência sociolinguística, a competência discursiva e
a competência estratégica (ANTUNES, 2007; 2014; LOUREIRO,
2008). Para a formação linguística-gramatical para a comunicação não
basta que os estudantes saibam um conjunto de regras e estruturas
linguísticas e gramaticais analisadas e organizadas conscientemente em
um sistema, necessitam saber como funciona e é usado o espanhol,
em uma grande variedade de contextos, níveis sociais e, inclusive, âm-
bitos profissionais, para se verificarem os diversos usos e funções da
linguagem.
Assim, a gramática explícita241, para um aprendiz, é importante, já que
é a encarregada de monitorizar e por tanto pode ser una aliada na hora de
se tratar os problemas que possam surgir como a fossilização, a interferên-
cia, entre outros, durante o processo de ensino/aprendizagem de língua,

241
Trata-se das regras e as estruturas da língua adicional analisadas e organizadas
conscientemente no sistema da língua pelo aluno.

1180
mas sem dúvida nenhuma quando um estudante se defronta com a forma
espontânea da LA ele vai abrir mão do seu conhecimento implícito242.
Quando um aluno se comunica na LA utiliza ambos os conheci-
mentos gramaticais – o explícito e o implícito. O aprendiz recorre ao
conhecimento explícito que possui da língua com a função principal
que é a de monitorar, quer dizer, controlar que as produções linguísticas
estejam corretas e se não for assim corrigi-las. Quando o aprendiz usa a
linguagem de forma natural, o conhecimento explícito joga um papel
secundário e é o conhecimento implícito da gramática que rege formal-
mente os usos da linguagem para a comunicação.
Sendo assim, a tarefa do professor de transformar as aulas de língua
espanhola em um espaço no que não só sejam oferecidas estruturas gra-
maticais e informações metadiscursivas sobre a língua, senão também
que sejam proporcionadas atividades de tipo processual – leitura e com-
preensão oral – e de tipo produtiva – expressão oral e escrita – que leve
a capacitar o aluno para a comunicação, desde o ponto de vista pedagó-
gico, isto se dá a partir do momento que se enfatize a importância no
processo de aquisição da língua. No enfoque comunicativo, a impor-
tância de dar para os estudantes expoentes nocio-funcionais para que
os capacitem para a comunicação, desenvolvendo as quatro destrezas
cumprem o objetivo de desenvolver as estratégias tanto de compreensão
quanto de expressão na língua espanhola.
Hoje em dia, depois de ter superado a ideia de que a aprendiza-
gem da gramática não levava a aquisição da LA, se assiste à recuperação
da gramática e a busca de aplicações que dê lugar a um processo de
aquisição más completo, eficiente e eficaz nas salas de aula, ainda que
existam carências metodológicas. Neste viés, a ensino da competência
gramatical na destreza escrita retoma o seu papel de monitorar a pro-
dução, porém tentando incorporar os diferentes tipos de processos e
competências243 necessários para o ensino e a aprendizagem de língua.

242
Trata-se do conhecimento gramatical que é de natureza intuitiva ou subcons-
ciente e não se encontra formulado como um corpus de regras.
243
Além da competência linguística ou gramatical, se acrescenta: a pragmática, a

1181
3. A aquisição da gramática nas aulas de E/LA
A competência gramatical ou linguística consiste em uma dentro
das competências que se insere no desenvolvimento das quatro destre-
zas do enfoque comunicativo. Entretanto, esta é a competência que
os professores mais dão ênfase nas aulas de línguas, seja porque estão
inseridos em uma tradição metodológica baseada no ensino gramatical,
seja porque tem uma dependência em utilizar materiais didáticos que
em sua grande maioria se baseiam na gramática244.
Apesar do surgimento das várias metodologias e enfoques ao longo
do tempo, todas contem a análise de perspectiva gramatical normativo. A
gramática se apresenta em todos os métodos, independente do enfoque
linguístico na que se inclua a concepção do que é saber uma língua.
Historicamente, se sabe que a gramática realiza a descrição e a explica-
ção de sistema da língua, que se ocupa dos elementos morfológicos e
sintáticos da língua e que deixa o léxico para a semântica e os sons para a
fonética (TORREGO, 1998, p. 14) “(…) según algunos gramáticos, la
gramática comprende sólo la Morfología y la Sintaxis; según otros, abarca
también el plano fónico, es decir, el de los sonidos y los fonemas. (…)”245.
Nesse enfoque, a informação nocional e meta-discursiva são os
inputs mais relevantes para se adquirir a competência gramatical ou lin-
guística. Neste viés o estudo gramatical apresenta um problema funda-
mental no momento de responder a uma concepção mais ampla em re-
lação ao ensino de língua, que não seja simplesmente a de um conjunto
de regras gramaticais de natureza nocional, senão que também seja um
instrumento de comunicação. A análise gramatical está no nível da sin-
taxe oracional e, por isso, renuncia a todos os elementos da língua que
implicam uma análise no nível do discurso ou do texto.
discursiva, a estratégica e a sociocultural.
244
Neste trabalho tratamos do conceito de gramática que a define como a argumen-
tação explícita de normas que respondem a um registro específico de uma língua
ou saber de caráter mais ou menos metódico sobre a língua.
245
Tradução nossa: “(...) segundo alguns gramáticos, a gramática compreende ape-
nas Morfologia e Sintaxe; segundo outros, abrange também o plano fônico, ou
seja, o dos sons e fonemas (...)”.

1182
Sabemos que ensinar gramática é mais que explicar regras e normas
morfossintáticas. Exige abordar aspectos discursivos e pragmáticos, e
isto não só por abarcar a taxonomia das novas correntes metodológicas
e linguísticas, senão porque o papel desempenhado pela gramática ob-
jetiva ser mais amplo que a visão histórica depois do enfoque comuni-
cativo e de competência comunicativa.
Dessa forma, o ensino da gramática se transforma em um compo-
nente a mais, indispensável como são indispensáveis o elemento prag-
mático, o discursivo, o estratégico e o sociocultural. A proposta do de-
senvolvimento da competência gramatical em que se tenha em conta a
comunicação para descrever e explicar a língua, quer dizer, para explicar
as regras e as normas do uso e do funcionamento, além das do sistema
e integre os diferentes níveis da língua para que resulte mais ajuda para
todos, tanto para quem se dedique ao ensino quanto para aqueles que
se dedicam à aprendizagem de uma língua estrangeira ou adicional, se
faz necessária no processo de ensino/aprendizagem.
O ensino de gramática na sala de aula de espanhol como LE se trata
de um dos elementos imprescindíveis e de grande influência no proces-
so de ensino/aprendizagem da língua estrangeira. Entretanto, a questão,
ao abordar o ensino linguístico e gramatical em língua estrangeira é: O
que é “a gramática” na aula de espanhol como LE? O trabalho com o
conteúdo gramatical na aula se vincula ao papel que o professor desem-
penha na sala de aula, em relação à sua concepção do que é gramática,
do que é saber uma língua e à concepção da sua prática docente no
ensino da língua.
Neste espaço de tantas interrogações, devem-se levar em considera-
ção os procedimentos de inferir as regras gramaticais que podem ocor-
rer a partir do uso e da reflexão sobre a língua (indutivo) ou explicá-las
primeiro para logo se passar à prática dos conteúdos linguísticos (dedu-
tivo). Ambos não são excludentes; os professores não devem descartar
a priori nenhum deles, devem-se ter em conta as vantagens e desvanta-
gens de se aplicarem cada um deles.

1183
Desta forma o ensino da gramática se transforma em um compo-
nente mais, indispensável, porém como são indispensáveis o elemento
pragmático, o discursivo, o estratégico e o sociocultural. A proposta
do desenvolvimento da competência gramatical em que se tenha em
conta a comunicação para descrever e explicar a língua, quer dizer, para
explicar as regras e as normas do uso e do funcionamento, além das do
sistema e integre os diferentes níveis da língua para que resulte de mais
ajuda para todos, tanto para quem se dedique ao ensino quanto para
aqueles que se dedicam a aprendizagem de uma LA, se faz necessária no
processo de ensino / aprendizagem.
A caracterização que Peris (2004) realiza destacam os componentes
gramaticais que respondam as necessidades atuais do ensino de E/LA
para os estudantes no Brasil. Primeiramente, a função da gramática é
facilitar a compreensão do sistema da língua de aprendizagem e dos seus
mais diferentes usos e para isto, os critérios que se deve levar em conta
na hora de selecionar os conteúdos são: a atualidade, o estado atual da
língua e dos seus usos; a descrição, o modo em que efetivamente usam a
língua os seus falantes nativos; a frequência, fenômenos mais frequentes
nos usos linguísticos; a relevância comunicativa, valores comunicativos
mais frequentemente associados às formas linguísticas.
Segundo o autor, ainda é preciso analisar se a gramática que recolhe
usos tanto orais quanto escritos, atendendo a sua adequação ao contex-
to, se se trata de fenômenos que pertencem aos diferentes níveis de des-
crição da língua, estabelecendo as necessárias relações entre eles, se utili-
za uma metalinguagem e uma terminologia adequada a possibilidade de
compreensão dos seus destinatários, e por fim se leva em consideração
o conhecimento implícito da gramática da língua materna que tem os
destinatários, que no nosso caso são brasileiros falantes de português.
Raya (2003) asserta que ensinar e trabalhar com este tipo de gramá-
tica implica elaborar atividades que requeiram a participação ativa dos
aprendizes, estes aprendizes têm que fazer algo com o input; além das
atividades devem por de manifesto a operacionalidade da regra ou da
forma que é o objeto de atenção, apresentando uma finalidade e uma

1184
contextualização claras e trabalhando com amostras da língua meta que
sejam verossímeis.

4. A aquisição da gramática de uma língua e a inclusão dos


instrumentos da tecnologia digital
No processo de ensino/aprendizagem de espanhol, os professores
oferecem para os estudantes um conhecimento reflexivo das regulari-
dades, regras ou normas características de uma língua estrangeira que
ensinam, levando os alunos a desenvolverem a competência linguística.
Entretanto, isso acarreta o detrimento do desenvolvimento das habili-
dades discursivas, como a escrita, a leitura e a conversação.
Na história das diversas metodologias e enfoques de ensino/apren-
dizagem de LA, a relação entre saber uma língua e saber a gramática da
língua sempre existiu. Fazendo um rápido percurso, até os anos sessenta
e setenta, os estudantes aprendiam regras gramaticais e listas de vocabu-
lário e aplicavam estes conhecimentos em traduções diretas e inversas.
Nos anos setenta, os métodos áudio orais e audiovisuais encaram o en-
sino da escrita como similar a da língua oral. Desta maneira, a apren-
dizagem de una língua se restringia a utilizar os conteúdos linguísticos
e gramaticais ensinados na prática oral prévia. Os exercícios que eram
propostos se tornavam repetitivos, posto que se tratavam de exercícios
de imitação de estruturas linguísticas aprendidas oralmente na forma
escrita.
O questionamento da gramática transformacional de Chomsky
(1957) fundamenta os métodos áudio orais. A partir dessa corrente, a
língua se realiza dentro de uma interação, de um ato de comunicação
seja oral ou escrito. O enfoque comunicativo aporta uma mudança na
forma de afrontar a gramática na aula: a concepção de ensino/aprendi-
zagem de língua em contexto. Desta forma, para que uma interação,
uma comunicação aconteça é imprescindível que se desenvolva a habi-
lidade de compor textos/discursos. Para que haja a comunicação, oral
ou escrita, é necessário que além de dominar as estruturas da língua,
o estudante seja capaz de realizar o seu uso para uma conduta social e

1185
consequentemente utilize os tipos textuais como descrever, narrar, ex-
por e argumentar.
O enfoque comunicativo propõe o princípio da aprendizagem da
língua. Além disso, a competência gramatical não funciona como re-
forço do que foi aprendido na “fase” oral, senão também o seu ensino
parte do princípio de que é uma habilidade que tem as suas próprias
estratégias que se diferenciam no registro escrito e no registro oral e que
ao mesmo tempo esta competência interage com as demais competên-
cias. Desta maneira, o ensino da gramática que foca para a interação e
a comunicação leva o estudante de LA a conhecer o funcionamento das
normas e das estruturas gramaticais do espanhol, adequando o seu uso
a vários contextos, níveis sociais e profissionais, sabendo como a língua
funciona nos diversos usos da linguagem.
Nesta perspectiva, a inclusão das tecnologias digitais, em especial, a
internet nos proporciona vários instrumentos que podemos utilizar nas
aulas de espanhol como língua estrangeira. Entretanto, tem que se levar
em consideração um novo conceito que nos acarreta o uso do suporte
internet que se trata da noção de Cibercultura (Kenski, 2007, p. 134)
se refere ao conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), práticas, ati-
tudes, modos de pensar e valores que se desarrolham no ciberespaço.
Ciberespaço, palavra utilizada pela primeira vez pelo autor de ciên-
cia ficção William Gibson, em 1984, na novela Neuromamcer, diz res-
peito aos novos suportes de informação digital e aos modos originais de
criação, de navegação no conhecimento e da relação social proporcio-
nados por eles (KENSKI, 2007). Para Kenski, a definição de tecnologia
está calcada em uma noção que “engloba a totalidade de coisas que a
engenhosidade do cérebro humano conseguiu criar em todas as épocas,
suas formas de uso [e] suas aplicações” (2007, p. 22-23). Assim se trata
do espaço que permite o fluxo de informações e não se refere ao mundo.
Deste modo, a globalização permite que o limite entre o tempo e
o espaço não exista como então. Hoje, graças as tecnologias, podemos
aceder ao contato com outras formas de viver, pensar, sentir, criadas
por povos distantes geograficamente. Em termos de pesquisa, podemos,

1186
ainda que não tenhamos enciclopédias impressas, ter acesso à informa-
ção de civilizações que já pereceram no tempo, por tanto se pode falar
da democratização da informação e do conhecimento.
Além de a internet ser una fonte inesgotável de material autêntico
oferece abundantes exercícios de correção automática (sobretudo dedi-
cados a gramática e vocabulário); proporciona una ferramenta para a
comunicação e interação entre as pessoas que pode ser sincrônica me-
diante os chats, os chats de voz, a videoconferência ou ainda as lousas
virtuais – comunicação em direto ou em tempo real – ou não sincrônica
mediante o correio eletrônico, os foros de debate, as listas de distribui-
ção de notícias ou os foros auditivos; pode funcionar como arquivo
de sugestões didáticas e como recurso para a formação continuada dos
professores.

5. O trabalho do professor de E/LA com as tecnologias digitais


Vivemos em una sociedade onde as tecnologias fazem parte do
nosso cotidiano desde a Revolução Industrial, entretanto, as que nos
referiremos neste trabalho não são as tradicionalmente conhecidas, mas
sim aquelas que permitem nos comunicarmos virtualmente quando se
coloca um texto na rede este traz conhecimento para o cibernauta que
o procura.
Dentro das tecnologias, a internet consiste na que faz mais eco no
ensino/aprendizagem de E/LA, pois quase todos os professores domi-
nam o uso e funcionamento de esta ferramenta e muitos sabem que
pode contribuir a rede no processo de ensino/aprendizagem nas aulas.
Levando em consideração que a internet se trata de uma ferramenta
aportada para o ensino das línguas, por isso apresenta vantagens, mas
também limitações, posto que não podemos afirmar que este recurso
tornará as aulas de línguas exitosas.
Pode-se dizer que as vantagens e as limitações da internet vêm de-
terminadas pelas suas próprias características como um meio de comu-
nicação e informação. O sucesso do seu uso no ensino de E/LA depende
de que recursos vão ser utilizados e para que serão utilizados. Sabe-se

1187
que a internet oferece uma quantidade imensa de material autêntico em
língua espanhola e tanto professores quanto estudantes têm facilidades
em acessá-lo e adquiri-lo.
A utilidade de este recurso se diferencia em função se faz um recor-
rido à rede para os estudantes ou para os professores. Para os estudantes
é um bom meio para que exercitem as suas destrezas decodificadoras,
tanto as escritas (leituras de webs baseadas em textos) quanto às orais
(ao escutar emissoras de rádio) ou para que revisem a gramática a través
de exercícios de correção automática, principalmente dedicados a gra-
mática e ao vocabulário.
Para os professores o recurso da internet funciona muito bem como
um arquivo de sugestões didáticas, onde se compartilha materiais e pla-
nos de aulas. As aulas preparadas têm vantagens quando se refere ao
fato de que são gratuitas, são excelentes para improvisar uma sessão e
também se classificam em função das necessidades dos estudantes, por
isso está bem pautada. Todavia apresenta uma questão a ser analisada
no que se refere às aulas, estas não foram desenhadas para um grupo em
concreto, específico, por tanto pode ser que a aula não funcione com o
nosso grupo. De aí que os professores têm que revisar, ajustar e comple-
mentar os materiais antes de levá-los para a aula.
Sabemos que a internet, para os professores, ainda pode oferecer
outra vantagem a de ser um recurso para a formação continuada docen-
te, una vez que é um recurso para que qualquer profissional, docente,
possa se manter em dia com tudo o que se refere a sua atuação como
docente de língua adicional. Em especial, os professores de espanhol
dispõem de foros de debates e listas de distribuição de notícias, se in-
formando sobre congressos e encontros, novidades bibliográficas e in-
clusive cursos de formação continuada tanto na modalidade presencial
como à distância.
De tudo que se relatou, a inclusão dos recursos digitais pode nos
proporcionar um novo viés na formação linguística dos estudantes em
ELA. Segundo Kenski (2007, p. 134) a internet nos traz vários ins-
trumentos das tecnologias digitais que podemos utilizar nas aulas, no

1188
nosso caso de espanhol, aportando novas metodologias para o ensino de
conteúdo gramatical. A inclusão das tecnologias leva em consideração
um conceito que nos acarreta o uso do suporte internet, que se trata da
noção de Cibercultura, que se refere ao conjunto de técnicas (materiais
e intelectuais), práticas, atitudes, modos de pensar e valores que se de-
sarrolham no ciberespaço.
Desta forma podemos propor aulas de língua espanhola, com inte-
ração professor-estudante e estudantes entre si através do planejamento
dos materiais que foquem no intercâmbio de informação e conheci-
mentos mútuos. Uma aula, em geral, traz o foco no estudante e nas suas
necessidades e expectativas linguísticas.

6. Considerações finais
O estudante de uma língua estrangeira ou adicional como o espa-
nhol, aprende as normas e o funcionamento dos elementos da língua no
processo de aquisição da competência gramatical que, em geral, fazem
parte do código escrito da língua. Por isto, a questão é como propor-
cionar uma aprendizagem da competência gramatical em espanhol para
que os alunos sejam capazes de compreender e manejar a comunicação
e as regras de uso da língua de forma consciente e autônoma.
“A língua não existe sem a gramática” (ANTUNES, 2007, p. 85),
realmente não existe. A questão a ser levantada e abordada é como fazer
os estudantes entenderem o que é gramática. Essa é uma das dificul-
dades do professor de língua, pois para os aprendizes o ensino de uma
língua adicional é diretamente relacionado à aquisição de norma, o que
não condiz com a realidade. Todavia, cabe somente ao professor mudar
esse pensamento e tirar o foco do ensino na norma.
A partir das diferentes contribuições gramaticais (normativa, des-
critiva, didática) se pode fazer uma reflexão sobre qual é a função da
gramática e, consequentemente, do desenvolvimento da competência
gramatical no processo de ensino/aprendizagem da língua, no caso o
espanhol, na aula de LE. Através de um ensino gramatical que extrapole

1189
as fronteiras das informações morfossintáticas e metalinguísticas no ní-
vel oracional e da inclusão do desenvolvimento de habilidades de orga-
nização discursiva/textual, o conteúdo sistêmico passa a ter relevância e
ser significativo para o aprendiz.
Além de proporcionar a aquisição consciente das regras e normas
dos elementos que constituem a língua, o que se propõe é que sejam
ensinados para os estudantes os aspectos da organização discursiva e
textual, além de que se reconheçam as estruturas concretas da língua
dentro das habilidades linguísticas. Muitos aspectos gramaticais podem
ser ensinados e adquiridos pelos alunos de forma inconsciente, melhor
dito, implicitamente através da integração com outras habilidades e
através da organização textual

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TORREGO, Leonardo G. Introducción. In: Gramática Didáctica del español.


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1191
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

(DES)CONSTRUINDO PRÍNCIPES E
PRINCESAS: A LEITURA MULTIMODAL DE
TEXTOS MULTISSEMIÓTICOS SOB UMA
PERSPECTIVA CRÍTICA DE ENSINO DE
LÍNGUA INGLESA

Verônica Pereira Coitinho Constanty-UNIOESTE


Maura Bernardon-UNIOESTE

RESUMO: Novas formas de explorar a leitura e interpretação de diversos


recursos, como livros ilustrados e versões desses em filmes animados, vêm
ocupando um papel de destaque na área do ensino de línguas. Nesse sentido, a
Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018) destaca o desenvolvimento
de uma noção ampla dos multiletramentos como uma de suas implicações
para o ensino de inglês a fim de desenvolver uma aprendizagem crítica e
contextualmente situada. Considerando o exposto, o presente estudo apresenta
a análise comparativa do livro ilustrado, Prince Cinders, escrito e ilustrado por
Babette Cole (COLE, 1987) e a animação desenvolvida pela companhia de
filmes Illuminated Film Company (2016). A fim de lançar um olhar crítico
sobre as representações dos personagens e de como elas são (des)contruídas nos
dois recursos semióticos, tomamos por base o proposto por Meurer (2001), o
qual destaca a importância de levantar quais são as identidades representadas,
bem como analisar as relações dos participantes e seus papéis sociais. Para
tanto, toma-se por base a linguística sistêmico funcional (HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2004) e a gramática visual (KRESS; VAN LEEUWEN,
2021) que permitem sistematizar os aspectos verbais e visuais relativos aos
participantes e seus atributos. Resultados preliminares quanto à análise do
Contexto de Situação, revelam que se trata de uma reprodução cômica da
estória infantil “Cinderela”, com a troca de papeis de gênero dos personagens
principais. Nas identidades representadas em ambos os gêneros discursivos, os
padrões de beleza masculinos são colocados em evidência, pois há a construção
de excessiva masculinização dos irmãos do personagem principal, príncipe
Cinders, fato que parece acentuar a polidez e a gentileza desse. Por meio do
presente estudo buscamos demonstrar como a análise crítica multimodal pode
auxiliar na (des)construção de papeis de gênero, ao mesmo tempo em que é
possível desenvolver a leitura de textos contemporâneos na língua inglesa.

1192
PALAVRAS-CHAVE: multimodalidade- ensino crítico - livro
ilustrado- animação- inglês

ABSTRACT: New ways of exploring reading and interpretation of different


resources, such as picture books and their animated film versions have been
playing a prominent role in the area of language teaching. In this sense, the
Common National Curricular Base (BRASIL, 2018) highlights the need of
developing a broad notion of multiliteracies as one of its implications for
the teaching of English in order to develop critical and contextually situated
learning. Bearing this in mind, the present study presents the comparative
analysis of the picture book, Prince Cinders, written and illustrated by Babette
Cole (COLE, 1987) and the animation developed by Illuminated Film
Company (2016). In order to carry out a critical analysis of the representations
of the characters and how they are (de)constructed in the two semiotic
resources, we draw on Meurer (2001), who emphasizes the relevance of
exploring the represented identities, as well as analyzing the relationships of
the participants and their social roles. To systematize verbal and visual aspects
related to participants and their attributes we use functional systemic linguistics
(HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) and visual grammar (KRESS; VAN
LEEUWEN, 2021). Preliminary results regarding the analysis of the Situation
Context, reveal that it is a comic reproduction of “Cinderella” with reversed
gender roles. The identities represented in both discursive genres, put in
evidence male standards of beauty, since there is the construction of excessive
masculinization of the main character’s brothers. In this sense, such aspect
seems to accentuate Prince Cinders politeness and gentleness. Through the
present study we aim to demonstrate how critical multimodal analysis can
help in the (de)construction of gender roles, at the same time that it is possible
to develop the reading of contemporary texts in the English language.
KEY-WORDS: multimodality – critical teaching – illustrated books
– animation- English

1. Introdução
O ensino de línguas requer o desenvolvimento de uma noção am-
pla dos multiletramentos (BRASIL, 2018) que envolva novas formas de
explorar a leitura e interpretação de diversos tipos de texto, dentre eles
os multimodais. Livros ilustrados e versões desses em filmes animados

1193
constituem ricas ferramentas para o desenvolvimento da consciência
das escolhas feitas para criar significados em diferentes modos textuais,
sejam eles o verbal, o visual ou mesmo o acústico.
Como educadores de língua inglesa precisamos abrir espaços na
formação dos estudantes e professores em pré-serviço para perspectivas
linguísticas que abordem questões sobre estereótipos e situações sociais
padronizadas como, por exemplo, as ideologias patriarcais, heterogêneas
ou homofóbicas. Um campo propício para que os estudantes tirem suas
próprias conclusões e se posicionem em relação a essas temáticas encon-
tra-se nas narrativas dos contos de fada, particularmente nas representa-
ções das relações entre os gêneros feminino e masculino, mas também dos
heróis e heroínas domesticadas (CREW, 2002; CRANNY-FRANCIS et
al., 2003). Nesse sentido, Cranny-Francis et al (2003, p. 244-245)246
enfatizam que “[...] as crianças podem ser receptivas às perspectivas alter-
nativas como as que versam sobre posicionamentos sobre gênero.”
A partir do exposto, destacamos que ao utilizarmos livros e filmes
em atividades escolares ou em ambientes familiares (com acompanha-
mento de pais e responsáveis), outras alternativas de opiniões e resistên-
cia às narrativas padronizadas e hegemônicas podem surgir. A leitura
de narrativas clássicas dos contos de fadas em livros infantis bem como
de suas respectivas recriações em outras mídias, associadas às discussões
contemporâneas sobre a linguagem, permitem desconstruir dicotomias
binárias sobre gênero. Transpor as limitações impostas sobre formas de
pensar e expressar vêm recebendo atenção de linguistas dentro e fora
do país, a exemplo dos trabalhos de Constanty e Heberle (2022), no
Brasil, e de Unsworth (2013), no exterior. As primeiras analisam, sob
uma perspectiva crítica multimodal, livros ilustrados com foco em
personagens empoderadas, como a versão de Chapeuzinho Vermelho
intitulada Little Red (2016), de Bethan Wollvin. Unsworth (2013) pro-
põe reflexões teóricas sobre análises comparativas entre livros e filmes
como, por exemplo, o estudo do livro intitulado The Lost Thing, escrito

246
Cranny-Francis et al (2003, p. 244-245) [...] children can be receptive to alter-
native perspectives regarding gender positioning.

1194
e ilustrado por Shaun Tan (2000) o qual foi adaptado para um premia-
do curta-metragem.
A fim de lançar um olhar crítico sobre as representações dos perso-
nagens e de como elas são (des)contruídas em dois recursos semióticos:
o livro e a versão do filme, selecionamos o livro Prince Cinders, de
Babette Cole (1987), e a animação, com título homônimo, produzi-
da pela companhia de filmes Illuminated, dirigido por Derek Hayes
(2016). Tomamos por base uma investigação de caráter analítica e críti-
ca. Para tanto, seguimos a perspectiva sociossemiótica e buscamos am-
pliar a discussão sobre como os padrões da linguagem criam significa-
dos em diferentes mídias e contextos sociais.
Com esse propósito em mente, iniciamos por apresentar brevemen-
te a narrativa de Prince Cinders, passando a explorar o referencial teórico
que embasa o presente estudo. Em seguida, desenvolvemos a análise do
contexto e dos aspectos léxico-gramaticais por meio do sistema da tran-
sitividade e comparamos as representações dos principais personagens
nos dois recursos, tecendo uma análise crítica com base na Gramática
Sistêmico Funcional (GSF), de Halliday e Matthiessen (2004), e na
Gramática do Design Visual (GVD), de Kress e Van Leeuwen (2021).
Após a análise, passamos as nossas considerações finais.

2. Príncipe Cinders: um breve resumo sobre a narrativa


A história se utiliza de papeis de gênero invertidos (NIKOLAJEVA;
SCOTT, 2006) a qual traz como protagonista o príncipe Cinders. Dessa
forma, com um nome que remete à Cinderela, qualquer coincidência
não é mero acaso: Cinders representa a versão masculina de Cinderela
e apresenta em sua narrativa os elementos básicos dessa história, assim
sendo: ele tem três irmãos, limpa a casa e deseja ir ao baile real.
Com um tom humorístico, Cole (1987) cria personagens que fo-
gem aos padrões de contos de fadas, já que o príncipe é desposado pela
princesa, denominada de Princess Lovely Penny e a fada é representada
“suja”, pois caiu da chaminé por ser desastrada. Essa mesma caracterís-
tica é responsável por criar o grande elemento complicador da história:

1195
a fada, atendendo ao pedido de Cinders de se tornar grande e peludo
como seus irmãos, transforma o príncipe em um enorme macaco pelu-
do e, assim, ele parte para a festa de sábado à noite sem saber em que
havia se transformado.
Os cenários variam e transformam o Palácio em Discoteca, onde
ocorre o baile real, por exemplo, como também trazem uma parada
de ônibus. É nesse local que o príncipe, transformado em macaco, en-
contra a princesa Lovely Penny. Como esperado, de acordo com os ele-
mentos intertextuais que remetem à Cinderela, à meia noite, Cinders se
transforma e, voltando ao que era antes, foge. Essa última, feliz porque
achou que o rapaz a havia salvo do animal, deseja encontrá-lo. No en-
tanto, se em Cinderela há a perda de um sapato de cristal, em Cinders
há a perda das calças jeans do jovem príncipe.
Contrariando os padrões físicos representados no livro em que os
atributos big (grande) e hairy (peludo) estão relacionados aos homens
do reino de uma maneira geral, o príncipe é franzino. Isso torna a pro-
cura pelo portador das calças longa, mas não impossível, uma vez que
a princesa é determinada e parte em busca de seu príncipe. Ao encon-
trá-lo, Lovely Penny o leva para morar em seu castelo e pede a fada que
transforme os irmãos de Cinders em fadas do lar. A história termina
com a representação dos irmãos, grandes e peludos, voando com peque-
nas asas para fazer as tarefas domésticas do palácio.
A breve descrição da narrativa nos permite observar o tom humorís-
tico trazido pela autora, principalmente, por haver uma habilidosa arti-
culação entre o texto verbal e o visual. É essa relação intermodal que per-
mite descontruir representações hegemônicas conforme veremos a seguir.

3. A Gramática Sistêmico Funcional e a Gramática do Design


Visual
Nos gêneros discursivos multimodais contemporâneos, as imagens
e a linguagem escrita complementam-se e constroem os significados
desejados pelo autor, conscientes ou não desse processo, a fim de alcan-
çar objetivos culturalmente reconhecidos (KRESS; VAN LEUWEEN,

1196
2021; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004; BÁRBARA; MACEDO,
2009). Essas escolhas (linguísticas e imagéticas) recebem influências
tanto do contexto cultural (cultura) como do contexto de situação (as-
pectos ou registros que fazem a diferença em como usamos a linguagem)
– ambos no nível extralinguístico (HALLIDAY, 1985; BÁRBARA;
MACEDO, 2009).
De acordo com Meurer e Motta-Roth (2002, p. 11) “[...] sobre o
que se fala, quem fala e como se fala – são definidores do contexto, ao
mesmo tempo que esses três aspectos dependem do contexto em que
uma determinada atividade humana se desenvolve mediada pela lingua-
gem”. Portanto, tem-se tantas variações de um mesmo conhecimento
quantas modificações são realizadas no modo de produzir um texto, os
participantes envolvidos e a forma de interação.
Partindo dessa premissa, adota-se o conceito de gênero proposto
por Halliday e Hasan (1989) que o associa ao contexto da cultura, en-
volvendo os aspectos mais amplos a partir do meio social e cultural que
o usuário está inserido. Já o contexto da situação, também conhecido
como Teoria de Registro, irá definir sobre o que se fala, as relações en-
tre os usuários e as formas textuais utilizadas, conhecidas como os três
significados realizados pela linguagem (EGGINS; MARTIN, 1997;
BÁRBARA; MACEDO, 2009), também chamados de metafunções.
As metafunções, por sua vez, e a ligação com as variáveis situacio-
nais de contexto social tem fornecido uma base teórica comum para
o desenvolvimento de gramáticas voltadas para diferentes recursos se-
mióticos, a exemplo da Gramática do Design Visual (GDV) de Kress
e van Leeuwen (2021). Os autores propõem que as imagens também
constroem três tipos de significados, expandindo e adaptando as noções
de metafunção da Gramática Sistêmico Funcional. Em linhas gerais,
temos o seguinte:

a) os significados ideacional/representacional: são estruturas que


dizem respeito à construção verbal e visual da natureza dos eventos,
dos Participantes (Atores), Processos (Ações, Eventos e Atividades) e
Circunstâncias (tempo e lugar);

1197
b) os significados interpessoal/interativo: são recursos verbais e vi-
suais que constroem a natureza das relações;
c) os significados textual/composicional: são estruturas relaciona-
das com a distribuição do valor da informação ou destaque entre os
elementos do texto verbal e da imagem.

Por meio dessas três categorias é possível realizar leituras que envol-
vem, concomitantemente: a representação do mundo, a interação (entre
leitor/autor e participantes) e a organização da mensagem. No presente
estudo, enfocamos os significados ideacionais, da Gramática Sistêmico
Funcional, de Halliday e Matthiessen (2004), e representacionais, da
Gramática do design Visual, de Kress e Van Leeuwen (2021) os quais
exploramos a seguir.

3.1 Significados ideacionais


Na GSF, os significados ideacionais referem-se às experiências da
realidade ou às experiências internas das pessoas. A “realidade experien-
cial” ocorre por meio de ações, dos participantes que as realizam e das
circunstâncias específicas − como tempo, lugar, modo e meios− relacio-
nadas a essas ações. Portanto, esses aspectos envolvem um determinado
evento, tendo como função transferir as experiências pessoais para a
estrutura linguística realizada pelo sistema da transitividade.
Em linhas gerais, os processos são realizados pelos grupos verbais e
representam os eventos e atividades conduzidas por humanos ou par-
ticipantes com características humanas; eles também descrevem aspec-
tos mentais e sociais. Os processos podem ser classificados em seis ti-
pos: material, mental, relacional, verbal, comportamental e existencial
(HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). Considerando-se que as esco-
lhas gramaticais operam como uma fonte de significados, tipos específi-
cos de ações e sentimentos atribuídos aos personagens contribuem para
o construto de seus papéis na narrativa.
O Processo material envolve ações praticadas de forma concreta e re-
quer um participante que faz uma ação (HALLIDAY; MATTHIESSEN,

1198
2004). O participante é o Ator que está expresso nos grupos nominais.
Nos casos de haver um participante para quem o processo está dire-
cionado, esse é denominado como Meta. Vejamos o trecho que segue
retirado do livro “Olívia tem dois papais”, o qual narra algumas ativi-
dades da personagem principal, Olívia, enquanto espera que um de
seus pais termine o trabalho: “Daí [ela] brincou de boneca [e conversou
bastante com papai Raul].” Nesse caso, “ela”, Olívia, é Ator, “brincar”
é o Processo, “de boneca” é a Meta ” (LEITE; SCHUBACH, 2010).
Por sua vez, os processos mentais transmitem processos sensoriais
e incluem verbos relacionados à percepção (ver e ouvir), sentimentos
(gostar) e pensamentos (saber e compreender). Essas frases podem ter
dois participantes: um que é humano ou assemelha-se ao humano,
como ocorre em livros ilustrados, e outro que é percebido, sentido ou
pensado pelo participante humano. O participante humano é chama-
do de Experenciador, enquanto o segundo elemento é denominado
Fenômeno. Vejamos o exemplo de Olívia em “Olívia tem dois papais
(papais)”: “[Ela] sentia um medo gostoso.” No exemplo temos “ela”
como Experenciador, “sentir” é o Processo Mental, “um medo gostoso”
é o Fenômeno.
Os processos relacionais, por sua vez, servem para classificar, ge-
neralizar e identificar aspectos das experiências e codificam estados de
“ser”, “ter” e “identificar”. No que se refere a narrativa, os processos
relacionais servem para apresentar os personagens e suas característi-
cas, mas são também importantes na descrição de locais e cenários. Por
exemplo, na primeira página do livro “Olívia tem dois papais”, a per-
sonagem principal é descrita como sendo a possuidora de um talento,
pois “[...] sabia exatamente como usar algumas palavras para conseguir
as coisas que queria.” Assim, o livro inicia com a seguinte informa-
ção: “Olívia tinha um talento muito especial.” A partir da descrição
do talento da menina há o desenvolvimento dos fatos que permeiam a
história. Essa enfoca as brincadeiras de Olívia e suas conversas com um
de seus pais, a fim de lhe chamar a atenção por meio do uso de palavras
habilidosamente escolhidas.

1199
O segundo grupo de verbos é formado pelos processos: verbal,
comportamental e existencial. Os processos verbais, expressam ações
verbais, tais como “dizer”, “falar”, “contar” e “perguntar”. Eles podem
ser reconhecidos pelo uso das aspas ou discurso indireto. Esse tipo de
processo está entrelaçado nas narrativas, pois os personagens estão en-
volvidos em algum tipo de interação ao longo da estória, e que poderá
ser colocada em evidência ou entre aspas. Os participantes dessas orações
são, normalmente, Dizente, Verbiagem, Receptor e Alvo. Tomemos por
exemplo parte do diálogo entre o pai Luís e Olívia: “Só me olhando,
filha, sem me atrapalhar? –o pai perguntava [...]”. Na oração, é possível
identificar que quem fala, ou seja, o Dizente, é o pai e ele o faz por meio
do Processo Verbal “perguntar”, enquanto “Só me olhando, filha, sem
me atrapalhar?” é a Verbiagem, em outras palavras, o que é dito.

3.2 Os significados representacionais na GDV


Conforme exposto brevemente, a Gramática do Design Visual
(KRESS; VAN LEEUWEN, 2021), toma por base as escolhas linguís-
ticas feitas nos textos verbais para amplia-las e adaptá-las à leitura de
imagens. Assim, as imagens podem ser conceituais ou narrativas. As
representações conceituais enfocam atributos e identidades dos partici-
pantes, os quais não executam ações. Considerando que as ilustrações
e desenhos analisados nesse estudo não envolvem imagens desse tipo,
as representações conceituais não serão exploradas. Já as representações
narrativas, diferentemente das conceituais, indicam algum tipo de ação
ou de reação.
As características de uma representação narrativa envolvem: par-
ticipantes (humanos ou não), suas ações (indicadas por vetores ou li-
nhas) as quais ocorrem dentro de determinadas circunstâncias relacio-
nadas ao tempo e/ou ao espaço. Os vetores podem ser formados pela
direção do olhar, braços, corpo ou objetos que sugerem movimento e
orientação.
As estruturas narrativas representam as ações e reações, que po-
dem ser transacionais ou não-transacionais. Os processos de ação

1200
transacionais envolvem pelo menos dois participantes e contém um ve-
tor, conforme pode se observar na Figura 1 que segue. Já um processo
não-transacional ocorre quando a ação envolve somente um participan-
te e um vetor. Os processos de reação são indicados por um vetor for-
mado pela linha do olhar e são transacionais quando as pessoas olham
para algo que pode ser identificado, como na Figura 1, ou não-transa-
cionais quando o objeto do olhar não pode ser visto.

Figura 1: Exemplo de representação narrativa transacional

Fonte: Leite e Schubach (2010)

Na imagem acima é possível identificar que os braços de Olívia


formam vetores na direção da boneca, indicando a ação de brincar. Já
o pai de Olívia se apoia em um de seus braços e olha para a menina.
Esse olhar forma um vetor, em um processo de reação transacional. Ele
também segura a boneca com o outro braço, o qual forma um segundo
vetor, em um processo de ação transacional.
Os processos verbais são visualmente representados nas imagens
por meio de desenhos de balões ou bolhas preenchidas pela linguagem

1201
verbal, que em livros ilustrados podem ou não aparecer (PAINTER et
al., 2013). Nesse sentido, um participante pode ser interpretado como
se estivesse falando, mesmo que o autor não tenha incluído a imagem
do balão.
Os significados circunstanciais são visualmente retratados em ter-
mos de cenário; podem incluir local e tempo. Por exemplo, na Figura
1, podemos visualizar o que parece ser um tapete no chão, quadros
e brinquedos que constroem a noção de um espaço doméstico, como
uma sala. Nesse caso, os detalhes do mundo ficcional estão disponíveis
mais prontamente para o leitor do que seriam na linguagem verbal247
(PAINTER et al 2013, p. 78).
Considerando a base teórica exposta, o estudo enfoca primeira-
mente os aspectos discursivos, com foco nos aspectos contextuais no
livro e no filme, passando a um olhar mais profundo dos significados
ideacionais e representacionais, conforme veremos na análise que segue.

4. O contexto de situação e a desconstrução dos personagens


com base na GSF e GDV
A partir do estudo do livro e do filme Prince Cinders, observou-se
que a temática central, a qual questiona os papéis sociais dos persona-
gens quanto ao gênero e atributos físicos, se dá com base nas versões
tradicionais de Cinderela. Nesse sentido, é interessante observar, pri-
meiramente, como o Contexto de Situação ocorre a fim de explorar os
elementos intertextuais. Esses, por sua vez, são ainda mais ricamente
analisados por meio da escolha do título e da capa do livro. Enquanto
a fase de orientação da narrativa permite lançar um olhar mais apurado
em torno das identidades e papéis sociais, pois é nela que há uma maior
caracterização dos personagens, conforme exploraremos nessa seção.
Se consideramos o contexto de situação em suas três variáveis nos
dois recursos tem-se o quadro abaixo.

247
“the details of the fictional world are available to the reader much more readily
than they would be through verbal language” (Painter et al 2013:78).

1202
Quadro 1- O contexto de situação e as Metafunções no livro infantil e no filme

Livro “Prince Filme “Prince


Metafunções
Cinders” Cinders”
A função ideacional representando Campo: versão da Campo: versão da
a construção de experiências, estados fábula Cinderela em fábula Cinderela em
ou eventos no mundo; se realiza por língua inglesa. língua inglesa.
meio dos Participantes (Atores), Pro-
cessos (Ações, Eventos e Atividades)
e Circunstâncias (tempo e lugar)
A função interpessoal do texto, re- Relações: leitores Relações: expectado-
presentando as relações sociais entre nativos/ aprendizes res nativos e aprendi-
os participantes na comunicação. de língua inglesa. zes de língua inglesa
A função textual refere-se aos recur- Modo: leitura in- Modo: visualização
sos gramaticais que operacionalizam dividual ou em voz do vídeo e leitura
a mensagem e organizam as escolhas alta - auxiliada pelo de legendas – escrita
linguísticas como mensagem, através professor - livro im- -som e imagens
das estruturas temáticas nas orações; presso - escrita e gra- Os vídeos utilizam
os meios pelos quais a mensagem é vuras vários canais para sua
transmitida, seja de forma escrita/ realização entre eles:
oral ou visual. fônico, gráfico, visual
e espacial.
Fonte: Elaborado pelas autoras (2022).

É interessante observar que as noções intertextuais que permeiam


Cinderela e a inversão de papeis de gênero começa a ser evidenciada
pelo próprio título “Prince Cinders”, o qual troca o tradicional subs-
tantivo princesa (princess) para príncipe (prince). Além disso, há uma
aproximação do nome do personagem principal, Cinders, à sua raiz,
traduzida como “cinzas”− de forma similar ao título original francês,
Cendrillon, que significa “pequenas cinzas”. Não obstante, a persona-
gem recebe esse apelido de suas irmãs malvadas, pois dormia perto da
lareira e acordava com o rosto sujo de cinzas.
Somando-se à tais escolhas, verificou-se que, na capa do livro, o
personagem principal é representado por um rapaz franzino no meio
de atividades domésticas. Além desse aspecto, a imagem apresenta um
ambiente de contrastes; cria-se um elo entre o moderno e a história ori-
ginal por meio de artefatos que tanto complementam o cenário quanto

1203
apresentam o personagem central e seus atributos. Ele veste jeans e tê-
nis, usa uma coroa sendo auxiliado por produtos e materiais de limpeza;
ao fundo pode-se um caldeirão dentro de uma lareira que remete o
leitor aos tempos das fábulas de bruxas, fadas madrinhas.
Trazendo o cenário da capa do livro para as categorias de análise da
gramática visual, de Kress e Van Leuween (2021), em especial para as
Estruturas Representacionais é possível ter acesso a intenção dos autores
ao reproduzirem as fábulas. Percorrendo o esquema, chegamos nas es-
truturas da Narrativa, que se subdividem em Processos e Circunstâncias.
Os processos dependem de um Ator; no caso, Prince Cinders o único
participante saliente, representado em uma ação Não-transacional (sem
interação com outros Atores) e realizando um processo material (fazer a
limpeza) (Ator-Meta), conforme a Figura 2 abaixo.

Figura 2: Capa do livro Prince Cinders

Fonte: Cole (1987)

1204
Se, por um lado, a capa do livro permite aos leitores estabelecer
inferências com relação ao protagonista e uma breve comparação com
Cinderela, a orientação da narrativa contrapõe o Príncipe e seus irmãos
em relação aos seus atributos físicos, conforme se verifica na Figura 3.

Figura 3: Orientação da narrativa e contraposição dos personagens

Fonte: Cole (1987)

A partir dos textos verbais e visuais presentes nas duas primeiras


páginas do livro, conforme Figura 3, é possível observar que o prota-
gonista é descrito como small, spotty, scruffy e skinny, atributos aqui
traduzidos como “pequeno”, “irregular”, “desalinhado” e “magro”. Tal
descrição, corresponde com a imagem apresentada na qual ele aparece
em pé, com seus braços para trás, segurando as mãos e parece olhar para
os três irmãos. Esses, por sua vez, são representados em uma imagem
de close up, ou seja, em uma imagem que enfoca os seus rostos os quais
parecem ser muito grandes pois ocupam, praticamente, toda a página
direita. Dessa forma, o contraste entre o príncipe e seus irmãos é mar-
cante: enquanto ele parece pequeno pela representação de corpo inteiro
em um canto da página, seus irmãos, embora representados somente da
cintura para cima, são grandes.
É interessante observar que enquanto Cinders tem pouco cabelo e
não tem pelos em evidência, todos os irmãos tem bigode e dois deles
aparecem com a camisa aberta, mostrando os pelos do peito. Tal fato
converge com a breve descrição dos mesmos no texto escrito- o qual
os referência como “[...] three hairy Brothers” ou, em português, como
“[...]três Irmãos peludos”. Apesar de portarem coroas na cabeça, eles

1205
não são chamados de príncipes, o narrador os apresenta apenas como
“Brothers”, tendo sua função de parentesco com Cinders destacada. O
fato de serem “peludos” é evidenciado também por outras característi-
cas: um deles possui uma opulenta sobrancelha e todos possuem abun-
dantes cabelos.
Ao início da história, os leitores também tomam conhecimento que
os irmãos de Cinders costumam ir à discoteca do Palácio com suas na-
moradas princesas e que faziam o príncipe limpar, conforme texto ex-
traído das páginas 3 e 4: “They spent their time going to the Palace Disco
with princess girlfriends.” (“Eles passavam o tempo indo à Discoteca do
Palácio com suas namoradas princesas”). “They made poor prince Cinders
stay behind and clean up after them.” (“Eles faziam o pobre príncipe ficar
para atrás e limpar.”)
O texto visual presente na página 3 mostra os irmãos, cada qual em
um carro e com uma namorada, chegando à um local que tem em sua
parte superior um outdoor com luzes coloridas, das quais pode-se ler:
Royal Disco ou “Discoteca Real”. Já Cinders, representado na página 4,
aparece ajoelhado com uma pequena pá em suas mãos e limpa restos
de comida, como ossos e caroços de maçãs, além de tocos de cigarros e
latas de cerveja. Nesse sentido, e retomando a ação realizada por ele na
capa do livro, Cinders continua a ser o Ator de ação Não-transacional
(sem interação com outros Atores) e realiza o processo material (fazer a
limpeza) (Ator-Meta). Por outro lado, os irmãos do príncipe perfazem
processos materiais “Transacionais” em que agem em relação aos seus
carros (Ator-Meta) e tem ainda o acompanhamento de suas namoradas.
Na imagem presente na quinta página do livro, Figura 4, é possível
ver o príncipe sentado perto da lareira lendo uma revista. Na capa da
revista é possível ver, em destaque, seu título: “Macho Magazine” e a
representação de um homem barbudo, vestindo somente uma sunga, ao
mesmo tempo em que ergue os braços a fim de mostrar os músculos do
bíceps. O protagonista olha na direção de seu braço que está dobrado
a fim de ver sua musculatura e parece desapontado- fato evidenciado
pela boca semiaberta e os olhos arregalados. O texto escrito evidencia o

1206
desejo do protagonista de se tornar “grande” e “peludo”, conforme pode
se verificar a seguir: “When his work was done, he would sit by the fire and
wish he was big and hairy like his Brothers.” (“Quando seu trabalho esta-
va pronto, ele sentava ao fogo e desejava que ele fosse grande e peludo
como seus irmãos.”).

Figura 4: Cinders lê a revista “Macho”

Fonte: Cole 1987

Enquanto no livro, Cinders simplesmente olha para seu bíceps e


tem seu desejo de ser tornar grande e peludo manifestado pelo narrador
por meio do texto verbal transcrito acima, no filme, há uma sequência
de imagens que partem desse momento do livro, Figura 5, e que cul-
minam com a decepção do protagonista, pois o músculo de seu bíceps
vira-se para baixo. Nesse momento, o príncipe diz para o gato que o
acompanha: “What I am going to do about it, Zipper? I wish I was big
and hairy like my three brothers.” - traduzido como: “O que eu vou fazer
sobre isso, Zipper? Eu queria que eu fosse grande e peludo como meus
três irmãos.”

1207
Figura 5: Representação do padrão masculino de beleza no filme

Fonte: Illuminated Films Company (2016)

Ao comparar os dois momentos representados nessa fase de orien-


tação da história no livro e no filme, é possível verificar que há um
exagero na representação do músculo “invertido”, no filme, fato que
adiciona um tom de humor a esse momento e até de ironia. Essa cons-
truída pela divergência entre a informação dita pelo personagem, o qual
deseja se tornar forte e peludo, enquanto a imagem mostra que ele não
tem nenhuma dessas características.
Um outro aspecto presente no filme, ainda na fase de orientação da
narrativa, é a representação dos Irmãos que fazem musculação havendo,
assim, forte destaque dos seus atributos físicos. Enquanto eles se exerci-
tam, conversam e se julgam bonitos, conforme se verifica nos textos que
seguem: “I am so good-looking at all those sites. May say…”, traduzida
como: “Eu sou tão lindo em todos os ângulos. Devo dizer...”. Seguindo a
cena descrita, um dos irmãos comenta com os demais: “I need to get ready
for that disco tonight. I’ve got to choose between about thirty princess girl-
friend”, traduzida como: “Eu preciso ficar pronto para a discoteca de hoje
à noite. Eu tenho que escolher entre umas trinta princesas namoradas.
A partir das ações representadas e das falas a eles atribuídas, é possí-
vel observar que as obrigações dos Irmãos são completamente distintas
das de Cinders. Enquanto esse último tem suas ações voltadas para as
tarefas domésticas, ou seja, ele é o Ator que age sobre o ferro de passar
roupas (Meta), os Irmãos são também Atores que agem sobre equipa-
mentos de musculação (Meta). Além disso, suas obrigações, expressas
por auxiliares léxico modais (have to) ou modais (need) envolvem ficar
pronto para o baile e escolher mulheres.

1208
De uma maneira geral, a partir do recorte da orientação da narrati-
va em ambos os meios, impresso e fílmico, pode-se verificar que os as-
pectos ideacionais presentes nos modos verbais e visuais são habilmente
explorados para descontruir papeis de gênero fortemente atrelados aos
contos de fadas. Nesse sentido, Cinders executa tarefas domésticas, nor-
malmente atribuídas a mulheres- tal qual em Cinderela, mas isso não
exclui o desejo de ser forte e peludo como seus irmãos, ou seja, não há
exclusão de sua masculinidade em contraponto às tarefas que lhe são
conferidas. Além desse aspecto, o protagonista tem os sentimentos e
pensamentos expressos pelos processos mentais de “desejar” e “pensar”-
auxiliando na construção de um personagem sensível e empático− ca-
racterísticas ainda mais acentuadas no filme uma vez que o personagem
conversa com seu gato e, assim, expressa seus desejos. Os Irmãos, por
sua vez, são representados em função de sua forma física, sendo que a
versão fílmica acaba por construir personagens narcisistas e ainda mais
desagradáveis que os representados no livro, uma vez que há a exacer-
bação do corpo musculoso e a construção do “macho pegador” que
precisa decidir com qual das namoradas levará ao baile.
Finalmente, embora o presente estudo não tivesse tido por objetivo
enfocar todas as fases da narrativa, é importante destacar que a princesa
é agentiva, pois é ela quem desposa Cinders e o leva para morar em seu
castelo. Havendo, assim, uma clara mudança do padrão dos contos tra-
dicionais em que os príncipes costumam ser os donos dos castelos bem
como os responsáveis por desposar as princesas.

5. Conclusões
Ao analisar o contexto da situação e, mais especificamente, o cam-
po, buscamos salientar como uma importante implicação pedagógica a
necessidade de explorar esse elemento em um primeiro momento com
aprendizes, a fim de abordar os elementos intertextuais das obras. Assim,
os/as alunos e alunas podem trazer seus conhecimentos prévios a respei-
to de Cinderela para que os elementos básicos da narrativa e de suas ca-
racterísticas possam ser identificados e, de certa forma, comparados- já

1209
que a construção de um “Cinderelo” pode ser o aspecto que causa maior
estranheza, como também humor e leveza para promover a discussão de
papeis de gênero em sala de aula.
É importante destacar também que, apesar do caráter cômico
empregado pela autora e também usado no filme, a busca por pertencer
a algo, a algum grupo, a algum padrão físico, bem como a integração do
masculino e feminino (BETTELHEIM, 2010), mantem-se como o fio
condutor desse conto que, mesmo sendo escrito na década de oitenta,
continua atual. Dessa forma, concluímos enfatizando o relevante papel
dos contos de fadas, bem como de suas versões, para o caráter formador
de crianças e jovens como também a importância desses para uma abor-
dagem de ensino de línguas multimodal crítica.

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1211
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

“AQUI O MENINO USA SAIA MESMO?”: A


CIRCULAÇÃO DISCURSIVA DO FIM DO
BINARISMO DE GÊNERO NOS UNIFORMES
DE UMA ESCOLA

Victor Brandão Schultz (CPII)

RESUMO: Este trabalho analisa a circulação discursiva da portaria que


instituiu o fim do binarismo de gênero nos uniformes do Colégio Pedro II,
no Rio de Janeiro. Ele se baseia em uma visão performativa do gênero e da
sexualidade, que são compreendidos como efeitos discursivos de performances
que ocorrem no interior de matrizes de inteligibilidade e de estruturas de
regulação. Entende-se também que a circulação textual envolve processos
contínuos de entextualização e ressignificação. O estudo se insere em uma
concepção indisciplinar de linguística aplicada e faz uso dos construtos
teórico-analíticos de escala e indexicalidade. Utilizando uma abordagem
qualitativa, investiga-se a circulação discursiva da referida portaria dentro e
fora do Colégio, respectivamente, a partir de (1) entrevistas com servidores e
estudantes da instituição e (2) materiais jornalísticos. A análise chama atenção
para como, ao longo de suas trajetórias textuais, a Portaria é inserida em lógicas
escalares institucionais, pessoais e legais. Algumas valoram positivamente o
documento, que é visto como símbolo dos avanços históricos, culturais e
sociais da vida contemporânea, bem como resultado de práticas democráticas
de um colégio que percebe a educação como inserida em questões sociais mais
amplas. Outras, por sua vez, entextualizam discursos conservadores sobre
gênero e sexualidade e desarticulam a educação de seu contexto social.
PALAVRAS-CHAVE: gênero; uniforme escolar; trajetórias de textos; escala;
indexicalidade

ABSTRACT: This paper aims to analyze the discursive circulation of the


document that put an end to the gendered uniform division at Colégio Pedo
II, in Rio de Janeiro. It is based on a performative approach to gender and
sexuality, which are seen as discursive effects of performances that take place
within intelligibility matrices and regulatory structures. It is also believed
that text circulation involves continuous processes of entextualization and
resignification. This research is underpinned by an indisciplinary view of
applied linguistics and makes use of the theoretical-analytical constructs

1212
of scale and indexicality. Adopting a qualitative approach, it investigates
the internal and external circulation of the school document, respectively
analyzing (1) interviews with staff and students, and (2) news articles. The
analysis highlights how, along its text trajectories, the school document is
embedded within institutional, personal, and legal scales. Some actors value
it positively, regarding it as a symbol of the historical, cultural and social
advances in contemporary life, as well as a result of democratic practices on
the part of a school that understands education within the context of broader
social issues. Others, however, entextualize conservative discourses about
gender and sexuality, and extricate education from its social context.
KEYWORDS: gender; school uniform; text trajectories; scale; indexicality

1. Introdução
Vivemos em um momento de intensa produção discursiva e cir-
culação textual acerca de questões de gênero e sexualidade. Tanto no
Brasil quanto em outras partes do mundo, formas não-hegemônicas
de se viver têm circulado e ganhado visibilidade. Não surpreende que,
por outro lado, perceba-se também uma forte reação conservadora
(BULGARELLI, 2018), gerando fricção entre diferentes discursos em
competição na sociedade. Um exemplo disso foi o movimento Escola
sem Partido, que ganhou força a partir de 2014. Munido de argumen-
tos tecnocratas e em nome do combate a uma suposta doutrinação ide-
ológica nas escolas, o movimento fez circularem discursos de ódio aos
professores e, mesmo sem amparo legal, produziu perseguições e (auto)
censura (DIP, 2016; PENNA, 2017). Outro exemplo, que por sua vez
com frequência se articula a discursos baseados no Escola sem Partido,
é a “ideologia de gênero”. Esse slogan, que em seu uso conservador e
não-acadêmico se originou na Igreja Católica (JUNQUEIRA, 2017),
nessa acepção remete a “medos difusos de que as crianças aprenderiam a
ser gays e lésbicas em sala de aula e que os professores estariam tentando
destruir a família tradicional” (PENNA, 2016, p. 99). Esse discurso
enquadra como “ideologia de gênero” qualquer prática que questione
minimamente modelos tradicionais de gênero e sexualidade.

1213
Esse cenário transformou as escolas em palcos de fricção intensa e
conflitos visíveis. Um exemplo dessas fricções de diferentes discursos so-
bre gênero e sexualidade foi a polêmica iniciada quando, no final do ano
de 2016, o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, pôs fim à divisão biná-
ria do uniforme por gênero. Até essa data, a instituição federal fundada
em 1837 possuía dois uniformes: um masculino, com calça comprida
e camisa de botão, e outro feminino, com blusa com corte considerado
feminino e possibilidade de uso de saia em vez da calça comprida. Com
a nova portaria, as peças do uniforme permaneceram as mesmas, porém
deixaram de ser categorizadas por gênero. Assim, cada estudante passou
a poder utilizar quaisquer peças das que compunham o uniforme, inde-
pendentemente de gênero. Essa mudança foi amplamente noticiada e
discutida não só nos corredores do Colégio, mas também na mídia, nas
redes sociais e nas ruas. Até hoje, a comunidade escolar é questionada
pelo público externo sobre a possibilidade de os meninos trajarem saias
dentro da instituição.
Este artigo tem por objetivo analisar a circulação dessa portaria do
Colégio Pedro II, tanto dentro da instituição quanto na mídia. Na seção
a seguir, discuto as trajetórias textuais e o conceito de escala. Depois, na
seção 3, articulo a noção de escala a uma visão performativa do gênero e
da sexualidade. A análise do documento escolar é empreendida na seção
4. Na seção 5, teço minhas considerações finais.

2. Circulação textual e práticas escalares


Para compreender a circulação textual, é preciso levar em conta
dois pressupostos básicos. O primeiro é que ela sempre é, em algum
grau, imprevisível. Por mais que se tente controlar de antemão como
um texto circulará, nem sempre suas trajetórias seguirão os caminhos
previstos (BRIGGS, 2007). O discurso não se move linearmente de
uma origem fixa a um destino estanque; há um sem-número de variá-
veis que ampliam as possibilidades para a circulação, multiplicando e
complexificando as trajetórias dos textos.

1214
O segundo pressuposto é que a circulação textual não é uma mera
transposição de um objeto imutável. Como explica Blommaert (2009,
p. 567), “sempre que os discursos viajam pelo globo, o que é levado
com eles é sua forma, mas seu valor, significado ou função nem sempre
viajam junto a eles”. As trajetórias de textos envolvem, necessariamente,
práticas de entextualização. Bauman e Briggs (1990, p. 73) cunharam
esse termo para se referir ao “processo de tornar o discurso removível,
de transformar um trecho de produção linguística em uma unidade —
um texto — que possa ser retirada de seu contexto interacional. Um
texto, então, deste ponto de vista, é discurso tornado descontextualizá-
vel”. Trata-se de uma abordagem que valoriza o caráter processual dos
textos e de seus usos e apropriações. Cada vez que um texto é recon-
textualizado, seus sentidos são reconstruídos por “novos interlocutores,
com diferentes modos de interagir com os signos, com distintas his-
tórias de socialização, respondendo a demandas interacionais voláteis”
(FABRÍCIO, 2015, p. 71).
Um construto teórico-analítico que pode nos auxiliar a analisar as
trajetórias textuais é o de escala. Oriundo da geografia, o conceito de
escala originalmente dizia respeito a formas de ordenar a experiência
humana no espaço. Ao longo dos anos, essa concepção vem sendo com-
plexificada por diversos autores, entre os quais Carr e Lempert (2016),
que compreendem escala como uma atividade semiótica de perspectivi-
zação, com seus múltiplos processos não apenas de localização no tem-
po e no espaço, mas também de comparação, separação, classificação,
organização, hierarquização, institucionalização, repetição — processos
por meio dos quais construímos, por exemplo, noções de que determi-
nada coisa é parte de algo maior e distinto de outros elementos.
Os processos escalares se apoiam em um trabalho indexical248.
Primeiro, porque se orientam por ordens de indexicalidade, isto é, por
repertórios que norteiam a avaliação e a hierarquização das relações in-
dexicais (BLOMMAERT, 2005, p. 253). Segundo, o trabalho escalar

248
Por indexicalidade, entende-se a forma como os signos apontam para determina-
dos significados socialmente disponíveis (SILVERSTEIN, 2003).

1215
está ligado a uma ordem indexical. O conceito de ordem indexical,
cunhado por Silverstein (2003) e ampliado por Higgins (2007), se refe-
re a um repertório interpretativo das relativas estabilidades das relações
indexicais entre determinados signos e seus respectivos significados, que
se estabilizam e se tornam pressupostos a partir dos quais se formam
novos elos indexicais249. Graças a essas relativas estabilizações, atingidas
via repetição, uma saia é vista como apontando para uma identidade
feminina, à qual, por sua vez, associa-se indexicalmente uma série de
performances historicamente construídas e esperadas, como delicadeza,
emoção e fragilidade. Forma-se, assim, uma cadeia semântica social-
mente reconhecível e com algum grau de previsibilidade, a qual norteia
a interação dos sujeitos com os signos. A atividade escalar se apoia nes-
ses repertórios semânticos, que categorizam e valoram os signos — in-
clusive nossos corpos e nossas performances.
Além de nos auxiliar na análise das trajetórias textuais, o construto
de escala também pode contribuir para a reflexão sobre o gênero e a
sexualidade.

3. Modelos escalares de gênero e sexualidade


Em um texto clássico, Butler ([1990] 2016) analisa o gênero — e
esse raciocínio pode ser estendido a todas as categorias identitárias —
não como uma característica natural do ser humano mas como uma
performance. A filósofa argumenta que o gênero é algo que se faz coti-
dianamente em nossas práticas. Em outras palavras, o que dizemos e o
que fazemos com os nossos corpos repetidamente constroem performa-
tivamente as identidades que, no senso comum, estariam apenas expres-
sando; com a repetição, esses atos ganham aparência de solidez, sendo
gradualmente percebidos como o resultado de uma suposta essência.
Butler ressalta, porém, que essas performances não são aleatórias ou
desprovidas de condicionantes. Elas ocorrem no interior de estruturas
249
Os conceitos de ordem indexical e ordem de indexicalidade enfatizam aspectos
complementares e articulados da indexicalidade. Para uma discussão sobre dife-
rença entre os dois, ver Schultz (2020).

1216
reguladoras e só têm sentido graças às matrizes de inteligibilidade: reper-
tórios que nos orientam e fazem com que possamos dar sentido às per-
formances. A matriz hegemônica de inteligibilidade, que Butler ([1990]
2016, p. 258) chama de “matriz heterossexual”, por exemplo, “institui
como natural, normal e inquestionável a ligação linear e essencial entre
sexo biológico, gênero, desejo sexual e subjetividade” (BORBA, 2014,
p. 445). Assim, constitui-se uma ordem indexical que prevê que uma
pessoa nascida com um pênis se entenda como menino, encene perfor-
mances de masculinidade e se torne um adulto heterossexual; a relação
direta entre todos esses fatores é vista como algo natural.
A formação dessas matrizes de inteligibilidade só é possível graças a
um intenso trabalho escalar. Ele começa com a focalização em uma par-
te específica do corpo: a genitália da criança. Com base nessa genitália,
opera uma prática escalar de classificação: ao pênis equivale uma iden-
tidade masculina e, à vagina, uma feminina. A isso, seguem-se outras
tantas atividades de segmentação e categorização de senso comum: são
classificadas como “masculinas” ou “femininas” performances somáticas,
indumentária, interesses, profissões, papéis sociais, temperamentos etc.
Com a repetição e o atravessamento por relações de poder, essas
construções escalares se naturalizam, transformam-se em lógicas orien-
tadoras performativas, que podemos denominar lógicas ou modelos
escalares (cf. CARR; LEMPERT, 2016) — comumente chamadas de
matrizes de inteligibilidade na teorização queer. São esses modelos es-
calares que fazem com que certas roupas sejam comumente associadas
a determinado gênero. Essas relações nos mostram que o trabalho esca-
lar é também indexical. Nossas formas de falar, as coisas que dizemos,
nossas ações corporais e até mesmo nossas roupas são indexicalmente
associados a determinado gênero e a determinada sexualidade.
Quando uma escola tem uniformes fortemente ancorados em mo-
delos escalares de gênero tradicionais, a possibilidade de que as roupas
sejam, em alguma medida, tratadas de forma não-generificada naquele
espaço pode gerar estranhamentos. Passo, então, à discussão do caso do
Colégio Pedro II.

1217
4. Trajetórias textuais do documento escolar
O documento em questão, a Portaria Nº 2449/2016, assinada pelo
reitor da instituição, apresenta uma tabela com os itens do uniforme
escolar. Na versão anterior do documento, essa tabela (fig. 1) tinha as
primeiras linhas divididas em duas colunas: na primeira, era apresenta-
do o uniforme feminino, que trazia a saia como uniforme padrão para
as meninas a as calças compridas como opção alternativa; a segunda
coluna, com o uniforme masculino, apresentava um modelo diferente
de camisa e excluía a saia e a meia três-quartos para os meninos.

Figura 1: versão anterior da descrição do uniforme

Fonte: corpus da pesquisa

A Portaria Nº 2449/2016 mantém a tabela e os itens nela presentes,


apenas excluindo a separação por gênero, como se pode ver na figura 2.

Figura 2: nova descrição do uniforme

Fonte: corpus da pesquisa

1218
A seguir, discuto algumas entrevistas realizadas com membros da
comunidade escolar.

4.1 A circulação da Portaria na comunidade escolar


A sequência 1 a seguir mostra um trecho de uma entrevista realiza-
da com Alex250, servidor que atuava no setor do Colégio que elaborou a
Portaria Nº 2449/2016.

Sequência 1251

A fala de Alex contextualiza a Portaria Nº 2449/2016 em escalas


institucionais. Ele inicialmente localiza o documento no âmbito da
entextualização de um novo Código de Ética Discente (“Essas mu-
danças, elas começaram a ser discutidas / quando se estava reformu-
lando o Código de Ética Discente. Porque, a princípio, / as mudanças
no uniforme, elas ficaria:::m dentro do Código de Ética Discente”,
linhas 4-6).

250
Os nomes de todos os participantes da pesquisa foram substituídos por pseudô-
nimos.
251
Símbolos de transcrição: / caixa alta; // pausa longa; ::: alongamento silábico;
[...] trecho omitido; [ fala sobreposta; CAIXA ALTA tom de voz elevado; [ ]
observação do pesquisador.

1219
Alex projeta uma escala temporal de continuidade, recorrendo a
diversos descritores metapragmáticos no pretérito: “foram discutidas”
(10), “foram debatidas” (10), “haviam fazendo” (11), “estavam pedin-
do” (15). Essa temporalidade é reforçada por meio de vários alongamen-
tos silábicos, que contribuem para a construção de um sentido de longa
duração dos eventos citados: “te:::mpo” (6), “mu:::ito” (7), “passa:::r”
(7), “seto:::res” (8), “discuti:::das” (10), “enco:::ntros” (10). Os descrito-
res metapragmáticos são acompanhados por referências aos estudantes
da instituição: “os alunos” (10), “os estudantes” (15). Observa-se ainda,
na referência aos processos que precederam a publicação da Portaria, o
trecho “passa:::r por todos os seto:::res da comunidade escolar” (7-8),
que indexa práticas democráticas.
Esse conjunto de referências e descritores metapragmáticos articula
uma escala temporal que perspectiviza o CPII como uma instituição
democrática. Isso implica que, no relato de Alex, não se tratou de uma
decisão súbita ou arbitrária dos gestores da instituição. Ao contrário,
a mudança foi fruto de um longo processo democrático, no qual dife-
rentes segmentos da comunidade escolar tiveram voz, inclusive os pró-
prios alunos. Nas outras entrevistas realizadas ao longo da pesquisa, há
tanto falas semelhantes à de Alex, que compreendem a Portaria como
a culminância de discussões envolvendo a comunidade escolar, quanto
relatos de servidores que se viram surpreendidos pela publicação do do-
cumento, não tendo qualquer conhecimento prévio sobre esse processo.
Outro elemento que compõe a escala temporal é a afirmação de
que “muita coisa do uniforme tradicional se manteve” (16-17); segun-
do Alex, as alterações no uniforme previstas na Portaria “não fora:::m /
mudanças TÃO significativas assim” (15-16). Essa projeção escalar de
continuidade, articulada à narrativa de um longo processo democrático
envolvendo os/as estudantes, pode ser compreendida como um movi-
mento que Carr e Fisher (2016, p. 135) denominam desescalonamento
(de-escalation no original, em inglês), que consiste em “desintensificar”
o fenômeno “forjando conexões explícitas entre os sentidos humanos e
aquilo que a atividade escalar construiu como aterrador e alienígena”.

1220
Em outras palavras, trata-se de uma prática escalar que aproxima o fe-
nômeno do âmbito da normalidade, possibilitando a compreensão e o
estabelecimento de relações. Desse modo, Alex constrói o fim do uni-
forme binário, que muitos consideraram peculiar ou mesmo escandalo-
so, como algo menor, como ajustes pouco significativos diante de todos
os signos indumentários mantidos sem alterações. A ênfase na continui-
dade é uma estratégia de desescalonamento recorrente nas entrevistas.
Gostaria de discutir agora dois relatos sobre o teor do documento
e seus efeitos. Primeiramente, na sequência 2, apresento um trecho de
uma entrevista realizada com um grupo de servidoras lotadas na secre-
taria de um dos campi do Colégio.

Sequência 2

Na sequência 2, ao falar sobre os primeiros dias após o início da


circulação da Portaria Nº 2449/2016, Iva e Laura projetam um con-
traste entre dois tipos de uso da saia do uniforme. De um lado, situa-se
o que elas dizem ter efetivamente observado no campus onde traba-
lham. Elas fazem referência a alunos que entram no Colégio vestindo
calças compridas e, uma vez dentro do campus, trocam essa peça por
saia. Essa atitude é valorada negativamente, como indicam as referên-
cias “CARNAVAL” (2) e “BRINCADEIRA” (10). A ênfase dada ao
pronunciar as palavras “carnaval” e “brincadeira” também é indicati-
va de seu grande descontentamento. Laura menciona ter presenciado
um aluno, em tom de deboche, ameaçar usar saia, dirigindo-se a um

1221
servidor do campus. Ela cita a fala desse aluno, estilizando a voz em tom
de zombaria insolente: “Vou usar SAIA, hein! Vou usar saia” (13). Em
seguida, a servidora explica essa citação da fala do estudante, usando a
descrição metapragmática “tô te ameaçando” (14) para indicar o que,
na interpretação dela, esse aluno efetivamente fez.
Em contraste com esse tipo de uso da saia, Laura e Iva categorizam
os usos supostamente sérios e verdadeiros desse signo. Iva realiza essa pro-
jeção escalar ao utilizar os itens lexicais “REALMENTE” (3), “SÉRIO”
(6) e “SÉRIA” (7). A ênfase que ela usa ao pronunciar essas palavras se
repete ao citar a fala de um aluno hipotético em “QUEro uSAR” (4)
e “ME IDENTIFICO” (6), contribuindo para projetar um sentido de
seriedade. A servidora também cita o que diria a um aluno que quisesse
usar saia no Colégio: “Vem LÁ de FOra // já vestido assim” (6).
Para acentuar o contraste com os usos considerados jocosos, Laura
fornece exemplos do que seriam performances genuínas de transgene-
ridade. Ela faz referência a “demandas / REAIS / no Colégio, // tanto
quanto a nome social quanto à identificação do sexo::: que não o do
biológico” (10-11). A ênfase na predicação “REAIS” salienta o contras-
te dessas performances com aquelas consideradas brincadeiras252.
A esse respeito, Butler (2004, p. 214) nos lembra que

quando uma performance de gênero é considerada real e outra,


falsa, ou quando uma apresentação do gênero é considerada au-
têntica e outra, uma farsa, então podemos concluir que certa
ontologia de gênero está condicionando esses julgamentos.

Neste caso específico, a exigência de que os alunos usem a saia em


todos os contextos, em vez de vestirem a peça somente após adentrar
o Colégio, remete a perspectivas sobre o gênero que preveem a repeti-
ção de performances homogêneas pelo tempo e pelo espaço. Segundo
essa visão, baseada em discursos essencialistas, a identidade de gênero
— assim como a sexualidade — seria uma característica imutável dos
252
Para uma discussão sobre a noção de transgeneridade verdadeira, ver Borba
(2014).

1222
indivíduos; consequentemente, estes deveriam expressá-la em todos os
contextos. No caso em questão, isso significa que uma vontade genuína
de usar saia seria a expressão de uma identidade feminina interior. Não
faria sentido, portanto, fazer questão de usar saia em um contexto (den-
tro da escola) mas se recursar a fazê-lo em qualquer outro, isto é, a sair
de casa já vestindo saia para ir ao Colégio.
Uma vez que as performances de gênero se dão sob a vigilância de
matrizes reguladoras, a quebra dessa congruência transcontextual ativa
mecanismos disciplinares que atuam na sustentação desses modelos es-
calares. Tais mecanismos funcionam de modo interescalar, tomando di-
ferentes formas. Em uma escala institucional, pode concretizar-se, por
exemplo, em um diretor ou inspetor respondendo que o aluno pode
ir de saia desde que vá de casa; em uma escala pessoal, pode gerar in-
satisfação por parte de outros membros da comunidade escolar, que
interpretam essa atitude como uma brincadeira e, portanto, como algo
inapropriado.
Isso não significa, obviamente, que a substituição de calças por
saias como forma deliberada de brincadeira não tenha de fato ocorrido.
São recorrentes nos dados tanto o incômodo com os alunos entrarem
no Colégio de calças e lá trocarem por saias quanto a insatisfação com
o uso de saias como brincadeira. Mesmo os alunos entrevistados cita-
ram esses acontecimentos, embora sem valoração negativa. Por outro
lado, na própria entrevista da qual foi extraída a sequência 2, em outro
momento uma das participantes pondera que o risco de violência no
transporte público e na rua a caminho do Colégio pode ser um fator
para que alguns desses estudantes optem por vestir a saia somente no
interior do campus.
A seguir, apresento um trecho de outra entrevista, no qual um estu-
dante transgênero da instituição fala sobre a importância dessa portaria.

1223
Sequência 3

Na sequência 3, Renato contrasta o que as novas possibilidades de


uso do uniforme representaram para a maioria dos estudantes com o
que a Portaria e sua circulação significaram para os estudantes transgê-
nero. Contrariando os movimentos de desescalonamento como o ana-
lisado na sequência 1, Renato classifica positivamente o documento,
situando-o no alto de uma escala de importância. Isso se manifesta na
repetição do item lexical “importante”, como podemos observar nas
predicações “importante” (1), “muito importante” (1, 2, 3, 18-19, 20)
e “super importante” (21). O rapaz usa ainda as interjeições “caraca”
(3), “meu Deus” (20) e “caramba” (21), que intensificam sua avaliação.
No final desta sequência, Renato ainda cita o que pensou na oca-
sião, construindo a Portaria como um marco em uma escala temporal
ao se referir a sua publicação como “um momento super importante”
(21). Esse acontecimento, na projeção escalar de Renato, não foi algo
súbito, mas sim uma mudança aguardada por um longo período: “eu
esperei muito por isso acontecer” (21), diz ele.
Essa atribuição de grande importância indica uma ordem de in-
dexicalidade inovadora em comparação com ordens tradicionais, que
valoram negativamente performances transgênero e indumentárias em
desacordo com a ordem indexical hegemônica. Essa ordem de indexi-
calidade é também um pouco diferente daquela que orienta os colegas
citados por Renato: embora ambas valorem positivamente a Portaria do
CPII e seus efeitos, a ordem projetada por Renato atribui um destaque
muito maior à nova realidade.
A importância da Portaria para os estudantes trans também é in-
serida por Renato em uma escala pessoal de prazer. Ele se refere à con-
sequência desse documento com a expressão “me sentir bem” (6). Esse

1224
bem-estar pessoal, contudo, é relacionado à performatividade de gêne-
ro quando ele se refere à possibilidade de “ser reconhecido assim” (6).
Trata-se, então, de tornar inteligíveis e legitimar as performances de
gênero dos estudantes trans.
De todo modo, por quebrar um tabu, ou seja, desviar-se de um
modelo escalar naturalizado, a Portaria Nº 2449/2016 não ficou restrita
aos fóruns institucionais. Rapidamente, ela se alastrou pelos noticiários,
que discuto a seguir.

4.2 Trajetórias midiáticas


Na sequência a seguir, listo as manchetes e chamadas de algumas
publicações midiáticas sobre a Portaria do Colégio Pedro II.

(1) Colégio Pedro II extingue distinção de uniforme escolar


por gênero
Medida foi elogiada por alunos nas redes sociais. Escola foi a pri-
meira a permitir o uso do nome social por travestis e transexuais
-O Dia, 19/9/2016
(2) Colégio tradicional do Rio, Pedro II libera uso de saias
para meninos
-Huffington Post, 20/9/2016
(3) Colégio Pedro II, no Rio, libera saia para meninos
-Estadão, 14/9/2016
(4) Ideologia de Gênero na prática: Agora saia é uniforme
de menino no Colégio Pedro II
-Raciocínio Cristão, 21/9/2016
(5) Pais realizam protesto contra uso de saia por alunos do
Colégio Pedro II
Manifestação marcada para este sábado em Copacabana critica
a decisão da reitoria de acabar com a distinção de uniformes
para alunos e alunas
-O Dia, 29/9/2016

Um dado que chama atenção nessas manchetes é que, em várias


delas (2, 3, 4 e 5), a Portaria Nº 2449/2016 é reentextualizada sim-
plesmente como uma autorização para que meninos usem saias. As

1225
múltiplas referências ao uso de saias não são por acaso. A tematização
do uso da saia por meninos está relacionada a valores indexicais dessa
peça de roupa. Sendo majoritariamente considerada um índice de fe-
minilidade (e, quando usada por homens, de homossexualidade), sua
possibilidade de uso por qualquer membro do corpo discente abala as
ordens indexical e de indexicalidade vigentes: ela abre espaço para que
esse signo deixe de ser interpretado necessariamente como um índice
de feminilidade e, ao mesmo tempo, a validação institucional das per-
formances de meninos que optem por vestir saias atua na construção
de uma ordem de indexicalidade alternativa. Esses abalos indexicais re-
presentam uma ameaça aos modelos escalares de gênero hegemônicos,
pois afetam as práticas de segmentação e classificação que sustentam as
condições de performatividade.
Gostaria de me deter sobre certos detalhes de algumas dessas man-
chetes. Na manchete (2), ao descrever o Pedro II como um “colégio
tradicional”, constrói-se uma escala temporal na qual se valorizam o
passado e sua influência sobre o presente. O fato de essa tradição ser ci-
tada sugere uma entextualização da Portaria Nº 2449/2016 como uma
ruptura escalar, de modo que o futuro projetado pelo texto seria inespe-
rado tendo em vista o passado-presente da instituição.
O texto (4) entextualiza o discurso da “ideologia de gênero”. Ao
entextualizá-lo, o autor desse texto opera uma prática escalar que situa
a Portaria Nº 2449/2016 para além do CPII ou mesmo dos uniformes
escolares. Por essa ótica, a Portaria estaria inserida em um conjunto de
práticas, espalhadas pelo espaço social e em efervescência na contempo-
raneidade, comprometidas com objetivos políticos mais amplos e ma-
léficos. A associação entre a Portaria e a suposta “ideologia de gênero”
aponta para uma ordem de indexicalidade que deslegitima qualquer
prática social de reconhecimento ou de valorização da diversidade se-
xual e de gênero, bem como de problematização de modelos escalares
patriarcais.
A manchete (5) noticia um fato resultante da publicação da
Portaria Nº 2449/2016: um protesto contra a medida organizado por

1226
responsáveis por estudantes da instituição. Ao citar os grupos organiza-
dores e apoiadores do ato, o corpo do texto menciona os grupos conser-
vadores Endireita Brasil, Brava Gente e Mães pelo Escola Sem Partido.
Essa informação já projeta uma escala que contextualiza o aconteci-
mento em uma sucessão de discursos e acontecimentos semelhantes:
os três grupos têm notório alinhamento a discursos e posições políticas
conservadores, que incluem a oposição aos movimentos feministas e a
pautas LGBTQIA+, bem como a defesa de se proibir a abordagem de
questões de gênero e sexualidade na educação básica. Observando as
continuidades e as repetições, vemos nesse protesto, então, mais uma
iteração dos discursos típicos desses grupos, cujas práticas se orientam
por ordens indexicais e de indexicalidade extremamente essencializadas.
Entre essas continuidades, está a inserção da questão dos uniformes
na categoria mais ampla da “ideologia de gênero”:

(i) O problema não é a saia. É a ideologia de gênero que está


sendo enfiada goela abaixo dos alunos e dos pais sem que tenha
havido discussão sobre isso.

Observe-se ainda que, no trecho citado, a descrição metapragmáti-


ca “está sendo enfiada goela abaixo” projeta uma escala hierárquica al-
tamente rígida e violenta, na qual a administração do Colégio ocuparia
uma posição de autoridade e teria imposto a mudança com violência,
sem qualquer diálogo com ou possibilidade de reação por parte do res-
tante da comunidade escolar.
Após as falas das mães, o texto (5) narra:

(ii) O fim da distinção de uniformes começou a ser discutido no


Pedro II em 2014, quando um aluno foi obrigado a tirar a saia
que usava. Estudantes fizeram um “saiato” em defesa do colega.
Foram à escola de saia.

Ao remeter a Portaria Nº 2449/2016 ao ano de 2014 e ao citar


uma manifestação em que alunos foram ao Colégio de saia, a repor-
tagem projeta uma escala temporal na qual a Portaria foi apenas a

1227
culminância (ou uma nova iteração) de diferentes acontecimentos e de
uma discussão que se estendeu ao longo de dois anos, tal como descrito
pelo servidor Alex na sequência 1. O fato de o ponto de partida apre-
sentado ser uma manifestação de estudantes se opõe à classificação da
medida como autoritária no trecho (i), uma vez que a instituição teria
se colocado a escutar e a discutir sobre uma questão levantada pelos
próprios alunos.

Considerações finais
Em setembro de 2016, a reitoria do Colégio Pedro II, no Rio de
Janeiro, emitiu uma portaria atualizando normas para seu corpo discen-
te. Entre as alterações, estava a abolição da divisão do uniforme escolar
por gênero. Essa inovação institucional teve grande repercussão, geran-
do longas trajetórias para o texto do documento.
Nas entrevistas realizadas com servidores e estudantes do Colégio,
observei duas compreensões principais da entextualização da Portaria.
A primeira delas, presente no discurso de Alex, apresenta o documento
como a culminância de um amplo e democrático processo de rediscus-
são das normas institucionais. Esse trabalho escalar de mitigação de hie-
rarquias constrói Pedro II como uma instituição democrática, marcada
pelo diálogo entre gestores/as e comunidade escolar. Na circulação mi-
diática da Portaria, observam-se duas perspectivas. A primeira coincide
com o discurso institucional do Colégio, enquanto a segunda projeta
uma escala autoritária na qual a Reitoria, de forma autocrática, teria
decidido pela extinção do uniforme binário — em alguns casos, fala-se
até na imposição do uso de saias por meninos.
Quanto ao teor do documento, a análise da circulação interna da
Portaria assinala projeções escalares que o inserem em uma série de flu-
xos discursivos mais amplos, entextualizando uma ordem indexical que
relaciona educação, gênero e sociedade; a nova norma é tratada como
uma forma de respeito à diversidade. Já na circulação midiática, nota-se
uma grande fricção entre essa perspectiva e movimentos escalares que
isolam a escola de discussões mais amplas sobre gênero e sexualidade,

1228
estas apresentadas como inadequadas ao ambiente escolar, entextuali-
zando-se também o discurso da “ideologia de gênero”.
Mas por que o uso de saias é tão importante? Para estudantes
transexuais e discentes de gênero não-binário, a não-diferenciação dos
uniformes por gênero representa o fim da imposição de roupas que
indexam significados sobre um gênero com o qual os sujeitos não se
identificam, o que é em si uma forma de violência. Significa ainda um
reconhecimento de sua existência.
Mais do que isso trata-se de uma inovação que pode comprometer
toda uma lógica norteadora. A medida do Colégio Pedro II mostra o
caráter mutável das ordens indexicais e a consequente possibilidade de
novas indexicalidades.
Está em jogo, então, a sobrevivência de um sistema semiótico biná-
rio que naturaliza os gêneros e reifica um modelo escalar que sustenta
a ordem moral vigente e produz sofrimento humano. Nesse sentido,
embora seja impossível aquilatar a profundidade das ressignificações
produzidas pela portaria do CPII, ela certamente suscitou questiona-
mentos de compreensões extremamente calcificadas sobre gênero, sexu-
alidade e suas imbricações.

Referências
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1230
LINGUÍSTICA APLICADA NA CONTEMPORANEIDADE - Anais do 13º CBLA

O POTENCIAL DOS JOGOS ELETRÔNICOS


COMO RECURSO PARA ENSINO E
APRENDIZAGEM

Victor Ernesto Silveira Silva, IFbaiano/UFS

RESUMO: A utilização de mídias audiovisuais como recurso para ensino e


aprendizado de línguas é quase que mandatória, visto que a prática linguística
demanda processos complexos como falar, ouvir, ler e escrever. Essas habilidades,
no entanto, podem se desenvolver melhor quando contextualizadas, independente
dos objetivos do aprendizado da língua, por esta razão o aprendizado de língua
se enquadra no que Gee (2003) chama de aprendizado situado, baseando-se
no estudo do que ele chama de good video games, ou seja, videogames que são
capazes de expressar princípios de ensino e aprendizado. Assim, o presente artigo
tem como objetivo apresentar um delineamento de uma estrutura de análise de
videogames com base nos estudos de gramática da multimodalidade de Cope e
Kalantzis (2020), a fim de auxiliar professores e estudantes na assimilação do
videogame como mídia que, no mesmo patamar de mídias tradicionais como
filmes e livros, também podem proporcionar a expressão de sentidos e práticas
sociais que simulam/retratam ou idealizam a realidade, ajudando assim a situar/
contextualizar o processo de ensino e aprendizado de línguas. O presente trabalho
caracteriza-se como pesquisa bibliográfica de caráter qualitativo que delineou
uma convergência entre os trabalhos de Kress e Van Leeuwen (2001) e Cope
e Kalantzis (2020) que discutem a multimodalidade, bem como Tomaszewska
(2016) e Yenawine (2017) que tratam de letramento visual. Tal convergência
resultou em um framework baseado na proposta de gramática multimodal
de Cope e Kalantzis (2020), o que significa que os estudos recentes sobre
multimodalidade estão ligados a diversidade de letramentos necessários para
fazer e interpretar sentidos em mídias multimodais. O framework aqui delineado
pode expandir a experiência com os jogos para além do entretenimento e ajudar
estudantes e professores a encontrar, avaliar, interpretar e usar sentidos expressos
em um videogame.
PALAVRAS-CHAVE: videogame, educação, multimodalidade, letramentos,
línguas.

ABSTRACT: Since practicing languages demands complex processes such as


speaking, listening, reading and writing, in teaching languages, the use of

1231
audiovisual media is almost mandatory. However, disregarding the objective
of the language learning linguistic abilities can be better developed when
contextualized; thus, language learning configures what Gee (2003) calls
situated learning. This concept is based on a study about good video games
from which Gee (2003) extracts updated learning principles. Inspired by Gee’s
ideas, this article aims to design a framework for analyzing video games in order
to help teacher and students to contemplate video game as media that provide
expression of meaning and social practices and also as a simulation/portrait
of idealized (or not) realities. As multimodal media, video games can help
to situate and contextualize the teaching and learning namely of languages.
This scientific work is a qualitative research based on a bibliographic inquiry
which sought for the convergence among multimodality theories by Kress
and van Leeuwen (2001) and Cope and Kalantzis (2020) and visual literacy
approaches such as Yenawine (2017) and Tomaszewska (2016) in order to find
a common way to analyze the meanings in a video game. The convergence of
the approaches listed resulted in a framework based on Multimodal Grammar
built by Cope and Kalantzis (2020). This means that the recent studies on
multimodality are also connected to the diversity of the literacies needed
to make meaning and interpret meaning from multimodal media such as
video games. The framework can expand the experience with video games
far beyond the fun and entertainment and help teacher and students to find,
evaluate, interpret and use the meaning expressed in an electronic game.
KEYWORDS: video game, education, multimodality, literacy, languages.

1. Introdução
Na contramão das opiniões tradicionais que rechaçam a prática do
jogo eletrônico, Gilbert (2021) aponta que dois entre cinco indivíduos
no mundo jogam videogames; isso equivale a 2,69 bilhões de pessoas.
Esse mesmo autor constata que as pessoas jogam cerca de 7h por sema-
na, ou seja, quase uma hora por dia. A conclusão óbvia é que o jogo ele-
trônico é hoje parte da vida das pessoas. Com efeito, Zagal e Bruckman
(2008, s/p) acreditam que os jogos estão “inegavelmente afetando nossa
cultura, o modo como nos socializamos e comunicamos, e como en-
xergamos o mundo”. Assim, também é inegável a necessidade de um
olhar minucioso para o videogame enquanto “artefato cultural” (LIMA,

1232
2014), visto que o jogo não só representa os contextos sócio-históricos
de sua criação, mas molda e influencia formas de interação humana.
Muitos jogos eletrônicos são lançados apostando em ideias inova-
doras que, de alguma forma, representam a materialidade da vida em
sociedade. Por serem obras da mente humana, jogos poderiam ser fa-
cilmente classificados como “criações imaginárias” fundamentadas em
situações idealizadas ou irreais que mais afastam as pessoas da crueza
do mundo real do que as preparam para a vida. Será? Ian Bogost já
havia sinalizado que existe um discurso preconceituoso e infundado de
que “os videogames não possuem nenhuma função social ou cultural,
a não ser a distração, ou para a baixeza moral, na pior das hipóteses”
(BOGOST, 2007, p. VIII). Aparentemente, os discursos depreciativos
que desqualificam o videogame podem estar baseados não só no desco-
nhecimento sobre jogos eletrônicos e sua concepção criativa, mas tam-
bém na existência de crenças arraigadas sobre a pretensa “imaturidade
cultural” inerente aos jogos. Evidencia-se, na verdade, a marginalização
de um produto da ação humana que, massificado comercialmente, pa-
rece não impactar na vida dos milhares de jogadores ou gamers ao redor
do mundo. Talvez fosse mais fácil considerar essa inocuidade dos jo-
gos eletrônicos, a despeito da ideia de que uma mídia audiovisual com
grande apelo persuasivo (BOGOST, 2007) pudesse provocar muito
mais do que o prazer da distração. Tanto o cinema quanto as histórias
em quadrinhos trilharam o mesmo árduo caminho para serem, hoje,
aceitos e merecedores do escrutínio da ciência; aliás, foi além: ganharam
status de manifestação artística.
Devido a essa adesão massiva ao videogame, especialmente entre os
jovens, a sua ubiquidade não pode ser ignorada, muito menos seu im-
pacto em aspectos importantes para o desenvolvimento da sociedade,
como a educação. É partindo dessas ideias que este trabalho se propõe
a conceber formas de análise de videogames como recursos mediadores
de processos de ensino e aprendizagem e, assim, fornecer aos docentes
um instrumento metodológico para incentivar os estudantes a com-
preenderem os sentidos presentes nos jogos, para além do que é visível.

1233
Esta é uma pesquisa de caráter bibliográfico na qual reuniremos as mais
recentes teorias sobre letramento visual, expressão de sentidos e multi-
modalidade, para construir uma relação entre o videogame e sua capa-
cidade implícita ou explícita de retratar a sociedade em seus aspectos
artísticos, culturais, sociais, políticos e científicos.

2. O que é multimodalidade, afinal?


A proposta deste artigo alia-se a uma preocupação demonstrada
por Wasilewska (2017), segundo a qual os professores da atualidade
precisam lidar com uma geração com características sem precedentes.
Para ela, embora essa geração tenha sido denominada por vários títulos
(geração Z, nativos digitais ou, até mesmo, “geração selfie”), o que há de
marcante é a mudança pictórica, ou seja, a grande valorização da imagem
visual, o que tem conferido enorme poder à multimodalidade. Assim,
levando-se em consideração que muitas instituições de ensino ainda
estejam enraizadas em filosofias pedagógicas tradicionais, Wasilewska
(2017) acredita que a educação precisa estar ciente de seu papel na pre-
paração dos estudantes para esse mundo visual. Concordamos com o
posicionamento da autora, todavia adicionamos uma ressalva: o mun-
do, hoje, não se expressa massivamente de forma visual, ele representa e
é representado de forma multimodal.
Esta perspectiva, no entanto, já havia sido aventada por Serafini
(2012) quando o cientista sinalizou que os professores precisariam de
suporte pedagógico para auxiliar os estudantes em suas transações com
textos multimodais. É justamente nessa ideia de “multi”, tão caracterís-
tica do século XXI, que temos o espraiamento da diferenciação e da di-
versidade (COPE; KALANTZIS, 2020). De fato, as concepções “mul-
ti” estão em voga ultimamente (multimodalidade, multiculturalismo,
multiletramento, diversidade de gênero e orientação sexual etc.). De
acordo com Cope e Kalantzis (2020), até os anos 1990 as ideologias do-
minantes pregavam a homogeneização e assimilação de práticas sociais;
no momento atual, entretanto, reina a perspectiva da diferenciação,
isto é, procura-se ao máximo demarcar as diferenças. Talvez este fosse

1234
um movimento esperado, visto que o mundo pós-moderno é palco de
uma multiplicidade de canais de comunicação provocados pelos avan-
ços tecnológicos e midiáticos que potencializaram o que Cazden et al.
(2021) chamam de multiplicidade de textos. É essa “multiplicidade de
textos” que tem exigido da educação o que New London Group nomeou
de multiletramento (CAZDEN et al., 2021). Este conceito baseia-se,
de forma sumária, na ideia de que a geopolítica global mudou, e con-
sequentemente o papel da escola também. A diversidade linguística e
cultural é hoje uma questão central, e, como decorrência, o significado
do que é o letramento também mudou (CAZDEN et al., 1996), ou
seja, a educação precisa se mover do foco monomodal, homogeneizante
e assimilador (SERAFINI, 2012). Desta forma, Serafini (2012) assevera
que, no contexto atual, a monomodalidade não se sustenta, visto que
a “multiplicidade de textos” envolve uma multiplicidade de formas de
expressão, ou seja: a multimodalidade.
Os estudiosos da contemporaneidade, especialmente de 1990 até
os dias atuais, têm considerado a multimodalidade como um aspecto
essencial na produção de sentidos, isto porque, como afirmam Kress
e Van Leeuwen (2001), a chamada era digital equalizou os modos ao
mesmo nível de representação. De fato, a multimodalidade não é um
fenômeno novo, mas foi com os avanços tecnológicos e midiáticos que
os diversos modos de criação de sentidos superaram a soberania da mo-
nomodalidade. Neste momento, vale perguntar: qual modo é privile-
giado no foco monomodal?
Kress e Van Leeuwen definem o “modo” como “convenções produ-
zidas por meio de ação cultural” (KRESS; VAN LEEUWEN, 2001, p.
28). Para eles, os modos permitem a realização de discursos (isto é, ex-
pressar sentidos), todavia, por ser uma abstração, o modo manifesta-se
materialmente em uma mídia, por exemplo: um sentido planejado para
ser expresso no modo “imagem visual” pode ser materializado em uma
pintura a óleo. Embora as pessoas se maravilhem com as particularidades
dos diferentes modos: música, dança, fotografia etc., é a língua e o texto
escrito que detêm certo privilégio quando se pensa em representação

1235
de sentidos e comunicação. Obviamente existem razões históricas que
fundamentam essa preferência pela língua, mas Kress e Van Leeuwen
apontam, acertadamente, que “a prática comunicativa consiste em es-
colher os modos de realização que sejam aptos para os propósitos, au-
diências e ocasiões específicas” (KRESS; VAN LEEUWEN, 2001, p.
30), o que reforça a conclusão dos autores: “(...) nós duvidamos que a
língua seja o modo mais efetivo em todas as circunstâncias” (KRESS;
VAN LEEUWEN, 2001, p. 29). De fato, os indivíduos recorrem a di-
versos modos quando necessitam se expressar, quer seja para reforçar os
sentidos, quer seja para complementá-los. Por exemplo: é praticamente
impossível imaginar uma conversa entre duas pessoas sem a linguagem
corporal/gestual, a influência do espaço e a expressão oral. Todos esses
modos se combinam para que os sentidos representados sejam expressos
de acordo com os interesses dos indivíduos envolvidos. Nesse exemplo
simples, percebemos a multimodalidade reinante: uma conversa nunca
é apenas “fala”, ela envolve corpo e espaço. Para Kress e Van Leeuwen
(2001), o uso de vários tipos de modos semióticos (no exemplo ante-
rior, temos fala, gesto, espaço e corpo) na construção de um produto ou
evento semiótico (por exemplo, uma conversa entre duas pessoas sobre
um determinado assunto) é o que define a “multimodalidade”.
Por outro lado, Cope e Kalantzis (2020) definem a multimoda-
lidade como: sentidos que são renderizados em mais de uma forma
de sentido e motivados por funções de sentido compartilhadas. Estes
autores listam sete formas (texto, imagem, espaço, objeto, corpo, som e
fala) e cinco funções de sentido (referência, agência, estrutura, contexto
e interesse).
Cope e Kalantzis (2020) explicam o movimento dos sentidos entre
as formas, por meio da transposição, isto é, os sentidos movimentam-se
entre as formas reforçando, complementando ou até mesmo hierarqui-
zando significações. Assim, quando dizemos “Não!” com voz alta, ba-
lançamos a cabeça e erguemos o dedo, estamos transpondo o sentido
da negação entre três formas: a fala (dizer “não” expressa a ideia da ne-
gação), o som (a voz alta expressa veemência ou autoridade e reforça a

1236
negação) e o corpo (mover a cabeça e erguer o dedo reforça o sentido da
negação, demonstrando, talvez, a irreversibilidade da negativa). Se na
forma “som” a voz não se elevasse, seria possível ter outra compreensão
da negação. Este exemplo retrata como a multimodalidade é essencial
para a comunicação do dia a dia, mas, na era digital, ela se tornou a regra
na produção de artefatos midiáticos, por exemplo: a profusão de “me-
mes” nas redes sociais, a praticidade dos infográficos nas revistas eletrô-
nicas e a fascinação dos vídeos musicais desde o YouTube, o Instagram
até o TikTok. Esses produtos midiáticos evidenciam fortemente o uso
nos quais os sentidos são colocados, (COPE; KALANTZIS, 2020), ou
seja, a relação com a função do sentido. Para os autores, no entanto,
qualquer sentido produzido engloba todas as funções, podendo haver
uma possível atenção maior a uma ou outra função.
A proposta ousada, porém robusta, de Cope e Kalantzis (2020)
para tratar da multimodalidade é de extrema importância para a discus-
são aqui proposta. É partindo da concepção teórica desses autores que
propomos um olhar minucioso para a multimodalidade dos videoga-
mes e seus sentidos.

3. Letramento visual e videogames


Não é preciso ser um especialista em videogames para caracterizá-
-los como artefato ou mídia multimodal. Levando-se em consideração
toda nossa discussão sobre o tema no item anterior, o videogame ou jogo
eletrônico, desde seu design até a sua distribuição, trilha uma trajetória
multimodal. Isto se considerarmos apenas a mídia em si, já que o pano-
rama se torna ainda mais complexo quando compreendemos também
o encontro do videogame com o jogador, ou seja, o momento em que
a mídia, materializadora dos sentidos, é interpretada por um indivíduo
historicamente e socioculturalmente construído. Esse encontro — que
Cope e Kalantzis (2020) definem como comunicação — retoma a aten-
ção a todas as formas e funções de sentido evocadas na materialização
do videogame. Entretanto, o que sabemos sobre essa mídia? Mais es-
pecificamente, o que sabemos sobre sua possível relação com a ciência?

1237
Os videogames têm se tornado objeto de estudo de forma gradativa
nos últimos anos, embora permaneçam discursos que os caracterizam
como cultura de menor valor (BACALJA, 2018). O interesse emergen-
te nos jogos justifica-se por conta de sua massificação e grande apelo
comercial, o que tem incentivado estudiosos a analisar esse fenômeno
e suas consequências, especialmente para educação formal (BACALJA,
2018). A relação entre videogames e educação, contudo, nem sempre
foi harmoniosa, isso porque, como já foi mencionado neste texto, para
a maioria das pessoas os videogames não possuíam utilidade social. Um
dos estudiosos que enveredaram na tarefa de explorar as possibilidades
dos jogos eletrônicos para a educação foi James Paul Gee.
Gee (2008) acredita na compatibilidade entre a construção do co-
nhecimento científico no mundo real e a forma pela qual os jogos si-
mulam realidades nas quais os jogadores precisam desenvolver e utilizar
conhecimentos. O autor percebe os jogos como mundos nos quais as
variáveis interagem historicamente. Quando comparados com o am-
biente de aprendizado formal ou em uma simulação científica, os jogos
conduzem a uma experiência imersiva. Com efeito, se na escola, mui-
tas vezes, o estudante observa e aprende como um espectador, em um
jogo, o jogador é parte do mundo virtual, aprendendo e desenvolvendo
habilidades enquanto interage com o mundo simulado (GEE, 2008, p.
199). Percebe-se que o autor aponta para o afloramento de um novo es-
paço de aprendizado, cujas potencialidades têm sido pouco exploradas.
Bogost (2007) corrobora esta ideia ao destacar a capacidade expressiva
dos videogames e como eles exemplificam o funcionamento de ambos
os mundos: virtual e real.
Gee (2008) compara a maneira pela qual a ciência utiliza simu-
lações para compreender fenômenos naturais com as simulações do
mundo dos videogames, a fim de demonstrar como o jogo eletrônico
funciona analogamente a ambientes formais de aprendizado tradicio-
nais. No entanto, para o autor, é preciso levar em consideração como os
jogos funcionam, desenvolvem uma retórica e constroem as narrativas
que incentivam o aprendizado. Vale ressaltar que Gee (2008) menciona

1238
apenas a potencialidade do jogo para o aprendizado, contudo o autor
não sinaliza quais conhecimentos estão envolvidos nesse aprendizado.
Obviamente, é difícil estabelecer com detalhes a que esse aprendizado
se refere, isso porque jogos diferentes podem proporcionar diferentes
oportunidades de aprendizado. Todavia, o autor é enfático quanto ao
poder que o videogame possui para repensar a educação.
De fato, esta possibilidade foi aventada por Beavis e O’Mara
(2010), quando as autoras destacam que jogar videogames envolve o
uso de uma larga gama de práticas de letramentos, tanto as tradicio-
nais como as novas. É possível que as autoras se refiram ao letramento
formal, geralmente desenvolvido no ambiente escolar, quando citam
o letramento tradicional. Já o adjetivo “novas” pode estar ligado à am-
pliação do conceito de letramento, quando este passa a estar ligado “à
inserção do indivíduo em determinadas esferas da atividade humana”
(TERRA, 2013, p. 53). É nesse âmbito que se inserem as discussões so-
bre letramento visual, adotado aqui como o ponto do qual se irradiam
demais formas de aprendizado relacionado aos videogames. Bogost
(2011), ao discutir um tipo específico de jogo, relata que a presença
de texto, imagem e som é cuidadosamente incorporada ao restante que
envolve o sistema do jogo, isto porque, para o autor, o jogo deve refletir
as experiências humanas por meio da sua mecânica, ou seja, o jogador
compreende esses sentidos pela forma poética pela qual essas relações
sociais são apresentadas nos processos e códigos do jogo.
De qualquer sorte, ainda que para Bogost (2011) o sentido do jogo
esteja mais no processo (códigos e regras que são a base do jogo), é por
meio de uma tela que o jogador entra em contato com esses sentidos.
Cope e Kalantzis (2020), por sua vez, acreditam que nesse movimento,
em que o processo ou código computacional se torna imagem, existe
uma movimentação de sentidos. Dessa forma, é possível dizer que a
imagem não representa perfeitamente o que foi pretendido por meio
do código, já que ambos são formas de sentidos diferentes que buscam
transpor uma significação. Tampouco seria impossível para um jogador
interagir com o jogo apenas com a linguagem de códigos e processos

1239
do jogo: portanto, é preciso que a multimodalidade faça o seu papel e
os sentidos construídos pelos códigos se transponham em som, texto e
imagem.
Essa renderização de sentidos em mais de uma forma, como vimos,
é o que caracteriza a multimodalidade. O foco no visual do videogame
é mais uma provocação do que uma hierarquização da imagem sobre as
demais formas de sentido, visto que, como já sabemos, atualmente, a
monomodalidade não se sustenta. Para Tomaszewska (2016), no entan-
to, é com a imagem que o reinado do texto escrito começa a ser contes-
tado. A presença da imagem como forma significativa na comunicação
tem sido potencializada com as novas tecnologias, conforme declara a
autora: “A transformação da sociedade moderna e a clara dominação do
visual sob a influência das imagens e mídias visuais causam um impacto
significante ao moldar a nossa vida” (TOMASZEWSKA, 2016, p. 33).
Essa revolução, na qual o escrito deixa de ser hierarquicamente pre-
dominante, é descrita como “a virada visual”, mas daí surge uma preo-
cupação, já expressa por Serafini (2012): estamos preparados para lidar
com esses artefatos visuais? Tomaszewska (2016) chama a atenção para
o fato de que as imagens contemporâneas (sejam elas estáticas, sequen-
ciais ou em movimento) são trabalhos de designers que adaptam seus
projetos para as necessidades de uma mensagem visual. Essa mensagem
é resultado de numerosas interações socioculturais e manipulações ar-
tísticas que muitas vezes impedem uma análise objetiva do conteúdo.
Dessa forma, é preciso uma reflexão mais abrangente das imagens, le-
vando-se em consideração muito mais do que é visível.
Essa discussão é essencialmente importante para uma análise de um
videogame, visto que, sendo uma mídia multimodal, seus elementos
são elaborados e interconectam-se para expressar sentidos. Assim, em
um jogo como God of War, por exemplo, os elementos visuais buscam
evocar religiões panteístas da antiguidade, especialmente da cultura gre-
ga. Visualmente, o jogo apresenta uma adesão à estética imortalizada
pelos artistas clássicos e certa assimilação da descrição visual mantida
nas tradições orais. Por esta razão, houve grande queixa entre jogadores

1240
quando a imagem do deus Thor foi revelada pela empresa produtora
dos videogames. A representação visual de Thor que tem estado em
voga é a idealizada pela Marvel Comics Universe, devido à profusão de
filmes e séries lançados. É essa imagem do deus nórdico e sua significa-
ção que predomina na atualidade, mas essa é apenas uma representação
criada por determinados artistas para atender a interesses das mídias:
inicialmente os quadrinhos e posteriormente o cinema. Lógico que,
com um pouco mais de reflexão, podemos chegar a algumas conclusões
do porquê de o Thor da Marvel Comics Universe ser jovem, loiro e mus-
culoso, enquanto a tradição oral o descreve como um homem forte de
meia-idade e com longas barbas vermelhas. Compreender como essas
imagens atendem a determinados interesses e como elas podem expres-
sar sentidos é uma competência necessária na contemporaneidade. A
ideia não é criticar e rechaçar as representações visuais quanto a sua
veracidade com o que se considera “real” ou “original”, mas compreen-
der sua razão de ser, os sentidos que elas expressam e como elas podem
estar a serviço de ideologias maliciosas, homogeneizantes e até mesmo
preconceituosas.
Nesse panorama, o letramento visual faz-se fundamentalmente ne-
cessário. Como mais uma faceta do multiletramento, o letramento vi-
sual é, de forma sumária, a capacidade para entender os conhecimentos
transmitidos visualmente. Ele permite expandir as habilidades de inter-
pretação de dados visuais, seus usos críticos e criativos ao mesmo tempo
que se ajustam aos padrões legais e éticos de seu uso (TOMASZEWSKA,
2016). Já a Association of College and Research Libraries (ACRL, 2011)
considera o letramento visual como o conjunto de habilidades que capa-
citam o indivíduo a encontrar, interpretar, avaliar, usar e criar imagens
e mídias visuais efetivamente. Assim como a definição de Tomaszewska
(2016), a definição da ACRL também leva em consideração os fatores
culturais, éticos, estéticos, intelectuais e técnicos na produção e no uso
de materiais visuais. Neste sentido, uma pessoa letrada visualmente é
“tanto um consumidor crítico de mídia visual, como um contribuinte
competente para o corpo de conhecimento e cultura compartilhados”
(ACRL, 2011, p. 1).

1241
No intuito de fomentar o desenvolvimento do letramento visual,
Yenawine (2017) desenvolveu uma estratégia simplificada conhecida
como Visual Thinking Strategies (estratégias de pensamento visual, do-
ravante VTS), cujo objetivo é explorar o conhecimento de mundo de
crianças e adolescentes, ajudá-los a se engajar na apreciação da imagem
visual e desenvolver uma observação crítica com base em evidências. O
VTS, como é comumente chamado nos Estados Unidos, é largamen-
te popular nas escolas de ensino básico e muito utilizado na maioria
dos museus que recebem visitas de estudantes. Interessante para nosso
trabalho com videogames é a proposta de Tomaszewska (2016), isto é,
de uma estratégia que explora a tríade: forma, conteúdo e ideia. Para a
autora, estes três elementos podem ser detalhados nas seguintes ações:
ver, aprender, interpretar, comunicar e compreender. Logo, o processo
de desenvolver e aprimorar o letramento visual perpassa pelas etapas
apresentadas no Quadro 1.

Quadro 1 – Etapas do desenvolvimento do letramento visual

Ação Ver Aprender Interpretar Comunicação Compreensão


Pergunta O que eu Como eu Como eu O que sei Como eu
vejo? descrevo? interpreto? sobre isto? critico isto?
Fonte: Tomaszewska (2016)

Diante de qualquer mídia visual, essas cinco questões são basilares


para uma educação que busca o desenvolvimento do letramento vi-
sual. Esse exercício, para Tomaszewska (2016), compreende o que ela
chama de didática visual. Para muitos professores, essa prática já ocor-
ria: quando solicitavam a interpretação de um mapa ou propaganda,
quando propunham a análise de um filme ou vídeo musical. No en-
tanto, dois elementos novos apresentam-se: a emergência de pesquisas
que melhor explicam a multimodalidade e a construção sistemática de
propostas baseadas em uma definição sobre letramento visual. Ademais,
os videogames raramente foram analisados ou utilizados como recursos
didáticos.

1242
4. Metodologia: convergindo abordagens para análise de
videogames
Conforme foi dito neste texto, o videogame tem sido explorado
enquanto objeto da ciência muito recentemente. No presente trabalho,
determinamos como objetivo: conceber formas de análise de videoga-
mes como recursos didáticos e assim fornecer aos docentes um instru-
mento metodológico para incentivar os estudantes a compreenderem
os sentidos presentes nos jogos, para além do que é visível. Para isso, foi
necessária a adoção de uma pesquisa qualitativa de cunho bibliográfico a
partir da seleção e comparação de duas abordagens científicas centradas
na multimodalidade e duas abordagens científicas centradas no letra-
mento visual, desenvolvidas entre 1990 e 2020. Embora existam várias
posturas que tentam dar conta da multimodalidade, optamos pelo tra-
balho pioneiro de Kress e Van Leeuwen (2001) e pelo trabalho inovador
de Cope e Kalantzis (2020) sobre o desenvolvimento de uma gramática
da multimodalidade. A respeito das ideias adotadas sobre letramento
visual, selecionamos a postura detalhada e atualizada de Tomaszewska
(2016) e o VTS de Yenawine (2017). Em relação à interação entre vi-
deogames e educação concordamos com as ideias de Gee (2008).
É preciso compreender que tanto a multimodalidade quanto
o letramento visual são perspectivas que se ajustam acertadamente
para uma análise de um videogame. Isto se deve ao fato de, como
mencionado, o videogame ser uma mídia contemporânea em constante
atualização e que envolve diversos modos de sentido (imagem, texto,
som etc.). A atenção inicial nos videogames, contudo, é no visual, que
em grande parte proporciona a movimentação dos sentidos entre as
demais formas de sentido. Este movimento é característica basilar das
concepções de multimodalidade. As ideias de Kress e Van Leeuwen
(2001) sobre multimodalidade concentram-se nos seguintes aspectos
(stratum):

1243
Quadro 2 – Descrição dos strata

Stratum Discurso Design Produção Distribuição


Descrição Conhecimentos Formas de Materialização Divulgação e
da realidade realização de do design estratificação dos
discursos sentidos
Fonte: Kress e Van Leeuwen (2001)

Note-se que os quatro conceitos de Kress e Van Leeuwen (2001)


podem, de fato, ser aplicados aos videogames, todavia eles parecem ser
abrangentes. Depreende-se que o jogo é criado de um discurso, ou seja,
ideias concebidas por uma equipe que se baseia em conhecimentos do
mundo real. A noção de design, especificamente nesta proposta, é o
processo de planejamento de como o discurso deverá ser materializado.
É o momento em que se decide, por exemplo, se um jogo será de
realidade aumentada (o que envolveria o modo gestual) ou se o jogo
deverá conter altas quantidades de texto ou se as cores e linhas deverão
se afiliar a uma ou outra estética padronizada culturalmente. Produção
é o processo de decisão sobre a forma material do design: no caso de
um jogo, seria possível pensar em sua materialização como mídia física
ou apenas on-line. A produção também considera se o jogo será cons-
truído para uma plataforma de telefone móvel ou se será um on-line
massivo. A distribuição, por sua vez, lida com o encontro entre a mídia
produzida e seus interlocutores. De que forma os jogadores terão acesso
a essa mídia? Quão fiel essa mídia deverá se manter ao dito “original”
ao ser reproduzida e utilizada por um número significativo de jogado-
res? Como essa mídia pode ser modificada conforme as reações de seus
interlocutores? Essas questões são fundamentais para compreender um
pouco de como seria o stratum/distribuição concebido por Kress e Van
Leeuwenn (2001).
O trabalho pioneiro de Kress e Van Leeuwen (2001) sobre multi-
modalidade é a base para a perspectiva atualizada de Cope e Kalantzis
(2020). Estes autores propõem não só uma versão contemporânea e
solidamente fundamentada a respeito da multimodalidade, como tam-
bém constroem uma forma de analisá-la em sua gramática. A noção de

1244
gramática de Cope e Kalantzis (2020) abandona a característica norma-
tiva e prescritiva que comumente é associada ao termo; assim, a gramá-
tica da multimodalidade ou gramática transposicional (como os autores
a chamam) é, antes de tudo, um estudo dos padrões de similitude e dife-
renciação na construção dos sentidos. Nas palavras deles, esta gramática
é “a filosofia dos sentidos comuns” (COPE; KALANTZIS, 2020, p.
13). A ideia central da gramática transposicional é que as sete formas
de sentido (texto, imagem, objeto, corpo, espaço, som e fala) apoiam a
representação e a comunicação. Para os autores, essas sete formas mate-
rializam nossos pensamentos ou os recursos para o nosso pensamento,
por isso são tipos de ação e de trabalho físico ou mental. É possível
vislumbrar a multimodalidade nos videogames partindo desta perspec-
tiva. Enquanto mídia cujos sentidos nascem de códigos computacionais
ininteligíveis para os jogadores, o jogo transpõe-se na tela de forma mul-
timodal. Os sentidos são representados por texto, imagem e som, mas,
quando associamos a isso a ideia de simulação de um mundo real, o jogo
também transpõe sentidos no espaço, nos objetos, no corpo e na fala.
Percebe-se que a proposta, pelo menos, aponta onde os sentidos
estão e destacam que eles não existem apenas de forma monomodal.
Por conseguinte, Cope e Kalantzis (2020) demonstram como podemos
expressar e compreender os sentidos por meio de suas funções: referên-
cia, agência, estrutura, contexto e interesse. Analisar sentidos dentro de
uma perspectiva da gramática da multimodalidade envolve, de forma
resumida, as seguintes questões:

Quadro 3 – Questões relacionadas às funções do sentido

Função Referência Agência Estrutura Contexto Interesse


Questão O que isto Quem ou O que o O que mais Para que
quer dizer? o que está torna coeso? está conectado isto serve?
fazendo isto? a isto?
Fonte: Cope e Kalantzis (2020)

O “isto” de cada uma dessas perguntas pode ser qualquer artefato


significativo: um livro, um filme, uma conversa, uma pessoa parada em

1245
um ponto de ônibus ou um videogame. Os autores asseveram que qual-
quer “coisa” que possua um sentido se expressa em todas essas funções,
podendo haver atenção maior para uma ou outra. Este fato é evidente
em um videogame que possui e faz referências; potencializa a agência
dos jogadores, dos desenvolvedores ou até mesmo dos grupos repre-
sentados nos jogos; é construído com base em processos computacio-
nais que simulam estruturas da realidade; sempre se relacionam com
sentidos ao redor dele, ou seja, a outros jogos, a fatos históricos ou a
realidades individuais e, evidentemente, possui um interesse agregado:
econômico, educativo, crítico, ambiental etc.
A amplitude da proposta de Cope e Kalantzis (2020) consegue
englobar até mesmo as estratégias desenhadas dentro de perspectivas
de letramento visual. Comparando as perguntas motivadoras propos-
tas por Tomaszewska (2016) e as que são desenvolvidas na gramática
transposicional, evidencia-se claramente uma convergência (Quadro 4).

Quadro 4 – Convergência entre as propostas de


Tomaszewska (2016) e Cope e Kalantzis (2020)

Tomaszewska (2016) Cope e Kalantzis (2020)


Ver: o que eu vejo? Referência: o que isto quer dizer?
Aprender: como eu descrevo? Estrutura: o que o torna coeso?
Interpretar: como eu Agência: quem ou o que está fazendo
interpreto? isto?
Comunicação: o que sei sobre Contexto: o que mais está conectado
isto? a isto?
Compreensão: como eu Interesse: para que isto serve?
critico isto?
Fonte: o autor (2021)

Note que as funções agência e interesse parecem ter uma pequena


diferença. Isto porque, para Cope e Kalantzis (2020), a interpretação é
um processo que ocorre entre as funções, ou seja, interpretar significa:
compreender o sentido construído por outros indivíduos e isso pode
ocorrer em qualquer função e com qualquer forma de sentido. Já a
função interesse converge bem com a ideia de crítica, no sentido de

1246
compreender as intenções existentes (explícita ou implicitamente) em
algum artefato de sentido. A crítica, porém, requer um pouco mais de
agência já que quem critica traz à tona seu conhecimento de mundo e
sua formação sociocultural.
Já a proposição de Yenawine (2017) configurada pela estratégia de
pensamento visual (VTS, sigla em inglês) é composta de três perguntas
que buscam explorar e ao mesmo tempo incentivar o letramento visual.
Partindo de pesquisas abrangentes sobre as experiências que as pessoas
tinham ao visitar museus e interagir com imagens visuais, nasceram as
três questões, que são feitas aos estudantes (ou qualquer pessoa a quem
se deseje aplicar o método) diante de uma imagem visual:

Quadro 5 – Questões básicas aplicadas pela Estratégia de Pensamento Visual

O que está acontecendo O que o faz dizer O que mais podemos


nesta imagem? isto? encontrar?
Fonte: Yenawine (2017)

Estas questões também ativam as funções do sentido propostas por


Cope e Kalantzis (2020):

Quadro 6 – Convergência entre as propostas e


Yenawine (2017) e Cope e Kalantzis (2020)

Yenawine (2017) Cope e Kalantzis (2020)


O que está acontecendo nesta imagem? Referência: o que isto quer dizer?
O que está acontecendo nesta imagem? Estrutura: o que o torna coeso?
O que o faz dizer isto? Agência: quem ou que está fazendo isto?
O que mais podemos encontrar? Contexto: o que mais está conectado a isto?
O que mais podemos encontrar? Interesse: para que isto serve?
Fonte: o autor (2021)

Note-se, portanto, que a utilização das funções do sentido de Cope


e Kalantzis (2020) consegue abarcar satisfatoriamente as propostas de
letramento visual. Isto não significa, porém, que essas abordagens de-
vam ser abandonadas em favor da gramática multimodal; pelo contrá-
rio, a convergência entre essas concepções teóricas apenas solidifica seus

1247
preceitos propondo uma interação e uma ancoragem entre elas. Isto
porque, embora sejam convergentes, elas foram construídas epistemo-
logicamente de forma diferente.
Em se tratando especificamente de videogame e nossa proposta
com este trabalho, o Quadro 7 reúne as questões necessárias para que
se analisem essa mídia de forma a explorar sua multimodalidade e o
letramento visual:

Quadro 7 – Questões para a análise dos videogames

Função Pergunta-base Objetivos


Examinar os sentidos explícitos no jogo.
A que o jogo se
Referência Identificar a predominância de um sentido/
refere?
ideia no jogo.
Identificar os elementos do jogo (som,
imagem, texto, espaço, objetos, enredo,
mecânica de jogo, acesso à mídia etc.).
Como o jogo é
Estrutura Estabelecer uma relação de coesão entre estes
construído?
elementos bem como identificar a ausência
e a presença de determinados elementos
socioculturais.
Reconhecer a presença/ausência da
Quem é quem no representação de indivíduos no jogo.
jogo? Compreender como o jogador vai interagir no
Agência mundo do jogo.
Qual meu papel Estabelecer conexões entre o jogo e indivíduos
dentro dele? envolvidos: desde criadores, jogadores até
referências a personagens no jogo.
Examinar sentidos implícitos no jogo.
Estabelecer a relação entre o jogo e outras
O que mais se
Contexto mídias.
conecta ao jogo?
Reconhecer a diferença ou similitude entre o
jogo e outros jogos.
Identificar o objetivo do jogo enquanto
Para que serve o artefato sociocultural, sentidos internos
Interesse
jogo? oriundos de seu enredo/processos e seus
sentidos relacionados à produção.
Fonte: o autor (2021)

1248
O Quadro 7, longe de ser uma estrutura definitiva, apresenta uma
proposta inicial para a análise de jogos eletrônicos como possíveis recursos
de aprendizagem. Acreditamos que, ao utilizar esta forma de análise, po-
dem-se extrair do videogame os sentidos atribuídos a ele em seu processo
de construção sociocultural, o que também não deixa de incluir aspectos
políticos, filosóficos e científicos. Um docente, ao utilizar o quadro, pode
enfatizar uma das funções do sentido e discuti-las com os estudantes em
sala de aula; ademais, não é preciso que o estudante/jogador se preocupe
com esse quadro como um exercício de fixação enquanto joga o videoga-
me. Pelo contrário, esse quadro apresenta uma orientação de como um
docente pode explorar um jogo diante da necessidade de abordar essa
mídia em sala de aula. Ainda, pressupondo a potencialidade dos jogos
na construção de sentidos e a popularidade deles entre os estudantes, a
proposição de diretrizes para contemplar um diálogo construtivo sobre o
videogame, entre professor e aluno, é, de fato, necessária.

5. Considerações finais
A proposta delineada neste trabalho procura facilitar o uso de vide-
ogames como recurso para o ensino e o aprendizado fornecendo as ba-
ses para discussões sobre os sentidos veiculados na referida mídia. Dessa
forma, buscamos tratar da carência de orientações de como discutir
videogames em sala de aula, sem recair em ideias preconcebidas de que
o jogo eletrônico não possui valor cultural na nossa sociedade. Aliás,
essa visão deturpada acaba por ignorar um dos aspectos mais importan-
tes da contemporaneidade: a multimodalidade que tem se fortalecido
com o advento de novas tecnologias digitais. Portanto, desconsiderar a
relevância dos diversos modos de produção de sentido, especialmente
os multimodais, é uma atitude incauta de qualquer pessoa que queira
entender, valorizar e aperfeiçoar a maneira pela qual interagimos com o
mundo, especialmente por meio da educação.
Enfim, vale ressaltar que este quadro ainda precisa passar por uma
utilização sistemática por docentes e assim levantar questões críticas que
podem tanto validar a utilização do quadro de análise de jogos quanto
demonstrar a necessidade de aprimorá-lo.

1249
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Este livro foi composto em Adobe Garamond
sob os cuidados da Editora Radiadora
em janeiro de 2024.

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