Modernidade e Modernismo

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20 PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE

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Modernidade e modernismo

"A modernidade", escreveu Baudelaire em seu artigo seminal "The painter of


modern life" (publicado em 1863), "é o transitório, o fugidio, o contingente; é uma
metade da arte, sendo a outra o eterno e o imutável."
Desejo examinar com muita atenção essa conjugação entre o efêmero e fugidio
e o eterno e imutável. A história do modernismo como movimento estético tem
oscilado de um lado para o outro dessa formulação dual, muitas vezes dando a
impressão de poder, como certa feita observou Lionel Trilling (1966), apresentar
oscilações de significado até voltar-se para a direção oposta. Armados com o sen-
tido de tensão de Baudelaire, podemos, penso eu, melhor compreender alguns dos
sentidos conflitantes atribuídos ao modernismo e algumas das correntes extraordi-
nariamente diversas de prática artística, bem como avaliações estéticas e filosóficas
feitas em seu nome.
Deixo de lado, por agora, a questão de por que a vida moderna deveria ser
caracterizada por tanta enfermidade e mudança — mas o que não costuma ser
contestado é que a condição da modernidade tenha essa característica. Eis, por
exemplo, a descrição de Berman (1982, 15):

Há uma modalidade de experiência vital — experiência do espaço e do tempo,


do eu e dos outros, das possibilidades e perigos de vida — que é partilhada
por homens e mulheres em todo o mundo atual. Denominarei esse corpo de
experiência "modernidade". Ser moderno é encontrar-se num ambiente que
promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de si e do mun-
do — e, ao mesmo tempo, que ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que
sabemos, tudo o que somos. Os ambientes e experiências modernos cruzam
todas as fronteiras da geografia e da etnicidade, da classe e da nacionalidade,
da religião e da ideologia; nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une
toda a humanidade. Mas trata-se de uma unidade paradoxal, uma unidade da
desunidade; ela nos arroja num redemoinho de perpétua desintegração e reno-
vação, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é ser
parte de um universo em que, como disse Marx, "tudo o que é sólido desman-
cha no ar".

Berman mostra que uma variedade de escritores de diferentes lugares e épocas


(Goethe, Marx, Baudelaire, Dostoiévski e Biely, entre outros) enfrentaram e tenta-
ram lidar com essa sensação avassaladora de fragmentação, efemeridade e mudan-
ça caótica. Esse mesmo tema recentemente encontrou eco em Frisby (1985), que,
num estudo de três pensadores modernos — Simmel, Kracauer e Benjamin —,
destaca que "seu interesse central era uma experiência distintiva do tempo, do
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espaço e da causalidade como coisas transitórias, fugidias, fortuitas e arbitrárias". Onde, em tudo isso, poderíamos procurar algum sentido de coerência, para
Embora possa ser verdade que tanto Berman como Frisby' estão identificando no não falar da necessidade de dizer alguma coisa consistente sobre o "eterno e i m u -
passado uma sensibilidade contemporânea muito forte à efemeridade e à fragmen- tável" que se supunha espreitar nesse turbilhão de mudança social no espaço e no
tação, e, portanto, talvez superenfatizem esse lado da formulação dual de Baudelaire, tempo? Os pensadores iluministas geraram uma resposta filosófica e até prática
há abundantes evidências a sugerir que a maioria dos escritores "modernos" reco- para essa pergunta. Como essa resposta dominou boa parte do debate subseqüente
nheceu que a única coisa segura na modernidade é a sua insegurança, e até a sua acerca do sentido da modernidade, cabe examiná-la mais de perto.
inclinação para "o caos totalizante". O historiador Carl Schorske (1981, XIX) nota, Embora o termo "moderno" tenha uma história bem mais antiga, o que
por exemplo, que, na Viena fin de siède: Habermas (1983, 9) chama de projeto da modernidade entrou em foco durante o
século XVIII. Esse projeto equivalia a um extraordinário esforço intelectual dos
A alta cultura entrou n u m turbilhão de inovação infinita, cada campo procla- pensadores iluministas "para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei
mando-se independente do todo, cada parte dividindo-se, por sua vez, em universais e a arte autônoma nos termos da própria lógica interna destas". A idéia
partes. Para a implacável centrifugadora da mudança foram atraídos os pró- era usar o acúmulo de conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando livre
prios conceitos mediante os quais os fenômenos culturais poderiam ser fixados e criativamente em busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida
no pensamento. N ã o somente os produtores da cultura, como também os seus diária. O domínio científico da natureza prometia liberdade da escassez, da neces-
analistas e críticos, foram atingidos pela fragmentação. sidade e da arbitrariedade das calamidades naturais. O desenvolvimento de for-
mas racionais de organização social e de modos racionais de pensamento prometia
O poeta W. B. Yeats captou essa mesma disposição nos versos: a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do
uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio da nossa própria natureza
Things fall apart; the centre cannot hold; humana. Somente por meio de tal projeto poderiam as qualidades universais, eter-
Mere anarchy is loosed upon the world.* nas e imutáveis de toda a humanidade ser reveladas.
O pensamento iluminista (e, aqui, sigo Cassirer, 1951) abraçou a idéia do pro-
Se a vida moderna está de fato tão permeada pelo sentido do fugidio, do gresso e buscou ativamente a ruptura com a história e a tradição esposada pela
efêmero, do fragmentário e do contingente, há algumas profundas conseqüências. modernidade. Foi, sobretudo, um movimento secular que procurou desmistificar e
Para começar, a modernidade não pode respeitar sequer o seu próprio passado, dessacralizar o conhecimento e a organização social para libertar os seres humanos
para não falar do de qualquer ordem social pré-moderna. A transitoriedade das de seus grilhões. Ele levou a injunção de Alexander Pope de que "o estudo próprio
coisas dificulta a preservação de todo sentido de continuidade histórica. Se há da humanidade é o homem" muito a sério. Na medida em que ele também sau-
algum sentido na história, há que descobri-lo e defini-lo a partir de dentro do dava a criatividade humana, a descoberta científica e a busca da excelência i n d i -
turbilhão da mudança, um turbilhão que afeta tanto os termos da discussão como vidual em nome do progresso humano, os pensadores iluministas acolheram o
o que está sendo discutido. A modernidade, por conseguinte, não apenas envolve turbilhão da mudança e viram a transitoriedade, o fugidio e o fragmentário como
uma implacável ruptura com todas e quaisquer condições históricas precedentes, condição necessária por meio da qual o projeto modernizador poderia ser realiza-
como é caracterizada por um interminável processo de rupturas e fragmentações do. Abundavam doutrinas de igualdade, liberdade, fé na inteligência humana (uma
internas inerentes. U m a vanguarda sempre desempenhou, como registram Poggioli vez permitidos os benefícios da educação) e razão universal. " U m a boa lei deve ser
(1968) e Bürger (1984), um papel vital na história do modernismo, interrompendo boa para todos", pronunciou Condorcet às vésperas da Revolução Francesa, "exa-
todo sentido de continuidade através de alterações, recuperações e repressões radi- tamente da mesma maneira como uma proposição verdadeira é verdadeira para
cais. Como interpretar isso, como descobrir os elementos "eternos e imutáveis" em todos". Essa visão era incrivelmente otimista. Escritores como Condorcet, observa
meio a essas disrupções radicais, é o problema. Mesmo que o modernismo sempre Habermas (1983, 9), estavam possuídos "da extravagante expectativa de que as
tenha estado comprometido com a descoberta, como disse o pintor P a u l Klee, do artes e as ciências iriam promover não somente o controle das forças naturais como
"caráter essencial do acidental", ele agora precisava fazê-lo n u m campo de senti- também a compreensão do mundo e do eu, o progresso moral, a justiça das ins-
dos continuamente mutantes que com freqüência pareciam "contradizer a expe- tituições e até a felicidade dos seres humanos".
riência racional de ontem". As práticas e juízos estéticos fragmentaram-se naquele O século XX — com seus campos de concentração e esquadrões da morte, seu
tipo de "livro de rabiscos de um maníaco, cheio de itens coloridos que não têm militarismo e duas guerras mundiais, sua ameaça de aniquilação nuclear e sua
nenhuma relação entre si, nenhum esquema determinante, racional ou econômi- experiência de Hiroshima e Nagasaki — certamente deitou por terra esse otimis-
co", que Raban descreve como aspecto essencial da vida urbana. mo. Pior ainda, há a suspeita de que o projeto do Iluminismo estava fadado a
voltar-se contra si mesmo e transformar a busca da emancipação humana n u m
[As coisas se desfazem; o centro não se sustém;/ sistema de opressão universal em nome da libertação humana. F o i essa a atrevida
A pura anarquia está solta no mundo.] tese apresentada por Horkheimer e A d o r n o em The dialectic of Enlightenment (1972).
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Escrevendo sob as sombras da Alemanha de Hitler e da Rússia de Stalin, eles que a emancipação humana universal poderia emergir da lógica classista e eviden-
alegavam que a lógica que se oculta por trás da racionalidade iluminista é uma temente repressiva, embora contraditória, do desenvolvimento capitalista. Ao fazê-
lógica da dominação e da opressão. A ânsia por dominar a natureza envolvia o -lo, concentrou-se na classe trabalhadora como agente da libertação e da emanci-
domínio dos seres humanos, o que no final só poderia levar a "uma tenebrosa pação humanas precisamente por ser ela a classe dominada da moderna sociedade
condição de autodominação" (Bernstein, 1985, 9). A revolta da natureza, que eles capitalista. Só quando os produtores diretos tivessem o controle do seu próprio
apresentavam como a única saída para o impasse, tinha portanto de ser concebida destino, argumentava ele, poderíamos alimentar a esperança de substituir o domí-
como uma revolta da natureza humana contra o poder opressor da razão pura- nio e a repressão por um reino de liberdade social. M a s se "o reino da liberdade
mente instrumental sobre a cultura e a personalidade. só começa quando o reino da necessidade é superado", então o lado progressista
Saber se o projeto do Iluminismo estava ou não fadado desde o começo a nos da história burguesa (em particular a sua criação de enormes forças produtivas)
mergulhar num mundo kafkiano, se tinha ou não de levar a Auschwitz e Hiroshima tinha de ser plenamente reconhecido, e os resultados positivos da racionalidade
e se lhe restava ou não poder para informar e inspirar o pensamento e a ação iluminista, plenamente apropriados.
contemporâneos são questões cruciais. Há quem, como Habermas, continue a apoiar O projeto da modernidade nunca deixou de ter seus críticos. E d m u n d Burke
o projeto, se bem que com forte dose de ceticismo quanto às suas metas, muita não fez nenhum esforço para esconder as suas dúvidas e o seu desgosto com os
angústia quanto à relação entre meios e fins e certo pessimismo no tocante à pos- excessos da Revolução Francesa. Malthus, rebatendo o otimismo de Condorcet,
sibilidade de realizar tal projeto nas condições econômicas e políticas contemporâ- mostrou a impossibilidade de um dia se escapar das amarras da escassez natural
neas. E há também quem — e isso é, como veremos, o cerne do pensamento e da necessidade. Sade também revelou que poderia haver uma dimensão da liber-
filosófico pós-modernista — insista que devemos, em nome da emancipação huma- tação humana bem distinta da concebida no pensamento iluminista convencional.
na, abandonar por inteiro o projeto do Iluminismo. A posição a tomar depende de E, no início do século X X , dois grandes críticos, com posições bem diferentes,
como se explica o "lado sombrio" da nossa história recente e do grau até o qual o imprimiram sua marca no debate. Em primeiro lugar, M a x Weber, cujo argumento
atribuímos aos defeitos da razão iluminista, e não à falta de sua correta aplicação. fulcral é resumido por Bernstein, um protagonista-chave do debate sobre a moder-
C o m efeito, o pensamento iluminista internalizava uma imensa gama de pro- nidade e seus significados, da seguinte maneira:
blemas e não possuía poucas contradições incômodas. Para começar, a questão da
relação entre meios e fins era onipresente, enquanto os alvos em si nunca podiam Weber alegava que a esperança e a expectativa dos pensadores iluministas era
ser especificados precisamente exceto em termos de algum plano utópico que com uma amarga e irônica ilusão. Eles mantinham um forte vínculo necessário
freqüência parecia tão opressor para alguns quanto emancipador para outros. A l é m entre o desenvolvimento da ciência, da racionalidade e da liberdade humana
disso, a questão de determinar de maneira exata quem podia considerar-se possui- universal. Mas, quando desmascarado e compreendido, o legado do Iluminismo
dor da razão superior e sob que condições essa razão deveria ser exercida como foi o triunfo da racionalidade... proposital-instrumental. Essa forma de
poder tinha de ser honestamente enfrentada. A humanidade vai ter de ser forçada racionalidade afeta e infecta todos os planos da vida social e cultural, abran-
a ser livre, disse Rousseau; e os jacobinos da Revolução Francesa começaram sua gendo as estruturas econômicas, o direito, a administração burocrática e até as
prática política onde o pensamento filosófico de Rousseau tinha parado. Francis artes. O desenvolvimento da [racionalidade proposital-instrumental] não leva
Bacon, um dos precursores do pensamento iluminista, concebeu em seu tratado à realização concreta da liberdade universal, mas à criação de uma "jaula de
utópico Nova Atlântida uma casa de sábios que seriam os guardiães do conhecimen- ferro" da racionalidade burocrática da qual não há como escapar (Bernstein,
to, os juizes éticos e os verdadeiros cientistas; enquanto vivessem no mundo exte- 1985, 5).
rior a vida diária da comunidade, eles exerceriam sobre esta uma extraordinária
força moral. A essa concepção de uma sabedoria de elite, mas coletiva, masculina Se a "sóbria advertência" de Weber soa como o epitáfio da razão iluminista, o
e branca, outros opunham a imagem de um individualismo sem peias de grandes ataque anterior de Nietzsche às suas próprias premissas deve por certo ser consi-
pensadores, os grandes benfeitores da humanidade, que, por intermédio de suas derado a sua nêmese. Era como se Nietzsche mergulhasse por inteiro no outro lado
lutas e esforços singulares, levariam a razão e a civilização do nada ao ponto da da formulação de Baudelaire para mostrar que o moderno não era senão uma
verdadeira emancipação. Outros afirmavam ou que havia alguma teleologia ine- energia vital, a vontade de viver e de poder, nadando num mar de desordem,
rente em ação (talvez até de inspiração divina) a que o espírito humano estava anarquia, destruição, alienação individual e desespero. "Sob a superfície da vida
fadado a responder, ou que existia algum mecanismo social, tal como a celebrada moderna, dominada pelo conhecimento e pela ciência, ele discernia energias vitais
mão invisível do mercado proposta por A d a m Smith, que converteria até o mais selvagens, primitivas e completamente impiedosas" (Bradbury e McFarlane, 1976,
dúbio sentimento moral num resultado vantajoso para todos. Marx, que em muitos 446). Todo o conjunto de imagens iluministas sobre a civilização, a razão, os direi-
aspectos era filho do pensamento iluminista, buscou transformar o pensamento tos universais e a moralidade de nada valia. A essência eterna e imutável da hu-
utópico — a luta para os seres humanos realizarem sua "natureza específica", manidade encontrava sua representação adequada na figura mítica de Dioniso:
como ele dizia em suas primeiras obras — numa ciência materialista ao mostrar "Ser a um só e mesmo tempo 'destrutivamente criativo' (isto é, formar o mundo
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temporal da individualização e do vir-a-ser, um processo destruidor da unidade) Do mesmo modo como tudo se autodestrói no século XX e nada continua, o
e 'criativamente destrutivo' (isto é, devorar o universo ilusório da individualização, século XX tem um esplendor todo seu, e Picasso é do seu século, sendo dotado
um processo que envolve a reação da unidade)" (loc. cit.). O único caminho para da estranha qualidade de uma terra que ninguém jamais v i u e de coisas
a afirmação do eu era agir, manifestar a vontade, no turbilhão da criação destrutiva destruídas de uma maneira que ninguém nunca v i u . Assim, pois, Picasso tem
e da destruição criativa, mesmo que o desfecho esteja fadado à tragédia. o seu esplendor.
A imagem da "destruição criativa" é muito importante para a compreensão da
modernidade, precisamente porque derivou dos dilemas práticos enfrentados pela Proféticas palavras e profética concepção essa, por parte de Schumpeter e Stein,
implementação do projeto modernista. Afinal, como poderia um novo mundo ser nos anos que precederam o maior evento da história da destruição criativa do
criado sem se destruir boa parte do que viera antes? Simplesmente não se pode capitalismo — a Segunda Guerra M u n d i a l .
fazer um omelete sem quebrar os ovos, como o observou toda uma linhagem de No começo do século X X , e em especial depois da intervenção de Nietzsche,
pensadores modernistas de Goethe a M a o . O arquétipo literário desse dilema é, já não era possível dar à razão iluminista uma posição privilegiada na definição da
como Berman (1982) e Lukács (1969) assinalam, o Fausto de Goethe. Um herói épico essência eterna e imutável da natureza humana. Na medida em que Nietzsche dera
preparado para destruir mitos religiosos, valores tradicionais e modos de vida início ao posicionamento da estética acima da ciência, da racionalidade e da polí-
costumeiros para construir um admirável mundo novo a partir das cinzas do antigo, tica, a exploração da experiência estética — "além do bem e do mal" — tornou-se
Fausto é, em última análise, uma figura trágica. Sintetizando pensamento e ação, um poderoso meio para o estabelecimento de uma nova mitologia quanto àquilo
Fausto obriga a si mesmo e a todos (até a Mefistófeles) a chegar a extremos de a que o eterno e imutável poderia referir-se em meio a toda a efemeridade, frag-
organização, de sofrimento e de exaustão, a fim de dominar a natureza e criar uma mentação e caos patente da vida moderna. Isso deu um novo papel e i m p r i m i u um
nova paisagem, uma sublime realização espiritual que contém a potencialidade da novo ímpeto ao modernismo cultural.
libertação humana dos desejos e necessidades. Preparado para eliminar tudo e Nessa nova concepção do projeto modernista, artistas, escritores, arquitetos,
todos os que se ponham no caminho da concretização dessa visão sublime, Fausto, compositores, poetas, pensadores e filósofos tinham uma posição bem especial. Se
para o seu próprio horror último, faz Mefistófeles matar um velho casal muito o "eterno e imutável" não mais podia ser automaticamente pressuposto, o artista
amado que vive numa casinha à beira-mar por nenhuma outra razão além do fato moderno tinha um papel criativo a desempenhar na definição da essência da
de não se enquadrar no plano do mestre. "Parece", diz Berman (1982), "que o humanidade. Se a "destruição criativa" era uma condição essencial da modernida-
próprio processo de desenvolvimento, na medida em que transforma o deserto de, talvez coubesse ao artista como indivíduo uma função heróica (mesmo que as
num espaço social e físico vicejante, recria o deserto no interior do próprio agente
de desenvolvimento. Assim funciona a tragédia do desenvolvimento."
Há várias figuras modernas — Haussmann trabalhando na Paris do Segundo
Império e Robert Moses na N o v a Iorque pós-Segunda Guerra M u n d i a l — para dar
à figura da destruição criativa uma estatura superior à do mito (ilustrações 1.3,1.4).
M a s vemos aqui em ação, com uma aparência bem distinta, a oposição entre o
efêmero e o eterno. Se o modernista tem de destruir para criar, a única maneira de
representar verdades eternas é um processo de destruição passível de, no final,
destruir ele mesmo essas verdades. E, no entanto, somos forçados, se buscamos o
eterno e imutável, a tentar e a deixar a nossa marca no caótico, no efêmero e no
fragmentário. A imagem nietzschiana da destruição criativa e da criação destrutiva
estabelece uma ponte entre os dois lados da formulação de Baudelaire de uma
nova maneira. Note-se é que o economista Schumpeter empregou essa mesma
imagem para compreender os processos do desenvolvimento capitalista. O empre-
endedor, que Schumpeter considera uma figura heróica, era o destruidor criativo
par excellence porque estava preparado para levar a extremos vitais as conseqüên-
cias da inovação técnica e social. E era somente através desse heroísmo criativo que
se podia garantir o progresso humano. Para Schumpeter, a destruição criativa era
o leitmotif progressista do desenvolvimento capitalista benevolente. Para outros,
era tão só a condição necessária do progresso do século X X . Eis Gertrude Stein Ilustração 1.3 A destruição criativa de Haussmann na Paris do Segundo Império:
escrevendo sobre Picasso em 1938: a reconstrução da Praça Saint-Germain.
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lacuna que Nietzsche mais tarde iria inserir sua potente mensagem, a de que a arte
e os sentimentos estéticos tinham o poder de ir além do bem e do mal, com efeitos
tão devastadores. A busca da experiência estética como fim em si mesma se tornou,
com efeito, o marco do movimento romântico (exemplificado por, digamos, Shelley
e Byron). Ela gerou a onda de "subjetivismo radical", de "individualismo desen-
freado" e de "busca da auto-realização individual" que, ao ver de Daniel Bell
(1978), há muito tinha estabelecido um conflito fundamental entre o comportamen-
to cultural e as práticas artísticas modernistas e a ética protestante. O hedonismo
se integra mal, segundo Bell, à poupança e ao investimento que supostamente
alimentam o capitalismo. Seja qual for o nosso modo de encarar a tese de Bell, é
por certo verdade que os românticos abriram o caminho para as intervenções es-
téticas ativas na vida cultural e política, intervenções antecipadas por escritores
como Condorcet e Saint-Simon. Este último insistia, por exemplo, em que,

Seremos nós, artistas, que serviremos a vocês de vanguarda. Que belo destino
para as artes, o de exercer sobre a sociedade um poder positivo, uma verda-
deira função sacerdotal, e de marchar vigorosamente na dianteira de todas as
faculdades intelectuais na época do seu maior desenvolvimento! (citado em
Bell, 1978, 35; cf. Poggioli, 1968, 9).

O problema desses sentimentos é o fato de verem o vínculo estético entre


ciência e moralidade, entre conhecimento e ação, de maneira a "nunca serem
ameaçados pela evolução histórica" (Raphael, 1981, 7). O juízo estético, como nos
Ilustração 1.4 A arte parisiense de boulevard atacando a destruição modernista do
casos de Heidegger e Pound, podia levar com a mesma facilidade para a direita ou
antigo tecido urbano: um cartum de ]. F. Batellier em "Sans Retour, Ni Consigne".
para a esquerda do espectro político. Como Baudelaire logo percebeu, se o fluxo
e a mudança, a efemeridade e a fragmentação formavam a base material da vida
moderna, então a definição de uma estética modernista dependia de maneira crucial
conseqüências pudessem ser trágicas). O artista, alegou Frank L l o y d Wright — um do posicionamento do artista diante desses processos. O artista individual podia
dos maiores arquitetos modernistas —, deve não somente compreender o espírito contestá-los, aceitá-los, tentar dominá-los ou apenas circular entre eles, mas o artista
de sua época como iniciar o processo de sua mudança. nunca os poderia ignorar. O efeito de qualquer dessas tomadas de posição era, na
Deparamos aqui com um dos mais sugestivos, mas para muitos profundamen- verdade, alterar o modo como os produtores culturais pensavam o fluxo e a mudança,
te perturbador, aspectos da história modernista. Porque, quando Rousseau substi- bem como os termos políticos mediante os quais representavam o eterno e imutável.
tuiu a famosa máxima de Descartes "Penso, logo existo" por "Sinto, logo existo", As reviravoltas do modernismo como estética cultural podem ser largamente com-
assinalou uma mudança radical de uma estratégia racional e instrumentalista para preendidas contra o pano de fundo dessas escolhas estratégicas.
uma estratégia mais conscientemente estética de realização das metas iluministas. N ã o posso revisar aqui a vasta e complexa história do modernismo cultural
Mais ou menos na mesma época, Kant também reconheceu que o juízo estético desde os seus primórdios na Paris pós-1848. M a s é preciso, se quisermos compre-
tinha de ser elaborado independentemente da razão prática (juízo moral) e da ender a reação pós-moderna, examinar alguns pontos gerais. Se voltarmos à for-
compreensão (conhecimento científico), e que formava uma ponte necessária, embora mulação de Baudelaire, por exemplo, vemo-lo definindo o artista como alguém
problemática, entre as duas. A exploração da estética como domínio cognitivo capaz de concentrar a visão em elementos comuns da vida da cidade, compreender
distinto foi em larga medida uma questão do século XVIII. Surgiu em parte da suas qualidades fugidias e ainda assim extrair, do momento fugaz, todas as suges-
necessidade de chegar a um acordo com a imensa variedade de artefatos culturais, tões de eternidade nele contidas. O artista moderno bem-sucedido era alguém
produzidos sob condições sociais bem diferentes, que o crescente comércio e con- capaz de desvelar o universal e o eterno, "destilar o sabor amargo ou impetuoso
tato cultural revelavam. Os vasos M i n g , as urnas gregas e a porcelana de Dresden do vinho da vida" a partir do "efêmero, das formas fugidias de beleza dos nossos
expressavam algum sentimento comum de beleza? M a s essa exploração também dias" (Baudelaire, 1981, 435). Na medida em que a arte modernista conseguiu fazer
surgiu da mera dificuldade da tradução dos princípios iluministas da compreensão isso, ela se tornou a nossa arte, precisamente porque "é a arte que responde ao
racional e científica em princípios morais e políticos apropriados à ação. F o i nessa cenário do nosso caos" (Bradbury e McFarlane, 1976, 27).
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Mas como, em meio a todo o caos, representar o eterno e o imutável? Conside- de 1924, The city of tomorrow. "As pessoas me rotulam com muita facilidade de
rando-se que o naturalismo e o realismo se mostraram inadequados (ver adiante, revolucionário", queixava-se ele; mas o "equilíbrio que elas tanto tentam manter é,
p. 239), o artista, o arquiteto e o escritor tinham de encontrar alguma maneira por razões vitais, puramente efêmero: é um equilíbrio que precisa ser perpetua-
especial de representá-los. Por conseguinte, desde o começo, o modernismo se mente restabelecido." Além disso, a própria inventividade de todas aquelas "men-
preocupava com a linguagem, com a descoberta de alguma modalidade especial de tes ávidas capazes de perturbar" o equilíbrio produzia as qualidades efêmeras e
representação de verdades eternas. A realização individual dependia da inovação transitórias do próprio juízo estético, mais acelerando do que reduzindo o ímpeto
na linguagem e nas formas de representação, disso resultando que a obra moder- das modas estéticas: impressionismo, pós-impressionismo, cubismo, fauvismo,
nista, como Lunn (1985, 41) observa, "com freqüência revela voluntariamente sua dadaísmo, surrealismo, expressionismo etc. "A vanguarda", comenta Poggioli em
própria realidade de construção ou artifício", transformando assim boa parte da seu tão lúcido estudo da história desta, "está condenada a conquistar, pela influên-
arte num "constructo auto-referencial, em vez de um espelho da sociedade". Escri- cia da moda, a própria popularidade que um dia desdenhou — e isso é o começo
tores como James Joyce e Proust, poetas como Mallarmé e Aragón, pintores como do fim."
Manet, Pissarro, Jackson Pollock mostravam uma tremenda preocupação com a Além disso, a mercadificação e comercialização de um mercado de produtos
criação de novos códigos, novas significações e novas alusões metafóricas nas culturais durante o século XIX (e o concomitante declínio do patronato aristocrá-
linguagens que construíam. Mas se a palavra era de fato fugidia, efêmera e caóti- tico, estatal ou institucional) forçaram os produtores culturais a seguir uma forma
ca, o artista tinha, por essa mesma razão, de representar o eterno através de um de competição de mercado que viria a reforçar processos de "destruição criativa"
efeito instantâneo, tornando "a tática do choque e a violação das continuidades no interior do próprio campo estético. Isso refletiu e, em alguns casos, antecipou
esperadas" vitais para fazer chegar ao destino a mensagem que o artista procurava alguma coisa que ocorria na esfera político-econômica. Todos os artistas procura-
transmitir. vam mudar as bases do juízo estético, ao menos para vender seu próprio produto.
O modernismo só podia falar do eterno ao congelar o tempo e todas as suas Isso também dependia da formação de uma classe distinta de "consumidores cul-
qualidades transitórias. Para o arquiteto, encarregado de projetar e construir uma turais". Os artistas, apesar de sua predileção por uma retórica antìestablishment e
estrutura espacial relativamente permanente, tratava-se de uma proposição bem antiburguesa, gastavam muito mais energia lutando entre si e com as suas próprias
simples. A arquitetura, escreveu Mies van der Rohe nos anos 20, "é a vontade da tradições para vender seus produtos do que o faziam engajando-se na ação política
época concebida em termos espaciais". Mas, para outros, a "espacialização do tem- real.
po" através da imagem, do gesto dramático e do choque instantâneo, ou, simples- A luta para reproduzir uma obra de arte, uma criação definitiva capaz de encon-
mente, pela montagem /colagem, era mais problemática. T. S. Eliot debruçou-se trar um lugar ímpar no mercado, tinha de ser um esforço individual forjado em
sobre o problema em Four Quartets da seguinte maneira: circunstâncias competitivas. Portanto, a arte modernista sempre foi o que Benjamin
denomina "arte àurica", no sentido de que o artista tinha de assumir uma aura de
To be conscious is not to be in time criatividade, de dedicação à arte pela arte, para produzir um objeto cultural origi-
But only in time can the moment in the rose-garden, nal, sem par e, portanto, eminentemente mercadejável a preço de monopólio. O
The moment in the arbour where the rain beat, resultado era muitas vezes uma perspectiva altamente individualista, aristocrática,
Be remembered; involved with past and future. desdenhosa (particularmente da cultura popular) e até arrogante da parte dos
Only through time time is conquered.* produtores culturais, mas também indicava como a nossa realidade poderia ser
. construída e reconstruída através da atividade informada pela estética. Podia ser,
O recurso às técnicas da montagem/colagem fornecia um meio de tratar desse na melhor das hipóteses, algo profundamente comovente, desafiador, incômodo
problema, visto que diferentes efeitos extraídos de diferentes tempos (velhos jor- ou exortativo para muitos que a ele estavam expostos. Reconhecendo essa carac-
nais) e espaços (o uso de objetos comuns) podiam ser superpostos para criar um terística, certas vanguardas — os dadaístas, os primeiros surrealistas — tentaram
efeito simultâneo. Ao explorar a simultaneidade desse modo, "os modernistas mobilizar suas capacidades estéticas para fins revolucionários ao fundir a sua arte
estavam aceitando o efêmero e transitório como locus de sua arte", ao mesmo com a cultura popular. Outros, como Walter Gropius e Le Corbusier, esforçaram-
tempo que eram forçados coletivamente a reafirmar o poder das próprias condi- -se por impô-las de cima para propósitos revolucionários similares. E não era só
ções contra as quais reagiam. Le Corbusier reconheceu o problema em seu tratado Gropius que considerava importante "devolver a arte ao povo por meio da produ-
ção de coisas belas". O modernismo internalizou seu próprio turbilhão de ambigüi-
dades, de contradições e de mudanças estéticas pulsantes, ao mesmo tempo que
* [Ser consciente é não ser no tempo/ buscava afetar a estética da vida diária.
Mas só no tempo pode o instante no canteiro de rosas,/
O instante na pérgola onde a chuva cai,/ Os fatos dessa vida, no entanto, tiveram mais do que uma influência passagei-
Ser lembrado; envolvido no passado e no futuro./ ra sobre a sensibilidade estética criada, por mais que os próprios artistas procla-
Só pelo tempo é o tempo conquistado.] massem uma aura de "arte pela arte". Para começar, como Benjamin (1969) assi-
MODERNIDADE E MODERNISMO 33
32 PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE

bração de uma era tecnológica e a sua condenação; uma excitada aceitação da


naia em seu celebrado ensaio sobre "A obra de arte na era da reprodução mecâ-
crença de que os velhos regimes da cultura tinham chegado ao fim e a um pro-
nica"/ a capacidade técnica mutante de reproduzir, disseminar e vender livros e fundo desespero diante desse temor; uma mistura de convicções de que as novas
imagens a públicos de massa, e a invenção da fotografia e, depois, do filme (ao que formas eram fugas do historicismo e das pressões da época com convicções de que
hoje acrescentaríamos o rádio e a televisão), mudaram radicalmente as condições essas formas eram precisamente a expressão viva dessas coisas.
materiais de existência dos artistas e, portanto, seu papel social e político. E, sem
relação com a consciência geral do fluxo e da mudança presente em todas as obras Esses elementos e oposições diversos formaram misturas bem diferentes do
modernistas, um fascínio pela técnica, pela velocidade e pelo movimento, pela sentimento e da sensibilidade modernistas em diferentes épocas e lugares:
máquina e pelo sistema fabril, bem como pela cadeia de novas mercadorias que
penetravam na vida cotidiana, provocou uma ampla gama de respostas estéticas É possível traçar mapas mostrando os centros e províncias artísticos, o equilí-
que iam da negação à especulação sobre possibilidades utópicas, passando pela brio internacional de poder cultural — nunca exatamente equivalente ao equi-
imitação. Logo, como Reyner Banham (1984) mostra, os primeiros arquitetos mo- líbrio do poder econômico e político, mas sem dúvida com profundas relações
dernistas, como Mies van der Rohe, tiraram muito de sua inspiração dos silos para com ele. Os mapas mudam com a mudança da estética: Paris por certo é, para
cereais com elevadores, puramente funcionais, que então surgiam por todo o M e i o o modernismo, o principal centro dominante, na qualidade de fonte da boêmia,
Oeste americano. Le Corbusier, em seus planos e escritos, tomou o que v i u como da tolerância e do estilo de vida do émigré, mas podemos sentir o declínio de
possibilidades inerentes à era da máquina, da fábrica e do automóvel e as projetou Roma e de Florença, a ascensão e queda de Londres, a fase de domínio de
em algum futuro utópico (Fishman, 1982). Tichi (1987,19) documenta que revistas Berlim e Munique, as potentes explosões da Noruega e da Finlândia, a irradia-
americanas populares como Good Housekeeping descreviam a casa como "nada mais ção partida de Viena como estágios essenciais da cambiante geografia do
do que uma fábrica para a produção de felicidade" já em 1910, anos antes de Le modernismo, mapeada pelo movimento de escritores e artistas, do fluxo de
Corbusier apresentar seu celebrado (e hoje muito rejeitado) ditado de que a casa ondas de pensamento, de explosões de produção artística significativa (Bradbury
é uma "máquina para a vida moderna". e McFarlane, 1976, 102).
É importante ter em mente, portanto, que o modernismo surgido antes da
Primeira Guerra M u n d i a l era mais uma reação às novas condições de produção (a Essa complexa geografia histórica do modernismo (que ainda precisa ser escri-
máquina, a fábrica, a urbanização), de circulação (os novos sistemas de transportes ta e explicada por inteiro) torna duplamente difícil interpretar com exatidão o que
e comunicações) e de consumo (a ascensão dos mercados de massa, da publicida- era o modernismo. As tensões entre internacionalismo e nacionalismo, globalismo
de, da moda de massas) do que um pioneiro na produção dessas mudanças. M a s e etnocentrismo paroquial, universalismo e privilégios de classe nunca estiveram
a forma tomada pela reação iria ter uma considerável importância subseqüente. Ela longe da superfície. Em seus melhores momentos, o modernismo tentou enfrentar
não apenas forneceu meios de absorver, codificar e refletir sobre essas rápidas as tensões, mas, nos seus piores, ou as varreu para baixo do tapete ou as explorou
mudanças, como sugeriu linhas de ação capazes de modificá-las ou sustentá-las. — como fizeram os Estados Unidos em sua apropriação da arte modernista depois
Reagindo à desprofissionalização dos artesãos por causa da máquina e da produ- de 1945 — para tirar vantagens cínicas, de cunho político (Guilbaut, 1983). O
ção fabril sob o comando de capitalistas, W i l l i a m Morris, por exemplo, tentou modernismo parece bem diferente a depender de onde e quando nos localizamos.
promover uma nova cultura artesã que combinava o poder da tradição artesanal Porque, embora o movimento como um todo tivesse uma atitude internacionalista
com uma forte defesa "da simplicidade de desenho, da retirada de toda exibição, e universalista definida, muitas vezes buscada e concebida deliberadamente, tam-
de todo desperdício e de todo comodismo" (Relph, 1987, 99-107). C o m o Relph bém havia um forte apego à idéia de "uma arte de vanguarda internacional de eüte
assinala, Bauhaus, a tão influente unidade germânica de design fundada em 1919, mantida numa frutífera relação com um forte sentido de lugar" (ibid., p. 157). As
no início se inspirou muito no Arts and Crafts Movement que Morris tinha funda- particularidades do lugar — e não penso apenas nas comunidades semelhantes a
do, e só mais tarde (1923) se voltou para a idéia de que "a máquina é o nosso meio vilas em que os artistas tipicamente se moviam, mas também nas condições sociais,
moderno de design". Bauhaus pôde exercer a influência que exerceu sobre a pro- econômicas, políticas e ambientais deveras distintas que prevaleciam em, digamos,
dução e o design por causa precisamente da redefinição de "ofício artesanal" como Chicago, N o v a Iorque, Paris, Viena, Copenhague ou Berlim —, por conseguinte,
a habilidade de produzir em massa bens de natureza esteticamente agradável com deixaram uma marca distintiva na diversidade do esforço modernista (ver a Parte
a eficiência da máquina. III adiante).
Foram dessa espécie as diversas reações que fizeram do modernismo uma Também parece que o modernismo, depois de 1848, era em larga medida um
questão tão complexa e, com freqüência, contraditória. Tratava-se, escrevem fenômeno urbano, tendo existido num relacionamento inquieto, mas complexo com
Bradbury e McFarlane (1976, 46), a experiência do crescimento urbano explosivo (com várias cidades passando da
marca do milhão no final do século), da forte migração para os centros urbanos, da
de uma extraordinária combinação entre o futurista e o niilista, o revolucionário
industrialização, da mecanização, da reorganização maciça dos ambientes
e o conservador, o naturalista e o simbolista, o romântico e o clássico. Foi a ceie-
34 PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
MODERNIDADE E MODERNISMO 35

construídos e de movimentos urbanos de base política de que os levantes revolu-


cionários de Paris em 1848 e 1871 eram um símbolo claro, mas agourento. A cres- N ã o é meu propósito julgar a visão de Simmel (embora os paralelos e contras-
tes com o ensaio pós-moderno mais recente de Raban sejam muito instrutivos),
cente necessidade de enfrentar os problemas psicológicos, sociológicos, técnicos,
mas vê-la como uma representação de um vínculo entre a experiência urbana e ó
organizacionais e políticos da urbanização maciça foi um dos canteiros em que
pensamento e a prática modernistas. As qualidades do modernismo parecem ter
floresceram movimentos modernistas. O modernismo era "uma arte das cidades"
variado, se bem que de maneira interativa, ao longo do espectro das grandes cida-
e, evidentemente, encontrava "seu habitat natural nas cidades" — e Bradbury e
des poliglotas surgidas na segunda metade do século XIX. C o m efeito, certas
McFarlane reúnem uma variedade de estudos de cidades individuais para susten-
modalidades de modernismo alcançaram uma trajetória particular pelas capitais
tar essa tese. Outros estudos, como a magnífica obra de T. J. Clark sobre a arte de
do mundo, cada qual florescendo como uma arena cultural de uma espécie parti-
Manet e dos seus seguidores na Paris do Segundo Império, ou a síntese igualmente
cular. A trajetória geográfica de Paris a Berlim, Viena, Londres, Moscou, Chicago
brilhante de Schorske dos movimentos culturais da Viena fin-de-siècle, confirmam
e N o v a Iorque podia ser revertida ou reduzida a depender do tipo de prática
quão importante foi a experiência urbana na formação da dinâmica cultural de modernista que se tivesse em mente.
diversos movimentos modernistas. E foi, afinal, como reação à profunda crise da
Se, por exemplo, considerássemos apenas a difusão das práticas materiais de
organização, do empobrecimento e da congestão urbanos que toda uma tendência
que o modernismo intelectual e estético retirou tanto do seu estímulo — as máqui-
de prática e pensamento modernista foi diretamente moldada (ver Timms e Kelley,
nas, os novos sistemas de transporte e comunicação, os arranha-céus, as pontes e
1985). Há uma forte cadeia de conexões que vai da reformulação de Paris nos anos
as maravilhas de todo tipo da engenharia, bem como a instabilidade e insegurança
1860 por Haussmann às propostas feitas por Ebenezer H o w a r d (a "cidade-jardim"
incríveis que acompanharam a rápida inovação e mudança social —> os Estados
— 1898), Daniel Burnham (a "Cidade Branca" construída para a Feira M u n d i a l de
Unidos (e Chicago em particular) provavelmente deveriam ser considerados o
Chicago de 1893 e o Plano Regional de Chicago de 1907), Garnier (a cidade indus-
catalisador do modernismo a partir de mais ou menos 1870. Contudo, nesse caso,
trial linear de 1903), Camilo Sitte e Otto Wagner (com planos bem diferentes para
a própria falta de resistência "tradicionalista" (feudal e aristocrática) e a aceitação
transformar a Viena fin-de-siècle), Le Corbusier (A cidade do futuro e o Plano Voisin
popular paralela de sentimentos amplamente modernistas (da espécie que T i c h i
proposto para a Paris de 1924), Frank L l o y d Wright (o projeto Broadacre de 1935),
documenta) fizeram as obras de artistas e intelectuais bem menos importantes
chegando aos esforços de renovação urbana em larga escala feitos nos anos 50 e 60
como a lâmina cortante de vanguarda da mudança social. O romance populista de
no espírito do alto modernismo. A cidade, observa de Certeau (1984, 95), "é simul-
uma utopia modernista, Looking backwards, de E d w a r d Bellamy, ganhou rápida
taneamente o maquinário e o herói da modernidade".
aceitação e até originou um movimento político nos anos 1890. A obra de Edgar
Georg Simmel deu uma interpretação bem especial a essas conexões em seu
Allan Poe, por outro lado, atingiu no início bem poucas honras em seu país, em-
extraordinário ensaio "The metropolis and mental life", publicado em 1911. A l i ,
bora ele fosse considerado um dos grandes escritores modernistas por Baudelaire
Simmel contemplou a questão de como poderia responder psicológica e intelec-
(cujas traduções de Poe, até hoje muito populares, foram ilustradas por Manet já
tualmente à incrível diversidade de experiências e de estímulos a que a vida urba-
em 1860). O gênio arquitetônico de Louis Sullivan também permaneceu largamente
na moderna nos expunha — e como seria possível internalizá-la. De um lado,
enterrado no fermento extraordinário da modernização de Chicago. O conceito
tínhamos sido libertados das cadeias da dependência subjetiva, tendo sido agracia-
altamente modernista que Daniel Burnham tinha do planejamento urbano racional
dos com um grau muito maior de liberdade individual. Isso, no entanto, fora
tendeu a se perder em sua inclinação pela ornamentação de prédios e pelo classi-
alcançado às custas de tratar os outros em termos objetivos e instrumentais. N ã o
cismo no projeto de prédios individuais. As ferozes resistências de classe e tradi-
havia escolha senão nos relacionarmos com "outros" sem rosto por meio do frio e
cionais à modernização capitalista na Europa, por outro lado, tornaram os movi-
insensível cálculo dos necessários intercâmbios monetários capazes de coordenar
mentos estéticos e intelectuais do modernismo muito mais importantes como a
uma proliferante divisão social do trabalho. Também nos submetemos a uma rigo-
lâmina cortante da mudança social, conferindo à vanguarda um papel social e
rosa disciplina do nosso sentido de espaço e de tempo, rendendo-nos à hegemonia
político amplamente negado a ela nos Estados Unidos até 1945. N ã o surpreende,
da racionalidade econômica calculista. A l é m disso, a rápida urbanização produziu
pois, que a história do modernismo intelectual e estético seja muito mais
o que ele chamou de "atitude blasé", porque somente afastando os complexos
eurocentrada, com alguns centros urbanos menos progressistas ou divididos em
estímulos advindos da velocidade da vida moderna poderíamos tolerar os seus
classes (como Paris e Viena) gerando alguns dos mais fortes fermentos.
extremos. Nossa única saída, ele parece dizer, é cultivar um falso individualismo
através da busca de sinais de posição, de moda, ou marcas de excentricidade i n - É odioso, mas mesmo assim útil, impor a essa complexa história algumas
dividual. A moda, por exemplo, combina "a atração da diferenciação e da mudan- periodizações relativamente simples, ao menos para ajudar a compreender a que
ça com a da similaridade e conformidade"; "quanto mais nervosa uma época, tanto tipo de modernismo reagem os pós-modernistas. O projeto do Iluminismo, por
mais rapidamente mudam as suas modas, porque a necessidade da atração da exemplo, considerava axiomática a existência de uma única resposta possível a
diferenciação, um dos agentes essenciais da moda, é acompanhada de perto pelo qualquer pergunta. Seguia-se disso que o mundo poderia ser controlado e organi-
enlanguescer de energias nervosas" (citado em Frisby, 1985, 98). zado de modo racional se ao menos se pudesse apreendê-lo e representá-lo de
maneira correta. M a s isso presumia a existência de um único modo correto de
MODERNIDADE E MODERNISMO 37
36 PASSAGEM DA MODERNIDADE A POS-MODERNIDADE

As mudanças por certo foram afetadas pela perda da fé na inelutabilidade do


representação que, caso pudesse ser descoberto (e era para isso que todos os
progresso e pelo crescente incômodo com a fixidez categórica do pensamento i l u -
empreendimentos matemáticos e científicos estavam voltados), forneceria os meios
minista. Esse incômodo veio em parte do caminho turbulento da luta de classes,
para os fins iluministas. Assim pensavam escritores tão diversos quanto Voltaire,
em particular depois das revoluções de 1848 e da publicação do Manifesto Comu-
D'Alembert, Diderot, Condorcet, Hume, A d a m Smith, Saint-Simon, Auguste Comte,
nista. Antes disso, pensadores da tradição iluminista, como A d a m Smith ou Saint-
Matthew Arnold, Jeremy Bentham e John Stuart M i l l . -Simon, podiam razoavelmente alegar que, uma vez derrubadas as grades das
Mas, depois de 1848, a idéia de que só havia um modo possível de represen- relações de classe feudais, um capitalismo benevolente (organizado quer pela mão
tação começou a ruir. A fixidez categórica do pensamento i l u m i n i s t a foi invisível do mercado ou pelo poder de associação tão defendido por Saint-Simon)
crescentemente contestada e terminou por ser substituída por uma ênfase em sis- poderia trazer os benefícios da modernidade capitalista para todos. Essa tese, v i -
temas divergentes de representação. Em Paris, escritores como Baudelaire e Flaubert gorosamente rejeitada por M a r x e Engels, tornou-se menos sustentável à medida
e pintores como Manet começaram a explorar a possibilidade de diferentes moda- que o século passava e as disparidades de classe produzidas no âmbito do capita-
lidades representacionais de maneiras que lembravam a descoberta das geometrías lismo se tornavam cada vez mais evidentes. O movimento socialista contestava
não-euclidianas que abalou a suposta unidade da linguagem matemática no século cada vez mais a unidade da razão iluminista e inseriu uma dimensão de classe no
XIX. Tímida a princípio, essa contestação expandiu-se a partir de 1890, gerando modernismo. Seria a burguesia ou o movimento dos trabalhadores que daria forma
uma inacreditável diversidade de pensamento e de experimentação em centros tão e dirigiria o projeto modernista? E de que lado estavam os produtores culturais?
distintos quanto Berlim, Viena, Paris, Munique, Londres, N o v a Iorque, Chicago, Para essa pergunta não podia haver uma resposta simples. Para começar, a arte
Copenhague e Moscou, chegando ao seu apogeu pouco antes da Primeira Guerra propagandistica e diretamente política que se integrava a um movimento político
M u n d i a l . A maioria dos comentadores concorda que esse furor de experimentação revolucionário tinha dificuldade para ser consistente com o cânon modernista da
resultou numa transformação qualitativa na natureza do modernismo em algum arte individualista e intensamente "áurica". De fato, a idéia de uma vanguarda
ponto entre 1910 e 1915. (Virginia Woolf preferia a primeira data e D. H. Lawrence, artística poderia, sob certas circunstâncias, ser integrada à de um partido político
a última.) Em retrospecto, como o documentam convincentemente Bradbury e de vanguarda. De vez em quando, os partidos comunistas se esforçavam por
McFarlane, não é difícil ver que alguma espécie de transformação radical de fato mobilizar "as forças da cultura" como parte de seu programa revolucionário, ao
ocorreu nesses anos. O caminho de Swann, de Proust (1913), os Dublinenses, de Joyce mesmo tempo que alguns movimentos artísticos e artistas de vanguarda (Léger,
(1914), Filhos e Amantes, de Lawrence (1913), Morte em Veneza, de M a n n (1914), e o Picasso, Aragon etc.) apoiavam ativamente a causa comunista. Contudo, mesmo na
"Manifesto Vorticista", de Pound, escrito em 1914 (em que ele comparava a lingua- ausência de uma agenda política explícita, a produção cultural tinha de ter efeitos
gem pura com a eficiente tecnologia da máquina), são alguns dos textos-marco políticos. Afinal, os artistas se relacionam com eventos e questões que os cercam,
publicados numa época que também testemunhou uma extraordinária eflorescência e constróem maneiras de ver e de representar que têm significados sociais. N o s
na arte (Matisse, Picasso, Brancusi, Duchamp, Braque, Klee, de Chirico, Kandinsky, agradáveis dias da inovação modernista pré-Primeira Guerra M u n d i a l , por exem-
que exibiram muitas obras no famoso Armory Show de N o v a Iorque em 1913, plo, o tipo de arte produzido celebrava universais mesmo em meio a múltiplas
obras que foram vistas por mais de 10.000 visitantes por dia), na música (O desper- perspectivas; exprimia alienação, opunha-se a todo sentido de hierarquia (mesmo
tar da primavera, de Stravinsky, provocou uma revolução em 1913 e teve como do sujeito, como mostrou o cubismo) e, com freqüência, criticava o consumismo e os
estilos de vida "burgueses". Nessa fase, o modernismo estava bem do lado de um
paralelo a chegada da música atonai de Schoenberg, Berg, Bartok e outros), para
espírito democratizador e do universalismo progressista, embora estivesse no auge da
não falar da dramática mudança na lingüística (a teoria estruturalista da lingua-
concepção "áurica". Entre as guerras, por outro lado, os artistas foram cada vez mais
gem de Saussure, em que o sentido das palavras é determinado antes pela sua
forçados pelos acontecimentos a explicitar seus compromissos políticos.
relação com outras palavras do que pela sua referência a objetos, foi concebida em
1911) e na física, a partir da generalização da teoria da relatividade de Einstein, A mudança de tom do modernismo também decorria da necessidade de en-
com seu recurso às, e sua justificação material das, geometrías não-euclidianas. frentar diretamente o sentido de anarquia, de desordem e de desespero que
Igualmente significativa foi a publicação, em 1911, de Os princípios da administração Nietzsche semeara numa época de espantosa agitação, insatisfação e instabilidade
científica, de F. W. Taylor, dois anos antes de Henry Ford instalar a primeira linha na vida político-econômica — uma instabilidade que o movimento anarquista do
de produção em Dearborn, Michigan. final do século XIX teve de enfrentar, tendo contribuído para ela de maneiras
É difícil não concluir que todo o mundo da representação e do conhecimento importantes. A articulação de necessidades eróticas, psicológicas e irracionais (do
tipo que Freud identificou e Klimt representou em sua arte do livre fluxo) contri-
passou por uma transformação fundamental nesse curto espaço de tempo. Como
buiu para a confusão. Essa manifestação particular do modernismo, portanto, teve
e por que isso ocorreu é a essência da questão. Na Parte III, exploraremos a tese
de reconhecer a impossibilidade de representar o mundo numa linguagem sim-
de que a simultaneidade derivou de uma radical mudança na experiência do es-
ples. A compreensão tinha de ser construída por meio da exploração de múltiplas
paço e do tempo no capitalismo ocidental. M a s há alguns outros elementos da
perspectivas. Em resumo, o modernismo assumiu um perspectivismo e um
situação que merecem menção.
38 PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE MODERNIDADE E MODERNISMO 39

relativismo múltiplos como sua epistemologia, para revelar o que ainda conside- formar-se à eficiência da máquina, e, como T i c h i (1987) observou, escritores moder-
rava a verdadeira natureza de uma realidade subjacente unificada, mas complexa. nistas tão diferentes quanto Dos Passos, Hemingway e W i l l i a m Carlos Williams
O que pode ter sido essa singular realidade de base e a sua "eterna presença" modelaram a sua escritura exatamente nessa proposição. Williams mantinha espe-
permaneceu obscuro. Desse ponto de vista, Lênin, por exemplo, investiu contra os cificamente, por exempo, que um poema é mais ou menos como "uma máquina
erros do relativismo e do perspectivismo múltiplo em suas críticas à física "idea- feita de palavras". E esse foi o tema que Diego Rivera celebrou tão vigorosamente
lista" de M a c h , tentando acentuar os perigos políticos e intelectuais para os quais em seus extraordinários murais de Detroit e que se tornou o leitmotif de muitos
o relativismo informe por certo apontava. Há um sentido no qual a irrupção da diretores progressistas de murais dos Estados Unidos durante a depressão (ilustra-
Primeira Guerra M u n d i a l , essa vasta batalha interimperialista, justificou o argu- ção 1.5).
mento de Lênin. Há com certeza muitos fundamentos para afirmar que "a subje- "A verdade é a significação do fato", disse Mies van der Rohe, e um sem-
tividade modernista... simplesmente foi incapaz de lidar com a crise em que a -número de produtores culturais, em particular os que trabalhavam no e em torno
Europa de 1914 foi mergulhada" (Taylor, 1987, 127). do influente movimento Bauhaus dos anos 20, se dedicaram a impor ordem racio-
O trauma da guerra mundial e de suas respostas políticas e intelectuais (algu- nal (definindo-se "racional" pela eficiência tecnológica e pela produção via máqui-
mas das quais analisaremos mais diretamente na Parte III) abriu caminho para na) para atingir metas socialmente úteis (a emancipação humana, a emancipação
uma consideração daquilo que poderia constituir as qualidades essenciais e eternas do proletariado e coisas do tipo). "Pela ordem, promover a liberdade" foi um dos
da modernidade relacionadas na parte inferior da formulação de Baudelaire. Na slogans de Le Corbusier, que enfatizou que a liberdade e a libertação na metrópole
ausência das certezas iluministas quanto à perfectibilidade do homem, a busca de contemporânea dependiam de maneira vital da imposição da ordem racional. O
um mito apropriado à modernidade tornou-se crucial. O escritor surrealista Louis modernismo assumiu no período entre-guerras urna forte tendência positivista e,
Aragon, por exemplo, sugeriu que seu objetivo central em Paris peasant (escrito nos graças aos intensos esforços do Círculo de Viena, estabeleceu um novo estilo de
anos 20) era elaborar um romance "que se apresentasse como mitologia", acrescen- filosofia que viria a ter posição central no pensamento social pós-Segunda Guerra.
tando "naturalmente, uma mitologia do moderno". M a s também parecia possível O positivismo lógico era tão compatível com as práticas da arquitetura modernista
construir pontes metafóricas entre mitos antigos e modernos. Joyce escolheu Ulisses, quanto com o avanço de todas as formas de ciência como avatares do controle
ao passo que Le Corbusier, segundo Frampton (1980), sempre procurou "resolver técnico. F o i esse o período em que as casas e as cidades puderam ser livremente
a dicotomia entre a Estética do Engenheiro e a Arquitetura, dar à utilidade a concebidas como "máquinas nas quais viver". Também foi nesses anos que o
contribuição da hierarquia do mito" (uma prática que ele acentuou cada vez mais poderoso Congress of International Modern Architects (CIAM) se reuniu para adotar
em suas criações em Chandigarth e Ronchamp nos anos 60). M a s quem ou o que sua celebrada Carta de Atenas de 1933, uma carta que, nos trinta anos seguintes,
estava sendo mitologizado? F o i essa a principal interrogação do chamado período iria definir amplamente o objeto da prática arquitetônica modernista.
"heróico" do modernismo. U m a visão tão limitada das qualidades essenciais do modernismo estava bas-
O modernismo do período entre-guerras pode ter sido "heróico", mas também tante propensa à perversão e ao abuso. Há fortes objeções, mesmo no interior do
estava assolado pelo desastre. Havia uma clara necessidade de ação para recons- modernismo (pensemos em Tempos Modernos, de Chaplin), à idéia de que a máqui-
truir as economias devastadas pela guerra na Europa, bem como para resolver na, a fábrica e a cidade racionalizada oferecem uma concepção rica o bastante para
todos os problemas de descontentamento político associados com formas capitalis- definir as qualidades eternas da vida moderna. O problema do modernismo "he-
tas de crescimento urbano-industrial que germinavam. A queda das crenças róico" foi, para resumir, o fato de que, uma vez abandonado o mito da máquina,
iluministas unificadas e a emergência do perspectivismo deixavam aberta a possi- qualquer mito podia alojar-se na posição central da "verdade eterna" pressuposta
bilidade de dar à ação social a contribuição de alguma visão estética, de modo que no projeto modernista. O próprio Baudelaire, por exemplo, dedicara seu ensaio "O
as lutas entre as diferentes correntes do modernismo passaram a ter um interesse Salão de 1846" ao burguês que buscava "realizar a idéia do futuro em todas as suas
mais do que passageiro. E, mais do que isso, os produtores culturais o sabiam. O diversas formas, políticas, industriais e artísticas". Um economista como Schumpeter
modernismo estético era importante e as apostas, altas. O atrativo do mito "eterno" por certo teria aplaudido isso.
tornou-se ainda mais imperativo. Mas essa busca provou ser tão confusa quanto Os futuristas italianos tinham tanto fascínio pela velocidade e pelo poder que
perigosa. "A razão, chegando a um acordo com suas origens míticas, se torna acolheram a destruição criativa e o militarismo violento a tal ponto que Mussolini
espantosamente misturada com o mito... O mito já é iluminismo, e o iluminismo pôde tornar-se seu herói. De Chirico perdeu o interesse pela experimentação mo-
volta a ser mitologia" (Huyssens, 1984). dernista depois da Primeira Guerra, e procurou uma arte comercial com raízes na
O mito ou tinha de nos redimir do "universo informe da contingência" ou, beleza clássica combinada com vigorosos cavalos e desenhos narcisistas de si mesmo
mais programaticamente, fornecer o ímpeto para um novo projeto de ação huma- vestido em roupas históricas (tendo todas as suas obras desse tipo merecido a
na. U m a ala do modernismo apelou para a imagem da racionalidade incorporada aprovação de Mussolini). Também Pound, com sua avidez por conferir à lingua-
na máquina, na fábrica, no poder da tecnologia contemporânea, ou da cidade como gem a eficiência da máquina e com a sua admiração pelo poeta guerreiro
"máquina viva". Ezra P o u n d já apresentara a tese de que a linguagem devia con- vanguardista capaz de dominar uma "multidão incapaz", tornou-se profundamen-
40 PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE MODERNIDADE E MODERNISMO 41

Karl Marx-Hof, em Viena (projetado não somente para abrigar trabalhadores, como
também para ser um bastião de defesa militar contra qualquer ataque rural conser-
vador lançado a uma cidade socialista). Mas as configurações eram instáveis. As-
sim que as doutrinas do realismo socialista foram enunciadas como um lembrete
ao modernismo burguês e ao nacionalismo fascista "decadentes", a política de
frentes populares de muitos partidos comunistas levou a um retorno à arte e à
cultura nacionalistas como um meio de aliar as forças proletárias às forças oscilan-
tes de classe média numa frente única contra o fascismo.
Muitos artistas de vanguarda tentaram resistir a essa referenciação social direta
e lançaram suas redes nas águas das afirmações mitológicas mais universais. T. S.
Eliot criou um virtual cadinho de imagens e linguagens advindas de todos os
cantos da terra em The Waste Land, e Picasso (entre outros) mergulhou no mundo
da arte primitiva (africana em especial) durante algumas de suas fases mais cria-
tivas. No período entre-guerras, havia algo de desesperado na busca de uma mi-
tologia que pudesse de algum modo aprumar a sociedade naquela época contur-
bada. Raphael (1981, xii) captura os dilemas em sua cortante mas simpática crítica
Ilustração 1.5 O mito da máquina dominou tanto a arte modernista de Guernica, de Picasso:
como a realista no período entre-guerras: o mural "Instrumentos do
Poder", de Thomas Hart Benton (1929), é um exemplar típico. As razões pelas quais Picasso foi compelido a recorrer a signos e alegorias
deveriam agora estar bem claras: seu profundo desamparo político diante de
uma situação histórica que ele se propusera registrar; seu titânico esforço para
enfrentar um evento histórico particular com uma verdade alegadamente eter-
te ligado a um regime político (o de Mussolini) que pudesse garantir a pontuali- na; seu desejo de dar esperança e conforto e de fornecer um final feliz, para
dade dos trens. Albert Speer, o arquiteto de Hitler, pode ter atacado ativamente os compensar o terror, a destruição e a desumanidade do evento. Picasso não viu
princípios estéticos do modernismo em sua ressurreição de temas clássicos, mas o que Goya já vira, isto é, que o curso da história só pode ser mudado por
incorporaria muitas técnicas modernistas, pondo-as a serviço de fins nacionalistas, meios históricos e apenas se os homens moldarem a sua própria história, em
com a mesma energia que os engenheiros de Hitler mostraram ao usar as práticas vez de agirem como o autômato de um poder terreno ou de uma idéia
dos projetos do Bauhaus na construção dos campos de concentração (ver, por alegadamente eterna.
exemplo, o iluminador estudo de Lane, 1985, Architecture and politics in Germany,
1918-1945). Revelou-se possível combinar práticas atualizadas da engenharia cien- Infelizmente, como sugeriu Georges Sorel (1974) em sua brilhante obra Refle-
tífica, tal como incorporadas nas formas mais extremas da racionalidade técnico- xões sobre a Violência, publicada pela primeira vez em 1908, era possível inventar
-burocrática e da máquina, com um mito da superioridade ariana e do sangue e do mitos que tivessem o poder de superar a política de classe. O sindicalismo do tipo
solo da Terra-Pai. Foi exatamente assim que uma forma virulenta de "modernismo que Sorel promovera originou-se como movimento participativo da esquerda, pro-
reacionário" veio a ter o encanto que teve na Alemanha nazista, sugerindo que fundamente antagônico a todas as formas de poder do Estado, mas evoluiu para
todo esse episódio, embora modernista em certos aspectos, devia mais à fraqueza um movimento corporativista (atraente para alguém como Le Corbusier nos anos
do pensamento iluminista do que a alguma reversão ou progressão dialética para 30) que se tornou um poderoso instrumento de organização da direita fascista. Ao
uma conclusão "natural" (Herf, 1984, 233). fazê-lo, foi capaz de apelar para certos mitos de uma comunidade hierarquicamen-
Foi um período em que as tensões sempre latentes entre internacionalismo e te organizada, mas mesmo assim participativa e exclusiva, com uma clara identi-
nacionalismo, universalismo e política de classe foram levadas a uma contradição dade e estreitos vínculos sociais, repleta dos seus próprios mitos de origem e de
absoluta e instável. Era difícil manter-se indiferente à Revolução Russa, ao crescen- onipotência. E instrutivo observar o quanto o fascismo aproveitou referências clás-
te poder de movimentos socialistas e comunistas, ao colapso de economias e go- sicas (arquitetônicas, políticas, históricas) e construiu concepções mitológicas cor-
vernos e à ascensão do fascismo. A arte politicamente comprometida assumiu uma respondentes. Raphael (1981, 95) sugere uma interessante razão: os gregos "sempre
ala do movimento modernista. O surrealismo, o construtivismo e o realismo socia- tiveram consciência do caráter nacional da sua mitologia, ao passo que os cristãos
lista procuravam mitologizar o proletariado de suas maneiras respectivas, e os sempre atribuíram à sua um valor independente do espaço e do tempo". O filósofo
russos puseram-se a escrever isso no espaço, tal como o fez toda uma sucessão de alemão Heidegger também baseou em parte sua lealdade aos princípios (senão às
governos socialistas na Europa, através da criação de prédios como o celebrado práticas) do nazismo em sua rejeição de uma racionalidade de máquina
42 PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE MODERNIDADE E MODERNISMO 43

universalizante como mitologia apropriada para a vida moderna. Ele propôs, em superficial da máquina eficiente como mito capaz de encarnar todas as aspirações
vez disso, um contramito de enraizamento no lugar e de tradições atreladas ao humanas. Na arquitetura e no planejamento, isso significava desprezar o ornamen-
ambiente como o único fundamento seguro para a ação social e política n u m mundo to e a personalização (a ponto de os inquilinos das casas públicas não poderem
manifestamente conturbado (ver Parte III). A estetização da política através da modificar o ambiente para atender a necessidades pessoais e de os alunos que
produção desses mitos todo-abrangentes (de que o nazismo era apenas um exem- viviam no Pavilhão Suíço de Le Corbusier terem de torrar todos os verões porque
plo) foi o lado trágico do projeto modernista, lado que ficou cada vez mais saliente o arquiteto se recusava, por razões estéticas, a permitir a instalação de persianas).
à medida que a era "heróica" chegava, trôpega, ao fim na Segunda Guerra M u n - Significava ainda uma enorme paixão pelos espaços e perspectivas maciços, pela
dial. uniformidade e pelo poder da linha reta (sempre superior à curva, pronunciou Le
Enquanto o modernismo dos anos entre-guerras era "heróico" mas acossado Corbusier. Space, time and architecture, de Giedion, publicado pela primeira vez em
pelo desastre, o modernismo "universal" ou "alto" que conseguiu hegemonia de- 1941, tornou-se a Bíblia estética desse movimento. A grande literatura modernista
pois de 1945 exibia uma relação muito mais confortável com os centros de poder de Joyce, Proust, Eliot, Lawrence, Faulkner — antes julgada subversiva, incompre-
dominantes da sociedade. A contestada busca de um mito apropriado pareceu ensível ou chocante — foi incorporada e canonizada pelo establishment (em univer-
receder em parte, suspeito eu, porque o sistema de poder internacional — organi- sidades e nas grandes revistas literárias).
zado, como veremos na Parte II, ao longo de linhas fordistas-keynesianas, sob os O relato de Guilbaut (1983) em How New York stole the idea of modern art é
olhos vigilantes da hegemonia norte-americana — se tornou relativamente estável. instrutivo aqui, não apenas por causa das múltiplas ironias que a história revela.
A arte, a arquitetura, a literatura etc. do alto modernismo tornaram-se artes e Os traumas da Segunda Guerra e da experiência de Hiroshima e Nagasaki eram,
práticas do establishment numa sociedade em que uma versão capitalista corporativa tal como os traumas da Primeira Guerra, difíceis de absorver e de representar de
do projeto iluminista de desenvolvimento para o progresso e a emancipação huma- maneira realista, e a inclinação para o expressionismo abstrato por parte de pinto-
na assumira o papel de dominante político-econômica. res como Rothko, Gottlieb e Jackson Pollock refletia conscientemente essa necessi-
A crença "no progresso linear, nas verdades absolutas e no planejamento ra- dade, embora as suas obras tenham se tornado centrais por razões bem diferentes.
cional de ordens sociais ideais" sob condições padronizadas de conhecimento e de Para começar, a luta contra o fascismo era descrita como uma luta para defender
produção era particularmente forte. Por isso, o modernismo resultante era "posi- a cultura e a civilização ocidentais do barbarismo. Explicitamente rejeitado pelo
tivista, tecnocêntrico e racionalista", ao mesmo tempo que era imposto como a obra fascismo, o modernismo internacional nos Estados Unidos "confundiu-se com a
de uma elite de vanguarda formada por planejadores, artistas, arquitetos, críticos cultura definida em termos mais amplos e abstratos". O problema é que o moder-
e outros guardiães do gosto refinado. A "modernização" de economias européias nismo internacional tinha exibido fortes tendências socialistas, e até propagandis-
ocorria velozmente, enquanto todo o impulso da política e do comércio internacio- tas, nos anos 30 (por meio do surrealismo, do construtivismo e do realismo socia-
nais era justificado como o agente de um benevolente e progressista "processo de lista). A despolitização do modernismo, que ocorreu com a ascensão do expressio-
modernização" num Terceiro Mundo atrasado. nismo abstrato, pressagiou ironicamente sua assimilação pelo establishment político
Na arquitetura, por exemplo, as idéias do C I A M , de Le Corbusier e de Mies e cultural como arma ideológica na Guerra Fria. A arte era suficientemente plena
van der Rohe tinham a primazia na luta para revitalizar cidades envelhecidas ou de alienação e ansiedade, e bastante expressiva da fragmentação violenta e da
arrasadas pela guerra (reconstrução e renovação urbana), reorganizar sistemas de destruição criativa (temas que por certo eram apropriados à era nuclear) para ser
transporte, construir fábricas, hospitais, escolas, obras públicas de todos os tipos e, usada como um maravilhoso exemplo do compromisso norte-americano com a
por último, mas não menos importante, construir habitações para uma classe tra- liberdade de expressão, com o individualismo exacerbado e com a liberdade de
balhadora potencialmente inquieta. E fácil, em retrospecto, argumentar que a ar- criação. Embora a repressão macarthista fosse dominante, as corajosas telas de
quitetura resultante apenas produzia impecáveis imagens de poder e de prestígio Jackson Pollock provavam que os Estados Unidos eram um bastião de ideais libe-
para corporações e governos conscientes da publicidade, enquanto desenvolvia rais num mundo ameaçado pelo totalitarismo comunista. Nessa virada, havia ain-
projetos modernistas de habitação popular que se tornaram "símbolos de alienação da uma reviravolta mais tortuosa. "Agora que a América é reconhecida como o
e de desumanização" (Huysses, 1984, 14; Frampton, 1980). Mas também é possível centro em que a arte e os artistas de todo o mundo devem se encontrar", escreve-
dizer que, se se desejavam encontrar soluções capitalistas para os dilemas do de- ram Gottlieb e Rothko em 1943, "chegou o momento de aceitarmos valores cultu-
senvolvimento e da estabilização político-econômica pós-guerra, era necessário rais num plano verdadeiramente global." Ao fazê-lo, eles procuravam um mito que
algum tipo de planejamento e industrialização em larga escala na indústria da fosse "trágico e intemporal". O que esse apelo ao mito permitia na prática era uma
construção, aliado à exploração de técnicas de transporte de alta velocidade e de rápida passagem do "nacionalismo para o internacionalismo e, deste, para o
desenvolvimento de alta densidade. Em muitos desses aspectos, o alto modernis- universalismo" (citado em Guilbaut, 1983; p. 174). Mas, para se distinguir do
mo teve bastante sucesso. modernismo existente alhures (em Paris principalmente), era preciso forjar uma
Seu real lado inferior estava, sugiro, em sua celebração subterrânea do poder "nova estética viável" a partir de matérias-primas distintamente americanas. O que
e da racionalidade burocráticos corporativos, sob o disfarce de um retorno ao culto tivesse essa característica tinha de ser celebrado como a essência da cultura ociden-
44 PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE

tal. E assim ocorreu com o expressionismo abstrato, ao lado do liberalismo, da


Coca-Cola, dos Chevrolets e das casas de subúrbio cheias de bens de consumo
duráveis. Artistas de vanguarda, conclui Guilbaut (p. 200), "agora politicamente
individualistas 'neutros', articulavam em suas obras valores que eram mais tarde
assimilados, utilizados e cooptados pelos políticos, disso resultando a transforma-
ção da rebelião artística em agressiva ideologia liberal".
Considero muito importante, como Jameson (1984a) e Huyssens (1984) insis-
tem, reconhecer a significação dessa absorção de uma espécie particular de estética
modernista pela ideologia oficial e estabelecida e o seu uso com relação ao poder
corporativo e ao imperialismo cultural. Essa absorção significou que, pela primeira
vez na história do modernismo, a revolta artística e cultural, bem como a revolta
política "progressista", tiveram de ser dirigidas para uma poderosa versão do
próprio modernismo. O modernismo perdeu seu atrativo de antídoto revolucioná-
rio para alguma ideologia reacionária e "tradicionalista". A arte e a alta cultura se
tornaram uma reserva tão exclusiva de uma elite dominante que a experimentação
no seu âmbito (com, por exemplo, novas formas de perspectivismo) ficou cada vez
mais difícil, exceto em campos estéticos relativamente novos como o cinema (onde
obras modernistas como Cidadão Kane, de Orson Welles, transformaram-se em clás-
sicos). Pior ainda, parecia que essa arte e essa cultura não podiam senão monu-
mentalizar o poder corporativo ou estatal, ou o "sonho americano", como mitos
auto-referenciais, projetando um certo vazio de sensibilidade no lado da formula-
ção de Baudelaire que se apoiava nas aspirações humanas e nas verdades eternas.
Foi esse o contexto em que os vários movimentos contraculturais e antimoder-
nistas dos anos 60 apareceram. Antagônicas às qualidades opressivas da raciona-
lidade técnico-burocrática de base científica manifesta nas formas corporativas e
estatais monolíticas e em outras formas de poder institucionalizado (incluindo as
dos partidos políticos e sindicatos burocratizados), as contraculturas exploram os
domínios da auto-realização individualizada por meio de uma política distintiva-
mente "neo-esquerdista" da incorporação de gestos antiautoritários e de hábitos
iconoclastas (na música, no vestuário, na linguagem e no estilo de vida) e da crítica
da vida cotidiana. Centrado nas universidades, institutos de arte e nas margens
culturais da vida na cidade grande, o movimento se espraiou para as ruas e cul-
minou numa vasta onda de rebelião que chegou ao auge em Chicago, Paris, Praga,
Cidade do México, M a d r i , Tóquio e Berlim na turbulência global de 1968. Foi quase
como se as pretensões universais de modernidade tivessem, quando combinadas
com o capitalismo liberal e o imperialismo, tido um sucesso tão grande que forne-
cessem um fundamento material e político para um movimento de resistência
cosmopolita, transnacional e, portanto, global, à hegemonia da alta cultura moder-
nista. Embora fracassado, ao menos a partir dos seus próprios termos, o movimen-
to de 1968 tem de ser considerado, no entanto, o arauto cultural e político da
subseqüente virada para o pós-modernismo. Em algum ponto entre 1968 e 1972,
portanto, vemos o pós-modernismo emergir como um movimento maduro, embo-
ra ainda incoerente, a partir da crisálida do movimento antimoderno dos anos 60.

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