Direitos Fundamentais Apontamentos 1. Parte

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DIREITOS FUNDAMENTAIS

Apontamentos das aulas do Prof. Doutor Paulo Brito

O art.º 16.º n.º 2 da CRP consagra uma conceção duplamente jusnaturalista e


universalista dos direitos humanos, vejamos detalhadamente de que modo o faz.

Os Direitos Fundamentais (DF) podem ser encarados sob várias perspectivas,


designadamente nas seguintes: jusnaturalista ou filosófica vs. universalista ou
internacionalista.
Na primeira, os DF são naturais do ser humano, independentemente de factores
temporais ou geográficos.
Na segunda, são considerados dtos essenciais num determinado tempo e, pelo menos,
nas grandes regiões do mundo.
A perspectiva jusnaturalista parte da ideia de que há dtos fundamentais que decorrem da
própria natureza humana, nomeadamente da dignidade e igualdade dos homens. Em
termos históricos, foi o Cristianismo que veio desenvolver o conceito de dignidade
humana. Assumiu, na época, uma postura revolucionária na medida em que condenava
a escravatura com base na ideia de que, enquanto filhos de Deus, todos os seres
humanos eram iguais em dignidade sem distinção de raça ou cultura. Nesta medida veio
revolucionar o status quo existente. No entanto, o ser humano participava do divino
através da razão, a qual, iluminada, era completada pela fé. Assim, os dtos do ser
humano são eram ainda dtos subjetivos em toda a sua plenitude. Era preciso
“desprovidencializar” a justiça no dto. Isto é, que o individuo fosse ele próprio ponto de
partida autónomo da ordem social e politica. Era necessário afirmar a primazia do
individuo sobre o Estado, construído contratualmente com base nas liberdades políticas
individuais. A construção contratual do Estado remonta a Locke e Rousseau.
De acordo com esta perspectiva jusnaturalista, os DF eram considerados absolutos,
imutáveis e intemporais. Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789,
consideram-se dtos naturais e imprescritíveis a liberdade, segurança, propriedade e
resistência à opressão. Considerou também que toda a sociedade em que não estivesse
garantida a separação de poderes nem assegurada a garantia dos Dtos Fundamentais não
teria Constituição (art.º 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789). A separação de poderes apresentava-se como instrumento de limitação da
soberania.

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As primeiras declarações de direitos remontam a 1776 com as declarações de Virgínia,
Maryland e Pennsylvania e, mais tarde, com a já referida Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789. Importa referir que as declarações de direitos
americanas referem-se a direitos do homem, mas neste conceito não eram incluídos na
altura os escravos, as mulheres e os criados (havia ainda escravatura nos EUA). A
concepção universalista ou internacionalista dos DF remonta ao final da 2ª guerra na
sequência das violações dos direitos humanos ocorridas anteriormente.
A Carta da Nações Unidas foi elaborada em S. Francisco, em 1945. O seu capítulo 7.º
regulamenta as condições em que é legítimo o uso da força, encontrando-se qualquer
resolução do Conselho de Segurança relativa a este dependente do efeito paralisante
decorrente do eventual exercício do direito de veto por parte de um dos 5 membros
permanentes do Conselho de Segurança (EUA, Rússia, França, Reino Unido e China).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) foi assinada em Paris em 1948
com 48 votos a favor, sem votos contra, mas com 8 abstenções (URSS, Polónia,
Ucrânia, Bielorrússia, Checoslováquia, Iugoslávia, África do Sul e Arábia Saudita). Em
1966 foram assinados os pactos sobre Direitos Cívicos e Políticos e sobre Direitos
Económicos, Sociais e Culturais, ambos em vigor desde 1976. Importa referir que os
EUA só há bem pouco tempo ratificou o 1º não tendo feito relativamente ao 2º.
De acordo com o art.º 14.º do Pacto sobre Dtos Cívicos e Políticos todas as pessoas têm
o dto a que a sua causa ou pretensão seja apreciada por um órgão jurisdicional
independente. Fazer depender a entrada de um estrangeiro no respectivo território da
renúncia ao foro poderá ser interpretado como uma violação do mencionado art.º 14º.
No entanto, isto acontece com a entrada de estrangeiros nos EUA.
Ainda antes da DUDH em 1948 os Estados Americanos tinham elaborado a Convenção
Americana assinada em 1969 em São José (capital da Costa Rica) que, no entanto, só
entrou em vigor em 1978. A importância desta Convenção é muito relativa porquanto
ainda não foi ratificada pelos EUA, Canadá e Cuba e só na década de 90 é que o foi pela
Argentina e Brasil.
A nível europeu:
No âmbito do Conselho da Europa importa referir a CEDH (Convenção Europeia dos
Direitos Humanos) de 1950, em vigor desde 1953 e actualmente ratificada por todos os
46 Estados membros do Conselho da Europa (excluindo atualmente a Rússia).
Portugal tem sido várias vezes condenado por violação da CEDH, designadamente do
seu art.º 6.º que estabelece o dto a que qualquer causa seja decidida dentro de um prazo
razoável e mediante processo justo e equitativo. Provavelmente preocupado com esta

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realidade, o legislador constituinte (Assembleia Constituinte), na revisão constitucional
de 1997, resolveu aditar o n.º 4 ao art.º 20.º da CRP que reproduz o art.º 6.º da CEDH.
Este reforço constitucional não se mostrava necessário porquanto o art.º 6.º da CEDH já
vigorava na nossa ordem jurídica interna em face dos artigos 8.º nº 2 e 16.º n.º 1 da
CRP.
No âmbito da União Europeia (27 Estados) importa referir a Carta dos DF da União
Europeia de 2001.
Em face do exposto, poderemos falar da existência de verdadeiros DF internacionais?
Isto depende de saber se os indivíduos serão, eles próprios, sujeitos imediatos de Dto
Internacional, por exemplo, se são titulares dos DF previstos nas Convenções
internacionais e se os poderão invocar junto de instâncias internacionais. Assim,
depende também de saber até que ponto existe protecção jurídico-internacional dos DF
internacionalmente reconhecidos.
Durante muito tempo o Direito Internacional era dominado pelo princípio da não
ingerência ou domestic affair e as pessoas eram protegidas além-fronteiras pela
protecção diplomática ou através de acordos inter-estaduais. A situação dos indivíduos
era definida e protegida pelo Estado da nacionalidade ou residência sem que os outros
Estados tivessem legitimidade para intervir. Este entendimento foi sendo
progressivamente ultrapassado, alargando-se a esfera de relevância internacional e
consagrando-se a ideia de que o gozo efectivo de certos DF pelos cidadãos de todos os
Estados é uma questão de Direito Internacional. O princípio que hoje se afirma no
contexto internacional relativamente aos Direitos Humanos é o do international
concern. Nesse sentido o TIJ (Tribunal Internacional de Justiça) declarou ser obrigação
de cada Estado, relativamente aos demais, o respeito pelos princípios relativos aos DF
da pessoa humana.

DOMESTIC AFFAIR INTERNATIONAL CONCERN

Neste contexto, apesar da DUDH ser, do ponto de vista jurídico formal, uma mera
Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas sem carácter vinculativo, muitos
autores reconhecem a alguns dos seus preceitos o valor de jus cogens, isto é, Direito
Internacional imperativo.
Sendo pacífico que os indivíduos são sujeitos de direito internacional convencional, isto
é, os Estados signatários das Convenções comprometeram-se perante os outros Estados
a assegurar na respectiva ordem interna determinados dtos aos seus cidadãos (ex: o dtº a

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que uma causa seja decidida num prazo razoável prevista no art.º 6.º da CEDH), o
problema era saber se também seriam sujeitos de DI comum. A mudança que ocorreu na
sociedade internacional foi a favor da universalização da ideia dos dtos do homem.
Nesse sentido, foram criados vários tribunais internacionais para julgamento de crimes
contra a paz e a humanidade, como, por ex, os tribunais penais internacionais para a ex-
Jugoslávia e para o Ruanda. Foi manifesta a vontade no sentido da repressão do tráfico
de pessoas, proibição de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.
Para além destes tribunais com carácter ad hoc, foi criado o TPI com carácter
permanente, tendo o Estatuto de Roma do TPI entrado em vigor em Julho de 2002. Pela
primeira vez na história de um tribunal penal internacional as vítimas de crimes podem
fazer-se representar em juízo peticionando indemnizações a cargo do um fundo especial
para o efeito (Trust Fund). Pela primeira vez na história de um tribunal penal
internacional foi criado um Gabinete de Apoio Judiciário às Vítimas (Office of Public
Counsel for the Victims). Independentemente disto poder ser interpretado como uma
visão restaurativa da justiça, em vez de retributiva, parece agora já não subsistirem
dúvidas que os indivíduos são também sujeitos de DI comum.
As normas internacionais relativas a DF valem na nossa ordem jurídica interna não só
por força do art.º 8.º da CRP (que consagra uma cláusula de recepção plena do Direito
Internacional geral e convencional), mas também pelo art.º 16.º nº.1 da CRP que
estabelece que os DF constitucionalmente protegidos podem também ter como fonte as
regras e os princípios de Direito Internacional. Para além disso, a relevância interna dos
DF internacionais decorre também do art.º 16.º n.º 2 CRP porquanto a DUDH intervém
igualmente na interpretação dos preceitos internos relativos aos DF. Assim, a DUDH
faz parte integrante da Constituição material portuguesa e os seus princípios estendem a
sua influência a todas as normas constitucionais e a toda a ordem jurídica interna
portuguesa. Nesse sentido se compreende a afirmação de Jorge Miranda para quem o
art.º 16.º n.º 2 da CRP consagra uma conceção duplamente jusnaturalista e universalista
dos DF. Com efeito, a nossa Constituição, ao confiar à DUDH um papel de relevo na
interpretação e integração dos preceitos relativos aos DF, proclama a subordinação do
catálogo interno de DF a um princípio de valor que transcende a vontade política dos
Estados: “a dignidade e o valor da pessoa humana”. Deste modo, o valor da pessoa
humana apresenta-se como o referente necessário para a compreensão dos preceitos
relativos aos DF.

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O art.º 16.º n.º 1 da CPR consagra o princípio de cláusula aberta dos Direitos
Fundamentais, vejamos pormenorizadamente de que modo tal ocorre.

Ao contrário do que sucede com o Dtº Penal em que vigora o princípio da tipicidade
(nullum crimen sine lege – art.º 29.º n.º 1 da CRP), no que diz respeito aos DF vigora o
princípio oposto, ou seja, o de cláusula aberta, da não tipicidade ou da não enumeração
taxativa. É isto que decorre de forma inequívoca do art.º 16.º nº 1 da nossa Constituição.
O mesmo sucede com outras Constituições. Por ex, a IX Amendment à Constituição dos
EUA também referia que a enumeração de certos dts na Constituição não devia ser
entendida para negar ou menosprezar outros dtos detidos pelo povo.
Para além dos DF previstos na CRP que sejam simultaneamente formal e materialmente
constitucionais, há DF previstos na lei ordinária e nas regras de Direito Internacional
(DI) que são DF apenas materialmente constitucionais, mas que, por esse facto,
beneficiam do mesmo regime jurídico estabelecido no art.º 17.º CRP para os DF
previstos no Título II, Parte I.
ex: o dtº ao ressarcimento pelos danos sofridos, previsto no art.º 483.º CC, é um DF
materialmente constitucional, sendo apenas parcialmente protegido na Constituição
formal (art.º 22.º CRP) no que diz respeito à responsabilidade das entidades públicas.
Um outro DF de fonte legal é o direito à fundamentação do acto administrativo previsto
no art.º 152.º do CPA. Enquanto estiver em causa a aplicação de sanções ou medidas
equiparáveis, poderá também entender-se que o direito dos interessados à audiência
prévia (art.º 100.º do CPA) constitui um dtº fundamental contido numa lei ordinária. Tb
os dtos de personalidade consagrados no Código Civil, nomeadamente o dtº ao nome
(art.º 72º), o dtº à imagem (art.º 79º), apesar de não terem estado sempre
especificamente protegidos no texto da Constituição, já há muito eram considerados
pela doutrina como DF havendo uma analogia flagrante com os dtos pessoais
constitucionais. Alguns destes dtºs de personalidade acabaram por ser
constitucionalizados pelas sucessivas revisões constitucionais como aconteceu com o
dtº à imagem na revisão de 1982 (art.º 26.º n.º 1 CRP). Assim, o dtº à imagem previsto
no art.º 79.º do CC já era um dtº fundamental antes de ter sido acrescentado ao n.º 1 do
art.º 26.º da CRP pela revisão de 1982. Antes desta era um DF materialmente
constitucional. Depois desta passa a ser um DF material e formalmente constitucional.
Igualmente o dtº a que determinada causa seja objeto de decisão em prazo razoável,
previsto no art.º 6.º da CEDH, representa um DF materialmente constitucional que, a

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partir da revisão constitucional de 1997, veio a ser tb um DF formalmente
constitucional em virtude do aditamento do n.º 4 ao art.º 20.º da CRP.
Também no âmbito do DI existem DF materialmente constitucionais como, por
exemplo, o dtº ao mínimo de existência previsto no art.º 25º da DUDH. Em termos
políticos este dtº fundamental traduziu-se na opção de criar a nível nacional o RMG
(rendimento mínimo garantido), hoje RSI (rendimento social de inserção).

A CRP está dividida em 4 partes:


Parte I (Direitos e deveres fundamentais)
Parte II (Organização económica)
Parte III (Organização do poder politico)
Parte IV (Garantia e Revisão da Constituição)

Aquilo que é habitualmente considerado como DF contidos no catálogo constitucional


são aqueles que se encontram no Título II da Parte I:
Capítulo I (Direitos, liberdades e garantias pessoais)
Capítulo II (Direitos, liberdades e garantias de participação política)
Capítulo III (Direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores)

Importa referir que há DF formal e materialmente constitucionais, mas que se


encontram fora do catálogo, isto é, da Parte I, Título II da CRP. Ex: o Dtº fundamental
de não se pagarem impostos inconstitucionais ou ilegalmente liquidados e cobrados
(art.º 103.º nº 3 da CRP).

Artsº 483º e 70º e ss CC


DF contantes das leis
Artsº 100º e 152º CPA

Artº 6º CEDH
das regras de DI
Artº 25 DUDH

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DF constantes da CRP, mas fora do catálogo:
ex: Dtºs de participação política previstos nos artsº 122º, 124º n.º 1 e 239.º n.º4 CRP
ex: Dtºs e garantias dos administrados previstos no artº 268º CRP
ex: Dtºs dos funcionários públicos previstos no artº 269º nºs 2 e 3 CRP

Por outro lado, importa assinalar que há preceitos incluídos no catálogo constitucional,
ou seja, na Parte I, Título II, mas que, todavia, não contêm matéria de DF, isto é, não
são materialmente constitucionais. Ex: os Dtoºs de antena, de resposta e de réplica
política dos partidos da oposição parlamentar, estabelecidos no art.º 40.º nº 2 CRP, são
de excluir da matéria dos Direitos Fundamentais. Com efeito, não se destina a garantir
bens jurídicos pessoais, mas antes a estabelecer normas da organização politico-
democrática. Este dtº de resposta e de réplica politica, previsto no art.º 40.º nº 2, não se
deve confundir com o dtº de resposta e de rectificação consagrado no art.º 37.º n.º 4 da
CRP, este, sim, um verdadeiro dtº fundamental.
E os direitos das comissões de trabalhadores (art.º 54.º nº 5 CRP) e das associações
sindicais (art.º 56.º n.º 2 da CRP) constituirão verdadeiros DF?
A doutrina divide-se. Para Vieira de Andrade não representam verdadeiros DF pois não
estão em causa posições subjectivas individuais fundamentais. Assim, estes preceitos
visam concretizar opções de organização económico-social:
- da empresa: art.º 54º nº 5 alíneas b) e) e f)
- administrativa art.º 54 nº 5 alínea d) e art.º 56.º n.º 2 alínea a)
Já para Gomes Canotilho tratam-se de verdadeiros DF, representando dtºs dos homens
trabalhadores. Considera este autor que Vieira de Andrade, sem qualquer base
constitucional, os rebaixa em nome da “pureza” da ideia princípio da dignidade da
pessoa humana, elaborando uma teoria de dtºs fundamentais constitucionalmente
inadequada.

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