Patricia Daflon Dos Santos_2021

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Universidade Federal Fluminense

Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo


Doutorado em Arquitetura e Urbanismo

Patricia Daflon dos Santos

Cidade e Educação: propostas educacionais e seus reflexos nas utopias urbanas

Niterói, 2021
Universidade Federal Fluminense
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
Doutorado em Arquitetura e Urbanismo

Patricia Daflon dos Santos

Cidade e Educação: propostas educacionais e seus reflexos nas utopias urbanas

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal Fluminense (UFF) como parte dos requisitos à
obtenção do título de Doutorado, sob orientação da Prof. Dr.
Werther Holzer

Niterói, 2021
Ficha catalográfica automática - SDC/BAU

Gerada com informações fornecidas pelo autor

S237c Santos, Patricia Daflon dos


Cidade e Educação: Propostas Educacionais e seus reflexos
nas utopias urbanas / Patricia Daflon dos Santos ; Werther
Holzer, orientador. Niterói, 2021. 179 f.
Tese (doutorado)-Universidade Federal Fluminense, Niterói,
2021.
DOI: http://dx.doi.org/10.22409/PPGAU.2021.d.07789850750
1. Cidade e Educação. 2. Utopias Urbanas. 3. Políticas
Públicas. 4. Cidades Educadoras. 5. Produção intelectual.

I. Holzer, Werther, orientador. II. Universidade Federal


Fluminense. Escola de Arquitetura e Urbanismo. III. Título.

CDD -

Bibliotecário responsável: Debora do Nascimento - CRB7/6368


PATRICIA DAFLON DOS SANTOS

Cidade e Educação: propostas educacionais e seus reflexos nas utopias urbanas

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal Fluminense (UFF) como parte dos requisitos a
obtenção do título de Doutorado, sob orientação da Prof.
Dr. Werther Holzer.

Aprovada em 01 de dezembro de 2021.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Werther Holzer Orientador

Prof. Dr. Jorge Baptista de Azevedo (PPGAU - UFF) Examinador


Prof. Dr. Ronaldo de Moraes Brilhante (EAU - UFF) Examinador

Profa. Dra. Ana Beatriz Araujo Velasquez (Curso Arquitetura e Urbanismo -


UFT) Examinador

Profa. Dra. Jeani Delgado Paschoal Moura (PPGEO - UEL) Examinador

Profa. Dra. Lucia Helena Batista Gratao (DEGEO - UEL) Examinador


Dedico este trabalho à minha família. Minha filha Giulia,
meu marido Hilton, minha mãe Leila, meu pai Carlos
Alberto e minha sogra Teresa (em memória).
AGRADECIMENTOS

Este é o momento de agradecer e reconhecer o carinho daqueles que fizeram


parte desta trajetória.
Ao meu orientador Prof. Werther Holzer exemplo de professor e pesquisador.
Por toda a sua generosidade, sensibilidade e paciência. Por ter me aceitado
como orientanda, por ter proporcionado tantos diálogos. Aquele que muitas
vezes me “levou pelas mãos e me encaminhou à janela” para que eu pudesse
olhar com tranquilidade e segurança o caminho a ser trilhado para esta pesquisa.
Minha sincera gratidão e admiração.
Às professoras e professores membros da banca de avaliação. Profa. Dra. Ana
Beatriz Velasques, Profa. Dra. Jeani Delgado, Profa. Dra. Lúcia Helena Gratão.
Ao Prof. Dr. Jorge Baptista, Prof. Dr. Ronaldo Brilhante, agradeço por
contribuírem com este trabalho mais uma vez.
À minha filha Giulia, por sua sensibilidade e carinho. Por sua madura
compreensão na importância desse momento. Este trabalho é para você.
Ao meu marido Hilton, por todo o suporte e companheirismo. Aquele com quem
pude dividir as dúvidas, incertezas e descobertas deste trabalho. Todo o meu
amor. Muito obrigada.
Aos meus pais, exemplos de seriedade, de vida. Agradeço por cada palavra de
incentivo, por cada acolhimento e suporte.
À Millie, minha companhia durante as madrugadas de escrita e trabalho.
Não posso deixar de agradecer aos amigos que fiz na minha turma de
Doutorado, aos professores do Programa de Pós - Graduação em Arquitetura e
Urbanismo que tanto contribuíram com novos conhecimentos e ensinamentos.
Aos funcionários sempre solícitos e gentis, especialmente Ângela Carvalho.
Agradeço também à minha amiga e irmã de coração Cristine que, mesmo de
longe, sempre acompanhou e torceu por mim. Às amigas Karla Macedo, Juliana
Prata e Bárbara Coutada pela amizade e parceria.
RESUMO

O presente trabalho teve como tema o modelo “Cidades Educadoras” de


Barcelona, buscando identificar a viabilidade do “discurso” e as possibilidades
de aplicação dos princípios contidos e mundialmente difundidos pela “Carta das
Cidades Educadoras” em políticas públicas das cidades brasileiras que aderiram
a Associação Internacional de Cidades Educadoras (AICE). A proposta deste
trabalho consiste, portanto, em analisar criticamente o projeto “Cidades
Educadoras”, buscando verificar a sua viabilidade de implementação frente ao
discurso expresso nos princípios norteadores, contidos na “Carta das Cidades
Educadoras”. Tal documento gerado após o primeiro Congresso Internacional
das Cidades Educadoras, no início da década de 90, vem sendo adotado como
“modelo” de experiência em Educação Urbana por diversas cidades no mundo
inteiro. Por meio de uma referencial teórico com foco no protagonismo conceitual
da ideia de lugar, este estudo emerge então, da necessidade de reflexão sobre
a relação que se estabelece entre cidade e educação, a partir de uma
metodologia transdisciplinar de análise que perpassa as perspectivas da
geografia, da educação e do urbanismo.

Palavras – Chave: Cidade. Educação. Utopia Urbana. Cidades Educadoras.


ABSTRACT

This work focused on the “Educating Cities” model developed in Barcelona and sought to
identify the feasibility of application of the principles contained in the “Charter of Educating
Cities” in public policies of Brazilian cities that adhere to the International Association of
Educating Cities (AICE). The charter, generated after the first international congress of
educating cities in 1990, has been adopted as a model in urban education by several cities
around the world. The purpose of this work was to critically analyze the “Educating Cities”
project, and verify if implementation in Brazilian cities was conducted in accordance with the
Charter of Educating Cities principles. Through document review, using a theoretical
framework focused on the conceptual role of “place”, this study emerged from the need to
reflect on the relationship that is established between city and education; using a
multidisciplinary approach that transcends the perspectives of geography, education, and
urbanism.

Keywords: City. Education. Urban Utopia. Education Cities.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

CAPÍTULO 1 - O QUE ESTÁ SENDO PROPOSTO QUANDO SE FALA EM 19


“EDUCAR PARA A VIDA URBANA”

CAPÍTULO 2 - CIDADE E UTOPIA 52

CAPÍTULO 3 - O RELATÓRIO APRENDER A SER de Edgar Faure 96

CAPÍTULO 4 - O PROJETO CIDADES EDUCADORAS 125

CONSIDERAÇÕES FINAIS 169

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 174


10

INTRODUÇÃO

“Você vê um ponto final ou um novo começo?”

Começo este trabalho relembrando o percurso que me trouxe até aqui. Digo
àqueles que acompanham minha vida acadêmica que o tema Cidades Educadoras
me escolheu, afinal este é um tema de pesquisa muito diferente daqueles antes
pesquisados na minha graduação em Geografia e no mestrado em Planejamento
Urbano e Regional. Ele surgiu após uma prova de aula do meu primeiro concurso para
Professora Assistente. A vaga era para a disciplina Prática de Ensino de Geografia do
curso de Turismo da Unirio. O tema sorteado para a prova de aula foi “Propostas
Metodológicas para o Ensino de Geografia na Educação Básica”.

Lembro de preparar uma proposta de aula baseada na geografia do Rio de


Janeiro, utilizando a paisagem da cidade como suporte didático. Mesmo ciente sobre
a regra de “não interagir com a banca”, propus aos “alunos” que observassem a
paisagem pela janela da sala, afinal na Urca a visão além de privilegiada me
proporcionava tal recurso.

Ao final, uma professora da banca me perguntou se eu conhecia o Projeto


“Cidades Educadoras, um projeto de educação urbana”, pois minha aula a fez lembrar
de tal tema. Ao pesquisar sobre o Projeto me deparei com um universo instigante que
me trouxe uma série de questionamentos, mas que a perspectiva de aprofundamento
de sua pesquisa possibilitaria a junção tanto de minha experiência acadêmica quanto
profissional.

Em 2016, após longos anos afastada da universidade, porém trabalhando na


elaboração e execução de projetos de Educação Urbana no Campus Fiocruz da Mata
Atlântica dentro da área da antiga Colônia Juliano Moreira em Jacarepaguá, sentí que
aquele era o momento de voltar à vida acadêmica e perseguir o aprofundamento da
pesquisa daquele tema de voltar à vida acadêmica.

Neste mesmo ano, participei da seleção para o ingresso no Programa de Pós


– Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense e no
11

dia da inscrição para o curso de Doutorado me deparei na UFF com a frase do início
deste trabalho, “Você vê um ponto final ou um novo começo”.

Essa frase me acompanhou em todos os momentos que vivenciei ao longo do


período do doutorado e da redação da tese. Sempre concluindo projetos, encerrando
ciclos e iniciando novos. Não foram poucos. Sucessivamente. Confesso que o
caminho de redação desta introdução precisava passar por essa frase, tão
significativa e coerente por todos os momentos ao longo destes 4 anos, incluindo uma
pandemia. A frase precisava ser compartilhada, precisava estar relatada aqui.

Assim, começo este trabalho de tese que representa um “fim” e um “novo


começo”, também no que diz respeito a questão central de pesquisa. Inicialmente, o
projeto de pesquisa estava centrado na perspectiva de análise do projeto Cidades
Educadoras de Barcelona, buscando compreender de que forma os princípios
contidos na Carta das Cidades Educadoras foram implementados nas cidades
brasileiras que fazem parte da Associação Internacional de Cidades Educadoras
(AICE).

Para isto, seria preciso verificar cada um dos projetos em andamento ou já


concluídos, observar não somente quais as práticas de Educação Urbana foram
realizadas, mas também de que forma tais práticas impactaram a vida cotidiana dos
habitantes dessas cidades, além de buscar realizar uma análise comparativa entre as
cidades associadas mundo afora, que partilhavam dessas experiências. Portanto, a
questão central expressa no projeto submetido à seleção de doutorado do Programa
vislumbrava tais questionamentos ao indagar “O que está sendo proposto quando se
fala em “educar para a vida urbana”?

No entanto, ao iniciar as pesquisas empíricas e leituras especificas sobre os


conceitos e documentos que balizaram a proposta do modelo “Cidade Educadoras”,
principalmente aqueles trabalhados e recomendados pelo Relatório da UNESCO de
1972 de Edgar Faure, além da pesquisa sobre o andamento dos projetos informados
pela Associação Internacional de Cidades Educadoras, constatou-se que algumas
cidades brasileiras associadas sequer tinham realizado algum projeto.

Diante de tal inviabilidade de se elaborar uma análise comparada entre cidades


brasileiras e seus projetos, uma vez que algumas dessas cidades não realizaram as
12

ações planejadas, não seguiram as contrapartidas para estarem associadas. Vale


destacar que uma das hipóteses presentes deste o interesse inicial por tal temática se
mostrou como um novo caminho de investigação. Portanto, tornou-se fundamental,
buscar compreender que razões levam tais cidades, para efeitos desse trabalho, a
fazerem parte formalmente de uma Associação Internacional de Cidades Educadoras
(AICE) mesmo não colocando em prática as recomendações e princípios propagados
por ela.

Neste novo cenário de pesquisa, novos questionamentos se fizeram


necessários: quais são as bases teórico-conceituais e quais aspectos de educação
urbana, de planejamento urbano e mesmo de educação balizam tal Associação?
Quais são os interesses daqueles que propõem mais um “modelo” e daqueles que
“consomem” esse tipo de proposta? Que tipo de cidade está expressa nos princípios
contidos na Carta das Cidades Educadoras, documento-base para a reprodução da
proposta nas demais cidades? É possível que uma cidade, ao seguir as diretrizes da
AICE alcance o status de Cidade Educadora?

Na busca por responder tais indagações, a metodologia de pesquisa utilizada


para este trabalho seguiu dois percursos. Primeiro, a análise dos conceitos pertinentes
à temática como: Lugar, Cidade e Cidadania, Cidade e Educação, Pedagogia Urbana,
Cidade Educativa, Políticas públicas, Utopias. Alguns autores foram essenciais à
reflexão como: Y-Tuan, Milton Santos, Henry Lefebvre, Paulo César da Costa Gomes,
Werther Holzer, Paulo Freire, Moacir Gadotti, Platão, Vernant, Thomas Morus, dentre
outros.

O segundo de base empírica foi realizado a partir de fontes disponíveis sob a


forma de documentos oficiais (Carta das Cidades Educadoras, Guia Metodológico: da
leitura da Carta à consolidação de uma Cidade Educadora), leitura de livros
publicados sobre o Projeto Cidades Educadoras, além de artigos, textos e publicações
encontrados pela internet, algumas encontradas no próprio site da Associação
Internacional de Cidades Educadoras (AICE), objeto deste trabalho.

Tendo em vista que a partir da década de 70, o efeito das mudanças


socioeconômicas e políticas que culminaram em transformações no perfil demográfico
da população nas cidades de todo o mundo, levando a grande maioria da população
a viver em zonas urbanas. Tais efeitos refletiram na relação educação e cidade, que
13

ganhou então uma nova centralidade, e tornando-se um desafio pensar uma prática
educativa que possa dar conta dessa nova realidade e de suas novas dinâmicas, de
educar os cidadãos cada vez mais urbanos para além dos muros da escola, tornando
a cidade um lócus do processo de educar para a vida urbana.

A partir da concepção de diferentes autores, a reflexão possibilita uma


aproximação aos conceitos sobre o papel da educação para os indivíduos e sobre o
contexto de transformação da cidade ao longo do tempo, buscando compreender a
relação que se estabelece entre educação e cidade e, portanto, sobre cidade
educativa.

Para seguir questões, a trajetória deste estudo foi realizada partindo de um


referencial teórico-conceitual transdisciplinar, perpassando pelas perspectivas do
Urbanismo, da Geografia e de Educação conforme descrito ao longo dos quatro
capítulos que compõem a tese.

Meu caminho de análise seguiu aquilo que Martin Buber em seu livro “Do
diálogo e do dialógico” de 1982, distinguiu em três pressupostos de interpretação.
Durante toda a pesquisa em minha experiência e reflexão fui “observadora”,
“contempladora” e estabelecí um “conhecimento íntimo” com meu objeto. Como
“observadora” busquei tudo que me foi apresentado sobre o tema. Assim como Buber
ressalta, “o observador está inteiramente concentrado em gravar na sua mente o
homem que o observa, em anotá-lo. Ele o perscruta “traços” quanto possível. Ele os
vigia para que nenhum lhe escape. O objeto é constituído de traços e sabe-se o que
está por trás de cada um deles” (BUBER, 1982, p. 41)

Como “contempladora” estive disponível para receber o que o tema me


apresentava: indagações, novos questionamentos, novos caminhos e nuances da
pesquisa, reformulação de hipóteses. Estava voltada para ele e ele se voltou para
mim. A liberdade da contemplação proporciona abertura para novas hipóteses, assim
como um trabalho de pesquisa pode seguir. Em consonância com a perspectiva de
Buber (1982) sobre o “contemplador”, aquele que “não está absolutamente
concentrado. Ele se coloca numa posição que lhe permite ver o objeto livremente e
espera despreocupado aquilo que a ele se apresentará” (BUBER, 1982, p. 42)

Com o “conhecimento íntimo” do tema pesquisado, foi possível observar a


beleza da temática, educação urbana, ao passo que me proporcionou os instrumentos
14

necessários à uma perspectiva crítica sobre o Projeto Cidades Educadoras em si.


Segundo Buber (1982)

Aquilo de que tomo conhecimento íntimo não precisa ser, de forma alguma,
um homem; pode ser um animal, uma planta, uma pedra. Nenhuma espécie
de fenômeno, nenhuma espécie de acontecimento é fundamentalmente
excluído do rol das coisas através das quais algo me é dito todas as vezes.
Nada pode se recusar a servir de recipiente à palavra. Os limites de
possibilidade do dialógico são os limites de possibilidade da tomada de
conhecimento íntimo. (BUBER, 1982, p. 430

O primeiro capítulo do presente trabalho sobre o referencial teórico - conceitual


cujo título “O que está sendo proposto quando se fala em “educar para a vida urbana”
demonstra a trajetória de redação do referido capítulo, a partir de conceitos caros ao
estudo da temática. Desta forma o capítulo perpassa por alguns conceitos e
perspectivas teóricas que auxiliaram a reflexão sobre a relação educação e cidade,
mas fundamentalmente sobre Educação Urbana.

Assim, o capítulo teve como referencial o pensamento de autores como Henry


Lefèbvre, Holzer e Yi-Fu Tuan, Paulo César da Costa Gomes, Jorge Luiz Barbosa,
Márcio Piñon, Paulo Freire, Páramo, Jaume Trilla, conceitos como Direito à Cidade,
Lugar, Cidadania, Educação, Pedagogia Urbana e Cidade Educativa fundamentais
para fundamentar a perspectiva de análise e pesquisa de toda o trabalho.

Ao longo do capítulo foi possível delinear as transformações do espaço urbano,


das cidades, muitas delas espaços globalizados, mas que buscam permanecerem
como lugares de encontro, de troca, participação e de construção da cidadania. Assim,
as cidades modernas passam por momentos de crise que segundo os autores
analisados, associam à “perda de sua função comunitária, educativa e civilizadora”.
Logo, o papel das cidades perpassa pela capacidade de agregar seus indivíduos de
forma coletiva, comunitária, por meio da identificação com questões e projetos, de
sentidos, experiências, de lugares.

Neste momento, torna-se fundamental entender que o conceito de governança


territorial como forma de incluir os novos atores, emergentes e externos ao cenário
político das cidades, dos assuntos públicos. Sua representação, apresenta-se como
forma de aproximar da perspectiva dos projetos relacionados à educação urbana, uma
vez que eles pressupõem tanto a cooperação como um processo organizacional dos
15

seus agentes em rede, com intuito comum em prol de políticas públicas que estejam
em consonância com as demandas dos lugares, principalmente àquelas constituídas
“de baixo para cima”.

Essa perspectiva de construção de políticas públicas construídas a partir da


escuta e demandas de seus moradores, se apresenta como uma crítica ao modelo de
Projeto Cidades Educadoras, constituído por uma associação entre administração
pública e instituições da sociedade civil de Barcelona. Porém, a proposta difundida
por este modelo, não pressupõe que as cidades também construam suas propostas
de maneira coletiva, conforme pode ser observado ao longo dos preceitos
apresentados na Carta das Cidades Educadoras.

Nesse sentido, o referencial teórico e analítico, coloca em foco o protagonismo


dos lugares, e de seus habitantes, pois entende-se que a proposta de educação para
a vida urbana precisa estar relacionada diretamente com a perspectiva de seus
moradores e daqueles que usufruem desses espaços, fundamentalmente espaços
públicos, de convivência, utilização instrumentos de governança, espaços educativos,
de uma pedagogia urbana.

Portanto, o capítulo em questão, relaciona as transformações ocorridas no


papel das cidades, enquanto espaços educativos, bem como as práticas que se
estabelecem pelas cidades, em suas diversas realidades, culturas e contextos, para
o desenvolvimento de uma pedagogia que possa educar seus habitantes para uma
nova e necessária realidade da vida urbana.

O segundo capítulo: Utopia e Cidade realiza um histórico das perspectivas de


pensadores que propõem modelos ideais de cidade, que acompanham a nossa
sociedade ao longo do tempo, sempre pontuando a intrínseca relação entre o ideal de
Cidade e a Educação. O texto inicia com referências à Reforma Clístenes que buscava
uma cidade igualitária, com direitos de participação na vida pública, tal como Platão,
ao desenhar a espacialização territorial da cidade a partir da organização social de
seu tempo, Morus idealizador da ilha de Utopia, uma cidade pensada com equilíbrio
entre seus espaços e sua população, constituída por uma sociedade igualitária e
moralmente virtuosa.
16

Também são discutidas as teorias das cidades-modelo industriais de Owen e


Fourrier, a boa forma da cidade de Lynch, a centralidade das pessoas no processo de
planejamento das cidades de Jan Gehl, a perspectiva de cidade como “espaços de
urbanidade” de Lineu Castelo. Alguns princípios apresentados por autores modernos
entram em conflito com os princípios mundialmente conhecidos como o modelo
Cidades Educadoras do século XX, por meio do ideal de sociedade contido e
propagado na Carta das Cidades Educadoras.

Desta forma, o imaginário sobre a constituição e a idealização de uma cidade


justa, harmoniosa, solidária, perfeitamente especializada, fruto da combinação entre
a geometrização urbanística e a aritmetização da vida perpassam a ideia/conceito de
utopia ao longo da história e a obra de seus pensadores.

O terceiro capítulo por sua vez trata das informações contidas no Relatório de
Edgar Faure, da década de 1970, Aprender a Ser. Ele apresenta as discussões que
antecederam e balizaram a proposta do projeto Cidades Educadoras.

Destaca-se que tais discussões foram apresentadas por meio do Relatório da


Comissão de Educação da UNESCO, que na década de 70 que percorreu 23 países
em missões, com intuito de pesquisar os contextos e demandas do processo
educativo nas mais diversas cidades. O Relatório foi construído a partir de
observações, contextualizações e recomendações para a transformação dos
processos educativos, a Comissão de Educação da UNESCO elaborou este
documento-modelo com o intuito de balizar a educação nas mais diversas cidades do
mundo.

O referido relatório da UNESCO, teve como proposta “demonstrar que a


sociedade atual exige uma união cada vez mais íntima entre a vida e a educação” e
expõe-se uma concepção de educação baseada na experiência, na vivência cotidiana,
na qual se precisa aprender continuamente por conta da constante transformação
gerada pela revolução técnico-científica. Vale enfatizar que este Relatório foi
publicado sob a forma de livro em 1972, com o título Aprender a Ser e tornou-se a
base do futuro projeto Cidades Educadoras de Barcelona, ao postular o modelo de
cidade educativa a ser desenvolvido e aplicado pelas cidades.
17

Neste momento, a Comissão reforça a importância de uma formação para que


o indivíduo “possa contribuir para o desenvolvimento da sociedade, a tomar parte ativa
na vida, quer dizer, validamente preparado para o trabalho”, que acaba por “exigir
aquisição de conhecimentos, de aptidões e de práticas sistematizadas”.

Partindo desta visão voltada ao desenvolvimento humano, como o indivíduo


preparado para o mundo do trabalho, os relatores que compõem a Comissão
destacaram duas noções qualificadas como “fundamentais”: a educação permanente
e a cidade educativa, que se tornaram a base do Projeto Cidades Educadoras,
originalmente constituído pela Comissão de Educação de Barcelona

Ainda sobre este capítulo, destacou-se os pontos considerados para este


trabalho, mais relevantes à análise crítica proposta, pontuando as principais
argumentações e recomendações da Comissão de Educação da UNESCO, presentes
no Relatório.

O quarto e último capítulo intitulado O Projeto “Cidades Educadoras” inicia -se


a partir de uma contextualização do momento socioeconômico que serviu de base e
culminou na concepção da proposta do Projeto Cidades Educadoras, da cidade de
Barcelona nos anos 1990, e as críticas que o modelo educacional da época vinha
recebendo por não “acompanhar” as transformações que a sociedade vivenciava
naquele momento de mudanças científicas, tecnológicas, produtivas e econômicas.
Os desafios enfrentados pelas cidades, principalmente àqueles que dizem respeito
entre educação e ambiente urbano também foram objeto de análise.

No decorrer do capítulo foram descritos, discutidos e analisados os


pressupostos da realização do I Congresso Internacional de Cidades Educadoras que
recebeu o apoio do Instituto Internacional de Planificação da UNESCO, a motivação
para a criação da Associação Internacional de Cidades Educadoras (AICE), sua
composição administrativa, bem como a descrição dos papéis de seus integrantes, a
justificativa e missão de criação.

Também foram descritos e analisados os princípios constitutivos e as diretrizes


que buscaram inspirar e influenciar as políticas públicas, bem como orientar a
organização administrativa para a execução e avaliação de tais propostas nas cidades
associadas pelo mundo afora, tendo como base no Guia Metodológico: da leitura da
Carta à consolidação de uma Cidade Educadora. Ainda como escopo de análise, o
18

capítulo abordou os princípios contidos na Carta das Cidades Educadoras, suas


diretrizes e orientações às cidades associadas, o levantamento das cidades
brasileiras integradas à Associação.

Logo, este último capítulo buscou analisar criticamente a proposta deste projeto
modelo, constituído no movimento em prol de uma transformação da política
educacional da cidade de Barcelona, na Espanha. Tal movimento que agregou a
administração pública, bem como diversas instituições da sociedade civil da, culminou
na criação deste Projeto difundido a partir dos anos 90, mundialmente conhecido
como Cidades Educadoras e sua tentativa de implementação em outras cidades.

Observar, refletir e pesquisar sobre a cidade representa pessoalmente, mais


que um percurso acadêmico, um interesse por diferentes abordagens e perspectivas,
na busca de entendimento de tamanha heterogeneidade de questões. Assim, o olhar
geográfico, espera-se que a perspectiva e possibilidades do planejamento urbano e
agora, a técnica sensível do urbanismo, possam contribuir para uma nova leitura e
investigação sobre a cidade, a cidade como um projeto educativo.

Penso que ao analisar o projeto “Cidades Educadoras” por uma vertente crítica,
objetivando confrontar seu discurso, amplamente difundido frente à sua realização,
possa contribuir no longo caminho que ainda precisamos percorrer em prol de uma
transformação das cidades em espaços mais democráticos, participativos,
colaborativos e saudáveis.

Desta forma, mais do que uma cidade utópica precisamos pensar que tipo de
cidade desejamos e como seus habitantes poderão transformá-la, quais são os
conhecimentos e instrumentos necessários. Ao perpassar por questões e conceitos
relacionados à educação, entende-se que o tema deste trabalho pode e deve
contribuir para uma reflexão sobre se é possível e de que forma, inserir a participação
dos cidadãos nas práticas do urbanismo e do planejamento urbano.
19

CAPÍTULO 1 – O QUE ESTÁ SENDO PROPOSTO QUANDO SE FALA EM


“EDUCAR PARA A VIDA URBANA”

O contexto histórico das últimas décadas do século XX nos remete às


descobertas científicas e ao desenvolvimento tecnológico observados, principalmente
nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, geraram uma nova configuração
espacial impactada pelas transformações econômicas, pela reestruturação produtiva
e nova divisão do trabalho. Pode-se pensar que tais transformações das forças
produtivas e os avanços tecnológicos implementados puderam reduzir as distâncias
espaço - temporais buscando tornar acessíveis os diferentes pontos do planeta.

O geógrafo Milton Santos em seu livro Técnica, Espaço, Tempo: Globalização


e meio técnico-científico informacional (1998, p. 51) afirma que os impactos
socioespaciais da reestruturação produtiva culminaram na transformação do meio
geográfico, cuja constituição possui, segundo o autor, uma “substância científico-
tecnológica-informacional”, onde “a ciência, a tecnologia e a informação estão na base
mesma de todas as formas de utilização e funcionamento do espaço”.

Porém, ao mesmo tempo que os avanços puderam aproximar pessoas,


estabelecer novas relações econômicas, culturais e políticas, tais efeitos acirraram
ainda mais as desigualdades espaciais, onde as oportunidades do desenvolvimento
não chegaram para todos de forma equânime ou pelo menos não chegaram para
aqueles que mais necessitavam dele. Segundo Santos

Apesar de uma difusão mais rápida e mais extensa do que nas épocas
precedentes, as novas variáveis não se distribuem de maneira uniforme na
escala do planeta. A geografia assim é recriada é, ainda, desigualitária. São
desigualdades de um tipo novo, já por sua constituição, já por seus efeitos
sobre os processos produtivos e sociais.(SANTOS, 1998, p.510

A respeito desse agravamento das desigualdades socioespaciais, Limonad


(2018, p. 81) acrescenta que “apesar do imenso cabedal de potencialidades e
benesses advindas do desenvolvimento técnico – científico informacional, poucos têm
mais do que muitos, o que revela o caráter ilusório e incompleto do projeto de
modernidade e desenvolvimento”.
20

As cidades ditas globais tornaram-se, portanto, “espaços modelo”, cujos


escritórios de arquitetura, consultorias e afins, exportam mundo afora experiências
culturais, urbanísticas, econômicas e, também, socioeducacionais criando, então,
novas demandas nos espaços urbanos periféricos, cujos modelos não deveriam ser
aplicados ou “consumidos”.

Tais demandas, portanto, requerem um contingente crescente por matérias-


primas, um novo padrão de consumo, o acirramento da concorrência, da competição,
do individualismo, de segregação socioespacial, da violência, de iniquidade social, a
desintegração presente na relação sociedade/natureza. Estas são características tão
presentes nas cidades modernas e que incidem diretamente nas relações entre os
sujeitos que nelas convivem.

Nesse sentido, em tempo e espaços constituídos pelo “meio técnico-científico


e informacional”, Santos (1998, p.49) afirma que “a instantaneidade da informação
globalizada aproxima os lugares, torna possível uma tomada de conhecimentos
simultâneos e cria entre lugares e acontecimentos uma relação unitária na escala
mundo”.

Esta afirmação de Milton Santos nos traz a reflexão, não perdendo de vista o
projeto de análise deste trabalho, se nas cidades que fazem parte da Associação
Internacional de Cidades Educadoras (AICE) essa “relação unitária na escala mundo”
se estabelece, e se ela acontece da mesma maneira, regida pelos princípios expostos
na Carta das Cidades Educadoras.

Assim, o espaço, neste caso o espaço urbano, vem sendo construído em


função dessas novas demandas produtivas e econômicas e seus reflexos foram e são
sentidos continuamente em nossa sociedade. Gomes (2006, p.20) afirma que “uma
análise geográfica deve imperativamente ser nutrida da disposição locacional dos
objetos espaciais confrontados com o comportamento social que aí tem lugar”.

Milton Santos (1998, p.18) corrobora com a visão das cidades marcadas pelos
efeitos da globalização, cujas demandas produtivas e tecnológicas impactam não
somente os espaços, mas também as dinâmicas sociais que ali se encontram, ao
afirmar que
21

Cada lugar, porém, é ponto de encontro de lógicas que trabalham em


diferentes escalas, reveladoras de níveis diversos, e às vezes contrastantes,
na busca da eficácia e do lucro, no uso das tecnologias do capital e do
trabalho. Assim se redefinem os lugares: como ponto de encontro de
interesses longínquos e próximos, mundiais e locais, manifestados segundo
uma gama de classificações que está se ampliando e mudando. (SANTOS,
1998, p.18)

Porém, neste mesmo livro o autor adverte que mesmo que o espaço seja
marcado pela globalização, esse espaço não é mundial como um todo, os efeitos da
globalização não são sentidos em todos os espaços de maneira homogênea. Assim,
segundo Santos (1998, p.18) “todos os lugares são mundiais, mas não há espaço
mundial. Quem se globaliza, mesmo, são as pessoas e os lugares”.

As cidades modernas, mesmo impactadas pela globalização, buscam manter


sua função como lugares de encontros. Morigi (2016, p.56) contribui para a
caracterização das cidades modernas ao afirmar que “novos encontros são processos
em movimento em que relações sociais e diferenças são constantemente negociadas
e moldadas, refletindo assim o poder não igualitário envolvido”.

Henry Lefebvre (2001, p. 22) acrescenta à análise sobre a vida urbana, ao


afirmar que “pressupõe encontros, confrontos das diferenças, conhecimentos e
reconhecimentos recíprocos (inclusive no confronto ideológico e político) dos modos
de viver, dos “padrões” que coexistem na cidade”.

Essas novas configurações, incluindo as de cunho político, cultural e social dos


cidadãos são frutos da complexidade das sociedades modernas que configuram em
mudanças rápidas e profundas (Puentes & Solis (2007, p. 172). Tais transformações
geram, portanto, um desenvolvimento “desordenado e desestruturado, que produzem
um desequilíbrio entre o sujeito e o entorno onde vive”.

O autor David Harvey (2014) contribui para esta análise ao criticar a “morte” da
cidade tradicional pelo capitalismo que busca incessantemente, por meio da
acumulação de capital, expandir desordenadamente o crescimento urbano em
detrimento de seus impactos socioeconômicos e ambientais. Ao buscar uma reflexão
sobre uma possível alternativa que possa construir uma nova vida urbana, o autor
assinala que
22

Somente quando se entender que os que constroem e mantém a vida urbana


têm uma exigência fundamental sobre os que eles produziram, e que uma
delas é o direito inalienável de criar uma cidade mais em conformidade com
seus verdadeiros desejos, chegaremos a uma política do urbano que venha
a fazer sentido. (HARVEY, 2014, p. 21)

Acrescentando a reflexão sobre a construção de uma nova experiência urbana


para os que vivem na cidade, deve-se buscar relacionar o tipo de cidade que
queremos ao tipo de pessoas que queremos ser. A cidade torna-se então, não
somente o produto das ações sociais, mas também o reflexo daquilo que somos e
agimos de forma individual ou coletiva. Ao analisar o conceito de Direito à Cidade de
Henry Lefèbvre, Harvey (2014) reflete que

O direito à cidade é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo


com nossos profundos desejos. Além disso, é um direito mais coletivo do que
individual, uma vez que reinventar a cidade depende inevitavelmente do
exercício de um poder coletivo a nós mesmos e a nossas cidades. Qual seria,
então, a melhor maneira de exercê-lo? (Harvey, 2014, p. 65)

Os autores Granell & Vila (2001, p. 18) afirmam que “converter a cidade em um
lugar simultaneamente de desenvolvimento e convivência é um desafio”. Segundo os
autores, refundar a cidade, consolidar uma nova cidadania seria um problema político
importante.

Por sua vez, Monte-Môr (2015 apud Limonad 2018) agrega à esta discussão
sobre os desafios urbanos para a consolidação da cidadania e para o enfrentamento
das desigualdades socioespaciais, nos dias atuais, ao propor o questionamento de
que forma é possível e quais são as possibilidades de avanço em prol de uma ação
social transformadora. O autor acrescenta que tal ação deve “contemplar as
complexidades e diferenças, além de contribuir para a emancipação política e social”
(Monte-Môr apud Limonad 2018, p.81).

A cidade, portanto, é o lugar de encontro da diversidade de pessoas e classes,


ainda que de forma conflituosa, para que todos possam buscar a construção de uma
vida em comum. Segundo o autor

O recente ressurgimento da ênfase na suposta perda da comunabilidade


urbana reflete os impactos aparentemente profundos da recente onda de
privatizações, cercamentos, controles espaciais, policiamento, vigilância na
qualidade de vida urbana em geral e, em particular, na potencialidade de se
criar ou inibir novas formas de relações sociais (novos bens comuns) em um
23

processo urbano influenciado, quando não dominado por interesses de classe


dos capitalistas. (HARVEY, 2014, p.73)

A crise que se apresenta por meio do advento da cidade globalizada, onde os


novos padrões produtivos e econômicos, mudaram também a sua configuração
histórica. O lugar do encontro para o aprendizado, para a participação da vida social
e política, para o exercício da cidadania vem perdendo estas funções, gerando
desigualdade socioespacial, marginalização e violência.

Para Granell & Vila (2001, p.19) “a crise da cidade está extremamente ligada à
perda de sua função comunitária, educativa ou civilizadora” e acrescentam que “a
crise da cidade é, de alguma forma, uma crise educativa, porque é uma crise do
modelo de cidade como espaço público.

Os autores Puente & Solis (2007), afirmam que a crise que se apresenta na
cidade repercute no conflito que a educação vive, ao afirmarem que “a cidade
moderna prolonga a função educativa que a escola tradicional teve um dia”. Ainda
segundo Granell & Vila (2001, p.19) argumentam que a crise da cidade é ao mesmo
tempo uma “crise educativa”, porque expõe a crise do “modelo de cidade como espaço
público”. Tais autores defendem que

Educar os cidadãos é uma antiga aspiração baseada na convicção de que


favorecer a formação de cidadãos conscientes de seus direitos e de suas
responsabilidades é tanto uma exigência da vida em sociedade como uma
garantia para as liberdades cidadãs. (GRANELL & VILA, 2001, p.19)

Nesta perspectiva Almeida (2008, p.4) defende que “a recente visão do papel
das cidades está intimamente conectada com a capacidade das pessoas participarem
em projetos coletivos, derivando esta implicação de uma identificação com a uma
realidade natural, própria”.

Tal como afirma Harvey (2014, p. 143) “as qualidades humanas da cidade
emergem de nossas práticas nos diversos espaços da cidade”. “A rua é um espaço
público que histórica e frequentemente se converte pela ação social em um comum
(...)” e “a luta para apropriar os espaços e bens públicos urbanos tendo em vista um
objetivo comum está em curso”.
24

Analisando sobre o papel da rua como um “comum” e das práticas sociais que
emergem da cidade, Harvey (2014, p.146) chama a atenção para a questão da venda
do “comum”, daquilo que foi construído coletivamente, mesmo não sendo uma
mercadoria necessariamente. Assim, segundo o autor

Por meio de suas atividades e lutas cotidianas, os indivíduos e os grupos


sociais criam o mundo social da cidade ao mesmo tempo em que criam algo
de comum que sirva de estrutura em todos possam se abrigar. Embora esse
comum culturalmente criativo não possa ser destruído pelo uso, pode ser
banalizado pela utilização abusiva. (HARVEY, 2014, p.146)

Nesse caso, as reflexões de Harvey a respeito do “comum” nos trazem a crítica


de utilização e reprodução de modelos de projetos como o Cidades Educadoras, que
“degrada” e “banaliza” propostas desenvolvidas em uma determinada escala, com
base nas experiências de um lugar, ao serem aplicadas e capitalizadas de forma
massiva por outros lugares, “reduzindo a potencialidade de comunalização”.

O autor acrescenta a esta reflexão a seguinte indagação: “com que frequência


os projetos de desenvolvimento são subsidiados pelo Estado em nome do interesse
comum quando, na verdade, os verdadeiros beneficiários são alguns proprietários de
terras, financistas e empreiteiras?”. Estaria o projeto Cidades Educadoras passível
desta associação, de um projeto construído coletivamente pelos moradores do lugar,
neste caso construído em seu “primeiro lugar, na cidade de Barcelona” que foi
apropriado, padronizado e mercantilizado mundo a fora?

Segundo Harvey (2014, p.154) para que a “comunalização” possa funcionar


localmente seria preciso “uma mistura de iniciativas individuais e privadas que
organizem e aprendam os efeitos da externalidade ao mesmo tempo em que colocam
alguns aspectos do entorno fora do âmbito do mercado”. Porém, para que a
organização e prática das ações coletivas e cooperativas deem certo é necessário
que a participação dos habitantes locais aconteça em instâncias menores, uma vez
que segundo o autor, a capacidade de participação reduz rapidamente ao se aumentar
o tamanho da unidade administrativa.

Torna-se imprescindível, então, para o sucesso dos comuns (como o direito à


cidade, citado como exemplo por Harvey (2014, p.168) “descobrir maneiras criativas
25

de usar os poderes do trabalho coletivo para o bem comum, e manter o valor


produzido sob o controle dos trabalhadores que o produziram”.

A proposta deste trabalho, portanto, associa-se a esta reflexão de David


Harvey, uma vez que busca refletir sobre o projeto “Cidades Educadoras”, desde a
sua origem até os dias de hoje, buscando confrontar seus princípios norteadores e
sua viabilidade frente as cidades que nele se inspira. Ao passo que se torna
imprescindível buscar outras propostas relacionadas à educação urbana, viabilizadas
pelo trabalho coletivo, porém pautadas na singularidade, na vivência de seus lugares
com o intuito de gerar a participação e o sentido de cidadania de seus moradores com
foco no bem comum.

Nessa perspectiva, as novas configurações espaciais trazem o foco para o


protagonismo dos lugares e principalmente, de seus moradores, para a resolução dos
problemas das cidades, seja pelas instituições, pelas organizações locais, na
capacidade organizativa, comunitária e nas relações de proximidade dos sujeitos.
Ressalta-se, portanto, a relevância de destacar as possibilidades e potencialidade dos
sujeitos com os “lugares”, buscando seu o direito à cidade, para os que realmente
necessitam, desejam, usufruem e lhe dão significado.

Torna-se fundamental ressaltar que muitas soluções para os problemas de seus


lugares, não necessariamente poderão ser aplicados em outros lugares ou em outras
escalas. David Harvey (2014) disserta sobre o “problema de escala” ao afirmar que

Quando “pulamos escalas”, toda a natureza do problema dos comuns e as


perspectivas de encontrar uma solução mudam drasticamente. O que parece
ser uma boa maneira de se resolver problemas em uma escala não se aplica
a outra escala. Pior ainda, soluções comprovadamente boas em determinada
escala não necessariamente se somam (ou concatenam) de modo a produzir
boas soluções em outra escala. (HARVEY, 2014, p. 138)

Nesse sentido, para que se possa pensar, planejar e construir novas cidades,
baseadas no reconhecimento das diferenças, da heterogeneidade de culturas, de
indivíduos e suas percepções, torna-se urgente repensar numa formação cidadã que
esteja diretamente baseada com as questões na escala em que acontecem, na escala
do lugar onde acontecem as práticas cotidianas. Tal como afirma Limonad (2018)

Pensar em práticas que propiciem a ação e emancipação social de modo a ir


de encontro às determinações homogeneizantes do capitalismo globalizado
26

e da financeirização. Para tanto, faz-se necessário contemplar a


complexidade e a diferença, (re) e (des) envolver os diversos sujeitos sociais
de modo a capacitá-los a assumir as rédeas do destino de suas cidades e da
sociedade. (LIMONAD, 2018, p.85)

Entende- se, portanto, que a proposta de se educar para a vida urbana deva
estar diretamente relacionada à perspectiva de seus moradores ou daqueles que
utilizam dos espaços da cidade na busca ou na proposição de políticas públicas ou
práticas construídas de forma participativa.

Pensando na participação de sujeitos em projetos coletivos, de formação


cidadã voltada para a construção de direitos, a contribuição de autores teórico-
conceitual se apresenta fundamental por meio da discussão sobre os conceitos de
lugar1 e espaço2.

Para Holzer (2013, p. 23), os lugares só existem pela possibilidade de


compartilhamento das experiências entre aqueles que o vivenciam, por meio da
“experiência intersubjetiva compartilhada das coisas e fenômenos para os quais nos
voltamos em comum”. O conceito de lugar, como destaca Holzer (1999,p.70),
“enquanto uma experiência referente, essencialmente, ao espaço como é vivenciado
pelos seres humanos”, nos permite uma significação a partir da percepção de
realidade daqueles que o vivenciam.

A preocupação dos geógrafos humanistas, seguindo os preceitos da


fenomenologia, foi de definir o lugar enquanto uma experiência que se refere
essencialmente, ao espaço como é vivenciado pelos seres humanos. Um
centro gerador de significados geográficos, que está em relação dialética com
o constructo abstrato que denominamos “espaço” (HOLZER, 1999, p. 70).

Yi-Fu Tuan (apud Holzer, 1999, p.70) propõe que, “O lugar não é só um fato a
ser explicado na ampla estrutura do espaço, ele é a realidade a ser esclarecida e
compreendida sob a perspectiva das pessoas que lhe dão significado”.

Por meio da contribuição de tais autores, a definição do conceito de lugar se


aproxima da perspectiva da paisagem uma vez que ela “é composta não apenas por

1 O conceito de lugar pode ser compreendido por meio da perspectiva de Tuan (1978 Apud Holzer,
1998) “O espaço não é uma ideia, mas um conjunto complexo de ideias... o lugar é um espaço
estruturado”.
2 Neste trabalho o conceito pode ser compreendido pela denominação de que o espaço é um agente

ativo e dinâmico, com relação direta e influente nas relações sociais (Lefebvre, 2001).
27

aquilo que está à frente de nossos olhos, mas também por aquilo que se esconde em
nossas mentes” (Meinig, 2002, p.35), destacando assim, o caráter relacional com os
sujeitos que a observam.

No artigo intitulado O olho que observa: dez versões sobre a paisagem, Meinig
(2002, p.35) analisa as variadas formas de se observar e descrever uma mesma cena,
uma mesma paisagem, por meio da sua essência. Uma das formas descritas é a da
“paisagem como lugar”, destacando seu o caráter único, no qual toda paisagem seria
como uma “peça individual no mosaico infinitamente variável da Terra”.

O autor nos traz a visão de uma paisagem ambiente passível de apreensão


pelos sentidos, uma paisagem experimentada, vivida. Com isso, a apreensão desta
paisagem pelo indivíduo mediada por sua subjetividade, percepção e cultura a torna
um lugar particular, dotado de riquezas e potencialidades. Segundo Meinig (2002)

É a paisagem como ambiente, que abrange tudo que vivenciamos e que,


como consequência, faz com que o observador cultive a sensibilidade para o
detalhe, para a textura a cor, todas as nuanças das relações visuais, e mais,
porque o ambiente ocupa todos os sentidos, também os sons e odores um
inefável sentido de lugar como algo proveitoso. (MEINIG, 2002, p.44)

Acrescenta-se à esta discussão a perspectiva de Sauer (apud Holzer, 1999)


transcende à visão locacional do lugar, além de incorporar o princípio da subjetividade
ao conceito de paisagem cultural. Ainda para o autor, o objeto de estudo da Geografia,
que estaria relacionado ao conceito de paisagem cultural, no qual "a cultura é o
agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural é o resultado". A paisagem
cultural desponta, então, como o produto da interação do homem com o seu meio
natural, tendo como meio a subjetividade, a percepção dos sujeitos e sua cultura.

Yi-Fu Tuan (1978) inicia o artigo Espaço, tempo, lugar: um arcabouço


humanista analisando os respectivos conceitos. No texto, tem-se a ideia de tempo
como “complexa e esquiva”, o espaço como um “conjunto complexo de ideias”, que
teria uma “relação dialética com o lugar”, sendo, na perspectiva do autor, “o oposto ao
lugar”.

O lugar desponta como “um espaço estruturado”, sendo “qualquer localidade


que tem significado para uma pessoa ou um grupo de pessoas”. Nesse sentido, os
28

três conceitos analisados por Tuan aparecem na “experiência vivida como


indissoluvelmente ligados”, sendo o lugar o termo “mais concreto”.

Tuan (1978) analisa como a relação tempo/espaço se estrutura na cidade, ao


descrever que no espaço da cidade “os objetos, espaço e tempo tornam-se visíveis”,
“a cidade é tempo tornado visível”, ela é a “encarnação da história”, ao conservar ou
não suas as construções, ao valorizar ou não seu patrimônio.

Desta forma, seus cidadãos poderão ter a oportunidade de (re) conhecer a sua
história, por meio da educação. Portanto, é pela atividade educativa que os sujeitos
conhecem, aprendem sobre a sua própria história, a história de seus espaços,
tornando-os seus lugares ao adquirir um sentido.

A escolha por destacar o “lugar” como conceito-chave neste trabalho, buscar


expor a crítica que se pretende realizar ao projeto Cidades Educadoras, cuja proposta
vincula à reprodução de princípios e experiências “de cima para baixo”, onde modelos
e práticas são “exportadas” para lugares com distintas realidades, contextos
socioculturais e econômicos. A trabalhar com o conceito de lugar busca-se por meio
de uma perspectiva focada nas experiências cotidianas, de espaço vivido, além da
ideia de construção coletiva dos espaços, espaço enquanto “obra” (Fremónt ,1976).

Nesse contexto, prioriza-se a perspectiva da cidade como um espaço a ser


percebido para além da sua forma e conteúdo, a cidade precisa ser reconhecida
também pelos sentidos daqueles que nela permanecem, uma vez que a percepção
do espaço, assim como a de seus objetos, não são distintas. Como uma forma de
perceber as cidades, Tuan (2013) propõe classificá-las a partir do seu grau de
distanciamento da natureza e de como os seus cidadãos mantém o contato com o
meio natural e afirma que

Numa das extremidades da escala nós temos a vila subordinada à natureza,


e na outra temos a cidade que não sabe como se alimenta, que se torna viva
no inverno e que menospreza o curso diário do sol. Esses três critérios físicos
são medidas convenientes para media a distância que percorremos da
natureza para o artifício. (TUAN, 2013, p.2)

Com base nesta escala de grau de artificialização das cidades sugerida por
Tuan (2013) podemos encontrar cidades e cidadãos cada vez mais distantes da
natureza e mais próximos das experiências mediadas pela tecnologia.
29

O processo de construção da paisagem, da paisagem cultural deve partir do


contato, da percepção, do convívio e da significação daqueles que a vivenciam e no
espaço urbano, especialmente na escala intraurbana, isto é, no espaço do cotidiano,
do encontro, do convívio, das relações com o lugar, sua identidade, história e
sentimento de pertencimento e configuram em importantes ferramentas de análise
para este trabalho.

Desta forma, faz-se necessário destacar, mesmo que de forma breve, a relação
entre o conceito de cidadania e cidade a partir de uma perspectiva de análise
geográfica, onde as escalas de atuação dos indivíduos possam demonstrar o seu grau
de envolvimento, ou não, com as questões cotidianas dos espaços urbanos.

Nesse contexto, concordando com Cavalcanti (2008, p.65) é na escala do


lugar/espaço intraurbano que “a vida cotidiana e a relação entre cidade, cultura e
cidadania podem ser analisadas com maior profundidade”. Portanto, para que se
possa analisar o conceito de cidadania bem como observar o processo de construção
de práticas, especialmente as espaciais, a cidade torna-se o lugar privilegiado e
primeiro para tais análises.

Além disso, é nesse espaço, do cotidiano, que as relações e disputas se


estabelecem, espaço representado como arena da luta pelo acesso ao solo urbano,
acesso aos bens naturais, acesso à cultura, lazer, saúde e moradia, direitos
essenciais e básicos aos indivíduos, ou seja, à cidadania. Segundo o geógrafo Jorge
Luiz Barbosa (2010)

A cidadania significa o exercício de direitos é reconhecer a busca permanente


das condições de sua realização na vida em sociedade. E, quando vivemos
em sociedades marcadas por profundas desigualdades sociais e distinções
territoriais de direitos, o tema da justiça social assume dimensões amplas e
profundas, dialogando com o princípio da igualdade como condição ao
exercício da cidadania. (BARBOSA, 2010, p. 5)

Jacobi (2003) por sua vez, sinaliza que o desafio da construção de uma
cidadania ativa configura-se num elemento fundamental tanto para a constituição
como para o fortalecimento de sujeitos cidadãos que, ao se tornarem portadores de
direitos e deveres, estarão mais próximos de se tornarem agentes na abertura de
30

novos espaços de participação. O autor Paulo César da Costa Gomes, no livro “A


Condição Urbana (2006), descreve que:

A cidadania é concebida como algo que se traduz no cotidiano e nas ações


mais habituais do cenário e da vida política, ou seja, onde há vida pública há
discussão e conflitos, que, de uma forma ou de outra, traduzem-se em uma
disputa territorial. Dentro desta perspectiva, cidadania e democracia não
podem ser pensadas sem refletirmos sobre a noção de espaço público e
sobre as dinâmicas sociais que aí se desenvolvem. (GOMES, 2006, P. 132)

Sendo assim, a indagação “que tipo de cidade se deseja” é um tema-chave


nesta discussão uma vez que os projetos relacionados à educação urbana têm em
sua matriz e exercício principal sensibilizar os indivíduos para o (re) conhecimento dos
problemas urbanos, bem como para instrumentalizá-los para a proposição e/ou
acompanhamento das políticas públicas destinadas aos seus espaços.

Nesse sentido, torna-se fundamental analisar, mesmo que de forma breve, o


conceito de cidadania, para a compreensão da cidade e de seus habitantes, seus
cidadãos, tanto no que diz respeito aos aspectos práticos da vida pública e coletiva,
quanto no exercício de seus direitos e deveres. Márcio Piñon de Oliveira (1999) afirma
que

Entendemos cidadania como uma dada condição humana - de consciência


política e social - que traz em si um ideal de bem-estar e felicidade que tem
variado historicamente, de acordo com a diversidade das culturas. Como
elementos desta condição temos: a participação e o nível de consciência
política, o grau de igualdade ou eqüidade, o grau de liberdade, o nível de
garantia de um conjunto de direitos, o grau de acessibilidade a bens, serviços
e equipamentos sociais. (OLIVEIRA, 1999. p.117)

O autor Paulo César da Costa Gomes (2006), ao analisar a relação entre


cidadania e espaço público, indaga qual seria então, a contribuição da geografia para
esta discussão e sobre a possibilidade de associação entre a condição cidadã e a
configuração espacial, uma vez que Gomes acredita que “no próprio conceito de
cidadão existe uma matriz territorial, isto é, a ideia de cidadania possui em sua base
um componente espacial”. Oliveira (1999) por sua vez, acrescenta a essa discussão,
sobre a relação do conceito de cidadania e sua análise, segundo uma perspectiva
geográfica ao afirmar que

Se o conceito de cidadania estava distante de nós enquanto ferramenta (ou


veio temático) na pesquisa geográfica, sua geograficidade está no próprio
31

nascimento da polis, ou seja, no nexo político que vincula a cidade, seus


habitantes e o seu território, ao Estado ou sociedade política. (OLIVEIRA,
1999. p.106)

Nas cidades que o conceito de cidadania se exprime, cidade então desponta


como o berço dos direitos, sob a forma das leis que irão reger as normas e posturas
dos habitantes neste espaço urbano, tornando seu significado mais concreto ao ser
analisado na dimensão do cotidiano, em suas diferentes escalas.

Analisando a sua origem grega, a expressão cidadania significa tanto uma


forma de relação social como um arranjo espacial dessas relações. Ao pensar a
comunhão de relações sociais que se estabelecem em uma base espacial, ou
territorial, nos faz refletir, as relações políticas que se encontram na base do conceito
de cidadania.

Assim, segundo Gomes (2006, p.134) “o fenômeno espacial é co - fundador do


fenômeno político. Ao analisar a relação entre “cidadania, território e sua dinâmica,
configuração, constituição e natureza como fundamentais para as transformações
políticas”. O autor entende que “a democracia e a cidadania surgem a partir de uma
reorganização do território” e que, portanto, “ser cidadão, é, em certa medida, uma
localização na teia das relações sociais e simultaneamente uma localização espacial”.

Acrescenta ainda que “nada mais significativo do que a o fato da polis ser não
só o nome dessa estrutura espacial, “a cidade”, mas também ao mesmo tem um feixe
de relações sociais formais que originou a palavra “política”. Oliveira (1999, p.116)
analisa que na modernidade, no conceito de cidadania se configuram numa mesma
matriz as questões como nacionalidade, política, território e cultura e que estas
questões teriam como referência, tanto o Estado-Nação como o espaço da cidade.
Oliveira (1999) nos traz uma breve revisão sobre a análise do conceito, sob aspectos
que se referem às dimensões da cidadania que auxiliam as reflexões necessárias para
este trabalho.

A primeira diz respeito à sua dimensão natural, dimensão esta que baliza a
Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos Cidadão cujo fundamento se
expressa na igualdade entre os homens.
32

A segunda dimensão destaca é política. Tal dimensão foi construída


historicamente desde a polis grega até a modernidade. Esta se relaciona às práticas
de participação direta dos sujeitos, como o direito ao voto ou a eleição. A terceira
dimensão citada por Oliveira (1999, p.117) é a dimensão socioeconômica que nas
palavras do autor “abarca as condições que permitem a própria manutenção da vida
e a capacidade de pensar, decidir e influir nos destinos da coletividade”. A quarta
dimensão é a geográfica, uma vez que pela associação entre cultura e território
“sedimenta e materializa as condições de realização da cidadania”. A quinta
dimensão, a cívica, diz respeito ao estabelecimento das regras de convivência entre
os indivíduos, que são normatizadas a partir dos “padrões culturais de cada contexto
histórico” e se expressam nos limites de respeito “ao outro”. A sexta e última dimensão
apontada pelo autor como a mais “impalpável”, estando associada “ao marketing, as
mídias e a informática” que exacerbam o individualismo e o isolamento.

As reflexões de Gomes (2006) e de Oliveira (1999) nos trazem a perspectiva


de uma ordem espacial das coisas, uma análise territorial para a questão da cidadania.
Pode-se deduzir que, para pensarmos a configuração de cidadania do indivíduo é
preciso identificar sua identidade territorial, tornando o espaço, portanto o meio e o
locus das práticas de cidadania.

As discussões sobre cidadania e democracia não podem, portanto, ignorar


mais que estas noções possuem uma dimensão espacial ontológica e
fundadora. Tendo em vista essa dimensão, os fenômenos relativos a disputas
socioterritoriais que ocorrem no mundo atual ganham um novo relevo,
colocando em jogo um espaço que é simultaneamente condição e meio dessa
cidadania. (GOMES, 2006, p.141)

Oliveira (1999) acrescenta que

A cidadania, portanto, depende da condição material e cultural que possui um


indivíduo, concebida como herança histórica, da posição social que ele ocupa
na sociedade em questão e do nível de participação nas decisões que
definem seus rumos nas diferentes escalas social e geográfica, da
comunidade local ao poder do Estado nacional. (OLIVEIRA, 1999, p.117)

Portanto, ao se buscar uma reflexão a respeito da constituição do conceito de


cidadania ao longo da história e como se processa a sua matriz espacial seja como
locus ou como condição para o seu exercício, vislumbra-se a sua estreita relação com
o caráter político.
33

Nesta perspectiva, concorda-se que o pleno exercício da cidadania traz consigo


a necessidade de sensibilização dos sujeitos para a proposição e acompanhamento
das políticas que incidem diretamente na sua realização e para a observação atenta
das especificidades de tais políticas com as necessidades e aspectos de cada lugar.

Para que se possa refletir sobre como se deu o processo de transformação das
cidades ao longo do tempo, impactadas pela reestruturação produtiva e
consequentemente de espaços e relações entre os sujeitos, torna-se fundamental
verificar como as políticas públicas podem afastar os cidadãos de seus espaços ou
aproximá-los, tornando-os agentes transformadores de seus lugares.

Para que as políticas públicas possam ser pensadas pelos indivíduos, deve-se
ressaltar a fundamental função da organização espacial para a constituição, portanto,
das práticas sociais. É no espaço público que as práticas acontecem, é esse espaço
público que viabiliza as ações sob uma perspectiva coletiva e na constituição da
cidadania.

Nesse contexto, o espaço que agrega pessoas com desejos comuns ou mesmo
díspares, espaço do diálogo ou do conflito, da coesão e da dispersão, esse é o espaço
público, são os que possuem uma relação mais próxima com a vida pública, vida
comum dos indivíduos, o “lugar” onde os indivíduos se encontram.

Gomes (2006, p.160) ressalta que “o espaço público é simultaneamente o lugar


onde os problemas se apresentam, tomam forma, ganham dimensão pública e,
simultaneamente, são resolvidos”. Retomar, portanto, a função do lugar de
participação ativa, tornando-o um espaço para a atividade política é fundamental para
que os indivíduos possam ser agentes da vida pública nas/das cidades.

Nesse contexto torna-se necessário uma aproximação, discussão e fomento de


políticas públicas territorializadas, com base no “lugar”, onde a identificação e
proposição de práticas perpassa as ações coletivas dos seus habitantes. Acrescenta-
se a importância do espaço e da sociedade, para “a compreensão dos processos de
elaboração e dos resultados de políticas públicas” (Rodrigues, 2014).

No que diz respeito, as práticas exercidas no espaço público, Gomes (2006, p.


163) afirma que “É por intermédio da civilidade, seu emprego ou uso que surge a
possibilidade de diálogo e que se opera a transformação desse lugar de contato e de
34

mistura em espaço público, terreno fundamental da vida democrática”. A discussão


sobre políticas públicas perpassa a dimensão espacial, também pelo viés da
perspectiva das “três dimensões das estruturas e das dinâmicas do território” tal como
descreve José Reis (2015), são elas: a de proximidade, densidade e polimorfirmo
estrutural.

Segundo o autor, as dimensões de proximidade e densidade representam a


“identidade, a copresença e a capacidade dinâmica” e se relacionam ao conceito de
território-proximidade ao viabilizar as práticas dos atores, bem como proporcionar sua
organicidade, sua capacidade de aglomeração, para a proposição de políticas. Tais
dimensões, portanto, se relacionam diretamente àquela que se deseja observar nas
cidades com práticas de educação urbana. Gomes (2006, p.164) afirma que

Todas as cidades dispõem de lugares públicos excepcionais que


correspondem `a imagem da cidade e de sua sociabilidade. Por meio desses
lugares de encontro e comunicação, produz-se uma espécie de resumo físico
da diversidade socioespacial daquela população. (GOMES, 2006, p.164)

Considera-se ainda que políticas territoriais pressuponham ações coordenadas


por seus atores com base em seu território. Segundo Planche (apud Rodrigues, 2014)
“a territorialização de políticas públicas compreende também o que se convencionou
chamar de governança territorial”.

Para o autor Joaquim Farinós (2008, p.306), o conceito de governança se


define como “a emergência de um novo sistema de relações mais complexo que inclui
novos atores emergentes externos a arena política. A governança representa, por
tanto, um modelo alternativo de gestão dos assuntos públicos”. Farinós (2008)
defende que por meio da governança territorial, os territórios poderiam alcançar seus
objetivos políticos.

A governança territorial se entende como uma prática/processo de


organização de múltiplas relações que caracterizam as interações entre
atores e interesses diversos presentes no território. O resultado desta
organização é a elaboração de uma visão territorial compartilhada,
sustentada pela identificação e valorização do capital territorial, necessário
para conseguir a coesão territorial sustentável em diferentes níveis, desde o
local até o supranacional. (Farinós, 2008, p.307)
35

Nesta abordagem, o conceito de governança se aproxima da perspectiva de


projetos relacionados à educação urbana, mesmo o “Cidades Educadoras”, uma vez
que estes pressupõem a cooperação e organização em rede dos diversos agentes da
cidade em prol de uma política pública, que seja capaz de exprimir as demandas do
território, em práticas constituídas “de baixo para cima”.

O autor Ash Amin (1999) em seu artigo Una perspectiva institucionalista sobre
el desarollo econômico regional disserta sobre via alternativa de desenvolvimento
econômico, baseado na riqueza das regiões às quais seriam “a principal fonte de
desenvolvimento e renovação”.

O processo de reforma institucional deve ir além da descentralização e


democratização das organizações oficiais de uma região. Em muitas regiões
prósperas da Europa se observa a existência de uma política participativa,
uma cidadania ativa, um orgulho cívico e uma intensa institucionalização dos
interesses coletivos, se trata de regiões em que se devolveu a arte de
governar à sociedade. (AMIN, 1999, p. 82)

Corroborando com a crítica ao modelo Cidades Educadoras que este trabalho


pretende abordar, autor contribui para a discussão ao afirmar que tal perspectiva
alternativa de desenvolvimento, “tende a favorecer políticas aplicadas de baixo para
cima, específicas de cada região, em longo prazo e baseadas em uma pluralidade de
atores”.

Farinós (2008, p.23) afirma que “a participação da população em assuntos


públicos, e concretamente nas decisões com impacto sobre o território, passa a ser
um dos requisitos da nova governança”. Cabe aos processos de governança territorial
viabilizar os processos participativos, fortalecendo os já existentes e fomentando
novos canais de participação popular, dando-lhes os meios necessários para a efetiva
transformação de seus espaços, neste caso, as práticas formais e não formais de
educação urbana representam um importante instrumento de (in) formação.

Assim, como afirma Rodrigues (2014, p. 158) “privilegiam-se os percursos e os


processos de aprendizagem, os contextos históricos, culturais e – acrescentemos –
geográficos, nos quais as decisões e ações políticas ganham sentido”. A autora
destaca o importante papel das pesquisas geográficas para se analisar as questões
político - institucionais.
36

Se o território se torna referência para se pensar problemas e soluções locais,


cabe à geografia contribuir para uma reflexão acerca dos usos e
desdobramentos espaciais de processos políticos que ocorrem em recortes
territoriais e escalas diferenciados, e que podem contar com a participação
dos mais diversos atores – de representantes do Estado, passando por
associações de moradores, sindicalistas, empresários e outros setores da
sociedade civil organizada. (RODRIGUES, 2014, p. 161)

No que diz respeito à percepção da população sobre o processo de construção


de políticas públicas, segundo Pontual (2002) é necessário combinar a visão territorial
com a ação intersetorial. Segundo este autor

É possível um diagnóstico territorial razoavelmente adequado, mas se isso


não está combinado com uma política de ações, ações integradas, a simples
visão territorial não é garantia da produção de políticas públicas com um grau
efetivo de respostas às necessidades das pessoas. Não basta gerar políticas
que possibilitem um acesso maior das pessoas aos serviços porque, se elas
não estiverem associadas a um novo modelo de produção desses serviços,
que seja efetivamente cidadão – tanto na maneira como o serviço é ofertado,
como na relação que o usuário estabelece com o serviço -, dificilmente se
constituirá a noção de direito entre as pessoas.

Ao pensarmos sobre as políticas públicas e práticas, que possibilitem aos


cidadãos terem o conhecimento de seus direitos, encontramos a visão de diferentes
autores na reflexão sobre para a questão “se a cidade educa” ou mesmo se é “possível
educar para a vida urbana”, encontram-se algumas considerações conceituais a esse
respeito. São autores de diferentes nacionalidades que propõem definições distintas,
mas que dizem respeito ao mesmo fenômeno que relaciona o processo educativo dos
cidadãos “na cidade e pela cidade”.

No livro “O espaço do cidadão” Milton Santos (1987, p. 20) afirma que


“cidadania se aprende e pode se tornar um estado de espírito enraizado na cultura”.
Para se pensar na constituição de cidadania é preciso compreender não somente a
organização dos espaços da cidade, mas também as dinâmicas e prática sociais que
neles acontecem.

O espaço da cidade onde o cotidiano se faz presente, no encontro, no conflito


e na convivência das diferenças é o espaço público, tema central segundo a
perspectiva geográfica para que se possa analisar o tema da cidadania,
principalmente nas práticas que vivenciamos no dia a dia e são essas práticas que
dão significado aos espaços públicos da cidade.
37

Tal como Gomes (2006, p.188) entende-se que “as práticas sociais não são
independentes de uma certa organização espacial, e reconstituir uma esfera pública
implica redefinir o espaço, em suas dimensões físicas e simbólica”. Gomes (2006,
p.189) acrescenta que “desaparecendo o terreno da vida em comum, desaparecem
também as formas de sociabilidade que unem os diferentes segmentos sociais”.

Com isso, torna-se fundamental compreender, assim como descreve Gomes


(2006), de que forma a matriz territorial incide no conceito de cidadania, além de
entender como essa dinâmica pode ser refletida por meio de uma metodologia
sensível, que vê na educação urbana um estímulo à participação em ações de
planejamento e gestão territorial.

Se antes a educação aparecia como produto de uma cultura, de hábitos e


práticas de ancestrais a ser repassada a cada geração, partindo de um viés
meramente economicista, ela tem importante função no início da cadeia produtiva,
tornando-a primordial para o desenvolvimento econômico, para o processo do
trabalho, bem como para atender tanto às novas exigências tecnológicas e para os
novos comportamentos sociais.

No que diz respeito ao processo educativo caracterizado pelo contato direto


com o cotidiano, antes embalado pelo ritmo da natureza e na sua relação em
comunidade, hoje ele é impactado pelas demandas das novas formas de produção,
pela revolução técnico-científica e pelo “meio técnico-científico-informacional”.
Segundo Santos (1998, p 148) “é, também, a informatização, ou, antes, a
informacionalização do espaço. A informação tanto está presente nas coisas como é
necessário à ação realizada sobre essas coisas”.

A mudança no padrão produtivo e socioeconômico, isto é, da sociedade


industrial para a sociedade da informação trouxe mudanças em todas as esferas da
nossa sociedade. Tais transformações produtivas, tecnológicas e por consequência,
sociais resultaram em mudanças constantes tanto na gestão da informação e do
desenvolvimento do conhecimento, gerando o que se conhece por “sociedade do
conhecimento”.

Observa-se uma constante busca de adequação da Educação “para dar conta


das exigências do mercado” e da sociedade de consumo. O autor Jefferson Ildefonso
38

da Silva (1979) faz uma reflexão na década de 70, mas que ainda se mostra atual e
pertinente ao afirmar que

O impasse no mundo atual frente à educação exige, não apenas um aumento


de resposta, mas uma busca de novos meios de educação (…) a situação
atual mostra que a escola jamais poderá satisfazer às novas exigências. Falta
um caminho aberto para outras alternativas fora do único traçado pelo mito
tecnocrático do desenvolvimento. Outros modelos abririam possibilidades
educacionais, sem a necessidade de apelar para uma solidariedade utópica
entre as Nações. (SILVA, 1979, p. 23)

A educação tradicional, centrada no papel da escola e do professor como


difusores do conhecimento, também é impactada imensa quantidade de informação
que circula de todas as formas e por meios diversos. Esta educação assumirá a função
mediadora entre a instituição tradicional e o sujeito que participará ativamente da
construção do seu conhecimento.

Logo, será papel da escola também proporcionar o pensamento crítico de seus


alunos, para que estes sejam capazes de participar de forma ativa no contexto social
em que vivem. Para isso, é preciso mudar a concepção de uma educação balizada
pela economia ou pela produção, para que possamos promover uma educação para
a cidadania.

Assim, as transformações geradas pela sociedade do conhecimento


suscitaram a demanda de se rever a fonte de busca de informações, além de
pensarmos na forma e na criação do conhecimento, faz-se necessário o entendimento
do novo papel de nossa sociedade, cuja responsabilidade reside em educar para,
além dos muros da escola. Granell & Vila (2003) ressaltam o papel da educação
nesse processo ao afirmarem que

A educação deve qualificar os cidadãos e as cidadãs para que vivam nesse


mundo, deve combater o analfabetismo científico e promover o interesse
pelas novas orientações científicas, pelas últimas linhas de aplicação
tecnológica e pelas recentes mudanças acontecidas no campo conhecimento
social. A cidade deve constituir o âmbito de contato, de debate e de acesso
ao conhecimento para toda a cidadania. (GRANELL & VILA, 2003, p.21)

Na esteira dessas mudanças, o papel da educação também se modifica, além


da metodologia utilizada em sua modalidade formal, mas principalmente, agora na
modalidade informal, uma vez que as informações podem ser encontradas fora do
39

ambiente escolar. O processo dinâmico e complexo da educação, para além da sua


modalidade formal se transforma a cada dia, perpassa o ambiente familiar, entre
grupos sociais, intra e entre instituições, tornando, portanto, infinitas as possibilidades
e meios de informação.

Num cenário de globalização da econômica financeira que agrava a


fragmentação, as desigualdades sociais e que individualiza as relações, que papel a
educação deveria incorporar para lidar com problemas tão agudos?. Faria (1997, p.
143) alerta que “se a cidade que se pretende responsavelmente educadora não for
capaz de valorizar as relações mais caras à vida, a interação que as pessoas
estabelecerão com ela será mero aporte formal, que não cria vínculos, não deixa
pegadas e não produz paixões”. Em tempos de “sociedade do conhecimento” faz-se
necessário o entendimento desse novo papel cuja responsabilidade reside em educar
para, além dos muros da escola.

Entende-se que o processo educativo se relaciona não somente ao processo


individual dos sujeitos, mas também num processo de educação para a coletividade,
processo que relaciona este indivíduo aos demais para a vida em sociedade. Nesse
sentido, mais do que transmitir conhecimentos, torna-se fundamental formar cidadãos,
pois concordando com Granell & Vila (2003, p.16) “É preciso que deixemos de pensar
na educação exclusivamente a partir de parâmetros econômicos e produtivos e
promovamos uma concepção de educação que cultive, sobretudo, os valores de uma
cidadania democrática”.

Desta forma, ressalta-se o caráter político da educação, entendendo o


educador como um indivíduo comprometido com uma educação cujo foco seja
possibilitar as transformações sociais e a qualidade de vida dos sujeitos. O autor
Jefferson Ildefonso da Silva (1979) destaca o papel transformador da educação dos
sujeitos seja de forma individual ou coletiva quando afirma que

A educação se constitui não apenas pelo esforço de conscientização do


indivíduo dessa tarefa, mas como relacionamento intersubjetivo que
considera o projeto de pessoa como realização comunitária a partir do
intercâmbio dos homens, em uma determinada realidade. (SILVA, 1979, p.14)
40

Nesta perspectiva, Morigi (2016) defende que o papel transformador de uma


“pedagogia da práxis”, destacando sua importância em relação a pedagogia centrada
na transmissão cultural.

Para despertar nos cidadãos o interesse nos destinos de seus municípios,


precisamos pensar e criar novas práticas participativas que influam nos
caminhos dos governos. Esses novos processos precisam ser mais eficazes
do que conhecidos até o momento, para que se inicie a transformação da
cultura política, possibilitando um real envolvimento das diversas camadas da
população, muito além da simples presença obrigatória nos pleitos eleitorais.
(MORIGI, 2016, p.63)

Ao pensar na diversidade de sujeitos e práticas espaciais presentes nas


cidades faz-se necessário reconhecer, portanto, as múltiplas possibilidades de
educação nas cidades, extrapolando assim, os limites da educação formal, centrada
em um único sistema educativo. Segundo Puente & Solis (2007) “integrar os cidadãos
na cidade, exige planejamento e organização de todos os dispositivos que a educação
deve implementar no contexto da cidade”.

Desta maneira, a tarefa de educação também se encontra com os indivíduos e


também com e nas cidades, uma vez que segundo Granell & Vila (2003, p. 17) “a
cidade tem sido historicamente um lugar de encontro e de civilização. Desde o seu
aparecimento, há mais de 6 mil anos, a cidade tem estado estreitamente vinculada ao
conceito de cidade e cultura”. Para Eulália Vintró (2003)

A cidade é um amálgama de enorme riqueza em que acontecem inúmeras


atuações e experiências que fazem parte da vida das pessoas e que as
constituem como tais. Mas existe algo além disso. A cidade não reúne
somente agentes. Ela própria é um agente educativo. (VINTRÓ, 2003, p.43)

Segundo Paulo Freire (1992) a educação é um processo permanente, “o ser


humano jamais para de educar-se” (Freire, 1992) e a cidade, enquanto lócus das
práticas sociais que se constituem múltiplas e dinâmicas, também se caracteriza por
esse processo. Assim, da mesma forma que o indivíduo se educa ao longo da vida, a
cidade também educa e se torna um espaço educativo ao longo de sua história. Com
isso, a cidade torna-se lócus do processo educativo, de educar-se na e pelas cidades.

Ela se faz educativa pela necessidade de educar, de aprender, de ensinar


(...). A Cidade é cultura, criação, não só pelo que fazemos nela e dela, pelo
que criamos nela e com ela, mas também é cultura pela própria mirada
41

estética ou de espanto, gratuita, que lhe damos. A Cidade somos nós e nós
somos a cidade. (FREIRE, 1992, p. 22)

O autor José Henrique de Faria (1997) ressalta a importância do papel desta


educação que ressalta o seu viés coletivo e prepara para uma formação cidadã dos
sujeitos.

A cidade que educa tem que ser plenamente responsável por prover as
condições externas do educar: se não pode fazer todos iguais e sequer
educar a todos por igual, deve ser patrocinadora de igualdade de direitos e
oportunidades, de respeito à liberdade de ideias e convicções, de exercício
da ação política, de acesso aos bens públicos e à dignidade humana em
todos os sentidos. (FARIA, 1997, p. 142)

Tal como afirma Souza (2006), “planejar e gerir uma cidade envolve,
diretamente, a vida de uma coletividade. Planejar e gerir uma cidade não significa
planejar e gerir “coisas”, mas planejar e gerir relações sociais”. Corroborando com
esta visão, Vintró (2003, p.51) afirma que “a participação, portanto, é uma dimensão-
chave em um projeto educativo de cidade. Não existe projeto coletivo sem
participação”. Ao analisar se as cidades possuem o papel de educar para a cidadania,
pensando na sua função “educadora”, isto é, naquela que busca tornar os indivíduos
agentes propositores e formuladores de práticas e políticas para a sua qualidade de
vida, um cidadão de fato. Porém, Faria (1997) alerta que

A cidade que não gera cidadão é aquela que, afirmando seu caráter perverso,
encontra-se impedida de se estabelecer como espaço da produção, da
organização e da transmissão de um saber social relevante, de desenvolver
relações transformadoras, de promover o trabalho e de garantir as condições
que permitam às pessoas estabelecer, entre si, lações afetivos. (FARIA, 1997,
p.143)

Com essa reflexão de Faria (1997), o pensamento que invade e que permeia
as leituras, análises e reflexões do papel educador das cidades, ou pelo menos, desta
fundamental função que a cidade deve ou deveria ter, é: tal “cidade que gera cidadão”
existe de fato? Ela é fruto de uma utopia? Um sonho cada dia mais distante, diante da
realidade vivenciada principalmente nas cidades brasileiras?. Nos países
desenvolvidos e/ou naqueles precursores dos ideais descritos “a cidade que educa”
se concretizou?
42

Assim, as observações de Paulo Freire e Olívia Medeiros Neta trazem uma


proposição a respeito desta utopia. Em seu artigo intitulado Educação Permanente e
Cidades Educativas, Freire (1992) afirma que tal temática, estará imersa em um
discurso que não necessariamente será “neutro”, tenderá a uma posição de quem o
faça, ou mesmo, como assinala Medeiros Neta (2016), “discurso e cidade são
indissociados”.

Medeiros Neta (2016, p. 213) por sua vez, acrescenta que “a cidade é investida
de uma orientação pedagógica expressa em seu modus vivendi, nos cenários, nas
ritualizações e nas instituições e, a educabilidade é uma constante dessa orientação”.
A autora defende que a cidade detém ao mesmo tempo que produz pedagogias para
os seus moradores e essa “pedagogização” também acontece na experiência urbana,
já que possibilitam novos encontros e novas formas de comunicação, além da
reconstrução de identidades.

É preciso também reconhecer a interação permanente entre os indivíduos, com


sua cultura, suas singularidades que como agentes, constroem e tem suas
identidades construídas pelo ambiente urbano. Almeida (2008, p.4) defende que “o
local produz um novo posicionamento da identidade pessoal e comunitária na procura
das soluções capazes de enfrentar a realidade”.

A interação entre a cidade ou o meio urbano e a pedagogia, segundo os autores


Puente & Solis (2007, p. 173), condiciona o desenvolvimento de uma educação, onde
“a cidade influi e condiciona a educação e, esta, condiciona os espaços, estruturas e
os elementos que configuram o entorno”.

A pluralidade dos espaços, a indefinição de contextos e a multiplicidade de


recursos unidos a heterogeneidade dos agentes educativos vão servir para que desde
a experiência concreta se formulem e se planejem intervenções socioeducativas que
tenham como referência a Pedagogia Urbana. Segundo Almeida (2008, p.4) “uma
pedagogia urbana à volta de um ideal de cidade a construir”.

O colombiano Pablo Páramo (2009) se inspira as ideias do autor espanhol


Jaume Trilla Bernet para conceituar a estreita relação entre o processo educativo e a
cidade, por meio do conceito de Pedagogia Urbana. Trilla por sua vez, analisa
criticamente a perspectiva e os contextos que constituem a expressão “Cidade
43

Educadora”. Para Páramo (2009) a relação entre educação, pedagogia e cidade


compõem o campo de estudo da Pedagogia Urbana. Uma nova conceituação sobre o
mesmo processo que envolve o processo educativo, relacionando-o às dinâmicas
urbanas.

O autor reconhece a cidade como um recurso tanto para a educação formal


quanto informal, uma vez que oferece o espaço público e equipamentos urbanos que,
ao formar uma “rede educativa”, possibilitam a oferta e o meio para formação pessoal
do indivíduo, por meio de sua “história, tradição cultural, sai estrutura social e
administrativa”.

O objetivo constante da cidade será aprender, intercambiar e, portanto,


enriquecer a vida de seus habitantes com uma convivência saudável. A
cidade entendida como educadora, há de exercitar e desenvolver esta função
de maneira paralela às tradicionais com uma atenção especial a formação,
promoção e desenvolvimento de todos os seus habitantes com o foco na
melhoria da qualidade de vida urbana. (PÁRAMO, 2009, p.18)

Páramo (2009) trabalha com a definição de dois autores Anthony Colom (1991)
e Jaume Trilla (1997) que assim como ele, também utilizam o conceito de Pedagogia
Urbana. Para Colom (1991 apud Páramo 2009,p 19) tal conceito “daria fundamento e
razão a uma fenomenologia própria que desenvolve a educação em um contexto
urbano” que teria como fonte geradora do interesse nessa nova abordagem temática,
o desenvolvimento “sociourbano contemporâneo”.

Ainda segundo Colom (1991 apud Páramo 2009, p.20) a Pedagogia Urbana
teria como origem a busca por responder aos seguintes questionamentos: “o que a
educação pode oferecer para solucionar problemas gerados pela cidade? e “o que a
cidade pode oferecer para solucionar os problemas educativos que vivenciamos na
escola e na sociedade?”.

Por meio de tais questionamentos o autor nos remete às práticas didáticas da


Pedagogia Urbana, o “aprender com a cidade” e “aprender a cidade”. O “aprender
com a cidade” diz respeito a perspectiva na qual a cidade é fonte de informação e o
meio “didático-instrumental” que possibilita a aprendizagem de questões integradas
aos planos escolares.
44

O “aprender a cidade” diz respeito a perspectiva da cidade como objeto de


estudo, um objeto de análise curricular. Segundo Colom (1991 apud Páramo 2009,
p.21) “é nesse contexto que se encontram os itinerários urbanos e centros de
interpretação urbana, através das quais se ensina ao cidadão as características
estruturais e históricas da cidade que habita”.

Para o autor Jaume Trilla (1993 apud Páramo 2009) “educação no meio urbano
transita entre a educação formal e a informal pensada como duas utopias
pedagógicas, a “escola-cidade” e a “cidade educativa”. Trilla (1993) afirma o meio
urbano como agente de educação informal, produzido pela diversidade de encontros
humanos e produtos culturais. Assim, o meio urbano se configura produto e produtor
de práticas sociais e culturais diversas.

A cidade é um “contêiner” de uma educação múltipla e diversa, positiva e


negativa que se estende, flui e se dissemina para a maioria dos espaços, com
inúmeros recursos e estímulos de formação e em seu caso, deformação, que
configuram na trama educativa que é a cidade, onde se mesclam a educação
formal, não formal e informal. (PÁRAMO, 2009, p 22)

Para Trilla (1993) para definir uma metodologia ou mesmo práticas que
configuram numa pedagogia urbana, seria preciso “facilitar a aprendizagem da
cidade”, ou seja, é preciso aprofundar o conhecimento informal adquirido no dia a dia
de seus cidadãos, para que assim eles possam não somente se adaptar às
transformações inerentes ao cotidiano, mas também para que possam aprender a
intervir neste espaço.

Ainda de acordo com Trilla (1993 apud Páramo 2009, p.21) tais ações
educativas teriam como propósito “dialetizar três imagens da cidade: uma imagem
subjetiva, construída por cada um; uma imagem global e profunda que, na visão de
Trilla, seria configurada pelas próprias instituições educativas a partir da imagem
subjetiva de cada um; e a terceira imagem a ser construída, uma “imagem forjada com
materiais prospectivos e projetivos que podem contrastar- se a cidade real e orientar
a participação para construção de uma cidade melhor”.

Desta forma, tanto Trilla (1993 apud Páramo 2009, p.22) como Colom (1991
apud Páramo 2009) destacam o caráter pragmático relacionado ao conceito de
45

Pedagogia Urbana, centrado em conhecimentos informais produzidos na diversidade


dos sujeitos e dos espaços de encontro da cidade.

Páramo (2009, p.23) por sua vez, defende que Pedagogia Urbana consiste
mais num campo de conhecimento, porém não descarta o caráter pragmático de suas
práticas que acontecem nos espaços públicos e culturais da cidade. Ainda segundo
o autor, “o campo de conhecimento integra a epistemologia, a história, a teoria, os
conceitos e as práticas que surgem do estudo das relações formativas que se dão
entre o indivíduo e os grupos, com o entorno urbano e suas instituições mediante
mecanismos formais e informais”.

Tais ações educativas teriam como propósito contribuir para a formação dos
indivíduos, a criação de uma cultura cidadã que consiste na boa convivência entre as
pessoas, além da apropriação dos espaços da cidade por meio da participação.

Páramo (2009) ao realizar a delimitação do campo de conhecimento da


Pedagogia Urbana, destaca alguns princípios que, segundo o autor, que o
caracterizam. Vale ressaltar alguns desses princípios:

- A experiência de viver a cidade estabelece relações de reciprocidade entre


a influência do entorno com a formação do indivíduo e deste como agente
que desenha, constrói e transforma a cidade;

- Promove a democracia, a participação cidadã e a convivência entre as


pessoas;

- Explorar as possibilidades da cidade como ambiente de aprendizagem tanto


individual como social;

- Potencializar as interações que facilitam e promovem uma maior e melhor


convivência no espaço público;

- Caracterizar e compreender as relações e tensões entre cidade-cidadania e


democracia, implantada na cotidianidade da experiência urbana e

- Promover o conhecimento dos mecanismos e possibilidades da democracia


participativa, relacionados com o desenho, uso e apropriação da cidade.
(PÁRAMO, 2009, p.25)

Os ideais de cidadania coletiva, de prática solidária e valores sociais na cidade,


se opõem à tendência da racionalidade de nossa sociedade que cultiva e instiga o
individualismo o fortalecimento da vida privada, práticas contrárias aos valores e
ações coletivos. Nesse sentido, Cavalcanti (2008) postula que uma forma de
46

resistência à tendência individualista, tão presente na cidade, seria buscar ampliar a


função das cidades como espaços educativos.

Segundo Morigi (2016, p.40), a cidade teria o papel educativo, na medida em


que se objetive ao “desenvolvimento e comportamentos que implementem a qualidade
de vida de seus cidadãos, constituindo-se como uma proposta integradora de vida
comunitária”.

A expressão “cidade educativa” que se tornou popular nas últimas décadas em


diversas cidades mundo afora, porém a sua ideia pode ser encontrada em
“pedagogias muito antigas”, seja na Grécia clássica pela relação entre paideia e a
polis, seja nas utopias renascentistas de cidades ideais onde a educação tinha seu
papel fundamental, ou pelos educadores cujas perspectivas renovaram os métodos e
práticas do processo educativo, como Dewey e Paulo Freire (Trilla, 1997).

Esta perspectiva educativa que influenciou educadores e práticas, popularizou-


se na década de 70 do século XX após a publicação do livro Aprender a Ser
organizado por Edgar Faure. O autor fez parte da Comissão Internacional para o
Desenvolvimento da Educação da UNESCO. Para Jaume Trilla (1997), a expressão
“cidade educativa” havia cumprido apenas um “papel metafórico”, já que não se
relacionada a nenhuma experiência ao meio urbano ou a cidade.

Após a divulgação do Relatório da UNESCO, mas fundamentalmente, após a


realização do Congresso Internacional de Cidades Educadoras em Barcelona, que a
ideia de “cidade educativa” se popularizou e teve uma nova função ao mudar para a
expressão “cidade educadora”. Muda-se a expressão “educativa”, que indica a cidade
como um mero fator de educação por “educadora”, que reforça o seu caráter de
agente, destacando assim, a relevância formativa que as cidades devem assumir.

O espanhol Jaume Trilla (1997) descreve a sua perspectiva em relação a


mudança na expressão, que indicaria mais que uma categoria precisa, é uma “ideia
força”.

É uma denominação extraordinariamente genérica que abarca, significações


puramente descritivas, que contém claramente desideratos. É também, no
melhor sentido da palavra, um lema, um slogan sugestivo que proporciona
uma imagem muito adequada da complexidade do fato educacional: a
educação não é um evento isolado, localizado apenas em espaços muito
específicos e agudos, mas em uma realidade muito mais onipresente,
47

dispersa, difusa e até um tanto confusa e aleatória como são as próprias


cidades. (TRILLA, 1997, p. 15)

Ainda no decorrer de sua análise, o autor utiliza algumas expressões que,


segundo ele, caracterizam a perspectiva de uso, do emprego desta ideia. Para Trilla
(1997) a expressão “cidade educadora”, possui como significados: lema, slogan,
utopia, quimera, retórica e metáfora.

Segundo a reflexão de Trilla (1997, p. 15), o lema “Cidade educadora” teria


também como função, a sensibilização dos cidadãos sobre a dimensão educativa de
sua cidade, além da responsabilidade coletiva que todos devem ter, “o imperativo que
os organismos competentes no governo das cidades para fazer dela um ambiente
positivamente formador”.

A expressão também se revela como uma utopia. Utopia que se mostra


arraigada em determinado pensamento pedagógico, no desejo de “construir um meio
educativo total, quer dizer, um meio em que todas as incidências educativas podem
ser controladas”.

O sentido de uma quimera, pois segundo Trilla (1997, p.16) “no momento de
atribuir um certo sentido ao trabalho pedagógico, é tão impossível quanto talvez
duvidosamente desejável”. Destaca-se ainda outras duas expressões utilizadas por
Trilla (1997) para caracterizar o uso do termo “cidades educadoras”, “retórica” e
“slogan”. Para o autor

Em determinados usos e contextos, com facilidade adquire uma função clara


e simplesmente retórica. Parece tão bom e resulta tão versátil que se
converte frequentemente em um elemento muito idôneo para o discurso
oficialista das instituições políticas e os organismos internacionais. O slogan
“cidades educadoras” às vezes sugere tanto que compromete muito pouco.
(TRILLA, 1997, p.16)

Ao relacionar educação e cidade Trilla (1997, p.18) afirma que “todas as


cidades educam e educam como um todo”. Com esta afirmação, destaca-se o papel
de agente das cidades no processo educativo dos seus cidadãos, pois “inclusive
poderia ensaiar uma linha máxima de reflexão que irá tentar argumentar que não
somente que as cidades educam, mas que são elas o ambiente privilegiado da
educação”.
48

Ao buscar uma definição do conceito “cidades educadoras”, Trilla (1997) sugere


uma identificação com base nos “níveis de significação” e três dimensões possíveis
que relacionam educação e cidade.

A primeira dimensão considera “a cidade como locus de uma educação múltipla


e diversa, positiva e negativa que se espalha para a maioria dos espaços”. Trilla (1997)
distingue essa dimensão afirmando que cidade educadora é composta por quatro
ordens:

- Uma estrutura pedagógica estável formada por instituições especificamente


educativa que asseguram a continuidade e a consistência e forma da trama
educativa global;

- Uma malha de equipamentos, recursos, meios e instituições cidadãs


também estáveis, mas não especificamente educativas, como recursos que
geram intencionalmente educação mesmo quando esta não seja a sua função
primária e principal;

- Um conjunto de acontecimentos educativos planejados, porém efêmeros ou


ocasionais;

- Uma massa difusa, mas continua e permanente de espaços, encontros e


vivências educativas não planejadas pedagogicamente. (TRILLA, 1997, p.20-
21)

Ao narrar essa dimensão mais descritiva o autor busca demonstrar o caráter


real de uma cidade educadora, conceitualmente falando, tentando afastar-se das
concepções utópicas de cidade, mostrando seu caráter ambíguo resultado “da
dialética entre o pedagogicamente ordenado e o inevitável azar de encontros e
vivências educativas que se produzem pela hipercomplexidade do meio urbano”. Esta
cidade, portanto, acolhe tanto a educação formal, não formal e informal.

Outra dimensão destacada pelo autor, diz respeito a cidade como locus ou
“contenedor” de educação, sob o ponto de vista mais projetivo. Nesta dimensão, são
exemplificados cinco critérios de atuação mais gerais, como:

- Multiplicação: tipo mais elementar, primário de atuação, que consiste em


“colocar na cidade a maior quantidade possível de recursos educativos e culturais”.

- Reutilização: consiste em reaproveitar os recursos existentes na cidade, seja


o capital humano ou equipamentos e recursos materiais, potencializando neles uma
49

“funcionalidade criativa expressa”. Assim, para que a “trama educativa da cidade”, se


torne mais densa, nem sempre é necessário criar novos recursos.

- Organização e coordenação: diz respeito à capacidade de união de iniciativas


educativas provenientes de organização governamentais, instituições privas e de
outros setores da sociedade civil. Esta união, busca potencializar as ações educativas
de forma organizada, trata-se portando, de “coordenar desde cima o desenho de
políticas públicas educativas urbanas integradas e principalmente, de facilitar em cada
território, cada bairro a complementaridade e a cooperação entre as distintas
instituições, recursos e programas de intervenção”.

- Evolução, adaptabilidade e dinamismo: segundo este critério uma cidade se


torna “mais educadora”, na medida em que possua a capacidade de adaptação às
mudanças, ao mesmo tempo em que ela mesma possa gerar também
transformações, evidenciando assim, o caráter dinâmico e evolutivo da educação,
assim como do meio em que ela se desenvolve. Desta forma, “é necessário o estímulo
às inovações educativas e a experimentação pedagógica: uma cidade dinamicamente
educativa é uma cidade capaz de importar e exportar experiências educativas, que
promovam o intercâmbio com outras cidades”.

- Compensação: refere-se à quantidade de recursos educativos que uma


cidade contém e esse número torna-se um indicador do “nível global de
educatividade”. Todas as cidades são educadoras, porém umas tem mais acesso a
oferta educativa, por isso que “as políticas públicas educativas, sociais e culturais
devem considerar em termos de redistribuição e compensação”.

A segunda dimensão retratada por Trilla (1997,p.25) traz a perspectiva da


“cidade como agente de educação”. Nesta dimensão a cidade educadora seria
“aquela que contempla o meio urbano como um agente informal de educação”, onde
“a cidade é concretamente a rua”. Trilla (1997) para exemplificar claramente esta ideia,
cita uma frase popular, expressivamente utilizada na literatura que atribui a cidade, a
rua como sendo “a escola da vida”.

O caráter informal poderia encontrar-se na oferta de “cultura, formas de vida,


normas e atitudes sociais, valores, tradições, costumes, expectativas, tudo o que
aprendemos diretamente através dos modelos de comportamento presentes na
50

cidade e das relações sociais que ela molda”. Nesse sentido, para tornar-se
educadora a cidade, segundo Trilla (1997)

A cidade deixa de consistir em um projeto educativo, e torna-se um projeto


de formação da cidadania e, portanto, como se de um projeto curricular fosse
depois de elucidar os conteúdos que efetivamente transmite a cidade, deve
enviar para um processo de seleção, é necessário rastrear aqueles que são
indesejáveis e promover aqueles que sejam consistentes com a formação de
uma cidadania democrática, pacífica, tolerante, igualitária, justa e solidária.
(TRILLA, 1997, p.29)

A terceira dimensão ressaltada por Trilla (1997, p.29) refere-se à cidade como
conteúdo educativo. Nesta dimensão, o conhecimento informal gerado pelo ambiente
urbano, também é um conhecimento sobre ele. Assim, “você aprende da cidade e
você aprende a cidade”.

Porém, o autor destaca que esse conhecimento informal gerado pelo meio
urbano possui algumas limitações. A superficialidade, pois aprendemos todos os dias
como “usar a cidade”, por meio de informações sobre sua aparência, suas novidades,
porém o conhecimento não se torna abrangente e aprofundado, ao ponto de
entendermos e analisarmos sua estrutura ou mesmo a sua formação.

A parcialidade relaciona-se ao fato de que alguns fatores, tão presentes no


meio urbano “como classe social, lugares de resistência, o trabalho, a família, os
hábitos do ócio de, acabam determinando que os indivíduos não conheçam mais que
uma parcela ou uma dimensão limitada da cidade”. Os hábitos de cada indivíduo no
meio urbano, podem limitar a sua experiência e sua mobilidade por ambientes novos,
que lhe tragam informações diferenciadas. O espaço urbano segmentado acaba por
segmentar informações, vivências e por consequência, conhecimento e atitudes sobre
a cidade.

Desta forma, “fazer da cidade objeto de educação significa superar estes limites
de superficialidade e parcialidade que frequentemente apresenta a aprendizagem
espontânea que se realiza do meio urbano”. Neste momento, o autor defende que é
preciso expandir as experiências diretas dos habitantes, é preciso vivenciar os
espaços da cidade. Trilla (1997) defende que

Facilitar a aprendizagem da cidade deveria consistir em ampliar a experiência


direta do meio e, por sua vez, possibilitar a elaboração dessa experiência. É
51

dizer, organizar e dar profundidade ao conhecimento informal que da cidade


se adquire através da vida cotidiana, e ajudar a descobrir as relações e a
estrutura ou estruturas que frequentemente não aparecem diretamente
perceptíveis. (TRILLA, 1997, p.31)

Ao refletir sobre a função educativa dos espaços urbanos, por meio da análise
das dimensões que a cidade adquire neste papel de “locus da educação, como agente
da educação e como conteúdo educativo”, Trilla (1997) ressalta e reafirma as múltiplas
possibilidades de educação para a cidadania, tão necessária em tempos
transformações tão bruscas e contínuas em nossa sociedade, em nossas cidades.

Esta função tão nobre que a cidade adquire, ou reforça, merece uma análise
detalhada e aprofundada ao debruçarmos sobre alguns projetos de diferentes
cidades, com realidades e intenções diversas, mas que tiveram como eixo comum e
como princípio básico possibilitar uma aproximação ao projeto de constituição da
cidade como um projeto educativo.

Assim, mais do que um slogan, uma retórica ou mesmo utopia, como afirma
Trilla (1997) faz-se necessário buscar e analisar neste trabalho as experiências e/ou
projetos que tentaram colocar em prática, no planejamento de suas cidades, os
princípios fundamentais que possibilitam tornar as cidades educadoras.
52

CAPÍTULO 2: CIDADE E UTOPIA

A proposição de modelos de ideal de cidade acompanha a nossa sociedade ao


longo do tempo, tal como Platão ao desenhar a espacialização territorial da cidade a
partir da organização social de seu tempo; e o projeto Cidades Educadoras do século
XX, por meio do ideal de sociedade contido e propagado na Carta das Cidades
Educadoras.

O imaginário sobre a constituição e a idealização de uma cidade justa,


harmoniosa, solidária, perfeitamente especializada, fruto da combinação entre a
geometrização urbanística e a aritmetização da vida perpassam a ideia/conceito de
utopia ao longo da história e a obra de seus pensadores. O filósofo Jean – Yves
Lacroix (1996) descreve o surgimento do termo e conceito ao afirmar que

O termo utopia nasceu como neologismo latino forjado a partir do grego e


que, não sendo de parte alguma, nem grego nem latino, parece o mais apto
a transportar o espírito para um “algures” radical. Mas já que o sentido desse
“algures” é nomeado pelo que representa de partida, “o país de Lugar Algum”
não é “o país de Qualquer Lugar”. É o país da Felicidade: por fim e sem que
isso substitua o tema “Utopia”, já definitivo, Morus chama sua ilha de
“Eutopia” nas edições de 1518. A partir do século XVIII, a palavra “utopia”,
torna-se substantivo comum. (LACROIX, 1996, p.22-23)

Os modelos de cidade são acompanhados pelo ideal de simetria espacial da


cidade, bem como a busca de homogeneidade de ações e práticas para distintas
realidades, culturas e sistemas socioeconômicos e políticos. Para Forgiarini (2017,
p.5) “as cidades não são apenas uma soma de projetos e edificações, não se
resumem a experiências puramente territoriais, materiais e/ ou físicas, elas são vividas
e imaginadas, estão na mente e no coração das pessoas”.

Na introdução de seu livro Mito e Pensamento entre os Gregos: estudos de


psicologia história, o autor Jean Pierre Vernant cita Z. Babu (1960) descreve a
perspectiva grega da formação da “verdadeira pessoa”, do modelo ideal de indivíduo.
Assim, segundo Z. Babu (1960 apud Vernant, 1990)

Os gregos descobriram a verdadeira pessoa: ao edificar o seu interior sobre


o equilíbrio entre dois processos psíquicos opostos: a “individualização” que
realiza a integração das forças internas do indivíduo em torno de um centro
único, por outro lado a “racionalização” que integra os indivíduos em uma
53

ordem superior (social, cósmica, religiosa), os gregos teriam elaborado a


forma perfeita da pessoa, o seu modelo.

No que diz respeito ao sentido de ordem encontrado na sociedade grega que


incide por sua vez na pólis grega, principalmente em Atenas, segundo o autor Lewis
Munford em seu livro A Cidade na História (2004) “o que encontramos na cidade do
século V era algo mais profundamente orgânico, mais próprio do núcleo vivo da
existência humana”.

A busca por “encontrar”, determinar, construir modelos de “pessoa”, bem como


de “cidade” não é algo novo, não representa apenas uma demanda dos tempos
modernos. Para refletir através do tempo sobre como as cidades foram construídas
e/ou transformadas, tendo a educação como balizadora de tais mudanças na
organização socioespacial e política, optou-se para o presente trabalho iniciar a
análise e descrição do processo de instauração da vida política em Atenas, na Grécia
Antiga.

Tal recorte temporal justifica-se por reconhecer a importância do período


analisado, para a reflexão sobre o nascimento da cidade, a constituição de uma cidade
democrática, “registo do nascimento do homem ocidental”.

Nesse sentido, as reformas de Clístenes3 no plano das instituições, bem como


a centralidade das instituições para a desenvolvimento do viés político em Atenas, “de
uma instauração do político, do advento do plano político, no sentido próprio, na
existência social dos gregos” (Vernant, 1990, p.286), são o ponto de partida deste
capítulo.

Ao retratar a reforma, tem-se como perspectiva descrever e refletir sobre a


reformulação do Estado proposto por ele, com o intuito de se constituir o ideal de
cidade igualitária, onde seus cidadãos estariam “no mesmo plano”, sem distinções
hierárquicas, e “ocupariam com relação a um centro comum posições simétricas e
reversíveis”. Logo, pensar neste ideal de cidade sob a perspectiva de Clístenes na

3
Clisthène l`Athénien, personagem da obra de P. Lévêque e P. Vidal – Naquet, citado por
Vernant para personificar a transformação da vida social grega.
54

Grécia Antiga é se aproximar do ideal de cidade proposto e difundido até os nossos


dias.

A reforma de Clístenes, relatada por Vernant (1990) tem seu foco deslocado da
prevalência do domínio das questões econômicas para transformá-la no domínio das
instituições cívicas. Claude Mossé (1993) indaga sobre os motivos que levaram
Clístenes, um aristocrata de uma das mais importantes famílias de Atenas, a realizar
tal transformação na sociedade ao “remodelando o espaço cívico para dar uma base
concreta à igualdade jurídica dos cidadãos”. Mossé (1993, p.25) ainda acrescenta que
“independente das razões que levaram Clístenes a alterar profundamente as
estruturas da sociedade cívica, o certo é que o nascimento da cidadania ateniense é,
de qualquer modo, obra sua”.

Questões sobre como unificar grupos separados por “estatutos sociais,


familiares, territoriais e religiosos diferentes”, como separá-los de suas tradições para
então construir uma “cidade homogênea”. Essa cidade seria constituída por cidadãos
semelhantes e iguais, com os mesmos direitos de participar na vida pública.

A cidade se faz democrática, ela se realiza de certa maneira, de modo


consciente. A noção de isonomia, que se liga a uma época em que
democratas e oligarcas, aliados contra o poder dos tiranos não eram ainda
distinguidos com nitidez, toma agora um novo sentido, um valor político
claramente definido. (VERNANT, 1990, p.286)

O sentido político então, assume a centralidade na medida em que a cidade


passa então a resolver os seus problemas por meio do pleno funcionamento de suas
instituições. Além disso, o homem, como ser político adquire seu papel de cidadão ao
se dedicar a vida pública, transformando, portanto, o espaço cívico, bem como a
organização do tempo e os sistemas de numeração. Segundo Vernant (1990)

Espaço, tempo, número; as mudanças operam-se solidariamente seguindo


caminhos cujo paralelismo é patente. Em face das antigas representações
espaciais, temporais, numéricas, carregadas de valores religiosos, elaboram-
se novos quadros da experiência, correspondendo às necessidades de
organização do mundo da cidade, este mundo propriamente humano em que
os próprios cidadãos deliberam sobre seus negócios comuns. (VERNANT,
1990, p.286)
55

Destaca-se também a predominância da questão territorial sobre o princípio


gentílico na organização da pólis, a partir da reforma de Clístenes, onde a divisão
espacial da cidade reflete a divisão social de seu povo. Vernant (1990) descreve que

Esse espaço tem um centro, a cidade, que constitui o coração homogêneo


da Ática, e onde cada tribo é representada. No centro da própria cidade, a
ágora, reorganizada e remodelada, forma um espaço público, nitidamente
circunscrito, delimitado a partir de então por marcos. Edifica-se na ágora o
Bouleutérion, sede da Boulé dos Quinhentos, composta por representantes
de cada tribo que cada uma por vez, exercem a pritania, isto é, presidem
sessões da Ekklésia com o privilégio de ficarem alojados no Lar comum.
(VERNANT, 1990, p.288)

Observa-se a transformação do significado do centro, de símbolo religioso para


símbolo político, a organização do espaço público, comum de aspectos como
homogeneidade e igualdade. A criação desse espaço político relaciona-se à criação
de um tempo cívico. A reforma Clístenes traduziu-se também na criação de um
calendário decimal, baseado no modelo das dez tribos territoriais, o que denota que a
organização do tempo também está calcada na organização do espaço.

Assim, ressalta Vernant (1990) “organização política, espaço cívico, tempo


pritânico são ordenados e medidos por números”, neste caso, das dez tribos
territoriais que se sucedem na administração da cidade.

Pode-se pensar que o emprego desse sistema numeral corresponde, em


grande parte, à difusão da moeda e à necessidade de uma contabilidade
escrita. É preciso lembrar aqui o papel que a escrita representou nas origens
da cidade. Colocada aos olhos de todos pelo próprio fato de sua redação, a
fórmula escrita sai do domínio privado para se situar em outro plano: torna-
se um bem comum, coisa pública; a partir de então concerne diretamente à
coletividade em seu conjunto; participa do público, de qualquer maneira.
(VERNANT, 1990, p.292)

As reformas foram retratadas não somente no plano das instituições, mas


também no plano das estruturas mentais, uma vez que “a mutação política é o sinal
de uma mudança no universo intelectual”. Clístenes, conforme retrata Vernant (1990),
insere a cidade como centro do novo espaço cívico, isto é, lugar do comum, da coisa
pública, do ideal político de isonomia, da coletividade, tendo o dêmos urbano a sua
classe política, cuja integração ao Estado trariam mais peso à cidade no equilíbrio das
forças públicas.
56

O entendimento sobre o dêmos urbano perpassa pelo surgimento da classe


social composta por artesãos e comerciantes que conviviam no espaço da cidade com
a nobreza citadina, os Eupátridas.

A constituição de Clístenes propõe-se precisamente a ultrapassar a oposição


entre campo e a cidade e a edificar um Estado que ignore de modo
deliberado, na organização dos tribunais, das assembleias e das
magistraturas, toda distinção entre urbanos e rurais. (VERNANT, 1990,
p.293)

A cidade passa a se configurar não somente no espaço de convivência entre


rurais e citadinos, mas do dêmos urbano e dos Eupátridas. Vernant (1990, p.302)
ressalta que “no centro do território, ela reúne como em um mesmo ponto todos os
edifícios, civis e religiosos, que estão ligados à vida comum do grupo, tudo que é
público em oposição ao que é privado”. Além disso, a reforma de Clístenes tinha como
propósito integrar, sem distinção, os cidadãos da pólis.

Os gregos não separavam claramente, como o fazemos, Estado e sociedade,


plano político e plano social. Para eles, a oposição se situa entre o privado e
público. O que não é do domínio privado acha-se ligado ao domínio público,
ao comum, isto é, finalmente, à espera política (para nós, ao contrário, a maior
parte de nossas atividades sociais, que nos colocam em relação com outrem,
não são nem do domínio puramente privado, nem do domínio propriamente
político. (VERNANT, 1990, p.303)

Vernant (1990) acrescenta que na perspectiva dos Antigos, a sociedade seria


constituída tanto por múltiplas partes, porém diferenciadas no que diz respeito às suas
funções; e ao mesmo tempo homogênea, una, para que dela seja formada uma pólis.

Designando a politéia a um mesmo tempo o grupo social tomado em seu


conjunto (a sociedade) e o Estado no sentido estrito, é difícil fazer dela uma
teoria inteiramente coerente, pois, segundo a perspectiva em que se colocar,
essa politéia se apresenta ora como múltipla e heterogênea (diferenciação
das funções sociais), ora como uma e homogênea (aspecto igualitário e
comum das prerrogativas políticas definindo, como tal o cidadão).
(VERNANT, 1990, p.303)

Porém, destaca que com a reforma clísteniana essa perspectiva ocupa um


espaço exemplar, na medida em que transforma o pensamento político tornando o
espaço cívico homogêneo. Os indivíduos de Atenas não são diferenciados por sua
profissão, família ou mesmo residência, “todos são equivalentes uns aos outros
enquanto cidadãs de um mesmo Estado”.
57

Mossé (1993, p. 27) por sua vez ressalta que esta é uma característica peculiar
de Atenas, assim como outras poucas cidades, o fato de que os indivíduos poderiam
pertencer à comunidade cívica sem que estes tivessem a posse do solo, referindo-se
àqueles estrangeiros à cidade.

Graças à reforma, graças às “medidas de Clístenes, que criou a isonomia, a


igualdade à face da lei, e por lei, de todos os que eram membros de um demo, essa
circunscrição territorial que se transformou na base da cidadania”. Desta forma, a pólis
se apresenta sem hierarquias, sem especialidades, sem diferenciação. Vernant
(1990) afirma que

Ao remodelar o Estado, Clístenes obedeceu a um ideal de cidade igualitária


em que todos os cidadãos se situariam no mesmo plano e ocupariam com
relação a um centro comum posições simétricas e reversíveis. (...) o
estabelecimento de um quadro político homogêneo é a condição de uma
fusão em um mesmo todo dos elementos diferenciados do corpo cívico.
(VERNANT, 1990, p.305)

Já na cidade platônica, a diferenciação das classes sociais gera uma


segregação balizada pela diferença entre as funções de seus membros. Porém,
mesmo que ao comparar, o ideal de cidade proposto por Clístenes e Platão apareçam
divergentes, ambos tinham como objetivo a constituição de um Estado homogêneo e
uno. Para Platão, “os que formam o Estado podem ser politicamente semelhantes
apenas se eles o são também no conjunto de sua vida social”. Com isso, Platão
propõe a espacialização territorial da cidade que siga “as exigências de um espaço
social homogêneo”. Segundo Vernant (1990),

Platão é então levado a evocar as mais favoráveis condições locais à


realização de seu projeto e a precisar os modos de organização do espaço
que sua legislação vai projetar sobre o terreno. Ele não nega que seu plano
tem um valor ideal: na prática será sem dúvida impossível reunir todas as
condições exigidas. Estamos, pois, diante de um modelo – e Platão o afirma
expressamente. Esse modelo é, ao mesmo tempo, geométrico e político.
Representa a organização da cidade sob a forma de um esquema espacial.
Ele a representa desenhada no solo. (VERNANT, 1990, p.308)

Platão, afirma Vernant (1990), ao desenhar o espaço da cidade em


homogêneo, onde cada cidadão possui o seu espaço de terra sem distinções sociais,
tornando-os semelhantes inclusive no seu lugar de moradia, logo não haveria
58

distinção entre camponeses e citadinos uma vez que todo “todo cidadão é ao mesmo
tempo e, também citadino, tanto quanto camponês”.

A pólis platônica, que, como os autores mostraram, é, em alguns aspectos, o


contrário da cidade clássica, é também a sua verdade. É sem dúvida, nas
Leis que o modelo de um espaço político geometrizado, que caracteriza a
civilização grega, acha-se delineado, em seus traços específicos, de maneira
mais firme possível. (VERNANT, 1990, p.310)

Em seu livro Leis, descrito por Brisson & Pradeau (2012), Platão detalhou
minuciosamente o cotidiano e atribuiu extrema relevância à realidade cívica da cidade
de Atenas, porque “no final de seus dias teria renunciado às exigências utópicas da
filosofia para ceder ao real”.

Segundo os autores, Platão defende que uma pólis somente alcançaria a


excelência se fosse governada tão somente por “homens sábios, instruídos
cientificamente sobre os fins da vida comum e sobre os meios a serem empregados
para que cidadãos sejam formados na virtude”. Nesta perspectiva, Platão descreve a
razão intrínseca da pólis ao afirmar que os seus governantes, serão os homens mais
sábios, por conhecerem além de todas as ciências, aquela considerada a primeira e
verdadeira ciência, a filosofia.

Além disso, a razão é extrínseca uma vez que Platão sustenta que os homens
deveriam buscar fora da comunidade, “na perfeição do mundo e de suas causas
divinas a razão e o modelo de sua própria organização e se possível reforma”.

O aprofundamento nesta literatura de Platão, torna-se relevante para os


objetivos deste trabalho, pois entende-se que a pesquisa à natureza das cidades, a
sua constituição e seus objetivos e bases fundadoras, perpassam por analisar a
perspectiva de Platão.

Desta forma, a relação entre os princípios atribuídos à consagração da


virtuosidade da pólis grega se faz ainda mais direta e pertinente dos princípios
descritos, propostos e almejados contidos na Carta das Cidades Educadoras, do
projeto de Barcelona.

Séculos separam o processo de constituição da cidade grega e do projeto de


educação urbana difundido a partir do Congresso de Barcelona nos anos 90, porém
59

notam-se perspectivas muito próximas de idealização de excelência de cidade, de


uma pólis virtuosa, voltadas para os cidadãos, mesmo que este critério seja atribuído
de forma distinta.

Platão em sua obra Leis descreve as funções dos interlocutores cuja vocação
os tornarão os fundadores e legisladores e, além disso, cidadãos e governantes.
Assim, para que a pólis alcance a precisão e a particularidade do diálogo e a ambição
da virtuosidade. Brisson & Predeau (2012) afirmam que

As Leis constituem o instrumento de constituição da pólis virtuosa, uma vez


que elas fornecem os meios elaborados: o conjunto da legislação,
naturalmente, mas também o viés da colonização, que elas mencionam como
um meio possível para forjar uma pólis com base em princípios retos, ou ainda
com o recurso ao expediente político particularmente econômico que é a
tirania. (BRISSON & PREDEAU, 2012, p.27)

O caminho para a construção da pólis virtuosa perpassa então pela, segundo


Brisson & Predeau (2012)

Instalação e divisão do território, prossegue com a descrição das


magistraturas e das principais atividades dos cidadãos e se completa com o
exame dos crimes e das punições; a construção cívica procede avançando
do mais geral e do mais comum (o conjunto indistinto da população que se
instala no conjunto do território) até o mais particular e acidental (o delito ou
o crime). (BRISSON & PREDEAU, 2012, p.30)

Para Platão, cabe ao legislador tornar a pólis virtuosa por meio da excelência
de seus instrumentos, a melhor constituição e a melhor legislação. Além disso, os
legisladores determinam que se educar para a virtude seja um “empreendimento
pedagógico” que permita uma “educação e um controle racional dos afetos”, essa
educação cívica deve ser, portanto, uma educação “musical”, realizada por meio dos
banquetes e coros e esta será a única capaz de formar os cidadãos para a excelência,
como afirmam Brisson e Predeau (2012).

A educação, que com Platão, ao contrário do que ocorria no mundo grego


torna-se cívica e geral, quaisquer que sejam o sexo e a idade do cidadão; em
segundo lugar, a ética, pois a excelência moral é o fim dessa educação, por
fim, a política, que Platão considera que também deve cumprir uma missão
pedagógica ao instituir uma regulação cívica dos costumes. Desse modo, a
excelência cívica é designada como a finalidade a serviço da qual todas as
instituições devem estar subordinadas: o legislador está no centro desse
dispositivo, pois as leis prescrevem os comportamentos, forjam as
instituições. (BRISSON & PREDEAU, 2012, p.34)
60

O objetivo máximo das leis é realizar a virtude plena que toda pólis deve
alcançar e caberá ao legislador zelar para que todos os cidadãos desde a sua
juventude até a velhice, sejam capazes de fazer a distinção entre a honra e de
indignidade. Sendo assim, tendo a virtude plena como horizonte almejado e a
pedagogia total como meio para este fim, onde ela deve interferir em “todos os
aspectos da vida humana”, de acordo com Brisson e Predeau (2012).

Uma pólis que almeja a virtude deve reforçar sua educação geral instituindo
três coros: cada um deles reunindo uma classe de idade e almejando a um
fim comum: a educação para a virtude por meio das práticas miméticas. Com
efeito, esses coros permitem que cidadãos imitem ou representem vidas e
comportamentos louváveis, que dancem e cantem a virtude. Ao participar dos
coros, os cidadãos têm uma experiência imediata e coletiva da virtude: a
música e a dança, desde que sejam convenientemente escolhidas pelos
governantes e que sejam objeto de uma estrita legislação, educam os
movimentos efetuados ou contemplados pelos cidadãos e os sons que eles
ouvem ou produzem colocando neles ritmo e harmonia. (BRISSON &
PREDEAU, 2012, p.38)

Logo, este também será o objetivo das leis, cuja função, na perspectiva de
Platão, também deve ser a de encantamento da alma do cidadão, para torná-la dócil
e para que não pense na lei. Este encantamento não deve nunca ser perdido nem
diante da mentira, “desde que esta mentira sirva para evitar o uso da força para
conduzir o cidadão a comportar-se bem”.

Os autores Brisson & Predeau (2012) acrescentam ainda que o objetivo das
leis consiste em modelar, por meio da persuasão e do exercício, tanto o
comportamento físico como o moral dos cidadãos para “torná-los maleáveis às leis e,
portanto, dóceis às injunções dos magistrados”. Ainda segundo os autores, “a lei é
definida, de modo geral, como cálculo racional que se impõe a toda a pólis”. Os
autores ilustram com as informações do Ateniense de que:

Ele evoca o fato de que os cidadãos idosos terão de escolher jovens; que
esses jovens receberão uma educação individualizada de mestre para
aluno; que essa educação tem o objetivo não apenas de fazer do jovem
um bom soldado, mas também um homem capaz de administrar uma
pólis e uma cidade. (BRISSON & PREDEAU, 2012, p.40)

Brisson & Predeau (2012) acrescentam que o decreto da pólis está


fundamentando na “distribuição do intelecto”. Assim, o legislador teria duas tarefas:
61

Estabelecer uma ordem proporcional na alma do indivíduo, o que significa


fazer o intelecto reinar e fazer do cidadão um ser racional, e isso notadamente
por intermédio da educação. Estabelecer uma ordem proporcional entre os
cidadãos, ao estabelecer o reino dos mais merecedores e dos mais virtuosos,
isto é, daqueles que fazem melhor uso da faculdade mais elevada de sua
alma, o intelecto, sobre aqueles que o são menos; desse modo dirigidos pelos
mais virtuosos, os cidadãos poderão senão tornar-se virtuosos, como
recomenda a lei. (BRISSON & PREDEAU, 2012, p.74)

Para Platão, o comportamento dos cidadãos era passível de uma modelagem,


para que estes aceitassem as suas imposições e restrições à vida privada, para que
pudessem, por meio da educação, se qualificarem não somente para serem um “bom
soldado”, mas também para que governassem a pólis. A modelagem do
comportamento social ideal de seus cidadãos, transbordaria para uma modelagem de
pólis ideal: de uma pólis virtuosa e plena. Nesta perspectiva, o instrumento para que
isto de fato acontecesse, passaria pela instituição de uma “educação cívica”, uma
“educação adequada” uma “educação para a retidão”, isto é, seria viabilizada,
essencialmente, por uma educação musical.

Segundo Brisson & Predeau (2012), Platão em seu livro Leis, indica que “a
virtude é suscetível de ser objeto de uma educação cívica que envolva todos os
cidadãos desde a sua mais tenra idade”, tornando-a condição para se chegar à
virtude. Portanto, para que a pólis possa atingir a unidade e a virtude plena era
necessário a educação de seus cidadãos, assim como era preciso que fossem
dirigidos por cidadãos selecionados segundo seus méritos e por sua excelência, para
que obedecessem, sem questionar, às leis a que eram submetidos, entregando-lhes,
portanto, a soberania política àqueles que se destacavam entre eles.

Além da educação cívica, outro fator incidente nas características ideais


necessárias à “pólis virtuosa”, uma “pólis excelente”, diz respeito aos aspectos
geográficos, ou seja, ela estaria condicionada ao seu local de instalação, à sua
população, além dos princípios que a regem, sob os quais serão governados.

No que diz respeito aos princípios governantes, Brisson & Predeau (2012),
descrevem que Platão propõe que para a fundação da pólis seria preciso a junção das
práticas de um legislador, com uma função técnica, detentor de um saber, e de um
tirano, cuja função é descrita como “um dom excepcional da fortuna ou de um deus”,
explicitado e citado por Brisson & Predeau (2012)
62

Deem-me uma pólis dirigida por um tirano. Que esse homem seja jovem, que
possua naturalmente uma boa memória, que tenha facilidade para aprender,
coragem e grandeza de alma. Além disso, é preciso que essa qualidade sobre
a qual dissemos que deveria acompanhar todas as partes da virtude, se
encontre também em companhia de todas as outras qualidades na alma do
tirano, se este último tiver de tirar alguma vantagem do fato de possuir as
outras qualidades. (Brisson & Predeau, 2012, p.55)

Com essa descrição do tirano, Platão exalta a sua figura, mesmo que esta
esteja representada com qualidades e que este deva trabalhar de forma conjunta do
legislador, sua prática será num estágio anterior à formação das leis e “de modo a
acelerar as coisas, ele poderá recorrer à violência”.

Desta forma, Platão evidencia as formas de governar da pólis virtuosa, ao


afirmar que a aristocracia representaria “o governo dos melhores do ponto de vista do
saber, isto é, o dos filósofos, rumo à tirania, o governo do pior. O tirano é aquele quem
não ouvindo senão seus próprios desejos, exerce uma autoridade solitária que
despreza toda lei e que utiliza a violência”.

Outro aspecto relatado por Platão, refere-se à paisagem da pólis, a sua


descrição geográfica, na qual a primeira característica é “não ser localizável”. Brisson
& Predeau (2012) acrescentam que a paisagem da pólis descrita por Platão, seria
uma abstração do filósofo que “obedece aos princípios éticos e políticos” e que a pólis
idealizada e descrita por ele, supostamente Creta, permitiu que Platão instalasse a
pólis virtuosa onde fosse passível de identificação, porém longe o bastante para que
estivesse isolada da vida política e cultural da época. Assim, o filósofo vislumbra a sua
pólis utópica. De acordo com Brisson & Predeau (2012)

A descrição do território da pólis está estreitamente misturada com


considerações de ordem demográfica e econômica, caso queira designar isso
em termos modernos e pouco apropriados. O território da pólis, é o material
em que a pólis encontra seu alimento e os meios para subsistência, ao
mesmo tempo em que é o conjunto de lugares percorridos pela vida cidadã.
(BRISSON & PREDEAU, 2012, p.58)

O filósofo distingue os espaços urbano da pólis e o espaço rural do território,


“impondo-lhe divisões particularmente rigorosas, aritméticas e geometricamente
determinadas, concebendo-a em função dos diferentes movimentos que devem
percorrer e atravessar o conjunto do território cívico”. Ao descrever a localização da
63

instalação da pólis, Platão (apud Brisson & Predeau, 2012) indica que ela poderá ser
virtuosa, uma vez que

A colônia será instalada a cerca de quinze quilômetros do mar, ela não será
vizinha de nenhum tipo de pólis e que ela ocupará um relevo acidentado e
não uma planície. (...)Tanto o seu afastamento da costa como a ausência de
vizinhança imediata protegerão a pólis da corrupção dos costumes gerada,
ao que parece necessariamente, pela mistura dos modos de vida distintos e
pela primazia das atividades mercantis: a confusão dos costumes e o gosto
pelo lucro são ameaças das quais a pólis está protegida. (BRISSON &
PREDEAU, 2012, p.59)

Os autores Brisson & Predeau (2012) destacam a concepção da pólis virtuosa


de Platão com suas características geográficas, econômicas e sociais. Logo, a pólis
de Platão teria a sua localização em torno de um centro urbano, onde estariam
concentradas as “suas funções governamentais, deliberativas, comerciais, militares e
religiosas, cercada por um território agrário”. Mumford (2004) descreve que

O núcleo da cidade, o centro de suas atividades mais estimadas, a essência


de sua existência total, era a acrópole; a acrópole era, acima de tudo, a
morada dos deuses da cidade, e nela se situavam todas as funções sagradas
derivadas da natureza e da história. (MUNFORD, 2004, p.179)

Assim, as características geográficas bem como os aspectos locacionais da


pólis, dariam a ela a configuração ideal para torná-la de excelência. A pólis então, se
configura como o núcleo do “espaço cívico duplo”, já que ela representa o centro
geográfico e, também, o político e social. Nela, toda a dinâmica acontece, e estão
instaladas as instituições cívicas que constituem a vida comum, como as atividades
políticas, militares ou religiosas.

Desta forma, a morfologia da pólis, como centro dinâmico agrega os homens e


os seus objetos técnicos. Brisson & Predeau (2012) descrevem que a pólis planejada
por Platão “deve ser limitada, geograficamente, por contornos ou construções (casas
construídas em círculo, como um muro), e separada do território cuja vocação é
principalmente agrícola.

Ao contrário do território, o espaço urbano deve ser concebido segundo a


mobilidade que a pólis deve acolher e favorecer”. Observa-se assim, a intenção de
tornar a pólis um lugar de mobilidade e encontro dos seus cidadãos, ao tornar possível
que estes possam percorrer (“deve-se poder cruzar e entrar em relação com todos os
64

concidadãos) e habitar todos os seus espaços, logo a vila se apresenta como “uma
das condições primeiras (com a limitação demográfica) da própria existência da pólis”.

O espaço cívico idealizado por Platão deve então, propiciar não somente o
encontro dos cidadãos, reduzindo a distância social entre elas, mas também
possibilitar a as diversas atividades e funções por meio da sua morfologia,
geometricamente perfeita. Brisson & Predeau (2012) descrevem que

Em um território cívico que deve tender ao máximo à perfeição geométrica


circular, os fundadores da pólis instalam sucessivamente, por envolvimento
concêntrico sucessivo, a acrópole o centro político e religioso da pólis, depois
a pólis e seus subúrbios povoados por artesãos, e por fim o resto do território
em que se encontram os lotes de terra e as vilas. Estas últimas, de desenho
sempre circular, situam-se no centro dos doze segmentos em que é dividido
o conjunto do território. Essa segmentação do território cívico permite a
instituição de doze bairros urbanos e doze setores rurais nos quais os
cidadãos devem viver, cada um deles possuindo uma casa na pólis e uma
casa em uma das vilas. (BRISSON & PREDEAU, 2012, p.63)

Por meio desta descrição, evidencia-se a valorização do instrumento


matemático, ao dividir a pólis em um número preciso (Brisson & Predeau, 2012)

A divisão do conjunto da pólis e do território que a cerca em doze partes, cada


uma sob a proteção de um deus, que permite a divisão de cada lar em duas
moradias, uma em uma das doze partes urbanas e a outra em uma das dozes
partes rurais. (BRISSON & PREDEAU, 2012, p.67)

Deste modo, o território é dividido em três conjuntos de círculos, com funções


distintas, e que se sucedem: o campo, a pólis e a praça pública, localizada no centro
da pólis, e cercada pelos subúrbios. As estradas conectam as doze sessões urbanas
às doze sessões rurais, onde a vila ocupa a posição central de cada uma dessas
sessões. A guarda do território é de responsabilidade dos magistrados, aqueles que
foram designados são conhecidos como “comandantes da guarda”, “jovens” são
aqueles que eles recrutam, “aqueles que estão na força da idade” e por fim os “criptos”
(Brisson & Predeau ,2012).

A geometrização, portanto, segundo a perspectiva de Platão levaria a harmonia


da pólis, tornando-a o centro político e social ao permitir a mobilidade e o senso de
comunidade entre os seus diversos cidadãos. Logo, essa pólis é idealizada, sob a
forma de um Estado Ideal, sintetiza e centraliza a política, a economia e as suas
dinâmicas sociais e urbanas. Mumford (2004, p.196) por sua vez, ressalta a
65

perspectiva comum de utopia ao afirmar que “A Utopia não foi nada mais que um novo
exercício de geometria sólida, com base na suposição de que todos os homens
racionais estavam dispostos a ser tais geômetras sociais”.

Ao organizar a distribuição espacial da pólis, organiza-se também a distribuição


social de seus cidadãos. Segundo Platão, as classes que dividiam e ocupavam a sua
pólis ideal estavam distribuídas entre os filósofos, os guerreiros, os artífices e
agricultores. Assim, tal qual a rigidez em que distribuição da pólis foi idealizada, Platão
também projetou uma estrutura e social e das funções humanas estáticas, sem
movimentação entre as classes.

Acrescenta-se a perspectiva de Platão sobre a lei, cujo cidadão é o seu


destinatário e cabe a ela, às leis, “forjar os costumes humanos”. Nesta perspectiva
surge a indagação de como as leis conseguem fazer isso, “forjar os costumes”?.
Mumford (2004) contextualiza a percepção de Platão e adverte que

Por meio de leis sábias, por meio de uma rigorosa censura, através da firme
disciplina, por meio dos controles totalitários isolados pelo sigilo, propunha
ele remover o mal e manter o bem. Pouco compreendeu que os próprios
instrumentos que escolhera inverteriam esse processo. O que não
compreendeu, mais ainda, foi que, embora o bem e o mal sejam pontos fixos
da bússola moral, as correntes da própria vida muitas vezes invertem sua
polaridade. (MUNFORD, 2004, p.197)

Mumford (2004) segue explicitando a sua perspectiva sobre a rigidez das ideias
de Platão para a sua pólis de excelência, ao pontuar que

Platão subestimava os estímulos e desafios vitais do crescimento: a


variedade, a desordem, o conflito, a tensão, a fraqueza e até mesmo o
fracasso temporário. Cada uma dessas coisas, quando não se petrifica num
padrão fixo, pode produzir uma comunidade muito mais desejável do que
qualquer forma de conformidade, seja pela conformidade imposta por
executivos filisteus de um moderno órgão de governo, por uma corporação
de negócios ajudada por computadores eletrônicos, ou pelo maior pensador
que Atenas já ajudara a produzir. Essa oposição dialética do bem e do mal
não é a totalidade da vida: há processos de maturação fisiológica, de
dissolução e erupção física, que pouco tem a ver com ela. Mas deixar de levar
em conta a dialética da pólis é fazer tábua rasa da principal função da cidade:
o engrandecimento da consciência humana do próprio drama da vida, por
meio de cuja representação a existência revela novos significados, que não
são dados por qualquer análise momentânea ou repetitiva. (MUNFORD,
2004, p.198)
66

Esta análise e reflexão de Mumford sobre a idealização de cidade e do homem


perfeito, e toda a rigidez moral e de costumes impostas pelas leis da pólis que
cerceava a dinâmica e a diversidade da cidade, assim como de seus cidadãos, ao
propor uma especialização vocacional, não considerava o estímulo natural de
crescimento e amadurecimento da sociedade, das comunidades e de toda a cidade.
Assim, essa reflexão em forma de crítica ao modelo de Platão nos remete aos dias
atuais, aos padrões e modelos de cidades idealizados e propostos.

Para Brisson & Predeau (2012) Platão elege a educação, e “seus interlocutores
discutem princípios que devem comandar o conjunto da legislação educativa,
seguindo a ordem cronológica da vida do futuro cidadão: a legislação trata dos
casamentos, depois da geração dos filhos, e prossegue com o longo capítulo dedicado
à educação.

Além disso, ele enfatiza a importância da educação (...) como o fim maior da
tarefa política e legislativa, uma vez que a unidade cívica, tão almejada por Platão,
somente é virtuosa em uma pólis onde os cidadãos comungam de um pensamento
comum. Uma educação pública, uma cultura pública que se institui pelas práticas
musicais, as missões militares que eram obrigatórias, bem como as refeições onde os
cidadãos participavam coletivamente favoreciam, portanto, a unidade tão desejada
em uma pólis de excelência.

Brisson & Predeau (2012) afirmam que Platão valorizava o papel


desempenhado pela da educação, não uma educação privada, mas uma educação
pública, na qual os indivíduos desde as primeiras idades, são influenciados por ela.
Com essa perspectiva de uma educação pública, Platão transforma as práticas até
então seguidas em Atenas. Se antes o processo educacional iniciava-se com crianças
a partir dos sete anos, que até então estavam sendo “criadas” por suas mães ou amas
dentro o espaço privado de suas casas.

Platão então projeta uma educação coletiva dada por um mestre privado, onde
a criança era levada ao espaço escola, e de volta à sua casa por um servidor, neste
caso pedagogo que deverá garantir a sua segurança, além de realizar um “papel moral
de controle de sua convivência” e de lhe ensinar as lições. Brisson & Predeau (2012)
descrevem que
67

A profissão que ensina a ler e a escrever, permaneceu durante toda a


Antiguidade uma profissão humilde, mal paga e frequentemente desprezada.
Ela não exigia qualificação especial alguma. Aprendia-se a ler, o que supunha
o aprendizado do alfabeto, e a constituição de sílabas e palavras. (...) A esse
“institutor” se sucede o XXXX (pag.109), o qual fornece uma cultura literária:
em primeiro lugar Homero, depois os outros clássicos; a explicação de textos
geralmente possui um fim moral. Também se aprende a compor textos. Vem
em seguida, eventualmente, um ensino mais aprofundado do uso da palavra,
pelo sofista ou pelo retor. Aprende-se então a utilizar a linguagem como um
instrumento que permite controlar a situação no Tribunal ou na Assembléia.
(BRISSON & PREDEAU, 2012, p. 109)

Ainda no que diz respeito ao processo educacional, Platão busca por meio dela
modelar civicamente os cidadãos, desde a primeira infância até a vida adulta,
abarcando todos os períodos da vida, pois entende-se que a educação pública, com
seus princípios, deve seguir a lei.

Desse modo, é atribuição do legislador “inculcar hábitos e costumes” e a


“diversidade dos modos de vida é uma ameaça a essa unificação dos costumes sob
a direção das leis (...) nenhuma das práticas habituais deve emancipar-se da lei; na
falta disso, a transgressão da lei pode tornar-se ela própria um hábito”. Brisson &
Predeau (2012) afirmam que

Pode -se dizer que as Leis são um vasto empreendimento educativo


destinado a assegurar a todos os cidadãos a excelência do corpo e sobretudo
da alma. A lei precedida por um preâmbulo é o instrumento privilegiado para
isso; mas o ensino e o exercício, desde a concepção até a morte, constituem
sua sustentação indispensável. (BRISSON & PREDEAU, 2012, p. 10)

Ao propor a modelagem dos cidadãos diante da lei, ao sugerir a unificação dos


costumes e hábitos, objetivando alcançar e constituir uma pólis de excelência, faz-se
necessário buscar a concepção de Platão sobre quem era o cidadão de fato na pólis.
Brisson & Predeau (2012) defendem que a cidadania é atribuída aqueles que tem a
posse de um lote, 5.040 indivíduos, esposas e filhos, totalizando 30 mil pessoas.

Acrescenta-se que somente os cidadãos tornam-se magistrados, bem como


somente eles podem designá-los, para isso eles são repartidos de acordo com a tribo
ou classe censitária que fazem parte. Além disso, “na pólis os mais ricos
desempenham um papel determinante, talvez porque a exploração de seu lote é
68

confiada a servidores e escravos mais números e os deixe com mais tempo livre”
(Brisson & Predeau, 2012,p.11)

Platão, portanto, mantém a separação social e funcional na pólis ao ratificar o


poder de governar aos mais instruídos, aos filósofos que ocupam o topo da pirâmide
do sistema educacional, um lugar sagrado na estrutura política e institucional da pólis.

Em relação a distribuição socioespacial da pólis, cada tribo é constituída de um


dos doze grupos formados pelos doze intendentes do campo, a tribo vive nas vilas,
localizadas no centro de cada uma das seções do campo, onde cada um desses
centros é ocupado por santuários. As funções civil e militar são exercidas pelos
intendentes do campo, assim como as funções específicas dos intendentes da pólis.

A educação da pólis, por sua vez, composta pela cultura (poesia, música,
dança) e pela educação física tem como missão “modelar o corpo e a alma do cidadão,
para torná-lo dócil ao ensino das leis”. Mumford (2004) afirma que “a participação nas
artes era parte tão importante das atividades do cidadão quanto o serviço no conselho
ou nos tribunais, com seus seis mil juízes”. Brisson & Predeau (2012) descrevem que
o responsável pela educação

Deve ter pelo menos 50 anos, ser pai de filhos legítimos, se possível dos dois
sexos, e ser guardião das leis; ele é eleito por um período de cinco anos por
todos os magistrados em atividade, salvo os membros do Conselho, por um
voto secreto no templo de Apolo; aquele que obtém a maior quantidade de
votos é submetido ao exame diante dos outros magistrados eleitores. De
todas as magistraturas, esta é, segundo Platão, a mais importante.
(BRISSON & PREDEAU, 2012, p. 130)

Para Platão, “somente o saber forma o virtuoso”, além disso o filósofo compara
a pólis a um ser vivo, pois ela além de possuir um corpo, ela é provida de uma alma
com intelecto, “ela pensa e pode adquirir um saber, não apenas porque ela é um
sujeito de uma reflexão, mas ainda mais precisamente porque as Leis lhe atribuem
um intelecto” (Brisson & Predeau, 2012, p.131)

Desta forma, o filósofo em sua obra apresenta os princípios, sejam eles sobre
os costumes, os éticos, institucionais que possibilitam que uma pólis seja “virtuosa,
cívica, justa e feliz” e acrescenta que “desde que seja fundada e ordenada segundo
69

princípios justos, toda pólis pode atingir a excelência”. A esta perspectiva de Platão,
Mumford (2004) tece a sua crítica ao afirmar que

Sua moralidade, sua racionalidade, destinavam-se a ser utilizadas apenas


por parte da classe superior. O resto da população devia ser treinado e
dominado, transformando em inofensivos submissos, como outros animais
domesticados. Em sua casa ideal, não haveria lugar para o ar puro de portas
afora: em seu lugar, concebeu uma câmara sem janelas, para a qual se podia
bombear o ar artificialmente purificado, sob rigoroso controle. Nesse sentido,
previu ele os absurdos de certo tipo de espírito moderno, com antecipação
de dois mil e quatrocentos anos. (MUNFORD, 2004, p.202)

Segundo Platão, a educação, seria o instrumento para formar os cidadãos, em


todas as fases de sua vida e ao conhecerem “de verdade a realidade, em seus
aspectos humanos, políticos e cósmicos, aqueles que são esclarecidos ganham o
direito de legiferar e de governar, assim que o dia se levanta”. Mumford (2004)
acrescenta a perspectiva da educação do homem integral produzido pela cidade,
neste caso a cidade de Atenas. Segundo o autor

Por algum tempo, a cidade e o cidadão eram um só, e nenhuma parte da vida
parecia estar fora de suas atividades formativas, moldadas por si mesmas.
Essa educação do homem integral, essa Paideia, como lhe chamou Jaeger,
para lhe dar limites mais amplos que os de uma estreita pedagogia, jamais
foi igualada em qualquer outra comunidade tão grande. (MUNFORD, 2004,
p.187)

O papel da educação na formação do cidadão da pólis grega é evidenciado na


perspectiva de Mumford (2004) ao destacar que “Atenas foi rica em cidadãos, como
jamais o fora em qualquer cidade antes dela”. Logo, a educação e as Leis formam o
cidadão da pólis grega, ao passo que a pólis, “cada parte da cidade passara a viver
pessoa do cidadão”. Esta perspectiva é vislumbrada na afirmação de Mumford (2004)
ao descrever que

O trabalho e o lazer, a teoria e a prática, a vida privada e a vida pública,


achavam-se em intercurso rítmico, enquanto a arte, a ginástica, a música, a
conversa, a especulação, a política, o amor, a aventura e mesmo a guerra
abriram cada aspecto da existência e o colocavam dentro do âmbito da
própria cidade. (MUNFORD, 2004, p. 189)

Ainda segundo este autor, Platão não imaginara que a cidade de Atenas de
Sólon e Temistocles tiveram função primordial, além da importância apresentada
70

pelas cidades imaginárias ou idealizadas, uma vez que “a própria cidade formara e
transformara aqueles homens, não apenas por meio de uma escola ou academia
especial, mas através de todas as atividades, de todos os deveres públicos, de todos
os pontos de encontro e de conversa” (MUNFORD,2004. P.190)

Mumford (2004) ressalta que mesmo que Atenas estivesse profundamente


relacionada à imagem idealizada de perfeição da pólis, por maiores que fossem os
méritos alcançados, a cidade não poderia permanecer cristalizada nesse ideal estático
de perfeição, pois segundo ele “nenhuma instituição humana, seja uma pólis ou um
papado, pode reclamar, em sua própria existência, qualquer perfeição definitiva, digna
de adoração”.

Ao propor princípios ideais, de uma vida social virtuosa, transfere-se tais


costumes e comportamentos e divisões territoriais à pólis grega, uma vez que os atos
virtuosos descritos nas leis, forjariam cidadãos igualmente virtuosos passíveis não
somente de habitar, governar, mas constituir uma cidade virtuosa, excelência,
consequentemente uma cidade utópica.

Tal qual Platão e seu modelo ideal de cidade, Thomas Morus, ao realizar a
crítica ao modelo político e econômico de seu tempo, datado do início do século XVI,
idealiza a ilha de Utopia almejando constituir um lugar pacífico e equilibrado. Ao refletir
sobre os princípios tirânicos, da corrupção existente na sociedade inglesa da época,
busca romper com os arroubos da propriedade privada e consequentemente, os
males econômicos gerados.

Arrancai de vossa ilha essas pestes públicas, esses germens do crime e da


miséria. Obrigai os vossos nobres demolidores a reconstruir as quintas e
burgos que destruíram, ou a ceder os terrenos para os que quiserem
reconstruir sobre as ruínas. Colocai um freio ao avarento egoísmo dos ricos;
tirai-lhes o direito ao açambarcamento e monopólio. (...) Se não remediardes
os males que vos a assinalo, não vos vanglorieis de vossa justiça; é ela uma
mentira feroz e estúpida. Abandonai milhões de crianças aos estragos de
uma educação viciosa e imoral. A corrupção emurchece, à vossa vista, essas
jovens plantas que poderiam florescer para a virtude, e, vós as matais quanto,
tornadas homens, cometem crimes que germinavam desde o berço, em suas
almas. E, no entanto, que é que fabricais? Ladrões, para ter o prazer de
enforcá-los. (MORUS, 2017, p.10)

Ao idealizar a ilha de Utopia, Morus busca uma sociedade igualitária e


moralmente virtuosa e ressalta que para que estes princípios se concretizem, era
71

necessário abolir a propriedade privada da sociedade. Morus (2017, p.11) adverte que
“enquanto o direito de propriedade for o fundamento do edifício social, a classe mais
numerosa e mais estimável não terá um quinhão senão miséria, tormentos e
desesperos”.

E assim Morus segue formatando a sua cidade ideal, seguindo os princípios a


partir de sua perspectiva de equilíbrio entre os espaços, bem como entre a sua
população. A espacialização e planificação de sua ilha idealizada demonstra a sua
crença numa cidade de excelência para todos, onde a organização espacial, reflete,
portanto, a sua organização política. Morus (2017) descreve de forma minuciosamente
que

A ilha de utopia tem 54 cidades espaçosas e magníficas. A linguagem, os


hábitos, as instituições, as leis são perfeitamente idênticas. As 54 cidades
são edificadas sobre o mesmo plano e possuem os mesmos
estabelecimentos e edifícios públicos modificados segundo as exigências
locais. A menor distância entre essas cidades é de 24 milhas a maior jornada
a pé. Todos os anos três velhos experientes e capazes são nomeados
deputados de cada cidade e se congregam em Amaurota, a fim de tratar dos
negócios do país. Amaurota é a Capital da ilha, sua posição central
transformou-se em ponto de reunião mais conveniente para todos os
deputados. Um mínimo de vinte mil passos de terra é destinado em cada
cidade à produção dos artigos de consumo à lavoura. Em geral, a extensão
do território é proporcional ao afastamento das cidades. Estas felizes cidades
não procuram os limites fixados por lei. Os habitantes se olham mais como
rendeiros do que como proprietários do solo. (MORUS, 2017, p.23)

No que diz respeito à divisão/distribuição social, em utopia a posse é comum a


todos e isto se reflete na prática, uma vez que os moradores trocam de casas a cada
dez anos. Os representantes de utopia são escolhidos a cada ano, quando trinta
famílias elegem um magistrado, também conhecido como sifogrante na linguagem
antiga ou como filarca na moderna (Morus, 2017).

As decisões são discutidas em reuniões no senado e nas assembleias, e


somente nelas, estando proibida a deliberação de negócios públicos fora desses
espaços uma vez que isto se configura em crime e, portanto, passível de punição com
morte. Tal proibição tem por objetivo impedir que se conspire contra a liberdade do
povo por meio de leis tirânicas.

Em utopias tanto os homens quanto as mulheres são obrigados a aprender a


arte da agricultura e além dela, todos aprendem algum tipo de ofício, seja na
72

confecção de suas vestimentas, ou como pedreiros, outros aprendem marcenaria,


logo, “cada um é adestrado na profissão de seus pais, porque é habitualmente a
natureza que inspira o gosto dessa profissão”.

Nesta perspectiva de Morus, a educação profissional se daria por conta das


aptidões passadas de geração em geração pelas próprias famílias, e se alguém
desejasse aprender um ofício diferente, seria trocado de família. Morus (2017) reitera
que “se alguém, tendo uma profissão, quer aprender outra, pode aprendê-la nas
condições precedentes. Deixa-lhe a liberdade de exercer a que melhor lhe convier, a
menos que a cidade não lhe designe uma por motivo de utilidade pública”.

Os utopianos, para serem considerados úteis a seus concidadãos, tal como


descreve Morus, devem dividir a sua rotina diária entre o trabalho, o sono, as refeições
e o aperfeiçoamento.

Os utopianos dividem o intervalo de um dia e de uma noite em 24 horas


iguais. Seis horas são empregadas nos trabalhos materiais. (...) três horas de
trabalho antes do meio-dia, depois almoçam. Depois do meio-dia, duas horas
de repouso, três de trabalho, em seguida jantam. O tempo compreendido
entre o trabalho, as refeições e o sono, cada qual é livre empregar à sua
vontade. Longe de abusar dessas horas de lazer, abandonando-se à
ociosidade e à preguiça, descansam variando suas ocupações e trabalho.
Estão aptos a assim fazer, graças a uma instituição verdadeiramente
admirável. (MORUS, 2017, p.68)

Aqueles indivíduos que em suas horas vagas exercem a sua profissão, são
considerados úteis aos concidadãos. Desta forma, os utopianos vivem para o
constante aprender e trabalhar, durante várias horas de seu dia, durante anos de sua
vida e somente será por meio do trabalho e do aperfeiçoamento de seu ofício, que ele
deixa de ser operário, executando tarefas consideradas de utilidade pública, para
alcançarem a classe dos letrados, sendo que “é entre os letrados que se escolhem os
embaixadores, os padres, os traníboras e o príncipe, chamado antigamente barzame
e hoje ádemo (Morus, 2017).

Em utopia as instituições sociais tinham como finalidade produzir para o


consumo coletivo, público e individual, porém sem perder de vista a necessidade de
promover as atividades intelectuais por meio do estudo das ciências e das letras, pois
segundo Morus (2017) “é neste desenvolvimento completo que eles põem a
verdadeira felicidade”.
73

Portanto, na ilha de utopia os indivíduos produzem para o consumo público,


caso haja abundância de produção em uma cidade, e alguma outra cidade apresente
carência para abastecer seus habitantes, após as sessões do senado sobre as a
situação econômica de todas as cidades da ilha, poderá haver repartição de bens,
com o intuito, sempre, de se estabelecer o equilíbrio e o bem-estar de todos, Morus
(2017) afirma que “assim toda a república utopiana é como uma única e mesma
família”. Além disso, o autor acrescenta que

É por isso que os utopianos pensam que é necessário observar não só as


convenções privadas entre simples cidadãos, mas ainda as leis públicas, que
regulam a distribuição das comodidades da vida, em outros termos, que
distribuem a matéria do prazer, quando estas leis foram justamente
promulgadas por um bom príncipe, ou sancionadas pelo consentimento geral
de um povo, nem oprimido pela tirania, nem embaído pelo artifício. (MORUS,
2017, p.)

O funcionamento das instituições é garantido pelas leis de Utopia, as leis não


são numerosas, já que os utopianos acreditam que um grande número de leis, faz
com que o seu total conhecimento fique reduzido ou que o seu conteúdo seja tão
obscuro que se difícil compreendê-las, e isso não garantiria a ordem pública. Para
Morus (2017) “as leis são promulgadas, dizem os utopianos, com a única finalidade
de que cada qual seja advertido de seus direitos e deveres”.

Ao destacar os princípios de igualdade entre as cidades promovida por suas


instituições, seja pela distribuição espacial ou produtiva, Morus (2017) aponta a
unidade entre os seus cidadãos, que partilham de bens comuns e por isso são felizes
e virtuosos. Para o autor “o que é certo para mim é que o povo da Utopia, graças às
suas instituições, é o primeiro de todos os povos, e que não existe em parte alguma
república mais feliz”.

Pensar a cidade espacialmente dividida, geometrizada, coletiva onde as leis


modelam os comportamentos sociais e a educação cívica possui o papel de formar os
cidadãos para a excelência e são estes cidadãos, os mais instruídos, que irão
governar a pólis e perpetuar as leis dessa pólis para que continuem a exercer o seu
papel.
74

Esta cidade utópica para Platão se apresenta não tão utópica na construção
das cidades ao longo da história, e a educação também se perpetua no processo de
modelar o indivíduo para a vida urbana em sociedade, além de balizar de forma única
os processos e meios de se educar.

Assim, chega-se ao planejamento urbano e principalmente ao urbanismo, que


para fins deste trabalho concorda com a perspectiva de Françoise Choay (2018, p.2),
como “a ciência e teoria da localização humana”. Segundo a autora “este neologismo
corresponde ao surgimento de uma realidade nova: pelos fins do século XIX, a
expansão da sociedade industrial dá origem a uma disciplina que se diferencia das
artes urbanas anteriores”.

As transformações do modo de produção provenientes da revolução industrial


que geraram mudanças na vida econômica, além de expressivo aumento do
crescimento demográfico, que impactou a organização das cidades com um
avassalador crescimento e desenvolvimento urbano, logo transformações na
sociedade, neste caso industrial, modificam a cidade, tal como afirma Choay (2018,
p.4) “uma nova ordem é criada segundo o processo tradicional da adaptação da
cidade à sociedade que habita nela”.

Ao analisar-se as cidades industriais do século XIX, como forma de reflexão


sobre os processos de ordenamento ou desordem espacial, pela perspectiva de
alguns autores que se aproximam à crítica que se deseja realizar, à ideia de “cidade
modelo”, bem como de “modelos de projeto de cidade” nomeados por adjetivos e
propostas e princípios muitas vezes utópicos, como: “cidades saudáveis”, “cidades
sustentáveis”, “cidades inteligentes” e para este trabalho “cidades educadoras”. Choay
(2018) descreve as cidades industriais sob duas óticas:

O que é expressão de desordem chama sua antítese, a ordem. Assim


veremos opor-se, a essa pseudordem da cidade industrial, propostas de
ordenamentos urbanos livremente construídas por uma reflexão que se
desdobra no imaginário. Por não poder dar uma forma prática ao
questionamento da sociedade, a reflexão situa-se na dimensão da utopia;
orienta-se nela segundo as duas direções fundamentais do tempo, o passado
e o futuro, para tomar as formas da nostalgia ou do progressismo. De um
conjunto de filosofias políticas e sociais ou de verdadeiras utopias, vemos
assim distinguir-se, com um maior ou menor luxo de detalhes, dois tipos de
projeções espaciais, de imagens da cidade futura, que chamaremos daqui
por diante de “modelos”. Com esse termo, pretendemos sublinhar
simultaneamente o valor exemplar das construções propostas e seu caráter
reprodutível. (CHOAY, 2018, p.7)
75

A autora então analisa dois modelos de cidade classificados como do “pré-


urbanismo”: o modelo progressista e o culturalista. Segundo a concepção
progressista, a racionalidade possibilita a determinação que Choay (2018) denomina
como “uma ordem-tipo”, passível portanto, de ser aplicada em “qualquer agrupamento
humano, em qualquer tempo, qualquer lugar”. Desta forma, a cidade progressista
muitas vezes é detalhada de forma minuciosa e rígida em seus detalhes, de modo que
assim, inviabiliza as adaptações desse modelo.

O segundo modelo de cidade, o culturalista, possui como concepção a crítica


ao agrupamento humano na cidade. Neste modelo, os indivíduos não são definidos
em suas particularidades, mas sim como um membro insubstituível da forma coletiva
na cidade. Choay (2018) afirma que

A cidade do modelo culturalista opõe-se à cidade do modelo progressista por


seu clima propriamente urbano. No plano político, a ideia de comunidade e
de alma coletiva termina em fórmulas democráticas. No plano econômico, o
antiindustrialismo é manifesto e a produção não é encarada em termos de
rendimento, mas do ponto de vista de sua relação com o harmonioso dos
indivíduos, que “gozam de uma vida feliz e plena de lazeres. (CHOAY, 2018,
p.13)

Assim, os dois modelos de cidade citados e descritos por Françoise Choay


traduzem e refletem modelos de sociedade e de indivíduos ambos, fruto do momento
produtivo, econômico e político deste período histórico, mas que influenciaram
cidades ao longo do tempo, por seu caráter reprodutível. Sobre esse caráter de
aplicabilidade e reprodução de modelos de cidade, Choay (2018) reflete que

(...) todos esses pensadores imaginam a cidade do futuro em termo de


modelo. Em todos os casos a cidade, ao invés de ser pensada como processo
ou problema, é sempre colocada como uma coisa, um objeto reprodutível. É
extraída da temporalidade concreta e torna-se, no sentido etmológico,
utópica, quer dizer, de lugar nenhum. (...) Essas experiências pertencem, a
nosso ver, às curiosidades sociológicas. Em compensação, os modelos do
pré-urbanismo apresentam hoje um interesse epistemológico considerável.
Com efeito, por sua origem crítica e fé ingênua no imaginário, anunciam o
próprio método do urbanismo, cujas propostas seguirão, no século XX, um
movimento análogo. São modelos de modelos. (CHOAY, 2018, p.14)
76

Das “cidades modelo” do pré-urbanismo idealizadas por pensadores como


Owen e Fourrier, observa-se a predominância no século XX do conceito do urbanismo
e seu viés prático em contraposição ao utopismo do período/modelo anterior. Para
Françoise Choay (2018)

Ao invés de ser acantonado na utopia, o urbanismo vai destinar a seus


técnicos uma tarefa prática. No entanto, o urbanismo não escapa
completamente à dimensão do imaginário. Os primeiros urbanistas têm um
poder reduzido sobre o real: ora têm de enfrentar condições econômicas
desfavoráveis, ora se chocam com todo o poder de estruturas econômicas e
administrativas herdadas do século XIX. Desde então sua tarefa polêmica e
criadora afirma-se num movimento utópico. (CHOAY, 2018, p.18)

Autores como Robert Owen e Charles Fourier definem o modelo progressista


de cidade a partir da concepção de uma cidade determinada pelo homem e a razão.
Vale destacar as contribuições desses autores, ainda que de forma breve, com intuito
de ilustrar as contribuições de suas concepções e anseios sociais que acabaram por
refletir no espaço de suas cidades.

O período histórico que culminou nas ideias desses dois pensadores, primeira
metade do século XIX foi marcado pelo Industrialismo, pelo surgimento de uma
burguesia industrial, bem como o crescimento das cidades e consequentemente o
crescimento da população urbana. Tais características retratam as transformações da
produção e da economia da época, se somam às novas dinâmicas sociais, marcadas
pelo crescente quadro de miséria e das configurações de movimentos sociais, na luta
pela transformação dos problemas sociais agudizados.

Dentro deste contexto, surgem as propostas de nova sociedade e cidade


idealizadas de Owen e Fourier, pensadores chancelados como “socialistas utópicos”.
Tal designação relaciona-se à ideia de que tais pensadores “procuravam expor
detalhadamente os princípios e características de uma sociedade igualitária, por eles
idealizada, mas de modo geral sem indicar os meios para alcançá-la “(Barros, 2011.
P.241).

O historiador José D´Assunção Barros (2011, p.241) observa que “as utopias
que foram relacionadas ao socialismo utópico, da mesma maneira que muitas das
antigas utopias literárias que imaginavam sociedades perfeitas, traziam a proposta de
77

serem governadas por uma elite de sábios, ou ao menos deveriam contar com a
participação destes homens esclarecidos”.

Tal descrição relaciona-se às ideias de Platão, na qual ao realizar a crítica à


sua realidade e propor uma nova sociedade, governada e legislada pelos homens
mais sábios, acaba por perpetuar a realidade socioeconômica e política fruto de sua
análise. Barros (2011) analisa que

Se os socialistas utópicos avançam pouco na concretização de meios para


atingir efetivamente uma sociedade sem maiores desigualdades, e se de
modo geral passam ao largo da crítica econômica da sociedade industrial,
não há como negar, contudo, que eles avançam significativamente na crítica
social e política de sua época ao denunciar uma sociedade produtora de
misérias, contra o pano de fundo do otimismo de muitas cabeças pensantes
da época diante de um conceito mecanicista de “progresso”. (BARROS, 2011,
p. 243)

Nesse sentido, tem-se a perspectiva de Robert Owen, que nasceu e viveu na


Inglaterra entre os séculos XVIII e XIX. Seu objetivo centrava-se na redução das
desigualdades sociais e as contradições do novo modelo de produção, principalmente
transformar as condições de vida do proletariado fabril, no período da revolução
industrial, bem como a ascensão da burguesia.

Segundo Magnani (1987. P.38) “Owen foi, ao mesmo tempo, um sonhador da


sociedade justa e um realizador da ação concreta no sentido de implementá-la na
prática. Foi o mais prático dos utópicos”. Buscava assim, transformar seus anseios
utópicos em ações práticas que pudessem transformar a sociedade de seu tempo.
Magnani (1987) afirma que

Para Owen, o caráter a ser formado não é o individual, mas sim de uma
comunidade, de um país. (...) Owen reconhecia a existência de diferenças
individuais, de inclinações ou diferenças próprias a cada ser humano e sabia
também que estas seriam influenciadas pelo meio. A ênfase que faz, porém,
é na formação do caráter social. (MAGNANI, 1987, p. 38)

Com isso, reforça a criação de um caráter social influenciado pelo meio em que
o indivíduo vive, por meio das circunstâncias de vida de cada um, isto é, o caráter é
formado para o homem e não pelo homem” e a educação está no centro desde
processo, uma vez que ela seria a responsável pela configuração do caráter do
indivíduo, seguindo este ideal socialista do século XIX. De acordo com a autora,
78

No final do século XVIII, as grandes mudanças econômicas, políticas e


sociais provocaram discussões sobre educação popular. A “teoria das
circunstâncias” que coloca o caráter do homem como produto do meio
ambiente e, consequentemente, atribui à educação o papel fundamental de
moldá-lo a fim de obter um ser “racional”, contribui para o desenvolvimento
das ideias socialistas de educação no século XIX. (MAGNANI, 1987, p.43)

O resultado da “teoria das circunstâncias” de Owen, a transformação social


seria alcançada somente por meio da oferta de educação pelo governo estabelecida
nos planos educacionais cujos objetivos são “treinar as crianças para adquirir bons
hábitos desde a mais tenra idade; educá-las racionalmente; seu trabalho deve ser
dirigido para que seja útil e prover tanto a saúde da mente como a do corpo”.

Nesse sentido, o papel da escola, em uma escala menor, dentro da macro -


realidade social, deve propiciar as “circunstâncias adequadas” para que a realização
da felicidade, uma vez que Owen entende que a “felicidade coletiva” fruto das “boas
circunstâncias” geraria por consequência a “felicidade individual”. A autora Regina
Magnani (1987) afirma que segundo este pensador,

Um ambiente sadio, propício à construção da felicidade, que florescerá em


sua plenitude se o ambiente social criar circunstâncias positivas para seu
desenvolvimento e generalização, e mais que isso, evitar o desenvolvimento
das más circunstâncias que impedem a realização do potencial de bondade
que as crianças trazem congênita e intrinsicamente. (MAGNANI, 1987, p.56)

Assim, pensou e criou cidades, com seus próprios recursos, comunidades


planejadas que abrigavam 1200 famílias “com uma parte industrial outra agrícola,
escola, igreja ecumênica, enfermaria, salas de leitura, refeitórios, cozinhas,
apartamentos”. Sempre fundadas nos princípios da autogestão, cooperação entre os
indivíduos, igualdades de direitos, tendo a escola o lócus como o “centro cultural da
comunidade”.

Logo, Owen em sua perspectiva de que uma sociedade mais justa passaria
fundamentalmente pela educação, uma educação social, mas também, em função do
contexto econômico em que viveu, relacionada ao trabalho. Essa associação entre
educação e trabalho “ganharia fotos de princípios fundamentais de toda educação
socialista nos seus desdobramentos futuros”.
79

Defendeu os interesses dos trabalhadores fabris ao afirmar que “o trabalhador


tem direito a receber o produto completo do seu trabalho”, logo o valor do trabalho
seria equivalente ao tempo no trabalho. Robert Owen também estabeleceu modelo de
cidade, ao pensar que, segundo Choay (2018)

Seria desejável que o governo estabelecesse vários núcleos ou associações-


modelo, contendo de 500 a 2000 habitantes alojados em construções
apropriadas para produzir e conservar uma variedade de produtos, e para dar
as crianças uma educação adequada. Cada uma dessas cidadezinhas novas
seria um modelo da maneira pela qual ela se sustentaria, se governaria a si
mesma, criaria e ocuparia todos os seus membros. (CHOAY, 2018, p. 63)

Seus planos não encontravam ressonância entre os governantes ingleses da


época, logo decidiu partir para os Estados Unidos onde fundou uma colônia Harmony,
em Indiana, porém tal experiência não teve êxito, o fazendo retornar a sua cidade
natal, onde viveu até o final de sua vida trabalhando para a classe operária.

Assim como Owen, outro expoente filósofo do século XIX considerado, assim
como Owen, um “socialista utópico”, Charles Fourier também buscar o financiamento
dos industriais burgueses de sua época, para concretizar seus empreendimentos
utópicos. Barros (2011.p.244) afirma que “Fourier via seu próprio projeto como
perfeitamente realizável, e dirigia uma nota de depreciação às utopias ou idealizações
imaginárias de seus predecessores, bem como aos projetos utópicos que foram seus
contemporâneos”.

Fourier idealizava uma sociedade justa e igualitária, um empreendimento a ser


concretizado, como forma de oposição aos males econômicos e sociais a serem
combatidos e transformados. Para este filósofo, a desigualdade social, o casamento
monogâmico, o trabalho obrigatório, assim como a tendência a especialização eram
consideradas, por ele, como “instâncias absurdas que ao mesmo tempo expressavam
e perpetuavam uma sociedade doente”. (...) A miséria social seria, ela mesma, “a mais
escandalosa das desordens”. O capitalismo – e a sociedade industrial –
corresponderia à “desordem generalizada” (Barros, 2011, p.246).

Como contraposição à sociedade que criticava e buscando concretizar suas


ideias de uma sociedade harmônica e cooperativa, Fourier idealizou as “Falanges”
que eram unidades sociais destinadas a população de 1.500 habitantes. Cada uma
80

dessas unidades possuía um edifício comum denominado falanstérios, idealizado


então, para que possuísse numerosos espaços coletivos destinados à socialização.

Sua arquitetura era constituída como um palácio com várias alas, com galerias
de vidro, jardins, pátios internos, oficinas, hospedarias, salas, áreas lúdicas dentre
elas um teatro. Nas alas também eram encontrados apartamentos com diferentes
preços, porém era limitado a três unidades de apartamentos para cada habitante, para
que não houvesse concentração de propriedade. As atividades de agricultura e
manufaturas garantiam a subsistência dos moradores desses espaços. De acordo
com Choay (2018)

Assim será organizada a divisão do trabalho que, uma vez introduzida na


cidade ou anel central, se espalhará bem depressa pelos dois anéis, de
arrabalde e de subúrbio, onde a obrigatoriedade de duplo ou triplo espaço de
terreno vazio tornará mais necessários os grandes agrupamentos. (CHOAY,
2018, p.71)

O processo pedagógico de crianças também acontecia nesses espaços e tinha


como objetivo, proporcionar uma educação lúdica e espontânea, por meio da
associação de brincadeiras ao cuidado dos espaços coletivos, como jardins, limpeza
das dependências do falanstério. Aos adultos, o trabalho também deveria ser lúdico e
realizado de maneira alegre e variedade, para que se evitasse o cansaço e o tédio.

Logo, por meio da “qualidade do trabalho”, produzido por cada um, em prol a
riqueza e benefício para a coletividade, seria distribuída segundo esse critério, o que
justificaria as diferenças e desigualdades sociais. Segundo Barros (2011)

Cada grupo funcional – ou cada “série”, segundo a terminologia dos


falanstérios – faria um significativo esforço coletivo para elevar o padrão dos
resultados do seu trabalho e, desta forma, seus próprios ganhos. Por outro
lado, um cidadão do falanstério não precisaria estar aprisionado em uma
única profissão, sendo previsível que a maioria se dedicaria variadamente ao
exercício de várias funções. (BARROS, 2011, p. 250)

Fourier buscou ao longo de sua vida quem financiasse a concretização de seus


ideais utópicos, de uma sociedade menos desigual, coletiva, cooperativa e
harmoniosa. Pensar uma sociedade onde o trabalho acontecesse de forma alegre e
não compulsória, onde crianças eram educadas de maneira espontânea carecia não
81

somente de financiamento, mas também de apoio e de pessoas que comungassem


de seus ideais de sociedade.

Segundo Barros (2011), Fourier então “torna-se o exemplo clássico do


socialista utópico que idealiza uma comunidade perfeita, mas não consegue encontrar
meios de produzir o seu aparecimento, ou mesmo de contribuir para transformações
da sociedade já existente com vistas a uma gradual aproximação do modelo social
pretendido”. (BARROS, 2011, p. 253)

Assim, tanto Robert Owen como Charles Fourier, expoentes do pré-urbanismo,


idealizam seus modelos de cidade e sociedade por meio da perspectiva igualitária,
coletiva, cooperativa e menos desigual, onde a processo educativo torna-se um dos
instrumentos tanto para a prática como para a realização de seus ideais. Assim,
mesmo que de forma utópica percebe-se então, a cidade como lócus da construção
do ideal de sociedade.

O espaço urbano, por sua vez, aparece delimitado de acordo com as funções
humanas, isto é, sistematicamente separados por suas funções locais: do habitat, do
trabalho (seja ele industrial, liberal, agrícola, conforme pensado por Fourier), da
cultura e para o lazer. Outra característica da cidade progressista diz respeito à
estética, marcada por uma lógica e beleza marcantes. Choay (2018, p.9) ressalta que
“é preciso, no entanto, sublinhar a austeridade dessa estética, onde lógica e beleza
coincidem. A cidade progressista recusa qualquer herança artística do passado, para
submeter-se exclusivamente às leis de uma geometria “natural”.

Desta forma, a cidade progressista é fundamentada por uma “precisão de


detalhes e uma rigidez que “impossibilitam adaptações, tornando-as modelos
“fechados” com características específicas a serem reproduzidas. Portanto, a rigidez
do modelo de Fourier encontra-se tanto na regulamentação espacial, seus usos e
funções, bem como no embelezamento, e detalhes estéticos da cidade. Segundo
Choay (2018)

Fourier, o promotor das cidades-padrões, quer paradoxalmente assegurar o


prazer e a variedade aos habitantes destas; ele critica a ordem “monótona”,
imperfeita, das “cidades civilizadas que se conhece de cor ao se ter visto duas
ou três ruas. Contudo, e este é o ponto importante, todos esses pensadores
imaginam a cidade do futuro em termos de modelo. Em todos os casos a
cidade, ao invés de ser pensada como processo ou problema, é sempre
colocada como uma coisa, um objeto reprodutível. É extraída da
82

temporalidade concreta e torna-se, no sentido etimológico, utópica, quer


dizer, de lugar nenhum. (CHOAY, 2018, p. 14)

Mesmo que o urbanismo se destaque por seu perfil prático, de aplicabilidade


teórica, Choay (2018) destaca que apesar da tarefa prática de seus teóricos o
urbanismo não se afasta totalmente dos ideais utópicos, uma vez que os primeiros
urbanistas se encontram em sistemas econômicos e políticos do século XIX, “desde
então sua tarefa polêmica e criadora afirma-se num movimento utópico.

Nesse sentido, Tony Garnier, o arquiteto francês, mundialmente conhecido pela


influência de suas ideias relacionadas às novas formas urbanas das cidades, assim
como por sua crítica ao modelo de produção das cidades no século XIX, marcada por
um aprofundamento do processo de divisão espacial, que segrega a parcela mais
pobre da população urbana, fundamentalmente a proletariada.

Nessas áreas degradas em parte das cidades europeias foram se


conformando, nas quais, segundo Almeida (2017, p.17) “a precariedade dos
ambientes da cidade industrial acabou por estimular o surgimento de contrapontos de
produção do espaço urbano, elaborados por teóricos”. O arquiteto francês e teórico
Tony Garnier, projetou uma cidade idealizada, proposta em seu modelo da Cidade
Industrial, para abrigar uma população de 35.000 habitantes, dividida por setores
específicos como indústria, serviços e habitação, com construções erguidas com
novas técnicas e materiais, como o concreto armado.

Garnier na sua cidade utópica, assim como Owen e Fourier, também planejou
a distribuição dos equipamentos de educação, escolas primárias em bairros da cidade
e escolas secundárias localizadas em outro ponto. Tal como afirma Almeida (2017,
p.18), “verifica-se no plano da Cidade Industrial a influência do ideário dos
racionalistas”.

Assim, encontra-se no projeto de Garnier o detalhamento da distribuição, da


especialização espacial de zonas da cidade, de acordo com suas funções, seja ela
para uso comercial, residencial ou industrial, “antecipando o princípio do zoneamento
urbano”, como forma de contrapor ao contexto de expansão urbana das cidades no
período entre o final do século XIX e início do século XX. Desta forma, Garnier com
83

seu modelo utópico de Cidade Industrial influenciou arquitetos e urbanistas de todo


mundo. Almeida (2017) adverte que

Verifica-se resquícios das propostas de Garnier nas práticas urbanas


contemporâneas que promovem megaprojetos, grandes operações urbanas,
obras de infra-estrutura e no discurso modernizador de políticos e
especialistas, que provocam quebras de laços afetivos com as cidades,
processos de elitização do espaço e aumento dos processos de segregação
espacial. (ALMEIDA, 2017, p.25)

O arquiteto suíço naturalizado francês, Le Corbusier, influenciado pela obra de


Tony Garnier, segue a perspectiva do urbanismo progressista ao difundir a
modernidade em seus projetos, “deslocando das estruturas econômicas e sociais para
as estruturas técnicas e estéticas”, tal como a “cidade instrumento” e “cidade
espetáculo” como afirma Choay (2018). Le Corbusier então mistura técnica e estética,
indústria e arte e propõe modelos de cidade reprodutíveis em padrões e funções à
serviço da eficácia, principalmente por sua importância relacionada à saúde e higiene.

Nesse sentido, Choay (2018, p.22) descreve que segundo a perspectiva de Le


Corbusier, a “cidade industrializada é também industriosa, quer dizer, para o
urbanismo progressista, um instrumento de trabalho. Para que a cidade possa
preencher essa função de instrumentalidade, deve ser classificada, analisada; cada
função sua deve ocupar uma área especializada”. Assim, pela perspectiva do arquiteto
o espaço então fragmentado e ordenado da cidade-objeto “corresponde
rigorosamente o espaço dissociado, mas geometricamente composto, da cidade-
espetáculo.

Desta forma, o racionalismo associado a fragmentação e ordenamento do


espaço, na prática se convergem em unidades de habitação, de trabalho, de cultura,
unidades agrárias e de circulação horizontais e verticais (Choay, 2018).

Assim, a nova cidade torna-se, a um só tempo, o lugar da produção mais


eficaz e uma espécie de centro de criação humana, no horizonte do qual se
projeta, ameaçadoramente, a imagem analítica do pai castrador dos filhos. O
papel é conservado pelo urbanista, detentor da verdade. (CHOAY, 2018, p.
14)

A cidade ordenada e fragmentada segundo funções predeterminadas, torna-se


o modelo, um tipo utópico e idealizado de aglomeração humana e urbana. Modelos
84

esses, frutos da racionalidade e imaginário de indivíduos que as conceberam. Cidades


utópicas, geradas pela crítica ao contexto social, econômico, político ou produtivo de
suas épocas, mas que ao idealizarem modelos passíveis de reprodução, acabaram
pondo fim ou reduzindo o espaço das singularidades, das perspectivas e experiências
individuais. O local deixa de ser o lugar significativo, para torna-se um espaço a ser
(re) modelado. Choay (2018) tece a crítica nesse sentido, ao destacar que

Uma cidade deve, pois, ser estruturada sobre fundo neutro, pelo dinamismo
de um certo número de figuras significantes que diferem de acordo com a
topografia, a população, sua composição e seus interesses. A riqueza da
imagem será função da riqueza e da variedade dos significantes que a
compõem. (CHOAY, 2018, p. 49)

Nesta perspectiva que ressalta a importância de análise do lugar, traz-se a este


capítulo a abordagem de autores centrada na discussão da construção da cidade
como expressão da experiência e vivência dos indivíduos que nela vivem.

O escritor e urbanista Kevin Lynch em seu livro A boa forma da Cidade,


apresenta um histórico e uma análise do processo de formação de cidades, buscando
compreender qual seria a melhor forma da cidade, indagar o que seria uma boa forma,
do ponto de vista daqueles que nela vivem, além de questionar como ela se “forma”.

Para fins deste capítulo, tal abordagem nos traz a possibilidade de relacionar e
mesmo contrapor, o processo de formação e construção das cidades sob a
perspectiva da sociedade, diferentemente das proposições até então descritas, fruto
da idealização de projetos de cidades, ou seja, a partir da utopia de um indivíduo. Tal
como afirma Lynch (1981)

Poucas teorias consideram que a cidade é o resultado do comportamento


intencional dos indivíduos e de pequenos grupos, e que os seres humanos
podem aprender. A cidade é a manifestação de uma qualquer lei de ferro e
não do resultado as inconstantes aspirações humanas. (LYNCH, 1981, p.45)

Assim, de acordo com o pensamento de Lynch (1981), o processo de


construção das cidades parece estar baseado segundo a lógica de agentes públicos
ou privados, cuja lógica acaba por contrapor interesses e estabelecer conflitos, onde
se determinam e se aplicam princípios muitas vezes estranhos ao lugar e a quem nele
vivem. Este autor propõe como alternativa
85

Concentrar-nos na modificação do ambiente, para que este se possa adaptar


melhor às intenções da pessoa, e que é a abordagem habitual do
planejamento. A teoria normativa que temos em mente foi concebida para ser
usada deste modo modificador, parcelado e gradual do ambiente. No entanto,
também pode fornecer informações educativas ou fomentar uma mudança
mais radical, altera a sociedade ou mesmo não alterar nada, pode, em muitas
situações, ser uma resposta mais adequada do que alterar o ambiente.
(LYNCH, 1981, p.48)

Desta forma, a constituição das cidades abriga e distribui espacialmente as


pessoas respeitando os aspectos naturais do lugar, assim como as atividades que ali
serão desenvolvidas, os fluxos de pessoas, dos produtos e das informações. Logo,
para se compreender o lugar, o local que será formado, é preciso observar tanto a
partir do conjunto de indivíduos, como também pelos aspectos físicos e biológicos
deste lugar. Deste conjunto constituído, para Lynch “as estruturas social e espacial só
parcialmente estão relacionadas uma com a outra - na verdade, estão mal interligadas
– uma vez que ambas se afetam mutuamente através de uma variável interveniente
(o interveniente humano)”.

O autor acrescenta que tais fenômenos acabam por se repetir e se tornam,


portanto, significativos em três situações: na cultura, nas relações duradouras entre
os indivíduos e nas relações que as pessoas estabelecem como o lugar. Nesse
sentido, ao analisar a forma da cidade tem-se a perspectiva de uma estrutura
normativa com requisitos estabelecidos, que segundo Lynch seriam:

- Deve partir do comportamento intencional e das imagens e sentimentos que


o acompanham;

- Deve lidar diretamente com a forma e com as qualidades do aglomerado


populacional e não ser uma aplicação eclética de conceitos de outras áreas;

- Deve ligar valores de importância geral e de longo alcance a essa forma, e


as ações imediatas e práticas acerca dela;

- Deve saber lidar com interesses plurais e concorrenciais, e deve representar


clientes ausentes e futuros;

- Deve ser adequada a diversas culturas e a variações nas situações de


decisão (variações na centralização do poder, na estabilidade e na
homogeneidade de valores, no nível de recursos e no grau de mudança;

- Deve ser suficiente simples, flexível e divisível, para poder ser utilizada em
decisões rápidas e parciais, com informações imperfeitas, pelos leigos que
sejam utilizadores diretos dos locais em questão;

- Deve saber avaliar a qualidade conjunta do estado e do progresso, à medida


que se altera durante um espaço de tempo moderado;
86

- Apesar de constituírem a raiz da avaliação da forma do aglomerado


populacional, os conceitos devem sugerir novas possibilidades de forma. Em
geral, deve ser uma teoria possível: não uma lei férrea sobre o
desenvolvimento, mas uma lei que realce os objetivos ativos dos participantes
e a sua capacidade de aprendizagem. (LYNCH, 1981, p.54)

Ao explicitar tais requisitos espaciais para a normatização de uma cidade com


uma “boa” forma, Lynch (1981) traz a reflexão sobre as políticas espaciais nacionais
que seriam comuns e aplicadas às cidades. Tais políticas dizem respeito à densidade
e crescimento das cidades, aos movimentos populacionais de migração das áreas
rurais para as urbanas, à criação de sistemas de equilíbrio e hierarquia, à oferta de
serviços e de recursos locais, rede de infraestrutura inclusive econômica e produtiva,
oferta de habitação, de recursos naturais, bem como o sistema de descarte de lixo e
preservação de áreas naturais.

Além de tais requisitos, o autor ainda descreve as políticas urbanas que seriam
comuns em escala local, tais como: dimensão de sua população e seus impactos na
oferta dos serviços, a promoção da diversidade de classes no espaço, esforços de
recuperação e refuncionalização de áreas em declínio na cidade, criação de áreas
residenciais em bairros com a devida hierarquia de seus centros de serviços,
melhoramento das estruturas públicas, como ruas e estradas e preservação de áreas
com valor histórico e ambiental, como monumentos e áreas de parque, com intuito de
incentivar o turismo, a diversão e a cultura.

Após a citação das políticas, Lynch (1981) propõe algumas indagações


relacionadas aos valores sejam eles “implícitos ou explícitos” de tais políticas, mas
que pode ser remetida às indagações propostas neste trabalho, no que diz respeito
aos princípios difundidos na Carta das Cidades Educadoras, a respeito da proposta
de educação urbana, nas diversas cidades mundo afora, que fazem parte da AICE 4.
Assim o autor propõe a seguinte reflexão:

Após esta lista simples de políticas, será interessante observar os valores,


explícitos ou implícitos, que lhes estão subjacentes. Quais são os valores
mais frequentemente citados? Quais são os valores que mais
frequentemente são alcançados? Será que se consegue detectar a sua
concretização? Quais, de entre elas, parecem ter uma ligação clara com a
forma da cidade, e quais são mais duvidosos? Será que existem valores

4 AICE (Associação Internacional de Cidades Educadoras).


87

secretos por detrás de algumas ações? Valores negligenciados? (LYNCH,


1981, p.57-58)

Tais indagações se tornam pertinentes uma vez que propõem uma reflexão
acerca dos valores secretos, acerca das intenções e dos valores que se deseja
alcançar a respeito das políticas que propiciam uma boa forma da cidade. Desta
maneira, é possível fazer um paralelo indagar o propósito e possíveis os valores
secretos de projetos que se propõem formar cidades educadoras, com cidadãos
conscientes de seu papel, quais valores se deseja alcançar? De que forma tais valores
serão alcançados? O representam esses valores? Como detectar ou avaliar a sua
concretização?

Lynch (1981) segue ilustrando e classificando os valores das políticas da cidade


em quatro grupos: valores fortes, intencionais, fracos e valores secretos. O autor
refere-se aos valores fortes relacionando-os aos objetivos da política os quais a sua
concretização poderá ser observada e analisada, como “redução da poluição”,
“proporcionar espaço para usos pretendidos”. Os valores intencionais também podem
ser detectáveis e mensuráveis porém são mais difíceis de serem alcançados, como:
“melhoria da igualdade, redução da migração, conservação de recursos materiais e
energéticos”.

Os valores fracos por sua vez, dizem respeito aos objetivos difíceis de serem
concretizados e avaliados. Lynch (1981) cita como exemplo objetivos tais como:
“melhoria da saúde mental, aumento da estabilidade social, aumento da integração
social e criação de comunidades fortes, apoio de um estilo de vida preferido” dentre
outros. Outra categoria de valores citados, são os secretos.

Estes também são valores considerados fortes, porém são menos “articulados
ou citados” quanto ao seu objetivo principal, mas, mesmo assim, os valores secretos
podem ser “ardorosamente desejados e podem vir a ser claramente atingidos”. São
valores como: “disseminação de uma cultura avançada, remoção de atividades ou
isolamento de pessoas; rentabilidade econômica.

Por fim, os valores negligenciados, estes são valores que poderiam ser
concretizados, mas que por alguma escolha, deixaram de ser importantes, como: “o
88

poder mágico dos padrões da cidade, bem como a qualidade da experiência simbólica
e sensorial”.

Os valores citados por Lynch (1981), relacionados às políticas espaciais, nos


remetem aos princípios das políticas de educação urbana, fundamentalmente aos que
dizem respeito ao Cidades Educadoras. Princípios que descrevem e desenham o
modelo ideal de uma cidade que educa os seus cidadãos para assim, terem qualidade
de vida em uma cidade justa e igualitária Princípios e valores caracterizados como
intencionais, pela dificuldade que apresentam de concretização, mesmo que estes
possam ser facilmente mensuráveis, outros como fracos pela dificuldade não somente
de execução como de avaliação.

Nesse sentido, concorda-se com a análise de Lynch (1981, p. 60) ao afirmar


que tais valores nos leva às teorias e raciocínio utópicos, como os que analisados
neste capítulo, uma vez que tal raciocínio “apresenta algumas falhas persistentes, tais
como a desconsideração pelo processo de desenvolvimento e um conjunto
extremamente estreito e estático de valores”.

O raciocínio utópico estudado até aqui neste capítulo, relaciona-se à


perspectiva e análise das sociedades por seus pensadores sob uma ótica social, as
transformações espaciais idealizadas destes cenários utópicos, foram descritas como
uma forma de contraposição ao contexto social, econômico e político ao momento
histórico que viviam.

Lynch (1981, p. 90) ao analisar a formação de cidades ao longo do tempo,


distingue tais processos de formação de cidades como resultado das sociedades que
as constitui. Seja tal processo influenciado pelo contexto industrial e racionalista,
padronizada por sua rigidez e busca pela perfeição ou pelo seu contraponto, uma
formação de caráter orgânico, baseada na ideia de cidade como um organismo e que
como tal “forma e função estão indissoluvelmente ligadas e a função do conjunto é
complexa, não podendo ser compreendida apenas pelo conhecimento da natureza
das partes, uma vez que o funcionamento conjunto das partes é bastante diferente do
respectivo agrupamento simples”.

Ainda sobre este modelo, Lynch (1991, p.91) acrescenta que “o modelo
orgânico realça a cooperação que sustenta a sociedade, em contraste com a visão da
89

sociedade como um espaço de luta competitivo”. Nesta perspectiva, as formas e


funções da cidade são fundidas, mas com distinção entre os locais sejam eles para a
produção (com as singularidades de forma e aparência) ou como lugar dormitório,
especialização de lugares da cidade, mas que se complementam em suas funções
(superiores ou inferiores).

Ambas as perspectivas não de adequam às distintas realidades de cidade ou


de seu processo de planejamento, uma vez que as cidades não deveriam ser
comparadas com máquinas ou organismos vivos, não devem ser personificadas ou
passíveis de personificação. Cidades são constituídas por pessoas, de fixos e fluxos,
tal como conceitua Milton Santos (2006) e são diversas e como tal, são múltiplas.
Acrescenta-se, concordando com Lynch, que o papel e função da cultura de cada
lugar, uma vez que cada cultura, e suas normas próprias, acabam por interferir na
forma da cidade de cada cidade, tornando-as singulares e diversas. Segundo Kevin
Lynch (1981)

As cidades alteram-se continuamento e essa mudança não é apenas uma


progressão inevitável em direção à maturidade. (...) Em vez de serem
comunidades de organismos irrefletidos que seguem uma sucessão
inevitável até atingirem um limite de ferro, as cidades são o produto de seres
que conseguem aprender. A cultura estabiliza e desestabiliza o sistema do
habitat e não é evidente se gostaríamos que fosse de outro modo. (...) A
incorporação do objetivo e da cultura e, em especial, a capacidade de
aprender e de mudar, pode proporcionar-nos um modelo muito mais coerente
e mais defensável de uma cidade. (LYNCH, 1981, p.97)

Desta forma, ao propor medidas e critérios para se delinear uma “boa forma da
cidade”, traz-se à tona a crítica de requisitos genéricos, muitas vezes inalcançáveis,
imensuráveis, idealizadas, padronizadas, assim como as imaginadas pelos
pensadores utópicos vistos nesse capítulo. Lynch (1981, p.116) defende que “o
aglomerado populacional bom é o que melhora a continuidade de uma cultura e a
sobrevivência do seu povo, o que aumenta o sentido de ligação no espaço e no tempo
e permite ou encoraja o crescimento individual: desenvolvimento, na continuidade,
através de abertura e ligação”.

Assim, relaciona-se à proposta do projeto Cidades Educadoras, como exemplo


de uma política pública voltada aos projetos de educação urbana a serem
desenvolvidos por diferentes cidades.
90

Nesta relação com a afirmação de Lynch reside a crítica que se deseja


apresentar neste trabalho, de propostas genéricas de políticas aplicadas como
modelos para diferentes realidades, culturas e espaços, sejam físicos ou sociais. Faz-
se necessário, alinhar propostas bem como a sua flexibilidade para que se possa
adaptá-las à escala local e às pessoas, aos indivíduos, dar sentido às propostas, tal
como afirma Lynch em relação ao um aglomerado populacional, mas que se adequa
à esta discussão sobre cidade. Segundo este autor, o sentido

É a união entre a forma do ambiente e os processos humanos de percepção


e cognição. Demasiadas vezes mal definida e, portanto, omitida com alguns
lamentos piedosos, esta qualidade está na base dos sentimentos pessoais
acerca das cidades. Não pode ser analisada senão como interação entre a
pessoa e o local. A percepção é um ato criativo e não uma recepção passiva.
O sentido depende da forma e da qualidade espaciais, mas também da
cultura, do temperamento, do estatuto, da experiência e do objetivo atual do
observador. Assim, o sentido de um determinado local varia consoante os
diferentes observadores, tal como a capacidade de determinada pessoa se
aperceber da forma varia consoante os locais. (...) a forma mais simples é a
identidade, no significado limitado desse termo comum: “um sentido local”. A
identidade é o nível a que uma pessoa consegue reconhecer ou recordar um
local como sendo distinto de outros locais – como tendo um caráter próprio
vívido, único, ou pelo menos particular”. (LYNCH, 1981, p.127)

O local é o espaço físico carregado de sentido, de vivência nas quais as


experiências o transformam criando uma relação de identidade do indivíduo com
aquele espaço. Desta associação entre espaço e os indivíduos, bem como na relação
entre as pessoas, surgem os valores. “Os valores surgem a partir da nossa relação
com as pessoas nos locais” (Lynch, 1981).

Nesta perspectiva, pensar a cidade, tal como urbanistas, planejadores,


geógrafos, tal como técnicos deveriam estar na dimensão local, buscando
compreender as dinâmicas que se apresentam, com base na cultura, da experiência,
na relação que os indivíduos estabelecem com o lugar, assim como na relação entre
os próprios sujeitos, estas relações tornam possíveis a constituição do sentimento de
identidade e a formação de valores.

Pensar a cidade, bem como as suas políticas públicas deve partir a perspectiva
da sociedade, dos indivíduos, na escala das pessoas e para as pessoas. O arquiteto
e urbanista dinamarquês Jan Gehl (2015, p.6), defende que o foco dos planejadores
deve estar nas pessoas, naqueles que utilizam das cidades, destacando a dimensão
91

humana nos processos de planejamento urbano. Para o arquiteto, “é urgente reforçar


a função social do espaço da cidade como local de encontro que contribui para os
objetivos da sustentabilidade social e para uma sociedade democrática e aberta”.

A qualidade do espaço público influencia diretamente na vida urbana, nas


relações que se estabelecem, nas atividades que são desenvolvidas, bem como nos
grupos sociais que são constituídos por e nesse esse espaço gerando, portanto,
trocas sociais. Logo, “se a vida na cidade é reforçada, criam-se as pré-condições para
fortalecer todas as formas de atividade social no espaço urbano”.

As práticas sociais que acontecem nos espaços das cidades, transforma não
somente tais espaços, mas os próprios indivíduos que assim por meio do “ver e ouvir”,
do “observar” passam a experienciar o outro, o espaço, culminando em novas formas
de encontro, de contato, troca e participação. Gehl (2015) ilustra essa forma de
qualificar o espaço público, ao trazer à discussão a questão da sustentabilidade social,
cujo objetivo reside na possibilidade de oferecer oportunidades iguais de acesso aos
espaços públicos, assim como de mobilidade à diferentes grupos da sociedade.

Ao oferecer um espaço público que se contrapõe aos espaços fechados, dos


condomínios por exemplo, o autor descreve a cidade viva como aquela cujos espaços
são compartilhados e constituídos por uma diversidade social. Segundo Gehl (1985)

A cidade como local de encontro também é uma oportunidade para trocas


democráticas, onde as pessoas têm livre acesso para expressar sua
felicidade, tristeza, entusiasmo ou raiva em festas de rua, manifestações,
marchas ou encontros. Além dos vários encontros diretos com os
concidadãos, essas manifestações são uma condição indispensável para a
democracia. (GEHL, 1985, p.157)

Logo, os espaços públicos convergem os indivíduos da cidade possibilitam o


encontro, a convivência, são espaços de aglomeração de pessoas, pois segundo o
autor Lineu Castello (2017, p. 18) “sem aglomeração de pessoas não existe
pluralidade”. Os espaços públicos, portanto, tornando-se espaços coletivos e plurais,
evidenciando assim o seu caráter de urbanidade percebidos pelos indivíduos como
“lugares da pluralidade”, conforme conceitua Castello.

Ainda de acordo com o autor, o fenômeno da pluralidade não seria recente,


mas sim uma qualidade típica da urbanização da humanidade, pois “desde a clássica
92

ágora dos tempos homéricos da Grécia Antiga, as cidades disponibilizam um lugar


público para o desenvolvimento das relações conversáveis entre seus habitantes”.
(Castelo, 2017. p. 18)

Vale destacar, as diferentes formas apresentadas nesse capítulo remetem à


utopia de diferentes autores, momentos históricos e contextos, que idealizaram
cidades e espaços públicos de convívio para os seus habitantes, mesmo que estes
tenham sido idealizados segundo sua perspectiva funcional. Desta forma, a
pluralidade e o caráter percebido de urbanidade desses espaços, perpassa a história
da urbanização. Porém, a autora Iara Regina Castello (2017) argumenta que

O movimento moderno, ao preconizar o planejamento urbano observando a


separação de funções, penalizou os espaços públicos, induzindo sua
desqualificação e perda das características vitais, de serem pontos de
realização de manifestações sociais, lugares de trocas, arenas do exercício
da cidadania e de locais privilegiados de interação. (CASTELO, 2017, p.78)

A autora ilustra a reflexão sobre a o pensamento moderno a respeito de como


o planejamento urbano, ao afirmar que separar os espaços segundo sua
funcionalidade, contribuiu também, para a separação da relação entre o espaço
públicos e as representações e práticas sociais, uma vez que as relações existentes
entre a política, cidadania e espaço urbano estariam distantes das manifestações da
sociedade. Segundo Castello (2017.p. 78) “sem uso o espaço não existe, não é útil
não é seguro, não se constitui”.

Os espaços da cidade, ou pelo menos determinados espaços da cidade, o


lócus das práticas e manifestações sociais, tornam-se lugares de urbanidade os quais,
segundo Lineu Castello (2017.p. 99), “são lugares urbanos onde um acúmulo de
convergências fenomenológicas parece levar a urbanidade a eclodir com maior
espontaneidade”. Nesses espaços da cidade, onde o encontro dos indivíduos se faz
presente cria-se então o elemento fundamental para o estimular o senso coletivo, o
senso de comunidade, o vínculo espontâneo.

Observa-se nas últimas décadas o surgimento de ações pautadas num


crescente movimento de participação popular em pautas das mais variadas e que se
materializam muitas vezes em práticas espaciais, em espaços públicos das cidades.
São ações voltadas a recuperação de praças públicas, a criação de hortas urbanas
93

comunitárias, bibliotecas populares, de educação e valorização da história e do


patrimônio do lugar, dentre tantas outras. Castello (2017, p.109) acrescenta que “o
acompanhamento de fenômenos sociais em pauta nas cidades – e na sociedade
como um todo – permitem a visualização das cidades como laboratórios sociais onde
novas ideias e novas soluções são gestadas”.

Nesta perspectiva, mais do que nunca, observa-se a necessidade de reflexão


e destaque dos fenômenos sociais que são construídos a partir da associação dos
indivíduos urbanos que se agregam a partir de temas comuns, tal como Castello
(2017) conceitua como “convivialidade”. Porém, tão importante quanto destacar a
natureza das práticas, torna-se imprescindível analisar e refletir o lócus onde tais
práticas são configuradas, neste caso, analisar o conceito de lugar. Segundo
Forgiarini (2014)

Da pólis grega à metrópole contemporânea, a experiência do lugar na cidade


tem sido elevada a uma dimensão prática de criação, transformação e
ressignificação do espaço humano, um lugar de gente, de pessoas, de
práticas sociais. Ora, se isso acontece e tem acontecido no decorrer dos
séculos é porque a cidade resiste como o mais extraordinário produto
concebido pelo homem para o estabelecimento e a organização da vida em
sociedade. (FORGIARINI, 2014, p.3)

O lugar desponta, portanto, como resultado das experiências e vivências


afetivas dos indivíduos com o espaço, sejam nas práticas sociais que se instituem,
pela convivência ou senso de coletividade, solidariedade e empatia com o outro,
ultrapassando então a perspectiva meramente locacional.

O lugar é sempre uma criação do homem, comporta o material concreto, mas


inexiste fora do universo intangível das ideias e emoções. O acontecer do
lugar roga pela multiplicidade das experiências humanas e estas são
determinantes para que o sujeito conheça e se relacione com o mundo. Para
tornar realidade o sonho do lugar ideal é necessário que se comece a realizá-
lo no dia a dia, pois em meio às experiências do cotidiano o lugar idealizado
pode vir a se transformar num lugar só. (FORGIARINI, 2014, p.5)

Nesse sentido, vislumbra-se o espaço urbano, o espaço das cidades que se


tornam referência de significados para os indivíduos, tais espaços também modificam
os sujeitos deles se apropriam, “é para eles que a cidade existe e é a partir deles que
a urbanidade ganha status de lugar” (Forgiarini ,2017. p.5). Será por meio da
94

convivência dos indivíduos nesses espaços, no cotidiano, que a vitalidade dos lugares
aflora.

Pensar as cidades é ir além de uma utopia formadas pela setorização de


espaços funcionais, seja de moradia, trabalho e convivência ou pela separação de
moradores e famílias, cada qual com o seu lugar. É ultrapassar as utopias e
transformar tais espaços em lugares concretos, do cotidiano, permeado de
referências, significados e vivências, é possibilitar que as inter-relações que se
estabelecem tornem-se práticas engajadas de participação e convívio para as
transformações do espaço e dos indivíduos.

Logo, por meio da criação/construção deste vínculo entre as pessoas que


ocupam e usam determinados espaços públicos da cidade, torna-se possível a
participação e o exercício com foco no estabelecimento de uma comunidade, de
interesses aproximados, estimulando a noção de “convivialidade” 5. São ações e
práticas alternativas, criativas que agregam pessoas com o mesmo interesse como
estímulo de participação na vida urbana, da sua comunidade.

São demandas, propostas e ações advindas daqueles que vivenciam a


experiência do lugar, são ações “de baixo para cima” que caracterizam a crítica e o
contraponto que se pretende fazer neste trabalho, às propostas de políticas públicas,
neste caso, políticas de educação urbana baseadas em um modelo de projeto.

5Conceito citado pelo autor Lineu Castello (2017) para caracterizar uma “noção de convívio humano
coletivo no espaço”.
95

CAPÍTULO 3 – O RELATÓRIO APRENDER A SER de Edgar Faure

Desde a década de 70, acompanha-se o efeito das mudanças socioeconômicas


e políticas que culminaram em transformações no perfil demográfico da população em
cidades de todo o mundo, onde a grande maioria da população passa a viver em
zonas urbanas.

Tem-se então, um desafio de se pensar uma prática educativa que possa dar
conta dessa nova realidade e de suas novas dinâmicas, de educar os cidadãos cada
vez mais urbanos, além dos muros da escola onde a cidade também se torna o lócus
do processo de educar para a vida urbana.

Nesse contexto, encontram-se concepções elaboradas por diferentes autores,


mas que se referem à relação entre cidade e educação, conforme apresentado no
capítulo anterior deste trabalho. Sabe-se que esta relação nos remete a tempos muito
antigos, porém o termo “cidade educativa” expressa não somente tal aproximação,
mas também às práticas pedagógicas. Machado (Apud Almeida, 2008) descreve que

A perspectiva da relação entre escola e cidade, segundo ao paradigma da


cidade educativa, reconhece a potencialidade educativa da escola como um
dos seus elementos de educação formal, ao lado da pluralidade de
instituições, atividades e esforços de caráter formativo intencional ou
ocasional. (MACHADO, 2008, p. 83)

Assim, na década de 70 a ideia de uma cidade educadora, cujas características


pressupunham alguns critérios de análise, como: “uma cidade com personalidade
própria, integrada ao país de origem, cuja identidade é interdependente com a do
território do qual faz parte e da história da qual resulta” voltou a ser pesquisa e
debatida (Almeida, 2008).

Esta concepção de cidade educadora, portanto, se popularizou a partir do


Relatório de Edgar Faure, primeiro ministro francês, intitulado Aprender a Ser cuja
publicação é resultado do trabalho da Comissão Internacional para o Desenvolvimento
da Educação, estabelecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO) originalmente publicada em 1972, a partir de estudos
e apontamentos realizados em missões que percorreram vinte e três países, “graças
as facilidades que os governos interessados e vós próprio nos concederam” (Faure,
1972).
96

Este Relatório teve como proposta “demonstrar que a sociedade atual exige
uma união cada vez mais íntima entre a vida e a educação”. A Comissão expressa
sua perspectiva de Educação ao afirmar que

Educação que nos deve preparar para uma vivência em que o domínio do
pensamento científico e da sua linguagem se deve tornar, para o homem, tão
indispensável como o domínio das outras formas de pensamento e de
expressão. A permanente revolução técnico-científica em que se vive obriga-
nos a um contínuo aprender a ser que nos deve ser ministrado através de
uma verdadeira Educação Permanente. Por isso, aprender a ser é aprender
a viver. (FAURE, 1972)

Como o título do Relatório explicita Aprender a Ser expõe-se uma concepção


de educação baseada na experiência, na vivência cotidiana, na qual se precisa
aprender continuamente por conta da constante transformação gerada pela revolução
técnico-científica.

A Comissão de elaboração do Relatório foi então presidida por Edgar Faure, na


época ex-presidente do Conselho e ex-ministro da Educação Nacional da França,
contou com a participação de membros de diferentes nacionalidades. O chileno Felipe
Herrera professor da Universidade do Chile e ex-presidente do Banco Interamericano
de Desenvolvimento. O professor de física nuclear da Universidade de Damasco na
Síria, Abdul- Razzak Kaddoura. O ministro de Negócios Estrangeiros e ex-ministro da
Educação Nacional Henri Lopes. O professor membro da Academia das Ciências
Pedagógicas da antiga União Soviética, Arthur V. Pétrovski. O ex-ministro do Ensino
Superior e das Ciências do Irã, Majid Rahnema e por fim, o conselheiro para a
Educação Internacional na Fundação Ford, o americano Frederick Champion Ward.

O Relatório foi publicado sob a forma de livro em 1972, com o título Aprender a
Ser. Tal publicação tornou-se a base do futuro projeto Cidades Educadoras de
Barcelona, ao postular o modelo de cidade educativa a ser desenvolvido e aplicado
pelas cidades, mundo a fora.

No que diz respeito ao objetivo principal deste trabalho, em realizar uma análise
da proposta do Projeto Cidades Educadoras frente a sua realização prática, faz-se
necessário uma apresentação e consequentemente uma observação, não de todo o
conteúdo do Relatório ao longo de suas 454 páginas, mas daquilo que se mostra
passível de uma aproximação.
97

Logo, os temas destacados do referido Relatório serão apresentados como


parte da metodologia de pesquisa proposta para este trabalho, uma vez que tendo o
projeto Cidades Educadoras como horizonte e este documento como um dos pilares
de sua proposta, torna-se relevante não somente a apresentação da perspectiva da
Comissão, mas também a análise de seus apontamentos e perspectivas.

Nesse sentido, ao trabalhar com o Relatório destaca-se o trecho de sua


Apresentação, na qual Edgar Faure dirige-se ao então Diretor Geral da Unesco, René
Maheu. Neste trecho, Faure (1972) frisa que os trabalhos foram conduzidos com base
em quatro postulados, que serão apresentados na sua íntegra para efeitos de
observação e análise. Assim,

O primeiro postulado, que constitui a própria justificação da tarefa


empreendida, é o da existência duma comunidade internacional que, sob a
diversidade de nações e de culturas, das opções políticas e dos níveis de
desenvolvimento, se exprime pela unidade de aspirações, de problemas e de
tendências e pela convergência para um mesmo destino. O seu corolário é,
para além das divergências e dos conflitos transitórios, a solidariedade
fundamental dos governos e dos povos.

O segundo é a crença na democracia concebida como o direito de cada


homem se realizar plenamente e de participar da edificação do seu próprio
futuro. A chave duma democracia assim concebida é a educação, não só
amplamente ministrada, mas também repensada tanto nos seus objetivos
como nos seus processos.

Constitui o terceiro postulado o desenvolvimento que tem por objetivo a


expansão integral do homem em toda a sua riqueza e na complexidade das
suas expressões e compromissos: indivíduo, membro de uma família e duma
coletividade, cidadão e produtor, inventor de técnicas e criador de sonhos.

O nosso último postulado é o de que a educação para formar o homem


completo, cujo advento se torna mais necessário à medida em que coações
sempre mais duras separam e atomizam cada ser, terá de ser global e
permanente. Trata-se de não mais adquirir, de maneira exata, conhecimentos
definitivos, mas de se preparar para elaborar, ao longo de toda a vida, um
saber em constante evolução e de aprender a ser. (FAURE, 1972, p.10)

Além disso, tal processo de aprendizagem será realizado ao longo de toda a


sua vida e de “forma global e permanente”. Os objetivos e a metodologia
desenvolvidos ao longo da pesquisa do Comitê também são explicitados na
apresentação de Faure. Segundo ele,

Nós quisemos, partir dum balanço crítico da situação da educação em 1972,


isto é, colocando-nos deliberadamente numa óptica mundial, tentar
esclarecer tanto as características comuns, que muitas vezes só se explicam
em função do passado, como as novas tendências que parecem prevalecer
98

na maioria dos países e dos sistemas, e os fatores que pela primeira vez na
história comandam ou acompanham o desenvolvimento da educação; foi
então que chegamos à noção de impasse a que consagramos uma parte do
presente relatório.

É um objetivo comum a todos os sistemas de educação, pertence às políticas


nacionais explicitá-los em objetivos próprios a cada país, formulando as
estratégias da combinação dos meios próprios para os atingir e resolvendo-
as numa planificação. É através duma análise destas noções apresentadas
no seu encadeamento que quisemos contribuir no esforço metodológico
necessário aos fins de elaboração de estratégias nacionais. E porque a nossa
tarefa se situava ao nível da comunidade internacional e através de uma
reflexão sobre a expressão tangível da solidariedade internacional, a
cooperação e a assistência que desejamos terminar. (FAURE, 1972, p.11)

Os postulados, os objetivos, bem como a metodologia, demonstram um ideal


de educação voltado para a formação integral do indivíduo onde ele é o centro do
processo de aprendizagem. Tal visão vai ao encontro à visão do então Diretor Geral
da UNESCO René Maheu sobre Educação, pois segundo ele

Vindas de horizontes culturais e profissionais diferentes, mas unidas por uma


mesma aspiração de objetividade, as personalidades eminentes que
constituíam a Comissão elaboraram, sob a sua direção, um inventário da
educação atual e definiram uma concepção global da educação de amanhã
que, sem dúvida, jamais foi objeto duma formação tão completa. (...) me
alegra ver confirmadas por uma pesquisa da mais alta competência as ideias
que já inspiram a ação da Organização: as de uma educação coextensiva à
vida, não só aberta a todos mas vivida por cada um visando simultaneamente
o desenvolvimento da sociedade e o pleno desabrochar do homem.

Porque o relatório sublinha a importância da ligação entre educação e


progresso da sociedade, creio indispensável pô-lo à disposição das
instituições que, a títulos variados, se consagram ao desenvolvimento. Não
esquecerei, portanto, de comunicar tanto aos chefes dos secretários das
instituições e organismos dos sistemas das Nações Unidas, como aos
diversos organismos de financiamento. (FAURE, 1972, p.13)

Segundo o posicionamento da Comissão em relação à Educação, mais


precisamente na sua forma extra-escolar, evidencia-se que ela “oferece uma ampla
gama de possibilidades que devem utilizar-se de maneira produtiva em todos os
países”. (FAURE, 1972, p 32)

Ao mencionar os desafios da educação para além do território escolar a


Comissão reforça a importância de uma formação para que o indivíduo “possa
contribuir para o desenvolvimento da sociedade, a tomar parte ativa na vida, quer
dizer, validamente preparado para o trabalho” (FAURE, 1972, p 33), uma vez que na
99

sociedade moderna, o cuidado a ter com o enorme volume de informações, recebidas


por vias cada vez mais numerosas e diversificadas exige aquisição de conhecimentos,
de aptidões e de práticas sistematizadas”.

Partindo desta visão voltada ao desenvolvimento humano, como o indivíduo


preparado para o mundo do trabalho, os relatores que compõem a Comissão
destacaram duas noções qualificadas como “fundamentais”: a educação permanente
e a cidade educativa. Segundo estes autores,

Se aprender é ação de toda uma vida, tanto na sua duração como na sua
diversidade, assim como de toda uma sociedade, no que concerne quer às
suas fontes educativas, quer às sociais e econômicas, então é preciso ir mais
além na revisão necessária dos “sistemas educativos” e pensar na criação
duma cidade educativa. Esta é a verdadeira dimensão do desafio educativo
no futuro. (FAURE, 1972, p. 34)

Assim, ao destacar a importância de se pensar em um novo modelo educativo,


pautado na criação de uma cidade educativa que possa dar conta das várias
dimensões que perpassam a cidade, o relatório aponta a importância de se pensar
um modelo internacional, partindo da necessidade de se criar uma “cooperação
intelectual e operacional entre todos os países”.

Se se aceitar a ideia de que a educação está hoje posta em questão, chegou


o momento de se proceder à sua renovação, que é preciso repensá-la no seu
conjunto e por todos em conjunto, então torna-se evidente, agora mais do que
nunca, a necessidade duma cooperação internacional e duma solidariedade
mundial. (FAURE, 1972, p. 37)

Em seguida o relatório explicita a intenção bem como a função de se pensar na


criação da cooperação entre os países para se chegar a uma cidade educativa em
“países desenvolvidos” e nos “países pouco desenvolvidos”.

Orientado para as inovações em todos os domínios, ou antes, para a


renovação educativa no seu conjunto, este programa parece que poderia
tornar-se particularmente útil e eficaz com a introdução das tecnologias
educativas. Todo o investimento produtivo exige uma despesa inicial de
capital, mas em seguida pode assegurar-se a gestão em condições menos
onerosas e muito mais rendíveis. (FAURE, 1972, p. 38)

Os países pouco desenvolvidos não podem defrontar sozinhos semelhante


esforço de capital; é preciso, por conseguinte que os países desenvolvidos
lhes dêem novo e específico auxílio, é este o caso de quando o equipamento
de televisão exigir o estabelecimento de retransmissão por satélite, usado
geralmente para cobrir vários países.
100

Diversas considerações permitem admitir que os países favorecidos


aceitarão este esforço de solidariedade; terão, desta vez, assegurado a
eficácia do seu concurso e as suas despesas iniciais poderão ser amortizadas
pelo fato de a ajuda da gestão se tornar menos indispensável logo que o
reequipamento tecnológico dê os seus primeiros efeitos positivos. (FAURE,
1972, p. 38)

Ao final do trecho sobre Cooperação Internacional, o relator ressalta que os


estudos da Comissão não abrangeram as práticas educativas de caráter não formal,
mas adverte sobre a sua importância principalmente a partir daquela década, para
repensar a relação educação e cidade. Faure (1972) afirma que

O conhecimento não chega a constituir a cultura. A Comissão não teve a


possibilidade de estender de maneira ideal nas proporções desejadas o
objeto de seu estudo ao conjunto das funções educativas extrínsecas,
incluindo o conjunto das relações da família, da profissão, da cidade, dos
grupos sociais, das comunidades profissionais e espirituais. Mas todas as
nossas observações confirmaram a certeza de que as cadeias dessas
funções intrínsecas e extrínsecas formam um todo e que os diversos setores
do desenvolvimento humano e da vida social são inseparáveis. (FAURE,
1972, p. 40)

No decorrer de suas páginas apresenta, o Relatório um “esboço histórico”


acerca da Educação, por meio de uma “viagem dum objetivo abstrato através dos
séculos, dos ideais e das formas de educação” (FAURE, 1972, p. 43). Com isso, o
parecer através da perspectiva dos membros da Comissão expõe como o processo
educativo do passado, assim como as suas várias vertentes e funções impactou as
mais diversas sociedades, com suas singulares culturas e tradições.

Ao final desse capítulo a Comissão conclui que sob essa perspectiva histórica,
a Educação “tem um passado mais rico que a relativa uniformidade de suas estruturas
atuais poderiam pensar”, ao mesmo tempo em que

Hoje pensam dogmas e usos caducos e sob esse aspecto, frequentemente,


as velhas nações são apresentam menos anacronismos nos seus sistemas
de ensino do que nos jovens Estados. Deste modo, é uma dupla tarefa, ao
mesmo tempo de restituição e de renovação, que nos parece convir à história
da educação. (FAURE, 1972, p. 38)

A Comissão salienta também a função da Educação nos tempos atuais que se


mostra cada vez mais extensa e complexa comparando com a que tinha no passado,
o que a torna essencial o “esforço do desenvolvimento e do progresso humano e toma
um lugar cada vez mais importante na elaboração das políticas nacionais e
internacionais” (Faure, 1972). Em seguida, destaca três fenômenos novos mais que
101

merecem receber devida atenção “tanto sobre o plano doutrinal como sobre o plano
prático”

O primeiro parece-nos ser este: enquanto no decurso de séculos,


principalmente nos países da Europa que inauguraram o processo de
revolução industrial, o desenvolvimento da educação seguida, geralmente,
mais ou menos de longe o crescimento econômico, mas pela primeira vez
sem dúvida na história da humanidade o desenvolvimento da educação
considerada à escala planetária tende a preceder o nível do desenvolvimento
econômico. (FAURE, 1972, p. 55)

Outro fato sociológico e não menos importante para o futuro é que pela
primeira vez na história, a educação empenha-se conscientemente em
preparar os homens para tipos de sociedade que não existem ainda. Com o
decorrer dos anos a educação teve geralmente por função reproduzir a
sociedade e os temas sociais existentes; esta mutação explica-se facilmente
se se comparar a estabilidade relativa das sociedades passadas com a
evolução acelerada das sociedades contemporâneas. (FAURE, 1972, p. 55)

Faure (1972) chama atenção para estes dois momentos apresentados sobre o
papel da educação na sociedade, no contexto socioeconômico da década em que as
missões foram realizadas para o desenvolvimento da pesquisa deste Relatório, cujo
momento repercutia o início da sociedade sob a influência do meio técnico-cientifico
e informacional, a educação e o conhecimento passar a ser parte integrante e
necessária à cadeia produtiva. Além disso, evidencia o seu papel de formador, o que
prepara as demandas da vida em um novo tipo de sociedade, principalmente àquelas
que viviam nas grandes cidades mundiais, daquele momento.

O terceiro fato significativo: a contradição que surge entre os produtos da


educação e as necessidades das sociedades. Com efeito, enquanto até aqui
as sociedades em lenta evolução (abstração feita a curtas fases de mutação)
absorviam facilmente e de boa vontade os produtos da educação, ou pelo
menos acomodavam-nos, hoje já não acontece no mundo. Pela primeira vez
na história, as diferentes sociedades começam por rejeitar um grande número
de produtos oferecidos pela educação institucionalizada. (FAURE, 1972, p.
57).

Neste terceiro fenômeno, observa o advento de uma nova demanda da


sociedade que passou a rejeitar os produtos de uma educação institucionalizada e
padronizada e desejava um produto educacional compatível aos novos anseios da
época. Com isso, Faure (1972) ressalta um outro fenômeno observado no que diz
respeito às estruturas da educação às quais apresentam características e tendências
comuns. Segundo o autor
102

A despeito de todas as diferenças culturais, históricas, econômicas,


ideológicas que podem existir entre os países e mesmo, regional ou
sectorialmente, no interior dum país, é interessante e reconforta verificar que
a tarefa educativa reveste nos nossos dias o caráter dum empreendimento
mundial. (FAURE, 1972, p. 58).

É importante lembrar que no século passado, a tarefa de educar residia na


família, nas escolas subvencionadas, nas instituições religiosas e nas escolas
voltadas à educação profissional. Nos dias de hoje, a educação é tarefa do Estado,
representa um direito. Faure (1972) argumenta que tal responsabilidade resulta de
três razões:

A primeira resulta duma tendência geral de contar com os organismos


públicos para satisfazer as necessidades sociais; a segunda é que em quase
todos os países se considera que é ao Estado, visto que ele próprio admite
ou, em certos casos, encoraja as iniciativas privadas que compete assumir a
responsabilidade global da política educacional; a terceira é que numerosos
governos, conscientes da importância do papel político crescente da escola,
fazem por assegurar o seu controle. (FAURE, 1972, p. 60).

Além de destacar “o caráter de empreendimento mundial”, e citar as razões


pelas quais o Estado tornou-se responsável pela política educacional, segundo a sua
concepção, além de propor alguns questionamentos sobre as políticas educacionais
à época de suas pesquisas, mas que ainda nos dias atuais, são pertinentes à
realidade da educação em nossos dias. O relator pergunta “como realizar a expansão
quantitativa da educação, a democratização do ensino, a diversificação estrutural dos
sistemas educativos, a modernização dos conteúdos e métodos”. (FAURE, 1972, p.
69)

Ao partir dessas perguntas, especialmente passíveis de correlação com a


realidade contemporânea, o autor segue problematizando sobre a questão
educacional ao questionar se “os sistemas escolares serão capazes de satisfazer a
procura mundial por educação? Será possível dar-lhes os formidáveis meios de que
necessitam? Será possível prosseguir o desenvolvimento da educação na via traçada
e na cadência fixada?”. (FAURE, 1972, p. 69)

A essas indagações sobre a responsabilidade e do papel da educação para as


futuras gerações, ressalta-se a visão da Comissão ao afirmar que

Concluímos exprimindo a esperança de que as autoridades nacionais


responsáveis pela educação, apoiando-se na assistência que lhes oferecem
103

para este efeito as instâncias internacionais, reconhecerão a necessidade,


primordial, de situar os problemas da educação numa perspectiva global e de
procurar respostas para esta inquietação fundamental: o instrumento
educativo, tal como é concebido, corresponderá realmente às necessidades
e às aspirações dos homens e das sociedades do nosso tempo? (FAURE,
1972, p. 69).

Logo na abertura do capítulo sobre Progresso e Barreiras as indagações sobre


a situação da educação pelo mundo, seguem algumas hipóteses propostas pelos
pesquisadores, como

Tradições e estruturas herdadas do passado com seu tesouro de aquisições


e experiências, mas também o peso dos vestígios que arrastaram consigo,
exigências novas impostas à educação pelas condições do nosso tempo, com
o movimento de ideias, as iniciativas, as experiências que nela suscitam; os
resultados positivos, ainda que contraditórios, o esforço do desenvolvimento
escolar realizado no período. (FAURE, 1972, p. 70).

Nesse contexto de questionamentos o relatório cita como os dados estatísticos,


instrumento comumente utilizado para expor um panorama da situação, nesse caso,
da educação nos diversos países analisados, podem se mostrar ambíguos, uma vez
que

As estatísticas revelam uma dupla imagem: por um lado, o aumento


constante do número de indivíduos que querem ou deveriam entrar no ciclo
escolar, assim como a expansão verdadeiramente extraordinária das
atividades educativas no decurso dos últimos decênios; por outro lado, os
impasses aos quais esta expansão parece conduzir e a flagrante
desigualdade da divisão geográfica e social nos meios disponíveis. (FAURE,
1972, p. 71).

O texto adverte sobre o caráter subjetivo de se usar a estatística como


instrumento de análise, já que “as estatísticas, por muito objetivas que sejam, valem
o que vale o uso que delas fazem os seus apresentadores e os seus leitores”. (FAURE,
1972, p. 71). O autor segue com as análises sobre as estatísticas da educação ao
destacar as suas duas fontes principais, que seriam os dados fornecidos pelas
instituições de ensino e dos dados advindos do recenseamento populacional.

Segundo o relatório, é possível que erros significativos sejam detectados


quando se compara com países, com estruturas administrativas de tratamento e
controle desses dados. Além disso, as repostas do recenseamento muitas vezes são
imprecisas graças as “condições que não podem ser geralmente controladas”.
104

Partindo das advertências e precauções propostas para a análise das


informações estatísticas dos países comparados, o Relatório discorre ao longo de
mais de setenta páginas sobre dados demográficos, considerações políticas, níveis
de escolarização de alunos pelos países dos continentes analisados, dados sobre
expansão escolar, despesas orçamentárias, distribuição de recursos financeiros,
desequilíbrios e desigualdades regionais, distribuição de professores, meios de
informação e fracassos parciais.

Ao enumerar os requisitos de análise estatísticas dos países, o relator faz uma


observação que ele considera como um “fracasso parcial” no que se refere às políticas
educacionais, que os encontros organizados pela UNESCO na década de 60, que
contavam com a presença de ministros da Educação, ao mesmo tempo em que foram
responsáveis pelo reconhecimento das necessidades dos sistemas educacionais,
bem como um planejamento para “enunciar ambiciosos objetivos regionais de
escolarização”.

O relator adverte ainda que considerando os sucessos gerados em alguns


casos os resultados não foram satisfatórios, ficando, portanto, aquém do que
esperavam. Assim, constatou-se que as desigualdades educacionais entre os países
“já avançados” e os “em via de desenvolvimento” com todas as suas dificuldades já
apresentadas e “inevitáveis” foram acentuadas ainda mais. Faure (1972) relata que

Apesar das esperanças suscitadas há uma vintena de anos, a educação não


fez até aqui exceção à cruel regra de nossa época, que tende a gerar no
mundo uma disparidade enorme na repartição dos bens e meios. O fato é
tanto mais grave quanto a educação é o instrumento indispensável do
conhecimento científico e técnico, que constitui ele próprio, uma das
condições fundamentais do sucesso e dos esforços desenvolvidos nos países
em vias de desenvolvimento. Isto não implicará que, paralelamente as
atividades educativas empreendidas nos quadros nacionais em favor da
categoria deserdadas do povo, a solidariedade internacional se dedique à
tarefa de atacar mais vigorosamente as disparidades que persistem ou se
agravam, quando à educação, entre as nações do mundo? (FAURE, 1972, p.
110).

Após a constatação sobre os efeitos de continuidade e, também, de


agravamento do desequilíbrio nos sistemas educativos e os efeitos desiguais entre
países, o relatório trata em seu terceiro capítulo sobre a Educação como “produto e
fator da sociedade”. Faz- se necessário também, para efeitos desse trabalho, analisá-
lo como forma de entendimento da perspectiva e considerações a respeito da
105

educação pelo mundo, que a comissão apresenta sob a forma do relatório publicado
ainda na década de 70, que se popularizou e serviu de base para ações de educação
urbana até os dias de hoje.

O terceiro capítulo inicia-se explicando sobre a escolha pelo viés quantitativo


de análise dos sistemas educativos encontrados nos diferentes países pesquisados,
porém entendo que este caminho não era a melhor alternativa a seguir, por
entenderem que “as questões essenciais são questões de substância: relação entre
educação e sociedade, entre educação e educando, entre educação e o saber, entre
os fins declarados e os fins realizados”. (FAURE, 1972, p. 111).

O autor ressalta o papel dialético entre educação e sociedade ao expor que, ao


mesmo tempo em que ela representa um importante “instrumento da conservação,
recondução dos valores e das relações de forças existentes”, no dia-a-dia, seja pela
vivência dos professores, dos alunos e seus pais, nas práticas pedagógicas e dos
diversos contextos onde tais práticas são exercidos, “aparece infinitamente complexa,
e verifica-se tanto a extensão do poder libertador da educação como as suas
incapacidades, as suas faltas e as suas coerções”. (FAURE, 1972, p. 111).

Nesse contexto, ao mostrar o caráter contraditório da relação educação e


sociedade o relatório segue exemplificando quatro concepções desta relação: uma
posição idealista na qual a educação “existe em si e para si”. Uma concepção
voluntarista segundo a qual “a educação pode e deve transformar o mundo” mesmo
que esta não considere as mudanças provenientes nas estruturas da sociedade. Uma
concepção baseada no determinismo mecanicista “para quem as formas e os destinos
da educação são comandados de forma direta, e mais ou menos sincronizada, pelo
jogo de fatores do ambiente”. E por último, uma concepção que sintetiza ao mesmo
tempo

O determinismo, do idealismo e do voluntarismo e cujos defensores postulam,


por um lado, que a educação reproduz, agrava e perpetua os vícios das
sociedades à exceção duma transformação radical da sociedade; por outro
lado, contraditoriamente, que a educação pode ser o teatro duma revolução
interna antecipada, que será o prelúdio para a revolução social. (FAURE,
1972, p. 112).
106

Ao explicitar as diferentes concepções sobre a relação da educação com a


sociedade, a Comissão observa que tais visões se justificam, porém nenhuma seria
capaz de dar conta da realidade e afirma

Quanto a nós, consideramos que existe com efeito uma correlação estreita,
simultânea e diferenciada, entre as transformações do meio socioeconômico
e as estruturas e os modos da ação educativa, e além de que a educação
contribui funcionalmente no movimento da história. Mas parece-nos mais que
a educação, pelo conhecimento que ela dá no ambiente onde se exerce, pode
ajudar a sociedade a tomar consciência dos seus próprios problemas, com a
condição de centralizar os seus esforços na formação de homens completos,
conscientemente comprometidos na via da sua emancipação coletiva e
individual, e pode contribuir grandemente para a transformação e para a
humanização da sociedade. (FAURE, 1972, p. 113).

Assim, a Comissão reitera a visão de que a educação é responsável por


transformar a vida dos sujeitos, onde cada indivíduo se reconhece e reconhece o seu
papel de agente da própria realidade e o seu potencial transformador da sociedade,
de forma comprometida e coletiva, além de reconhecer que o processo educativo
acontece ao longo de toda a vida, destacando, portanto, a função permanente da
Educação.

Ligar a educação à vida, associá-la a objetivos concretos: estabelecer uma


correlação estreita entre sociedade e a economia; inventar ou redescobrir uma
educação em estreita simbiose com o ambiente – é com certeza, neste sentido que
devem procurar os remédios.

Durante muito tempo, o ensino teve por missão preparar para as funções-
tipo, para as situações estáveis; para um momento da existência; para um
ofício determinado ou um dado emprego; inculcar um saber convencional,
ancestralmente delimitado. Esta concepção prevalece ainda com demasiada
frequência. Contudo, é obsoleto o objetivo de adquirir na juventude bagagem
intelectual ou técnica suficiente para a duração de toda a existência. É um
axioma fundamental da educação que se desmorona. Aprender para viver;
aprender a aprender, de maneira a poder adquirir conhecimentos novos ao
longo de toda a vida; aprender a pensar de maneira livre e crítica; aprender a
amar o mundo e a torná-lo mais humano; aprender a desenvolver-se no e
pelo trabalho criador. (FAURE, 1972, p. 130).

Ao relacionar o processo educativo ao ato de se educar de forma permanente


e para a vida, abre-se a discussão sobre os caminhos da democracia no acesso à
educação. Destaca-se que por democracia educativa, entende-se não somente do
107

resultado do crescimento do número de escolas, bem como da ampliação das


possibilidades de acesso ao estudo. Segundo Faure (1972)

A democratização da educação só é possível sob a condição que se liberte


dos dogmas da pedagogia tradicional6, que se institua um livre e permanente
diálogo no ato educativo, que este crie um novo processo pessoal de tomar
consciência existencial, e oriente em qualquer ocasião o estudante para a
autodidaxia – numa palavra, que o aluno transforme de objeto em pessoa. A
educação é tanto mais democrática quanto se reveste com caráter duma
ascensão livremente procurada, duma conquista, duma criação, em vez de
ser – presente ou coação – uma coisa dada ou inculcada. (FAURE, 1972, p.
137).

Ainda sobre o entendimento sobre o processo de democratização da educação,


o relator argumenta que a busca por igualdade do ensino perpassa pela concepção
de uma pedagogia personalizada, isto é, baseada nas aptidões de cada indivíduo e
na igualdade de oportunidades.

Assegurar oportunidades iguais a cada um não consiste, como ainda se julga


geralmente, em garantir um tratamento idêntico para todos, em nome duma
igualdade formal, mas sim em oferecer a cada indivíduo um método, uma
cadência, formas de ensino que lhe convenham a ele mesmo. (FAURE, 1972,
p. 138).

Ao discorrer sobre a relação professor/aluno, o Relatório demonstra uma


perspectiva pouco gentil e descontextualizada sobre o papel do docente no processo
educativo. Observa-se que a crise da educação encontra suas causas nas
desigualdades de acesso ao ensino, a insegurança e relação às informações contidas
nas estatísticas e instituições de análise, acaba por colocar o professor também no
centro do problema. No entendimento da Comissão Educação da UNESCO,

É a relação professor/aluno onde repousa o edifício da instrução tradicional,


que pode e deve, nesta perspectiva, ser considerada na base, na medida em
que se reveste do caráter duma relação de dominador com o dominado,
fortificada por um lado pelas vantagens conjugadas da idade, do saber e da
autoridade indiscutível, e da outra parte pela situação de inferioridade e de
submissão. . (FAURE, 1972, p. 140).

6 Entendimento do conceito de Pedagogia Tradicional pela Comissão da UNESCO: “O que domina na


pedagogia tradicional é a noção de modelo, que dizer, dum tipo de homem que serve de referência. O
elemento motos desta pedagogia não é o desenvolvimento do indivíduo, o que implicaria ter como
referência continuada a sua liberdade, a sua responsabilidade, e não a aquisição máxima dos
conhecimentos recebidos”.
108

Porém, a Comissão ressalta a necessidade de se repensar o papel do professor


diante da proposta de Educação Permanente, onde a sua principal tarefa seria a de
despertar o pensamento ao invés de somente ministrar conhecimentos., pois “sem
esta evolução nas relações entre educandos e educadores, não pode haver a
autêntica democratização da educação”.

Para concluir este capítulo onde a Comissão apresenta claramente acerca dos
desafios e perspectivas futuras da Educação observa-se, em alguns momentos, uma
visão utópica, realista e algumas vezes pouco contextualizadas. Nesse contexto, faz-
se necessário destacar o texto que finaliza tal parte do livro, no que se refere
especificamente ao processo de democratização da educação.

A existência no universo da educação duma democracia, senão perfeita


(onde e quando se verá isto?) mas pelo menos real, concreta, prática, uma
democracia não estabelecida e inspirada por uma burocracia ou uma
tecnocracia, nem concebida por uma casta no poder, mas uma democracia
viva, criadora, evolutiva, não é um projeto ilusório. Mas a sua realização tem
por condição primeira uma transformação das estruturas sociais capaz de
reduzir os privilégios da herança cultural. Supõe por outro lado, uma
modificação das estruturas educativas, permitindo um amplo alargamento
das escolhas; uma reestruturação da educação no sentido da educação
permanente; a individualização dos conteúdos; a tomada de consciência
pelos alunos, da situação, direitos e vontades próprias; o enfraquecimento
das formas autoritárias de ensino, em proveito dos ideais de autonomia, de
responsabilidade e de diálogo; uma formação pedagógica dos professores
centralizada sobre a consciência e o respeito dos múltiplos aspectos da
personalidade humana; a substituição da seleção pela orientação; a
participação dos utilizadores na elaboração das orientações e na gestão das
instituições educativas; a descentralização e a desburocratização da ação
educativa. (FAURE, 1972, p. 144).

Em seguida, o relatório inicia um capítulo de título A propósito de algumas


ideias feitas no qual busca argumentar sobre as suas considerações, como forma de
“mostrar a necessidade de reconsiderar pela base as estruturas da educação e seus
conceitos” (FAURE, 1972, p. 145). Porém, esta parte do relatório apresenta algumas
“ideias adquiridas” no decorrer das missões pelos vinte e três países pesquisados.

Sobre os problemas encontrados nos países “em vias de desenvolvimento” e a


ideia de que o progresso viria necessariamente pelo desenvolvimento das forças
produtivas e do crescimento da economia nacional, tal como um modelo dos “países
desenvolvidos”. A Comissão argumenta que
109

Tanto num aspecto como no outro, fomos conduzidos assim a subestimar a


amplitude, a especificação e complexidade dos problemas, a dissimular o fato
de que as transformações econômicas e sociais profundas são condição
essencial da solução dos conflitos sociais, a desprezar as consequências das
tensões e das deformações criadas pelas disparidades de rendimentos e as
discriminações, e sobretudo a desconhecer a importância capital, no
processo do desenvolvimento, da participação direta e do concurso ativo das
populações. (FAURE, 1972, p.146).

Ainda segundo as considerações a respeito da ideia de seguir modelos, a


Comissão pondera que

Enquanto se acreditar na existência duma correlação simplista entre a taxa


de crescimento e a estruturação da educação, ficar-se-á pelos sistemas de
formação profissional decalcados em dados conjunturais do mercado de
trabalho sem reconhecer que a inserção na vida produtiva não necessita
somente duma formação com vista a um emprego imediato, mas também, e
sobretudo, duma preparação visando uma melhor mobilidade profissional.
(FAURE, 1972, p.147).

O texto segue ao demonstrar as considerações da Comissão com a relação à


Educação e Escola.

Esta identificação da escola com a educação persistirá enquanto não for


implantada a ideia duma educação impregnando o devir das pessoas mais
ou menos continuamente, longamente ou a intervalos, sempre ao longo da
existência, ao mesmo tempo que cada vez mais francamente se libertar a
imagem da educação como um projeto contínuo de toda a sociedade, com
escolas, mas também com seus múltiplos modos de comunicação, e a massa
organizada, diversificada e articulada dos seus cidadãos livres. (FAURE,
1972, p.147).

O relator reitera também, a perspectiva da Comissão sobre o processo de


educação permanente, que inclui outros ambientes além do escolar e durante todas
as fases da vida, não somente na idade infantil ou juvenil. Logo,

Persiste-se em acreditar que o processo educativo se situa de preferência


nos limites da infância e da idade juvenil e que deve procurar munir cada
pessoa, ao sair do último ciclo percorrido, com uma bagagem de
conhecimentos e de saber-fazer válida até ao fim da existência. (FAURE,
1972, p.148).

E conclui o capítulo sobre as considerações ao apresentar uma reflexão


Mas muitas vezes ainda, a discussão destes assuntos transforma-se em vãs
disputas. Vãs pelo menos para aqueles que a vida se encarregou de dividir,
110

porque nenhuma ideia envelhecida se poderá manter muito tempo contra as


necessidades jovens. (FAURE, 1972, p.149).

Com o capítulo de título O tempo das interrogações, inicia-se a segunda parte


da publicação. Neste capítulo, a Comissão apresenta as incertezas e indagações a
respeito dos sistemas educativos, o desenvolvimento técnico-científico, bem como
questões como as desigualdades de aplicação tecnológico entre os países, a questão
ambiental. Para efeitos deste trabalho, serão ressaltas algumas questões que se
aproximam do objetivo de refletir, principalmente neste momento, sobre as bases e
influências do projeto espanhol, Cidades Educadoras. O relatório ressalta que os
sistemas educativos recebem ao mesmo tempo pressões internas e externas.

As pressões internas resultam das próprias disfunções e contradições, e


vimos que os impasses atuais são tais que o desenvolvimento ulterior da
educação exige uma reorientação estratégica e a revisão de numerosas
opções. No entanto, a experiência do passado mostra que estas tensões e
estas pressões internas não bastam para por si sós criar a transformação das
estruturas educativas. As pressões externas são particularmente fortes na
nossa época. Revestem-se de formas novas, provocam bruscas evoluções,
choques, contragolpes, mudam e redistribuem os dados. Na atual situação,
onde nos aparece com evidência que não se pode continuar mais na via
seguida, mas se hesita no caminho a seguir, é principalmente desses fatores
exteriores que resultará a orientação da ação. (FAURE, 1972, p. 153).

Nas páginas que se seguem, o Relatório perpassa por informações


quantitativas, pincipalmente a respeito das diferenças socioeconômicas e
demográficas entre os “países ricos” e os “países pobres” na década de 60 e reafirma
a posição de que o caminho para a transformação seria por meio da educação, pois
segundo o relatório “tais são as orientações que a educação deveria seguir, porque é
inegável que sofre da penetração dos desequilíbrios e dos obstáculos econômicos ou
sociais, mas que pode contribuir para os resolver se os atacar seriamente”. (FAURE,
1972, p. 169).

A Comissão cita o papel da democracia como um meio de transformação, mas


também como uma ameaça e ainda na década de 60, demonstra preocupação com o
poder dos meios de comunicação para produzir “iniquidades, alienações e novas
tiranias”.
111

O futuro das nossas sociedades é a democracia, o desenvolvimento, a


transformação. O homem que as sociedades têm de formar é o homem da
democracia, do desenvolvimento humanizado e da transformação.

Por um lado, o progresso das técnicas de comunicação e de informação dá


aos governos, assim como aos grupos privados, meios mais eficazes de
intervir na vida dos indivíduos e moldar as suas opiniões. Por outro lado, se
o homem dispõe de muito mais informações e possui mais conhecimentos
que os seus antepassados, o seu saber obscurece muito mais do que
esclarece a percepção da totalidade do real. As verdadeiras forças dos
poderes políticos que a maior parte das constituições, sincera ou
enfaticamente, lhe conferem fogem-lhe frequentemente, e a sua participação
no processo de decisão esbarra em numerosos obstáculos. (FAURE, 1972,
p. 172).

Evidencia-se a importância do fortalecimento das práticas democráticas como


forma de reconhecimento e demanda dos indivíduos sobre o seu papel coletivo, na
vida pública.

O ensino da democracia não pode mais separar-se da prática política; deve


simultaneamente dar aos cidadãos bases sólidas de conhecimento em
matéria socioeconômica, e desenvolver a sua capacidade de julgamento;
incitá-los a comprometerem-se de maneira ativa na vida política, social,
sindical, cultural, tudo isto ajudando-os a guardar intacto o livre arbítrio e a
preservar a autenticidade das suas escolhas; ensiná-los a defender-se das
propagandas abusivas e das mensagens onipresentes e tentadoras das
comunicações de massa, e dos riscos da alienação ou mesmo da contra-
educação que comportam. (FAURE, 1972, p.173).

Assim, no ensino da democracia, bem como no papel da educação para a


efetivação de práticas políticas, Faure (1972) afirma que a

A educação tem igualmente duas dimensões: deve preparar para a


transformação, tornar todos os homens aptos a aceitar e a aproveitá-las,
criando um estado de espírito dinâmico, não conformista e não conservador.
Paralelamente, deve representar o papel de antídoto para as numerosas
deformações do homem e da sociedade; porque uma educação
democratizada deve poder remediar a frustração, a despersonalização e o
anonimato no mundo moderno, da mesma maneira que a educação
permanente pode atenuar a insegurança em benefício duma otimização de
mobilidade profissional. (FAURE, 1972, p.175).

Em seguida, no capítulo “Fatos que constrõem o futuro” o relatório segue


expondo argumentos sobre o processo de renovação da educação, justificada pelas
“disfunções das práticas educativas”, em um contexto daquela época, porém passível
112

de aplicação nos dias de hoje, de transformação das estruturas socioeconômicas e


pela revolução científica e tecnológica.

Na própria esfera da educação destacam-se novas formas educativas:


tendência para tornar flexíveis organizações rígidas, articulação da instituição
educativa com o meio social, redistribuição dos empregos e das funções
internas, substituição das funções autoritárias por estruturas de participação,
aparecimento das noções de ambiente (environnment) e de meio educativo
total, individualização, sistemas e programas modulares. (FAURE, 1972,
p.177).

Dentro do contexto de proposição de novas formas e práticas educativas, o


relatório segue apresentando correntes da pedagogia, os recursos da psicologia,
formação do processo cognitivo, contribuição da antropologia, sobre teoria da
informação, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, teoria e tecnologia da
informação, os meios de informação, inovações da prática docente, a modificação do
papel do professor, sobre mudança na arquitetura escolar, a educação como fator de
libertação e dentre outros.

Porém, merece destaque e uma observação minuciosa acerca da visão da


Comissão sobre a Elaboração do conceito de Educação Permanente e processo
educativo global, conceitos fundamentais para a proposta de Educação Urbana e para
o Projeto Cidades Educadoras, foco principal deste trabalho.

Curiosamente, o conceito de educação permanente aparece em pesquisa no


google, relacionado à área da saúde, o que me parece pertinente, mas não se
encontra a associação com propostas de educação para a cidadania, educação
urbana, ambiental, etc. Sobre a elaboração do conceito de educação permanente, o
relator explica que

A noção de continuidade do processo educativo não é nova.


Conscientemente ou não, o homem não cessa de se instruir e de se educar
ao longo de toda a vida; primeiro sob a influência dos meios onde se situa a
sua existência, ou existências sucessivas, depois pelo efeito das experiências
que modelam os seus comportamentos, concepções da vida e conteúdos do
saber. As exigências do desenvolvimento social econômico e cultural das
sociedades do século XX determinam que centenas de milhões de adultos
necessitam de educação, não só como no passado, pelo prazer de
aperfeiçoar os seus conhecimentos de contribuir no desenvolvimento
pessoal, mas para poder fazer face às necessidades das sociedades e
ofereçam-lhes as máximas potencialidades duma coletividade educada.
FAURE, 1972, p.223).
113

Ainda sobre as considerações acerca do processo educativo global,

A partir de agora, a educação não se define mais em relação a um conteúdo


determinado que se trata de assimilar, mas concebe-se, na verdade, como
um processo do ser que, através da diversidade das suas experiências,
aprende a exprimir-se, a comunicar, a interrogar o mundo e a tornar-se
sempre mais ele próprio. A educação tem lugar em todas as idades da vida e
na multiplicidade das situações e das circunstâncias da existência. Retoma a
verdadeira natureza, que é ser global e permanente, e ultrapassa os limites
das instituições, dos programas e dos métodos que lhe impuseram ao longo
dos séculos. FAURE, 1972, p.225).

Partindo das conceituações e considerações acerca do processo educativo, o


relatório inicia as proposições Para uma Cidade Educativa. Assim, ao apresentar as
orientações para uma cidade educativa, o relator sugere destaca a importância de se
pensar numa política educativa, sendo esta, a primeira fase para as escolhas
necessárias em nome da coletividade. Para Faure (1972) “toda política de educação
reflete as opiniões políticas, as tradições e os valores dum país, assim como a ideia
que se faz do seu devir; é por conseguinte em primeiro grau uma função que depende
da soberania nacional”. (FAURE, 1972, p. 256)

E para se pensar numa política educativa, segundo o relator, é preciso


estabelecer os objetivos e a estratégia com fins operacionais da política. Nesta
perspectiva, uma política educativa não deve estar restrita a “proclamação de alguns
princípios diretores”, mas

Deve compreender um conjunto de objetivos específicos, solidamente


estruturados: primeiro, objetivos gerais de ordem espiritual, filosófica e
cultural, refletindo uma certa concepção do homem; em seguida, objetivos
políticos, correspondendo às grandes opções da comunidade nacional;
objetivos de ordem socioeconômica, fixando os fins a atingir em função duma
certa concepção da sociedade e do desenvolvimento; depois, vastos
objetivos educativos, definindo as grandes orientações a dar ao sistema
educativo com, vista a alcançar os objetivos extra - escolares que lhe
destinam; enfim, objetivos propriamente educativos, traduzindo as
orientações fixadas aos diferentes tipos e aos diferentes níveis de instituição
e de ação do sistema educativo. (FAURE, 1972, p. 256)

No que diz respeito ao conceito de estratégia, ela teria como fim traduzir a
política educativa, segundo um conjunto de decisões e ações a serem realizadas
buscando prever situações futuras. De acordo com o relatório, o conceito de estratégia
114

envolveria três noções: “a organização de elementos reunidos num conjunto coerente;


a previsão de qualquer contingência no desenvolvimento dos acontecimentos e a
vontade de fazer face ao acaso e dominá-lo”. (FAURE, 1972, p. 257)

Especificamente relacionado às estratégias educativas, com vistas a “ideia de


cidade educativa”, o relatório indica que é preciso seguir por dois caminhos: “uma
reforma interna e melhoria constante dos sistemas educativos existentes”, além da
“procura por formas inovadoras, de alternativas e de recursos novos”. Ainda ressalta
o caráter singular de cada nação e de problemas no campo da educação, e propõe
“descentralizar e diversificar as estratégias nacionais dando uma maior ou menor
margem às iniciativas locais”. (FAURE, 1972, p. 266)

Entende-se que cada sociedade poderá se basear em noções e orientações


comuns, sobre as ações que necessita formular, porém isto não invalida as
especificações tanto nas escolhas quanto das estratégias que cada país irá tomar.
Uma vez que

Nacionais na sua substância e soberanas nas suas opções, as estratégias


educativas podem também encontrar inspirações no contexto internacional
ou regional, e recolher úteis exemplos no tesouro comum da experiência
educativa de todos os países. (FAURE, 1972, p. 266)

E para que as estratégias sejam bem-sucedidas, as reformas internas dos


sistemas educacionais precisam ocupar um lugar na estratégia global do
desenvolvimento, segundo alguns aspectos importantes que merecem ser
destacados, face às propostas apresentadas no relatório. Porém, é imprescindível
lembrar que tais observações e proposições estão no contexto da década de 70.

De acordo com Faure (1972) é preciso um “encorajamento de cima”, pois “não


se pode separar as reformas internas da procura de alternativas nas práticas
educativas existentes”, uma vez que “a capacidade de realizar reformas parciais é,
num sistema educativo, sinal de vitalidade e a garantia da sua capacidade em se
submeter a transformações mais profundas”. (FAURE, 1972, p. 270)

Outro aspecto ressaltado, é que “em muitos países a investigação em


pedagogia e nas ciências conexas está insuficientemente desenvolvida”. Segundo o
relator, ainda estão sem as devidas análises, questionamentos nas áreas de
psicologia, pedagogia e tecnologia educativa. “Sendo assim, as reformas
115

desempenham efetivamente e praticamente uma função de experimentação”.


(FAURE, 1972, p. 270)

No que diz respeito à participação de base, onde as reformas internas se


mostraram ineficazes, aconteceu algum “erro de coordenação ou a discordância das
instruções vindas “de cima” e das iniciativas vindas “de baixo”. Desta forma, o relator
sugere que os responsáveis pelas políticas educativas deveriam criar algum tipo de
instrumento que possibilite promover a inovação, além de criar práticas de divulgação
das experiências e reformas bem-sucedidas. Desta forma, nas reformas o papel
docente aparece como agente do sucesso ou do fracasso das reformas,

Onde tudo se passa como se devesse agir sobre eles, para eles sem dúvida,
mas raramente com eles. (...) não é às reformas internas que os professores,
no seu conjunto, opõem resistência, são as condições em que lhes são
apresentadas, para não dizer importas, que lhes desagradam. Donde a
importância de associar ativamente os educadores a todo empreendimento
de reformas das suas atribuições. (FAURE, 1972, p. 270)

De acordo com o relator as reformas nos sistemas educativos no mundo se


fazem necessário para que novas estruturas sejam criadas e com base na
participação dos docentes, ou seja, é preciso contar com a participação daqueles que
estão envolvidos diretamente com o processo.

Assim, um princípio fundamental para uma nova perspectiva das políticas


públicas educativas, reside no conceito de educação permanente. A definição e a
justificativa de sua importância perpassa todo o conteúdo do relatório. Para Faure
(1972) portanto, “todo indivíduo deve ter a possibilidade de aprender durante a vida
inteira. A ideia de educação permanente é a pedra angular da Cidade Educativa”.
(FAURE, 1972, p. 271)

A Comissão apresenta explicitamente como uma recomendação e proposição


sobre a educação permanente “como ideia mestra das políticas educativas para os
anos vindouros. E isto tanto para os países desenvolvidos como para os países em
vias de desenvolvimento”. (FAURE, 1972, p. 272)

Outro aspecto que envolve o processo de educação permanente se relaciona


com a ideia de “redistribuição dos ensinamentos”, segundo o relator “restituir à
116

educação as dimensões da existência vivida, redistribuindo o ensino no tempo e no


espaço”. (FAURE, 1972, p. 273)

Isto significa que o indivíduo teria o seu processo educativo extensivo à toda a
sua vida, não somente restrito à sua vida escolar, mas utilizando de outros meios para
fins educativos, seja pelas instituições ou pelas atividades sociais e culturais, por
exemplo. Segundo o relatório, “as instituições e meios educativos devem multiplicar-
se e tornar-se mais acessíveis; devem oferecer uma escolha muito mais diversificada.
A educação deve alargar-se às dimensões dum verdadeiro movimento popular”.
(FAURE, 1972, p. 274)

Desta maneira, outros dois aspectos complementares à ideia de educação


permanente são sugeridos, o de diversificação e desformalização das estruturas
tradicionais. Nesse sentido, “todas as vias – formais e não formais, intra- institucionais
ou extra- institucionais – poderiam em princípio reconhecer-se como igualmente
válidas. (FAURE, 1972, p. 277)

Com base nesses dois aspectos, propõe-se uma “dessacralização” de algumas


instituições escolares, na medida em que elas passariam a atuar “fortemente
elaboradas”; além de se expandir os “circuitos de ensino” tanto pela multiplicação do
quantitativo de escolas quanto pela criação de escolas “de tipos diferentes, pelo
ensino a tempo parcial e por modalidades extra - escolares”. Nesse sentido, a
Comissão recomenda “permitir a cada um escolher o seu caminho mais livremente,
num quadro mais flexível do que o que existe em muitos países, sem ser forçado, se
o abandonar, a renunciar definitivamente aos serviços de instrução”. (FAURE, 1972,
p. 278)

Nesta recomendação de “dessacralização” das instituições escolares


tradicionais, baseada em métodos unificados, o ensino deverá ser elaborado de
maneira, contando também com contexto não formais de educação. Desta forma, a
escola tradicional deixaria, lembrando que estamos no contexto ainda da década de
70, de ser o centro do processo educativo dos indivíduos.

Com essa proposta, juntamente com a perspectiva já apresentada pela


Comissão de Educação Permanente, abre-se o caminho e surge a base de se pensar
117

uma educação além dos muros da escola, aproximando-a dos outros espaços da
cidade e de outras formas, não tradicionais de processo de ensino-aprendizagem.

Tal proposta surge após uma ilustração destacada no Relatório como uma
observação da educação nos países, na medida em que muitos trabalham sob a ótica
da educação permanente, tanto pelas possibilidades e meios educativos oferecidos.
Logo, a Comissão apresenta que

Em quase todos os países, a educação oferece uma ampla gama de formas


e de meios diversos. Por outro lado, a composição do corpo constituído pelos
educandos e os efeitos que daí advém diferem muitíssimo dum lugar para
outro. Apesar desta diversidade, o campo dos recursos e dos programas
educativos disponíveis dos diferentes países tem de comum, do ponto de
vista orgânico, que se estende desde os sistemas fechados 7 e rígidos até os
abertos8 e livres. (FAURE, 1972, p. 278)

Como exemplo de proposta que conjuga sistemas abertos e fechados, tem-se


os estabelecimentos que se destinam a oferecer uma ampla diversidade de atividades
e programas educativos a escolha dos alunos. O relatório cita

As escolas comunitárias que recebem adultos e crianças em momentos


distintos do horário escolar, além dos os centros escolares que agrupam
diferentes categorias de estabelecimentos e facilitam assim a passagem dum
ensino para outro no meio do mesmo complexo; os centros culturais, os
centros de formação técnica que oferecem programas de estudos a vários
níveis consecutivos; as universidades populares; as universidades populares;
as universidades operárias; as universidades livres e outros
estabelecimentos análogos largamente abertos ao público. (FAURE, 1972, p.
281)

Ao tratar sobre a “otimização da mobilidade profissional”, A Comissão entende


que a função da educação esteja tanto centrada na formação do indivíduo quanto na
sua preparação social, tem-se o seu papel de formação para o mercado de trabalho,
a formação profissional, a sua entrada no ciclo da economia. Segundo Faure (1972),
o processo evolutivo das técnicas de produção torna os sistemas de ensino
tradicionais ultrapassados para lidar com as demandas das empresas.

7Por “Sistemas fechados” o relator entende que “tendem a ser seletivos e competitivos em função dos
critérios internos, visando determinar quem deve ou não estudar e em que idades.
8 A Comissão entende que os “Sistemas abertos opõem-se às noções de seleção de competição e

obrigação. A escolha dos cursos e das matérias estudadas, quer seja na aula, ou por leitura, ou de
qualquer outra maneira, depende principalmente dos interesses pessoais do indivíduo.
118

No que diz respeito à preparação para o trabalho e para a vida ativa, a


educação deve ter por fim não só formar jovens para exercer um ofício
determinado, mas acima de tudo prepará-los para se adaptarem a trabalhos
diferentes e se aperfeiçoarem sem cessar, à medida que evoluem as formas
de produção e as condições de trabalho; devem tender assim, a melhorar a
mobilidade e a facilitar as reconversões profissionais. (FAURE, 1972, p. 292)

Nesse caso, a proposta da Educação Permanente também se aplicaria, pois


segundo os argumentos expostos pela Comissão, as empresas, as escolas e as
práticas de educação não- formal, compartilhariam a responsabilidade de formação
técnica. Aos jovens concluintes do ensino técnico, as empresas complementariam a
sua formação, treinando-os para “aprender a adaptar-se às condições e à cadência
do trabalho industrial”.
Para poder responder às suas obrigações crescentes, a educação necessita
de concurso de outras instituições, particularmente dos estabelecimentos que
empregam mão-de-obra por ela formada. Os modos de participação e a
distribuição das tarefas diferem consideravelmente, segundo os países,
desde aqueles em que a formação é dada principalmente pelas empresas,
mas em colaboração íntima tende a impor-se por toda a parte. Nos países
industrializados, os meios econômicos tomaram consciência da necessidade
de melhorar a formação e admitem geralmente que as despesas autorizadas
para esta realização constituem um investimento rendível; em numerosos
países em vias de desenvolvimento, pelo contrário, tem-se ainda tendência
para subestimar a importância da formação no seio das empresas. (FAURE,
1972, p. 294)

Além desta proposta de ensino técnico oferecido pelas empresas, tanto para
formação profissional quanto sob a forma de treinamento direcionado especificamente
ao trabalho da empresa, o relatório também apresenta a proposta de diversificação
do ensino superior. A Comissão justifica tal proposta ao afirmar que diversos fatores
sociais, políticos e econômicos geram transformações no ensino pós-secundário,
“impõem-se uma diversificação ampla das instituições pós-secundárias, com vista a
dispensar um ensino realmente apropriado a uma clientela cada vez mais numerosa
e diferenciada”. (FAURE, 1972, p. 296)

A fórmula “centros de excelência” parece interessante, particularmente, para


os países em vias de desenvolvimento, com a condição de que se situem
efetivamente a um nível conforme às normas internacionais. A aplicação
desses princípios pode naturalmente diferir, segundo o grau de
desenvolvimento e de industrialização dos países; será por consequência
cada vez mais necessário estudar os diferentes modelos possíveis, segundo
os quais os países em vias de desenvolvimento – e sobretudo os países
menos desenvolvidos – poderiam melhorar, diversificar ou, em certos casos,
criar o seu sistema pós-secundário. (FAURE, 1972, p. 297)
119

Observa-se que as proposições da Comissão visando transformar os sistemas


educativos dos países, por meio das convergem para a ideia de formar os cidadãos
além do ambiente e do período escolar, ao longo de toda sua vida. Tais sugestões,
mesmo que algumas possam estar no plano da utopia, já que desconsideram as
singularidades e diversos e diferentes contextos socioeconômicos, culturais e
políticos, eles aparecem como inspiração para os princípios do projeto espanhol
Cidades Educadoras.

Nesse contexto, a sugestão de uma educação autodidata, também aparece no


relatório a partir do argumento de que, com intuito de expandir e também valorizar o
princípio da autodidaxia tem-se a diversificação das possibilidades educativas, além
das facilidades para quem se deseja “educar-se a si mesmo”, pois segundo Faure
(1972) “a nova ética da educação tende a fazer do indivíduo o senhor e o autor do seu
próprio progresso cultural. A autodidaxia, especialmente a autodidaxia assistida, tem
um valor insubstituível em todo o sistema educativo”.

Por meio da sugestão deste princípio surge no relatório uma expressão que se
tornou referência e foi utilizada por diversos autores que refletiram e analisaram
projetos de educação urbana, a ideia de “aprender a aprender”. Para a Comissão, a
autodidaxia não é uma “evolução espontânea do indivíduo. Aprender a aprender – a
expressão não é um slogan qualquer; designa uma tentativa pedagógica que os
docentes devem aprender por eles mesmos se quiser poder transmiti-la”. (FAURE,
1972, p. 308)

Para poder concretizar as suas aspirações à autodidaxia, cada uma deve ter
a possibilidade de encontrar não só na escola e na universidade, mas
também em todos os lugares e circunstâncias em que for possível, processos
e instrumentos capazes para fazer do estudo pessoal uma atividade fecunda.
A aquisição de mecanismos de aprendizagem autônoma e o ter à disposição
amplos meios auxiliares aumentam a eficácia do estudo solitário. Neste
aspecto, importa que nos orçamentos destinados à educação sejam
reservados créditos suficientes para o desenvolvimento da autodidaxia, se
não se quiser permanecer ao nível das declarações de intenção. (FAURE,
1972, p. 308)

Ao argumentar a importância de autodidaxia, pela expressão “aprender a


aprender”, a Comissão sugere que ele deve estar nas discussões e ações de políticas
educativas em todos os países. Acrescenta-se então, o papel das tecnologias
120

educativas nesse processo, graças ao seu papel “acelerador e multiplicador, por meio
dessas novas tecnologias de comunicação, no contexto da década de 70. A utilização
desse “novo” recurso emprega nos sistemas educativos, poderia representar o “ganho
de tempo” se comparado a outros métodos educativos, além de possibilitar o emprego
de docentes qualificados e assim melhorar o rendimento dos alunos, reduzindo o
número de repetições e evasão escolar.

A integração da tecnologia (ao nível do indivíduo que estuda, do grupo que


aprende, da instituição educativa e da comunidade nacional) deveria permitir
a evolução dos sistemas educativos para “sistemas abertos”, introduzindo por
isso redes de distribuição de informação cada vez mais numerosas,
memórias mais fortes e mecanismos de controle e avaliação sucessivamente
mais eficazes. (FAURE, 1972, p. 311)

A Comissão adverte que o emprego em larga de escalas das tecnologias em


comunicação aplicadas ao sistema educativo, só será passível de aplicação em larga
escala, se houver “um amplo movimento que as acolha”. Além disso, não bastaria
apenas adaptar as práticas educativas às essas novas tecnologias, seria preciso
preparar os alunos e torná-la viável financeiramente. No Relatório encontra-se como
recomendação:

Modificar os programas de formação pedagógica de maneira a que os


professores estejam aptos a assumir as novas funções e papéis de que
poderão ser incumbidos pela ação da difusão das tecnologias educativas.
Reservar uma parte do aumento do orçamento da educação para o
desenvolvimento nacional das novas técnicas. (FAURE, 1972, p. 313)

Pensando na valorização do trabalho docente, cujas demandas se expandem


e cujas práticas se propõe modificar, a Comissão também sugere alguns princípios
destinados a eles. Argumenta que tanto o processo de multiplicação quanto de
diversificação das atividades educativas, gerará um aumento do quantitativo de
educadores, e que seria importante

É que o crescimento dos resultados esteja de acordo com o acréscimo das


despesas com o pessoal docente. (...) é preciso, por conseguinte, procurar
modos de ensino tão “rendíveis” quanto possível se não se quiser que as
despesas de funcionamento atinjam um nível que impeçam a modernização
dos sistemas educativos. Esta é uma condição essencial para elevar o
prestígio social e a valorização dos professores nas sociedades
contemporâneas. (FAURE, 1972, p. 316)
121

Uma questão polêmica ressaltada pelo Relatório é a proposição de educadores


convencionais e não convencionais. A Comissão argumenta que diante da expansão
do domínio da educação seria também necessário um aumento na quantidade de
pessoas destinados a tarefa de educar, sejam docentes profissionais, auxiliares, “além
de profissionais de outras atividades (operários, técnicos, quadros, etc.), além da
ajuda de alunos e estudantes em condições tais que eduquem a si próprios (...) além
do dever de a compartilhar com o próximo” (FAURE, 1972, p. 321). Desta forma, o
objetivo seria por

Aumentar o número dos auxiliares voluntários ou semivoluntáriosa nas


atividades escolares e educativas em geral. Estes auxiliares têm não só de
assumir o maior número possível de possibilidades nos domínios que não
dependam do ensino, a fim de “permitir aos professores ensinar”, mas
igualmente contribuir para a sua experiência prática do ensino. Para este
efeito devem receber uma curta formação complementar, necessária à
execução das tarefas educativas. (FAURE, 1972, p. 321)

Com isso, todos aqueles que se relacionam com a escola, pais de alunos,
comunidade escolar, além dos próprios estudantes poderão se envolver com as
atividades educativas de forma voluntária.

Sob o título O lugar do educando na vida escolar, a Comissão apresenta este


princípio ao argumentar o ensino dever adaptar-se ao discente e não o aluno “sujeitar-
se às regras pré-estabelecidas do ensino, diferentemente das práticas tradicionais.
Desta forma, o aluno ocupa o lugar central do processo educativo, uma vez que

À medida que cresce, deve ser cada vez mais livre de decidir por si mesmo o
que quer aprender e, também, onde quer instruir-se e formar-se. Se, no que
respeita conteúdos e métodos, o aluno deve, contudo, aceitar certas
obrigações de ordem pedagógica e sociocultural, estas deverão ser definidas
tendo em conta, principalmente, a livre escolha, as disposições psicológicas
e as motivações dos educandos. (FAURE, 1972, p. 323)

Estando o discente no centro do processo educativo é também o seu papel


acompanhar a elaboração da política de educação, uma vez que ele é um dos maiores
interessados. A Comissão sugere que é legítima e necessária “a participação dos
122

interessados na elaboração da política de educação, no seu funcionamento e na


gestão das instituições educativas”. (FAURE, 1972, p. 334)

A Comissão também orienta sobre o financiamento da educação ao


recomendar que se busque atingir “um triplo objetivo: aumentar as despesas,
diversificar os recursos e reduzir os custos unitários” (FAURE, 1972, p. 335). Outro
ponto referente a gestão financeira da educação, o relatório orienta a diversificar os
recursos e os meios de financiamento da educação, pois

É evidente que em muitos países não se beneficia ainda totalmente da


contribuição dos recursos das coletividades locais e que, por outro lado, o
público não se oporia à ideia de pagar contribuições especiais para a
educação, desde que estivesse mais diretamente associado aos seus
destinos, ou de subscrever empréstimos lançados para financiar este ou
aquele projeto educacional, ou aceitar o princípio de empréstimos
reembolsáveis destinados ao ensino superior. (FAURE, 1972, p. 336)

Após detalhar uma série de propostas, sugestões, argumentos e comentários


fruto das pesquisas realizadas durante as missões aos vinte e três países, a Comissão
da Unesco, representada por Edgar Faure, destaca algumas considerações sobre a
aplicação ou não do que foi apresentado sob o título de Orientações gerais, aplicações
particulares.

É possível, desde que se queira, encontrar aqui os elementos duma espécie


de estratégia axial da educação de que cada país poderia escolher o que
julgasse melhor, segundo as condições de sua economia, da sua ideologia e,
enfim, segundo a sua conveniência. Todavia, trata-se apenas de orientações.
A cadência da aplicação no tempo e no espaço, a hierarquia das escolhas e
das prioridades, a articulação destas múltiplas variáveis, só podem depender
das necessidades e das possibilidades de cada país.

Contudo, para além destas diferenças, mesmo para além da escolha desta
ou daquela estratégia educativa de conjunto, o futuro da educação será em
quase todos os países imposto, em grande parte, pela orientação geral de
desenvolvimento, no qual nós próprios nos inspiramos constantemente.
(FAURE, 1972, p. 339)

Ao destacar as diferentes realidades do sistema educativos dos países, bem


como as possibilidades de aplicação ou não das propostas, uma nota de rodapé do
Relatório merece ser retratada aqui, pois expõe a discordância de abordagens e
concepções. Um dos membros da Comissão, Arthur Pétrovski, informa que

O Secretariado da Comissão Internacional não achou conveniente incluir nem


o ponto de vista geral que exprimi nas minhas intervenções ao longo das
123

reuniões da Comissão, nem as minhas detalhadas observações sobre os


diversos capítulos do Relatório. (...) quero realçar a necessidade de se
abordar, de maneira profundamente diferenciada, as questões de
desenvolvimento da educação nos países de sistemas socioeconômicos
diferentes e a impossibilidade de se reunirem, por simples extrapolação, as
dificuldades e os reais problemas próprios aos sistemas educativos de países
com uma determinada estrutura política e econômica a partir de países em
que a estrutura social é diferente. Acho lamentável que no relatório se fale
sistematicamente de concepções pedagógicas e de sistemas de educação
que caracterizam países capitalistas e não se reconheça que as muito boas
experiências de desenvolvimento educacional na U.R.S.S e noutros países
socialistas sejam aí referidas de modo manifestamente insuficiente.

Poder-me-ia contentar com esta breve referência ao meu ponto de vista, em


vez de fazer uma análise científica de importantes fatores de
desenvolvimento da educação, análise que teria tido excepcional interesse
para os países em vias de desenvolvimento, na elaboração das suas próprias
estratégias educativas? Infelizmente o relatório contém inúmeros exemplos
deste gênero. (FAURE, 1972, p. 340)

Ao expor seu descontentamento com as propostas apresentadas, o membro


da Comissão Arthur Pétrovski trouxe um questionamento pertinente ao viés
econômico, social e político do Relatório. A perspectiva dos países capitalistas e suas
propostas pautadas no modelo técnico-científico, tão presente no texto do referido
relatório, é passível de questionamento, uma vez que busca massificar uma
experiência, um modelo de desenvolvimento humano e da sociedade pelo mundo a
fora.

O autor Jefferson Ildefonso da Silva em seu livro Cidade Educativa: um modelo


de Renovação da Educação, publicado em 1979, é um grande crítico da abordagem
e das propostas apresentadas pela Comissão de Educação da UNESCO.

Segundo Silva (1979), o Relatório fundamenta-se num referencial de eficiência


da educação, a partir de uma concepção de sociedade pautada no desenvolvimento
econômico, por meio da ciência e tecnologia e tais princípios seriam aplicados a toda
ação educativa.

Estes elementos que estão moldando a sociedade de hoje e, dentro dela, o


homem em sua práxis existencial, determinariam também os caminhos da
educação atual. O desenvolvimento de caráter tecnocrático parece inspirar
todos os passos da Comissão. O homem tem na Cidade educativa um lugar
pretensamente central; mas que tipo de humanismo está aí implícito? Não
será talvez o “homem livre” do liberalismo, ou da democracia liberal, que, no
entanto, permanece controlado por uma estrutura social burocratizada,
necessariamente constituída pelos elementos dominantes, sutilmente
dominadores? (SILVA, 1979, p.14)
124

Assim, surgem alguns questionamentos acerca do papel desse “novo modelo


de educação” que se propaga por meio da ideia de uma cidade educativa, uma vez
que, ao partir de uma concepção de sujeito baseada num modelo de sociedade, qual
o espaço e perspectiva humanista se formará nas mais diferentes sociedades e
culturas? Para Silva (1979) “O homem completo não pode ser a somatória de seus
vários aspectos e dimensões, mas significa a busca do seu fazer-se, como projeto de
superação, como pessoa”. (SILVA, 1979, p.15)

Não seria necessário renunciar à consciência ingênua que procura uma


solução pacífica e bem ajustada para a educação? O verdadeiro modelo da
nova educação, não seria talvez marcado pelo assumir crítico da realidade,
substituindo pela penosa tarefa da contradição, a miragem da falsa utopia?
(SILVA, 1979, p.15)

Dentro desse contexto, ao analisar a relação Educação e Sociedade,


amplamente discutida no Relatório de Faure (1972), o autor Silva (1979) analisa que
esta relação se manifesta na educação de maneira ambígua, uma vez que ela é ao
mesmo tempo conservadora, pois transmite os valores do passado e ao mesmo
tempo, ela pode ser renovadora, na medida em que ela possibilidade a sociedade e
(re) conhecer os seus problemas e buscar uma solução. A educação também tem
função socializadora e formadora do cidadão, e sendo assim, poderá “formar tanto
homens que constroem sua liberdade, como homens submissos e condicionados a
um sistema dominador”. (SILVA, 1979, p.24)

Assim, ao tratar sobre o modelo de Cidade educativa proposto pela Comissão,


Silva (1979) admite que a tal perspectiva se mostra interessante e conquista aqueles
que desejam vislumbrar novas práticas educativas, “traz uma sensação de liberdade
ao não colocar condições rígidas na sua significação e nas suas características
concretas, apesar de se deixar prender por um apego apriorístico à estrutura da
escola, sem oferecer uma estrutura mais sólida” (SILVA, 1979, p.41).

Porém, inúmeros problemas e questionamentos podem ser encontrados no


Relatório segundo Silva (1979), como “o apego quase incondicional à tecnologia
poderia dar origem a verdadeiras contradições entre a perspectiva humanista da
Cidade educativa e o homem nascido da técnica” (SILVA, 1979, p.41). Acrescenta-se
a esta centralidade do homem técnico, o fato da Cidade educativa estar sob a
125

responsabilidade dos Governos, o que a torna “impossível e não apenas utópica”, pois
“o Governo jamais teve a dimensão profética que a utopia da Cidade Educativa
postula, nem o Governo, nem a Escola poderão lutar por ela”, afirma (SILVA, 1979,
p.42).

Ao enfatizar a importância de se criar uma Cidade Educativa baseada, cujos


princípios se baseiam no tripé Educação global, permanente e não- formal, a escola
deixa de apresentar o seu protagonismo nos sistemas de ensino, de acordo com as
recomendações da Comissão. Com isso, a proposta valoriza os meios e “instrumentos
não-escolares da Educação”, “dessacralizando”, portanto, a escola e seus métodos
tradicionais.

A Comissão também reforça sua crença na ciência e na tecnologia, como


instrumentos de renovação da educação para os novos tempos. Silva (1979) adverte
que “apontar a ciência e a tecnologia como constituindo o único caminho é uma das
características da ideologia tecnocrática, ou seja, o domínio da tecnologia. O
Relatório, entretanto, parece aderir a essa ideologia sem maior reflexão ou crítica”
(SILVA, 1979, p.52).

No que diz respeito à proposta da Cidade Educativa em si, Silva (1979) analisa
que existe ainda um panorama de ambiguidade, uma vez que encontra a

Necessidade de ultrapassar a dimensão sistêmica da sociedade, mas não


consegue libertar-se de suas estruturas e instituições. Acena para uma
integração mais existencial e vivencial entre a comunidade humana e as
instituições sociais, mas se nega a ir até a raiz, permanecendo em afirmações
genéricas, sem maiores consequências. (SILVA, 1979, p.117)

Outro ponto ressaltado por Silva (1979) passível de sua pertinente crítica às
propostas para a Educação dos países propagada pela Comissão da UNESCO, diz
respeito ao perigo de transformar tais recomendações em uma “cultura de massa”,
mesmo que se busque valorizar as instituições e espaços não-formais como “agentes
educativos e ao promover os meios tecnológicos de comunicação.

Por “cultura de massa” ou “cultura de mosaico” entende-se por essa ideia


fragmentada, “sem conexão com a lógica, elaborada por um pequeno grupo que tem
em mãos os meios da tecnologia capazes de impô-la ao consumo dos demais” (SILVA,
1979, p.117). Portanto, Relatório da UNESCO com todas as propostas e, também,
126

contradições tornou-se uma grande referência para a temática da Educação


Permanente, além de ter influenciado as políticas públicas em educação.

Assim, mais do que descrever os princípios e recomendações da Comissão


aos sistemas de educação de diversos países, fez-se necessário observar a
concepção socioeconômica, cultural e política que embasaram e nortearam a
Comissão, porque são estas que estarão presentes desde a proposta de renovação
da Educação, passando pela Cidade Educativa e espalhando, mundo a fora, o modelo
de cidade e educação, presente no projeto Cidade Educadora de Barcelona.
127

CAPÍTULO 4 - O PROJETO CIDADES EDUCADORAS

Este capítulo tem como intuito realizar uma breve contextualização sobre o
momento social e econômico como forma de indicar o período que culminou na
concepção e difusão da proposta do Projeto Cidades Educadoras da cidade de
Barcelona nos anos 1990; descrever e analisar os pressupostos da realização do I
Congresso Internacional de Cidades Educadoras, assim como a motivação para a
criação da Associação Internacional de Cidades Educadoras (AICE).

Nesse sentido, serão descritos e analisadas a sua justificativa, princípios


constitutivos e diretrizes que inspiraram políticas públicas de cidades pelo mundo e
por fim, de que forma tal Projeto transpassou o seu discurso e foi colocado em prática
nas cidades brasileiras que hoje fazem parte da AICE.

A partir dos anos 70, o mundo observa o surgimento de novas tecnologias,


novas indústrias e processos que quebraram com a rigidez dos modelos de produção
fordista impondo assim, uma crescente flexibilização dos processos produtivos e das
leis trabalhistas, característicos do novo modelo econômico produtivo baseado no
sistema “just in time”, produção baseada na demanda de consumo. Tais processos
impactaram também a qualificação da força de trabalho cada vez mais voltada para o
mercado de trabalho, onde cada trabalhador deverá ser capaz de realizar multitarefas
e que por consequência, culminaram também na demanda por novos modelos de
ensino, num mundo com acelerados avanços tecnológicos e científicos.

Nesse contexto de transformação produtiva e social, o mundo presenciou de


forma desigual, o processo de revolução tecnológica que culminou na reestruturação
econômico-produtiva, tais como surgimento do sistema neo-liberal, crise do Estado de
bem-estar social, mudança do padrão Fordista para o de acumulação flexível,
globalização, explosão do percentual de população morando em meios urbanos. O
geógrafo Milton Santos (1998) adverte que

A dinâmica dos espaços de globalização supõe adaptação permanente das


formas e das normas. As formas geográficas, isto é, objetos técnicos
requeridos para otimizar uma produção, só autorizam essa otimização ao
preço do estabelecimento e aplicação de normas jurídicas, financeiras e
outras, adaptadas às necessidades do mercado. Essas normas são criadas
em diversos níveis geográficos e políticos, mas, dada a competitividade
mundial, as normas globais, induzidas por organismos supranacionais e pelo
mercado, tendem a configurar as outras. Uma vez mais, todos os subespaços
128

mostram presença simultânea de horizontalidades e verticalidades.


(SANTOS, 1998, p. 201)

Logo, os processos de globalização bem como de reestruturação do papel do


Estado, cada vez menos protetor dos direitos sociais e cada vez mais indutor e
fomentador econômico inclusive de cidades, principalmente com o intuito de atrair o
capital internacional, irá impactar de forma direta as políticas públicas e o
planejamento urbano. Alves (2018) acrescenta que

Essa lógica da cidade-mercadoria vinculada ao planejamento estratégico é


característica do planejamento urbano de Barcelona, do modelo barcelonês,
no qual estão ancoradas as ações inovadoras e pioneiras que vão
proporcionar prestígio e visibilidade ao município. Portanto, é nesse contexto
de intensas mudanças no cenário mundial e europeu, e particularmente
barcelonês que estão situados o surgimento do movimento em torno do
conceito cidades educadoras e consequentemente da fundação da AICE.

Seguindo esta breve contextualização sobre o momento econômico, político e


social, nesse cenário que compreendeu o período entre 1970 e 1990, que balizaram
a perspectiva do Projeto de Barcelona, Simon (2021) acrescenta que

Com a globalização e o aparecimento dos novos instrumentos oferecidos


pelos avanços tecnológicos, frutos dos desenvolvimentos científico,
informacional e organizacional, se alteraram profundamente as relações
entre humanos nas últimas décadas, que teriam de conviver na chamada
“sociedade do conhecimento”. Desvelavam-se a precariedade da tradicional
estrutura educativa cuja velocidade não acompanha as demandas deste novo
tipo de organização, que prima pela instantaneidade e pela efemeridade dos
conteúdos. (SIMON, 2021, p.703)

As cidades passaram a lançar mão de instrumentos estratégicos que as


coloquem em evidência e as tornem mais “competitivas” no cenário internacional,
como o caso da cidade de Barcelona, na Espanha. A cidade de Barcelona, além de
ter passado pela experiência de renovação urbana para receber um megaevento
como as Olimpíadas em 1992 e de fazer parte da União Europeia, passou por um
período de projeção internacional. Para Vintró (2003)

A cidade de Barcelona estava por muitas razões bem situada para realizar
um projeto ambicioso e rigoroso para converter a educação em um dos eixos
estratégicos do desenvolvimento da cidade. Por um lado, a cidade é
depositária de uma grande tradição educativa que a fez ser reconhecida em
muitos momentos da história como um referencial educativo no plano
nacional e internacional; e, por outro, Barcelona, nos últimos anos, soube
construir um modelo equilibrado entre crescimento econômico,
129

transformação urbanística e bem-estar, coesão social e participação cidadã.


(VINTRÓ, 2003, p.44)

O governo local da cidade de Barcelona decidiu então, recuperar a proposta de


cidade educativa apresentada na década de 70 por Edgar Faure, no Relatório
Aprender a Ser, visto no capítulo anterior deste trabalho. No que diz respeito à análise
sobre o contexto histórico, político e econômico vivenciado à época da publicação do
Relatório da Comissão liderada por Faure, o autor Daniel da Cunha (2019) afirma que

A UNESCO projetou o Relatório Faure como um dos instrumentos para


ordenar as ações “consideradas” necessárias para restaurar a coesão cívica
no bloco capitalista por meio da educação. (...) A tese do Relatório em
questão foi baseada na provisoriedade do conhecimento e a consequente
necessidade de se promover a chamada “educação do longo da vida” em
associação com um discurso supostamente democrático. (CUNHA, 2019, p.
27)

Complementando esta perspectiva, acredita-se que o referido Relatório tinha


como intuito propor uma nova inserção curricular aos sistemas educacionais dos
países, ao incluir uma questão e demanda cada vez mais crescente, principalmente a
partir da década de seu lançamento sobre o processo de urbanização das cidades
mundo a fora.

Colocar a questão urbana no escopo das discussões sobre as políticas


educacionais vai além de propor o “ordenamento de ações capitalistas por meio da
educação”, mesmo corroborando com a crítica ao Relatório, mas compreendendo que
o Relatório propõe e formula ações e diretrizes que não condizem com a
especificidades, culturas, realidades e mesmo diversas desigualdades que se
apresentam entre países e cidades. Ademais, como já desenvolvido neste trabalho, a
relação entre Cidade e Educação não é um fenômeno recente ou um modismo, por
mais que esteja em evidência nas últimas décadas.

O foco de análise crítica do Relatório Faure e sua influência, principalmente no


projeto Cidades Educadoras, se assenta na ideia de uniformização de realidades e
contextos, na homogeneidade de práticas e soluções, de diretrizes desenvolvidas e
propostas como política pública “de cima para baixo” sem que haja a construção
coletiva de práticas com base no lugar e na realidade e necessidade de seus
indivíduos. Os autores Granell & Vila (2003) por sua vez, afirmam que
130

Na sociedade do conhecimento, dada a superabundância de informação, a


educação – entendida como a instituição escolar – já não será a única
depositária da informação, mas será responsável pela mediação cultural e
social entre a informação e a pessoa que aprende, entendida como alguém
que constrói conhecimentos. Isto é, afirmar que a educação será no futuro
um capital seguro não significa o que durante muito tempo significou:
ingressar na escola fundamental e média ou na universidade. (GRANELL &
VILA, 2003, p.40)

A perspectiva que se apresenta, o papel da educação e mais precisamente o


papel da escola nos moldes tradicionais, torna-se cada vez mais obsoleto e muitas
vezes incapaz de acompanhar a velocidade de transformação da sociedade que se
apresenta. O autor Jefferson da Silva (1979) provoca à reflexão, ao apontar que

A escola deixa de ser o mais importante fator de ensino: a evolução da


sociedade e de seus meios de comunicação despolariza a escola para
ressaltar e valorizar os outros meios de ensino. A própria estrutura da escola
se encontra defasada do estilo e dos meios empregados em outras
instituições da sociedade. Mas, o reequipamento e o aumento de eficiência
da escola não lhe devolverão o lugar privilegiado de outrora. (SILVA, 1979,
p.62)

Assim, reuniram-se naquele momento gestores públicos de diferentes


nacionalidades, que expressaram a intenção em buscar a melhoria da qualidade de
vida urbana por meio de práticas que fortalecessem o potencial educador das cidades.
Segundo Alves (2018)

Além das transformações relacionadas à nova orientação da gestão urbana,


que proporcionaram maior autonomia dos governos locais na busca por
ações que promovessem o desenvolvimento municipal, questões
relacionadas à educação também impulsionaram o governo local de
Barcelona a criar um movimento das cidades educadoras. No contexto das
intensas transformações da vida urbana em um mundo globalizado, no qual
a sociedade é multipertencente, mais racional, individualista e diferenciada,
emergiram questionamentos relacionados à educação tradicional.

Diante da urgência apontada em discutir novos caminhos para a Educação em


escala internacional, o Instituto Internacional de Planificação da UNESCO 9 buscou
propor um “planejamento racional da educação como o caminho mais seguro para se

9 A UNESCO possui um Instituto para Aprendizagem ao Longo da Vida (Instituto Unesco para
Educação) desde 1950. Após a publicação do Relatório Aprender a Ser também conhecido como
“Relatório Faure”, a educação ao longo da vida ou o conceito de “educação permanente” tornou-se
objetivo maior do Instituto. Segundo informações da própria UNESCO, a “A UIE foi a primeira instituição
a abordar a alfabetização e o analfabetismo funcional nos países industrializados”
131

agir a partir da análise sistêmica” (SILVA, 1979, p. 63), por meio da elaboração do
Relatório Faure, onde a “educação permanente surgiu como um novo princípio
inspirador e a Cidade educativa como um novo projeto concreto”. Silva (1979)
descreve a perspectiva de “cidade” utilizada pela Comissão, que busca

Recuperar o significado clássico de “comunidade política”. As instituições e


estruturas têm o seu valor e seu lugar na cidade, mas apenas como
instrumentos e não como elementos constitutivos. Sua realidade se situa em
outro nível, no da comunidade humana que busca em comum os objetivos da
auto - realização como comunidade, sem se deixar absorver por objetivos
instrumentais – como os do desenvolvimento – que a desgarrassem de si
mesma. Nessa dimensão a Cidade quer afirmar o verdadeiro sentido de
sociedade: “Com efeito, a cidade, sobretudo quando sabe permanecer na
medida do homem, contém, com seus centros de produção, suas estruturas
sociais e administrativas, seus canais culturais, um imenso potencial
educativo, não somente pela intensidade dos intercâmbios de conhecimentos
que aí se processam, mas também pela escola de civismo e de solidariedade
que constitui. (SILVA, 1979, p. 73)

Ao analisar tal perspectiva dos relatores que constituem a Comissão, faz-se


necessário lembrar que a cidade não deve tomar o lugar da escola no processo de
ensino-aprendizagem, mas sim deve reunir, em comunidade, os indivíduos cujo
objetivo seja buscar para si uma educação plena, em sua totalidade, como sujeitos
ativos nesse processo e de forma permanente, ao longo de toda a sua vida.

A ideia do indivíduo como agente educativo que busca a realização pessoal,


não estaria em desacordo com os interesses, enquanto membro de uma comunidade,
sob uma visão coletiva. Silva (1979) critica tal perspectiva contida no Relatório ao
afirmar que “estes são os aspectos mais audaciosos e auspiciosos da proposta da
Cidade Educativa, projetando-a realmente ao nível da utopia, que, aliás, é muito
própria da educação, como é própria do humano”

Nesse sentido, este princípio da Cidade Educativa proposto no Relatório


merece ser destacado nesse capítulo, uma vez que este é um dia balizadores das
ideias contidas e difundidas anos mais tarde no Projeto Cidades Educadoras. O
princípio da educação permanente que considera a educação um processo contínuo,
que acontece no decorrer de toda a vida do indivíduo. Segundo informações do Guia
Metodológico: Plano local de educação permanente, publicado em 2006 pelo
Departamento de Educação do Conselho Provincial de Barcelona
132

Neste contexto, o interesse pela aprendizagem ao longo da vida está se


expandindo e permitindo que as instituições de ensino o façam tornar-se
centros de participação e integração cidadã. Acesso ao conhecimento e
renovação de qualificações constituem preocupações comuns para pessoas
de todos os setores socioeconômicos, origens, gêneros e idades. Mas para
que isso seja possível, as escolas devem ser sensíveis às necessidades e
interesses dos toda a população, deve estar aberta ao seu meio ambiente e
funcionar como centros comunitários capazes de favorecer, por um lado, a
rede de relações interpessoais e, por outro lado, espaços de debate público
e participação cidadã.10

A perspectiva social do processo de educação permanente relaciona às questões da


vida cotidiana à educação, não somente em seu aspecto temporal, “ao longo do toda
a vida”, mas também nos “diversos aspectos da vida dos indivíduos e das sociedades”.
Silva (1979) acrescenta que

É justamente através desse ponto de ambivalência que se faz a ligação entre


educação permanente e a Cidade educativa. Em primeiro lugar a Cidade
educativa, em sua dimensão mais palpável, se apresenta como uma
sociedade que toda inteira se propõe ser educativa com todos os meios e
instituições, e como tal se organiza. Assim a Cidade educativa pode ser
considerada como concretização da educação permanente e sua expressão
(SILVA, 1979, p. 84)

Outro aspecto que merece ser destacado, diz respeito ao receio, já nos anos
70, demonstrado pelos críticos à nova proposta de uma educação voltada para a
formação permanente do indivíduo num contexto produtivo e econômico, marcado
pela racionalidade técnica e industrialismo, reside no fato de que esse tipo de
educação estaria voltado para atender às demandas dessa sociedade. Logo, a
preocupação era de que a educação estaria intimamente relacionada à demanda de
formação da força de trabalho, de capacitação para o processo produtivo.

10
Guia Metodológico: Plano local de educação permanente (2006) publicado pelo Departamento de
Educação do Conselho Provincial de Barcelona. Texto original: “En aquest context, l’interès per
l’educació al llarg de la vida s’amplia i fa que les institucions educatives puguin esdevenir centres de
participació i d’integració ciutadana. L’accés al coneixement i la renovació de qualificacions
constitueixen preocupacions comunes per a les persones de tots els sectors socioeconòmics,
procedències, gèneres i edats. Però perquè això sigui possible els centres educatius han de ser
sensibles a les necessitats i als interessos de tota la població, s’han d’obrir al seu entorn i funcionar
com a centres comunitaris capaços d’afavorir, d’una banda, la xarxa de relacions interpersonals i, de
l’altra, espais de debat públic i de participació ciutadana.
133

Tal preocupação apresenta-se, ainda hoje, relevante e coerente se pensarmos


nos processos educativos em curso e nas políticas públicas vigentes não somente no
Brasil. Silva (1979) conclui que “a Cidade educativa deverá ser primeira e
fundamentalmente a comunidade humana que se educa, que vai marcando seus
caminhos entre perigos, que vai lutando para se aproximar da “utopia” de um homem
sujeito e criador no centro de seu mundo feito hoje de ciência e técnica” (SILVA, 1979,
p. 119).

No contexto que antecede o surgimento do projeto Cidades Educadoras,


surgem paradigmas que se tornaram balizadores das novas propostas, seja no
processo ensino-aprendizagem, quando o papel do professor deixa de ser o centro
desse processo, dos novos métodos de ensino aplicados nos currículos escolares e
do papel da educação na capacitação dos indivíduos. De acordo com Almeida (2008)

Um projeto educativo de cidade consiste num plano estratégico, capaz de


definir linhas estratégicas e atuações concretas para o futuro a curto e a
médio prazo, e de consegui-lo de maneira participativa e consensual,
mediante certas condições: todo projeto educativo deve partir de um bom
diagnóstico da realidade socioeducativa da cidade ou do território no qual se
definem os riscos e as possíveis oportunidades e deve partir da administração
local. (ALMEIDA, 2008, p.9)

As inovações e transformações no mundo do trabalho, das sociedades e ainda


sob a influência da publicação do Relatório da Comissão da Unesco, capitaneado por
Edgar Faure, apontava os caminhos e diretrizes para a educação, fundamentada às
noções de cidadania, qualidade de vida, instituição escolar e mecanismos de
cooperação internacional.

O Relatório de Faure em 1973 foi o ponto inicial de uma série de Congressos


que se seguiram que tinham como intuito discutir e amadurecer ideias e conceitos a
respeito das cidades educativas. Assim, em 1990 foi realizado na cidade de Barcelona
o I Congresso Internacional de Cidades Educadoras, com discussões e debates
acerca das questões relacionadas à cidade, fundamentalmente àquelas entre
educação e o ambiente urbano e seus principais desafios. A cidade foi escolhida,
segundo Granel & Vila (2003) por naquele momento,

Estar bem situada para realizar um projeto ambicioso e rigoroso para


converter a educação em um dos eixos estratégicos do desenvolvimento da
cidade. Por um lado, a cidade é depositária de uma grande tradição educativa
que a fez ser reconhecida em muitos momentos da história como um
134

referencial educativo no plano nacional e internacional; e, por outro,


Barcelona, nos últimos anos, soube construir um modelo equilibrado entre
crescimento econômico, transformação urbanística e bem-estar, coesão
social e participação cidadã. E isso em parte foi possível por sua capacidade
de projetar o futuro a partir de uma análise rigorosa da realidade,
impulsionando e levando para a prática planos estratégicos como o Plano de
Desenvolvimento de Serviços Sociais ou, mais recentemente, o Plano
Estratégico do Setor Cultural e o Projeto Educativo de Cidade. (GRANELL &
VILA, 2003. p.44)

Além disso, o projeto deveria ser inovador e que buscasse analisar e refletir
sobre os desafios das cidades mundo a fora, no contexto da sociedade inserida no
meio técnico-científico informacional, tal como conceitua o geógrafo Milton Santos,
além de contribuir para a compreensão sobre o papel da educação nesses novos
tempos. Outro fator almejado pelos criadores era de ir além da ideia da cidade
educadora, àquela em que a cidade parecia estar reduzida apenas como recurso de
educação escolar, como: passeios, visitas a bibliotecas e museus, instrumentos
clássicos utilizados pelos professores. Assim, a ideia inovadora estaria na passagem
definitiva, conforme ressalta Vintró (2003)

De uma pedagogia da cidade para uma cidade como pedagogia, na qual cada
agente – empresas, museus, meios de comunicação, famílias, associações,
urbanistas e planejadores – assuma sua responsabilidade educativa e seja
capaz de fazer seu currículo educativo. E, por outro lado, porque é preciso
superar o estado atual em que existe um conjunto rico, mas disperso, de
atividades e propostas educativas (desde ONGs, até associações, as
entidades culturais, os meios de comunicação, os movimentos de renovação,
os sindicatos, etc.) mas sem que existam projetos bem articulados que
partam de um diagnóstico rigoroso e compartilhado da realidade, que definam
algumas linhas de atuação e, sobretudo, que as priorizem e as realizem
mediante uma ação conjunta dos agentes sociais e das instituições
cidadãs.(VINTRÓ, 2003, p. 45)

O projeto de Barcelona nasceu, de acordo com os autores que participaram da


sua concepção, primeiro com o intuito de que se transformasse num “projeto de
futuro”, onde a cidade pudesse agregar tanto o seu desenvolvimento econômico e
urbanístico como o bem-estar e a coesão social, de forma conjunta com a participação
ativa dos seus cidadãos (Vintró, 2003). Assim, o Projeto Educativo de Cidade surgiu
com “a vocação de ser um verdadeiro projeto de futuro, um verdadeiro plano
estratégico da cidade”. De acordo com Jordi Hereu Boher, Prefeito de Barcelona na
época de lançamento da publicação comemorativa dos 10 anos do Projeto Cidades
Educadoras
135

O Projecte Educatiu de Ciutat (PECB) é um dos instrumentos que a cada dia


contribui para Barcelona com uma cidade educadora. É um espaço de
encontro e de diálogo entre os cidadãos e as administrações; uma terra
fecunda para analisar problemas complexos e elaborar soluções
compartilhadas a partir de políticas públicas e práticas sociais. Porque com
expressa a declaração do PECB “O compromisso da cidade por uma
educação a serviço da coesão social ”a escola não é a única educadora.
Porque este construir a internet educacional da cidade. Porque eu entendo
que ele educou das crianças e dos jovens é uma responsabilidade
compartilhada. Porque Barcelona é e será um pedaço cultural no futuro.
Porque acredito que a educação para a cidadania e os valores democráticos
são a base da convivência.11 (BOHER, 2009, p.9)

A equipe trabalhou por mais de dois anos desenvolvendo um diagnóstico,


analisando documentos, estudos e pesquisas, que contou mais de 400 profissionais
de diferentes áreas do conhecimento e de atuação, profissionais da educação, cultura,
do urbanismo, do “ócio”, etc. O resultado da união de esforços dos profissionais
envolvidos distribuídos em 15 grupos de trabalho foi a redação de documentos de
diversas áreas temáticas como: educação ambiental, multiculturalidade, co-educação
dentre outros.

O segundo fator almejado pelos seus idealizadores, era transformar o Plano


Educativo de Barcelona em um projeto construído de forma coletiva, por meio da
participação cidadã. O que se seguiu foi a constituição de “inúmeros conselhos e
plataformas, tanto em nível de cidade como distrito, que permitem aproximar a gestão
da cidade dos interesses e das necessidades das pessoas, várias entidades,
associações e instituições participam da vida da cidade, contribuindo para a
capacidade social de reflexão” (Vintró, 2003, p.45-46).

A formação dos conselhos e plataformas possibilitou a construção coletiva do


modelo educativo da cidade, utilizando-se de instrumentos de participação, como
reuniões, debates, aplicação de questionários. Almeida (2008) acrescenta que “um

11 Barcelona Ciutat Educadora Volum II - Deu Anys Del Projecte Educatiu De Ciutat. 2009. P.9.
Publicação Comemorativa dos 10 anos do lançamento do Projeto Cidade Educadora de
Barcelona.Texto original: “El Projecte Educatiu de Ciutat (PECB) és un dels instruments que
contribueixen a fer de Barcelona una ciutat cada dia més educadora. És un espai de trobada i de diàleg
entre la ciutadania i les administracions; un terreny fructífer per analitzar problemes complexos i
elaborar solucions compartides des de les polítiques públiques i les pràctiques socials. Perquè, com
expressa la declaració del PECB “El compromís ciutadà per una educació al servei de la cohesió social”,
l’escola no està sola educant. Perquè estem construint la xarxa educativa de la ciutat. Perquè entenem
que l’educació dels infants i dels joves és una responsabilitat compartida. Perquè Barcelona és i vol ser
en el futur un gresol cultural. I perquè creiem que l’educació per a la ciutadania i els valors democràtics
són la base de la convivência”
136

projeto educativo não pode ser unicamente um processo participativo e reflexivo, há


que ter um componente essencial de compromisso com a ação, significando desta
forma que as propostas de atuação devem ser de forma consensual, selecionadas e
priorizadas temporalmente e economicamente avaliadas”. (ALMEIDA, 2008, p.9)

Com base nesses dois eixos, como produtos das reuniões de trabalho dos
grupos, de diversos eixos de análise foram elaborados trinta e três documentos
sistematizados em dois volumes, foram desenvolvidas as propostas do Projeto
Educativo de Cidade. Segundo Vintró (2003)

São documentos que englobam temáticas bem diversas que exploram a


educação como fator decisivo para a sociedade do conhecimento e da
cultura, como elemento para construir a comunidade como fator básico na
igualdade de oportunidades e na coesão social e como chave da qualidade
de vida e sustentabilidade”. (Vintró, 2003, p.46)

Após a sistematização dos relatórios de trabalho, constatou-se a necessidade


de criação dos Conselhos Administrativo e Assessor que visavam a construção, pelos
diversos agentes educativos da cidade de Barcelona, de um compromisso sobre a
educação. Assim, o Projeto Educativo de Cidade passou a contar com um órgão de
Direção, composto pela Prefeitura, Governo Estadual e Assembleia de Deputados.

Em paralelo, o Projeto Educativo “contava também com um conselho assessor,


que representava 200 pessoas de diferentes instituições representativas, como:
ONGs, meios de comunicação, Universidades, organizações sindicais e empresariais,
colégios profissionais, entidades, associações culturais e esportivas, associações de
moradores, professores, movimentos de renovação pedagógica, associações de pais
e mãe, associações juvenis e de estudantes, etc” (Vintró, 2003, p.46-47). Nota-se,
portanto, que a elaboração do Projeto contou com a participação de uma vasta gama
de profissionais, de diferentes áreas e interesses, para uma análise diagnóstica não
somente do sistema educacional da cidade, mas de sua realidade econômica,
ambiental e urbana, com base numa metodologia que propunha a “reflexão, o
consenso e a comunicação”,

Após o trabalho da equipe técnica, os produtos eram apresentados ao


Conselho Diretor, que uma vez aprovado era apresentado ao Conselho Diretivo. Tais
documentos então, eram debatidos com os demais Conselhos da cidade: o de bem-
137

estar social, da terceira idade, do voluntariado, da mulher, da formação profissional e


ocupacional, de coordenação pedagógica e o pelo conselho escolar municipal e os
conselhos escolares de distrito.

Os debates aconteciam em diferentes partes da cidade, na presença de


profissionais de educação não formal e professoras. (Vintró, 2003). A publicação sobre
os 10 anos do Projeto descreve que O Conselho de Coordenação Pedagógica de
Barcelona (CCPB)

Nasceu durante o ano letivo de 1988-1989, promovido pelo Instituto de


Educação da Câmara Municipal de Barcelona, com o objetivo de coordenar
organizações e instituições de cidadãos que oferecem atividades educativas
nas escolas. Desde o seu início, o número de entidades tem crescido de
forma constante, também o número de atividades oferecidas nas escolas. A
cada ano mais um milhão de alunos participam de muitas dessas iniciativas.
Esses são os objetivos do CCPB:

- Forneçer à escola o máximo de recursos e diversidade possível


educacional e cultural, a fim de otimizar a cidade como agente educacional e
ampliar as possibilidades de aprendizagem das crianças;
- Aprimorar e ampliar as propostas educacionais que instituições e entidades
fazem na escola, abrindo novos espaços e criando novos recursos
educacionais, e renovar e aperfeiçoar as propostas, tanto em termos de
conteúdo como em termos de metodologia, acessibilidade e igualdade de
oportunidades.
- Criar canais de informação e divulgação de atividades pedagógicas
adaptadas às necessidades das escolas e professores com o objetivo de
facilitar a busca por atividades pedagógicas adequadas ao currículo escolar.
- Promover a formação contínua do grupo de profissionais que dirigem,
organizam ou desenvolvem atividades educativas para os alunos.
- Promover e melhorar o conhecimento mútuo, o diálogo e o trabalho
conjunto entre organizações de cidadãos e escolas, a fim de avançar de um
modelo de oferta educacional fora da escola, limitada à condição de usuário,
rumo a um modelo de colaboração.12 (p.18)

12
Barcelona Ciutat Educadora Volum II - Deu Anys Del Projecte Educatiu De Ciutat. 2009. P.9.
Publicação Comemorativa dos 10 anos do lançamento do Projeto Cidade Educadora de
Barcelona.Texto original: Des de la seva creació ençà, el nombre d’entitats ha anat creixent
constantment, com també el nombre d’activitats que s’ofereixen als centres educatius. Cada any, més
d’un milió d’alumnes participen en moltes d’aquestes iniciatives. Aquests són els objectius del CCPB:
Oferir a l’escola la màxima quantitat i diversitat possible de recursos educatius i culturals, per tal
d’optimitzar la ciutat com a agent educatiu i ampliar les possibilitats que els infants tenen d’aprendre.
Millorar i ampliar les propostes educatives que les institucions i les entitats fan a l’escola, obrint nous
espais i creant nous recursos educatius,i renovant i perfeccionant les propostes, tant pel que fa a
continguts com pel que fa a la metodologia, l’accessibilitat i la igualtat d’oportunitats. Crear canals
d’informació i difusió de les activitats educatives conformats segons les necessitats dels centres
escolars i del professorat ambl’objectiu de facilitar-los la feina de recerca d’activitats educatives
adequades al currículum escolar. Impulsar la formació permanent del col·lectiu de professionals que
gestionen, organitzen o duen a terme les activitats educatives per a escolars. Promoure i millorar el
coneixement mutu, el diàleg i el treball conjunt entre entitats ciutadanes i centres escolars, per tal
138

As propostas de atuação do Conselho Pedagógico buscavam dar visibilidade e


articular as práticas educativas escolares com a perspectiva educativa da cidade,
partindo portando, das ações pedagógicas inserindo-as no contexto cultural e de
colaboração com os demais agentes educativos da cidade. Tais propostas vão ao
encontro das informações descritas por Vintró (2003) sobre o resultado das inúmeras
reuniões entre os conselhos e os demais organismos de participação. Das reuniões
desse processo participativo de construção foram definidos os valores que orientaram
as futuras ações educativas da cidade de Barcelona por meio de 79 propostas
divididas em 7 linhas estratégicas, são elas:

- Aprofundar a dimensão social e comunitária da educação promovendo o


compromisso estável dos agentes sociais em distritos e bairros;

- Desenvolver as ações adequadas para melhorar a igualdade de


oportunidades diante das mudanças tecnológicas, econômicas, sociais,
culturais e institucionais;

- Adequar as diversas formas de formação profissional às necessidades do


ambiente produtivo da região metropolitana da Barcelona;

- Promover uma cidadania ativa, crítica, responsável e aberta à diversidade;

- Formar a cidadania no uso sustentável dos recursos e promover um


ecossistema urbano integrado que melhore a qualidade de vida das pessoas;

- Capacitar as pessoas para a inovação e para a gestão dos conhecimentos


em todos os campos das ciências, da cultura e das tecnologias;

- Aproveitar as oportunidades oferecidas pela Carta Municipal para melhorar


a gestão, o planejamento e a qualificação do sistema educativo.

As linhas estratégicas definidas para o Projeto Educativo têm como base


comum duas percepções: a noção de cidade e a articulação entre os seus agentes
educativos. Segundo Vintró (2003) uma das funções da cidade seria a abrigar
“espaços comuns”, que conjuguem “diferentes usos, pessoas e funções”, espaços que
favoreçam o encontro, espaços que abriguem a diversidade de seus habitantes. Por
meio então da troca entre gerações, do convívio coletivo que favorece novas relações
sociais nos espaços, a troca de conhecimentos e valores são fundamentais para o
Projeto, mas são um anseio de qualquer administrador ou cidadão. Outro importante

d’avançar des d’um model d’oferta educativa externa a l’escola, limitada a la condició d’usuària, cap a
un model de col·laboració.
139

fator ressaltado, como um dos pilares do Projeto, diz respeito à “dimensão social e
comunitária da educação” (Vintró, 2003, 51).

Nós consideramos a educação como um projeto coletivo, social, consciente


e intencional que dirige seu olhar para um futuro melhor. Por isso, a educação
deve ser um projeto comunitário para que sirva para dar resposta e satisfação
às necessidades das pessoas que fazem parte de uma comunidade. (...)
Nossa insistência na dimensão social e comunitária da educação se refere
sobretudo ao conceito de projeto coletivo e social e, portanto, está
estreitamente relacionada com o conceito de participação. (...) A participação,
portanto, é uma dimensão-chave em um projeto educativo de cidade. (...) No
projeto Educativo, entendemos que a dimensão social e comunitária da
educação deve estar relacionada com o desenvolvimento dos modos de
participação que garantam o controle social real sobre a educação. Essas
formas devem estar claramente delineadas para que todos os agentes
educativos possam propor, desenvolver e gerir e avaliar atuações e
programas educativos que tragam soluções para os problemas concretos da
cidadania. (Vintró, 2003, p.50-52)

Diante do trabalho dos Conselhos e reuniões de trabalho e após a publicação


dos relatórios onde foram sistematizadas as propostas para o Projeto Educativo de
Barcelona foi apresentado à população da cidade, sob a coordenação da prefeitura,
mas que contou, conforme visto, com uma ampla da sociedade civil13

Portanto, na década de 1990, com o apoio da Organização das Nações Unidas


para a Educação, a Ciência e a Tecnologia (UNESCO), as discussões culminaram na
apresentação de propostas para práticas de educação que tivessem como ponto de
convergência o incentivo à criação de políticas, que transformassem os espaços das
cidades em espaços educadores.

De acordo com a proposta, tais espaços deveriam ser capazes de proporcionar


não somente o conhecimento, mas também a sensibilização de sua população para a
participação cidadã, para a construção coletiva de alternativas e soluções para as
demandas no e para o lugar, uma vez que, concordando com a afirmação de Gadotti,
Padilha e Cabezudo (2004) “toda a cidade é educativa, mas não educadora”.

13
De acordo com Granel & Vila (2013) o projeto contou com a “participação de entidades, de
associações, organizações, sindicatos, universidades, Associação de Moradores, Federação dos
Movimentos de Renovação Pedagógica da Catalunha, a Federação das Associações de Pais e Alunos,
a Câmara de Comércio, Indústria e Navegação, a União Geral dos Trabalhadores.
140

Nessa perspectiva a Conselheira de Educação da Câmara Municipal, na


publicação de comemoração de 10 anos do Projeto da cidade, Montserrat Ballarín i
Espuña (2010) descreve com base na experiência de Barcelona que uma cidade
educadora deve ser

Uma cidade que, com entusiasmo e trabalho, aspira a ser espelho da


participação e da democracia. Uma cidade plural e aberta para aprender e
praticar os direitos e deveres de uma cidadania coesa, que vive nas
diferenças e luta contra as desigualdades 14 (ESPUÑA, 2010, p.11)

Assim surge o Projeto Cidades Educadoras nos anos 1990 e em 1994, após a
realização do I Congresso Internacional de Cidades Educadoras na cidade de
Barcelona e a formação da Associação Internacional de Cidades Educadoras (AICE).
Esta é uma Associação Internacional, sem fins lucrativos, que se apresenta como uma
“estrutura permanente de colaboração entre governos locais comprometidos com a
Carta das Cidades Educadoras, que é o roteiro das cidades que a
compõem. Qualquer governo local que aceite este compromisso pode se tornar um
membro ativo da Associação, independente de seus poderes administrativos” 15.
(Artigo 4º do Estatuto da AICE).

Nesse sentido, para realizar a análise crítica do Projeto, objeto central deste
trabalho, torna-se necessário colocar em diálogo as propostas, orientações e
diretrizes instituídas e propagadas pela Associação Internacional de Cidades
Educadoras. Assim, o primeiro ponto a ser ressaltado, diz respeito à visão da AICE
sobre o conceito de Cidade Educadora:

É aquele território que aposta na educação como ferramenta de


transformação social, mobilizando e articulando o maior número possível de
agentes educativos existentes no território. Falamos de uma educação ao
longo de toda a vida que atravessa as diferentes esferas da sociedade.
Ser Cidade Educadora implica situar a educação como eixo central do projeto
de cidade, o que implica a tomada de consciência de que as diferentes
políticas e atuações que se propõem e desenvolvem a partir de diferentes
instâncias e serviços municipais (como urbanismo, ambiente, mobilidade,

14
Barcelona Ciutat Educadora Volum II - Deu Anys Del Projecte Educatiu De Ciutat. 2009. P.9.
Publicação Comemorativa dos 10 anos do lançamento do Projeto Cidade Educadora de
Barcelona.Texto original: Una ciutat que, amb il·lusió i treball, aspira a esdevenir un mirall de
participació i de democràcia. Una ciutat plural i oberta per aprendre i exercir els drets i els deures d’una
ciutadania cohesionada que viu en les diferències i lluita contra les desigualtats.
15
Segundo O Estatuto da AICE, publicado em seu site (https://www.edcities.org/quien-somos).
Acessado em 19 de setembro de 2021.
141

cultura, desporto, saúde, etc.) transmitem conhecimentos e educam para


determinados valores e atitudes, de forma intencional ou não.
A Cidade Educadora deve ser entendida como um projeto de cidade que
implica uma governação em rede, que se fundamenta no diálogo e na
colaboração entre o governo municipal e a sociedade civil, assim como com
outras cidades do mundo (GUIA METODOLÓGICO, 2019, p.5)

Esta definição do conceito institucionalizado pela Associação retoma às ideias


sobre cidades educativas publicadas décadas antes no Relatório de Edgar Faure,
membro da Comissão da Unesco. Assim, os princípios orientadores divulgados
naquele Relatório estão presentes na base do Projeto de Barcelona: os princípios da
educação permanente e da articulação e participação das diferentes instituições da
cidade e com os seus respectivos meios de atuação, propondo uma governança em
rede, seja por meio da associação das ações entre as secretarias e entre a sociedade
civil.

O projeto pressupõe a descentralização de políticas públicas ao nível das


cidades, ao nível municipal como forma de tornar as tomadas de decisão mais
próximas das demandas e anseios dos moradores, conhecedores das questões e das
potencialidades do lugar, conforme descrição encontrada no Guia Metodológico
produzido pela AICE em 201916

Os governos locais perfilam-se como a administração de maior proximidade


aos cidadãos. Esta proximidade traduz-se num melhor conhecimento do
território, das problemáticas e dos agentes do território, pelo que os governos
locais são elementos chave na tomada de decisões e no desenvolvimento de
políticas para melhorar o bem-estar dos cidadãos. (GUIA METODOLÓGICO,
2019, p.8)

Segundo informações do Artigo 4º de seu Estatuto, a AICE tem como finalidade:

- Proclamar e reivindicar a importância da educação na cidade;


- Destacar os aspectos educacionais dos projetos políticos de cidades
associadas;
- Promover, inspirar, incentivar, garantir o cumprimento dos princípios incluído
na Carta das Cidades Educadoras (Declaração de Barcelona) nas cidades
membros, bem como aconselhar e informar os membros na promoção e
implementação dos mesmos;

16Informações encontradas no Guia Metodológico: Da Leitura da Carta à Consolidação de uma


Cidade Educadora da AICE.
142

- Representar os Associados na execução dos objetivos associativos,


interagindo e colaborando com organizações internacionais, estados,
entidades territoriais de todos os tipos, de modo que a IAEC é um interlocutor
válido e significativo nos processos de influência, negociação, decisão e
redação;
- Estabelecer relacionamento e colaboração com outras associações,
federações, agrupamentos ou redes territoriais e, em particular, de cidades,
em áreas, planos de ação semelhantes, complementares ou concorrentes;
- Promover a adesão à Associação de Cidades de todo o mundo;
- Promover o aprofundamento do conceito de Cidade Educadora e suas
aplicações concretas nas políticas da cidade por meio de intercâmbios,
reuniões, projetos conjuntos, conferências e reuniões todas as atividades e
iniciativas que fortalecem os laços entre as cidades associados, no domínio
das delegações, redes territoriais, redes temáticas e outros agrupamentos17

De acordo com o seu esquema organizacional, a AICE é dividida em quatro


grandes órgãos18

- Assembléia Geral: órgão supremo da AICE composto por todos os


associados;
- Comitê Executivo: as funções de direção, gestão, execução e representação
da Associação correspondem a ele;
- Secretariado: responsável pela gestão diária da Associação, e
- Networking: estruturas descentralizadas compostas por cidades membros
da AICE de um determinado território.

Torna-se neste momento relevante destacar que a estrutura de “networking”,


diz respeito às Redes Territoriais que fazem parte de Associação. Segundo
informações divulgadas no site da AICE, tais redes “são grupos de cidades duma
mesma zona territorial, que se propõem trabalhar conjuntamente temas de interesse
comum. Cada rede estabelece a sua organização e funcionamento de acordo com os
estatutos da AICE e é coordenada por uma das suas cidades”19.

Logo, as cidades que fazem parte das Redes seguem as diretrizes contidas na
Carta das Cidades Educadoras. Atualmente, a AICE conta com dez redes: Rede
Portuguesa, Rede Mexicana, Rede Italiana, Rede Francesa, Rede Estatal de Cidades
Educadoras (RECE), Rede Brasil (REBRACE), Rede Ásia-Pacífico, Rede Argentina
de Cidades Educadoras (RACE), Grupo de trabalho Europa do Norte e Delegação

17
Segundo informações do Estatuto Associação Internacional de Cidades Educadoras (AICE), p. 3.
Acessado em 19 de setembro de 2021.
18 Segundo informações divulgadas no site da AICE. Acessado em 19 de setembro de 2021.
19
Segundo informações divulgadas no site da AICE. Acessado em 19 de setembro de 2021.
143

para a América Latina. Segundo informações publicadas pela Diretora da Rede


Portuguesa de Cidades Educadoras, Laura Inés (2017)20

A participação em redes tornou-se uma estratégia vital para a inserção das


cidades no ambiente internacional. Algumas de suas vantagens são permitir
que seus membros estabelecem vínculos com um sistema de relacionamento
superior, acessar maiores volumes de informações, estimular o
desenvolvimento interno da qualidade de vida, bem como possibilitar a
promoção no tempo de certas linhas de ações que normalmente são
interrompidas por contingências temporárias. As redes estabelecem novos
critérios organizacionais desde eles colocaram de lado o modelo rígido de
ajuda regional e estatal, permitindo o reconhecimento de interesses
particulares nas diferentes áreas regionais, empoderando cidades e as
regiões são atores ativos na construção de um espaço internacional,
organizando-se em rede e não de forma piramidal.
O conceito de Cidade Educadora implica na necessidade realizar um trabalho
de sensibilização, porque, por um lado, lembra aos cidadãos que é uma
responsabilidade partilhada tente tornar uma cidade mais civilizada, pacífica,
democrático, justo e acolhedor e, por outro lado, lembra quem exercer o
poder político e a gestão governamental, que nem todos têm as mesmas
responsabilidades, uma vez que muitas das ações que eles realizam têm
consequências de caráter educacional.

No decorrer do I Congresso Internacional em Barcelona no ano de 1990 a Carta


das Cidades Educadoras foi elaborada e representa o documento-base para as
cidades que desejam seguir tal “modelo”. Vale destacar que o documento passou pelo
processo de revisão e aprimoramento de sua redação nos Congressos que se
seguiram, 1994 na cidade de Bologna e em 2004 em Gênova e em 2020.

Tais Congressos acontecem a cada dois anos nas cidades associadas, onde
são debatidos os temas selecionados, os conceitos relativos à temática e além do
compartilhamento das experiências em curso mundo a fora. Com a realização dos
Congressos, evidencia-se o papel de organização em rede dos membros da AICE em
dar visibilidade às cidades que a compõe. Portanto, desde os anos 1990, o Congresso
é realizado conforme pode ser observado no quadro abaixo. Nota-se a diversidade de
temas e de cidades.

20Laura Inés Alfonso Directora de la Delegación para América Latina de la AICE. Acessado em 03 de
novembro de 2021.
144

ANO LOCAL TEMA


1990 Barcelona - Espanha A cidade educadora para crianças e jovens
1992 Gotemburgo - Suécia A educação Permanente
1994 Bolonha - Itália Multiculturalismo. Reconhecer-se: para uma nova geografia das identidades
1996 Chicago - EUA As artes e as humanidades como agentes de mudança
1998 Jerusalém - Israel Levar o legado e a história para o futuro
2000 Lisboa - Portugal A cidade, espaço educativo do novo milênio
2002 Tampere - Finlândia O futuro da educação: o papel da cidade em um mundo globalizado
2004 Gênova - Itália Outra cidade é possível. O futuro da cidade como projeto coletivo
2006 Lyon - França O papel das pessoas na cidade
2008 São Paulo - Brasil Construção de cidadania em cidades multiculturais
2010 Guadalajara - México Esporte, política pública e cidadania. Desafios de uma cidade educadora
2012 Changwon - Coreia do Sul Meio ambiente verde, educação criativa
2014 Barcelona - Espanha Uma cidade educadora é uma cidade que inclui
2016 Rosário - Argentina Morando juntos em nossa cidade
2018 Caiscais - Portugal A cidade pertence aos seus cidadãos
2020 Katowice - Polônia - (Cancelado) Cidade de mudança como espaço de criatividade e inovação: música, meio ambiente, lazer e participação
2022 Andong - Coreia Conceber o futuro da educação na cidade: Inovação, tradição e Inclusão

Fonte: Elaborado com base nas informações da AICE, 2021.

Originalmente o Projeto se apoia nos princípios e diretrizes contidos e


pactuados com o intuito de “formar o perfil educativo e social da cidade. De acordo
com a AICE:

A presente Carta baseia-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos


(1948); na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Racial (1965); no Pacto Internacional sobre os Direitos
Económicos, Sociais e Culturais (1966); na Convenção sobre os Direitos da
Criança (1989); na Declaração Mundial sobre Educação para Todos (1990);
na 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher celebrada em Pequim (1995); na
Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2001); na Carta Mundial
pela Direito à Cidade (2005); na Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência (2006); no Acordo de Paris sobre o Clima (2015) e na Agenda
2030 sobre o Desenvolvimento Sustentável (2015) 21

Assim, a Carta das Cidades Educadoras traz suas diretrizes descritas em vinte
princípios básicos, distribuídos segundos três eixos temáticos: O Direito à Cidade
Educadora, O Compromisso da Cidade e Ao Serviço Integral das Pessoas. Vale, neste
momento destacar os princípios em sua totalidade uma vez que por meio deles que
as cidades deverão firmar o compromisso e balizar suas políticas públicas.

21
Segundo informações divulgadas no site da AICE. Acessado em 19 de setembro de 2021.
145

O primeiro princípio contido na Carta das Cidades Educadoras refere-se à


Educação Inclusiva ao longo da vida. Segundo este princípio, o acesso à uma
Cidade Educadora seria um direito extensivo a todos os indivíduos, com direito
assegurado às oportunidades e meios com liberdade e igualdade, garantindo o
atendimento das necessidades específicas de cada um.

O governo e a administração municipal implementarão políticas destinadas a


remover obstáculos de qualquer natureza que prejudiquem o direito à
igualdade e à não discriminação. Tanto a administração municipal, quanto
outras administrações que afetam a cidade, serão responsáveis por isso. Os
cidadãos também deverão comprometer-se com este projeto, pessoalmente
ou através das diferentes formas de associação em que estiverem
organizados. (CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS, 2021, p.13)

O segundo princípio, Política Educativa ampla, afirma o compromisso que as


instituições públicas, especificamente os municípios devem ter em propor políticas de
educação de caráter inovador e amplo, de qualquer natureza, seja ela formal, não
formal e informal, assim como cultivar a relação direta e constante com as distintas
manifestações culturais presentes nos diferentes espaços da cidade.

As políticas municipais de educação serão sempre entendidas como referidas


a um contexto mais vasto inspirado nos princípios de justiça social, igualdade,
cidadania democrática, sustentabilidade, qualidade de vida e promoção de
seus habitantes. (CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS, 2021, p.14)

Sobre o princípio Diversidade e não discriminação, a Carta das Cidades


Educadoras propõe que as cidades promovam uma educação voltada para a
“compreensão, cooperação solidária internacional, reconhecimento e respeito pelos
povos indígenas e outros grupos étnicos objeto de discriminação, bem como a paz no
mundo”. Propõe também a “liberdade de expressão e religião, a diversidade cultural,
o diálogo e a escuta ativa em condições de igualdade”. (CARTA DAS CIDADES
EDUCADORAS, 2021, p.14)

Sendo assim, este princípio indica que as cidades deverão acolher as


iniciativas que busquem tais objetivos, como forma de corrigir os diversos tipos de
desigualdades, seja em função de origem, idade, gênero, étnica, orientação sexual.
Outra menção, diz respeito a necessidade de promover e valorizar o conhecimento,
as formas de aprendizagem e as diferentes linguagens encontradas pelas diversas
cidades como forma de integração e “coesão” entre as pessoas.
146

O quarto princípio relaciona-se à necessidade de garantir o Acesso à cultura


e à participação de todos, principalmente aos grupos que estejam em condições de
maior vulnerabilidade, como forma de incluir as pessoas na vida das cidades para que
possa ser potencializado o sentimento de pertencimento e “boa coexistência”.

Por sua vez, a Cidade Educadora estimulará a educação artística, a


criatividade e a inovação, promovendo e apoiando iniciativas culturais, tanto
de vanguarda, como de cultura popular, como meio de desenvolvimento
pessoal, social, cultural e económico. (CARTA DAS CIDADES
EDUCADORAS, 2021, p.15)

O quinto e último princípio relacionado à temática sobre O Direito à Cidade


Educadora propõe Diálogo intergeracional. Assim, as Cidades Educadoras deverão
promover a proximidade entre as gerações, por meio do diálogo e da convivência,
além de buscar combater o preconceito como forma de compartilhamento de projetos
entre os indivíduos de diferentes faixas etárias. “Estes projetos devem visar a
realização de iniciativas e ações cívicas cujo valor consista, precisamente, no seu
carácter intergeracional e no aproveitamento das respetivas capacidades,
experiências e valores das diferentes idades”. (CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS, 2021,
p.15)

O sexto princípio Conhecimento do Território, relaciona-se à temática O


Compromisso da Cidade. Este princípio evidencia a importância das políticas públicas
e suas respectivas decisões políticas, baseadas no conhecimento sobre o território,
sobre a sua realidade, incluindo informações sobre as condições de vida de sua
população. Segundo a Carta, “na formulação de projetos e políticas, deverá ter-se em
conta, de maneira formal e explícita, o seu impacto educador, devendo assegurar-se,
igualmente, a existência de canais permanentes de comunicação com indivíduos e
grupos”. (CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS, 2021, p.16)

O sétimo princípio Acesso à Informação propõe que os municípios busquem


incentivar seus habitantes a se informarem, além de lhes assegurar o acesso à
informação “suficiente e compreensível”. Caberá então aos municípios garantir as
formas de acesso às informações e meios de conectá-las.

A Cidade Educadora estabelecerá programas de formação em tecnologias


de informação e comunicação para todas as idades e grupos sociais, a fim
de aproveitar as possibilidades que oferecem, não deixando ninguém para
trás e combatendo a exclusão digital. Da mesma forma, promoverá as
capacidades e competências científicas e de investigação de todas as
147

pessoas, especialmente na infância e na juventude, com o objetivo de


fortalecer uma visão crítica e objetiva da realidade. O município apoiará os
grupos que necessitem de acompanhamento específico, disponibilizando
pontos de orientação e acompanhamento com informação especializada.
Com o aumento de instrumentos de possível controlo, como a inteligência
artificial e os Big Data, velará por garantir o respeito pela privacidade, a
intimidade e a autonomia. (CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS, 2021,
p.16-17)

O tema Governança e participação dos cidadãos é o oitavo princípio.


Segundo tal diretriz, indica que a Cidade Educadora deverá se constituir, concepção
e consecução, por meio de uma governança baseada na cooperação para entre os
administradores e os seus cidadãos. A participação deverá ser abrangente e
igualitária para crianças, adolescentes e jovens que terão acesso aos instrumentos de
participação necessários, seguindo uma “perspectiva crítica, construtiva e
corresponsável, na gestão municipal e na vida comunitária”. As instituições e
organizações civis e sociais também participam das decisões.

Para tal, o governo local fornecerá as informações necessárias com


antecedência e promoverá, de modo transversal, orientações e atividades de
formação desde a infância. No termo de um processo participativo, os
resultados serão divulgados publicamente e serão analisados a eficácia e os
limites do procedimento seguido. (CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS,
2021, p.17-18)

O nono princípio Acompanhamento e melhoria contínua prevê o processo


de avaliação dos impactos sociais, ecológicos e claro, educativos nas políticas
públicas em praticados pelo município.

O projeto educativo da cidade, os valores que fomenta, a qualidade de vida


oferecida, as celebrações organizadas, as campanhas ou projetos de
qualquer natureza desenvolvidas, serão objeto de reflexão e avaliação,
recorrendo-se aos instrumentos necessários para garantir a coerência de
políticas que ajudem a promover o desenvolvimento pessoal e coletivo.
(CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS, 2021, p.18)

O décimo princípio refere-se à Identidade da Cidade, que propõe que cada


cidade deverá “encontrar, preservar e apresentar sua identidade própria, complexa e
mutável, bem como valorizar o patrimônio material e imaterial e a memória histórica
que lhe confere singularidade”. Ao valorizar a cultura e identidade, os habitantes da
cidade estarão sensibilizados para o sentimento de pertencimento e
148

consequentemente, de responsabilidade compartilhada. (CARTA DAS CIDADES


EDUCADORAS, 2021, p.19)

A perspectiva de Espaço Público habitável, representa o décimo primeiro


princípio. Segundo a descrição do documento da AICE, o espaço público das cidades
será ordenado para possibilitar o atendimento daqueles que tem necessidades
especiais de “acessibilidade, cuidado, saúde, convívio, segurança, jogo,
espairecimento e conciliação da vida pessoal, familiar e profissional”. Assim, como
deverá estar atenta às demandas das crianças, daqueles que possuem alguma
“diversidade funcional” e pessoas idosas.

Esses espaços serão então ordenados para que todos sejam atendidos e
respeitados, possibilitando autonomia de uso e acesso. Além disso, as Cidades
Educadoras deverão promover espaços para a realização de jogos e atividades
esportivas ao ar livre possibilitando o contato com a natureza.

A transformação de uma cidade deve ser presidida pela harmonia entre as


novas necessidades, a sustentabilidade e a perpetuação de edifícios e
símbolos alusivos ao seu passado e existência. A cidade promoverá o
convívio e a integração da comunidade no espaço público edificado e natural,
evitando sempre a formação de guetos. Por outro lado, a cidade deve garantir
que os seus habitantes vivam em ambientes onde possam descobrir a beleza.
Para tal, introduzirá critérios estéticos e ambientais em todos os seus projetos
e envolverá artistas no ordenamento e conceção dos espaços públicos.
(CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS, 2021, p.20)

O décimo segundo princípio complementa o anterior, ao propor às cidades


educadoras a Adequação dos equipamentos e serviços municipais. A
manutenção dos espaços, bem como dos equipamentos e serviços públicos ficará a
cargo do governo municipal das cidades. Desta forma, tais espaços deverão contar
com o trabalho de “profissionais com formação específica para dar apoio às crianças,
aos adolescentes e aos jovens, bem como aos seniores e às pessoas com
diversidades funcionais”. (CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS, 2021, p.20)

O décimo terceiro princípio diz respeito à Sustentabilidade. Segundo esta


diretriz, uma Cidade Educadora deverá se comprometer a garantir as necessidades
básicas para uma “vida digna”, como: acesso à água, habitação, saneamento,
energia, mobilidade, ambiente seguro e saudável.

A cidade organizar-se-á tendo em conta a dependência entre a vida humana


e os limites físicos do planeta. Promover-se-á ativamente a participação e
149

corresponsabilidade de todos os seus habitantes na adoção de estilos de vida


e de consumo justos, resilientes e sustentáveis, sob os princípios da
suficiência, distribuição e justiça; e tomar-se-ão as devidas precauções para
proteger bens comuns que assegurem uma sobrevivência digna às gerações
atuais e futuras. (CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS, 2021, p.21)

O décimo quarto princípio propõe que a Cidade Educadora deverá garantir que
todas as pessoas tenham uma vida saudável, a partir da Promoção da Saúde na sua
totalidade, pelo seu bem-estar “físico, emocional e mental”, para que isso seja
possível, as cidades deverão investir na promoção do acesso universal à saúde e à
ambientes saudáveis.

A promoção da saúde incluirá a atividade física e educação emocional,


afetivo-sexual, alimentar e de prevenção de dependências. Da mesma forma,
promoverá a construção da cidade como um espaço onde todas as pessoas
se sintam protegidas, favorecendo o envelhecimento ativo e as relações
sociais necessárias para combater a solidão e o isolamento. (CARTA DAS
CIDADES EDUCADORAS, 2021, p.22)

Sob a temática do serviço integral das pessoas, o décimo quinto princípio


propõe a Formação de agentes educativos para que os habitantes das cidades
possam receber formação necessária ao acompanhamento do crescimento dos seus
filhos, “garantindo o equilíbrio entre a necessidade de proteção e a autonomia na
descoberta da cidade, num espírito de respeito e confiança”.

Neste sentido, desenvolverá propostas de formação para profissionais e


todos aqueles que, na cidade, desempenham, muitas vezes sem saber,
funções educativas. Por outro lado, certificar-se-á de que os órgãos de
segurança e proteção civil diretamente dependentes do município atuem de
acordo com as referidas propostas. (CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS,
2021, p.22)

A orientação e inserção laboral inclusiva, o décimo sexto princípio, sugere


que a cidade deve oferecer os meios para que os indivíduos tenham a perspectiva de
“ocuparem um lugar na sociedade”, assim como as cidades deverão ser capazes de
garantir o “aconselhamento necessário para a sua orientação pessoal e profissional,
promovendo o empreendedorismo. O princípio reforça a ideia de que as cidades
deverão promover fortemente a relação educação-trabalho, isto é, entre os “planos
educativos e as necessidades do mercado de trabalho e comunidade”.

Neste sentido, as cidades definirão estratégias de formação de carácter


formal e não formal ao longo da vida, bem como de acompanhamento de
150

grupos em situação de desigualdade, exclusão ou inseridos na economia não


formal, que lhes permitam melhorar a sua qualidade de vida. Assim,
cooperarão com organizações sindicais e empresariais na criação de
empregos que possibilitem a sua inserção sociolaboral. (CARTA DAS
CIDADES EDUCADORAS, 2021, p.23)

O décimo sétimo princípio fala da Inclusão e coesão social. Para isso, a Carta
propõe que as cidades deverão criar políticas preventivas contra ações de exclusão e
violação de direitos e marginalização. Acrescenta que as cidades precisam centralizar
a atenção aos “recém-chegados, migrantes e refugiados, que têm o direito, para além
da mobilidade entre países, de sentir livremente a cidade”, além de ter seus interesses
e necessidades, conhecimentos e competências singulares valorizados. (CARTA DAS
CIDADES EDUCADORAS, 2021, p.24)

Uma proposta complementar, afirma que as cidades deverão emprenhar-se na


“promoção da coesão social entre os bairros e os seus habitantes de todas as
condições” e deverão trabalhar com “grupos autóctones estigmatizados e
marginalizados”. A Carta diz “A Cidade Educadora comprometer-se-á a erradicar
todas as formas de violência e assédio, dedicando uma atenção especial à violência
de género ou com base na identidade e orientação sexual, origem e etnia, idade,
aparência física, etc”. (CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS, 2021, p.24)

O décimo oitavo princípio também está relacionado à redução das


desigualdades entre os habitantes das cidades. Com o tema Corresponsabilidade
contra as desigualdades, a Carta afirma que as ações em prol ao combate das
desigualdades podem ter múltiplas formas, porém devem estar relacionadas à uma
visão ampla e global dos direitos e interesses individuais. Lembra que as intervenções
devem, portanto, garantir a

Corresponsabilidade e coordenação entre as administrações envolvidas e os


seus serviços, assentando no melhor conhecimento que a administração local
possui das necessidades e do território. Na luta contra as desigualdades,
também será incentivada a cooperação entre as administrações e a
sociedade civil organizada, ONG, organizações sem fins lucrativos,
comunidade empresarial e outras iniciativas privadas. (CARTA DAS
CIDADES EDUCADORAS, 2021, p.25)

O décimo nono princípio Promoção do associativismo e do voluntariado,


orienta que as cidades estimulem o “associativismo colaborativo e o voluntariado” para
incentivar a participação e a corresponsabilidade cívica, por meio de ações à
151

comunidade que busquem o crescimento integral das pessoas. Segundo a Carta, as


cidades deverão apoiar as iniciativas diversas, seja na área da cultura, do desporto,
da solidariedade sempre em prol dos direitos humanos e valores democráticos. Assim,
“Paralelamente, oferecerá formação para uma maior eficácia nos processos de
decisão coletiva, planeamento e gestão inerentes à vida associativa”. (CARTA DAS
CIDADES EDUCADORAS, 2021, p.25)

O vigésimo e último princípio propagado na Carta das Cidades Educadoras,


Educação para uma cidadania democrática e global, sugere que as cidades
ofereçam uma formação “em valores e práticas de cidadania democrática que
promovam o respeito, a tolerância, a participação, a responsabilidade, o interesse pelo
que é público e o comprometimento com o bem comum”. Além disso, a Cidade
Educadora deverá promover a “consciencialização sobre a interdependência da
dimensão local e global que os desafios globais representam, facilitando a formação
de uma cidadania global, capaz de participar, comprometer-se e dar o seu contributo
à escala local e internacional”. (CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS, 2021, p.26)

Ao final da divulgação dos vinte princípios, o documento esclarece que a sua


aplicação deverá contribuir para que “cada pessoa sinta a cidade, o seu meio
envolvente e o planeta como seus” (CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS, 2021, p.26). A
descrição, a leitura e análise dos vinte princípios contidos na Carta das Cidades
Educadoras se fez necessário uma vez que tais princípios são a prerrogativa para que
as cidades, espalhadas mundo a fora, façam parte da Associação Internacional de
Cidades Educadoras. Seguir tais princípios é condição fundamental para ingressar na
Associação Internacional de Cidades Educadoras.

Pressupõe-se que tais cidades, ao ingressarem na AICE tenham como


contrapartida a realização prática, a aplicação em suas políticas públicas municipais
de tais princípios, estando então atrelados às perspectivas políticas e interesses dos
governos locais. Qualquer cidade poderá se associar e receber a chancela de Cidade
Educadora, para isso ela deverá subscrever e seguir os princípios difundidos no
documento base da proposta, isto é, na Carta das Cidades Educadoras. Ao seguir as
normas divulgadas pela Associação Internacional, o procedimento que as cidades
candidatas devem adotar, segundo informações divulgadas pela própria AICE22, são:

22
Segundo informações divulgadas no site da AICE. Acessado em 21 de setembro de 2021.
152

1. Aprovação da adesão por parte do órgão máximo de decisão municipal dos


políticos eleitos (Assembleia Municipal ou outros).
2. Cumprimento dos princípios da Carta das Cidades Educadoras.
3. Participação nos canais de debate, intercâmbio e colaboração da AICE.
4. Pagamento da quota anual correspondente dentro dos prazos previstos.
5. Preenchimento de todos os campos do formulário de adesão à AICE e
subscrição da Carta das Cidades Educadoras, assinada pelo/a Presidente da
Câmara e ratificada pelo órgão municipal competente dos políticos eleitos
(Conselho Municipal, Conselho Plenário ou outros).
6. Envio da cópia do acordo do órgão mencionado e o formulário de adesão ao
Secretariado da AICE.
7. Pagamento da quota correspondente.

Atualmente, seguindo informações da própria AICE, 495 cidades fazem parte


da Associação. Desde o surgimento do Projeto o número de cidades associadas vem
se ampliando, conforme se observa no Gráfico23 que demonstra tal crescimento das
Cidades-membro da AICE no período entre 1995 e 2016.

Cidades-membro da AICE
1995 -2021
600 488 495
450 454 477 478 480
500 427
400 323
300 216
200
100
0

Observa-se, por meio deste gráfico, um contínuo crescimento no número de


cidades que seguem o modelo Barcelona para desenvolver seus projetos de
educação urbana. Tal fato evidencia a capacidade de difusão do projeto pelas
diversas cidades que buscam acompanhar um padrão internacional de projeto e
comungam de seus pressupostos e conceitos, no que diz respeito às práticas
educativas e desafios da educação no futuro.

Cada uma das cidades associadas se compromete, além de seguir as diretrizes


e princípios já mencionados neste capítulo, a pagar uma quota anual de acordo com

23Elaborado com base no Gráfico de Alves (2018), adaptado com informações adicionadas por meio
de informações da AICE, acessado em 01 de novembro de 2021.
153

o seu número de habitantes. Desta forma, para o pagamento da quota as cidades são
enquadradas conforme pode-se visualizar na tabela abaixo. Segundo (Alves, 2018, p.
128) “as quotas representam mais de 50% do orçamento da Associação, sendo que
outras parcelas são compostas por recursos da prefeitura de Barcelona, doações e
por outros investimentos públicos e privados”.

De acordo com Alves (2018), aproximadamente 48% das cidades associadas


são cidades com menos de 50.000 habitantes24. Portanto, a partir dessa análise é
possível destacar que as pequenas cidades, além de serem a grande maioria das
cidades-membro da AICE buscam estar na “vitrine” das cidades que fazem parte de
um projeto tão extenso e dessa natureza. A perspectiva do marketing das cidades
perpassa também a sua visibilidade por meio de projetos modelo na área da
educação, especialmente neste caso, voltados à relação educação e cidade.

Com isso, tais cidades acabam por se inserir em novas redes territoriais que
possibilitam o diálogo direto entre cidades, para possíveis intercâmbios de
informações e experiências. A AICE conta com a participação de cidades de 35
países, conforme pode-se observar no mapa abaixo.

24 Segundo informações coletadas até o ano de 2017 pela autora.


154

Fonte: Mapa das Cidades Associadas (AICE), 202125.

25
Tabela elaborada com base nas informações pesquisadas no site da AICE.
155

CONTINENTE PAÍS CIDADE


Benin 3
Cabo Verde 1
África Marrocos 1
Senegal 1
Togo 1
Argentina 32
Bolívia 1
Brasil 21
Colômbia 5
Costa Rica
América
Equador 2
México 11
Porto Rico 1
Uruguai 1
Venezuela 1
Austrália 1
Filipinas 1
Nepal 1
Ásia Pacífico
Palestina 1
República da Coreia 23
Tailândia 1
Alemanha 1
Bélgica 1
Croácia 1
Dinamarca 1
Espanha 228
Finlândia 3
França 45
Europa
Grécia 1
Itália 11
Polônia 1
Portugal 88
Romênia 1
Suécia 1
Suíça 1

A partir da observação e análise da tabela26 é possível verificar a


predominância das cidades europeias na Associação. Espanha é o país com maior
número de cidades-membro possivelmente pelo fato de ter sido precursora no
movimento mundo a fora, seguida de Portugal e França. Na América do Sul,

26
Tabela elaborada com base nas informações pesquisadas no site da AICE.
156

Argentina, Brasil e México são os países com maior número de cidades integrando a
AICE, respectivamente. A Argentina possui uma Rede que agrega as cidades
educadoras de todo o país.

O Brasil conta atualmente com 21 cidades associadas à AICE. Conforme


distribuição apresentada na tabela a seguir27.

CIDADES ESTADO REGIÃO POPULAÇÃO


Araraquara São Paulo Sudeste 240.542
Camargo Rio Grande do Sul Sul 2.750
Carazinho Rio Grande do Sul Sul 62.413
Curitiba Paraná Sul 1.963.726
Gramado Rio Grande do Sul Sul 36.864
Guarulhos São Paulo Sudeste 1.404.694
Horizonte Ceará Nordeste 69.688
Marau Rio Grande do Sul Sul 45.523
Mauá São Paulo Sudeste 481.725
Nova Petrópolis Rio Grande do Sul Sul 21.717
Passo Fundo Rio Grande do Sul Sul 206.103
Santiago Rio Grande do Sul Sul 49.298
Santo André São Paulo Sudeste 723.889
Santos São Paulo Sudeste 433.991
São Bernardo do Campo São Paulo Sudeste 849.874
São Carlos São Paulo Sudeste 256.915
São Gabriel Rio Grande do Sul Sul 62.187
São Paulo São Paulo Sudeste 12.396.372
Soledade Rio Grande do Sul Sul 31.067
Sorocaba São Paulo Sudeste 695.328
Vitória Espírito Santo Sudeste 369.524

As regiões Sul e Sudeste contemplam em sua grande maioria o número de


cidades-membro, conforme gráfico a seguir.

27
Tabela elaborada com base nas informações pesquisadas no site da AICE e no Portal do IBGE
Cidades. Acessado em 04 de novembro de 2021.
157

N Ú M E R O D E C I D AD E S P O R R E G I ÃO

10

10
1
NORDESTE SUDESTE SUL

Contagem de Cidades-Membro por Porte da Cidade


14
12
12
10
8
6 5
4
4
2
0
Grande Média Pequena

Tal fato se comprova quando analisamos a distribuição das cidades associadas


pelo seu porte, com predominância de cidades de grande porte, com população acima
de 100 mil habitantes, seguida pelas cidades de pequeno porte. As cidades de grande
porte se beneficiam da sua capacidade de inserção em uma rede internacional e nas
possibilidades de execução dos requisitos exigidos pela AICE. As cidades de pequeno
porte se beneficiam da visibilidade de fazerem parte desta rede.

Porém, quando analisamos os dados divulgados pelo principal canal de


informação da AICE, sobre os projetos desenvolvidos pelas cidades brasileiras, foco
de análise crítica proposto para este capítulo, encontramos tal cenário.
158

CIDADES PROJETOS DESENVOLVIDOS*


Araraquara 0
Camargo 0
Carazinho 0
Curitiba 1
Gramado 0
Guarulhos 0
Horizonte 0
Marau 0
Mauá 0
Nova Petrópolis 1
Passo Fundo 0
Santiago 2
Santo André 3
Santos 1
São Bernardo do Campo 1
São Carlos 2
São Gabriel 0
São Paulo 17
Soledade 0
Sorocaba 10
Vitória 0

*Projetos desenvolvidos no âmbito da AICE28

Das 21 cidades brasileiras que hoje fazem parte da AICE, somente 9 cidades
desenvolveram ou desenvolvem algum tipo de atividade no escopo daquelas
sugeridas na Carta das Cidades Educadoras, são elas: Curitiba, Nova Petrópolis,
Santiago, Santo André, São Bernardo, São Carlos, São Paulo e Sorocaba.

A cidade de Curitiba realizou o projeto em conjunto com as escolas da rede


municipal o Programa Linhas do Conhecimento em 2017. Um projeto de educação
que possibilita o acesso aos espaços culturais da cidade. A última atualização
disponível está datada de 2020.

Nova Petrópolis, no Rio Grande do Sul, divulga o seu projeto de promoção da


leitura junto às escolas públicas da cidade cuja data de início é 1994. Atividades como
Feira Anual do Livro e o Dia Municipal da Leitura são as ações vinculadas à AICE
divulgadas.

Santiago, cidade também do Rio Grande do Sul, tem dois projetos divulgados
pela AICE, como a Estação do Conhecimento, um espaço cultural fundado em 2011,

28
Tabela elaborada com base nas informações pesquisadas no site da AICE
159

com diversas ações educativas. Além disso, a cidade também possui desde 2010 o
programa Smequinho, um programa de leitura realizado num microônibus adaptado
para se tornar uma biblioteca itinerante, que percorre as escolas da cidade. A última
data de atualização do projeto é 2012.

A cidade de Santo André possui três projetos divulgados pela AICE, os três
sem data de atualização atual. O Projeto Música nas escolas (2007- 2013), o
Programa Pé no Parque (2009-2010) oferece aos moradores atividades de educação
física nos parques da cidade por professores e estagiários de educação física e por
fim, o curso Promotoras Legais Populares (2001-2008), segundo informações
divulgadas pelo site da AICE29, “trata-se de uma forma de ação afirmativa, no sentido
de empoderamento da mulher, voltada para o estímulo e promoção da mulher nos
órgãos de poder e na luta pelo reconhecimento e efetivação dos direitos de cidadania”.

Em São Bernardo do Campo o projeto Plano Plurianual Participativo, iniciado


em 2009 e com última atualização datada em 2015, no qual a população da cidade
participou das reuniões sobre o seu Plano Plurianual. Este é o único projeto da cidade
divulgado pela Associação.

Na cidade de São Carlos dois projetos foram desenvolvidos no âmbito da AICE.


O projeto Universidade Aberta do Trabalhador iniciado em 2001 com última
atualização datada em 2008, consiste em uma formação profissional de pessoas
desempregadas, que necessitem de uma formação de “reciclagem” profissional.

Sendo assim, de acordo com as informações divulgadas “as ações da


Universidade dos Trabalhadores estão centradas na formação profissional, tendo
como objetivo a aprendizagem ao longo da vida e os quatro pilares do conhecimento:
aprender a saber, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser” 30. Tais
pilares aparecem em consonância com a proposta inicial do Projeto Cidades
Educadoras. Outro projeto desenvolvido Papo Cabeça (2005 a 2007) propôs a criação
de grupos de conversa para troca de experiências e dilemas dos jovens.

29 Informação Acessada em 07 de novembro de 2021.


30 De acordo com informações divulgadas no pesquisadas no site da AICE. Acessado em 07 de novembro de
2021.
160

A cidade de São Paulo aparece como a que mais desenvolveu projetos na


perspectiva da AICE. De acordo com as informações da Associação, foram 17
projetos, somente um com atualização deste ano, 2021.

PROJETOS INÍCIO ATUALIZAÇÃO


Programa Transcidadania, um projeto de inclusão social para pessoas transexuais e travestis 2015 2016
Projeto Memória & Vida 2014 2016
Empregabilidade Pop Rua 2013 2014
A prática de exercícios físicos auxilia o cidadão na participação ativa na comunidade 2009 2010
Virada Esportiva 2003 2010
Ruas de lazer 1976 2009
Clube escola 2007 2009
Clube da caminhada 2008 2009
O Centro de Sao Paulo é uma sala de aula 2005 2008
Selo Diversidade Cidade de Sao Paulo 2006 2008
Pedagogia hospitalária en Sao Paulo 1987 2008
Programa Crédito Popular Solidário 2001 2008
Museu Afro Brasil 2004 2007
Centro Cultural da Juventude 2005 2021
Bairro-escola 1997 2007
Programa "São Paulo é uma Escola 2005 2007
CEU - Centro de Educação Unificado) 2003 2005

Ao observar a tabela construída com base nas informações divulgadas pela


própria AICE, nota-se que alguns projetos aparecem com data de início anterior à
criação da própria AICE (1994). Desta forma, acredita-se que tais projetos tenham
sido incorporados à proposta e requisito após o início de sua realização, não estando,
portanto, no escopo do Programa.

Por fim, a cidade de Sorocaba que contou com 10 experiências articuladas à


AICE, conforme destacados na tabela a seguir.

Projeto Novo Tempo - Reinserçao de egressos e familares 2007 2012


Universidade do Trabalhador Empreendedor - Formação Cidadã 2010 2012
Oficinas de Plantio e Doação de mudas 2009 2012
Saída Educacional (Roteiro Educador) 2010 2010
Escola em Tempo Integral - Oficina do Saber 2007 2010
Amigos do Zippy em casa 2008 2009
Programa "Clube da escola" - Escola aberta aos finais de semana 2007 2009
Programa Pedala Sorocaba 2008 2009
Caravana da Cultura 2007 2009
Projeto Bairro Mais Feliz 2007 2008
161

Logo, o Brasil conta atualmente com 21 cidades associadas formalmente à


AICE, destaca-se mais uma vez que, para se tornar uma cidade-membro cada cidade
deve além de buscar realizar os princípios contidos na Carta das Cidades Educadoras,
além do pagamento da quota anual, a cidade deverá planejar e executar projetos
afinados com o

Compromisso com um modelo de cidade regida por valores de inclusão,


igualdade de oportunidades, justiça social, democracia participativa,
convivência entre diferentes culturas, diálogo entre gerações, promoção de
estilos de vida saudáveis e respeitadores do meio ambiente, planificação de
uma cidade acessível e interconectada, cooperação e paz, entre outros
aspetos. Princípios, todos eles, alinhados com a Agenda 2030 das Nações
Unidas para o desenvolvimento sustentável. (GUIA METODOLÓGICO, 2019,
p.5)

Ao analisar as informações divulgadas por meio do seu principal canal de


informação e divulgação, o próprio site da Associação Internacional de Cidades
Educadoras, evidencia-se à questão destacada para fins desse trabalho.

No que diz respeito às cidades brasileiras associadas, somente algumas


realmente desenvolveram projetos de educação urbana, segundo a perspectiva
adotada e prescrito pelo modelo Barcelona. Além disso, mesmo aquelas que
desenvolveram experiências em suas cidades de projetos relacionados a busca por
uma participação cidadã, ao direito à cidade, não deram continuidade de suas ações.

Outro ponto observado diz respeito à natureza das propostas desenvolvidas,


com temáticas e focos de público, demandas e problemas, perfeitamente alinhados
às ações pertinentes e do escopo de trabalho e da natureza das secretarias e
prefeituras, ou seja, são ações que normalmente seriam desenvolvidas ou estavam
no escopo de demanda dos seus moradores, independente dessas cidades estarem
ou não associadas a uma Associação Internacional.

Outra questão passível de análise no que se refere à interferência da AICE, na


dinâmica da administração pública das cidades, encontra-se o material de apoio que
os governos municipais recebem como instrumento de “orientação” de aplicação da
proposta. Assim, a AICE disponibiliza o material “Da Leitura da Carta à consolidação
de uma Cidade Educadora: Guia Metodológico”.
162

Tal material merece ser destacado e discutido como mais um elemento a ser
analisado, uma vez que a sua leitura suscita novos questionamentos e indagações. O
Guia foi elaborado a partir da experiência das diversas cidades -membro da AICE
“tendo em conta a diversidade cultural, geográfica e a dimensão dos municípios que
a compõem” (GUIA METODOLÓGICO, 2019, p.5)

O texto deste Guia ressalta que as singularidades de cada cidade são


importantes para o desenvolvimento da proposta, uma vez que tanto as realidades,
recursos e competências são distintas, e assim, a construção de uma Cidade
Educadora também não será viabilizada de uma única forma. Porém, a proposta do
Guia segue não somente orientando o diagnóstico das cidades, mas sugere um
caminho único para tais ações.

Segundo o seu texto “Neste guia apresentamos algumas orientações para que
as cidades iniciem, renovem ou reafirmem o seu compromisso de avançar na
construção de uma Cidade Educadora, para situar a educação como uma prioridade
na agenda municipal e dispor de ferramentas que ajudem a consolidar os seus
avanços” (GUIA METODOLÓGICO, 2019, p.5)

O material foi dividido em três blocos temáticos. “No primeiro, é proposta uma
fase inicial de trabalho interno por parte do governo municipal. No segundo, aborda-
se o trabalho em rede com a sociedade civil. Por último, o guia convida as cidades a
aproveitar as potencialidades do trabalho em rede a uma escala internacional”. (GUIA
METODOLÓGICO, 2019, p.5)

Logo, o Guia inicia seu percurso ao ditar as diretrizes e caminhos que uma
cidade deverá seguir até se tornar uma “Cidade Educadora”. O primeiro passo diz
respeito ao processo institucional, trabalho que acontece dentro da esfera municipal
e aparece com o subtítulo “Iniciamos?”. Nesta seção, a proposta é que os governos
locais iniciem uma preparação interna para que se estabeleça uma rede entre as
entidades presentes no território. O texto afirma que

A construção da cidade como espaço educador requer um impulso político


inicial que conte com o apoio das diferentes sensibilidades políticas do
município. Por essa razão o processo deve iniciar-se na base de um diálogo
fértil e aberto entre o governo municipal e as restantes forças políticas, tendo
em vista somar apoios para que a decisão de adoção dos princípios da Carta
das Cidades Educadoras e de adesão à AICE seja aprovada por um amplo
consenso. Este consenso político servirá de garantia na manutenção de um
projeto sustentado, que transcenda possíveis alterações de governo. (GUIA
METODOLÓGICO, 2019, p.6)
163

Após conseguir o apoio político interno será preciso preparar uma “estrutura
mínima de funcionamento e coordenação, para buscar o trabalho com a sociedade
civil”. No que diz respeito à importância do apoio de lideranças políticas, o texto
apresenta a seguinte afirmação

Trata-se de um projeto de cidade que está para além das competências de


uma única área (pelouro/secretaria ou departamento). Dada esta amplitude e
transversalidade, existe o risco de que nenhum/a dos e das múltiplos/as
responsáveis políticos/ as e técnicos/as sinta o projeto como seu. Por isso, a
Cidade Educadora requer uma forte liderança política que dê cobertura a todo
o processo para poder influenciar tanto na gestão municipal como nos
agentes locais da comunidade. Neste sentido, é fundamental que o
Presidente da Câmara Municipal ou Prefeito lidere o processo para potenciar
o alcance do projeto e dar coerência ao conjunto de ações que, a partir de
diferentes áreas de atuação, contribuem na construção da Cidade Educadora
(GUIA METODOLÓGICO, 2019, p.6)

Após a criação do grupo de Coordenação da Cidade Educadora que irá


conduzir o diagnóstico das necessidades, prioridades e discutir as metodologias a
serem implementadas nos projetos municipais. O Guia então sugere que o processo
de constituição de uma Cidade Educadora dentro da esfera administrativa municipal,
não significa “um rutura ou modificação das políticas existentes, mas um novo olhar
sobre o que se está fazendo” (GUIA METODOLÓGICO, 2019, p.7)

E sendo assim, sugere a reflexão sobre as seguintes questões: “Que princípios


da Carta das Cidades Educadoras trabalhamos no nosso serviço? Como trabalhamos
(lista de programas e projetos) e, Com quem contamos? (Lista de recursos, espaços
e equipamentos na cidade educativos)”. Em seguida, o material traz “Exemplos de
Programas que podem surgir nesta primeira reflexão” (GUIA METODOLÓGICO, 2019,
p.7).
164

Fonte: Guia Metodológico da Cidade Educadora

Nota-se que a lista de exemplos de programas aparece diversa e extensa.


Surge neste momento o questionamento se tais exemplos são sugestões de
Programas a serem desenvolvidos nas cidades-membro pela Associação, como uma
antecipação de propostas ou mesmo se a lista, com a diversidade de temas, seja fruto
de experiências já desenvolvidas em outras cidades associadas ao longo da história
do Projeto.

O Guia segue propondo então que o trabalho entre a equipe selecionada para
a implementação esteja articulado e que receba o apoio de todas as forças políticas
da esfera administrativa municipal, uma vez que “a Cidade Educadora deve ser
construída, de forma transversal, a partir de uma rede de atores, a título individual ou
coletivo, que trabalhem de forma coordenada a partir de diferentes âmbitos” (GUIA
METODOLÓGICO, 2019, p.9)

No quadro abaixo, o material traz um esquema que explicita quais seriam os


“benefícios” e “desafios” do trabalho em rede com a sociedade civil.
165

Fonte: Guia Metodológico da Cidade Educadora

Porém, em um trecho do material é destacado que esse trabalho com a


participação da sociedade civil aconteça depois que o trabalho interno tenha definido
os caminhos e as bases do trabalho. Assim, mais uma vez, o discurso de construção
participativa de propostas se esvai conforme divulgado no trecho “O trabalho em rede
com entidades da sociedade civil deve ser desenvolvido depois de, na própria
instituição, terem sido assentes as bases do trabalho” (GUIA METODOLÓGICO,
2019, p.9).

Desta forma, mais uma vez evidencia-se uma proposta de construção


participativa de propostas, mas que não se configura muitas vezes na realidade
daquilo que se pratica, nas ações realizadas. Em seguida sugere quais entidades
podem ser convidadas a participar pelo Grupo de Coordenação, como:

No trabalho de construção da Cidade Educadora há um conjunto de


entidades diretamente vinculadas ao âmbito escolar e/ou académico:
escolas, associações de estudantes, associações de pais, escolas de
segunda oportunidade, universidades, centros de formação profissional, etc.
É necessário contar também com os atores com uma consciência clara sobre
a sua ação educativa: entidades culturais e musicais, associações
desportivas, de tempos livres, organizações ambientais, associações e
fundações de solidariedade e ação social, centros de saúde, etc. A Cidade
Educadora deve incorporar também na sua rede um leque o mais amplo
possível de entidades e organizações, cujo potencial educativo está
frequentemente por desvendar e mostrar à escala local. Os meios de
comunicação, o tecido empresarial ou as ordens profissionais são apenas
alguns exemplos de entidades e organizações da sociedade civil
indispensáveis para a construção da Cidade Educadora. (GUIA
METODOLÓGICO, 2019, p.9)
166

Após a configuração da relação entre o Grupo de Coordenação, esfera


administrativa e entidades que poderão se juntar à construção da Cidade Educadora,
o texto indica que é preciso materializar um Pacto pela Cidade Educadora. Tal pacto
deve configurar nos interesses comuns e gerar “sinergias entre poder público e
sociedade civil”. O texto também destaca a necessidade de se avaliar continuamente
as ações planejadas e executadas, por meio de um protocolo de avaliação, elaborado
pela AICE e anexado como formulário no próprio material do Guia.

Torna-se, pois necessário, estabelecer uma alocação de tarefas e um


calendário de trabalho, acompanhado de um sistema de acompanhamento
baseado em indicadores que permitam conhecer, por um lado, os avanços
realizados e, por outro, a consonância entre objetivos estabelecidos e
resultados obtidos. O estabelecimento de grupos de trabalho mistos
(município, entidades da sociedade civil, universidade, peritos e cidadãos a
título individual) permite desenvolver as ações estabelecidas para cada meta,
assim como realizar um acompanhamento dos avanços realizados e dos
temas pendentes em cada uma das metas definidas (GUIA
METODOLÓGICO, 2019, p.10)

O ponto extremamente relevante do Guia, tópico de destaque no material diz


respeito à Visibilidade da Cidade Educadora. Tal ponto indica a conveniência de
acompanhamento do processo de construção da Cidade Educadora pelas equipes
envolvidas, por meio de “processos que transmitam e deem visibilidade ao projeto”.
Nesse contexto, o material sugere que se elabore campanha de comunicação interna,
como forma de dar ciência aos integrantes e colaboradores da administração local
sobre “o compromisso como Cidade Educadora e a necessidade de repensar as
políticas públicas com base neste olhar (espaço na intranet, publicações internas,
comunicações ou outras vias…)” (GUIA METODOLÓGICO, 2019, p.11)

A comunicação externa também é citada como forma de visibilidade à


construção da Cidade Educadora. O texto afirma que

Importa destacar a importância de que o presidente de câmara ou prefeito


divulgue através da sua agenda pública o projeto de Cidade Educadora. Os
atos públicos (inaugurações, reuniões, atividades…) se apresentem como
oportunidades para explicitar ou vincular a atividade com o compromisso da
Cidade Educadora. Outras formas de visibilizar o potencial educativo das
diferentes ações municipais consiste em fazer publicidade das mesmas
através de diferentes formatos: criação de um espaço web sobre a Cidade
Educadora, boletim informativo, publicações temáticas, meios de
comunicação local… se trata de utilizar os diferentes canais de comunicação
existentes para explicar o carácter educador das iniciativas desenvolvidas de
acordo com a Cidade Educadora (GUIA METODOLÓGICO, 2019, p.11)
167

Nessa perspectiva de proporcionar visibilidade do projeto, a Associação


Internacional de Cidades Educadoras (AICE) instituiu o dia 30 de novembro como o
Dia Internacional da Cidade Educadora como forma de “criar consciência, à escala
mundial, da importância da educação como motor de mudança e acrescentar novas
alianças a favor deste modelo de cidade”.

Destaco aqui neste trecho a expressão que perpassa toda a ideia de criação,
desenvolvimento e expansão do projeto mundo a fora, “modelo de cidade”. O texto
destaca a função de se celebrar tal data ao indicar que

A celebração deste ato é um bom momento para recordar, também a nível


interno, a responsabilidade partilhada na construção de uma Cidade
Educadora. Para isso é conveniente que os atos de preparação e celebração
envolvam o conjunto das áreas de atuação municipais, dando visibilidade à
rede de programas que dão forma à Cidade Educadora. É também um bom
momento para fazer um reconhecimento público às entidades que contribuem
para a Cidade Educadora, assim como para dar a conhecer o Pacto pela
Cidade Educadora. Além disso a organização de atividades nos espaços
públicos permite atingir um maior número de pessoas. Esta celebração
recorda-nos que este compromisso é partilhado com cerca de 500 cidades
de todo o mundo (GUIA METODOLÓGICO, 2019, p.11)

Mais uma vez o texto do Guia então afirma a importância do trabalho em “rede
com outros municípios” e justifica essa relevância a ao observar que “As cidades
deixaram de ser unidades administrativas dependentes de entidades de governo
hierarquicamente superiores (regiões e estados) para se tornarem órgãos com
responsabilidades, competências e incumbências cada vez maiores. Por sua vez, os
governos locais adquiriram maior protagonismo como motores da mudança social e
como atores do mundo global” (GUIA METODOLÓGICO, 2019, p.12)

A contrapartida que a AICE oferece, além da já comentada visibilidade de


cidades em uma rede de escala internacional, se expressa na justificativa de que tais
cidades não estão isoladas “na tarefa de converter a educação como eixo central no
projeto de cidade, uma vez que contam com a assessoria e a atenção personalizada
da AICE para a implantação dos princípios da Carta das Cidades Educadoras” (GUIA
METODOLÓGICO, 2019, p.12).

As cidades poderão se beneficiar e terão ao seu dispor alguns recursos como:


acervo bibliográfico como monografias editadas pelas própria AICE, com foco na
concretização do conceito, acesso livre ao Banco de Experiências desenvolvidos
pelas cidades-membro, além, de formação on-line e presencial e visitas de estudo
168

para o conhecimento das práticas realizadas por outras cidades. Outra iniciativa da
AICE que merece destaque nessa crítica que se pretende formular neste trabalho é o
Prêmio Cidades Educadoras que “pretende valorizar e reconhecer internacionalmente
o trabalho realizado pelas cidades e inspirar outras na construção de territórios mais
educadores” (GUIA METODOLÓGICO, 2019, p.12).

Evidencia-se ao final deste capítulo a importância e pertinência dos temas


contidos no texto do documento-base, assim como nos temas sugeridos de projetos
a serem implementados nas cidades membro da AICE. Porém o que foi possível
observar ao longo deste trabalho, que no caso das cidades brasileiras associadas e
que seguem e perseguem, portanto, o modelo Cidade Educadora é que tais princípios
não se efetivam, não se revertem em ações contínuas ou mesmo que algumas dessas
cidades nem mesmo desenvolvem qualquer tipo de projeto, programas ou ações
como política pública contínua, executada pela administração municipal.

Nesse sentido, entende-se e valoriza-se importância de projetos que enaltecem


o caráter educativo das cidades, dos espaços urbanos, projetos que sensibilizam seus
habitantes para uma valorização de sua história, patrimônio, sentido de
pertencimento. Projetos que sejam pensados, propostos, construídos a partir do olhar
daqueles que experimentam e vivenciam o lugar, a partir, portanto, da história, do
cotidiano de seus indivíduos.

Sendo assim, para que isso não se torne mais uma utopia é preciso ir além do
discurso que enobrece as propostas da chancela do modelo Barcelona que se espalha
mundo a fora, que vende uma possível visibilidade internacional às cidades que
buscam uma valorização externa.
169

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como intuito realizar uma análise crítica do Projeto “Cidades
Educadoras”, buscando verificar sua viabilidade de implementação frente ao discurso
expresso nos princípios norteadores, contidos na “Carta das Cidades Educadoras”.
Tal documento, gerado após o I Congresso Internacional das Cidades Educadoras no
início da década de 90, vem sendo adotado como “modelo” de experiência em
Educação Urbana pelo mundo, por cidades que desejam ser transformadas em
“cidades educadoras”.

O Brasil atualmente conta com 21 cidades associadas que deveriam seguir as


diretrizes propagadas pela Associação Internacional de Cidades Educadoras (AICE)
em suas políticas públicas, como forma de contrapartida à sua inserção nesta rede
internacional de cidades.

Portanto, a análise teve como ponto de partida a urgência ou necessidade de


reflexão sobre uma proposta de educação urbana, diretamente relacionada à
perspectiva de seus moradores ou daqueles que utilizam dos espaços da cidade,
fundamentalmente dos espaços públicos, por meio suas percepções na busca ou na
proposição de ações de forma participativa, de forma coletiva e comunitária.
Nesta perspectiva, observa-se que as cidades modernas passam por um
período de crise de sua função comunitária e educativa. Entende-se que também é
papel dos espaços urbanos agregar seus habitantes, seus indivíduos a partir de
questões comuns, por sua identificação com projetos, questões, sentidos e
experiências.

O processo de planejamento das cidades requer ir além de uma utopia


formadas pela setorização de espaços funcionais, seja de moradia, trabalho e
convivência ou pela separação de moradores e famílias, cada qual com o seu lugar.,
conforme idealizado pelos pensadores destacados neste trabalho

É preciso ultrapassar as utopias e transformar tais espaços em lugares


concretos, do cotidiano, permeado de referências, significados e vivências é
possibilitar que as inter-relações que se estabelecem tornem-se práticas engajadas
170

de participação e convívio para transformar tal espaço e seus indivíduos, amplia a


possibilidade de transformar os espaços da cidade em espaços educativos.

Nota-se que justificativas apresentadas em prol do papel educativo das


cidades, segundo o viés da AICE, de uma educação permanente, fundamento base
do Projeto, encontra-se explícitos valores tão atuais na sociedade neoliberal de
autorrealização, cuja crítica encontram-se bem representada nas palavras do filósofo
Byung- Chul Han em seu livro A sociedade do cansaço, de 2015.

O autor afirma que “no regime neoliberal a exploração tem lugar não mais como
alienação ou autodesrealização, mas como liberdade e autorrealização. Aqui não
entra o outro como explorador, que me obriga a trabalhar e me explora. Ao contrário,
eu próprio exploro a mim mesmo de boa vontade na fé de que possa me realizar”
(CHUL HAN, 2015, p.116)

Assim, ao se buscar na eterna realização dos valores individuais, encontramos


uma sociedade cada vez mais fragmentada, sem tempo para a contemplação e
“conhecimento intímo”, tal como conceitua Martin Buber. Logo, nossa sociedade
marcada pelo individualismo, se apresenta cada vez mais sem tempo para refletir
sobre o seu lugar, para a contemplação, sem possibilidades construção de espaços e
oportunidades de convivência, para contar coletividade, para a troca de saberes,
experiências e vivências, princípios tão caros à efetivação de cidadania e participação.

Essa é a sociedade que replica modelos de cidade, modelos de experiência,


exportados por instituições que acabam por tomar para si pautas tão necessárias à
discussão coletiva. Cidades que globalizam produtos, sistemas econômicos, produtos
e comercializam “soluções” para as mais diferentes realidades, contextos e culturais.

Com base nessa perspectiva encontra-se a crítica desenvolvida ao longo dos


capítulos deste trabalho, ao Projeto Cidades Educadoras foco de descrição de
reflexão deste trabalho. Após a leitura dos documentos do projeto em questão,
observou-se que o Projeto os preceitos divulgados por meio da Carta das Cidades
Educadoras se baseiam em princípios utópicos para projetar uma cidade ideal, uma
cidade educadora segundo o viés de uma Associação que centraliza as diretrizes e
as difunde mundo a fora.
171

Nos 20 princípios contidos na Carta, ideais de uma cidade justa, igualitária, que
proporcione qualidade de vida aos seus moradores, que proporcione um aprendizado
permanente, ao longo de toda a vida. O ideal de uma cidade igualitária não deveria
estar relacionado à um viés homogeneizador, conforme observa-se no sentido das
propostas do Projeto, propostas construídas “de cima para baixo”, genéricas e
abstratas, que sugerem formas de aplicação comuns a todos as cidades que desejam
seguir o modelo.

Ao trazer propostas pré-estabelecidas, as possíveis trajetórias do Projeto


Cidade Educadora perdem a possibilidade de discussão, de construção coletiva,
acabam por trocar sua autonomia e potencial criador por uma perspectiva educadora,
que muitas vezes não condiz com a sua realidade. Desta maneira, ao invés de educar,
propondo um caminho libertário e, por conseguinte crítico, como Paulo Freire define a
educação, apresenta algo que pronto, pré-moldado, que não valoriza as
potencialidades e especificidades de cada lugar.

Logo, ressalta-se a importância e pertinência dos temas e que estes devam ser
discutidos buscando a configurar na prática o papel educativo na e das cidades, porém
o que foi possível constatar que o crescente número de cidades associadas ao modelo
Barcelona de educação urbana, não significa necessariamente que tais cidades
passem do discurso e da visibilidade que alcançam, para pôr em prática, para
desenvolver ações de aplicação das diretrizes sugeridas em suas políticas públicas
municipais.

Atualmente 495 cidades do mundo fazem parte da AICE. Esta Associação,


divulga e orienta com base em suas referências os governos e entidades da sociedade
civil que segue seus pressupostos.

No caso das cidades brasileiras, 21 delas seguem a Associação Internacional


de Cidades Educadoras, porém somente 9 dessas cidades realizaram algum tipo de
experiência no âmbito do Projeto. Acredita-se que a motivação que leva uma cidade
brasileira a participar formalmente desta proposta, seja a possibilidade de visibilidade
política, por fazerem parte de uma rede internacional de cidades. São cidades
majoritariamente das regiões sul e sudeste do Brasil que acabam por se beneficiar
com esse tipo de publicidade.
172

Entende-se que as ações deveriam abrigar a diversidade e complexidade,


respeitando especificidades e realidades de cada cidade. Uma cidade educadora é
composta por indivíduos e sendo assim, deveria abrigar a diversidade e mitigar as
diferenças. O planejamento urbano deve contemplar políticas que propiciem a
inclusão social bem como possibilitem os meios necessários para que os indivíduos
possam discutir e propor as demandas, como agentes desse processo.

Faz-se necessário então, ir além do discurso que enobrece as propostas do


Projeto e colocá-los em prática de forma contínua e permanente sob a forma de
projeto político municipal.

Logo, uma cidade educadora perpassa por um desejo quase utópico de


transformação com base em uma educação, fundamentalmente urbana, mas que
requer de forma urgente a perspectiva prática e concreta de ações públicas e
espontâneas que busquem ampliar a reflexão dos indivíduos e para os indivíduos.
Acredita-se, portanto, que tal processo de construção dos espaços da cidade deva
partir do contato, da percepção, do convívio e da significação daqueles que a
vivenciam seus espaços, baseadas nas experiências do lugar.

Nesse sentido, entende-se que o oposto que propõe o Projeto Cidades


Educadoras, as instâncias públicas municipais e mesmo as instituições da sociedade
civil devem sinalizar pela necessidade de planejar e executar políticas públicas
urbanas que façam sentido aos indivíduos, que sejam construídas “de baixo para
cima”, que estejam consoantes à identidade daqueles que vivenciam o lugar.

Trata-se, portanto, de cultivar e valorizar as propostas alternativas, nas


potencialidades e possibilidades que cada lugar oferece, sua diversidade e patrimônio,
como forma de se promover uma nova perspectiva de construção de cidade.

É preciso que se promova e valorize a heterogeneidade do lugar, as diferenças


que o constitui, como forma de valorização de alternativas e caminhos de ação e
práticas. É imprescindível, além de tudo, ensinar e aprender novas formas de atuação
nos espaços públicos que possibilitem uma mudança.

Assim, ultrapassando o ideal vislumbrado em uma cidade utópica é preciso


refletir sobre tipo de cidade desejamos e de que forma seus habitantes que poderão
transformá-la, quais são os conhecimentos e instrumentos necessários para esta
173

transformação. Faz-se necessário portanto, fomentar e fortalecer os canais, os


processos de formação e informação dos indivíduos para a sua efetiva participação e
proposição de ações e políticas públicas.

No discurso do Projeto Cidades Educadoras, as cidades aparecem como


figuras personificadas, como agentes. Compreende-se que não são as cidades que
educam, mas sim as pessoas que vivem em seus espaços, em seus lugares. Portanto,
são as pessoas que educam e são educadas na e pela cidade.

Como contraponto, temos as palavras e os ideais do educador Paulo Freire,


aquele que já trazia a importância de uma educação, não deixando de lado a cidade,
de valorização dos espaços educativos da cidade como recurso pedagógico dos
alunos, pois compreendia a cidade como espaço de reflexão do homem, do cidadão,
sendo assim lugar de e para suas possíveis interferências. Cidade como um lugar
constituído de saberes, culturas, necessidades individuais, que se refletem no coletivo
e que, portanto, para que sejam transformadoras de fato não podem ser impostas,
uniformes, condicionantes, mas sim libertadoras, congregando e respeitando suas
especificidades, em prol de uma relação coletiva, em prol de uma relação cidadã.

“Você vê um ponto final ou um novo começo?”.


174

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