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Hermenêutica e interdisciplinariedade no direito: um

diálogo entre o Brasil e os Estados Unidos*

José Carlos Moreira da Silva Filho**

Sumário: Introdução; 1. Por uma teoria que supere a dicotomia entre teoria e prática; 2. A
interdisciplinariedade no Direito; 3. O conhecimento retórico (rethorical knowledge) no Direito;
Considerações finais; Referências.

Resumo: O artigo foca o pensamento do jurista Abstract: The article focus the work of Francis Jay
estado-unidense Francis Jay Mootz, professor Mootz, a jurist from the USA who is law professor
de Direito na Penn State University, destacando in the Penn State University. It emphasizes the
a intersecção que promove entre o Direito e a intersection that this author promotes between law
hermenêutica filosófica. Os temas descortinados and philosophical hermeneutics. The discussed
concentram-se em torno do debate sobre a relação subjects are the relationship between theory and
entre teoria e prática no Direito, o intercâmbio practice in law, the interdisciplinary exchange and
interdisciplinar e o enfoque do universo jurídico the focus over the juridical field as a rhetorical
como produtor de um conhecimento retórico. knowledge producer.
Palavras-chave: Hermenêutica; Interdisciplinariedade; Keywords: Hermeneutics; Interdisciplinarity;
Teoria no Direito; Conhecimento retórico; Francis Jay Theory in Law; Rhetorical knowledge; Francis Jay
Mootz. Mootz.

Introdução

D e um modo geral, o envolvimento no cotidiano é tão intenso que quando se


considera a realidade de um outro país, imagina-se que deve ser tudo
completamente diferente, não guardando relação alguma com as questões mais
freqüentes que diuturnamente se apresentam. Isto é verdade também em relação a
países cujas manifestações culturais estão a todo o instante em volta, pois por mais
familiar que muitos aspectos dessa cultura estrangeira possam parecer, evidencia-
se uma grande diversidade de comportamentos e atitudes presentes na vida cotidiana.
*
Este artigo é resultado parcial do projeto de pesquisa “Relações contratuais: em busca de um novo
modelo jurídico a partir da ética da alteridade e da hermenêutica filosófica”, coordenado pelo Prof. Dr.
José Carlos Moreira da Silva Filho e financiado pela UNISINOS.
**
Doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR; Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela
UFSC; Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília; Professor do Programa de Pós-graduação
em Direito, da Especialização em Direito Privado e da Graduação em Direito da UNISINOS.

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Pense-se a partir do Brasil em relação a um país como os Estados Unidos, por
exemplo.
Caso sejam consideradas as diferenças entre os sistemas jurídicos e as bases
técnicas, científicas e teóricas que os sustentam, perceber-se-á o que acima foi
registrado com ainda maior nitidez. Como se sabe, o sistema jurídico estado-unidense
pertence à tradição da common-law, e o brasileiro à tradição romano-germânica.
Apesar dessa grande diferença, contudo, é possível encontrar inúmeros pontos de
contato. O objetivo deste artigo é focalizar um destes pontos: o da reflexão filosófico-
jurídica. Tal tarefa será desenvolvida analisando as contribuições de um autor estado-
unidense que tem escrito e se preocupado com temas muito próximos aos que tem
despertado grande interesse, pesquisa e atenção na seara acadêmica do direito
brasileiro.
Francis Jay Mootz III é professor de Direito na Penn State Dickinson School
of Law, localizada na cidade de Carslile no Estado da Pennsylvania. Além de ser
professor de direito contratual, é investigador atuante na intersecção da filosofia
com o direito, como, aliás, já denuncia a sua formação: Masters of Arts em Filosofia
e Juris Doctor em Direito.1 Entre os seus escritos, destacam-se vários artigos que
possuem algo em comum. Todos eles, praticamente, trazem a hermenêutica filosófica
de Gadamer como norte teórico e perseguem a promoção de uma análise
interdisciplinar do Direito, buscando apoio especialmente na filosofia. Sem dúvida
alguma, essas foram as características que de imediato despertaram o interesse
pelo seu trabalho2 e que o conectam diretamente aos cada vez mais numerosos
estudos que, no Brasil, têm promovido a necessária intersecção entre filosofia e
direito.
O intuito deste artigo, portanto, é tornar evidente a conexão temática e
acadêmica com um autor pertencente a um sistema jurídico tão distante e diferente
do pátrio, mostrando que a proposta de se estudar o direito e a filosofia de maneira
interdisciplinar revela-se uma opção exercida e necessária não só no âmbito nacional,
mas também internacional. Além disso, é importante dar destaque para o enfoque

1
Juris Doctor é o primeiro grau ou título profissional que pode ser atingido por quem se forma
em Direito. Trata-se de um grau indispensável para que se possa exercer a advocacia nos EUA.
É algo semelhante ao Exame da Ordem dos Advogados no Brasil. Já o Masters of Arts equivale
ao mestrado brasileiro e se volta para as áreas de Humanidades, Ciências Sociais, Artes e
Teologia.
2
O intercâmbio acadêmico com o autor tem rendido proveitosos frutos. Numerosos artigos foram
trocados, assim como livros, tendo já sido estabelecido um contato pessoal através de visitas mútuas.
Uma primeira referência à análise gadameriana do direito desenvolvida pelo autor pode ser encontrada
em: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Hermenêutica filosófica e direito: o exemplo
privilegiado da boa-fé objetiva no direito contratual. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Júris,
2006. p. 92-94.

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do direito a partir da hermenêutica filosófica, deixando claro que se trata de uma
linha de investigação compartilhada com outros autores no mundo, e não apenas
com alguns autores brasileiros.

1 Por uma teoria que supere a dicotomia entre teoria e prática


Uma das perguntas mais cruciais lançada pelo autor em seus escritos é: qual
o papel da teoria no Direito?3 Pensando sobre as possíveis respostas para tal
questionamento, uma posição que costuma ser comum é a de que a teoria quando
projetada para o Direito não passa simplesmente de um vão exercício intelectual
realizado por aqueles que querem fugir da prática, encerrando-se em uma verdadeira
torre de marfim. São dessa opinião inúmeros advogados, juízes, estudantes e até
mesmo professores de Direito. Se tal constatação é verdadeira no Brasil, não deixa
de assim o ser igualmente no cenário estado-unidense.
Como se não bastasse essa desconfiança de inutilidade que paira sobre a
reflexão teórica no Direito, vive-se uma época na qual a suspeita sobre a teoria
tornou-se um procedimento generalizado. Já é lugar comum a idéia de que a pós-
modernidade trouxe um desmantelamento dos grandes modelos teóricos, que a época
das grandes narrativas já encontrou o seu ocaso. A teoria passa a ser vista como
uma estética provocativa ou ainda como um discurso teórico cuja melhor habilidade
é a de descrever a impotência da própria teoria. O curioso disto tudo, lembra Mootz,
é que a posição pós-moderna de repúdio à teoria é apresentada teoricamente, através
de jargões complexos e intrincadas análises conceituais.4
Mootz comenta que os que se dedicam à profissão acadêmica no Direito
costumam se defender da pecha de fugitivos da realidade apelando para, basicamente,
dois argumentos.5 De um lado, coloca-se a ênfase no conhecimento superior obtido
com a saída da dimensão cotidiana e o seu usual hábito não-reflexivo, de outro lado,
indica-se uma utilidade técnica para a teoria, vista como um conhecimento que vem
“de fora” e cujo propósito é o de aprimorar e atualizar as práticas cotidianas dos
trabalhadores jurídicos.
Diante dessas opções para situar a pertinência da teoria no Direito, o autor
não escolhe nenhuma delas, registrando que o tema requer uma análise mais
aprofundada sobre a própria relação entre a teoria e a prática e sobre o que delas se
pode esperar. Apoiando-se em Aristóteles e na leitura mais recente que dele foi
3
MOOTZ, Francis Jay. A future foretold: neo-aristotelian praise of postmodern legal theory. Brooklyn
law review. no 3, p. 683-719, 2003. Vol. 68.
4
Ibid., p. 689.
5
Ibid., p. 687.

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feita por Heidegger e Gadamer, Mootz aponta para a noção da teoria como uma
“disposição dentro da prática”, como um “engajamento na prática portando um
comportamento distinto”.6
Em Heidegger, assinala Mootz, é patente a crítica à ciência moderna e a
redução que esta propiciou da técnica a um procedimento de cálculo e manipulação
e da teoria a uma abstração filosófica a serviço da tecnologia. Com isto, ambas
restaram afastadas da dimensão da praxis. Contrariamente a tal entendimento,
Heidegger enfatiza o uso antigo da palavra theoria enquanto a participação em um
ritual de celebração, destacando uma intensa participação nas coisas da vida cotidiana,
dando a esta uma nova luz e qualidade, e não recomendando o afastamento dela.
Explica-se melhor, a seguir, esta idéia na qual prática e teoria se formam a partir e
dentro da dimensão do mundo da vida.
Segundo Heidegger, nossa experiência do mundo é uma forma de
pertencimento, uma forma de praxis, que descortina a dimensão do Dasein (ser-
aí) em seu ser-no-mundo, ela vem antes da separação moderna entre teoria e
prática. Todo conhecimento teórico só faz sentido a partir desta dimensão inaugural,
que é profundamente prática, não no sentido de um conjunto de técnicas que
consciente e racionalmente manipulam a realidade, mas sim no sentido de um conjunto
de significados que constituem o modo de vida de qualquer pessoa desde a formação
de sua autoconsciência. Sua relação com as coisas, com as outras pessoas e consigo
mesma é algo que já se encontra mediado por uma compreensão inaugural, antes
mesmo que possa ser conscientemente percebida como um objeto de reflexão teórica.
É irreal pensar em uma teoria que possa colocar o seu ponto de partida à margem
da vida prática e contextualizada (como fez Descartes em sua busca do cogito
como ponto arquimédico em relação ao mundo).
Como bem assinalou Bauman, na sua análise da compreensão em Heidegger,
a teoria surge a partir de alguma ruptura na dimensão prática e cotidiana do homem,
quando algo não faz sentido, ou seja, quando não é reconhecido como familiar, quando
algo não funciona como se esperava.7 É neste momento que o sujeito se distancia
daquele algo e começa a pensá-lo, percebendo que existem outras possibilidades
para designá-lo e compreendê-lo.8 Em um mundo totalmente familiar, sem rupturas

6
Ibid., p. 690.
7
Assim, por exemplo, se a Constituição fizesse parte de uma prática jurídica habitual e costumeira,
não haveria, talvez, tantos esforços de reflexão teórica sobre sua natureza e interpretação, não haveria
tanta necessidade de pensá-la.
8
Tal processo costuma ocorrer não só em relação a coisas e situações que nunca foram antes vistas ou
sentidas, mas também e principalmente a coisas para as quais já se tinha um sentido que, até aquele
momento, não tinha encontrado razão alguma para que fosse questionado. Trata-se do senso comum,
algo que é, ao mesmo tempo, fonte e alvo da interrogação e da reflexão humanas.

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e vazios de sentido, não haveria espaço para a teoria, pois todas as possibilidades
seriam sempre iguais à realidade.9
Para Mootz, Heidegger teria percebido em Aristóteles uma concessão à teoria
como uma forma de praxis, que não pode ser distinguida nitidamente em relação à
phronesis ou a techne.10 Ademais, a análise aristotélica da phronesis também
indicaria claramente a dimensão unitária e inaugural da praxis, na qual a nítida
distinção entre teoria e prática perde o seu sentido.
Quem, contudo, efetivamente destaca o conceito de phronesis11 em Aristóteles
como um meio para restabelecer o equilíbrio entre teoria e prática, rompido com a
ciência moderna, é Hans-Georg Gadamer. A phronesis indica de modo indubitável
o pertencimento da teoria às práticas sociais. A teoria “não é o domínio apenas dos

9
Esta familiaridade com as coisas, que caracteriza a dimensão prática, inaugural e cotidiana da
compreensão humana designa o que Heidegger chamou de estar-à-mão ou simplesmente o à-mão.
Esclarece Bauman que: “‘Estar circunstanciado’ es la cualidad existencial de todo aquello que es ser-
a-la-mano. Aquello está plenamente determinado dentro de mi mundo-vital, si bien raramente paro
mientes en su determinación para intentar articularlo. En efecto, estoy familiarizado con su significado,
sé de alguna manera que la cera está alli para sellar, que el martillo está allí para martillar y que el perro
lo está para jugar con él. Sé todo aquello en que consiste mi existencia, si bien no lo conozco teóricamente;
es decir, no tomo distancia del objeto de mi conocimiento. La diferenciación entre sujeto y objeto es
una diferenciación teórica, que se percibe después de que la ‘diferenciación’ haya sido establecida. No
se superpone a la diferenciación entre mi existencia (Dasein) y el mundo de mi existencia, que me es
dado constantemente y siempre como uma unidad […]. […] El proceso que conduce al conocimiento
teórico se pone en marcha cuando las cosas revelan que su posibilidad de ser-a-la-mano, su aptitud
para ser manipuladas, su conveniente idoneidad, no son cualidades que puedan ser dadas por
garantizadas. […] El conocimiento teórico surge de la revelación de posibilidades; del descubrimiento
de que la realidad familiar no agota el campo de posibilidades; de un ‘cabezazo’ contra la falta de ajuste
entre realidad y posibilidad. Comenzamos a pensar sobre la ‘esencia’ de las cosas como su propiedad,
cuando descubrimos la posibilidad de las cosas de no estar o de ser diferentes.” (grifos do autor)
(BAUMAN, Zygmunt. La hermenéutica y las ciencias sociales. Buenos Aires: Nueva Visión,
2002. p. 153-155).
10
MOOTZ, A future foretold…, p. 693.
11
Em linhas gerais, o conceito de phronesis, apresentado por Aristóteles na Ética a Nicômaco, indica
uma sabedoria ética, que só se revela na prática. Como assinalou lapidarmente Comte-Sponville, “é
uma sabedoria da ação, para a ação, na ação” (COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das
grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 39). Trata-se de uma medida da ação moral,
que deve ser descoberta na própria situação que pede a conduta do agente. A phronesis (traduzida
pelos latinos por prudentia) é uma deliberação sobre os meios, é uma medida da virtude e sinaliza na
direção de um conhecimento que é eminentemente prático, que envolve um certo teorizar a respeito do
que se deve fazer, mas sempre considerando o momento específico que demanda o comportamento
em questão. Uma explicação bem clara e sucinta a respeito da phronesis, e articulando-a com o
Direito, pode ser vista em: BARZOTTO, Luís Fernando. Prudência e jurisprudência – uma reflexão
epistemológica sobre a jurisprudentia romana a partir de Aristóteles. In: ROCHA, Leonel Severo,
STRECK, Lênio Luiz, MORAIS, José Luis Bolzan de (orgs.). Anuário do programa de pós-graduação
em Direito. Mestrado e doutorado 1998-1999. São Leopoldo: UNISINOS, 1999. p. 163-192.

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cientistas ou dos especialistas da academia; ela é intimamente conectada com as
práticas sociais” (tradução nossa).12 A phronesis indica algo que é simultaneamente
conhecimento, experiência e ação.13
Gadamer recorre à ética aristotélica14 com o intuito de fundamentar a sua
tese de que, quando interpretamos um texto, além de já estarmos partindo de uma
necessária compreensão sobre o que ele diz, nós, ao mesmo tempo, o estamos
aplicando (applicatio).15 Ou seja, a compreensão, a interpretação e a aplicação
indicam um momento único, que não pode ser desmembrado. Interpretar
verdadeiramente um texto (e, em especial, um texto normativo)16 significa considerá-
lo sempre a partir da situação concreta que pede a sua leitura: a situação hermenêutica
na qual se situa o intérprete, de tal maneira que o sentido do texto sempre se apresenta
como algo que faz frente às interrogações e expectativas de uma dada situação
interpretativa, a qual é sempre diferente, e daí porque o sentido do texto é sempre
construído e não simplesmente reproduzido.
Nota-se, pois, que, a partir da perspectiva gadameriana, e de sua leitura de
Aristóteles, a teoria não pode ser concebida como algo que esteja à margem ou fora
da prática. É o que conclui Mootz:

A teoria nunca pode ser completamente segregada do engajamento prático com


os outros porque ela é um comportamento dentro da prática. Contudo, a teoria é
uma abertura para diferentes entendimentos que pode revelar a natureza
improdutiva de certos preconceitos prevalecentes [...]. (tradução nossa)17

Portanto, não somente a teoria está indissoluvelmente ligada à prática, já


que se concebe dentro dela, como é, inclusive, o modo de se libertar de hábitos
imperceptíveis e inautênticos, que, a partir de determinado momento, revelam-
se inadequados para fazer frente à realidade, sempre histórica, cambiante e
social.

12
Ibid., p. 697. No original: “[...] theory is not the dominion only of scientists or academic specialists;
it is intimately connected with social practices.”
13
Ibid., p. 695.
14
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.
Petrópolis: Vozes, 1997. p. 465-482.
15
Ibid., p. 459-464.
16
É digno de nota o fato de Gadamer perceber na hermenêutica jurídica o caráter exemplar da tese da
apllicatio. Ver: Ibid., p. 482-490.
17
MOOTZ, A future foretold…, p. 694. No original: “Theory can never be completely segregated
from practical engagement with others because it is a comportment within practice. Nevertheless,
theory is an openness to different understandings that can reveal the unproductive nature of one’s
prevailing prejudices […].”

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Por todos esses motivos é que, para Mootz, propor a teoria como uma intervenção
para corrigir a prática legal “desde fora” seria reforçar a distinção moderna entre
teoria e prática. Muito mais do que propor uma utopia emancipatória que possa ser
colocada em um panteão conceitual, o papel da teoria no Direito deve ser o de propor
uma “reflexão histórica”, que saia e se volte sobre as práticas sociais.18

2 A interdiciplinariedade no Direito
Partindo do modelo indicado no item anterior para a reflexão teórica no Direito,
isto é, como uma reflexão que se desenvolve no interior da própria prática, é que se
torna propícia a interdisciplinariedade. Contudo, assim como a teoria pode ser refém
de mal-entendidos quanto à posição que ocupa no Direito, o mesmo pode ocorrer
com a investigação interdisciplinar. Observa Mootz que, em grande parte dos
encontros interdisciplinares que envolvem o Direito, o que na verdade ocorre é mais
semelhante a uma “colonização intelectual mútua” do que a um verdadeiro
intercâmbio disciplinar.19

18
Esta é a clara conclusão de Mootz: “Meu objetivo é despertar nos teóricos do direito a lembrança de
sua finitude e historicidade, e de persuadi-los de que devem abandonar os esforços ‘teóricos’ de pisarem
fora de sua situação hermenêutica.” (tradução nossa) (Ibid., p. 718). No original: “My goal is to awaken
in legal theorists a recollection of their finitude and historicality, and to persuade them that they should
abandon ‘theoretical’ efforts to step outside their hermeneutical situation.” Para Heidegger e sua perspectiva
fenomenológica, esse é o papel central da teoria: o de lembrar ao homem o seu caráter existencial,
abdicando da milenar pretensão de apreender totalmente em seus limites verbais, descritivos e apofânticos
o sentido último da realidade. O próprio esforço teórico de Heidegger em Ser e Tempo não pode ser visto
como uma descrição completa das estruturas do homem, pois a verdade do Ser, a radical e profunda
finitude e temporalidade humanas, não é algo que possa ser dito pela teoria, mas que só pode ser
vivenciado. Eis o profundo caráter fenomenológico e existencial de seu pensamento e a explicação para
o papel decisivo dos estados de ânimo e do sentimento como um existencial do Dasein. Um excelente
aprofundamento deste argumento (útil para rebater as acusações normalmente feitas ao pensamento
heideggeriano de ser tão metafísico quanto os que ele critica) e, ao mesmo tempo, uma elucidativa análise
de Ser e Tempo podem ser conferidos em: RICHARDSON, John. Existential epistemology: a
heideggerian critique of the cartesian project. Oxford: Clarendon Press, 1986.
19
Nesse sentido, alerta Mootz que: “O perigo primário que ameaça todo esforço interdisciplinar é que
as duas disciplinas retenham seus pré-concebidos auto-entendimentos disciplinares durante o
intercâmbio. Um encontro interdisciplinar vital, a mim parece, requer que ambas as disciplinas aceitem
o desafio implícito de reconsiderar os preconceitos que ajudaram a formar suas fronteiras disciplinares
e reconstruam seu entendimento dos meios e fins legítimos de investigação. Muito freqüentemente,
porém, o que passa por uma sabedoria interdisciplinar envolvendo a teoria do direito é mais semelhante
à mútua colonização intelectual, com a qual quero significar a convergência superficial de duas disciplinas
distintas que possuem estratégias parecidas para subjugar a outra. O direito procura discursos externos
para sustentar a legitimidade de sua estrutura disciplinar, enquanto outras disciplinas procuram
relevância e importância dentro do pesado mundo da análise legal.” (tradução nossa) (MOOTZ,

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Em muitos casos, o recurso do Direito aos outros campos do conhecimento
costuma assumir o padrão do perito,20 ou seja, o conhecimento da outra disciplina
é respeitado como a opinião de um expert em algum assunto técnico que foge da
alçada jurídica, mas tal opinião só é levada em conta dentro de uma moldura já
preexistente e constituída no interior do universo disciplinar do Direito (no qual,
inclusive, a opinião do expert pode ser perfeitamente descartada como irrelevante).
Além do padrão do perito, a reflexão interdisciplinar no Direito costuma também
se desenvolver a partir de um certo complexo de inferioridade, segundo o qual não
haveria suficiente rigor científico sustentando as práticas legais. Tal sentimento de
inferioridade levaria os juristas a “saquearem as ciências humanas”21 em busca de
legitimação científica para a sua atividade, o que, no fim das contas, seria feito sem
muito rigor científico.
De outra banda, é também comum que outras áreas científicas, quando instadas
a analisarem o Direito, acabem por querer projetar sobre as práticas jurídicas o
crivo de sua própria disciplina, descartando ou ignorando os aspectos peculiares que
perfazem a atividade e a reflexão jurídicas. Mootz comenta o exemplo de um encontro
entre lingüistas e juristas ocorrido na Northwestern University em 1995. Pelo viés
lingüístico apresentado no evento, como os atores jurídicos não agem segundo as
regras objetivas da lingüística, suas práticas não são científicas, mas sim o reflexo
do exercício de um poder político irrestrito.22 Já boa parte dos juristas que estavam

Francis Jay. Desperately seeking science. Washington University Law Quarterly. no 3, p. 1010, 1995.
Vol. 73). No original: “The primary peril threatening every interdisciplinary effort is that the two disciplines
will retain their pre-conceived disciplinary self-understanding throughout the exchange. A vital
interdisciplinary encounter, it seems to me, requires that both disciplines accept the implicit challenge to
reconsider the prejudices that help to shape their disciplinary boundaries and to reconstruct their
understanding of legitimate modes and purposes of inquiry. All too often, however, what passes for
interdisciplinary scholarship involving legal theory is more akin to mutual intellectual colonization, by
which I mean the superficial convergence of two distinct disciplines that have like-minded strategies for
subjugating the other. Law seeks out external discourses to buttress the legitimacy of its disciplinary
structure, while other disciplines seek relevance and importance within the weighty world of legal analysis.”
20
Ibid., p. 1012-1013.
21
Ibid., p. 1012.
22
Assim expressa Mootz a conclusão de boa parte dos estudiosos da lingüística que estiveram
presentes no referido encontro: “Se os atores legais não se conformam pelo sentido ordinário
determinado cientificamente dos textos legais de autoridade, então o que passa por um discurso
especializado entre juízes começa a se parecer muito com o arbítrio ilimitado de uma elite político-
profissional.” (tradução nossa) (Ibid., p. 1015). No original: “If legal actors do not abide by the
scientifically determined ordinary meaning of authoritative legal texts, then what passes for a
‘specialized’ discourse among judges begins to look a lot like unconstrained discretion by members of
a political-professional elite”. Não se percebeu aqui, assinala Mootz, que a prática jurídica vai além
desses limites lingüístico-objetivos, visto que está associada a questões pragmáticas de moralidade e
justiça: “A prática da interpretação legal é completamente infundida com uma pragmática que é

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no encontro via na lingüística uma fonte de conhecimento sobre o sentido científico
das proposições ordinárias, e que poderia ser útil na arena jurídico-argumentativa.
O que se observa em ambos os casos é que nenhuma das duas áreas estava
disposta a rever as próprias estruturas a partir dos questionamentos propiciados
pela outra. Uma situação em que ambas as disciplinas poderiam de fato realizar
uma aproximação interdisciplinar, afirma Mootz, ocorreria a partir da ênfase na
dimensão pragmática. Aqui se observaria uma tendência comum em ambas de fugirem
do terreno eminentemente formal e conceitual e buscarem a concretude fática.23
Em um mundo no qual se reconhece cada vez mais a inadequação dos
enfoques isolados e compartimentalizados, e no qual se percebe a necessidade de
repensar as próprias fronteiras do conhecimento, é importante um certo desarme
das defesas epistemológicas, um desarme que não equivale à abdicação das
estruturas cognitivas de cada ciência, mas sim à abertura do diálogo. Algo parecido
com o modelo da conversação apresentado por Gadamer, segundo o qual ambos
os conversantes apoiam-se e assumem seus preconceitos, mas, ao mesmo tempo,
abrem-se para a possibilidade de alterá-los a partir das informações e argumentos
trazidos pelo outro.24

nimada por questões profundamente controvertidas de moralidade e justiça; conseqüentemente, a


prática pode ser complementada pela ciência lingüística, mas certamente, até mesmo as mais discretas
disputas legais, não serão nunca inteiramente determinadas por ela.” (tradução nossa) (Ibid., p. 1017).
No original: “The practice of legal interpretation is thoroughly infused with a pragmatics that is
animated by deeply contested issues of morality and justice; consequently, the practice might be
supplemented by linguistic science, but certainly even discrete legal disputes will never be wholly
determined by it.”
23
Ibid., p. 1020-1021.
24
O modelo da conversação em Gadamer ilustra exatamente o que o filósofo mais reteve de Platão: a
estrutura do diálogo. No fundo, tratam-se das próprias bases filosóficas do Ocidente, já visíveis seja
na maiêutica socrática ou na retórica sofística. Em Gadamer, o tema da conversação traz à tona o
processo da “fusão de horizontes”, entendido como a descrição do que ocorre no entendimento
hermenêutico. Este modelo, como se verá a seguir, é fortemente considerado por Mootz como a
necessária base de uma concepção do direito por ele designada de conhecimento retórico. “Os conceitos
centrais da filosofia de Gadamer podem ser explicitados a partir da afirmação de que a conversação é
um modelo do encontro dialógico do entendimento hermenêutico. [...] Cada participante na conversação
vem para o encontro com uma história que molda o que mais tarde será envolvido na discussão. Ser um
debatedor sem preconceitos seria existir fora da história, e neste caso não poderia haver bases comuns
para engajar outra pessoa na conversação. Preconceitos não são limitações rígidas, mas sim formam
um horizonte que continuamente está em fluxo ao mesmo tempo em que a pessoa vive. O entendimento
envolve a fusão de hoizontes na qual um assunto em comum é tomado por dois participantes em uma
maneira que permite o seu desdobramento. Assim, uma conversação produz entendimento quando
duas pessoas, trabalhando a partir de seus próprios preconceitos iniciais, encontram solo comum
suficiente para desenvolver um tópico que informa ambos os participantes.” (tradução nossa) (MOOTZ,
Francis Jay. Rhetorical Knowledge in legal practice and theory. Southern California
Interdisciplinary Law Journal. no 3, 1998, p. 502-503. Vol. 6). No original: “The central concepts

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Entende-se, do mesmo modo, que o estudo interdisciplinar do direito obterá
seus melhores frutos na medida em que busque repensar os próprios fundamentos
do sistema jurídico que ora se apresenta, buscando construir uma compreensão
mais rica e completa do fenômeno jurídico que possa fazer frente aos reclames
cada vez mais intensos e diferentes do mundo da vida. Partindo, portanto, de tal
entendimento quanto à investigação interdisciplinar, Mootz propõe um modelo oriundo
da confluência com a filosofia no intuito de decodificar e transformar a prática
jurídica, e que batizou de conhecimento retórico.

3 O conhecimento retórico (rethorical knowledge) no Direito


O impacto da linguistic turn25 na teoria do Direito, em sua ampla gama de
vertentes e tendências,26 deixou patente a indeterminação e o caráter político da
prática jurídica. Mas também abriu espaço para o niilismo radical pós-moderno que
acusa a prática jurídica de não ter qualquer racionalidade. Mootz contesta esta
posição e propõe que a justiça deixe de ser buscada em esforços teórico-descritivos
e seja vista como um produto do conhecimento retórico.27 Este aponta para um
conhecimento que se reconhece sempre como fruto de uma prática social, de uma
interminável discussão a respeito dos temas que descortina. Entendido desse modo,
o conhecimento retórico apresenta uma dinâmica que foge dos lugares absolutos e
descritivos das tradicionais teorias da justiça, mas que, nem por isso, abre pleno
campo ao arbítrio e ao irracionalismo.
No intuito de fundamentar o conhecimento retórico como um modelo teórico
mais adequado ao Direito, Mootz recorre à hermenêutica filosófica de Gadamer e à
of Gadamer’s philosophy can be explicated by working from the claim that conversation is a model of the
dialogic encounter of hermeneutical understanding. […] Each participant in the conversation comes to the
encounter with a history that shapes what later evolves in the discussion. To be a discussant without
prejudices would be to exist outside of history, in which case there could be no shared basis from which to
engage another person in conversation. Prejudices are not rigid limitations, but rather they form a horizon
that continually is in flux as the person moves through life. Understanding involves the fusion of horizons
in which a common subject is taken up by two participants in a manner which allows the subject matter
to unfold. Thus, a conversation yields understanding when two people, working from their own prejudiced
starting points, find common ground sufficient to develop a topic that informs both participants.”
25
O assim denominado giro ou virada lingüística indica um novo solo filosófico: o da linguagem.
Trata-se de uma nova concepção sobre a linguagem, não mais vista como algo que brota da consciência
individual, mas sim como algo que, a partir de um solo que é sempre intersubjetivo, histórico e social
forma a própria consciência, colocando-se em uma certa anterioridade em relação a ela. O solo da
reflexão filosófica desloca-se, assim, do sujeito ou da consciência para a linguagem.
26
Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia
contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996.
27
MOOTZ, Rhetorical Knowledge…, p. 496.

132 Revista Seqüência, no 54, p. 123-144, jul. 2007


nova retórica de Perelmann. Com Gadamer, Mootz pretende trazer à tona o
“fundamento sem fundo” que sustenta filosoficamente o entendimento da justiça
como conhecimento retórico. E com Perelmann, Mootz pretende sinalizar mais
diretamente para o caráter retórico da justiça, chamando atenção nem tanto para o
seu fundamento filosófico, mas sim para a própria atividade retórica e seus recursos
argumentativos.
Mootz preocupa-se em evidenciar a importância da retórica em várias passagens da
obra de Gadamer, a começar pela referência que este faz, logo no início de Verdade e
método, ao senso communis de Vico.28 Destaca, ainda, a atenção que Gadamer dedicou
à figura do diálogo em Platão e a da phronésis em Aristóteles, já comentadas anteriormente.
O ponto central a ser aqui percebido em Gadamer é que a verdade científica
e a própria investigação filosófica necessitam reconhecer o solo hermenêutico sobre
o qual se formam e se sustentam. Este solo hermenêutico, por sua vez, aponta para
uma tradição histórica que é formada e alterada mediante o dialógico processo da
fusão de horizontes,29 obedecendo, assim, a uma dinâmica que se aproxima do modelo
retórico, já indicado na Grécia antiga.30
Para Gadamer, a retórica não seria apenas uma mera técnica argumentativa
de caráter manipulador, ela indica o caráter razoável associado a todo o entendimento.
É a partir desse ponto que se pode situar o papel do pensamento crítico em Gadamer,
acusado de estimular um viés conservador ao firmar o caráter universal do
entendimento hermenêutico.31 Toda crítica só é possível a partir do reconhecimento
de um solo comum entre os que participam do seu debate e da sua compreensão. É
o que esclarece Mootz, concluindo que a principal tese de Gadamer em resposta às
acusações de ausência de crítica em seu pensamento hermenêutico é que
28
Esclarece Gadamer que “sensus communis significa aqui, certamente, não somente aquela capacidade
universal que existe em todos os homens, mas, ao mesmo tempo, o senso que institui comunidade. O
que dá à vontade humana sua diretriz, acredita Vico, não é a universalidade abstrata da razão, mas a
universalidade concreta, que representa a comunidade de um grupo, de um povo, de uma nação, do
conjunto da espécie humana. [...] que não é um saber que se baseia em fundamentações, mas que
permite encontrar o que é plausível” (GADAMER, op.cit., p. 63).
29
A fusão de horizontes é uma das mais conhecidas categorias de Gadamer e quer indicar o processo que
ocorre quando o intérprete, diante de um texto, o interpreta de maneira a não ignorar os seus próprios
preconceitos. É como se, consciente da sua situação hermenêutica, o intérprete se abrisse ao horizonte
significativo que o texto traz, mas sempre indicando uma confluência ou diálogo entre ambos. O horizonte
do texto é recuperado a partir e em relação ao horizonte do intérprete. (Ibid., p. 451-458).
30
MOOTZ, Rhetorical Knowledge…, p. 507.
31
É famosa a crítica de Habermas de que ao colocar acento na autoridade da tradição, Gadamer estaria
assumindo a proeminência das visões ideológicas e das relações de dominação construídas por esta
mesma tradição, impedindo o desenvolvimento de um pensamento crítico e emancipatório. Cf.
HABERMAS, Jürgen. A pretensão de universalidade da hermenêutica. In: HABERMAS, Jürgen.
Dialética e hermenêutica: para a crítica da hermenêutica de Gadamer. Tradução de Álvaro L. M.
Valls. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 26-72.

Revista Seqüência, no 54, p. 123-144, jul. 2007 133


uma crítica emancipatória da sociedade é sempre derivada de nossas significativas
participações na sociedade, e assim a crítica é sempre um comportamento particular
de pertencimento. Gadamer sublinha que a dimensão retórica do conhecimento
provê a motivação e os recursos para a crítica social, e, portanto, ele rejeita o
impulso de desenvolver constructos filosóficos que pretendem exercer influência
crítica desde fora da arena retórica. (tradução nossa).32

Citando o livro de Georgia Warnke, Justice and interpretation, Mootz esboça o


que seria uma concepção gadameriana da justiça. Em tal modelo, a justiça não seria o
fruto de uma teoria descritiva que se projete como ponto arquimédico sobre as práticas
jurídicas. Não seria, tampouco, o fruto de um consenso anônimo, mas sim o produto de
um confronto argumentativo entre concepções diversas, que não necessariamente se
apresenta como uma nova síntese dos entendimentos anteriores. A justiça estaria mais
próxima de uma conversação hermenêutica que se reafirma a cada instante do que de
uma cessação da conversação em prol do obrigatório consenso racional.33
Ao contrário de Gadamer, cujo tema de investigação dizia respeito à
universalidade hermenêutica e seus efeitos sobre as ciências do espírito e sobre a
interpertação de textos, Perelman busca diretamente princípios de justiça e conclui
que estes estão muito mais associados a um raciocínio argumentativo e retórico do
que a uma demonstração lógico-formal.34 Trata-se em Perelman de realçar o
razoável em lugar do racional. “Perelman afirma que a prática da argumentação
a respeito de assuntos de justiça possui um status epistemológico entre a dedução
racional e a adesão fanática e irracional.” (tradução nossa).35 A justiça é chamada
por Perelman de idéia confusa, pois não pode ser esclarecida a partir do teste da

32
MOOTZ, Rhetorical Knowledge…, p. 511. No original: “an emancipatory critique of society
is always derivative of our meaningful participation in society, and so critique is always a particular
comportment of belonging. Gadamer stresses that the rhetorical dimension of knowledge provides
the motivation and resources for social critique, and so he rejects the urge to develop philosophical
constructs that purport to exert critical leverage from outside the rhetorical arena.”
33
Ibid., p. 512-514.
34
Perelman se questiona: “Por que o jurista deve recorrer a raciocíncios alheios à demonstração
matemática?” E assim responde: “É, acima de tudo, porque deve tratar de questões de fato, que não
podem resultar de raciocínios puramente formais. Mas, mesmo quando se trata de raciocinar em
direito, as técnicas do raciocínio demonstrativo não podem ser suficientes. Basta refletir, um instante,
no papel da controvérsia em direito, no modo como é organizado o procedimento que permite conhecer
o pró e o contra, e se admitirá que estamos diante de técnicas de raciocínio alheias a matemática. É que,
em direito, a pessoa não se contenta em deduzir, mas argumenta, e todo estudo do raciocínio e da
prova em direito que descurasse dessa situação ignoraria o que constitui a especificidade da lógica
jurídica.” (PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. São Paulo: Martins-Fontes, 1996. p. 472).
35
(Tradução nossa) MOOTZ, Rhetorical Knowledge..., p. 515. No original: “Perelman contends
that the practice of reasoning about matters of justice has an epistemological status between rational
deduction and fanatical, irrational adherence.”

134 Revista Seqüência, no 54, p. 123-144, jul. 2007


verdade absoluta e sim a partir do razoável. A tradição cartesiana se apóia no objetivo
de “apagar” a confusão e não de sustentá-la ou de visualizar escolhas que possam
ser igualmente sustentáveis.36
Para Mootz, a nova retórica de Perelman é uma exortação a se pensar como
se argumenta e não simplesmente um inventário ou conjunto de técnicas e métodos
aplicáveis ao debate público. Quando Perelman traz a figura da audiência
universal37 ele não está querendo identificar os tipos de platéia para, a partir daí,
propor as técnicas de persuasão e convencimento mais adequadas. O que ele pretende
é realçar um modo de saber que se forme na expectativa de aceitação por todas as
pessoas que sejam razoáveis. Tal aceitação ou convencimento, por sua vez, só
acontecerá a partir e em diálogo com um horizonte histórico que, segundo Mootz,
lembra o sensus communis de Vico ou a tradição da qual trata Gadamer.
Mootz preocupa-se em identificar na obra de Perelman uma constante
preocupação filosófica, que não se deixa levar pela tentação de simplesmente oferecer
um catálogo de técnicas e procedimentos de persuasão e convencimento, que
evidencie uma dimensão ontológica (ainda que o desenvolvimento desta deixe, de
fato, a desejar nos escritos de Perelman).
Eis o porquê Mootz recorre a Gadamer para propor o seu modelo, procurando
compensar essa ausência ontológica da nova retórica de Perelmann. Por outro lado,
o recurso a Perelman se justificaria pelo fato de ele aproximar mais o discurso
jurídico de uma racionalidade prática, indicando procedimentos e técnicas que
reforçariam o reclame de racionalidade para a atividade jurídica entendida desse
modo. Eis como Mootz justifica o “casamento” dos enfoques de Gadamer e Perelman
para constituir o conhecimento retórico:

Gadamer e Perelman contam explicitamente com Aristóteles para desenvolver o


seu comum esforço de deslocar a tradição cartesiana, mas eles não enfatizam o
quanto a hermenêutica filosófica e a nova retórica reforçam-se mutuamente nessa
tarefa. De uma perspectiva retórica, a hermenêutica filosófica provê orientação
diante da “ansiedade cartesiana”: ao mover-se da epistemologia para a
hermenêutica, os estudiosos podem desenvolver um viés ontológico da natureza
social do entendimento e, assim, evitar as implicações relativísticas de simplesmente
abandonar o modelo cartesiano de conhecimento sem oferecer um viés
radicalmente novo. De uma perspectiva hermenêutica, a nova retórica provê
orientação diante do idealismo hermenêutico: ao mover-se da ontologia para a
política, os estudiosos podem promover uma investigação crítica orientada para
aperfeiçoar nossas variadas práticas retóricas e, assim, evitar as implicações
36
Ibid., p. 517.
PERELMAN, Chäim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica.
37

São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 34-39.

Revista Seqüência, no 54, p. 123-144, jul. 2007 135


conservadoras de substituir o modelo cartesiano por um modelo postulado em
noções abstratas de historicidade e finitude. (tradução nossa)38

Sobre tal aproximação, o próprio Mootz pondera que, aparentemente, a ênfase


de Gadamer no aspecto ontológico desautoriza qualquer tese metodológica, o que
tornaria dificultosa a aproximação com a nova retórica de Perelman, visto que a
perspectiva deste coloca maior acento justamente no aspecto metodológico. Para
que o modelo de Mootz possa ser sustentado, portanto, é preciso evidenciar que a
metodologia de Perelman pode ser pensada como uma metodologia crítica que seja
consistente com os insights ontológicos de Gadamer.
Nesse sentido, Mootz assinala que a própria crítica de Perelman à filosofia
cartesiana já estabelece um ponto de contato ontológico que vai na mesma linha da
hermenêutica filosófica de Gadamer, e que sua obra aponta para além de um mero
catálogo de argumentos e técnicas de persuasão. Por outro lado, a perspectiva
gadameriana também não desautoriza um approach metodológico (patente nas várias
menções que faz à tradição retórica), desde que as devidas conseqüências ontológicas
sejam levadas em conta. Mais adiante se farão algumas ressalvas sobre este ponto.
Antes, contudo, expor-se-ão algumas conclusões de Mootz ao projetar o
conhecimento retórico sobre o Direito.
Assim, na prática jurídica, o realce sobre a atividade retórica e argumentativa
não diz respeito apenas ao debate entre advogados e juízes no tribunal, refere-se
também, por exemplo, ao diálogo entre os advogados e seus clientes, às atividades
de negociação e assessoramento (inclusive com outros profissionais), e várias outras
esferas onde as questões jurídicas são apresentadas e discutidas.39 O julgamento,
em verdade, apenas cristaliza um processo que é retórico desde a sua origem. Tal
estagnação promovida pela decisão judicial exerce um grande fascínio nos teóricos

38
(Tradução nossa) Ibid., p. 530. No original: “Gadamer and Perelman both rely explicitly on
Aristotle to develop their shared effort to displace the Cartesian tradition, but they underemphasize
the extent to which philosophical hermeneutics and the new rhetoric reinforce each other in this task.
From a rhetorical perspective, philosophical hermeneutics provides guidance in the face of the ‘Cartesian
anxiety’: by moving from epistemology to hermeneutics, scholars can develop an ontological account
of the social nature of understanding and thereby avoid the relativistic implications of simply
abandoning the Cartesian model of knowledge without offering a radically new account. From a
hermeneutical perspective, the new rhetoric provides guidance in the face of the hermeneutical idealism:
by moving from ontology to politics, scholars can foster a critical inquiry oriented toward improving
our various rhetorical practices and thereby avoid the conservative implications of replacing the
Cartesian model with a model premised on abstract notions of historicity and finitude.”
39
Ibid., p. 569. Mootz chama atenção, no contexto do Direito estado-unidense, para a importância do
debate entre advogados e clientes na construção da causa, aduzindo que o “melhor interesse do
cliente” é uma noção altamente contextualizada e histórica, fruto de uma construção retórica e que
perfaz o principal objetivo dos advogados.

136 Revista Seqüência, no 54, p. 123-144, jul. 2007


preocupados com um enfoque descritivo que promova um conhecimento de caráter
contemplativo e demonstrativo.40
O recurso à fusão de horizontes de Gadamer e à audiência universal de Perelman
são úteis para demarcar o aspecto intersubjetivo da prática legal, mantendo aberto o
espaço, ademais, para uma certa inventividade, na qual reside o potencial crítico da
prática legal, visto que esta sempre é um convite para a crítica dos lugares comuns
admitidos41 (ainda que, pode-se acrescentar, tal convite não seja aceito com freqüência).
Mas não apenas a prática jurídica, pondera Mootz, revela-se um fenômeno
constituído no seio de um conhecimento retórico. A reflexão teórica no Direito também
deve ser concebida do mesmo modo. Conectando-se com as idéias apresentadas
anetriormente quanto ao papel da teoria no Direito, Mootz reafirma que esta não
deve se apresentar como um esforço realizado “desde fora” da prática legal, mas
sim como “prática retórica procurando conhecimento retórico”.42
A teoria no Direito, todavia, costuma apresentar-se em três nichos que não se
comunicam e que não se reconhecem nesse medium constituído pelo conhecimento
retórico. São eles: a teoria doutrinal, a qual se pode simplesmente chamar de
doutrina, a teoria crítica e a teoria filosófica.43 A doutrina normalmente apresenta
um conjunto de regras e categorias que se aproximam da prática jurídica cotidiana,
mas não se inserem em sua dinâmica, permanecendo apartada como uma espécie
de livro ou manual de regras que é eventualmente revisto de tempos em tempos. Já
a teoria crítica vai além do nível dogmático e se apóia na dimensão social e
institucional. Não pretende esclarecer a doutrina, mas situá-la em um quadro de
práticas sociais mais amplo. E, finalmente, a teoria filosófica se debruça mais
sobre a investigação conceitual do sistema jurídico como um todo e desenvolve
características gerais do sistema legal.44 Ela só se conecta de modo tangencial ao
40
Conclui Mootz que: “Juízes e advogados enfrentam igualmente o desafio retórico de ‘dizer o que a lei
é’, o que é muito mais uma atividade retórica do que um exercício contemplativo, uma questão de
argumentação do que uma demonstração dialética.” (tradução nossa) (Ibid., p. 571). No original: “Judges
and lawyers alike face the rhetorical activity rather than a contemplative exercise, a question of
argumentation rather than dialectical demonstration.” Nessa altura, importa levar em conta que o caráter
argumentativo da prática jurídica é mais cristalino no caso estado-unidense. Na tradição jurídica continental,
os doutrinadores e trabalhadores do Direito resistem a tal entendimento, amparando-se no mote da
defesa à segurança jurídica, visto que ainda persiste o imaginário de que o texto legal, principal fonte de
Direito neste sistema, traz consigo um sentido prévio que equivale à norma jurídica, logo, para tal
prisma, a tarefa da prática jurídica seria muito mais descritiva e conceitual do que argumentativa.
41
Ibid, p. 576-577.
42
Ibid., p. 586.
43
Ibid., p. 595-603.
44
Um típico exemplo desse tipo de teoria, informa Mootz, é a desenvolvida por Hart em seu O
conceito de direito. Aliás, o próprio artigo de Mootz, aqui em comento, é por ele apresentado como
uma reflexão teórica desta espécie.

Revista Seqüência, no 54, p. 123-144, jul. 2007 137


dia-a-dia da prática legal e, geralmente, quando esta é referida em textos teórico-
filosóficos, é apresentada como um exemplo inserido no curso de uma reconstrução
teórica.
Todos esses níveis teóricos podem se conectar entre si. Uma teoria crítica,
por exemplo, pode justificar e suscitar uma reforma doutrinária. Uma teoria filosófica
pode conectar-se com aspectos da teoria crítica no sentido de contestar certas
práticas jurídicas comumente aceitas. Mas o decisivo para o autor é que todos
esses níveis de teoria no Direito explorem sua dimensão retórica, isto é, percebam
sua própria natureza contextual e histórica e a necessária abertura para o diálogo
com outros níveis, perspectivas teóricas do mesno nível e com a própria prática
jurídica, permitindo, assim, a abertura desta para outras práticas e discursos.
Indicando o que seria uma adequada interação e auto-reconhecimento dos
três níveis teóricos no Direito anteriormente mencionados, propõe Mootz:

A teoria jurídico-filosófica tomaria conta das características retórica, hermenêutica,


desconstrutiva e lingüística das trocas comunicativas que abrangem a prática
legal, desenvolvendo assim uma concepção das capacidades que habilitam a prática
a ir adiante. A teoria crítica do direito desalojaria a doutrina do seu reino conceitual
etéreo e a resituaria no cenário institucional e cultural que serve de fórum para as
possibilidades comunicativas identificadas na teoria filosófica, expondo assim
como as capacidades retóricas são facilitadas e obstruídas na prática e localizando
os efeitos das influências institucionais nas ações dos atores legais. A teoria
jurídico-doutrinária se movimentaria dentro das ambigüidades e contradições
doutrinárias para criar oportunidades para novos desenvolvimentos dos lugares
comuns [no sentido de Perelman] em resposta a mudanças e concepções
cambiantes. (tradução nossa)45

Na avaliação de Mootz, o resultado de tal interação no Direito, bem como de


sua facilitação pelas instituições jurídicas, traria uma interação mútua na qual cada
membro da atividade jurídica reivindicaria maior atenção para o seu argumento,
cabendo aos teóricos a análise da capacidade de cada instituição de situar seus
argumentos de maneira bem-sucedida. O grande mérito de tal esquema seria o de
45
Ibid., p. 603. No original: “Philosophical legal theory would take account of the rhetorical,
hermeneutical, deconstructive, and linguistic features of the communicative exchanges comprising
legal practice, thereby developing an account of the capabilities that enable legal practice to move
forward. Critical legal theory would dislodge doctrine from its ethereal conceptual realm an resituate
it in the institutional and cultural settings that serve as the forum for the communicative possibilities
identified in philosophical theory, thereby exposing how rhetorical capabilities are facilitated and
hindered in practice and tracing the effects of institutional influences on the actions of legal actors.
Doctrinal legal theory would move within doctrinal ambiguities and contradictions to create
opportunities for new deployments of commonplaces in response to changing needs and conceptions.”

138 Revista Seqüência, no 54, p. 123-144, jul. 2007


propiciar o desmascaramento dos preconceitos improdutivos, na medida em que os
pressupostos ou standards jurídicos sempre sofreriam o teste de tal apreciação,
tornando, assim, a prática jurídica mais transparente.
Exposta deste modo a proposta de Mootz acerca de um conhecimento retórico
no Direito, é preciso, antes de mais nada, constatar que ela, na verdade, insere-se
dentro do debate mais amplo sobre a intersecção entre a hermenêutica filosófica e
as teorias da argumentação. Em outro artigo, já se ponderou a respeito do risco que
um enfoque demasiadamente metodológico pode apresentar46 (o que autoriza a repisar
algumas das justificativas ali apresentadas). E nesse mesmo sentido é que se pode
olhar com certas ressalvas para a articulação com a nova retórica de Perelman.
Não é raro que se apresente a tendência em se considerar a esfera
argumentativa e suas regras de razoabilidade como o último fundamento necessário
para sustentar um enfoque pragmático do Direito, obscurecendo a dimensão
ontológica para a qual a hermenêutica filosófica chama atenção. Na verdade, os
argumentos constituem uma via de iluminação dos preconceitos e pré-entendimentos
que já se encontram alojados na base de todo o raciocínio jurídico. É nesta dimensão
que se encontra a justificativa e o critério de utilização dos argumentos e não em
regras gerais relativas a uma estrutura lógico-argumentativa.
Os argumentos devem ser vistos como possíveis caminhos pelos quais a pré-
compreensão, que já se encontra em operação desde o início, pode ser esclarecida
e colocada em confronto com a situação interpretativa, desde que se tenha tomado
as devidas precauções contra as tentações auto-suficientes do discurso metódico.
Os argumentos e suas regras não carregam consigo o fundamento sobre o qual a
atividade interpretativa efetivamente se dá, eis por que não devem servir de véu
para encobrir o nível anterior e fundante47 (normalmente descartado pelos enfoques
46
Cf. SILVA FILHO, José Carlos Moreira da, ALMEIDA, Lara Oleques de, ORIGUELLA, Daniela.
O princípio da boa-fé objetiva no direito contratual e o problema do homem médio: da jurisprudência
dos valores à hermenêutica filosófica. In: ROCHA, Leonel Severo, STRECK, Lênio Luiz (orgs.)
Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de pós-graduação em direito da
UNISINOS. Mestrado e Doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 67-92.
47
Recorrendo a Hilary Putnam, Ernildo Stein trata de dois níveis de racionalidade. A racionalidade II
diz respeito ao discurso próprio das ciências, enquanto a racionalidade I é a base sobre a qual a II se
desenvolve. Ela é “um a priori que a racionalidade discursiva sempre pressupõe, mas não
necessariamente explicita” (STEIN, Ernildo. Exercícios de fenomenologia: limites de um paradigma.
Ijuí: Unijuí, 2004. p. 158). Esse nível I, que está aquém da lógica formal, equivaleria à dimensão
transcendental, mas, como Stein logo se apressa em dizer, não um transcendental que se amarra à
subjetividade (aos moldes kantianos), mas sim um transcendental nâo-clássico, que indica um standard
de racionalidade a partir da filosofia heideggeriana: a questão do ser ligada à compreensão do ser pelo
dasein. Não se trata, assim, de considerar o nível I de racionalidade como um novo fundamento para
o conhecimento. Mais apropriado seria designá-lo como um fundamento sem fundo. Esse ponto é bem
explicado por Stein: “A novidade que constitui o ‘standard de racionalidade’ da fenomenologia

Revista Seqüência, no 54, p. 123-144, jul. 2007 139


argumentativos), já que este constitui sinal de uma verdadeira transcendência:48 a
que parte da historicidade e temporalidade humanas. Já é tempo de se reconhecer
isso. Durante muito tempo o pensamento jurídico procurou em vão essa autonomia
metódica, não logrando encontrar uma solução satisfatória. Afirma-se aqui que o
problema não é a errada escolha do método, mas a crença em que a solução seja
encontrar um método, o qual traga em si o seu próprio fundamento. O fundamento
estruturante, em verdade, nunca se coloca totalmente à disposição, como se fosse
um ente, pois possui ele a natureza do ser (diferença ontológica). Antes que se
possa explicitar um método como parâmetro de um processo hermenêutico, a
compreensão já ocorreu. Assim, os procedimentos lógicos que são trazidos pela(s)
teoria(s) da argumentação jurídica devem auxiliar no esclarecimento das condições
de interpretação em uma dada situação interpretativa. Tais condições não podem
ser impostas por um método lógico, pois elas se antecipam a qualquer tentativa de
empregá-lo conscientemente, logo o importante é que seja fornecido um instrumental
discursivo que ilumine e explicite essas condições, pois assim o novo em relação ao
texto pode emergir e a interpretação adequada ocorrer.

hermenêutica é que com ela se supera toda a questão extrínseca de fundamentação de um discurso e
também qualquer veleidade de autofundamentação de qualquer discurso científico. Em todos eles dá-
se uma pré-compreensão com que sempre operamos quando lidamos com os discursos do conhecimento
especializado das ciências. Essa dimensão hermenêutica, porém, não permite uma fundamentação
última, o estabelecimento definitivo de um sistema, pois a pré-compreensão participa apenas, como
modo de ser do ser-aí, da condição humana de ser-no-mundo. Isso quer dizer que quando aí falamos em
fundamento, falamos num fundamento sem fundo. Nada há exterior que dê legitimidade a essa dimensão
transcendental e compreensiva pela qual a fenomenologia hermenêutica estabelece a racionalidade
estruturante, processual e organizadora de qualquer discurso.” (STEIN, op. cit., p. 167) Assumir este
fundamento sem fundo para o Direito “significa descobrir, no Direito, um discurso que subjaz, como
dimensão hermenêutica profunda, ao processo lógico-discursivo do sistema jurídico. Em geral,
verificaremos que o Direito carrega consigo uma espécie de standard de racionalidade ingênuo. Isso
quer dizer que a dogmática jurídica tende a reproduzir, pelo positivismo, uma forma objetivadora,
incapaz de produzir a diferença entre a racionalidade I e a racionalidade II, ou entre a racionalidade de
caráter entificador quando busca a validação do discurso jurídico.” (STEIN, op. cit., p. 161).
48
O transcendental significa a superação do nível empírico mediante um mergulho na própria estrutura
cognitiva do homem, que possibilita toda experiência. Esse mergulho, porém, não deve levar a uma
objetivação da experiência, mas sim à aceitação do modo de ser histórico e temporal do homem. “A
fenomenologia hermenêutica aceita a impossibilidade de afirmações apodícticas no mundo da experiência
e interpreta o ir para além dos limites da experiência como um explicitar o aquém da dimensão
hermenêutica. Se percebermos as coisas assim, compreenderemos que o fundamento no Direito, ainda
que represente procedimentos expostos em forma lógica discursiva, deve ser entendido como um
modo de ser. [...] Todo o trabalho do Direito, uma vez que fomos atingidos pela fenomenologia
hermenêutica, passa a ser realizado sob os cuidados de uma dupla interpretação. E quando fazemos
Filosofia do Direito estamos basicamente chamando a atenção para a dimensão hermenêutica. Como
ela nunca se dá separada do discurso apofântico, explicitador do Direito, todo o exercício deste como
hermenêutica jurídica opera com a hermenêutica como pré-compreensão.” (STEIN, op.cit., p. 170).

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Assim, não parece acertado situar a finitude e a historicidade como entidades
ideais e abstratas que seriam salvas pela concretude da esfera argumentativa, tal
qual Mootz afirmou em citação feita acima. Tal concretude, se considerada por si,
pode perfeitamente obscurecer o patamar no qual a consciência histórica se assume,
e tal patamar nunca é apenas uma noção abstrata, pois ele deve ser sempre
concretizado a cada situação hermenêutica. O que se admite, e aqui concordando
de certa forma com Mootz, é que o ponto central da hermenêutica filosófica não é
analisar os processos argumentativos nos quais os pré-juízos se expressam, e que
uma boa atenção a este patamar pode ser útil para a autocompreensão do Direito
como prática e ciência.
Além disso, é preciso admitir que o envolvimento dos atores jurídicos no
processo argumentativo pode ter o condão de transformar os preconceitos que
sustentaram o início do debate jurídico,49 o que dá um realce especial para a dimensão
crítica, não favorecida explicitamente no reconhecimento da universalidade
hermenêutica.50
De qualquer sorte, o que importa reter aqui é a pertinência do recurso à
hermenêutica filosófica na teoria do Direito contemporâneo, evidenciando a adoção

49
Nessa direção, Mootz critica a mais que comum afirmação de que o juiz utiliza os argumentos
apenas para justificar a decisão que foi tomada desde o início: “A mesma concepção estreita da
dimensão retórica da prática legal é evidente quando os teóricos reduzem o julgamento à
formulação de uma justificação retórica aceitável para uma decisão. [...] A construção tardia de
uma justificação silogística é só a ponta do iceberg retórico que resultou na decisão, e a inadequada
atenção a esta fase tardia do julgamento nubla o processo retórico em julgamento.” (tradução
nossa) (MOOTZ, Rhetorical knowledge..., p. 574). No original: “The same narrow conception
of the rhetorical dimension of legal practice is evident when theorists reduce judging to
formulating an acceptable rhetorical justification for a decision. […] Later construction of a
syllogistic justification is only the tip of the rhetorical iceberg that has resulted in the decision,
and undue attention to this latter phase of judging clouds the nature of the rhetorical process
in adjudication.”
50
O realce da dimensão crítica da hermenêutica filosófica é um dos pontos centrais nos trabalhos
de Mootz. Em outro artigo, que aqui não pode ser comentado, o autor aproxima a perspectiva
crítica de Nietzche da filosofia antimetafísica de Gadamer, assumindo explicitamente que não
compactua com a pecha de conservador para Gadamer e de niilista pós-moderno para Nietzche.
O seu intento aqui é mostrar uma aproximação entre o perspectivismo nietzcheano e a fusão de
horizontes gadameriana, evidenciando uma força destrutivo-criativa que não ignora a tradição na
qual se apresenta, haja vista a própria ênfase de Nietzche na genealogia, uma espécie de
reconstrução constante do passado. Da aproximação entre Nietzche e Gadamer, Mootz pretende
reforçar a perspectiva crítica da hermenêutica filosófica e projetá-la como um modelo adequado
para iluminar as práticas jurídicas, concentrando-se, no artigo em questão, no exemplo de três
casos jurídicos acerca do status legal dos homossexuais nos Estados Unidos. Cf. MOOTZ,
Francis Jay. Nietzschean critique and philosophical hermeneutics. Cardozo Law Review. n o 3,
p. 967-1042, mar 2003. Vol. 24.

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dessa direção por pesquisadores e juristas de um outro país, tão próximo e ao mesmo
tempo tão distante como os Estados Unidos da América.

Considerações finais
As questões centrais que ocupam o labor acadêmico de Francis Jay Mootz, o
jurista estado-unidense que foi alvo de atenção neste artigo, são de extrema
importância no cenário da discussão teórica contemporânea do Direito.
Os temas do papel da teoria no Direito, da investigação interdisciplinar, do caráter
pragmático e hermenêutico das práticas e reflexões jurídicas, da pertinência e da
recolocação da crítica na dinâmica do Direito, evidenciam a proximidade das reflexões
teóricas desenvolvidas pelo autor estado-unidense com as que aqui se apresentam.
No Brasil é visível a atenção crescente que esses assuntos vêm obtendo nos
programas de pós-graduação e em outros cenários nos quais a reflexão teórica no
Direito se desenvolve. Em todas as áreas do Direito percebe-se a crescente pressão
que o apelo à efetividade dos princípios (especialmente os constitucionais), direitos
fundamentais, cláusulas gerais e demais conceitos vagos e indeterminados vem
experimentando. Aos poucos, os doutrinadores e trabalhadores do Direito vêm
incorporando em suas produções a substituição da representação do Direito como
um saber teórico certo, preciso, conceitual e absoluto, por um saber que se forma no
cotejo com o seu desenvolvimento prático, contextual e concreto, revelando uma
ineliminável instabilidade e movimento, a demandar uma racionalidade prática.
A auto-suficiência dos modelos teórico-conceituais, de fato, encontra-se
defasada diante de um mundo que se revela cada vez mais interdependente, inclusive
com relação à sua própria compreensão. A ênfase na inadequação da clivagem
entre teoria e prática parece ser o tema fundamental a ser hoje considerado e
desenvolvido no universo jurídico, tanto nas instituições acadêmicas quanto nas
instituições jurídico-políticas da sociedade. E revela-se promissora a perspectiva de
que tal enfoque encontre eco em diferentes quadrantes do mundo.

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