Arthur C. Clarke - A Revelação de Rama - Arthur C. Clarke

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Arthur C.

Clarke
e
Gentry Lee

A REVELAÇÃO DE RAMA

Tradução de Vera Whately e Maria Ignez Duque Estrada

Editora Nova Fronteira, 1995

Título original: Rama Revealed

© Arthur C. Clarke e Gentry Lee 1991

ISBN 85-209-0714-8

Digitalizado por: SCS


Completado em 09/07/2010
Contracapa
Depois da aparição da imensa e deserta espaçonave RAMA, uma segunda
nave chega, para tornar-se moradia para os colonizadores humanos. Mas a colô-
nia transforma-se numa ditadura, aterrorizando seus vizinhos alienígenas e seus
próprios habitantes.
Este é o começo da maior aventura de todo o ciclo RAMA, que começou
com o ENCONTRO COM RAMA, seguindo-se de O JARDIM DE RAMA. Mais um clássico
de Arthur C. Clarke e Gentry Lee que conquistou os prêmios mais importantes da
literatura de ficção científica.

Aba 1 - Sinopse
Anos depois da aparição no sistema solar da imensa e deserta espaçonave
RAMA, uma segunda nave chega, destinada a se tornar a moradia para os
colonizadores humanos. Mas agora a colônia se transformou numa ditadura
brutal, que comete o genocídio contra seus pacíficos vizinhos alienígenas e
aterroriza seus próprios habitantes.
Nicole Wakefield, condenada à morte por traição, consegue escapar e
cruza o Mar Cilíndrico até a ilha dos misteriosos arranha-céus, que os humanos
chamam de Nova York. Lá, ela se reúne com seu marido, e logo os dois se juntam
a outros familiares e amigos. Mas a perseguição inicia-se, e eles são forçados a
fugir para os corredores subterrâneos de Nova York, habitados por ameaçadoras
criaturas, as octoaranhas.
Assim começa a maior aventura de todo o ciclo RAMA, uma história de
grande alcance e revelações extraordinárias - e um clímax soberbo para a série
que começa com o clássico de Arthur C. Clarke ENCONTRO COM RAMA, o único
romance de ficção científica que conquistou os prêmios mais importantes da
literatura de ficção científica.

Aba 2 - Sobre os Autores


ARTHUR C. CLARKE é provavelmente o autor de ficção científica mais
conhecido e mais vendido em todo o mundo. O seu 70º aniversário foi marcado
pela inauguração de uma placa em sua terra natal, Somerset. Ele ganhou
inúmeros prêmios internacionais por sua ficção, sua escrita científica e seu papel
inspirativo como um dos mais importantes profetas da era espacial. Sua
colaboração com STANLEY KUBRICK em 2001: UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO estabeleceu
novos modelos para os filmes de ficção científica. Como apresentador da série de
TV ARTHUR C. CLARKER'S MYSTERIOUS WORLD, Clarke se tornou um nome popular.
Vive no Sri Lanka. Seu romance mais recente foi The Hammer of God.
GENTRY LEE foi engenheiro chefe do PROJETO GALILEO da NASA e diretor
científico da MISSÃO VIKING para Marte. Ele foi parceiro de Carl Sagan na criação,
desenvolvimento e implantação da série de TV COSMOS e foi co-autor, junto com
Arthur C. Clarke, de CRADLE, RAMA II e o JARDIM DE RAMA.
PRÓLOGO
Em um dos distantes braços espiralados da galáxia da Via-Láctea, uma
discreta estrela amarela solitária orbita lentamente o centro galáctico a trinta mil
anos-luz de distância. Essa estrela estável, o Sol, leva 225 milhões de anos para
completar uma revolução em sua órbita galática. A última vez em que o Sol esteve
na sua posição presente, répteis gigantescos de poderes assustadores tinham
começado a estabelecer seu domínio na Terra, um pequeno planeta azul que é
um dos satélites do Sol.
Dentre os planetas e outros corpos da família do Sol, foi apenas nessa
Terra que se desenvolveu algum tipo de vida complexa e duradoura. Apenas
nesse mundo especial as substâncias químicas evoluíram até uma consciência e
então perguntaram, quando começaram a compreender as maravilhas e
dimensões do universo, se milagres semelhantes àqueles que as criaram teriam
acontecido em alguma outra parte.
Afinal de contas, argumentavam essas sensíveis criaturas terrestres, há
cem bilhões de estrelas somente na nossa galáxia. Estamos bem certas de que
pelo menos vinte por cento dessas estrelas têm planetas em suas órbitas, e que
um número pequeno mas significativo desses planetas teve, em alguma época de
sua história, condições atmosféricas e térmicas capazes de formar aminoácidos e
outras substâncias químicas orgânicas que são o sine qua non de qualquer
biologia que podemos imaginar. Pelo menos uma vez na história, aqui na Terra,
esses aminoácidos descobriram a auto-replicação, e o milagre da evolução que
veio a produzir os seres humanos foi posto em movimento. Como podemos
presumir que essa seqüência ocorreu apenas naquela única vez em toda a
história? Os átomos mais pesados necessários para a nossa criação foram
forjados nos cataclismos estelares que explodiram por todo esse universo durante
bilhões de anos. É provável que somente aqui, neste único lugar, esses átomos
tenham se concatenado em moléculas especiais e evoluído para um ser
inteligente capaz de fazer a pergunta: "Estamos sozinhos?"
Na sua busca por seus companheiros cósmicos, de início os seres
terrestres construíram telescópios que lhes permitissem ver seus vizinhos
planetários imediatos. Mais tarde, quando sua tecnologia atingiu um nível mais
avançado, sofisticadas espaçonaves robóticas foram enviadas para examinar
esses outros planetas e verificar se neles havia ou não algum sinal de vida.
Através dessas explorações, constatou-se que não havia qualquer tipo de vida
inteligente em nenhum outro corpo de nosso sistema solar. Se houver alguém por
lá, concluíram os cientistas humanos, alguma espécie semelhante à nossa com a
qual pudéssemos nos comunicar, deve estar além do vazio que separa nosso
sistema solar de todas as outras estrelas.
No final do século 20 do sistema humano de tempo, as grandes antenas
da Terra começam a procurar sinais coerentes no céu, a fim de determinar se por
acaso alguma outra inteligência estaria nos enviando uma mensagem de rádio.
Essa busca continuou por mais de cem anos, tendo se intensificado durante os
dias fulgurantes da ciência internacional no início do século 21, e diminuído mais
tarde, nas últimas décadas do século, depois que o quarto conjunto sucessivo de
técnicas sistemáticas de escuta não conseguiu localizar nenhum sinal alienígena.
Por volta do ano 2130, quando o estranho objeto cilíndrico foi identificado
pela primeira vez vindo do espaço interestelar na direção do nosso sistema solar,
a maioria dos seres humanos pensantes concluíra que a vida devia ser escassa
no universo e que a inteligência, se é que jamais existiu fora da Terra, era
excessivamente rara. De que outra forma, diziam os cientistas, poderíamos
explicar a falta de resultados positivos em toda a nossa cuidadosa busca
extraterrestre durante o século passado?
Portanto, todos na Terra se assombraram quando, depois de uma
inspeção minuciosa, o objeto que entrou no nosso sistema solar em 2130 foi
considerado, incontestavelmente, um artefato de origem alienígena. Era uma
prova inegável de que existia uma inteligência avançada, ou pelo menos tinha
existido em alguma época anterior, em outra parte do universo. Quando uma
missão espacial foi desviada para encontrar-se com o pardacento gigante
cilíndrico, com dimensões maiores que as maiores cidades da Terra, os
pesquisadores cosmonautas encontraram um mistério atrás do outro. Mas eles
não foram capazes de responder a algumas das questões mais fundamentais
sobre a enigmática espaçonave alienígena. O intruso objeto proveniente das
estrelas não fornecia explicações definitivas sobre sua origem ou finalidade.
Aquele primeiro grupo de exploradores humanos não só catalogou as
maravilhas de Rama (nome dado ao gigantesco objeto cilíndrico antes de se saber
que era um artefato extraterrestre), mas também explorou e mapeou seu interior.
Depois que o grupo de exploração deixou Rama e a espaçonave alienígena
desapareceu em volta do Sol, saindo do sistema solar em velocidade hiperbólica,
os cientistas analisaram detalhadamente todos os dados coletados durante a
missão. Todos reconheceram que os visitantes humanos de Rama não tinham
encontrado as verdadeiras criaturas da misteriosa espaçonave. Contudo, a
cuidadosa análise realizada depois da sua passagem revelou um princípio
imutável de sua redundante engenharia. Cada sistema principal e cada
subsistema do veículo tinham duas cópias. Os navegantes de Rama projetavam
tudo em triplos. Os cientistas concluíram que era muito provável que em breve
surgiriam duas outras espaçonaves semelhantes.
Os anos que se seguiram imediatamente à visita de Rama I, em 2130,
foram anos de expectativa na Terra. Estudiosos e políticos proclamavam que uma
nova era da história humana havia começado. A Agência Espacial Internacional
(ISA), trabalhando em cooperação com o Conselho de Governos (COG), criou
cuidadosos procedimentos a serem utilizados na próxima visita dos ramaianos.
Todos os telescópios foram voltados para os céus, competindo entre si pela
aclamação que receberia o indivíduo ou o observatório que primeiro localizasse a
próxima espaçonave Rama. Mas não houve outra aparição.
Na segunda metade da década de 2130, o boom econômico, cujos últimos
estágios foram, em parte, alimentados pelas reações internacionais a Rama,
terminou abruptamente. O mundo mergulhou na maior depressão de sua
história, conhecida como o grande caos, que gerou a anarquia e a miséria por
toda parte. Todas as pesquisas científicas foram abandonadas durante essa triste
era, e, depois de várias décadas de atenção aos problemas do mundo, o povo da
Terra quase se esqueceu do inexplicável visitante das estrelas.
Em 2200, um segundo intruso cilíndrico chegou no sistema solar. Os
cidadãos da Terra tiraram a poeira dos antigos procedimentos desenvolvidos
depois da partida da primeira Rama e prepararam-se para o encontro com Rama
II. Foi escolhida para a missão uma tripulação com doze integrantes. Logo depois
do encontro, os doze declararam que a segunda espaçonave Rama era quase
idêntica à anterior. Os humanos encontraram novos mistérios e maravilhas,
inclusive alguns seres alienígenas, mas continuaram incapazes de responder às
questões sobre a origem e finalidade de Rama.
Três mortes estranhas entre os tripulantes criaram uma grande
preocupação na Terra, onde todos os aspectos da missão histórica foram
assistidos pela televisão. Quando o gigantesco cilindro realizou uma manobra de
meio curso, colocando-se na trajetória que impactaria a Terra, todos ficaram
alarmados e apavorados. Os líderes mundiais concluíram com relutância que, na
ausência de qualquer outra informação, não tinham escolha a não ser, concluir
que Rama II era hostil. Não podiam permitir que uma espaçonave alienígena se
chocasse com a Terra, ou se aproximasse o suficiente para utilizar as armas que
devia possuir. Tomaram a decisão de destruir Rama II enquanto ela ainda se
encontrava a uma distância segura da Terra.
A equipe de exploração teve ordem de voltar, mas três de seus membros,
dois homens e uma mulher, ainda se encontravam a bordo de Rama II quando a
espaçonave alienígena desviou-se da falange nuclear enviada da Terra. Rama
afastou-se da Terra hostil e partiu em alta velocidade do sistema solar,
carregando seus segredos intactos e três passageiros humanos.
Foram necessários treze anos de velocidades relativísticas para que Rama
II viajasse da vizinhança da Terra até seu destino, um imenso complexo de
engenharia chamado Nodo, localizado em uma órbita distante em torno da estrela
Sírius.
Os três humanos a bordo do gigantesco cilindro tiveram cinco filhos e
tornaram-se uma família. Enquanto investigava as maravilhas de sua casa
espacial, a família encontrou-se de novo com as espécies extraterrestres que
tinha visto anteriormente. Porém, quando chegaram a Nodo, os humanos já
haviam se convencido de que aqueles outros alienígenas eram, como eles,
passageiros de Rama.
A família humana permaneceu em Nodo durante pouco mais de um ano.
Durante esse tempo, a espaçonave Rama foi remodelada e preparada para a sua
terceira e última viagem ao sistema solar. A família soube pela Águia, uma
criação não-biológica da Inteligência Nodal, que o objetivo das espaçonaves Rama
era adquirir e catalogar o máximo possível de informações sobre passageiros
espaciais na galáxia. A Águia, com cabeça, bico e olhos de uma águia e corpo
humano, informou também que a última espaçonave, Rama III, conteria um
habitat cuidadosamente projetado com capacidade para duas mil pessoas.
Um vídeo foi transmitido de Nodo para a Terra, anunciando a volta
iminente da terceira espaçonave Rama. Esse vídeo explicava que uma elaborada
espécie extraterrestre desejava observar e estudar as atividades humanas
durante um longo período, e solicitava que dois mil representantes humanos
fossem enviados ao encontro de Rama III na órbita de Marte.
Rama III realizou a viagem de Sírius para o sistema solar em uma
velocidade correspondente a mais da metade da velocidade da luz. No interior da
espaçonave, dormindo em beliches especiais, encontrava-se grande parte da
família humana que tinha estado em Nodo. Na órbita de Marte, essa família
acolheu os outros humanos da Terra e o habitat primitivo no interior de Rama foi
rapidamente organizado. A colônia resultante, chamada Novo Éden, foi
completamente encerrada e isolada do restante da espaçonave alienígena por
meio de grossas paredes.
Quase imediatamente, Rama III acelerou de novo a velocidades
relativísticas, deslocando-se para fora do sistema solar na direção da estrela
amarela Tau Ceti. Três anos se passaram sem qualquer interferência externa na
vida dos humanos. Os cidadãos do Novo Éden tornaram-se tão envolvidos em sua
vida diária que mal prestavam atenção ao universo fora de sua colônia.
Quando uma série de crises se abateu sobre a frágil democracia do
paraíso criado para os humanos pelos ramaianos, um líder oportunista subiu ao
poder na colônia e começou a suprimir impiedosamente toda e qualquer
oposição. Um dos exploradores originais de Rama II fugiu do Novo Éden nessa
ocasião, e acabou fazendo contato com um casal simbiótico de uma espécie
alienígena que vivia encerrado no habitat adjacente. Sua esposa permaneceu na
colônia humana e tentou em vão conscientizar a comunidade, mas foi
aprisionada depois de alguns meses, condenada por traição, e sua execução foi
marcada.
Enquanto as condições ambientais e de vida dentro do Novo Éden
continuavam a se deteriorar, tropas humanas invadiram a área adjacente ao
Hemicilindro Norte da espaçonave Rama, e entregaram-se a uma guerra de
aniquilamento contra o casal simbiótico de espécie alienígena. Nesse meio-tempo,
os misteriosos ramaianos, conhecidos somente através de suas geniais criações
de engenharia, continuaram sua observação detalhada a distância, certos de que
dentro de pouco tempo os humanos entrariam em contato com a avançada
espécie que vivia na região ao sul do mar Cilíndrico...
FUGA

1
"Nicole"
De início, a voz mecânica e suave parecia parte de um sonho. Mas quando
seu nome foi repetido um pouco mais alto, Nicole acordou num sobressalto.
Uma onda de medo intenso varreu seu corpo. Eles estão atrás de mim,
pensou Nicole imediatamente. É de manhã. Vou morrer dentro de poucas horas.
Nicole respirou fundo, tentando dominar o medo crescente. Um instante
depois, abriu os olhos. Estava completamente escuro dentro da cela. Intrigada,
olhou em volta, para ver se conseguia ver a pessoa que a chamara.
— Estamos aqui, no seu catre, ao lado do seu ouvido direito — disse a voz
suavemente. — Richard mandou que ajudássemos você a fugir... mas temos de
agir depressa.
Por um instante, Nicole achou que devia estar dormindo, mas então ouviu
uma segunda voz, muito semelhante à primeira, porém mais nítida.
— Vire para o seu lado direito que nós vamos nos iluminar.
Nicole se virou e viu sobre o catre, ao lado de sua cabeça, duas figuras
mínimas, com oito a dez centímetros de altura no máximo, ambas femininas,
iluminadas por um brilho momentâneo de alguma fonte interna de luz. Uma
delas tinha cabelo curto e usava uma armadura européia do século 15. A
segunda figura tinha uma coroa na cabeça e vestia uma roupa plissada de rainha
medieval.
— Eu sou Joana d'Arc — disse a primeira figura.
— Eu sou Eleonor de Aquitânia.
Nicole deu um riso nervoso e olhou assombrada para as duas figuras.
Instantes depois, quando as luzes internas robóticas se extinguiram, Nicole
finalmente teve forças para falar.
— Então Richard mandou que vocês me ajudassem? — perguntou num
sussurro. — E como vocês pretendem fazer isso?
— Já sabotamos o sistema monitor — disse a pequena Joana com
orgulho. — E reprogramamos uma biota Garcia... que deve estar chegando para
soltar você.— Temos um pequeno plano de fuga, com várias alternativas — disse
Eleonor. — Richard vem trabalhando nele há meses... desde que acabou de nos
criar.
Nicole riu de novo, completamente atordoada.
— Verdade? — perguntou. — E eu posso perguntar onde meu genial
marido está nesse momento?
— Richard está em sua antiga toca debaixo de Nova York — respondeu
Joana. — Pediu para dizermos a você que nada mudou por lá. Está seguindo
nosso progresso com um farol de navegação... A propósito, ele mandou
lembranças. Não se esqueceu...
— Fique quieta um instante, por favor — interrompeu Eleonor quando
Nicole levou automaticamente a mão à orelha, do lado direito, com uma sensação
de coceira. — Estou colocando seu farol pessoal agora; ele é muito pesado para
mim.
Um instante depois, Nicole tocou o minúsculo instrumento próximo da
sua orelha e sacudiu a cabeça.
— E ele pode nos ouvir também? — perguntou.
— Richard decidiu não arriscar a transmissão das vozes — respondeu
Eleonor. — Elas podem ser facilmente interceptadas por Nakamura... Mas ele vai
monitorar nossa localização física.
— Pode levantar agora — falou Joana — e vestir sua roupa. Queremos
estar prontas quando a Garcia chegar.
Será que as fantasias nunca cessam?, pensou Nicole enquanto lavava o
rosto no escuro, na bacia rudimentar. Durante alguns segundos, ficou
imaginando que os dois robôs talvez fossem parte de um plano do astuto
Nakamura, e que ela seria morta quando tentasse fugir. Impossível, disse consigo
mesma. Mesmo que um dos minions de Nakamura pudesse criar robôs assim, só
Richard saberia o suficiente sobre mim para criar uma Joana d'Arc e uma Eleonor
de Aquitânia... de qualquer forma, não faz diferença se me matarem enquanto eu
estiver tentando fugir. Minha eletrocução está marcada para as oito da manhã.
Ouviu-se o som de um biota aproximando-se da cela. Nicole ficou tensa,
ainda sem saber ao certo se suas duas amigas mínimas estavam falando a
verdade.
— Sente-se no catre — disse Joana atrás dela — para que Eleonor e eu
possamos subir para dentro dos seus bolsos.
Nicole sentiu os dois robôs passando por cima da sua camisa, e sorriu.
Você é incrível, Richard, pensou. E estou pasma de você ainda estar vivo.
A biota Garcia entrou na cela de Nicole com uma lanterna, mostrando um
ar autoritário.
— Venha comigo, sra. Wakefield — ordenou bem alto. — Tenho ordens de
levá-la para a sala de preparação. Nicole ficou assustada mais uma vez. A biota
não estava agindo de forma amistosa. E se... mas não teve muito tempo para
pensar. A Garcia levou-a pelo corredor do lado de fora da cela a passos rápidos.
Vinte metros adiante, passaram pela guarda regular de biotas e por um oficial
humano em comando, um jovem que Nicole nunca tinha visto.
— Espere — gritou o homem por trás, quando Nicole e a Garcia estavam
quase subindo as escadas. Nicole ficou congelada.
— Você se esqueceu de assinar os papéis de transferência — disse o
homem, entregando um documento para a Garcia.
— É mesmo — disse a biota, escrevendo de forma floreada seu número de
identificação nos papéis.
Depois de menos de um minuto, Nicole encontrou-se fora da casa grande
onde ficara presa durante meses. Respirou o ar fresco com vontade e seguiu a
Garcia por um caminho que dava na Cidade Central.
— Não — disse Eleonor de dentro do bolso de Nicole. — Nós não vamos
com a biota. Siga para o oeste, na direção daquele moinho de vento com um farol
no alto. E é melhor ir correndo. Temos de chegar na casa de Max Puckett antes
do amanhecer.

Sua prisão ficava a quase cinco quilômetros da fazenda de Max. Nicole foi
correndo a um passo regular, sendo apressada a todo instante por um dos robôs,
que cuidavam meticulosamente do tempo. Em breve o dia estaria raiando. Ao
contrário da Terra, onde a transição entre a noite e o dia era gradual, no Novo
Éden o amanhecer acontecia de forma súbita e descontínua. A uma certa hora
estava escuro e no instante seguinte o sol artificial se inflamava e começava seu
miniarco pelo teto do habitat da colônia.
— Só mais doze minutos até clarear — disse Joana, quando Nicole chegou
na ciclovia que seguia pelos últimos duzentos metros até a fazenda de Puckett.
Estava quase exausta, mas continuou a correr. Por duas vezes, durante a corrida
até a fazenda, ela havia sentido uma dorzinha no peito. Estou definitivamente fora
de forma, pensou, arrependida de não ter se exercitado regularmente na cela. E
também com quase sessenta anos.
A fazenda estava escura. Nicole parou à entrada, respirou fundo e a porta
abriu-se alguns segundos depois.
— Eu estava à sua espera — disse Max, com uma expressão séria que
acentuava a gravidade da situação. Depois de abraçar Nicole com força, saiu
andando rapidamente na direção do celeiro. — Siga-me.
— Até agora não apareceu nenhum carro de polícia na estrada — disse
Max quando os dois entraram no celeiro. — Provavelmente ainda não
descobriram que você fugiu. Mas em pouco tempo descobrirão. O galinheiro
ficava do outro lado do celeiro. As galinhas eram colocadas numa divisória,
isoladas dos galos e do resto do edifício. Quando Max e Nicole entraram na área
das galinhas, houve uma grande movimentação. As aves correram em todas as
direções, cacarejando e batendo as asas. O cheiro forte do galinheiro fez com que
Nicole se sentisse mal.
Max sorriu.
— Eu me esqueci de que o cheiro de galinheiro incomoda muito as
pessoas — disse. — Já estou acostumado. — Deu um tapinha nas costas de
Nicole e continuou. — De qualquer forma, aqui você estará protegida, e não vai
conseguir sentir o cheiro do lugar onde ficará escondida.
Max andou até o canto do galinheiro, afastou umas galinhas do caminho e
ajoelhou-se.
— Quando aqueles robozinhos esquisitos de Richard apareceram pela
primeira vez — disse ele, afastando o feno e a ração das galinhas —, eu não tinha
idéia de onde arrumar um esconderijo para você. Mas logo depois pensei neste
lugar. — Levantou duas tábuas que cobriam um buraco retangular no chão do
celeiro. — Espero que esteja certo.
Fez um sinal para Nicole segui-lo e enfiou-se pelo buraco. Os dois foram
se movimentando de quatro pelo chão. A passagem, paralela ao chão por uns
metros e depois descendo em um ângulo fechado, era absolutamente exígua.
Nicole foi dando encontrões em Max, à sua frente, nas paredes e no teto de terra
à sua volta. A única luz que iluminava o caminho era uma lanterninha que Max
carregava na mão direita. Depois de quinze metros, o pequeno túnel dava num
quarto escuro. Max pisou cuidadosamente na escada de corda e virou-se para
ajudar Nicole a descer. Um instante depois, os dois se viram no meio do quarto, e
Max foi tateando até acender uma lâmpada.
— Não é bem um palácio — disse ele quando Nicole olhou em volta —,
mas imagino que seja muito melhor do que a sua prisão.
No quarto havia uma cama, uma cadeira, duas prateleiras cheias de
alimentos, outra prateleira com livros eletrônicos, umas roupas penduradas num
armário aberto, material de toalete, um grande tambor de água que devia ter
entrado com dificuldade pela passagem do túnel e um vaso sanitário quadrado e
fundo colocado num canto.
— Você fez tudo isso sozinho? — perguntou Nicole.
— Fiz — respondeu Max. — De noite... nessas últimas semanas. Não tive
coragem de pedir a ninguém para me ajudar.
Nicole ficou comovida.
— Como posso lhe agradecer?
— Não sendo apanhada — disse Max, dando uma risadinha. — Eu
também não tenho a menor vontade de morrer... Oh, aliás — continuou,
passando para Nicole um ledor eletrônico para ela colocar os discolivros —,
espero que o material de leitura seja do seu agrado. Talvez os manuais sobre
criação de porcos e galinhas não sejam tão bons quanto os romances do seu pai,
mas eu não quis chamar atenção indo a uma livraria. Nicole atravessou o quarto
e lhe deu um beijo no rosto.
— Max — disse suavemente —, você é um amigo e tanto. Não consigo
imaginar como...
— É de madrugada lá fora agora — interrompeu Joana d'Arc de dentro do
bolso de Nicole. — Segundo nosso cronograma, estamos atrasados. Sr. Puckett,
precisamos inspecionar nossa saída de emergência antes que o senhor vá
embora.
— Droga — disse Max. — Lá vamos nós de novo receber ordens de um
robô do tamanho de um cigarro. — Tirou Joana e Eleonor dos bolsos de Nicole e
colocou-as na prateleira de cima, por trás de uma lata de ervilhas. — Estão vendo
aquela portinha? — perguntou. — Há um cano do outro lado... que sai logo
adiante dos porcos através... Por que vocês não vão experimentar?
Durante os dois minutos em que os robôs se afastaram, Max explicou a
situação para Nicole.
— A polícia vai procurar você por toda parte. Especialmente aqui, pois eles
sabem que sou amigo da família. Por isso vou selar a entrada do seu esconderijo.
Tudo isso de que você precisa terá de durar pelo menos algumas semanas.
— Os robôs podem ir e vir à vontade, a menos que sejam comidos pelos
porcos —, continuou Max, dando uma risada. — Eles serão seu único contato
com o mundo lá fora. E eles é que avisarão quando chegar a hora de você passar
para a segunda fase do nosso plano de fuga.
— Então eu não vou ver você de novo? — perguntou Nicole.
— Pelo menos durante umas semanas não — respondeu Max. — É muito
perigoso... Mais uma coisa: se a polícia aparecer no prédio, eu desligo a sua luz.
Isso será um sinal para você se manter absolutamente quieta.
Eleonor de Aquitânia estava de volta, de pé na prateleira, ao lado da lata
de ervilhas.
— Nossa saída de emergência é excelente — anunciou ela. — Joana vai
ficar fora uns dias. Ela pretende sair do habitat e se comunicar com Richard.
— Agora eu também preciso ir embora — falou Max para Nicole, ficando
depois em silêncio por um instante. — Mas antes tenho de lhe dizer uma coisa,
minha amiga... Como você provavelmente sabe, sempre fui um cínico. Não são
muitas as pessoas que me impressionam. Mas você me convenceu de que talvez
alguns de nós sejam superiores às galinhas e aos porcos. — Fez uma pausa e
sorriu. — Não todos nós, mas pelo menos alguns.
— Obrigada, Max — falou Nicole.
Max foi até a escada, virou-se e deu um adeus antes de começar a subir.
Nicole sentou-se na cadeira e respirou fundo. Pelo ruído que vinha do
túnel, ela supôs corretamente que Max estava selando a entrada do seu
esconderijo com as grandes sacas de ração de galinhas colocadas em cima do
buraco.
E o que vai acontecer agora?, perguntou-se Nicole. Então percebeu que,
durante os cinco dias após a conclusão do seu julgamento, ela não tinha pensado
em quase nada a não ser na proximidade da morte. Sem o medo da execução
iminente moldando seus pensamentos, Nicole pôde soltar sua cabeça à vontade.
Pensou primeiro em Richard, seu marido e sócio, de quem estava
separada agora a quase dois anos. Nicole lembrou-se nitidamente da última noite
que passaram juntos, uma terrível "noite de Walpurgis" de crime e destruição,
que tinha começado com o auspicioso casamento de sua filha Ellie com dr.
Robert Turner. Richard tinha certeza de que nós também estávamos marcados
para morrer, lembrou-se Nicole. E provavelmente ele tinha razão... pois fugiu,
tornou-se inimigo e me deixou sozinha durante esse tempo.
Pensei que você tivesse morrido, Richard, pensou Nicole. Eu teria tido mais
fé... mas como é que foi parar em Nova York de novo?
Sentada na única cadeira do quarto subterrâneo, Nicole começou a sentir
uma saudade imensa do marido. Enquanto sorria, as lágrimas escorriam pelo seu
rosto, à medida que as lembranças lhe vinham à memória. Primeiro se viu de
novo na toca das aves em Rama II, muitos anos antes, temporariamente
aprisionada pelas estranhas criaturas com forma de pássaro, que matraqueavam
e guinchavam. Foi Richard quem a encontrou lá. Ele arriscara sua própria vida
para voltar a Nova York e saber se Nicole ainda estava viva. Se Richard não
tivesse chegado, Nicole teria ficado abandonada na ilha de Nova York para
sempre.
Richard e Nicole tinham se tornado amantes na época em que tentavam
descobrir como atravessar o mar Cilíndrico e voltar para seus colegas
cosmonautas da nave espacial Newton. Nicole sentiu-se ao mesmo tempo
surpresa e contente com a emoção de suas lembranças dos seus primeiros dias
de amor. Nós sobrevivemos juntos ao ataque do míssil nuclear. E sobrevivemos
também à minha tentativa mal-sucedida de criar uma variação genética em nossa
descendência.
Nicole estremeceu ao lembrar-se de sua própria ingenuidade de muitos
anos atrás. Você me desculpou, Richard, o que não deve ter sido fácil. E então nós
nos tomamos ainda mais íntimos em Nodo durante nossas sessões de projeto com
a Águia.
O que era realmente a Águia? Nicole ficou entregue aos seus pensamentos.
E quem ou o quê a criou? Na sua cabeça estava gravada uma imagem nítida da
criatura bizarra, que tinha sido o único contato deles na época em que ficaram
em Nodo, durante a remodelação da nave Rama. O ser alienígena, com cara de
águia e corpo de homem, lhes tinha informado que ele era um aperfeiçoamento
da inteligência artificial, especialmente projetado para fazer companhia aos
humanos. Seus olhos eram incríveis, quase místicos, lembrou-se Nicole. E eram
tão intensos quanto os de Omeh.
Seu bisavô Omeh estava usando o manto verde de xamã tribal de Senoufo
quando foi ver Nicole em Roma, duas semanas antes do lançamento da nave
espacial Newton. Ela se encontrara com Omeh duas vezes antes, ambas no
vilarejo onde nasceu sua mãe, na Costa do Marfim, uma vez na cerimônia Poro,
quando Nicole tinha sete anos, e depois três anos mais tarde, no enterro de sua
mãe. Durante aqueles breves encontros, Omeh começara a preparar Nicole para
uma vida extraordinária, conforme lhe assegurara o velho xamã. Omeh é quem
insistira que Nicole era de fato a mulher que as Crônicas de Senoufo haviam
predito que espalharia sua semente tribal "até mesmo nas estrelas".
Omeh, a Águia, e até mesmo Richard, pensou Nicole. Um grupo e tanto,
para ficar só por aqui. O rosto de Henry, o príncipe de Gales, juntou-se aos
outros três homens, e Nicole lembrou-se por um instante da grande paixão do
seu breve caso amoroso logo depois de ter ganho a medalha de ouro nas
Olimpíadas. Nicole estremeceu ao lembrar-se da dor da rejeição. Mas sem Henry
não teria havido uma Geneviève, pensou ela. Enquanto Nicole se recordava do
amor que tinha compartilhado com sua filha na Terra, deu uma olhada pelo
quarto, na prateleira contendo os livros eletrônicos. De repente distraiu-se, foi até
a prateleira e começou a ler os títulos. É claro que Max havia deixado alguns
manuais sobre criação de porcos e galinhas. Mas não deixara só isso. Parecia ter
deixado para Nicole toda a sua biblioteca particular.
Nicole sorriu ao tirar um livro de contos de fadas e inseri-lo no
esquadrinhador. Pulou as primeiras páginas e parou na história da Bela
Adormecida. Quando leu em voz alta "e eles viveram felizes para todo o sempre",
veio-lhe à memória outra lembrança aguda, desta vez dela própria quando
criança de seis ou sete anos, sentada no colo do pai na casa do subúrbio
parisiense de Chilly-Mazarin.
Quando eu era criança ansiava por ser uma princesa e viver feliz para todo
o sempre, pensou. Não havia como saber então que a minha vida seria ainda mais
extraordinária do que os contos de fadas.
Nicole recolocou o livro na prateleira e voltou para a sua cadeira. E agora,
pensou, observando o quarto a esmo, quando achava que essa vida incrível
tivesse terminado, ao que parece ainda vou viver pelo menos mais alguns dias.
Pensou de novo em Richard e sentiu de novo uma grande vontade de vê-
lo. Nós vivemos muita coisa juntos, Richard. Espero sentir mais uma vez suas
mãos, ouvir sua risada, ver seu rosto. Mas se não conseguir, vou tentar não
reclamar. Na minha vida já vi muitos milagres.

2
Eleonor Wakefield Turner chegou ao grande auditório da Cidade Central
às sete e meia da manhã. Embora a execução só estivesse marcada para as oito
horas, já havia umas trinta pessoas nas cadeiras da frente, algumas
conversando, outras quietas. Uma equipe de televisão andava em volta da cadeira
elétrica do palco. Embora a execução fosse transmitida ao vivo, os policiais do
auditório contavam que a casa ficasse lotada, pois o governo encorajara os
cidadãos do Novo Éden a assistir pessoalmente à morte de sua ex-governadora.
Ellie tivera uma pequena discussão com seu marido, Robert Turner, na
noite anterior.
— Poupe-se um pouco, Ellie — ele dissera, quando lhe contou que
pretendia assistir à execução. — Ver sua mãe uma última vez não vale o horror
de ficar assistindo à sua morte.
Mas Ellie sabia uma coisa que Robert não sabia. Enquanto ela se sentava
no auditório, tentava controlar os fortes sentimentos dentro de si. Meu rosto não
pode deixar entrever nada, dizia consigo mesma, ou os meus gestos. Nem o mais
leve indício. Ninguém deve suspeitar que sei alguma coisa sobre a fuga. Vários
olhos viraram-se de repente para ela. Ellie sentiu o coração bater forte até
perceber que alguém a reconhecera, e que era absolutamente natural que os
curiosos olhassem para ela.
Ellie só conhecera os robozinhos de seu pai, Joana d'Arc e Eleonor de
Aquitânia, umas seis semanas antes, quando estava do lado de fora do habitat
principal, no vilarejo de quarentena de Avalon, ajudando seu marido médico,
Robert, a cuidar dos pacientes condenados pelo retrovírus RV-41 que invadira
seus corpos. Ela acabara de fazer uma visita de consolo à sua amiga e ex-
professora Eponine. Saíra do quarto de Eponine e estava andando pela estrada de
terra, esperando ver Robert a qualquer instante, quando de repente ouviu umas
vozes estranhas chamando seu nome. Ellie olhou em volta e finalmente localizou
as duas figurinhas no telhado de um prédio próximo.
Depois de atravessar a estrada para poder ver e ouvir melhor os robôs, a
assustada Ellie foi informada por Joana d'Arc de que seu pai Richard ainda
estava vivo. Logo que se recobrou desse primeiro choque, começou a fazer
perguntas e ficou logo convencida de que Joana e Eleonor estavam dizendo a
verdade; porém, antes de saber por que seu pai havia mandado os robôs procurá-
la, viu que seu marido se aproximava. As figuras do telhado lhe disseram que
voltariam em breve, e aconselharam Ellie a não falar com ninguém sobre elas,
nem mesmo com Robert, pelo menos por enquanto.
Ellie ficara felicíssima ao saber que seu pai estava vivo. Era quase
impossível manter aquela notícia em segredo, embora tivesse consciência da
importância política da informação. Quando, duas semanas mais tarde,
encontrou-se novamente em Avalon com os pequenos robôs, estava pronta para
fazer uma torrente de perguntas. Entretanto, naquela ocasião Joana e Eleonor
estavam programadas para discutir outro assunto: uma possível tentativa de tirar
Nicole da prisão. Os robôs contaram a Ellie no segundo encontro que Richard
sabia que essa fuga era uma tarefa perigosa.
— Nós nunca tentaríamos — disse o robô Joana — se a execução de sua
mãe não estivesse absolutamente certa. Mas, se não nos prepararmos a tempo,
não será possível uma fuga de última hora.
— O que eu posso fazer para ajudar? — perguntou Ellie.
Joana e Eleonor lhe entregaram um pedaço de papel com uma lista de
artigos incluindo comida, água e roupas. Ellie tremeu ao reconhecer a letra do
pai.
— Guarde essas coisas neste lugar — disse o robô Eleonor, entregando
um mapa para Ellie. — No máximo dentro de dez dias, a partir de hoje. — Um
instante depois apareceu outro colono, e os dois robôs desapareceram.
Dentro do mapa havia um bilhete de seu pai: "Querida Ellie, desculpe a
brevidade deste bilhete. Estou em segurança e com saúde, mas muito
preocupado com sua mãe. Por favor, reúna esses artigos e leve-os ao lugar
indicado na planície Central. Se você não puder fazer tudo isso sozinha, por favor
peça ajuda a uma única pessoa. Mas esteja certa de que a pessoa que você
escolher é tão leal e dedicada a Nicole como nós somos. Eu amo você."
Ellie logo viu que iria precisar de ajuda. Mas quem poderia escolher para
ser seu cúmplice? Seu marido Robert era uma má escolha, por duas razões.
Primeiro, ele já mostrara que sua dedicação aos seus doentes e ao hospital do
Novo Éden lhe era mais importante do que qualquer sentimento político que
pudesse ter. Segundo, qualquer um que fosse apanhado ajudando Nicole a fugir
seria certamente executado. Se Ellie envolvesse Robert no plano de fuga, a filha
deles, Nicole, acabaria ficando órfã de pai e mãe.
E que tal Nai Watanabe? Não havia dúvida quanto à sua lealdade, mas
Nai criava sozinha seus filhos gêmeos de quatro anos. Não seria justo pedir que
ela corresse aquele risco. Sobrava portanto apenas Eponine. Qualquer
preocupação que Ellie tivesse quanto à sua amiga doente foi rapidamente desfeita
por ela.
— É claro que vou ajudar você. — disse Eponine imediatamente. — Não
tenho nada a perder. Segundo seu marido, esse vírus RV-41 vai me matar dentro
de um a dois anos.
Em uma semana, Eponine e Ellie juntaram clandestinamente os artigos
pedidos, um de cada vez. Embrulharam tudo com cuidado num pequeno lençol e
esconderam a trouxa no canto do quarto bagunçado de Eponine, em Avalon. No
dia combinado, Ellie saiu do Novo Éden e foi até Avalon, pretensamente para
monitorar com cuidado durante doze horas os dados biométricos de Eponine. Na
verdade, explicar a Robert por que ela queria passar a noite com Eponine tinha
sido muito mais difícil do que convencer o único guarda humano e a biota Garcia
na saída do habitat quanto à sua necessidade de um passe noturno.
Logo depois da meia-noite, Ellie e Eponine pegaram a pesada trouxa de
lençol e saíram a pé pelas ruas de Avalon. Evitando com cuidado os biotas
ambulantes que a polícia de Nakamura usava para patrulhar o pequeno vilarejo à
noite, as duas mulheres passaram pelas imediações da cidade e foram dar na
planície Central. A partir daí, andaram vários quilômetros e depositaram a trouxa
no local indicado. Uma biota Tiasso as tinha parado na saída do quarto de
Eponine, um pouco antes do amanhecer artificial do vilarejo, e perguntado o que
as duas estavam fazendo por ali em hora tão absurda.
— Essa mulher tem RV-41 — disse Ellie rapidamente, ao sentir o pânico
de sua amiga. — É uma das pacientes do meu marido... Está com muita dor e
não consegue dormir, e nós achamos que uma volta bem cedinho iria lhe fazer
bem... Agora, com licença...
A Tiasso deixou-as passar. Ellie e Eponine ficaram tão assustadas que
nenhuma das duas falou durante uns dez minutos.
Ellie não tinha visto mais os robôs. Não tinha idéia se a fuga fora tentada
ou não. Como a hora da execução de sua mãe estava chegando e os lugares no
auditório em volta dela começaram a ser ocupados, o coração de Ellie começou a
pular no peito. E se nada aconteceu?, pensou. E se minha mãe vai realmente
morrer daqui a vinte minutos?
Ellie olhou para o palco. Ao lado da grande cadeira havia uma pilha de
dois metros de altura de equipamentos eletrônicos de cor cinza metálica. Além
disso, o único outro objeto no palco era um relógio digital marcando as horas:
0742. Ellie olhou para a cadeira. Pendurado no alto via-se um capuz para ser
colocado na cabeça da vítima. Ellie sentiu um tremor no corpo e foi tomada de
náusea. Que coisa bárbara, pensou. Como uma espécie que se considera
adiantada pode tolerar esse espetáculo revoltante?
Sua cabeça tinha acabado de se livrar das imagens da execução quando
alguém bateu em seu ombro. Ellie virou-se e viu um policial grande inclinado
sobre ela.
— Você é Eleanor Wakefield Turner? — perguntou ele.
Ellie ficou tão assustada que mal pôde responder. Fez que sim com a
cabeça.
— Quer me acompanhar, por favor? — disse o policial. — Preciso lhe fazer
umas duas perguntas.
As pernas de Ellie tremiam quando ela passou pelas três pessoas na sua
fila para chegar ao corredor. Aconteceu alguma coisa, pensou ela. A fuga foi
descoberta. Eles encontraram a trouxa e alguém sabe que estou envolvida.
O policial levou-a para uma sala de reuniões ao lado do auditório.
— Sou o capitão Franz Bauer, sra. Turner — disse ele. — É meu dever
cuidar do corpo de sua mãe depois que ela for executada. Naturalmente nós
encomendamos a cremação de sempre ao agente funerário. Mas — e o capitão
Bauer parou, como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado —, em vista
dos serviços prestados por sua mãe à colônia, pensei que talvez a senhora, ou
alguém de sua família, desejasse cuidar pessoalmente dos arranjos finais.
— É claro, capitão Bauer — respondeu Ellie, extremamente aliviada. —
Certamente. Muito obrigada — acrescentou depressa.
— Isso é tudo, sra. Turner — disse o policial. — Agora a senhora pode
voltar ao auditório.
Ellie ficou de pé e viu que ainda estava tremendo. Colocou uma das mãos
na mesa em frente do capitão Bauer.
— Capitão? — disse ela.
— Sim?
— Seria possível eu ver minha mãe sozinha, só por um instante, antes
da...? O policial examinou Ellie a distância.
— Acho que não, mas vou fazer o pedido em seu nome.
— Muito obrigada...
Ellie foi interrompida pela campainha do telefone. Saiu o mais devagar
possível da sala de reuniões para ver a expressão chocada no rosto do capitão
Bauer.
— Tem certeza disso? — ouviu-o dizer quando saía da sala.

A multidão estava ficando indócil. O grande relógio digital do palco


marcava 0836.
— Vamos, vamos — disse o homem por trás de Ellie. — Vamos acabar logo
com isso.
Mamãe conseguiu fugir. Eu sei, disse Ellie para si mesma, tomada de
alegria e forçando-se a se manter calma. É por isso que tudo aqui está tão confuso.
Cinco minutos depois das oito horas, o capitão Bauer informara a todos
que as atividades seriam retardadas em alguns minutos, mas na última meia
hora ninguém anunciara mais nada. Na fileira da frente de Ellie circulava um
boato de que os extraterrestres tinham tirado Nicole da cela.
Algumas pessoas já começavam a sair quando o governador Macmillan
apareceu no palco. Ele tinha um ar preocupado, mas assim que se dirigiu à
multidão conseguiu dar aquele sorriso oficial.
— Senhoras e senhores, a execução de Nicole des Jardins Wakefield foi
adiada. O governo descobriu algumas pequenas irregularidades nos documentos
relacionados ao caso dela; nada realmente importante, é claro, mas achamos que
esses pontos deviam ser esclarecidos primeiro, para que não houvesse nenhuma
possibilidade de erro. A nova data da execução será anunciada proximamente.
Todos os cidadãos do Novo Éden serão informados dos detalhes.
Ellie ficou sentada na cadeira até o auditório ficar vazio. Ela achava que
seria detida pela polícia quando tentasse sair, mas isso não ocorreu. Ao se ver do
lado de fora, foi difícil controlar-se para não gritar de alegria. Mãe, mãe, pensou
Ellie, com lágrimas nos olhos. Estou tão feliz por você!
De repente Ellie sentiu que várias pessoas a olhavam. Oh, oh, pensou ela.
Será que estou me entregando? E olhou para aquela gente com um sorriso nos
lábios. Agora, Ellie, vem seu maior desafio. Você não pode, em circunstância
alguma, se portar como se não estivesse surpresa.

Como sempre, Robert, Ellie e a pequena Nicole pararam em Avalon para


visitar Nai Watanabe e os gêmeos, depois de terminarem as visitas semanais dos
setenta e sete pacientes de RV-41. Era quase hora do jantar. Galileu e Kepler
estavam brincando na rua de terra em frente à casa quase em ruínas. Quando os
Turner chegaram, os dois menininhos estavam brigando.
— Ela também está! — dizia Galileu, de quatro anos, de forma acalorada.
— Não está — respondia Kepler com igual paixão. Ellie baixou-se para
falar com os gêmeos.
— Meninos, meninos — disse com uma voz suave. — Por que vocês, estão
brigando?
— Oi, sra. Turner — disse Kepler com um sorriso encabulado. — Não foi
nada. Galileu e eu...
— Eu disse que a governadora Wakefield já morreu — interrompeu
Galileu. — Um dos meninos do centro me contou, e ele deve saber porque seu pai
é da polícia.
Por um instante, Ellie foi tomada de pânico. Depois percebeu que os
gêmeos não tinham feito correlação entre Nicole e ela.
— Vocês estão lembrados de que a governadora Wakefield é minha mãe, e
avó da pequena Nicole? — perguntou docemente. — Você e Kepler a viram várias
vezes antes de ela ir para a prisão.
Galileu franziu a sobrancelha e depois sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro dela... acho que sim — disse Kepler solenemente. — Ela
está morta, sra. Turner? — perguntou com ingenuidade o garoto, depois de uma
breve pausa.
— Não sabemos ao certo, mas esperamos que não — respondeu Ellie,
quase se traindo. Seria tão fácil contar para aquelas crianças... Mas seria um
erro. Provavelmente havia um biota por ali ouvindo a conversa.
Quando Ellie pegou Kepler para lhe dar um abraço, lembrou-se de seu
encontro casual com Max Puckett no supermercado eletrônico, três dias antes.
No meio da conversa, Max tinha dito de repente:
— A propósito, Joana e Eleonor estão muito bem e mandaram
lembranças.
Ellie ficara agitada e fizera uma pergunta-chave, mas Max ignorou-a
completamente. Dois minutos depois, quando Ellie ia dizer alguma coisa, a biota
Garcia, encarregada do mercado, apareceu subitamente ao lado deles.
— Alô, Ellie. Alô, Robert — disse Nai da porta da casa. Estendeu os braços
e pegou a pequena Nicole dos braços de seu pai. — E como vai você, minha coisa
linda? Não vejo essa boneca desde sua festa de aniversário na semana passada.
Os adultos entraram em casa. Depois que Nai verificou que não havia
biotas-espiões na área, chegou mais perto de Robert e Ellie.
— A polícia me interrogou de novo na noite passada — disse ela num
sussurro para os amigos. — Estou começando a pensar que talvez haja alguma
verdade nos boatos.
— Que boatos? — perguntou Ellie. — Eles são tantos!
— Uma das mulheres que trabalha na nossa fábrica — disse Nai — tem
um irmão no serviço especial de Nakamura. Ele lhe disse, numa noite em que
estava bêbado, que quando a polícia apareceu na cela de Nicole, na manhã da
execução, encontrou-a vazia. Uma biota Garcia a tirou de lá. Eles acham que é a
mesma Garcia que foi destruída na explosão do lado de fora da fábrica de
munição.
Ellie sorriu, mas seus olhos não disseram nada em resposta ao olhar
inquiridor de sua amiga. Não posso contar nada a ela, pensou.
— A polícia também me interrogou — disse Ellie num tom despreocupado.
— Várias vezes. Segundo eles, as perguntas são todas programadas para
esclarecer o que chamam de irregularidades no caso da mamãe. Até mesmo Katie
foi procurada pela polícia. Ela apareceu sem avisar na semana passada e disse
que o adiamento da execução de mamãe foi certamente estranho.
— O irmão de minha amiga — disse Nai depois de um pequeno silêncio —
disse que Nakamura suspeita de uma conspiração.
— Isso é ridículo — falou Robert. — Não há nenhuma oposição ativa ao
governo em parte alguma da colônia.
Nai chegou mais perto de Ellie.
— E o que você acha que está realmente acontecendo? — perguntou
baixinho. — Acha que sua mãe realmente fugiu? Ou que Nakamura mudou de
idéia e executou-a em particular para que ela não se tornasse uma mártir?
Ellie olhou primeiro para o marido e depois para a amiga.
Diga a eles, diga a eles, dizia uma voz dentro dela. Mas resistiu. — Não
tenho a menor idéia, Nai. É claro que considerei todas as possibilidades que você
mencionou. E também algumas outras. Mas não temos meios de saber... Embora
eu não seja bem o que se chama de religiosa, tenho rezado a meu modo para que
mamãe esteja bem.

3
Nicole terminou de comer os damascos e atravessou o quarto para jogar o
pacote vazio na lata de lixo, que já estava quase cheia. Tentou empurrar o lixo
com o pé, mas o nível continuou praticamente o mesmo.
Meu tempo está se escoando, pensou ela, dando uma olhada para os
alimentos que restavam na prateleira. Só posso agüentar aqui mais uns cinco
dias. Depois disso vou precisar reforçar meus suprimentos.
Joana e Eleonor estavam fora há quarenta e oito horas. Durante as duas
primeiras semanas da permanência de Nicole no quarto subterrâneo do celeiro de
Max Puckett, um dos robôs ficara com ela o tempo todo. Conversar com os robôs
era quase como conversar com o próprio Richard, pelo menos no início, antes de
Nicole esgotar todos os assuntos que os robozinhos tinham armazenados na
memória.
Aqueles dois robôs são as maiores criações dele, disse Nicole a si mesma,
sentada na cadeira. Ele deve ter gasto meses para fabricá-los. E lembrou-se dos
robôs shakespearianos de Richard, nos dias na nave Newton. Joana e Eleonor
são muito mais sofisticadas do que o príncipe Hal e Falstaff. Richard deve ter
aprendido muito com a engenharia dos biotas-humanos do Novo Éden.
Joana e Eleonor tinham mantido Nicole informada dos acontecimentos
mais importantes ocorridos no habitat. Era uma tarefa fácil para elas, pois parte
da instrução programada desses robôs era observar e dar as notícias via rádio
para Richard durante suas saídas periódicas do Novo Éden; portanto, essas
mesmas informações eram passadas para Nicole. Ela sabia, por exemplo, que a
polícia especial de Nakamura vasculhara todos os prédios da colônia nas duas
primeiras semanas após a fuga, buscando ostensivamente alguém que pudesse
lhes dar alguma pista. Tinham ido à fazenda de Puckett, é claro, e durante quatro
horas Nicole teve de ficar absolutamente imóvel no esconderijo, em completa
escuridão. Ela ouvira uns ruídos acima de sua cabeça, mas quem conduziu a
busca não ficou muito tempo no celeiro.
Mais recentemente, Joana e Eleonor tiveram de se ausentar ao mesmo
tempo do esconderijo, dizendo que estavam coordenando a próxima fase da fuga.
No dia em que Nicole perguntou aos robôs como pensavam em passar pelo posto
policial na entrada do Novo Éden, Joana respondeu:
— É muito fácil. Os caminhões de carga atravessam um portão doze vezes
ao dia, em geral levando e trazendo material para as tropas e pessoal de
construção para o outro habitat, alguns indo para Avalon. É impossível que
alguém nos note no meio de uma dessas cargas grandes.
Joana e Eleonor também informaram Nicole sobre toda a história da
colônia desde que ela fora presa. Nicole sabia que os humanos tinham invadido o
habitat ave/séssil e desalojado seus ocupantes. Richard não gastara espaço na
memória dos robôs nem seu próprio tempo passando muitos detalhes para Joana
e Eleonor sobre as aves e os sésseis; porém Nicole sabia que Richard conseguira
fugir para Nova York com dois ovos de aves, quatro melões-maná contendo
embriões de espécies sésseis bizarras, e uma fatia de um verdadeiro séssil adulto.
Ela também sabia que as duas aves tinham nascido alguns meses antes, e que
Richard andava extremamente ocupado com elas.
Nicole tinha dificuldade em imaginar seu marido Richard servindo de pai e
mãe para dois seres alienígenas. Ela lembrou-se de que, quando seus próprios
filhos eram pequenos, Richard não mostrava muito interesse no desenvolvimento
deles, e que se mostrava extremamente insensível às necessidades emocionais
das crianças. É claro que ele fora maravilhoso ensinando-lhes coisas,
especialmente os conceitos abstratos da matemática e da ciência. Mas Nicole e
Michael O'Toole observaram muitas vezes, durante sua longa viagem na nave
Rama II, que Richard não parecia capaz de lidar com crianças no nível delas.
A infância dele foi sofrida, pensou Nicole, recordando-se de suas
conversas com Richard sobre seu pai violento. Ele deve ter crescido sem
capacidade de amar ou confiar nos outros... Todos os seus amigos eram fantasias
ou robôs criados por ele próprio... Nicole parou de pensar por um instante. Mas
durante nossos anos no Novo Éden ele mudou definitivamente... Nunca tive
oportunidade de lhe dizer como me sentia orgulhosa dele. Por isso eu quis deixar
a carta especial...
A luz do quarto apagou-se de repente e Nicole ficou na escuridão. Sentou-
se quieta na cadeira e ficou prestando atenção aos ruídos. Embora soubesse que
a polícia estava novamente por ali, não conseguia ouvir nada. Foi ficando mais
assustada, e só então percebeu como Joana e Eleonor tinham se tornado
importantes para ela. Na primeira vez em que a polícia especial foi à fazenda de
Puckett, os dois robôs estavam no quarto para acalmá-la.
O tempo passou muito lentamente. Nicole podia ouvir as batidas de seu
coração. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, ela ouviu vozes lá em cima,
como se houvesse muita gente no celeiro. Nicole respirou fundo e tentou acalmar-
se. Alguns segundos depois, quase morreu de susto quando ouviu uma voz suave
ao seu lado recitando um poema:

Invada-me agora, meu amigo implacável


E me deixe encolhida no escuro.
Lembre-me de que estou sozinha
E deixe sua marca no meu rosto.
Como conseguiu me capturar,
Se todos os meus pensamentos negam sua força?
Será o réptil no meu cérebro
Que deixa o seu terror seguir seu curso?

O medo infundado nos anula


Apesar da nossa busca por metas elevadas
Nós os pretensos Galahads não morremos
O medo só congela nossa alma.
E nos emudece quando sentimos o amor,
Lembrando-nos o que podemos perder
E se por acaso conhecermos o sucesso
O medo nos diz qual o caminho seguro a seguir.

Nicole reconheceu aos poucos que aquela voz pertencia ao robô Joana, e
que ela estava recitando as duas famosas estrofes de Benita Garcia sobre o medo,
escritas depois que Benita foi politizada pela pobreza e destruição do grande caos.
A voz familiar do robô e os versos familiares do poema atenuaram
temporariamente o pânico de Nicole. Por um instante, ouviu com mais calma os
ruídos vindos lá de cima, embora eles estivessem aumentando.
Quando Nicole ouviu que as grandes sacas de ração colocadas na entrada
do seu esconderijo estavam sendo retiradas, seu medo aumentou subitamente. É
isso aí, disse para si mesma. Agora vou ser capturada.
Nicole ficou pensando se a polícia especial a mataria assim que a
encontrasse. Depois ouviu uma batida metálica forte na extremidade da
passagem para o seu quarto, e não conseguiu mais se manter sentada. Ao se
levantar, sentiu fortes dores no peito e teve dificuldade para respirar. O que está
me acontecendo? pensou, quando Joana falou ao seu lado.
— Depois da primeira busca, Max teve medo de não ter camuflado bem a
entrada do esconderijo. Uma noite, enquanto você dormia, ele construiu no alto
do buraco um sistema de escoamento para o galinheiro, com os canos de
descarga correndo por cima deste quarto. Aquele som metálico que você ouviu foi
alguém batendo nos canos.
Nicole prendeu a respiração para tentar ouvir a conversa abafada por cima
do quarto. Depois de um minuto, ouviu de novo as sacas do galinheiro sendo
mexidas. Pobre Max, pensou, relaxando. A dor no peito diminuiu. Passados mais
alguns minutos, os ruídos cessaram completamente. Nicole deu um suspiro e
sentou-se na cadeira, mas só conseguiu dormir quando a luz voltou a acender.

O robô Eleonor estava de volta quando Nicole acordou. Ela explicou que
Max ia começar a retirar o sistema de drenagem nas próximas horas, e que Nicole
finalmente iria sair do esconderijo. Nicole ficou surpresa quando, depois de
rastejar pelo túnel, encontrou Eponine ao lado de Max. As duas se abraçaram.
— Ça va bien? Je ne t'ai pas vue depuis si longtemps — disse Eponine
para Nicole.
— Mais mon amie, pourquoi es-tu ici? J'ai pensé que...
— Ei, vocês duas, já chega — interrompeu Max. — Vão ter muito tempo
para conversar mais tarde. Agora precisamos nos apressar. Já estamos atrasados
porque levei muito tempo retirando essa droga de canos... Ep, leve Nicole lá
dentro e lhe dê a roupa. E pode ir explicando o plano enquanto ela se veste...
Tenho de tomar uma ducha e fazer a barba.
Quando as duas iam andando no escuro, do celeiro até a casa de Max,
Eponine contou para Nicole que tudo estava preparado para ela fugir do habitat.
— Nos últimos quatro dias Max escondeu o equipamento de mergulho,
peça por peça, em volta das margens do lago Shakespeare. Ele também tem outro
conjunto guardado num armazém em Beauvois, caso alguém tenha tirado sua
máscara ou seu tanque de ar de onde estavam escondidos. Enquanto você e eu
estivermos na festa, Max vai dar um jeito para que tudo corra bem.
— Que festa? — perguntou Nicole, confusa. Eponine deu uma risada
quando elas entravam em casa.
— Oh, meu Deus, eu me esqueci que você não está seguindo o calendário.
Esta noite é o Mardi Gras. Há uma grande festa em Beauvois e outra em
Positano. Quase todo mundo vai estar na rua à noite. O governo está animando
as pessoas a tomarem parte das festividades, provavelmente para afastarem da
cabeça os outros problemas da colônia.
Nicole olhou de forma estranha para a amiga, e Eponine riu de novo.
— Você não entende? Nossa maior dificuldade é saber como fazer você
atravessar a colônia até o lago Shakespeare sem ser vista. Todos em Novo Éden a
conhecem. Até mesmo Richard acha que essa era a única oportunidade razoável.
Você vai fantasiada e mascarada...
— Então você falou com Richard? — perguntou Nicole, começando a
compreender pelo menos o esboço do plano.
— Não diretamente, mas Max comunicou-se com ele através dos
robozinhos. Richard foi quem teve a idéia de construir o sistema de drenagem que
tapeou a polícia na última vez em que estiveram na fazenda. Ele estava com medo
de que você fosse descoberta...
Obrigada mais uma vez, Richard, pensou Nicole, enquanto Eponine
continuava a falar. A essa altura, já lhe devo minha vida pela terceira vez.
As mulheres entraram no quarto e viram sobre a cama um lindíssimo
vestido branco.
— Você vai à festa fantasiada de rainha da Inglaterra — disse Eponine.
— Venho trabalhando neste seu vestido há duas semanas sem parar. Com
essa máscara cobrindo seu rosto todo, as luvas brancas compridas e as polainas,
ninguém vai ver seu cabelo nem sua pele. Não teremos de ficar na festa muito
mais que uma hora, e você não vai ter de conversar muito com as pessoas; mas
se alguém perguntar, diga simplesmente que você é Ellie. Ela vai ficar em casa
hoje à noite com o bebê.
— Ellie sabe que eu fugi? — perguntou Nicole um instante depois,
sentindo uma vontade louca de ver sua filha e a pequena Nicole, que ela ainda
não conhecia.
— Provavelmente — disse Eponine. — Pelo menos ela sabia que haveria
uma tentativa... Foi Ellie a primeira pessoa que me envolveu na sua fuga. Ellie e
eu escondemos seus suprimentos para a planície Central.
— Então você não vê Ellie desde que eu saí da prisão?
— Já vi sim. Mas não falamos sobre isso. Nessa fase ela tem de ser
extremamente cuidadosa. Nakamura a está vigiando como um falcão...
— Há mais alguém envolvido? — perguntou Nicole, segurando o vestido
para ver se ele lhe serviria.
— Não. Só Max, Ellie e eu... e, naturalmente, os pequenos robôs de
Richard.

Nicole ficou em frente ao espelho durante alguns minutos. Aqui estou eu,
finalmente a rainha da Inglaterra, pelo menos por uma a duas horas. Ela estava
certa de que a idéia daquela fantasia específica fora de Richard. Ninguém mais
teria feito uma escolha tão apropriada, pensou Nicole ajustando a coroa na
cabeça. Com esse rosto branco, Henry talvez me tivesse tornado uma rainha.
Nicole estava afundada em seus pensamentos quando Max e Eponine
apareceram. Começou a rir assim que viu Max vestido numa sumária roupa
verde, segurando um tridente. Estava fantasiado de Netuno, o rei do mar, e
Eponine era sua princesa-sereia sensual.
— Vocês dois estão ótimos! — exclamou Nicole, piscando para Eponine.
— Puxa, Max — acrescentou logo depois, num tom de brincadeira —, eu
não tinha idéia de que seu corpo fosse tão imponente.
— Isso é ridículo — resmungou Max. — Eu tenho cabelo por todo lado, no
peito, nas costas, nas orelha, até mesmo...
— Só que está ficando um pouco escasso aqui — disse Eponine, dando
uma batidinha na cabeça de Max quando ele tirou a coroa.
— Merda — disse Max. — Agora sei por que nunca vivi com uma mulher...
Vamos embora, vocês duas aí. A propósito, o tempo está instável de novo esta
noite. É melhor levarem um xale ou uma jaqueta para a viagem de carruagem.
— Carruagem? — perguntou Nicole, olhando para Eponine. A amiga riu e
disse:
— Você vai ver daqui a pouco.

Quando o governo do Novo Éden requisitou todos os trens para converter


as ligas metálicas extraterrestres, muito leves, em aviões de guerra e outros
armamentos, a colônia do Novo Éden foi deixada com um sistema de transporte
deficiente. Por sorte, grande parte dos cidadãos tinha comprado bicicletas, e um
sistema completo de ciclovias fora desenvolvido nos três primeiros anos depois do
assentamento inicial. De outra forma, teria sido muito difícil para as pessoas se
deslocarem na colônia.
Na época em que Nicole fugiu, os antigos trilhos de trem tinham sido
retirados, dando lugar a estradas de rodagem. Essas estradas eram usadas pelos
carros elétricos (restritos aos líderes do governo e militares graduados),
caminhões de transporte (que também rodavam por eletricidade) e por outros
veículos criativos e variados, construídos pelos cidadãos do Novo Éden. A
carruagem de Max era um destes. Na frente era uma bicicleta, mas na parte de
trás havia dois bancos macios, quase como poltronas, pousados sobre duas rodas
e um forte eixo, mais ou menos como as carruagens puxadas por cavalos usadas
uns trezentos anos antes na Terra.
O rei Netuno foi lutando com os pedais à medida que o trio fantasiado
passava pela estrada na direção da Cidade Central.
— Merda — disse Max, fazendo esforço para acelerar —, por que eu fui
concordar com esse plano absurdo?
Nicole e Eponine ficaram rindo no banco traseiro.
— Porque você é um homem maravilhoso — disse Eponine — e queria que
nos sentíssemos confortáveis... Além disso, você poderia imaginar uma rainha
andando de bicicleta por quase dez quilômetros?
A temperatura estava realmente mais baixa. Eponine levou uns minutos
explicando a Nicole que o tempo estava ficando cada vez mais instável.
— Houve uma reportagem recente na televisão dizendo que o governo
pretende assentar mais colonos no segundo habitat, onde o ambiente ainda não
foi desgastado... Ninguém tem confiança de que um dia cheguemos a resolver os
problemas aqui no Novo Éden.
Ao se aproximarem da Cidade Central, Nicole achou que Max poderia
estar sentindo frio. Ofereceu o xale que Eponine lhe havia emprestado, e ele
aceitou.
— Você devia ter arranjado uma fantasia mais quente — disse Nicole,
brincando.
— Vestir Max de Netuno também foi idéia de Richard — disse Eponine. —
Assim, se ele precisar carregar algum equipamento de mergulho para você, a
coisa vai parecer perfeitamente natural.
Nicole ficou emocionada quando a carruagem foi diminuindo a marcha no
tráfego crescente e serpenteando pelos prédios principais da colônia na Cidade
Central. Lembrou-se da noite, anos atrás, em que ela era o único ser humano
acordado no Novo Éden. Naquela mesma noite, depois de dar mais uma olhada
em sua família, Nicole, apreensiva, subiu no seu beliche e preparou-se para
dormir durante a viagem que duraria vários anos, de volta ao sistema solar.
Uma imagem da Águia, aquela estranha manifestação de inteligência
alienígena que fora a guia deles em Nodo, apareceu na sua frente. Você podia ter
previsto tudo isso? Nicole ficou pensando, sintetizando rapidamente toda a
história da colônia, desde aquele primeiro encontro com os passageiros da Terra a
bordo da Pinta. E o que você pensa de nós agora?, pensou ela, balançando a
cabeça com raiva, vivamente constrangida com o comportamento de seus
companheiros humanos.
— Eles nunca substituíram aquilo — disse Eponine ao lado dela, quando
a carruagem entrou na praça principal.
— Desculpe — falou Nicole. — Acho que eu estava sonhando acordada.
— Aquele belíssimo monumento projetado pelo seu marido, que
representava o ponto em que Rama estava na galáxia... Lembra-se de que ele foi
destruído na noite em que a multidão queria linchar Martínez?... Bem, ele nunca
foi substituído.
Mais uma vez, Nicole afundou em suas lembranças. Talvez seja esse o
significado da velhice. Muitas lembranças sempre atropelando o presente.
Recordou-se da multidão turbulenta e do menino de cabelos vermelhos gritando:
"Matem aquela puta negra..."
— O que aconteceu com Martínez? — indagou Nicole com cuidado, com
medo da resposta.
— Foi eletrocutado logo depois que Nakamura e Macmillan tomaram o
poder. O julgamento ficou nas manchetes durante vários dias.
Eles tinham atravessado a Cidade Central e continuavam para o sul, na
direção de Beauvois, o vilarejo onde Nicole, Richard e o resto da família tinham
vivido antes do golpe de Nakamura. Tudo podia ter sido diferente, pensou Nicole
olhando para o Monte Olimpo que se elevava à sua esquerda. Nós poderíamos ter
tido um paraíso aqui. Devíamos ter tentado mais...
Era sempre uma seqüência de pensamentos que Nicole seguira centenas
de vezes desde aquela noite terrível, a mesma noite em que Richard fugira
apressadamente do Novo Éden. Havia sempre a mesma tristeza profunda em seu
coração, as mesmas lágrimas em seus olhos.
Nós humanos, lembrou-se ela de ter dito um dia para a Águia em Nodo,
somos capazes de comportamentos paradoxais. Às vezes, quando há amor e
compaixão, parecemos estar logo abaixo dos anjos. Mas na maior parte das vezes
a cobiça e o egoísmo se sobrepõem às nossas virtudes, e nos tornamos
indistinguíveis daquelas criaturas más das quais nos originamos.

4
Max tinha deixado a festa há quase duas horas, e Eponine e Nicole
estavam alarmadas. Quando as duas tentaram atravessar a pista de dança
apinhada de gente, dois homens vestidos de Robin Hood e Frei Tuck as
detiveram.
— Você pode não ser a Donzela Marian mas é a Donzela do Mar, o que dá
quase no mesmo — disse Robin Hood para Eponine. Ele riu de sua própria piada,
estendeu os braços e começou a dançar com ela.
— Será que um frade menos graduado poderá dançar com sua majestade?
— perguntou o outro homem. Nicole riu para si mesma. Qual é o mal de dançar
um pouquinho?, pensou. Caiu nos braços de Frei Tuck e começou a rodopiar
lentamente pelo salão.
Ele era um homem tagarela. Depois de alguns compassos, ele se afastou
um pouco de Nicole e lhe fez uma pergunta. Como planejado, Nicole respondeu
com um movimento de cabeça ou um gesto. No final da música o frade começou a
rir.
— Realmente, acho que estou dançando com uma muda. Muito graciosa,
sem dúvida, mas mesmo assim uma muda.
— Estou com um terrível resfriado — disse Nicole baixinho, tentando
disfarçar a voz.
Depois de ter falado, ela sentiu uma mudança drástica nos modos do
frade. Sua preocupação aumentou quando, no final da dança, o homem
continuou a segurá-la nos braços e a olhá-la durante vários segundos.
— Já ouvi sua voz antes — disse ele, sério. — É uma voz muito especial...
Será que a conheço? Sou Wallace Michaelson, o senador da zona oeste de
Beauvois.
É claro, pensou Nicole em pânico. Agora me lembro. Você era um dos
americanos do Novo Éden que apoiava Nakamura e Macmillan.
Nicole não ousou dar mais nenhuma palavra. Felizmente Eponine e Robin
Hood se aproximaram dela e do frade fantasiado antes que o silêncio entre os
dois ficasse longo demais. Eponine sentiu o que acontecera e agiu rapidamente.
— A rainha e eu — disse, puxando Nicole pela mão — estávamos indo ao
toalete quando os bandidos da floresta de Sherwood nos encontraram. Se nos
derem licença, agradecemos a dança e seguiremos nosso destino.
Enquanto elas se afastavam, os dois homens as observavam atentamente.
Ao chegarem ao toalete, Eponine primeiro abriu todas as portas dos banheiros
para ter a certeza de que estavam sozinhas.
— Alguma coisa aconteceu — disse Eponine baixinho. — Provavelmente,
Max teve de ir ao armazém para substituir seu equipamento.
— Frei Tuck é um senador de Beauvois — falou Nicole. — Ele quase
reconheceu minha voz... Não estou me sentindo segura aqui.
— Tudo bem — disse Eponine nervosa, depois de um instante de
hesitação. — Vamos seguir o plano alternativo... Sairemos pela porta da frente e
esperaremos debaixo da árvore grande.
As duas viram a pequena câmera instalada no teto ao mesmo tempo,
fazendo um pequeno ruído quando mudava de orientação para segui-las em volta
do toalete. Nicole tentou lembrar-se de todas as palavras que ela e Eponine
haviam dito. Será que dissemos alguma coisa que sugerisse quem nós somos?
Ela preocupou-se mais com Eponine, pois a amiga iria continuar a viver na
colônia depois que ela conseguisse fugir ou fosse capturada.
Quando Nicole e Eponine voltaram para o salão de baile, Robin Hood e seu
frade favorito fizeram sinal para que elas fossem até eles. Mas Eponine seguiu na
direção da porta, pôs os dedos nos lábios para indicar que estava saindo para
fumar e atravessou a sala com Nicole. Ao abrir a porta da saída, olhou por trás
dos ombros.
— Os homens de verde estão nos seguindo — cochichou para Nicole. A
uns vinte metros da entrada do salão de baile, que era na realidade o
ginásio da Escola Secundária de Beauvois, havia um grande olmo que fora
uma das poucas árvores ]á grandes transportadas da Terra para Rama. Quando
Eponine e a rainha Nicole chegaram à árvore, Eponine abriu sua bolsa, pegou um
cigarro e acendeu-o rapidamente. Soprou a fumaça para longe de Nicole.
— Desculpe-me — sussurrou para a amiga.
— Eu compreendo — Nicole respondeu, e, mal acabara de falar, Robin
Hood e Frei Tuck já estavam ao seu lado.
— Bem, bem — começou Robin Hood —, então nossa princesa-sereia é
fumante. Não sabe que está perdendo anos da sua vida?
Eponine ia começar a dar a resposta costumeira, a dizer ao homem que
iria morrer muito antes pelo vírus do RV-41, mas decidiu não falar nada que
pudesse encorajar os homens a ficar ali. Deu apenas um sorriso, tragou fundo e
soltou a fumaça acima da cabeça, para os galhos da árvore.
— O frade aqui e eu gostaríamos que as senhoras tomassem um drinque
conosco — disse Robin Hood, ignorando o fato de que nem Eponine nem Nicole
tinham respondido ao comentário dele.
— É — acrescentou Frei Tuck —, gostaríamos de saber quem são as
senhoras... — falou, olhando fixo para Nicole. — Tenho certeza de que já nos
encontramos antes. Sua voz me é muito familiar.
Nicole fingiu tossir e olhou em volta. Havia três policiais num raio de
cinqüenta metros. Aqui não, pensou ela. Agora não. Não agora que estou tão perto
de me libertar.
— A rainha não está se sentindo bem — disse Eponine. — Talvez
tenhamos de ir embora cedo. Se não, voltaremos para nos encontrar com vocês...
— Eu sou médico — interrompeu Robin Hood, aproximando-se de Nicole.
— Talvez possa ajudar.
Nicole estava muito tensa. Sua respiração ficou curta e difícil. Ela tossiu
novamente e virou-se de costas para os dois homens.
— É uma tosse terrível, majestade — disse uma voz familiar. — É melhor
que a levemos para sua casa.
Nicole olhou para cima e viu outro homem de verde. Era Max, ou melhor,
o rei Netuno, sorrindo para ela. Por trás dele, Nicole pôde ver a carruagem
estacionada a menos de dez metros de distância. Nicole sentiu-se feliz e aliviada.
Deu um grande abraço em Max e quase se esqueceu do perigo que estava
correndo.
— Max — falou, antes que ele pusesse o dedo em seus lábios.
— Sei que vocês duas estão encantadas em ver que o rei Netuno terminou
seu trabalho por hoje — disse, num tom floreado — e pode agora acompanhá-las
ao seu castelo, longe dos bandidos e de outros elementos desagradáveis.
Max olhou para os dois homens, que estavam apreciando o seu
desempenho, embora ele tivesse estragado os planos que tinham para a noite.
— Obrigado, Robin. Obrigado, Frei Tuck — continuou Max, enquanto
ajudava as duas senhoras a entrar na carruagem. — Foi muito gentil a atenção
dispensada às minhas amigas.
Frei Tuck aproximou-se da carruagem, obviamente para fazer mais uma
pergunta, mas Max saiu pedalando.
— É uma noite de fantasias e mistério — disse ele, dando adeus aos
homens. — Mas não podemos nos demorar, pois o mar nos chama.
— Você foi fantástico — disse Eponine beijando Max. Nicole fez que sim.
— Talvez você tenha errado de profissão. Devia ter sido ator e não
fazendeiro.
— Eu fiz o papel de Marco Antônio na nossa peça do ginásio em Arkansas
— disse Max, passando a Nicole a máscara de mergulho para que ela a
ajustasse. — Os porcos adoravam meus ensaios... "Amigos, romanos,
compatriotas... emprestem-me seus ouvidos... Vim aqui para enterrar César, não
para elogiá-lo."
Os três riram ao mesmo tempo. Estavam de pé em uma pequena clareira a
uns cinco metros da margem do lago Shakespeare, escondidos da estrada
próxima e da ciclovia por algumas árvores e uns arbustos altos. Max levantou o
tanque de ar e ajudou Nicole a colocá-lo nas costas.
— Está tudo pronto então? — perguntou. Nicole fez que sim.
— Os robôs vão encontrar com você no esconderijo — continuou ele. —
Pediram-me para lembrá-la de não descer rápido demais... Você não mergulha há
muito tempo.
Nicole ficou em silêncio durante uns segundos.
— Não sei como agradecer a vocês dois — disse, sem jeito. — Nada que eu
pense em dizer parece adequado para o momento.
Eponine andou na sua direção e abraçou-a.
— Fique em segurança, minha amiga. Nós amamos muito você.
— Eu também — disse Max, um instante depois, engasgando ao abraçá-
la. Os dois acenaram para Nicole quando ela entrou no lago.
Lágrimas corriam de seu rosto e juntavam-se no fundo da máscara de
mergulho. Nicole acenou pela última vez quando a água chegou até sua cintura.

A água estava mais fria do que Nicole supunha. Ela sabia que as variações
de temperatura no Novo Éden tinham sido muito maiores desde que os colonos
tomaram a seu cargo a administração de seu próprio tempo, mas não tinha
pensado que as mudanças nos padrões de temperatura pudessem alterar a
temperatura do lago.
Nicole mudou a quantidade de ar no seu colete para diminuir a velocidade
da descida. Não se apresse, aconselhou a si própria. E relaxe. Você vai ter de
nadar um bocado agora.
Joan e Eleonor tinham treinado Nicole várias vezes quanto aos
procedimentos que ela deveria seguir para localizar o longo túnel por baixo da
parede do habitat. Ela ligou a lanterna e examinou a flora aquática à sua
esquerda. Trezentos metros do centro do lago, diretamente perpendicular à parede
do fundo da área de alimentação dos salmões, lembrava-se. Desça a uma
profundidade de vinte metros até ver a plataforma de concreto abaixo de você.
Nicole nadou com facilidade, mas cansou-se rapidamente. Lembrou-se de
uma discussão que tivera com Richard uns anos antes, quando os dois pensavam
em nadar juntos pelo mar Cilíndrico para fugir de Nova York.
— Mas eu não nado tão bem assim — dissera Nicole. — Talvez não
consiga atravessar.
Richard lhe assegurara naquela época que, como ela era uma atleta
excepcional, não teria problema em nadar uma grande extensão. Agora aqui
estou, nadando para sobreviver, seguindo o mesmo caminho que Richard usou dois
anos atrás, pensou Nicole. Só que já tenho uns sessenta anos e estou fora de
forma.
Ela encontrou a plataforma de concreto, desceu outros quinze metros,
observando com cuidado todos os seus instrumentos de medida, e rapidamente
localizou uma das grandes estações de bombeamento espalhadas no fundo do
lago para manter a água em permanente circulação. Agora a entrada do túnel
deve estar escondida logo abaixo de um desses motores grandes. Mas não a
encontrou com facilidade. Primeiro, passou sem vê-la, por causa da nova
vegetação que havia crescido em volta do complexo de bombeamento.
O túnel era um tubo de quatro metros de diâmetro, absolutamente cheio
de água. Fora incluído como uma saída de emergência no projeto original do
habitat por insistência de Richard, cuja formação de engenharia lhe ensinara a
pensar sempre nas contingências não-previstas. Da entrada do lago Shakespeare
até a saída na planície Central, para além das paredes do habitat, era preciso
nadar por cerca de um quilômetro. Nicole levara dez minutos mais do que
planejara para encontrar a entrada, e já estava muito cansada quando começou
atravessar a última etapa a nado.
Durante seus dois anos de prisão, o único exercício que fazia era andar,
sentar e levantar, e se alongar, o que fazia com intervalos irregulares. Seus
músculos desgastados pela idade não conseguiam mais enfrentar uma grande
fadiga sem ter cãibras. Três vezes durante a travessia pelo túnel sentiu cãibras
nos músculos da perna. E todas as vezes lutou contra isso, forçando-se a relaxar
até a cãibra passar de todo. Seu progresso daí por diante foi muito lento. No final
do percurso a nado, Nicole ficou assustada, com medo de perder o ar antes de
alcançar a saída do túnel.
Nos últimos cem metros, seu corpo começou a doer muito. Os braços não
conseguiam mais se mover na água, e as pernas não tinham força para bater. Foi
então que começou a sentir a dor no peito. Uma dor surda, desconcertante, que a
perseguiu até mesmo depois que o medidor de profundidade indicou que o túnel
estava subindo um pouco.
Quando finalmente Nicole chegou no fim e ficou de pé, quase desmoronou.
Durante alguns minutos, tentou em vão controlar sua respiração e seu pulso, e
não teve forças para levantar a tampa de metal da saída, acima de sua cabeça.
Com medo de ter ultrapassado seu limite físico de resistência, Nicole resolveu
ficar no túnel e tirar um cochilo.
Acordou duas horas depois, ao ouvir um ruído estranho vindo de cima.
Ficou de pé, diretamente embaixo da tampa, e escutou com atenção. Eram vozes,
mas ela não conseguia perceber o que estavam dizendo. O que está acontecendo?,
perguntou a si mesma, com o coração aos pulos. Se fui descoberta pela polícia,
por que eles não levantam a tampa?
De repente, ouviu uma forte batida na tampa.
— Você está aí, Nicole? — perguntou o robô Joana. — Se estiver,
identifique-se imediatamente. Trouxemos umas roupas quentes para você trocar,
mas não temos força para levantar a tampa.
— Sim, sou eu — gritou Nicole aliviada. — Vou subir assim que puder.
Com a roupa molhada, Nicole ficou morrendo de frio ao se ver no ar revigorante
de Rama, onde a temperatura era de poucos graus acima de zero. Seu queixo
batia fortemente enquanto ela caminhava os oitenta metros no escuro, à procura
do esconderijo onde iria encontrar comida e roupas secas.
Quando o trio pegou os suprimentos, Joana e Eleonor disseram a Nicole
que ela devia vestir o uniforme do exército que Ellie e Eponine haviam deixado ali.
Nicole perguntou por quê, e os robôs explicaram que para chegar a Nova York
teriam de passar por um segundo habitat.
— Caso eles nos descubram — disse Eleonor, sentada em segurança
dentro do bolso da camisa de Nicole —, será mais fácil escaparmos se você estiver
usando um uniforme de soldado.
Nicole vestiu as ceroulas e o uniforme. Só quando seu frio passou é que
percebeu que estava com muita fome. Enquanto comia, colocou todas as outras
coisas que estavam embrulhadas no lençol dentro da mochila que havia trazido
por baixo do colete.

Foi difícil entrar no segundo habitat. Nicole e os dois robôs que estavam
dentro do seu bolso não haviam encontrado nenhum ser humano na planície
Central, mas a entrada para a antiga casa das aves e dos sésseis estava guardada
por uma sentinela. Eleonor tinha saído para pesquisar a área e falou sobre a
dificuldade. O trio parou a uns quatrocentos metros da rua principal entre os
dois habitats.
— Deve ser uma nova medida de segurança, criada depois de sua fuga —
disse Joana para Nicole. — Nós nunca tivemos qualquer dificuldade para ir e vir.
— Não há outras ruas dando lá para dentro? — indagou Nicole.
— Não — respondeu Eleonor. — O ponto original de inspeção era aqui.
Depois, ele foi consideravelmente ampliado, é claro, e construíram uma ponte por
cima do fosso, para que as tropas pudessem se movimentar mais depressa. Mas
não há outras entradas.
— E é absolutamente necessário atravessar esse habitat para nos
encontrarmos com Richard em Nova York?
— É — replicou Joana. — Aquela imensa barreira cinza ao sul, a que
forma o muro do segundo habitat e que tem muitos quilômetros, evita a
movimentação para dentro e para fora do Hemicilindro Norte de Rama. Nós
poderíamos voar por cima dele se tivéssemos um avião que alcançasse uma
altitude de dois quilômetros e um piloto muito esperto, mas não temos... Além do
mais... Richard está contando que cheguemos através do habitat.
Ficaram esperando longo tempo no escuro. De quando em vez, um dos
robôs ia checar a entrada, mas havia sempre uma sentinela. Nicole foi ficando
cansada e irritada, e disse, a certa altura:
— Não podemos ficar aqui para sempre. Deve haver algum outro plano.
— Não temos conhecimento de nenhum plano ou de uma alternativa
nessa situação — disse Eleonor, fazendo Nicole lembrar-se de que elas eram
apenas robôs.
Durante um breve cochilo, Nicole sonhou que estava dormindo nua, no
alto de um enorme cubo de gelo muito plano. As aves desciam do céu para bicá-
la, e centenas de robôs como Joana e Eleonor a rodeavam na superfície do gelo,
cantando alguma coisa em uníssono.
Quando Nicole acordou, sentiu-se um pouco descansada. Falou com os
dois robôs, e pensaram num outro plano. As três decidiram só sair dali quando
houvesse uma folga no tráfego em direção à entrada para o segundo habitat.
Então, os robôs distrairiam a sentinela para que Nicole pudesse entrar, passando
com cuidado para o outro lado da ponte e virando à direita na margem do fosso.
— Depois, espere por nós — disse Eleonor — no pequeno abrigo a uns
trezentos metros da ponte.
Vinte minutos depois, Joana e Eleonor criaram uma grande confusão
junto do muro, a mais ou menos cinqüenta metros da entrada. E Nicole
caminhou livremente para o interior do habitat quando a sentinela saiu do posto
para saber que barulhada era aquela. Uma vez lá dentro, ela viu uma longa
escada sinuosa descendo a centenas de metros, desde o alto da entrada até o
fundo do fosso largo que circundava todo o habitat. Na escada havia umas tantas
luzes a intervalos regulares, e Nicole percebeu mais luzes na ponte à sua frente,
mas a iluminação ambiental era bastante escassa. Ela ficou tensa ao ver dois
operários subindo as escadas na sua direção. Mas eles passaram por ela sem
reconhecê-la, e ela ficou feliz por estar usando o uniforme.
Enquanto esperava no fosso, Nicole olhou para o centro do habitat
alienígena e tentou ver todos os fascinantes detalhes que os robôs lhe haviam
descrito: a imensa estrutura cinzenta e cilíndrica erguendo-se a mil e quinhentos
metros, que já servira de abrigo às colônias das aves e dos sésseis; a grande
esfera coberta, pendurada no teto do habitat para fornecer luz; e o anel de
prédios brancos misteriosos, ao longo de um canal cercando o cilindro.
A esfera coberta não era iluminada há meses, desde a primeira incursão
humana ao reino .das aves e dos sésseis. As únicas luzes que Nicole pôde ver
eram pequenas e espalhadas aqui e ali, obviamente colocadas no habitat pelos
invasores humanos. Assim, ela só conseguiu perceber uma vaga silhueta do
grande cilindro, uma sombra com extremidades muito indistintas. Richard deve
ter se sentido glorioso quando entrou aqui pela primeira vez, pensou Nicole,
movida pelo sentimento de estar num lugar que abrigara até pouco tempo uma
outra espécie senciente. Aqui também, continuou a pensar, estendemos a nossa
hegemonia, dominando todas as formas de vida que não são tão poderosas quanto
nós.
Eleonor e Joana levaram mais tempo do que o esperado para se
encontrarem com Nicole, e as três enfim seguiram lentamente ao longo do fosso.
Um dos robôs caminhava sempre na frente, examinando tudo, para evitar o
contato com outros seres humanos. Por duas vezes, na parte do habitat que se
assemelhava a uma floresta da Terra, Nicole esperou quieta que um grupo de
soldados ou operários passassem pela estrada à sua esquerda. Nas duas vezes,
ficou observando as interessantes plantas novas à sua volta, completamente
fascinada. A um certo momento viu uma criatura, misto de sanguessuga e
minhoca, tentando entrar no pé direito da sua bota. Apanhou o bichinho e
colocou-o no bolso.
Fazia quase setenta e duas horas que Nicole entrara no lago Shakespeare
quando ela e os dois robôs finalmente chegaram ao lugar especificado para o
encontro. Elas estavam na extremidade oposta à entrada do segundo habitat,
onde a densidade normal de seres humanos era muito baixa. Um submarino
emergiu pouco depois de sua chegada. Um lado do submarino se abriu e Richard
Wakefield, com um enorme sorriso na cara barbada, correu para sua amada
esposa. O corpo de Nicole tremeu de alegria quando sentiu seus braços em torno
dela.

5
Tudo era tão familiar. Exceto pela quantidade de coisas que Richard
acumulara durante seus meses de solidão, e pela conversão do quarto das
crianças em dormitório para as duas aves-filhotes, a toca subterrânea de Nova
York era exatamente a mesma que fora quando Richard, Nicole, Michael O'Toole e
seus filhos tinham partido de Rama anos atrás.
Richard estacionou o submarino em uma baía natural ao sul da ilha, em
um lugar que ele batizara de O Porto.
— Onde você arranjou esse submarino? — indagou Nicole enquanto
caminhavam na direção da toca.
— Foi um presente — disse Richard. — Ou pelo menos considerei um
presente. O superchefe das aves me mostrou como manobrar o submarino,
depois desapareceu e deixou-o aqui.
Andar em Nova York era uma experiência esquisita para Nicole. Mesmo no
escuro os arranha-céus lhe lembravam os anos em que ela vivera naquela ilha
misteriosa no meio do mar Cilíndrico.
Há quantos anos saímos daqui?, ia pensando Nicole, quando Richard, de
mão dadas com ela, parou ao lado do celeiro onde Francesca Sabatini a largara
para que ela morresse no fundo de um poço. Mas Nicole sabia que aquela
pergunta não tinha como ser respondida. Aquele tempo intermediário não podia
ser medido de forma normal, pois eles tinham feito duas longas viagens
interestelares a velocidades relativistas, a segunda delas dormindo num beliche
especial, com uma tecnologia extraterrestre retardando seu processo de
envelhecimento através de cuidadosa manipulação de suas enzimas e de seu
metabolismo.
— As únicas alterações feitas na nave Rama em cada visita a Nodo —
dissera Richard quando eles se aproximavam de sua antiga casa — foram as
necessárias para acomodar a missão seguinte. Portanto, nada mudou na nossa
toca. A tela preta ainda está lá na Sala Branca, e também nosso teclado. Os
procedimentos para fazer solicitações aos ramaianos, ou qualquer outro nome
que dermos aos nossos hospedeiros, também estão intactos.
— E as outras tocas? — perguntou Nicole, quando eles desciam a rampa
para chegar ao nível em que viviam. — Você esteve neles?
— A toca das aves virou um túmulo — disse Richard. — Estive lá várias
vezes. Uma vez entrei com cuidado na toca das octoaranhas, mas só cheguei até
a sala da catedral, com os quatro túneis levando para...
Nicole o interrompeu, rindo:
— Os túneis que nós chamávamos de Mindinho, Seu Vizinho, Pai de
Todos e Fura-Bolos...
— Isso mesmo — continuou Richard. — O fato é que eu não me senti bem
lá. Tive uma sensação, embora não pudesse identificar nada de específico, de que
a toca ainda estava habitada. E que as octoaranhas, ou qualquer outra coisa que
esteja morando lá, vigiavam meus passos. — Daquela vez foi Richard quem riu. —
Acredite ou não, eu também me preocupei com o que poderia acontecer com
Tammy e Timmy se por algum motivo eu não voltasse mais.
A primeira apresentação de Nicole a Tammy e Timmy, os filhotes de aves
que Richard tinha criado desde que nasceram, foi indescritível. Richard
construíra uma meia porta para o quarto das crianças e fechara-a bem quando
saiu para encontrar-se com Nicole dentro do segundo habitat. Como aquelas
criaturas com aspecto de pássaros ainda não sabiam voar, não conseguiram sair
do quarto durante a ausência de Richard. Mas assim que ouviram a voz dele na
toca, começaram a matraquear e a grasnar até Richard abrir a porta e colocá-las
no colo.
— Eles estão me dizendo — gritou Richard para Nicole por cima daquela
barulhada — que eu não devia tê-los deixado aqui sozinhos.
Nicole ria tanto que seus olhos se encheram de lágrimas. Os dois filhotes
esticaram o pescoço até o rosto de Richard, interrompendo seus guinchos de vez
em quando para acariciar com o bico as suas bochechas barbudas. As aves ainda
eram pequenas, com cerca de setenta centímetros de altura quando ficavam de
pé, mas tinham o pescoço tão comprido que pareciam ser muito maiores.
Nicole ficou observando com admiração seu marido cuidar daquelas aves
alienígenas. Ele limpava seus excrementos, não as deixava sem comida fresca e
água, e via se suas camas de feno do canto do quarto estavam bem macias. Você
se aprimorou muito, muito, Richard Wakefield, pensou Nicole, lembrando-se da
relutância dele no passado para assumir suas obrigações de pai. Ela ficou muito
comovida com a dedicação àqueles filhotes de aves. Será possível que cada um de
nós tenha dentro de si esse tipo de amor altruísta? E que tenhamos de superar
todos os problemas criados pela hereditariedade e pela sociedade para descobrir
esse amor?
Richard guardara os quatro melões-maná e a fatia do séssil em um quarto
do Salão Branco, e explicou a Nicole que não havia observado qualquer mudança
nos melões nem no material séssil desde que chegara em Nova York.
— Talvez os melões possam ficar hibernados por longo tempo, como as
sementes — disse Nicole ao ouvir a explicação de Richard sobre o complexo ciclo
de vida da espécie séssil.
— Foi isso que pensei — falou Richard. — É claro que não tenho idéia das
condições em que os melões possam germinar... Essa espécie é tão estranha e tão
complicada que eu não me surpreenderia se o processo fosse controlado por
aquele pequeno pedaço de séssil.
Na primeira noite que passaram juntos, Richard teve dificuldade em fazer
com que os filhotes dormissem.
— Eles estão com medo de que eu os deixe sozinhos de novo — explicou,
ao voltar para o Salão Branco depois da terceira vez em que os guinchos
enfurecidos de Tammy e Timmy interromperam seu jantar com Nicole.
Finalmente, Richard programou Joana e Eleonor para divertir as aves. Foi a
única forma de mantê-las quietas para que pudesse ficar um pouco sozinho com
Nicole.
Eles fizeram amor com muita suavidade antes de dormir. Richard
admitira, quando estava se despindo, que não tinha certeza se conseguiria... mas
Nicole lhe disse que o fato de conseguir ou não não teria nenhuma importância.
Ela insistiu que ficaria felicíssima só de ter o corpo dele junto ao seu, e que
qualquer estímulo sexual seria um prêmio magnífico. Mas é claro que os dois se
saíram muito bem, como tinham se saído desde a primeira vez em que dormiram
juntos. Depois que fizeram amor, continuaram na cama de mãos dadas, lado a
lado, sem dar palavra. Os olhos de Nicole encheram-se de lágrimas, que rolaram
pelo seu rosto lentamente, chegando a entrar nos seus ouvidos. Ela sorriu no
escuro, sentindo-se por um instante gloriosamente feliz.

Pela primeira vez na vida os dois não tinham pressa. Conversavam toda
noite, às vezes até mesmo enquanto faziam amor. Richard contou a Nicole muito
mais sobre sua infância e adolescência do que jamais contara, inclusive suas
sofridas lembranças da violência paterna, e os detalhes de seu primeiro
desastroso casamento com Sarah Tydings.
— Agora percebo que Sarah e meu pai tinham uma coisa fundamental em
comum — disse Richard certa noite. — Os dois foram incapazes de me dar a
aprovação que eu buscava com tanta sofreguidão; mas de certa forma eles
sabiam que eu continuaria tentando até conseguir aquela aprovação, mesmo que
tivesse de abandonar tudo na vida.
Nicole contou a Richard pela primeira vez todo o drama de seu caso de
quarenta e oito horas com o príncipe de Gales, logo depois de ela ter ganho a
medalha de ouro nas Olimpíadas. Contou até mesmo que tinha tido vontade de se
casar com Henry, e que ficara completamente arrasada ao perceber que o
príncipe não a incluíra como candidata ao trono da Inglaterra basicamente por
causa da cor de sua pele. Richard ficou extremamente interessado e até mesmo
fascinado com aquela história, e não demonstrou em nenhum instante estar se
sentindo ameaçado ou enciumado.
Ele está mais maduro, pensou Nicole várias noites depois, enquanto seu
marido terminava sua tarefa de fazer os filhotes dormirem.
— Querido — disse ela quando Richard chegou no quarto da toca —,
quero contar uma coisa... que esperei para contar na hora certa...
— Oh, oh — disse Richard fingindo fechar a cara. — Está parecendo um
assunto sério... Espero que não leve muito tempo, pois tenho uns planos para
nós hoje à noite.
Atravessou o quarto e começou a beijar Nicole.
— Por favor, Richard, agora não... — disse ela, afastando-o com
delicadeza. — Isso é muito importante para mim.
Richard deu uns passos atrás.
— Quando eu achei que ia ser executada — disse Nicole devagar —,
percebi que todos os meus assuntos pessoais estavam em ordem, menos dois. Eu
ainda tinha uma coisa para contar a você e a Katie. Cheguei a perguntar ao
policial que me explicou o procedimento da execução se ele podia me arranjar
papel e caneta para eu escrever as duas últimas cartas da minha vida.
Nicole fez uma pausa, como que procurando as palavras certas.
— Durante aqueles dias terríveis, eu não conseguia me lembrar, Richard,
se dissera explicitamente a você como tinha sido feliz por vivermos como marido e
mulher... E eu também não queria morrer sem...
Nicole parou pela segunda vez, olhou um instante em volta do quarto e
depois olhou diretamente nos olhos de Richard.
— Eu queria dizer mais uma última coisa naquela minha última carta.
Naquela hora, eu achei que isso era preciso para completar a minha vida, para
poder partir deste mundo sem deixar coisas para trás... Richard, eu queria me
desculpar pela minha insensibilidade no passado, quando você e Michael e eu...
eu cometi um erro quando fui para a cama com Michael porque tive medo de
que...
Nicole respirou fundo e continuou:
— Eu devia ter tido mais fé. Não que, mesmo por um minuto, eu pensasse
que Patrick ou Benjy podiam não ter nascido, mas posso perceber agora que me
rendi cedo demais à solidão. Eu gostaria...
Richard pôs o dedo nos lábios dela.
— Não precisa se desculpar, Nicole — disse suavemente. — Eu sei que
você me amou direito.

Eles instalaram um ritmo fácil em sua vida simples. De manhã andavam


por Nova York, em geral de braço dado, explorando novamente cada canto da ilha
que tinham, em anos idos, considerado sua casa. Como estava quase às escuras,
a cidade parecia diferente. Só as lanternas deles iluminavam os enigmáticos
arranha-céus cujos detalhes estavam indelevelmente impressos em suas
memórias.
Em geral, caminhavam ao longo dos muros da cidade, olhando as águas
do mar Cilíndrico. Certa manhã passaram várias horas de pé num lugar, o
mesmo lugar onde tinham entregue suas vidas às três aves, muitos anos antes.
Ambos relembraram-se do medo e da excitação que sentiram quando as grandes
criaturas-pássaro os elevaram do chão para carregá-los através do mar.
Todo dia depois do almoço Nicole, que sempre precisava de mais sono que
seu marido, tirava um cochilo. Richard usava o teclado para pedir mais comida
ou suprimentos aos ramaianos, ou levava os filhotes de aves para fazer um pouco
de exercício, ou então trabalhava em um dos seus inúmeros projetos espalhados
pela toca. A noite, depois do jantar, deitavam-se lado a lado e conversavam
durante horas antes de fazer amor ou simplesmente cair no sono. Conversavam
sobre tudo, inclusive sobre Deus, a Águia, os ramaianos, a política do Novo Éden,
livros de todos os tipos, e principalmente seus filhos.
Embora falassem com entusiasmo sobre Ellie, Patrick, Benjy e até mesmo
Simone, a quem não viam havia anos, era muito difícil para Richard falar sobre
Katie. Ele se arrependia de na infância não ter sido mais severo com sua filha
favorita, e achava que o comportamento irresponsável dela em adulta era fruto de
sua permissividade. Nicole tentava consolar o marido, lembrando-lhe que as
circunstâncias que viveram em Rama eram inusitadas e que, afinal de contas,
nada na formação dele o preparara para uma disciplina adequada, necessária a
um pai.
Uma tarde, quando Nicole acordou de seu sono, ouviu Richard falando
consigo mesmo pelo corredor. Curiosa, levantou-se em silêncio e foi até o quarto
que tinha sido de Michael O'Toole. Ficou de pé na porta e viu Richard dando os
toques finais em um grande protótipo que ocupava quase todo o quarto.
— Voilà — disse ele, virando-se para ver se era Nicole quem vinha
arrastando os pés. — Não vou ganhar nenhum prêmio de estética — disse, com
uma careta, encaminhando-se para o protótipo —, mas é uma representação
razoável da nossa parte do universo, e certamente me deu muito o que pensar.
Uma forma chata retangular cobria a maior parte do chão. Varas finas
verticais de diversas alturas tinham sido inseridas em vinte pontos em volta da
plataforma. Na extremidade de cada vara havia uma esfera colorida
representando uma estrela.
A vara vertical do centro do protótipo, que tinha uma esfera amarela presa
na ponta, elevava-se a um metro e meio da plataforma.
— Isso, é claro — disse Richard para Nicole —, é nosso Sol... E nós
estamos aqui, ou melhor, Rama é aqui... neste quadrante, mais ou menos a um
quarto do caminho entre o Sol e nossa estrela semelhante mais próxima, Tau
Ceti... Sírius, onde nós ficamos quando estávamos em Nodo, está ali...
Nicole andou em volta do protótipo que representava a vizinhança estelar
do Sol.
— Há vinte sistemas estelares dentro de doze anos e meio anos-luz da
nossa casa — explicou Richard —, incluindo seis sistemas binários e um grupo
triplo, nossos vizinhos mais próximos, Centauris. Repare que as três Centauris
são as únicas estrelas dentro da esfera de cinco anos-luz.
Richard apontou para as três bolas separadas representando as
Centauris, cada uma com um tamanho e uma cor. O trio, preso entre si por finos
arames, estava pousado no alto da mesma vara vertical, dentro de uma esfera
aberta de arame localizada no centro do Sol e marcada com um grande número 5.
— Nos meus dias de solidão aqui — continuou Richard —, eu ficava
imaginando por que Rama segue nessa direção. Será que nós temos um destino
específico? Parece que sim, pois nossa rota não variou desde nossa aceleração
inicial... E se estivermos indo para Tau Ceti, o que encontraremos lá? Outro
complexo como Nodo? Ou será que mesmo Nodo se moveu nesse meio-tempo?...
Richard parou de falar e olhou para Nicole, na ponta do protótipo e
esticando os braços na direção de duas estrelas vermelhas na extremidade de
uma vara de três metros.
— Eu imagino que você tenha variado o comprimento dessas varas para
demonstrar a completa relação tridimensional de todas essas estrelas, não é? —
perguntou ela.
— É... Aliás, aquele grupo binário onde está a sua mão chama-se Struve
2398 — disse Richard com a voz de quem faz uma catalogação. — Elas têm uma
declinação muito alta e estão a pouco mais de dez anos-luz de distância do Sol.
Ao ver a careta que Nicole fazia, Richard riu de si mesmo e, atravessando
o quarto, pegou a mão dela.
— Venha aqui comigo para lhe mostrar uma coisa muito interessante. Os
dois foram até a outra ponta do protótipo e ficaram de frente para o
Sol, entre as estrelas Sírius e Tau Ceti.
— Não seria fantástico se nosso Nodo tivesse realmente se movido —
observou Richard com entusiasmo — e nós o fôssemos ver outra vez aqui, do lado
oposto ao nosso sistema solar?
Nicole riu.
— É claro — disse —, mas não temos qualquer prova...
— Mas temos cérebros e imaginação — interrompeu Richard. — E a Águia
nos disse que o Nodo inteiro era capaz de mover-se. Parece-me que... — Richard
parou a frase no meio e mudou ligeiramente de assunto. — Você nunca se
perguntou aonde a nossa espaçonave foi, depois que partimos de Nodo, durante
todos aqueles anos em que dormimos? Imagine, por exemplo, que as aves e os
sésseis foram apanhados em algum lugar, próximo às binárias de Procio, ou
talvez aqui, em torno da Épsilon Eridani, por onde podemos perfeitamente ter
passado em nossa trajetória. Sabemos que há planetas em volta da Eridani. A
uma significativa fração da velocidade da luz, Rama poderia facilmente ter
contornado o Sol...
— Espere aí, Richard — disse Nicole. — Você está muito adiante de mim
nesse assunto. Por que não começamos do início... — disse, sentando-se na
plataforma com as pernas cruzadas, no interior do protótipo, próximo a uma bola
vermelha elevada a uns poucos centímetros por uma vara bem curta. — Se
entendi sua hipótese, nossa viagem atual vai terminar em Tau Ceti?
Richard fez que sim.
— A trajetória é perfeita demais para ser uma coincidência. Chegaremos
em Tau Ceti dentro de uns quinze anos, e então nossa experiência deverá estar
concluída.
Nicole deu um suspiro.
— Eu já estou velha. E até lá, se ainda estiver viva, estarei tão enrugada
como uma passa... Mas por mera curiosidade, o que você acha que irá nos
acontecer quando nossa experiência for concluída, como você falou?
— É ainda que entra a imaginação... Creio que seremos retirados de
Rama, mas o que nos acontecerá depois é imprevisível... Talvez nosso destino vá
depender, de certa forma, do que foi observado durante todo esse tempo...
— Então você concorda comigo que a Águia e seus companheiros de Nodo
vêm nos observando?
— Concordo plenamente. Eles fizeram um imenso investimento nesse
projeto... Tenho certeza de que estão monitorando tudo o que acontece aqui em
Rama... Mas o que me surpreende é eles terem nos deixado completamente livres
para agir, não terem interferido jamais nos nossos assuntos, mas esse deve ser o
método deles.
Nicole ficou em silêncio por um instante, brincando distraidamente com a
bola vermelha ao seu lado (Richard dissera que representava a estrela Épsilon
Indi).
— Pensando bem — disse ela sombriamente —, temo o que qualquer
extraterrestre razoável concluiria sobre nós, com base em nosso comportamento
no Novo Éden.
Richard deu de ombros.
— Nós não agimos pior em Rama do que agimos durante séculos na
Terra... Além do mais, não posso aceitar que algum alienígena realmente
avançado faça julgamentos tão subjetivos. Se esse processo de observar viajantes
espaciais existe há dezenas de milhares de anos, como sugeriu a Águia, então os
ramaianos devem ter desenvolvido medidas quantitativas para avaliar todos os
aspectos das civilizações que encontraram... É quase certo que estejam mais
interessados na nossa natureza exata e no que isso significa num sentido mais
amplo do que no fato de sermos bons ou maus.
— Acho que você tem razão — disse Nicole. — Mas é deprimente que nós,
como espécie, nos comportemos de forma tão bárbara, mesmo quando temos
certeza de estarmos sendo observados. — Fez uma pausa e ficou pensando. —
Então, na sua opinião, nosso longo intercâmbio com os ramaianos, desde aquela
primeira nave espacial há mais de cem anos, está chegando ao fim?
— Creio que sim. Em algum lugar no futuro, possivelmente quando
chegarmos em Tau Ceti, nossa parte da experiência será concluída. Meu palpite é
que depois que todos os dados sobre as criaturas que vivem atualmente em Rama
tenham entrado no Grande Banco Galático de Dados, Rama será evacuada. Pode
ser que logo depois disso essa grande nave espacial cilíndrica apareça em outro
sistema planetário onde viva um viajante espacial diferente, e assim tenha início
um outro ciclo.
— E isso nos faz voltar à minha pergunta anterior, que você não chegou a
responder... O que nos acontecerá então?
— Talvez nós, ou nossa descendência, sejamos mandados de volta para a
Terra em uma lenta viagem... Ou talvez eles pensem em nos sacrificar depois que
todos os dados forem coletados.
— Nenhuma dessas possibilidades é interessante — disse Nicole. — E,
embora eu concorde com você que estamos indo na direção de Tau Ceti, o resto
das suas hipóteses me parece uma simples conjectura.
Richard fez uma careta.
— Aprendi muito com você, Nicole... Essas minhas hipóteses são
intuitivas. Sinto que estou certo, baseado em tudo o que aprendi sobre os
ramaianos.
— Mas não seria mais coerente imaginar que os ramaianos simplesmente
têm estações espalhadas por toda a galáxia, e que as duas mais próximas de nós
estão em Sírius e Tau Ceti?
— É, mas sinto que isso não é provável. Nodo foi uma espantosa criação
de engenharia. Se existissem outros semelhantes a cada vinte anos-luz na
galáxia, haveria bilhões deles... E lembre-se que a Águia disse bem claramente
que Nodo podia se mover.
Nicole reconheceu para si mesma que não era provável que uma criação
tão fantástica como Nodo tivesse sido duplicada bilhões de vezes em algum
grande processo cósmico de montagem. A hipótese de Richard fazia mais sentido.
Mas, ela pensou depressa, era muito triste que nossa entrada no Banco Galático
de Dados contivesse tantas informações negativas.
— Então onde as aves, os sésseis e nossas velhas amigas, as octoaranhas,
se encaixam nesse cenário? — perguntou Nicole um pouco depois. — São apenas
parte da mesma experiência, como nós?... E se for assim, você está sugerindo que
há também um colônia de octos a bordo, só que ainda não topamos com ela?
Richard fez que sim.
— Essa conclusão é inevitável. Se a fase final de cada experiência for
observar uma amostra representativa dos viajantes espaciais sob condições
controladas, faz sentido as octos estarem aqui também... — disse ele, dando um
sorriso nervoso. — Talvez até alguns dos nossos amigos de Rama II estejam na
nave espacial conosco neste exato momento.
— Como você tem idéias incríveis antes de dormir — disse Nicole sorrindo.
— Se você estiver certo, nós dois temos mais quinze anos para passar em uma
nave espacial habitada não só por seres humanos que querem nos capturar e
matar, mas também por aracnídeos possivelmente inteligentes, cuja natureza não
compreendemos.
— Lembre-se — disse Richard dando uma risadinha — que eu posso estar
errado.
Nicole levantou-se e caminhou para a porta.
— Para onde você está indo? — perguntou Richard.
— Para a cama — respondeu ela rindo. — Acho que vou ter uma dor de
cabeça. Só consigo contemplar o infinito durante um tempo finito.

6
Na manhã seguinte, quando Nicole abriu os olhos, Richard estava a seu
lado segurando duas mochilas.
— Vamos explorar e procurar octoaranhas — disse ele animado — por trás
da tela preta... Deixei comida e água para Tammy e Timmy para dois dias, e
programei Joana e Eleonor para entrarem em contato conosco em caso de
emergência.
Nicole ficou observando o marido enquanto tomava o café da manhã. Os
olhos dele estavam cheios de energia e de vida. Este é o Richard de quem me
lembro melhor, pensou consigo mesma. Aventura sempre foi a coisa mais
importante para ele.
— Voltei aqui duas vezes — disse Richard, assim que se enfiaram por
baixo da tela levantada. — Mas nunca cheguei ao final dessa primeira passagem.
A tela se fechou por trás deles, deixando-os no escuro.
— Não há perigo de ficarmos presos aqui desse lado, há? — perguntou
Nicole, enquanto eles checavam suas lanternas.
— De jeito nenhum. A tela só se levanta ou abaixa a cada minuto mais ou
menos. Mas se alguém ou alguma coisa ainda estiver nessa área daqui a um
minuto, a tela se levanta automaticamente.
— Quero avisar antes de começarmos a andar — continuou ele um pouco
depois. — Essa passagem é muito longa. Já segui um quilômetro por aqui antes,
mas não encontrei nada. Nem mesmo um desvio. Não há luz de espécie alguma.
Portanto, a primeira parte vai ser muito monótona, mas tem de nos levar a
alguma coisa; os biotas que trazem nossas provisões devem passar por esse
caminho.
Nicole pegou a mão dele:
— Lembre-se, Richard, que não somos mais tão moços como antes.
Richard iluminou com a lanterna o cabelo de Nicole, que estava completamente
grisalho, e depois sua própria barba grisalha.
— Nós somos um casal de velhos medrosos, não é? — perguntou,
contente.
— Fale por você mesmo — disse Nicole, apertando a mão dele.
A passagem tinha muito mais de um quilômetro. Richard e Nicole iam
andando e conversando sobre suas assombrosas experiências no segundo
habitat.
— Fiquei absolutamente apavorado quando a porta do elevador abriu e eu
vi os myrmigatos pela primeira vez — disse Richard.
Ele descreveu para Nicole sua estada com as aves, e começou a contar
sobre a hora em que desceu até o fundo do cilindro.
— Fiquei literalmente congelado de medo. Os myrmigatos estavam a três
ou quatro metros de distância, olhando fixamente para mim. O líquido cremoso
de seus enormes olhos inferiores ovais movia-se de um lado para o outro, e os
dois olhos superiores nos pedículos giravam em redor para me verem de outra
perspectiva. Nunca me esquecerei daquele momento.
— Agora vou ver se entendi bem a biologia — disse Nicole um instante
depois, quando eles se aproximaram do que parecia ser uns galhos no corredor
subterrâneo. — Os myrmigatos se desenvolvem nos melões-maná, vivem pouco,
mas sua vida é muito ativa, e morrem dentro de um séssil, onde todas as suas
experiências de vida, como diz você em teoria, são acrescentadas à base da rede
neural do conhecimento. O ciclo vital se completa quando os melões-maná
crescem no interior dos sésseis. Essas criaturas são então colhidas na época
apropriada pela população myrmigática ativa.
Richard fez que sim.
— Talvez não seja exatamente assim, mas deve ser quase isso.
— Então o que nos falta são apenas as condições necessárias para que os
melões-maná comecem seu processo de germinação?
— Eu gostaria que você me ajudasse nesse quebra-cabeça — disse
Richard. — Afinal, doutora, você é a única de nós que tem treinamento formal em
biologia.
O corredor abriu-se em um Y, cada uma das extremidades formando um
ângulo de quarenta e cinco graus com a passagem longa e reta que saía da toca
deles.
— Qual é o caminho, Cosmonauta dos Jardins? — perguntou Richard com
um sorriso, iluminando com a lanterna as duas direções. Os dois túneis não
apresentavam nenhuma diferença.
— Vamos primeiro à esquerda — disse Nicole, um instante depois de
Richard desenhar um mapa em seu computador portátil. O caminho da esquerda
começou a mudar umas centenas de metros depois. O corredor se alargou
formando uma rampa, que descia em espiral em torno de um poste muito grosso,
até pelo menos uns cem metros de profundidade na concha de Rama. A medida
que eles desciam, iam vendo as luzes lá embaixo. No fundo encontraram um
canal longo e amplo com margens planas e largas. A esquerda viram um par de
biotas-caranguejos fugindo deles no lado oposto do canal, e também uma ponte a
distância, para além dos biotas. A direita, uma barcaça passava pelo canal,
levando uma carga de objetos desconhecidos e variados, cinzentos, pretos e
brancos, para algum destino naquele mundo subterrâneo.
Richard e Nicole observaram a cena em volta e depois se entreolharam.
— Chegamos ao mundo encantado de Alice — disse Richard com uma
risadinha. — Por que não comemos alguma coisa enquanto eu estudo toda essa
área no meu fiel computador?
Enquanto os dois comiam, um biota-centopéia aproximou-se do lado do
canal onde eles estavam, parou um instante como que examinando-os e afastou-
se, subindo a rampa que Nicole e Richard tinham acabado de descer.
— Você viu algum biota-caranguejo ou centopéia no segundo habitat? —
perguntou Nicole.
— Não — respondeu Richard.
— E nós os tiramos propositalmente dos planos para o Novo Éden, não
foi? Richard riu.
— Foi mesmo. Você convenceu a Águia e a mim que os seres humanos
comuns não saberiam lidar bem com eles.
— Então a presença deles aqui significa que há um terceiro habitat? —
perguntou Nicole.
— Possivelmente. Afinal de contas, não temos idéia do que há agora no
Hemicilindro Sul. Não vamos lá desde que Rama foi remodelada. Mas pode haver
uma outra explicação. Talvez caranguejos, centopéias e outros biotas ramaianos
simplesmente façam parte do território, se é que você me compreende. Talvez
estejam funcionando em todas as partes de Rama, em todas as viagens, a menos
que tenham sido especificamente proscritos por um determinado viajante
espacial.
Quando Richard e Nicole terminaram a refeição, uma outra barcaça
apareceu à esquerda. Como a anterior, estava carregada de objetos brancos,
pretos e cinzentos.
— Esses objetos são diferentes dos primeiros — observou Nicole. —
Aquelas pilhas me fazem lembrar as peças sobressalentes dos biotas-centopéias
que foram guardadas na minha cova.
— Talvez você esteja certa — falou Richard ficando de pé. — Vamos seguir
o canal para ver onde ele vai dar. — Olhou em volta, primeiro para o teto
arqueado de dez metros e depois para a rampa que ficara para trás.
— A não ser que eu tenha cometido um erro no computador ou que o mar
Cilíndrico seja muito mais fundo do que eu pensava, esse canal corre do sul para
o norte, por baixo do próprio mar.
— Então, se seguirmos a barcaça, voltaremos para o Hemicilindro Norte?
— perguntou Nicole.
— Creio que sim — respondeu Richard.
Os dois seguiram o canal durante mais de duas horas. Exceto três biotas-
aranhas que se moviam rapidamente juntas na margem oposta, Richard e Nicole
não viram nada de novo. Duas outras barcaças passaram com o mesmo tipo de
carga, e eles de vez em quando encontravam biotas-centopéias e biotas-
caranguejos, com os quais não estabeleceram qualquer interação. Então
caminharam ao longo de mais uma ponte sobre o canal.
Richard e Nicole descansaram duas vezes, para beber água ou fazer um
lanche enquanto conversavam. Na segunda parada, Nicole sugeriu que seria
melhor voltarem. Richard olhou e relógio e falou:
— Vamos ficar mais uma hora. Se meu senso de direção estiver certo, já
devemos estar debaixo do Hemicilindro Norte. Mais cedo ou mais tarde, vamos
descobrir para onde aquelas barcaças estão carregando todas aquelas coisas.
Richard estava certo. Depois de caminharem mais um quilômetro ao longo
do canal, viram, a distância, uma grande estrutura pentagonal. Ao chegarem
mais perto, notaram que o canal seguia diretamente para o centro do pentágono.
O prédio em si tinha seis metros de altura, com um telhado chato, sem janelas, e
o lado de fora pintado de um branco cremoso. Cada uma das suas cinco seções
ou alas estendia-se uns vinte a trinta metros a partir do centro da estrutura.
A calçada ao longo do canal terminava em uma escada que subia para
uma pista que circundava todo o pentágono. Do outro lado do canal havia uma
configuração semelhante; um biota-centopéia estava usando a pista como ponte
para mudar de um lado do canal para o outro.
— Onde você acha que ele está indo? — perguntou Nicole quando os dois
chegaram para o lado a fim de dar passagem ao biota.
— Talvez para Nova York. Nas minhas longas caminhadas antes das aves
saírem da casca, eu às vezes via uma delas a distância.
Os dois pararam em frente à única porta que dava para o pentágono, que
ficava do lado do canal.
— Nós vamos entrar?
Richard fez que sim e empurrou a portinha. Nicole abaixou-se e entrou no
prédio. Os dois se viram em uma sala grande e bem iluminada, com um total
aproximado de mil metros cúbicos e um teto de cinco metros de altura. O
passadiço ficava uns dois ou três metros acima do chão, de modo que Richard e
Nicole podiam observar a atividade que ocorria lá embaixo. Operários biotas
robôs que eles nunca haviam visto antes, programados para uma tarefa
especializada, descarregavam as duas barcaças na sala e separavam a carga de
acordo com um plano predefinido. Muitas peças separadas das pilhas eram
colocadas em caminhões-biotas, que desapareciam por uma das portas do fundo
assim que ficavam lotados.
Depois de observarem tudo por um instante, Richard e Nicole
continuaram andando pelo passadiço até onde ele se cruzava com outro caminho,
logo acima do centro da sala. Richard parou e fez umas anotações no
computador.
— Espero que a planta do prédio seja simples como parece — disse a
Nicole. — Seguindo à direita ou à esquerda, chegaremos em outra ala do
pentágono.
Nicole resolveu ir pela direita, porque os caminhões-biotas que ela achava
que carregavam peças para o biota-centopéia tinham seguido naquela direção.
Suas observações estavam corretas. Logo depois que ela e Richard entraram na
segunda sala, exatamente do mesmo tamanho da primeira, perceberam que os
biotas-centopéias e caranguejos eram fabricados no chão abaixo deles. Os dois
pararam durante uns minutos para observar o processo.
— Absolutamente fascinante — disse Richard, terminando o diagrama da
fábrica de biotas no computador. — Você está pronta para continuar?
Quando Richard se virou para Nicole, ela viu que os olhos dele estavam
arregalados.
— Não olhe agora — disse ele logo depois —, mas temos companhia.
Nicole girou nos calcanhares e deu uma olhada em volta. Do outro lado da sala, a
quarenta metros de distância, um par de octoaranhas aproximava-se lentamente
pelo passadiço. Richard e Nicole não tinham ouvido o barulho característico
delas, semelhante a escovas metálicas sendo arrastadas, devido ao barulho da
fábrica de biotas.
As octoaranhas pararam quando notaram que os humanos as tinham
visto. O coração de Nicole começou a bater forte quando ela se lembrou do seu
último encontro com uma octoaranha, quando teve de tirar Katie da toca delas
em Rama II. Naquele dia, como agora, seu primeiro impulso tinha sido fugir.
Ela agarrou a mão de Richard e os dois ficaram olhando para os
alienígenas.
— Vamos embora — disse Nicole.
— Estou com tanto medo quanto você — disse Richard —, mas vamos
ficar mais um pouco. Elas não estão se mexendo. Quero ver o que vão fazer.
Richard concentrou-se na octoaranha de chumbo e tentou gravar na
cabeça a forma dela. Seu corpo principal, quase esférico, era cinza-grafite, com
cerca de um metro de diâmetro, tendo como único detalhe um corte de alto a
baixo, de vinte a vinte e cinco centímetros, onde o corpo se abria em oito
tentáculos pretos e dourados, com dois metros de comprimento cada, espalhados
pelo chão. Dentro do corte vertical viam-se muitos botões e dobras desconhecidos
(certamente sensores, pensou Richard), sendo o maior deles uma grande lente
retangular contendo uma espécie de líquido.
Quando os dois seres se olharam pela sala, uma larga faixa de um roxo
brilhante clareou a cabeça da octoaranha de chumbo. Essa faixa de luz, saída de
uma das pontas paralelas do corte vertical, moveu-se em torno da cabeça da
octoaranha e desapareceu no lado oposto do corte. Uns segundos depois
apareceu uma faixa colorida formada de vermelho, verde e umas faixas sem cor,
que seguiu o mesmo trajeto em volta da cabeça da octoaranha.
— Foi exatamente o que aconteceu quando aquela octoaranha confrontou-
se comigo e com Katie — disse Nicole nervosa. — Ela disse que estava falando
conosco.
— Mas não temos como saber o que ela está dizendo — retrucou Richard.
— O fato de ela poder falar não quer dizer que não vai nos agredir...
Enquanto a ocotoaranha de chumbo continuava com sua conversa
colorida, Richard lembrou-se de repente de um episódio ocorrido com ele anos
antes, durante sua odisséia em Rama II. Naquela dia, ele estava deitado numa
mesa, rodeado de cinco a seis octos com as luzes coloridas por cima da cabeça.
Ele se recordava bem do pânico que sentira ao ver umas criaturazinhas,
aparentemente sob controle das octoaranhas, rastejarem pelo seu nariz.
A cabeça de Richard começou a latejar.
— Elas não foram muito gentis comigo — disse ele para Nicole. —
Quando... Naquele instante a porta do outro lado da sala se abriu e mais quatro
octoaranhas entraram.
— Já chega — disse Richard, sentindo a tensão de Nicole. — É bom irmos
embora.
Os dois caminharam depressa pelo centro da sala, onde o passadiço, como
na sala anterior, cruzava Com o caminho que dava do lado de fora do prédio.
Viraram na direção da saída, mas, depois de darem alguns passos, pararam.
Mais quatro octoaranhas estavam entrando pela porta da saída também.
Não havia muito o que fazer. Os dois giraram nos calcanhares, voltaram
para o passadiço interno principal e correram na direção da terceira ala do
pentágono sem olhar para trás, até entrarem na terceira ala. Essa parte do prédio
estava absolutamente às escuras. Richard parou um instante para examinar a
área com sua lanterna. Viram no chão abaixo deles um equipamento de aspecto
sofisticado, mas não notaram nenhuma atividade.
— Será que devemos tentar sair de novo? — perguntou Richard
guardando sua lanterna no bolso.
Ao ver Nicole fazendo que sim, pegou a mão dela e os dois correram para o
cruzamento, onde viraram à direita e seguiram na direção da saída do pentágono.
Alguns instantes depois, encontraram-se em um corredor escuro, um
território absolutamente desconhecido. Ambos estavam muito cansados, e Nicole
sentia dificuldade para respirar.
— Richard, eu preciso descansar. Não posso continuar correndo assim.
Richard e Nicole andaram uns cinqüenta metros pelo corredor escuro e vazio até
que viram uma porta à esquerda. Richard abriu a porta com cuidado, olhou para
dentro e examinou a sala com a lanterna.
— Deve ser uma espécie de depósito — disse. — Mas no momento está
vazio.
Richard entrou na sala, olhou pela porta dos fundos e viu outra sala
vazia. Voltou para onde Nicole estava e os dois se sentaram de costas para a
parede.
— Quando voltarmos para nossa toca, querido — disse Nicole um pouco
depois —, quero que você me ajude a checar meu coração. Tenho sentido umas
dores esquisitas ultimamente.
— Está se sentindo bem agora? — perguntou Richard com voz
preocupada.
— Estou — disse ela, sorrindo no escuro e beijando o marido. — Tão bem
quanto se pode esperar depois de fugir de um bando de octoaranhas.

7
Nicole dormiu encostada na parede, com a cabeça reclinada sobre o ombro
de Richard. Teve um pesadelo atrás do outro, acordando assustada e dormindo
de novo. No último pesadelo, ela estava numa ilha no meio do mar com os filhos,
quando foram cobertos por uma imensa onda, que espalhou as crianças por toda
a ilha. Nicole ficou em pânico, sem saber como conseguiria salvar seus filhos, e
acordou com um tremor pelo corpo. Aconchegou-se ao marido no escuro e falou:
— Richard, acorde. Há alguma coisa errada aqui.
De início, Richard não se mexeu, mas, quando Nicole tentou acordá-lo
pela segunda vez, abriu os olhos.
— O que aconteceu? — perguntou finalmente.
— Tenho a sensação de que não estamos seguros aqui — disse Nicole. —
É melhor irmos embora.
Richard acendeu sua lanterna e examinou a sala.
— Não há ninguém aqui. Pelo menos eu não estou ouvindo nada... Não é
melhor descansarmos mais um pouco?
Os dois permaneceram sentados em silêncio, mas o medo de Nicole foi
aumentando.
— Tenho um forte pressentimento de que estamos em perigo. Sei que você
não acredita nessas coisas, mas minhas premonições quase sempre deram certo
ao longo da minha vida.
— Tudo bem — concordou Richard. Levantou-se, atravessou a sala, abriu
a porta dos fundos que dava para uma peça semelhante e deu uma olhada lá
dentro. — Aqui também não há nada. — Voltou para onde estava e abriu a porta
do corredor pelo qual tinham saído do pentágono. No momento em que a porta foi
aberta, os dois ouviram o inconfundível barulho de arrastar de escovas.
Nicole deu um pulo. Richard fechou a porta sem fazer ruído e correu para
onde ela estava.
— Vamos — falou num sussurro. — Temos de encontrar um meio de sair
daqui.
Passaram para a próxima sala, depois para outra e mais outra, todas
escuras e vazias. À medida que iam correndo naquele território desconhecido
foram perdendo o sentido de direção. Depois, chegaram a uma porta grande e
dupla nos fundos de uma das salas idênticas. Richard disse para Nicole ficar
atrás, enquanto ele empurrava com cuidado o lado esquerdo da porta.
— Meu Deus! — exclamou ele quando olhou dentro da sala. — Que diabo
será isso?
Nicole ficou ao seu lado e seguiu a luz da lanterna que iluminava os
objetos bizarros amontoados na sala. O que estava mais perto da porta parecia
uma ameba grande sobre uma prancha de skate; perto dele havia uma bola
gigantesca de fio torcido com duas antenas saindo do meio. A sala estava em
silêncio, e nada se movia. Richard levantou a lanterna e moveu-a rapidamente em
volta da sala entulhada.
— Venha cá — disse Nicole, vendo uma coisa que lhe pareceu familiar. —
Olhe ali, um pouco à esquerda da outra porta.
Alguns segundos depois a lanterna iluminou quatro figuras humanas,
com capacetes e roupas espaciais, sentadas contra a parede do lado oposto.
— São os biotas-humanos — disse Nicole agitada. — Aqueles que vimos
antes de encontrar Michael O'Toole no fundo do elevador de cadeira.
— Norton e companhia? — perguntou Richard incrédulo, sentindo um
arrepio na espinha.
— Aposto que sim — respondeu Nicole.
Eles entraram na sala na ponta dos pés e passaram pelos objetos até
chegarem às figuras humanas e se ajoelharem perto delas para ver melhor.
— Esse deve ser um biota que não presta mais — disse Nicole, depois de
verificar que o rosto por trás do capacete transparente era uma cópia do
comandante Norton, que chefiou a primeira expedição Rama.
Richard levantou-se e sacudiu a cabeça.
— Absolutamente inacreditável. O que eles estão fazendo aqui? — falou,
examinando a sala com sua lanterna.
Um instante depois, Nicole deu um grito. A menos de quatro metros de
distância, vira uma octoaranha se movendo, ou pelo menos achou que estava se
movendo naquela luz mortiça. Mas, ao verem que era apenas um biota-
octoaranha, começaram a rir.
— Richard Wakefield — disse Nicole quando conseguiu conter seu ataque
de riso —, posso voltar para casa agora? Para mim já chega.
— Acho que sim — respondeu Richard com um sorriso. — Assim que
encontrarmos a saída.

À medida que os dois iam penetrando cada vez mais no labirinto de salas
e túneis em torno do pentágono, Nicole ia se convencendo de que nunca sairiam
dali. Depois de algum tempo, Richard diminuiu o passo para digitar informações
no seu computador; com isso, evitou pelo menos que andassem em círculos, mas
não conseguiu ligar o mapa que ia se formando a nenhum referencial que eles
tinham visto antes de fugirem das octoaranhas.
Quando os dois começavam a se desesperar, deram de encontro com um
pequeno caminhão-biota carregando uma estranha coleção de pequenos objetos
por um corredor estreito. Richard relaxou um pouco.
— Essas coisas parecem ter sido fabricadas segundo especificação de
alguém — disse para Nicole. — Como aqueles objetos que nos foram entregues no
Salão Branco. Se caminharmos na direção de onde veio o biota, talvez possamos
descobrir onde esses objetos são fabricados. De lá deve ser fácil encontrar a
passagem para a nossa toca.
Era uma grande caminhada, e depois de algumas horas Nicole e Richard
estavam absolutamente exaustos. De repente o corredor se alargou, e surgiu à
frente deles uma enorme fábrica com teto muito alto. No meio da fábrica havia
doze cilindros grossos parecendo antiquadas caldeiras da Terra, com quatro a
cinco metros de altura e um metro e meio de largura no centro, distribuídas em
quatro fileiras de três.
Esteiras rolantes, ou pelo menos o equivalente às de Rama, entravam e
saíam das caldeiras, duas das quais estavam em funcionamento na hora em que
Nicole e Richard chegaram. Richard ficou fascinado.
— Olhe ali — disse, apontando para o chão de um grande depósito, com
pilhas de objetos de todos os tamanhos e aparências. — Aquela deve ser a
matéria-prima. Um pedido enviado para a central do computador, que
provavelmente está naquele compartimento por trás das caldeiras, é processado e
passado para uma dessas máquinas. Os biotas saem, juntam os componentes
adequados e os colocam nas esteiras. Dentro das caldeiras, essa matéria-prima é
substancialmente modificada, e o que sai de lá é o objeto programado pela
espécie inteligente que estiver usando o teclado ou seu equivalente para se
comunicar com os ramaianos.
Richard chegou perto da caldeira ativa mais próxima.
— Mas a verdadeira pergunta é que tipo de processamento ocorre dentro
dessas caldeiras. Um processamento químico? Ou talvez nuclear, com
transmutação dos elementos? Ou será que os ramaianos têm alguma tecnologia
de fabricação completamente além do nosso entendimento?
Bateu várias vezes na parede externa da caldeira.
— As paredes são muito grossas — disse. Depois, inclinou-se no ponto
onde a esteira entrava na caldeira e enfiou a mão dentro.
— Richard — gritou Nicole —, você não devia fazer isso.
Richard olhou para Nicole e deu de ombros. Quando ele se inclinou de
novo para examinar a interface caldeira, um biota bizarro, parecendo uma
câmera de filmar com pernas, veio correndo dos fundos do salão. O biota enfiou-
se rapidamente entre Richard e a esteira em atividade e aumentou de tamanho,
forçando Richard a afastar-se da máquina.
— Bela manobra — disse Richard entusiasmado, virando-se para Nicole.
— O sistema tem uma excelente proteção contra falhas.
— Richard, será que podemos continuar o que estávamos fazendo? Ou
você já se esqueceu de que não sabemos como voltar para a nossa toca?
— Só mais um instante — respondeu ele. — Quero ver o que vai sair dessa
caldeira em atividade perto de nós; Talvez vendo o produto, depois de ver a
matéria-prima, eu possa concluir que tipo de processo foi usado.
Nicole sacudiu a cabeça.
— Eu tinha me esquecido da sua mania de querer saber tudo. Você é o
único ser humano que conheço capaz de parar para estudar uma nova planta ou
animal mesmo estando perdido numa floresta.

Nicole encontrou outra passagem longa do lado oposto da imensa sala, e


uma hora depois finalmente convenceu Richard a sair da fascinante fábrica
alienígena. Não havia meio de saberem aonde essa passagem chegaria, mas era a
única chance que tinham. Continuaram andando, e cada vez que Nicole dizia
estar cansada ou desanimada, Richard a animava, exaltando tudo o que eles
haviam visto desde que haviam saído da toca.
— Este lugar é absolutamente fantástico, estupendo — disse ele a um
certo ponto, sem conseguir se conter. — Não consigo avaliar o que isso tudo quer
dizer... não só não estamos sozinhos no universo... como não estamos perto do
topo da pirâmide, em termos de capacidade...
Mesmo com todo o entusiasmo de Richard, os dois estavam à beira da
exaustão, quando finalmente viram uma bifurcação no corredor. Em função dos
ângulos, Richard teve certeza de que haviam voltado ao Y, que ficava a apenas
uns dois quilômetros da toca.
— Viva! — gritou, apressando o passo. — Olhe, estamos quase em casa —
avisou a Nicole, iluminando o caminho à frente deles.
Naquele instante, Nicole ouviu alguma coisa que a deixou apavorada.
— Richard, desligue a lanterna.
Ele deu meia-volta quase caindo e desligou a lanterna. Um instante depois
não havia mais dúvida. O ruído de arrastar de escovas estava cada vez mais alto.
— Vamos correr para lá — gritou Nicole, dando um salto para junto do
marido.
Richard chegou à encruzilhada menos de quinze segundos antes da
primeira das octoaranhas que vinham do canal. Enquanto fugia, Richard
iluminou o caminho atrás e viu pelo menos quatro tipos coloridos movendo-se na
escuridão. Richard e Nicole pegaram todos os móveis que encontraram no Salão
Branco e fizeram uma barreira na parte de baixo da tela preta. Ficaram ali
durante várias horas, com medo de que a qualquer instante a tela se levantasse e
sua toca fosse invadida pelas octoaranhas. Mas nada aconteceu. Joana e Eleonor
foram colocadas como sentinelas no Salão Branco e passaram a noite no quarto
com Tammy e Timmy.
— Por que será que as octoaranhas não nos seguiram? — perguntou
Richard no dia seguinte. — Elas devem saber que a tela se levanta
automaticamente. Se chegaram no final do corredor...
— Talvez não quisessem nos amedrontar mais — interrompeu Nicole
gentilmente.
Richard franziu as sobrancelhas e olhou para Nicole com ar intrigado.
— Ainda não temos prova de que as octoaranhas são hostis — continuou
Nicole —, embora elas tenham maltratado você quando o prenderam anos atrás...
Talvez também não quisessem fazer mal a Katie ou a mim, e podiam facilmente
ter feito. E elas acabaram entregando você para nós.
— Só que quando entregaram eu estava em coma profundo — retrucou
Richard. — E não servia mais para elas a não ser para testes... E o que dizer de
Takagishi? E dos ataques ao príncipe Hal e Falstaff?
— Os dois incidentes têm uma explicação plausível, que não envolve
hostilidade. Por isso a coisa é tão confusa. Imagine que Takagishi morreu de um
ataque cardíaco e que as octoaranhas tenham preservado e empalhado o corpo
dele para exibi-lo em uma aula a outras octoaranhas... Talvez nós fizéssemos a
mesma coisa...
Nicole fez uma pausa e continuou:
— E o ataque, como você diz, ao príncipe Hal e a Falstaff pode ter sido um
mal-entendido... E se os seus robozinhos estavam andando por um lugar
importante, talvez um ninho, ou uma igreja das octoaranhas... Seria natural que
elas defendessem seu território.
— Eu não entendo — disse Richard hesitante. — Aqui está você
defendendo as octoaranhas... Mas você correu delas ontem mais depressa do que
eu.
— Corri sim — falou Nicole com um ar contemplativo. — E admito que
estava aterrorizada. Meu instinto animal foi pensar em hostilidade e fugir, e agora
estou desapontada comigo mesma. Nós humanos deveríamos usar a cabeça para
superar reações instintivas... Especialmente você e eu. Depois de tudo o que
vimos em Rama e Nodo, deveríamos estar completamente imunes à xenofobia.
Richard sorriu e fez que sim.
— Então está sugerindo agora que talvez as octoaranhas estivessem
apenas tentando estabelecer algum tipo de contato pacífico?
— Talvez — respondeu Nicole. — Não sei o que elas querem. Mas o que eu
sei é que nunca vi as octoaranhas fazerem nada que fosse definitivamente hostil.
Richard ficou olhando para as paredes durante um instante e depois
esfregou a testa.
— Gostaria de me lembrar de mais detalhes daquela época em que estive
com elas. Ainda tenho dores de cabeça terríveis quando tento me lembrar
daqueles dias; só quando eu estava dentro do séssil é que minhas lembranças
das octoaranhas não eram seguidas de dor.
— Essa sua odisséia ocorreu há muito tempo — falou Nicole. — Talvez as
octoaranhas também sejam capazes de aprender e agora adotem uma atitude
diferente conosco.
Richard levantou-se.
— Tudo bem, você me convenceu. Da próxima vez em que virmos uma
octoaranha não vamos correr — disse rindo. — Pelo menos não imediatamente.

Passou-se um mês e Richard e Nicole não voltaram para trás da tela preta,
nem vieram a ter novos encontros com as octoaranhas. Passavam o dia cuidando
dos filhotes de aves (que estavam aprendendo a voar) e na companhia um do
outro. Durante suas conversas, falavam dos filhos e lembravam-se do passado.
— Acho que estamos velhos — disse Nicole um dia, quando ela e Richard
passeavam por uma das três praças centrais de Nova York.
— Como pode dizer isso? — perguntou Richard com uma risadinha. — Só
porque passamos a maior parte do tempo falando sobre o que aconteceu no
passado, e porque nossas funções diárias ocupam mais nossa atenção e energia
do que nossa vida sexual, quer dizer que estamos velhos?
Nicole riu.
— É tão ruim assim?
— Nem tanto — disse Richard em tom de brincadeira. — Eu ainda amo
você como se fosse um adolescente... Mas de vez em quando esse amor é posto de
lado por umas dores que eu nunca tinha sentido antes... Por falar nisso, você não
pediu para eu examinar seu coração?
— Pedi, mas você não vai poder fazer grande coisa. Os únicos
instrumentos médicos que eu trouxe na minha maleta quando fugi foram o
estetoscópio e o esfigmógrafo. Já usei os dois várias vezes para me examinar...
Não encontrei nada de mais, a não ser um certo problema na válvula, mas minha
falta de ar não apareceu mais. Provavelmente foi toda a excitação... e a idade.
— Se nosso genro cardiologista estivesse aqui... poderia fazer um exame
completo em você.
Os dois andaram em silêncio por algum tempo.
— Você sente muita falta dos nossos filhos, não é? — perguntou Richard.
— Sinto sim — disse Nicole suspirando. — Mas tento não pensar muito
neles. Estou feliz em estar viva e aqui com você; sem dúvida é muito melhor do
que aqueles meses que passei na prisão. E tenho muitas recordações
maravilhosas das crianças...
— Deus, me dê a sabedoria de aceitar as coisas que não posso mudar —
citou Richard. — Essa é uma das suas maiores qualidades, Nicole... Sempre tive
uma ponta de inveja desta sua serenidade.
Nicole afastou-se de mansinho. Minha o quê?, pensou ela, lembrando-se
claramente de como ficara obcecada com a morte de Valeriy Borzov, logo depois
que a nave Newton aportou em Rama. Só consegui dormir quando me convenci de
que ele não tinha morrido por minha causa. Nicole ficou pensando naqueles anos
intermediários. Qualquer serenidade, se isso é possível, veio muito recentemente...
A maternidade e a idade nos dão uma perspectiva diferente com relação a nós
mesmos e ao mundo.
Um instante depois, Richard parou e virou-se para Nicole.
— Eu te amo muito — disse de repente, abraçando-a com força.
— O que aconteceu? — perguntou Nicole um pouco depois, intrigada com
aquela súbita demonstração amorosa.
Os olhos de Richard estavam distantes.
— Na semana passada — disse ele entusiasmado —, um plano louco e
estranho foi se desenvolvendo na minha cabeça. Desde o começo, eu sabia que
era perigoso e provavelmente insano mas, como todos os meus projetos, tomou
conta de mim... Cheguei a sair da cama duas vezes no meio da noite para pensar
nos detalhes... Queria ter contado a você antes, mas precisei me convencer de
que era possível mesmo...
— Não tenho idéia do que você está falando — disse Nicole impaciente.
— Os meninos. Tenho um plano para eles fugirem e se encontrarem
conosco em Nova York. Cheguei até a reprogramar Joana e Eleonor.
Nicole ficou olhando para o marido, a emoção lutando contra a razão,
enquanto ele explicava seu plano.
— Espere um instante, Richard — interrompeu, depois de um instante. —
Primeiro temos de fazer uma pergunta muito importante... O que faz você pensar
que os meninos querem fugir? Eles não estão refugiados no Novo Éden, nem
presos. É verdade que Nakamura é um tirano e que a vida na colônia é difícil e
deprimente, mas ao que eu saiba nossos filhos são tão livres quanto quaisquer
outros cidadãos. E se tentassem se juntar a nós e falhassem, a vida deles estaria
em perigo... Além disso, nossa existência aqui, embora seja ótima para nós, não
seria um paraíso para eles.
— Eu sei... eu sei... e talvez esteja sendo levado pelo meu desejo de vê-los
novamente... Mas qual é o risco de mandarmos Joana e Eleonor falar com eles?
Patrick e Ellie são adultos e podem tomar uma decisão...
— E Benjy e Katie? — perguntou Nicole. Richard franziu a sobrancelha.
— É claro que Benjy não poderia vir por conta própria, e assim a sua
participação depende da vontade dos outros em ajudá-lo. Quanto a Katie, ela é
tão instável e imprevisível... que poderia até resolver contar tudo para
Nakamura... Acho que não temos outra saída senão deixar Katie fora disso...
— Um pai nunca perde a esperança — disse Nicole carinhosamente, tanto
para si própria como para Richard. — Aliás, o seu plano também inclui Max e
Eponine? Eles são quase membros da nossa família.
— Max é a pessoa perfeita para coordenar a fuga de dentro da colônia —
continuou Richard, cada vez mais entusiasmado. — Ele foi fantástico escondendo
você e depois levando-a para o lago Shakespeare sem ser apanhado. Patrick e
Ellie precisarão de uma pessoa madura e de cabeça fria para ajudá-los nos
detalhes... No meu plano, Joana e Eleonor entram em contato com Max primeiro.
Além de ele já conhecer os robôs, poderá fazer uma boa avaliação do plano. Se
nos disser, através dos robôs, que a idéia é absurda, a gente arquiva o plano.
Nicole tentou imaginar sua alegria quando abraçasse um dos filhos de
novo. Mas era impossível.
— Tudo bem, Richard — disse ela, sorrindo. — Admito que estou
interessada... Vamos conversar sobre isso... Mas temos de nos prometer não fazer
nada que possa pôr em risco a vida das crianças.

8
Max Puckett e Ellie Turner deixaram Eponine, Robert e a pequena Nicole
logo depois do jantar e foram caminhar em volta da casa da fazenda de Max no
Novo Éden. Assim que se afastaram, Max começou a contar a Ellie sobre as
recentes visitas dos robozinhos. Ellie não podia acreditar no que estava ouvindo.
— Você deve estar enganado — disse em voz alta para Max. — Eles não
podem estar sugerindo que a gente saia de...
Max pôs o dedo nos lábios enquanto os dois caminhavam os últimos
metros até o celeiro.
— Você mesma vai falar com eles — disse num sussurro. — Mas, segundo
essas criaturinhas, há lugar de sobra para todos nós na toca onde você viveu
seus primeiros anos de vida.
Estava escuro no celeiro. Antes de Max acender a luz, Ellie já tinha visto
os robozinhos brilhando ao seu lado, no peitoril de uma das janelas.
— Alô, Ellie — disse Joana, ainda com sua armadura. — Sua mãe e seu
pai mandaram lembranças.
— Viemos ver você esta noite — acrescentou Eleonor — porque Max achou
que seria melhor você própria ouvir o que vamos dizer. Richard e Nicole estão
convidando você e seus amigos para irem morar na antiga toca deles em Nova
York, onde estão vivendo uma vida espartana porém pacífica.
— Tudo lá na toca — continuou Joana — continua igual a quando você
era criança. Comida, roupas e outros objetos continuam a ser fornecidos pelos
ramaianos, solicitados através do teclado do Salão Branco. Há água potável à
vontade na cisterna perto do fundo da escada de entrada.
Ellie ouvia fascinada à medida que Joana a lembrava de sua vida na
cidade-ilha, ao sul do segundo habitat. Tentou visualizar a toca, mas a imagem
que vinha à cabeça era por demais vaga. Lembrava-se claramente dos seus
últimos dias em Rama, com os espetaculares anéis de luz emanando do Grande
Chifre e espraiando-se aos poucos ao norte do gigantesco cilindro. Mas o interior
de sua toca continuava nebuloso. Por que não lembrar ao menos do meu quarto
com mais nitidez? Será porque aconteceu muita coisa desde aquela época que ficou
mais fundo na minha memória?
Uma montagem de imagens da sua primeira infância passou pela cabeça
de Ellie. Algumas delas eram de Rama, mas a maioria se referia ao apartamento
de sua família em Nodo. As indeléveis características da Águia, uma figura divina
para a pequena Ellie, pareciam presidir a montagem.
Eleonor de Aquitânia perguntou alguma coisa a Ellie, mas de início a
jovem não ouviu, perdida nas suas reminiscências.
— Desculpe, Eleonor. Pode repetir a pergunta, por favor? Acho que eu
estava temporariamente perdida na minha infância.
— Sua mãe perguntou sobre Benjy. Ele ainda está na enfermaria em
Avalon?
— Está. E está se saindo até muito bem. Sua melhor amiga agora é Nai
Watanabe. Quando a guerra terminou, ela se apresentou como voluntária para
trabalhar com os que tinham sido enviados para a enfermaria de Avalon por uma
razão ou por outra. Ela passa algum tempo com Benjy todos os dias e o tem
ajudado muito. Os gêmeos dela, Kepler e Galileu, adoram brincar com Benjy —
que na verdade é uma criança —, embora Galileu às vezes seja cruel com ele e
Nai se sinta muito mal com isso.
— Como eu lhe falei — disse Max, voltando ao assunto principal —, Nicole
e Richard deixaram a nosso cargo decidir quem deveria partir conosco, caso
tentemos uma saída em massa. Benjy segue as orientações que lhe dão?
— Creio que sim, desde que confie na pessoa que o orienta. Mas não será
possível contar-lhe com antecedência sobre a fuga. Não poderíamos esperar que
ele não dissesse nada a ninguém. Segredo e astúcia não fazem parte da
personalidade de Benjy. Ele ficará maravilhado, mas...
— Sr. Puckett — interrompeu Joana d'Arc —, o que devo dizer para
Richard e Nicole?
— Que droga, Joana, tenha um pouco de paciência... Aliás, é melhor você
voltar dentro de uma semana, depois que Ellie, Eponine e eu tivermos mais
tempo para conversar sobre o assunto e pudermos dar a você algum tipo de
resposta... Diga a Richard que eu achei a coisa toda interessante, embora
bastante maluca.
Max colocou os dois robôs no chão do celeiro e eles desapareceram.
Depois que saiu, por sua vez, do celeiro com Ellie, Max tirou um cigarro do bolso.
— Espero que você não se ofenda se eu fumar aqui fora — disse, com uma
risadinha.
Ellie sorriu.
— Você não quer contar para Robert, não é, Max? — disse ela um instante
depois, enquanto Max fazia rodinhas de fumaça no ar.
Max sacudiu a cabeça.
— Ainda não. Talvez só na última hora — respondeu, pondo o braço em
volta de Ellie. — Minha menina, eu gosto do seu marido médico, gosto mesmo,
mas às vezes acho as atitudes e prioridades dele um tanto estranhas. Não tenho
certeza se ele não contaria nosso plano para alguém...
— Você acha, Max, que talvez Robert tenha feito algum tipo de voto
secreto de não se voltar a contra a autoridade? É que ele tem medo de que...
— Que merda, Ellie, não sou psicólogo. Acho que nenhum de nós pode
compreender o que significou para ele matar duas pessoas a sangue-frio. Mas sei
que é bem provável que ele não guarde nosso segredo para evitar uma decisão
pessoal penosa, entre outras coisas. — Max tragou o cigarro e olhou para sua
jovem amiga.
— Você não acredita que ele vá conosco, não é, Max? Nem mesmo se eu
pedir.
Max sacudiu a cabeça mais uma vez.
— Não sei, Ellie. Vai depender de quanto ele precisa de você e da pequena
Nicole. Robert criou um espaço para vocês duas na vida dele, mas continua a
esconder seus sentimentos por trás do trabalho.
— E você, Max? — perguntou Ellie. — O que você realmente pensa desse
esquema todo?
— Eponine e eu estamos prontos para ir, para termos um pouco de
aventura — disse ele, sorrindo. — Além disso, mais cedo ou mais tarde, vou ter
sérios problemas com Nakamura.
— E Patrick?
— Ele vai adorar a idéia. Mas tenho medo que diga alguma coisa a Katie.
Eles têm um relacionamento especial...
Max parou no meio da frase quando viu Robert aparecer na frente da
casa, carregando a filhinha no colo.
— Ah, você está aí, Ellie — disse Robert. — Achei que você e Max tivessem
se perdido no celeiro... Nicole está muito cansada e eu tenho de sair muito cedo
para o hospital amanhã...
— É claro, querido. Max e eu estávamos nos lembrando de alguns
episódios com meu pai e minha mãe...

Deve parecer um dia perfeitamente normal, pensou Ellie ao mostrar seu


cartão de identidade à biota Garcia, na entrada do supermercado de Beauvois.
Devo me comportar exatamente como se hoje fosse uma quinta-feira comum.
— Sra. Turner — disse a Garcia um instante depois, passando-lhe uma
lista de computador pregada na parede —, aqui está sua ração para a semana.
Estamos sem brócolis e tomates de novo, portanto, incluímos duas medidas
extras de arroz... Agora pode entrar na fila para pegar suas provisões.
A pequena Nicole entrou com Ellie na ala principal do supermercado. Do
outro lado de um biombo, onde nos primeiros dias da colônia os cidadãos do
Novo Éden faziam suas próprias compras, cinco a seis biotas Tiasso e Lincoln,
todos de uma série de trezentos completamente reprogramados pelo governo de
Nakamura, andavam para baixo e para cima, preenchendo os pedidos. Grande
parte das prateleiras estava vazia. Embora a guerra já tivesse terminado há
algum tempo, a temperatura instável do Novo Éden e também o
descontentamento da maioria dos fazendeiros quanto aos métodos violentos de
Nakamura tinham baixado a produção a um nível mínimo. Por isso, o governo
achara necessário supervisionar a distribuição de alimentos. Somente os favoritos
do governo tinham mais do que o essencial para comer.
Na fila havia uma meia dúzia de pessoas na frente de Ellie e de sua
filhinha de dois anos. Toda quinta-feira à tarde Ellie fazia compras com aquelas
mesmas pessoas. Quando as duas entraram na fila, algumas delas se viraram
para trás.
— Aí está a linda menininha — disse uma senhora de cabelos grisalhos. —
Como vai você, Nicole?
Nicole não respondeu. Deu uns passos atrás e abraçou-se às pernas de
sua mãe.
— Nicole ainda é muito tímida — disse Ellie. — Só conversa com gente que
ela conhece.
Um biota Lincoln trouxe duas caixinhas de comida e entregou-as a um pai
com seu filho adolescente que estavam no primeiro lugar da fila.
— Não vamos usar o carrinho hoje — disse o pai para o biota Lincoln. —
Por favor, anote isso no nosso dossiê... Há duas semanas, quando nós também
carregamos nossas compras, ninguém notou que não havíamos pegado o
carrinho. Fomos acordados no meio da noite por uma Garcia pedindo que
devolvêssemos o carrinho ao supermercado.
Não pode haver erros triviais, disse Ellie para si mesma. Não se pode
deixar de devolver os carrinhos, nada de que alguém possa suspeitar, antes de
amanhã. Enquanto esperava na fila, foi repassando os detalhes do plano de fuga
que ela e Patrick haviam discutido com Max e Eponine no dia anterior. Tinham
escolhido uma quinta-feira porque era o dia em que Robert fazia suas visitas
regulares aos doentes de RV-41 em Avalon. Max e Eponine tinham pedido, e
recebido, um passe para irem jantar com Nai Watanabe. Eles cuidariam de Kepler
e Galileu enquanto Nai fosse à enfermaria buscar Benjy. Tudo estava em ordem.
Havia apenas uma grande incerteza.
Ellie tinha treinado centenas de vezes a conversa que teria com Robert.
Sua reação inicial será negativa. Ele vai dizer que é muito perigoso, que eu estou
pondo em risco a segurança de Nicole. E ficará zangado por eu não ter contado
tudo para ele antes.
Na sua imaginação ela já tinha respondido a todas as suas objeções e
descrito cuidadosamente a vida que levariam em Nova York, sob uma perspectiva
va positiva. Mas continuava muito nervosa. Não conseguira se convencer de que
Robert concordaria em partir com eles. E não tinha idéia do que ele faria se ela
declarasse que estava preparada para levar a filha e partir sem ele.
Quando suas compras foram colocadas no carrinho que seria devolvido ao
supermercado depois de descarregar tudo em casa, Ellie apertou a mão da
filhinha. Está quase na hora. Preciso tomar coragem. Preciso ter fé.

— Como você espera que eu reaja? — disse Robert Turner. — Eu chego em


casa depois de um dia excepcionalmente trabalhoso no hospital, pensando em
centenas de coisas que tenho de fazer amanhã, e você me diz no jantar que quer
que nós deixemos o Novo Éden para sempre. E que aja hoje à noite...
— Sei que foi repentino, Robert — disse Ellie, cada vez com mais medo de
ter subestimado a dificuldade da sua tarefa —, mas eu não podia te dizer antes.
Seria muito perigoso... E se você se traísse e dissesse alguma coisa para Ed
Stafford ou outro membro de sua equipe e um dos biotas ouvisse?...
— Mas eu não posso simplesmente ir embora sem dizer nada a ninguém
— falou Robert, sacudindo a cabeça. — Você tem idéia de quantos anos de
trabalho seriam jogados fora?
— Você não pode escrever o que tem de ser feito em cada projeto? —
sugeriu Ellie. — Ou fazer um resumo do que já foi realizado...
— Não numa noite — respondeu Robert com toda ênfase. — Não, Ellie,
está fora de questão. Nós não podemos ir. O plano de saúde a longo termo da
colônia pode depender dos resultados da minha pesquisa... Além do mais, mesmo
que seus pais estejam vivendo confortavelmente nesse lugar bizarro que você
descreveu, seja lá onde for, não me parece um bom lugar para criar uma
criança... E você nem ao menos considerou o possível perigo para todos nós.
Nossa saída daqui será vista como uma traição. Nós dois poderíamos ser
executados se fôssemos apanhados. E o que aconteceria a Nicole então?
Ellie ouviu as objeções de Robert por mais algum tempo e de repente
percebeu que havia chegado a hora de sua declaração. Juntando toda a sua
coragem, ela andou em volta da mesa e pegou nas mãos do marido.
— Eu venho pensando nisso há quase três semanas, Robert... Você
precisa compreender como é difícil para mim tomar essa decisão... Eu te amo de
todo meu coração, mas se for preciso Nicole e eu iremos sem você... Sei que há
muita incerteza nesse plano de partida, mas a vida aqui no Novo Éden não tem
nada de saudável para nenhum de nós...
— Não, não, não — disse Robert imediatamente, largando as mãos de Ellie
e andando em volta da sala. — Não acredito em nada disso. É tudo um
pesadelo... — Fez uma pausa e olhou para Ellie... — Você não pode levar Nicole —
disse, de forma apaixonada. — Está me ouvindo? Eu proíbo que você leve a nossa
filha...
— Robert! — interrompeu Ellie com um grito, as lágrimas escorrendo pelo
seu rosto. — Olhe para mim... Eu sou sua mulher, a mãe de sua filha... Eu te
amo. Pelo amor de Deus, ouça o que vou dizer.
Nesse momento, Nicole entrou correndo na sala e começou a chorar ao
lado da mãe. Ellie se compôs e continuou:
— Não acredito que você seja o único desta família que possa tomar
decisões. Eu tenho o mesmo direito. Posso respeitar seu desejo de não ir embora,
mas sou a mãe de Nicole. Se tivermos de nos separar, acho que seria melhor para
ela ficar comigo...
Ellie parou. O rosto de Robert estava contorcido de dor. Ele deu um passo
na direção dela, e, pela primeira vez na vida, Ellie teve medo de que Robert lhe
batesse.
— O melhor para mim — gritou Robert, com o punho da mão direita
levantado — seria que você esquecesse toda essa bobagem.
Ellie recuou um pouco e Nicole continuou a chorar. Robert lutava para se
controlar.
— Eu jurei — disse, com a voz tomada de emoção — que ninguém e nada
iria fazer com que eu magoasse alguém assim de novo...
As lágrimas escorriam-lhe dos olhos.
— Que droga! — continuou, dando um soco na mesa ao lado. Sem dizer
mais nada, sentou-se na cadeira e afundou o rosto nas mãos.
Ellie consolou Nicole e ficou calada um instante.
— Eu sei como foi doloroso para você perder sua primeira família. Mas
Robert, essa situação é inteiramente diferente. Ninguém vai fazer mal a mim e a
Nicole.
Ellie atravessou a sala e pôs os braços em volta dele.
— Não estou dizendo que seja uma decisão fácil, Robert. Mas estou
convencida de que é a coisa certa para Nicole e para mim.
Robert retribuiu o abraço de Ellie, mas sem muito entusiasmo.
— Não vou impedir você e Nicole de irem — disse, resignado, depois de um
instante. — Mas não sei o que eu vou fazer. Gostaria de pensar nisso nas
próximas horas enquanto estivermos em Avalon.
— Tudo bem, querido — respondeu Ellie. — Mas, por favor, não se
esqueça de que Nicole e eu precisamos de você mais do que seus pacientes. Você
é o único marido e pai que nós temos.
9
Nicole não conseguia conter sua excitação. Quando deu os últimos
retoques na decoração no quarto das crianças, ficou imaginando como seria o
quarto quando elas o dividissem com as duas aves. Timmy, que estava quase do
seu tamanho, chegou perto dela para inspecionar seu trabalho e matraqueou um
pouco, mostrando sua aprovação.
— Pense só, Timmy — disse Nicole, sabendo que a ave não podia entender
suas palavras, mas podia interpretar o timbre de sua voz. — Quando Richard e
eu voltarmos, traremos seus novos companheiros de quarto.
— Está pronta, Nicole? — perguntou Richard. — Está quase na hora de
sairmos.
— Estou, querido. Estou aqui no quarto das crianças. Por que você não
vem dar uma olhada?
Richard enfiou a cabeça pela porta e fez uma inspeção superficial na nova
decoração.
— Ótimo, maravilhoso. Agora precisamos nos mexer. Essa operação vai
requerer uma cronometragem perfeita.
Quando os dois andavam para O Porto, Richard informou a Nicole que não
tivera mais notícias do Hemicilindro Norte. A falta de notícias podia indicar que
Joana e Eleonor estavam muito envolvidas na fuga, ou muito perto de um
possível inimigo, ou então que a realização da fuga estivesse sendo ameaçada.
Nicole não se lembrava de ter visto Richard tão nervoso assim, e tentou acalmá-
lo.
— Até agora não sabemos se Robert está vindo? — perguntou ela um
pouco depois, quando eles se aproximavam do submarino.
— Não. E não sabemos nada da reação dele quando Ellie lhe expôs o
plano. Eles apareceram juntos em Avalon, conforme combinado, mas estavam
cuidando dos pacientes. Joana e Eleonor não tiveram oportunidade de conversar
com Ellie depois que ajudaram Nai a tirar Benjy da enfermaria.
Richard havia checado o submarino pelo menos duas vezes no dia
anterior. No entanto, deu um suspiro de alívio quando o sistema operacional
funcionou e o submarino deslizou na água. Quando submergiram nas águas do
mar Cilíndrico, Richard e Nicole permaneceram em silêncio, cada um deles
pensando a seu modo na reunião emocionante que ocorreria dentro de uma hora
ou menos.
Haverá alegria maior, pensou Nicole, do que reunir os filhos depois de
esperar não os ver nunca mais? Imagens de seus seis filhos lhe vieram à cabeça.
Pensou em Geneviève, sua primeira filha, nascida na Terra em conseqüência de
sua união com o príncipe Henry. Depois pensou na serena Simone, que fora
deixada em Nodo com um marido quase sessenta anos mais velho. Depois das
duas meninas mais velhas vinham mais quatro filhos ainda vivendo em Rama:
sua difícil filha Katie, sua meiga Ellie, e os dois filhos que tivera com Michael
O'Toole, Patrick e Benjy, este último com retardo mental. Eles são tão diferentes.
Cada um deles um milagre, a seu próprio modo.
Eu não acredito em verdades universais, refletiu Nicole, enquanto o
submarino se aproximava do túnel sob a parede que fora outrora um habitat
ave/séssil, mas não pode haver muitos seres humanos que tenham vivido a
experiência singular de serem pais sem serem irrevogavelmente modificados pelo
processo. Certamente, todos nós pensamos, quando nossos filhos se tornam
adultos, o que fizemos ou deixamos de fazer, que contribuiu ou deixou de
contribuir, para a felicidade desses seres especiais que trouxemos ao mundo.
Nicole estava numa excitação enorme. Quando Richard checou o relógio e
começou a manobrar o submarino para a posição em que se daria o encontro,
suas lembranças mais recentes de Ellie, Patrick e Benjy dançaram entre as
lágrimas que enchiam seus olhos. Nicole apertou a mão de Richard quando a
embarcação subiu à tona.
Pela janela, eles viram oito figuras de pé, à beira d'água, na localização
indicada. Quando a água parou de correr pelo vidro da janela, Nicole reconheceu
Ellie, seu marido Robert, Eponine, Nai segurando a mão de Benjy, e as três
crianças pequenas, inclusive sua neta, que recebera seu nome e que ela ainda
não conhecia. Nicole bateu no vidro, embora soubesse que ninguém poderia ouvir
nem ver nada de tão longe.
Richard e Nicole ouviram os tiros assim que abriram a porta. Robert
Turner, preocupado, olhou para trás e levantou a filhinha Nicole do chão. Ellie e
Eponine pegaram os gêmeos de Nai Watanabe. Galileu reagiu a Eponine e foi
repreendido pela mãe, que estava tentando guiar Benjy para o submarino.
Houve outra rajada de balas, dessa vez mais perto, quando o grupo
entrava no navio. Não houve tempo para abraços.
— Max disse para sairmos assim que todos estiverem a bordo — disse
Ellie apressada para os pais. — Ele e Patrick estão agüentando os soldados
enviados para nos capturar.
Richard estava se preparando para fechar a porta quando duas figuras
armadas surgiram dos arbustos próximos.
— Apronte-se para dar a partida — gritou Patrick, dando dois tiros com
seu rifle. — Eles estão logo atrás de nós.
Max caiu, mas Patrick carregou o amigo ferido pelos últimos cinqüenta
metros até o submarino. Três soldados da colônia atiraram no navio quando ele
submergiu no fosso. Durante um instante ninguém a bordo deu uma palavra.
Depois, o compartimento mínimo explodiu numa confusão de sons. Todos
gritavam e choravam. Nicole e Robert debruçaram-se sobre Max, que estava
sentado contra a parede.
— Você está muito ferido? — perguntou Nicole.
— É claro que não — disse Max, impetuosamente. — Foi só uma bala
solitária que me pegou não sei onde. É preciso muita pólvora para matar um filho
da puta como eu.
Quando Nicole virou-se para trás, viu Benjy ao seu lado.
— Ma-mãe — disse ele com os braços estirados e o corpo maciço tremendo
de alegria. Nicole e Benjy ficaram abraçados por longo tempo no centro do
compartimento. Os suspiros de felicidade do rapaz refletiam o sentimento de
todas as pessoas do submarino.
Enquanto estavam a bordo do submarino, com os recém-chegados
sentindo-se em trânsito entre dois mundos alienígenas, eles trataram quase o
tempo todo de assuntos pessoais. Nicole conversou em separado com cada um
dos filhos e segurou sua netinha pela primeira vez. A pequena Nicole não sabia o
que fazer com aquela mulher de cabelos grisalhos querendo abraçá-la e beijá-la.
— Esta é sua avó — dizia Ellie, tentando persuadi-la a corresponder ao
carinho de Nicole. — Ela é minha mãe, Nikki, e tem o mesmo nome que você.
Nicole sabia o suficiente sobre crianças para compreender que a menina
levaria algum tempo para aceitá-la. De início houve uma certa confusão com a
repetição do nome, e, toda vez que alguém dizia Nicole, avó e neta olhavam em
volta. Mas depois Ellie e Robert começaram a chamar a filha de Nikki e o resto do
grupo fez o mesmo.
Antes do submarino chegar a Nova York, Benjy mostrou à mãe que sua
leitura havia melhorado bastante. Nai era uma excelente professora. Benjy
trouxera seus livros na mochila, uma coleção dos contos de Hans Christian
Andersen escritos havia três séculos. Sua história favorita era "O patinho feio",
que ele leu toda, para grande alegria da mãe e da professora, sentada ao seu
lado. Sua voz encheu-se de entusiasmo quando o patinho feio rejeitado
transformou-se num belo cisne.
— Estou muito orgulhosa de você, querido — disse Nicole secando as
lágrimas quando Benjy finalmente terminou a leitura. — E quero agradecer a
você, Nai, do fundo do meu coração.
— Foi extremamente gratificante trabalhar com Benjy — respondeu a
tailandesa. — Eu tinha me esquecido como é emocionante ensinar um aluno
atento e interessado.
Robert Turner limpou o ferimento de Max Puckett e retirou a bala. O
curativo foi assistido pelos gêmeos Watanabe, de cinco anos, que ficaram
fascinados com as entranhas de Max. O agressivo Galileu ficou empurrando para
poder ver melhor, e Nai teve de interferir a favor de Kepler em duas brigas.
O dr. Turner disse que o ferimento de Max não era sério, como o próprio
Max já pressentira, e prescreveu um curto período de repouso.
— Creio que vou ter de sossegar um pouco — falou Max, piscando para
Eponine. — Aliás, era exatamente isso que eu estava planejando fazer. Acho que
não deve haver muitos porcos ou galinhas nessa cidade alienígena de arranha-
céus. E não conheço nada sobre biotas.
Nicole conversou um pouco com Eponine, logo antes da chegada do
submarino em O Porto, agradecendo à antiga professora de Ellie por tudo o que
ela e Max haviam feito pela família. Eponine aceitou os agradecimentos
gentilmente, e disse a Nicole que Patrick fora "absolutamente fantástico" nos
preparativos da fuga.
— Ele é um rapaz maravilhoso — disse ela.
— E como está a sua saúde? — perguntou Nicole delicadamente. A
francesa deu de ombros.
— Nosso bom médico diz que o vírus RV-41 ainda está lá, esperando uma
oportunidade para tomar conta do meu sistema imunológico. Quando isso
acontecer, terei entre seis meses e um ano de vida.
Patrick contou para Richard que Joana e Eleonor tinham tentado desviar
a atenção dos soldados de Nakamura fazendo uma barulhada, como combinado,
e que certamente foram capturadas e destruídas.
— Sinto muito sobre Joana e Eleonor — disse Nicole para Richard no
único instante em que os dois tiveram tempo para se falar a bordo do submarino.
— Sei quanto esses robôs significavam para você.
— Elas cumpriram a sua missão — observou Richard, forçando um
sorriso. — Afinal de contas, não foi você quem me disse um dia que elas não eram
como gente de verdade?
Nicole levantou-se e deu um beijo no marido.

Nenhum dos foragidos estivera em Nova York quando adulto. Os três


filhos de Nicole haviam nascido na ilha e passado seus primeiros anos de vida lá,
mas a criança vê os lugares de modo muito diferente do adulto. Até mesmo Ellie,
Patrick e Benjy ficaram perplexos quando desceram do submarino e viram as
silhuetas finas e altas elevando-se para o céu de Rama, quase escuro agora.
Max Puckett ficou sem fala, o que raramente lhe acontecia, segurando a
mão de Eponine, assombrado com as altas torres subindo mais de duzentos
metros acima da ilha.
— Isso é demais para um fazendeiro de Arkansas — disse ele depois de
algum tempo, sacudindo a cabeça.
Max e Eponine foram seguindo o cortejo que se encaminhava para a toca
que Richard e Nicole haviam transformado em um apartamento multifamiliar a
ser compartilhado por todos.
— Quem construiu tudo isso? — perguntou Robert Turner para Richard
quando o grupo fez uma breve parada em frente a um gigantesco poliedro. Robert
estava cada vez mais apreensivo. De início relutara em acompanhar Ellie e Nikki,
e agora estava tentando se convencer de que cometera um grande erro.
— Provavelmente os engenheiros de Nodo — respondeu Richard. — Mas
não se pode ter certeza. Depois os seres humanos fizeram novas construções no
seu habitat. É possível que as pessoas ou as coisas que viveram aqui muito
tempo atrás tenham construído alguns ou todos esses fantásticos edifícios.
— Onde eles estão agora? — perguntou Robert de novo, um tanto
assustado com a possibilidade de encontrar seres com a tecnologia necessária
para criar construções tão impressionantes.
— Não há como saber. Segundo a Águia, essa espaçonave Rama tem feito
viagens para descobrir espécies que viajam pelo espaço há milhares de anos. Em
algum lugar na nossa parte da galáxia existe outro viajante espacial que se
sentiria confortável num ambiente como este. Quem era, ou é, essa criatura e por
que ela queria viver no meio de arranha-céus incríveis é um enigma que
provavelmente nunca será decifrado.
— E as aves e as octoaranhas, tio Richard? — perguntou Patrick. — Ainda
estão vivendo aqui em Nova York?
— Eu não vi nenhuma ave na ilha desde que cheguei, com exceção, é
claro, dos filhotes que estamos criando. Mas ainda há umas octoaranhas por aí.
Sua mãe e eu encontramos umas doze quando explorávamos por trás da tela
preta.
Naquele instante, um biota-centopéia aproximou-se do grupo, vinda de
uma ruela lateral. Richard iluminou o caminho com sua lanterna. Robert Turner
congelou de medo, mas seguiu as instruções de Richard e saiu do caminho para o
biota passar.
— Arranha-céus construídos por fantasmas, octoaranhas, biotas-
centopéias — resmungou Robert. — Que lugar encantador!
— Na minha opinião é muito melhor do que viver sob o jugo daquele
tirano Nakamura — disse Richard. — Pelo menos somos livres e podemos tomar
nossas próprias decisões.
— Wakefield — gritou Max Puckett de trás da fila. — O que aconteceria se
não saíssemos do caminho daquele biota-centopéia?
— Não sei ao certo, Max. Mas provavelmente ele passaria por cima de nós,
ou em volta, como se fôssemos objetos inanimados.

Desta vez foi Nicole quem serviu de guia turístico quando chegaram à
toca, mostrando as acomodações reservadas para cada um do grupo. Havia um
quarto para Max e Eponine, outro para Ellie e Robert, um terceiro, onde fora
colocada uma divisória, para Patrick e Nai, e um outro grande para as crianças,
Benjy e as duas aves. Em uma salinha pequena seriam feitas as refeições
comunitárias.
Enquanto os adultos tiravam das mochilas seus escassos pertences, as
crianças tiveram seu primeiro contato com Tammy e Timmy. As aves não sabiam
como agir com esses seres humanos, principalmente com Galileu, que insistia em
puxar ou apertar qualquer coisa que tocasse. Depois de uma hora desse tipo de
brincadeira, Timmy deu um ligeiro arranhão em Galileu com uma de suas garras,
à guisa de aviso, e o menino fez um escândalo.
— Eu não entendo — disse Richard, desculpando-se com Nai. — As aves
são sempre muito mansas.
— Eu entendo — retrucou Nai. — Galileu deve ter feito alguma arte —
completou ela, suspirando. — É incrível. A gente educa duas crianças exatamente
da mesma forma e elas crescem tão diferentes. Kepler é tão bom que parece um
anjo; preciso até ensiná-lo a se defender. E Galileu não presta a menor atenção
ao que lhe digo.
Quando todos terminaram de arrumar suas coisas, Nicole mostrou o resto
da casa: dois banheiros, os corredores, os tanques suspensos onde a família
tinha ficado na época da alta aceleração entre a Terra e Nodo, e finalmente o
Salão Branco, com a tela preta e o teclado, que também servia de quarto de
dormir para Richard e Nicole. Richard demonstrou como a tela preta funcionava
quando acionada, e recebeu uma hora depois alguns brinquedinhos para as
crianças. Deu a Robert e a Max a cópia de um glossário de comando com
instruções para o teclado.
As crianças dormiram logo depois do jantar, e os adultos se reuniram no
Salão Branco. Max fez perguntas sobre as octoaranhas. Quando Nicole começou
a descrever suas aventuras por trás da tela preta e disse que tinha sentido dores
no coração, Robert ficou preocupado e logo depois foi examiná-la no quarto.
Ellie ajudou Robert no exame. Ele trouxera o máximo de equipamento que
cabia na sua mochila, inclusive todos os instrumentos e monitores em miniatura
necessários para um eletrocardiograma. Os resultados não foram bons, mas não
tão ruins quanto Nicole pensava. Robert informou ao resto da família que os anos
tinham definitivamente desgastado o coração de Nicole, mas não achava que ela
precisaria ser operada num futuro próximo. Aconselhou Nicole a levar a vida com
calma, mesmo sabendo que sua sogra provavelmente ignoraria suas
recomendações.
Quando todos foram dormir, Richard e Nicole afastaram os móveis para
colocar os colchonetes no chão, e deitaram-se lado a lado, de mãos dadas.
— Você está feliz? — perguntou Richard.
— Estou, muito. É uma maravilha estar rodeada de todos os nossos filhos.
— Debruçou-se sobre Richard e lhe deu um beijo. — E estou também
exausta, meu marido, mas não vou dormir sem primeiro agradecer a você por ter
conseguido tudo isso.
— Eles também são meus filhos.
— Eu sei, querido — falou Nicole, deitando-se de novo. — Mas sei também
que você não teria feito tudo isso se não fosse por mim. Você se contentaria em
ficar aqui com os filhotes, sua parafernália e os mistérios extraterrestres.
— Talvez, mas também estou felicíssimo por estar com todos na nossa
toca... A propósito, você teve oportunidade de falar com Patrick sobre Katie?
— Só ligeiramente — respondeu Nicole com um suspiro. — Pude ver pela
expressão dele que ainda está muito preocupado com a irmã.
— Assim como nós todos — acrescentou Richard. Os dois ficaram em
silêncio por um instante, e então Richard sentou-se apoiado nos cotovelos.
— Quero que você saiba que achei nossa neta absolutamente maravilhosa.
— E eu também — falou Nicole, dando uma risada.
— Ei, será que com Nikki aqui não vou poder chamar você de Nikki nem
nos momentos especiais?
Nicole virou-se para olhar Richard, que estava com um sorriso matreiro
que ela conhecia de longa data.
— Trate de dormir. Estou emocionalmente exausta para fazer qualquer
outra coisa esta noite.

No começo, o tempo passou muito depressa. Havia muito a fazer, muito


território fascinante a ser explorado. Embora fosse eternamente escuro na
misteriosa cidade acima deles, a família fazia excursões regulares a Nova York.
Quase todos os lugares da ilha tinham uma história especial que Richard ou
Nicole contavam.
— Foi aqui — disse Nicole numa tarde, iluminando com a lanterna a
imensa treliça pendurada entre dois arranha-céus como uma teia de aranha —
que eu salvei uma ave que tinha sido apanhada, estava presa, e que depois me
convidou para ir à sua toca.
— Ali — disse ela em outra ocasião, quando estavam num grande celeiro
com poços e esferas estranhas —, fiquei presa muitos dias e achei que ia morrer.
A grande família desenvolveu um conjunto de regras para manter as
crianças seguras. Essas regras não eram necessárias para Nikki, que não saía de
perto da mãe e do embevecido avô, mas os gêmeos Kepler e Galileu eram difíceis
de serem contidos. A energia deles parecia infinita. Uma vez foram encontrados
balançando-se nas redes dos tanques suspensos, como se as redes fossem
trampolins. Outra vez pediram emprestado as lanternas da família e saíram
sozinhos para explorar Nova York. Foram dez horas de tensão até eles serem
localizados no labirinto de ruas e vielas do outro lado da ilha.
As aves treinavam seu vôo quase diariamente. As crianças adoravam
passear com elas nas praças, onde Tammy e Timmy tinham mais espaço para
mostrar seus progressos. Richard sempre levava Nikki para ver as aves voando.
Na verdade, ele levava a neta para todos os lugares aonde ia. De vez em quando,
ela andava, mas em geral Richard a carregava numa trapizonga confortável que
ele colocava nas costas. O casal sui generis era inseparável. Richard também
passou a ser professor de Nikki, e logo depois anunciou para todos que sua neta
era um gênio matemático.
À noite ele contava para Nicole as últimas façanhas de Nikki.
— Você sabe o que ela fez hoje? — perguntava, em geral quando os dois
estavam sozinhos na cama.
— Não, querido — dizia sempre Nicole, sabendo muito bem que nem ela
nem Richard dormiriam antes que ele contasse.
— Eu lhe perguntei quantas bolas ela teria se já tinha três e eu lhe desse
mais duas (pausa dramática). E sabe o que ela respondeu? (outra pausa
dramática) Cinco! Ela disse cinco. E essa menininha acabou de fazer dois anos...
Nicole estava encantada com o interesse de Richard por Nikki. Tanto para
a menininha quanto para aquele homem mais velho, a combinação era perfeita.
Como pai, ele nunca conseguira superar seus próprios problemas emocionais
reprimidos nem seu agudo senso de responsabilidade, portanto era a primeira vez
na vida que ele sentia a alegria do amor verdadeiramente inocente. O pai de
Nikki, por outro lado, era um grande médico, mas não era uma pessoa muito
calorosa, e não dava muito valor a esses momentos de descontração que os pais
devem ter com os filhos.
Patrick e Nicole tiveram várias conversas sobre Katie que deixaram Nicole
muito deprimida. Patrick não escondeu da mãe que Katie estava envolvida nas
maquinações de Nakamura, que bebia muito e que era sexualmente promíscua.
Mas não contou que Katie gerenciava o prostíbulo de Nakamura, nem que achava
que ela se tornara viciada em drogas.

10
Essa existência quase perfeita em Nova York foi interrompida numa
manhã em que Richard e Nikki passeavam juntos pelas muralhas ao norte da
ilha. Aliás, foi a menina quem viu primeiro a silhueta dos navios e apontou para a
água escura.
— Olhe, vô. Nikki está vendo uma coisa.
Os olhos cansados de Richard não conseguiram distinguir nada no
escuro, e a luz de sua lanterna não alcançava a distância da coisa que Nikki
estava vendo. Richard pegou os potentes binóculos que sempre carregava e
realmente viu dois navios no meio do mar Cilíndrico. Colocou Nikki nas costas e
correu para a toca.
Os outros membros da família estavam acordando, e levaram um certo
tempo para compreender por que Richard estava tão alarmado.
— Mas quem poderia estar no navio? — disse ele. — Especialmente no
lado norte? Só pode ser um grupo de exploração enviado por Nakamura.
Fizeram um concilio familiar à mesa do café e todos concordaram que
estavam enfrentando uma crise séria. Quando Patrick confessou que tinha visto
Katie no dia da fuga para se despedir dela, e que ela lhe fizera umas perguntas a
partir de comentários seus, Nicole e os outros ficaram em silêncio.
— Eu não disse nada específico — falou Patrick, desculpando-se —, mas
foi burrice minha... Katie é muito esperta. Depois que todos nós desaparecemos,
ela deve ter juntado as peças do quebra-cabeça.
— E o que vamos fazer agora? — perguntou Robert Turner com voz
apreensiva. — Katie conhece Nova York muito bem, pois era quase adolescente
quando saiu daqui. E pode trazer os homens de Nakamura diretamente para a
nossa toca. Seremos presas fáceis para eles.
— Há algum outro lugar para onde possamos ir? — perguntou Max.
— Não — respondeu Richard. — A antiga toca das aves está vazia, mas
não teríamos meios de nos alimentar lá. A toca das octoaranhas também estava
vazia quando estive lá há alguns meses, mas não voltei mais ali desde que Nicole
chegou em Nova York. Porém, de acordo com o ocorrido comigo e com Nicole
quando saímos para explorar a região em volta, nossas amigas de tentáculos
dourados e pretos ainda devem estar por aí. E mesmo que não estejam vivendo
na sua antiga toca, teríamos problemas para conseguir comida se nos
mudássemos para lá.
— E a área atrás da tela preta, tio Richard? — perguntou Patrick. — Você
disse que é lá que eles fabricam nossa alimentação. Talvez a gente consiga
encontrar uns dois quartos por lá...
— Não tenho muita ilusão quanto a isso — falou Richard depois de algum
tempo —, mas sua sugestão é provavelmente a nossa única opção a essa altura.
A família decidiu que Richard, Max e Patrick fariam o reconhecimento da
área por trás da tela preta, para tentar descobrir onde a comida dos seres
humanos era produzida e para determinar se havia outro lugar adequado para
morarem. Robert, Benjy, as mulheres e as crianças ficariam na toca. A tarefa
deles era começar a elaborar os preparativos para uma rápida evacuação de seu
quartel-general, caso se tornasse necessário.
Antes de partir, Richard terminou de testar um novo sistema de rádio que
havia projetado nas horas vagas. O rádio era forte o bastante para os
exploradores e o resto da família se manterem em contato durante todo o tempo
em que estivessem separados. Em função da possibilidade de comunicação por
rádio, Richard e Nicole conseguiram convencer Max Puckett a deixar sua
espingarda na toca.

Os três homens não tiveram dificuldade para seguir o mapa do


computador de Richard e chegar à sala das caldeiras que Richard e Nicole haviam
visto na sua exploração anterior. Max e Patrick ficaram olhando assombrados
para as doze caldeiras imensas, o amplo setor de matérias-primas muito bem
organizado e a variedade de biotas andando por ali. A fábrica estava em grande
atividade. Na verdade, cada uma das caldeiras estava ocupada com algum tipo de
processo de fabricação.
— Tudo bem — disse pelo rádio para Nicole lá na toca. — Estamos aqui e
estamos prontos. Faça o pedido do jantar para vermos o que acontece.
Menos de um minuto depois, uma das caldeiras mais próximas dos três
homens terminou sua atividade. Nesse meio-tempo, não longe da barraca por trás
das caldeiras, três biotas parecendo um vagão com mãos começaram a mexer na
reserva de matéria-prima e a pegar rapidamente pequenas quantidades de vários
artigos diferentes. Depois convergiram para o sistema da caldeira que estava
desativado perto de Richard, Max e Patrick, e descarregaram os containers na
esteira rolante que entrava na caldeira. Imediatamente, os homens ouviram a
caldeira começar a funcionar. Um biota comprido e esguio, parecendo três grilos
amarrados em fila, cada um deles com uma carapaça arredondada, subiu na
esteira rolante quando o curto processo de fabricação estava quase no final.
Passado um instante, a caldeira parou novamente e o material processado saiu
pela esteira rolante. O biota-grilo segmentado retirou uma concha arredondada
de sua parte traseira, colocou toda a comida humana nas costas e saiu
rapidamente.
— Que coisa incrível — disse Max ao ver o biota- grilo desaparecer pelo
corredor por trás da barraca. Antes que qualquer um deles dissesse alguma outra
coisa, outro conjunto de vagões com mãos carregaram as esteiras rolantes com
varas grossas e longas, e, em menos de um minuto, a caldeira que processara a
comida funcionava com outra finalidade.
— Que sistema fantástico — exclamou Richard. — Deve haver um
processo complexo de interrupção, sendo o pedido de comida sempre prioritário.
Não posso acreditar que...
— Pare um instante — interrompeu Max — e repita o que você acabou de
dizer em inglês normal.
— Nós temos sub-rotinas de tradução automática lá na toca, que eu
programei quando estivemos aqui uns anos atrás — disse Richard entusiasmado.
— Quando Nicole digitava galinha, batata e espinafre no seu computador, uma
lista de comandos do teclado correspondendo às complexas químicas daqueles
alimentos específicos era registrada no seu buffer. Quando eu fazia sinal de que
estávamos prontos, ela digitava aquela seqüência de comandos no teclado. Esses
comandos eram imediatamente recebidos aqui, e o que obtínhamos era a
resposta a eles. Quando todos os sistemas de processamento estavam em
atividade, entretanto, o equivalente ramaiano de um computador desta fábrica
reconhecia que o pedido era de comida, e dava prioridade a ele.
— Você quer dizer, tio Richard — falou Patrick —, que o computador que
controla isso aqui interrompeu a operação daquela caldeira para ela fazer a nossa
comida?
— É isso mesmo — respondeu Richard.
Max se afastara um pouco e estava observando as outras caldeiras da
imensa fábrica. Richard e Patrick foram juntar-se a ele.
— Quando eu era um menininho de oito ou nove anos — disse Max —,
meu pai e eu fomos acampar pela primeira vez nas montanhas Ozarks, a várias
horas de distância da nossa fazenda. A noite estava linda, com o céu todo
estrelado. Eu me lembro que estava deitado de barriga para cima no meu saco de
dormir, olhando aquelas coisinhas brilhando no céu... Naquela noite, tive um
pensamento muito profundo para um menino de Arkansas daquela idade. Fiquei
pensando quantas crianças alienígenas, de alguma parte do universo, estariam
olhando as estrelas naquele exato momento e percebendo, pela primeira vez,
como o domínio delas era pequeno comparado à totalidade do cosmo.
Max virou-se e sorriu para seus dois amigos.
— Essa foi uma das razões para eu continuar fazendeiro — disse, com
uma risada. — Com as minhas galinhas e porcos, eu era sempre importante. Era
eu que lhes dava comida. Era um grande acontecimento quando o velho Max
aparecia no galinheiro...
Max fez uma pausa e os outros ficaram em silêncio.
— Acho que no fundo eu sempre quis ser astrônomo — continuou — para
ver se podia entender os mistérios do universo. Mas toda vez que pensava nos
bilhões de anos e trilhões de quilômetros, ficava deprimido. Não conseguia
agüentar a sensação de completa e total insignificância que tomava conta de
mim. Era como se uma voz dentro de mim dissesse sem cessar: "Puckett, você é
um cocô. Você é um zero absoluto."
— Mas conhecer essa insignificância, e especialmente ser capaz de medi-
la, torna os seres humanos muito especiais — disse Richard com serenidade.
— Agora estamos falando de filosofia — replicou Max —, e eu me sinto
completamente fora do meu elemento. Sinto-me bem com os animais da roça,
com tequila e até mesmo com aqueles temporais terríveis do centro-oeste. Essas
coisas aí — disse Max, balançando os braços na direção das caldeiras e da
fábrica — me amedrontam muito. Se quando me inscrevi para aquela colônia
marciana soubesse que veria máquinas mais inteligentes do que os homens...
— Richard, Richard — dizia Nicole pelo rádio, com voz aflita. — Temos
uma emergência aqui. Ellie acabou de voltar da costa norte e viu quatro barcos
grandes prontos para desembarcar... Ellie disse que tem certeza de ter visto um
dos homens com uniforme de polícia... E disse também que viu uma espécie de
arco-íris grande no sul... Vocês podem voltar para cá depressa?
— Não, não podemos — respondeu Richard. — Ainda estamos na sala das
caldeiras. Devemos estar a pelo menos três ou quatro quilômetros de distância...
Ellie disse quantas pessoas havia em cada barco?
— Acho que de dez a doze, papai — disse Ellie. — Não fiquei lá contando...
Mas não foi só os barcos que vi quando estava lá no alto. Quando eu vinha
correndo para a toca, o céu do lado sul iluminou-se com várias cores que deram
lugar a um arco-íris gigantesco... Foi perto de onde você disse que o Grande
Chifre devia estar.
Dez segundos depois, Richard gritou no rádio:
— Prestem atenção, Nicole, Ellie, todos vocês. Saiam imediatamente da
toca. Levem as crianças, os filhotes de aves, os melões, o material séssil, as duas
espingardas, toda a comida e o máximo possível de coisas pessoais que vocês
puderem carregar. Deixem as nossas coisas aí; já temos o bastante nas costas
para sobreviver em uma emergência. Vão diretamente para a toca das
octoaranhas e esperem por nós na sala grande, que costumava ser uma galeria
de fotografia... As tropas de Nakamura irão nos procurar primeiro na toca.
Quando eles não nos encontrarem e se Katie estiver junto, talvez nos procurem
na toca das octoaranhas. Mas acho que eles não vão atravessar todos aqueles
túneis...
— E você, Max e Patrick? — perguntou Nicole.
— Nós vamos voltar o mais depressa possível. Se alguém... aliás, Nicole,
deixe um transmissor ligado no volume máximo no Salão Branco e outro no
quarto das crianças. Assim, saberemos se há alguém na toca... De qualquer
forma, como eu ia dizendo, se nossa casa não tiver sido invadida, nós nos
encontraremos logo. Se os homens de Nakamura estiverem ocupando nossa toca,
tentaremos encontrar outra entrada aqui embaixo para a toca das octoaranhas.
Deve haver uma...
— Tudo bem, meu querido — interrompeu Nicole. — Temos de começar a
arrumar as coisas... Vou deixar o receptor ligado caso você precise de nós.
— Então você acha que estaremos mais seguros na toca das octoaranhas?
— disse Max, depois que Richard desligou o transmissor.
— É uma chance — respondeu Richard sorrindo. — Há muitos pontos
desconhecidos por trás da tela. E nós temos certeza de que não estaremos
seguros se a polícia e as tropas de Nakamura nos encontrarem... As octoaranhas
talvez nem estejam vivendo mais na toca. Além do mais, Nicole disse muitas vezes
que não temos uma prova irrefutável de que elas sejam hostis.

Os homens saíram dali o mais depressa possível. A certa altura, deram


uma parada para Patrick transferir um pouco da carga da mochila de Richard
para a dele. Richard e Max suavam muito quando chegaram no Y do corredor.
— Precisamos parar um instante — disse Max a Patrick, que ia na frente
dos dois homens mais velhos. — Seu tio Richard precisa descansar.
Patrick tirou uma garrafa de água de sua mochila e passou-a para o tio.
Richard bebeu avidamente, secou a testa com um lenço e um minuto depois
começou a correr de novo na direção da toca.
A uns quinhentos metros da pequena plataforma por trás da tela preta, o
receptor de Richard começou a captar ruídos indistintos do interior da toca.
— Talvez alguém da família tenha esquecido alguma coisa importante —
falou Richard, tentando ouvir melhor — e tenha voltado para pegar. Pouco
depois, os três homens ouviram uma voz que não conseguiram identificar.
Ficaram parados e esperaram.
— Parece que algum tipo de animal estava vivendo aqui — disse uma
segunda voz. — Por que não vem dar uma olhada?
— Droga! — disse a segunda voz. — Eles estiveram aqui recentemente...
Há quanto tempo será que partiram?
— Capitão Bauer! — gritou alguém. — O que o senhor quer que eu faça
com toda esse material eletrônico?
— Deixe aí por enquanto — respondeu a segunda voz. — Quando os
outros soldados chegarem, dentro de alguns minutos, decidiremos o que fazer.
Richard, Max e Patrick sentaram-se quietos no túnel escuro. Durante
cerca de um minuto não ouviram nada no receptor. Aparentemente nenhum dos
membros do grupo de busca estava no Salão Branco ou no quarto das crianças
naquela hora. Depois ouviu-se a voz de Franz Bauer de novo.
— O que é isso, Morgan? — perguntou Bauer. — Mal consigo ouvir você...
Há uma espécie de ruído... O quê? Fogos de artifício? Cores?... O que você está
dizendo? Tudo bem. Tudo bem. Vamos subir imediatamente.
Durante uns quinze segundos o receptor ficou em silêncio.
— Ah, aí está você, Pfeiffer — disse o capitão Bauer. — Junte os outros
homens e vamos voltar lá para cima. Morgan disse que viu uns fogos incríveis no
céu do lado sul. Os soldados já estavam impressionados com os arranha-céus e o
escuro. Eu vou subir para acalmar os nervos deles.
— Esta é a nossa chance — sussurrou Richard, levantando-se. — Eles vão
ficar fora da toca alguns minutos. — Começou a correr e depois parou. — Talvez
a gente precise se separar... Vocês se lembram de onde fica a toca das
octoaranhas?
Max sacudiu a cabeça.
— Eu nunca estive lá...
— Olhe aqui — disse Richard, passando seu computador portátil para
Max. — Digite um M e um P para ter uma vista geral de Nova York. A toca das
octoaranhas está marcada com um círculo vermelho... Se você apertar um L,
seguido de outro L, vai aparecer um mapa do interior da toca... Agora vamos,
enquanto ainda temos algum tempo.
Richard, Max e Patrick não encontraram soldados dentro da toca. Porém
dois guardas estavam postados a poucos metros de distância da saída para Nova
York. Felizmente os guardas estavam tão embevecidos com os fogos no céu de
Rama, que não ouviram os três homens subirem as escadas por trás deles. Como
medida de segurança, os três se separaram, cada um tomando um caminho
diferente para chegar à toca das octoaranhas.
Richard e Patrick chegaram ao seu destino com um minuto de diferença
um do outro, mas Max se atrasou. Por azar, o caminho que ele escolheu deu
numa das praças onde cinco a seis soldados estavam vendo os fogos. Max correu
por uma viela e escondeu-se atrás de um dos edifícios. Abriu o computador e
estudou o mapa no monitor, tentando imaginar um caminho alternativo para a
toca das octoaranhas.
Enquanto isso, o show espetacular dos fogos continuava. Max olhou para
cima e ficou maravilhado quando uma grande bola azul explodiu, jogando
centenas de raios de luz azul em todas as direções. Durante quase um minuto,
Max ficou olhando hipnotizado aquela exibição. Era mais linda do que tudo que
ele já tinha visto na Terra.
Quando ele finalmente chegou na toca das octoaranhas, desceu a rampa
depressa e entrou na sala da catedral, da qual saíam os quatro túneis que iam
dar nas outras partes da toca. Max digitou dois Ls no computador e o mapa do
interior da toca apareceu no monitor minúsculo. Ele ficou tão distraído com o
mapa que não percebeu logo o barulho de arrastar de escovas mecânicas, seguido
de um gemido baixinho e agudo.
Max só olhou para cima quando o barulho ficou mais alto. Quando
finalmente levantou a cabeça, a octoaranha grande estava de pé a uns cinco
metros dele. Ao ver aquela criatura, Max sentiu um arrepio na espinha. Ficou
imóvel e controlou-se para não sair correndo. O líquido cremoso da lente única da
octoaranha movia-se de um lado para o outro, mas o alienígena não avançou
para Max.
De um dos recortes paralelos nos dois lados da lente jorrou um jato roxo
em torno da cabeça esférica da octoaranha, seguido de jatos de outras cores,
todas desaparecendo no segundo corte paralelo. Quando a mesma cor foi
repetida, Max, com o coração batendo tão forte que parecia que ia pular pela
boca, sacudiu a cabeça e disse:
— Eu não compreendo.
A octoaranha hesitou um instante e depois levantou dois tentáculos do
chão, apontando claramente na direção de um dos quatro túneis. Como se
quisesse reforçar sua indicação, a octo arrastou-se naquela direção e repetiu o
gesto.
Max levantou-se e andou devagarinho na direção do túnel indicado,
tentando não se aproximar muito da octoaranha. Ao chegar na entrada, outra
série de raios coloridos passou pela cabeça do alienígena.
— Muito obrigado — disse Max gentilmente, virando-se e entrando pela
passagem.
Ele só parou para olhar o mapa quando já tinha caminhado uns três a
quatro metros no túnel. Enquanto caminhava, as luzes se acendiam
automaticamente à sua frente e se apagavam nos segmentos do túnel pelos quais
ele havia passado. Quando finalmente examinou o mapa com cuidado, descobriu
que não estava longe da sala indicada.
Alguns minutos depois, Max entrava com um riso nos lábios na câmara
onde o resto da família estava reunida.
— Vocês não vão acreditar quem eu acabei de ver — disse um instante
antes de Eponine abraçá-lo.
Logo depois que Max acabou de divertir o pessoal com a história de seu
encontro com a octoaranha, Richard e Patrick voltaram para a sala da catedral,
parando a cada cem metros para tentar ouvir atentamente os sons dos
alienígenas. Mas não ouviram nada, nem viram ou ouviram nada que indicasse
que os soldados despachados do Novo Éden estivessem nas vizinhanças. Quase
uma hora depois, Richard e Patrick voltaram para junto do grupo a tempo de
participar da discussão sobre o que deveria ser feito em seguida.
A grande família tinha comida bastante para cinco dias, ou talvez seis, se
as porções fossem racionadas com cuidado. Água havia à vontade na cisterna,
perto da sala da catedral. Todos concordaram logo que o grupo de busca do Novo
Éden, pelo menos o primeiro deles, provavelmente não ficaria muito tempo em
Nova York. Houve uma ligeira discussão sobre a possibilidade de Katie ter
indicado ou não ao capitão Bauer a localização da toca das octoaranhas. Sobre
um ponto crítico não havia o que discutir: durante um ou dois dias, eles corriam
grande risco de serem descobertos pelos outros humanos. Em conseqüência
disso, exceto para necessidades físicas, ninguém da família saía da sala grande,
na qual já estavam há trinta e seis horas.
No final daquele período, o grupo todo, especialmente os filhotes de aves e
os gêmeos, estavam com uma crise de claustrofobia. Richard e Nai levaram
Tammy, Timmy, Benjy e as crianças pequenas pela passagem, tentando em vão
mantê-las quietas, e as afastaram da sala da catedral, seguindo para o corredor
vertical com as estacas salientes que desciam até o fundo da toca das
octoaranhas. Richard, com Nikki nas costas quase o tempo todo, alertou várias
vezes Nai e os gêmeos sobre o perigo da área da qual se aproximavam. Mesmo
assim, logo que o túnel se alargou e eles chegaram ao corredor vertical, o
impetuoso Galileu subiu no buraco em forma de barril antes que sua mãe o
pudesse deter. Mas logo ficou paralisado de medo, e Richard teve de tirar o
menino do seu poleiro precário sobre duas estacas, logo abaixo do nível do
passadiço que rodeava a parte superior do imenso abismo. Os filhotes de ave,
felizes por poderem voar de novo, flutuaram livremente pela área e desceram
vários metros no abismo escuro, mas sem afundar demais a ponto de acionar a
próxima fileira de luz.
Antes de voltar para o grupo, Richard levou Benjy para uma rápida
inspeção do que ele e Nicole chamavam de museu das octoaranhas. Essa sala
grande, a centenas de metros do corredor vertical, ainda estava completamente
vazia. Algumas horas depois, por sugestão de Richard, metade da grande família
mudou-se para o museu, para que houvesse mais espaço para todos.
No terceiro dia de sua estada na toca das octos, Richard e Max decidiram
que alguém devia tentar descobrir se as tropas da colônia ainda estavam em Nova
York. Patrick foi a escolha lógica para ser o explorador da família. As instruções
de Max e de Richard a Patrick foram bem objetivas: ele deveria ir com cuidado até
a sala da catedral e depois subir a rampa para Nova York. Dali, usando a
lanterna e o computador portátil o mínimo possível, devia atravessar para a costa
norte da ilha e ver se os barcos ainda estavam lá. Qualquer que fosse o resultado
de sua investigação, ele deveria regressar diretamente à toca, para dar todas as
informações esperadas.
— Há outra coisa muito importante para você se lembrar — disse Richard.
— Se a qualquer hora você ouvir uma octoaranha ou um soldado, deve voltar
imediatamente para cá. Mas deve tomar um cuidado especial: em hipótese
alguma um humano pode ver você descendo para a toca. Você não pode fazer
nada que nos ponha em perigo.
Max insistiu com Patrick para levar uma das duas espingardas. Richard e
Nicole não discutiram. Depois de todos lhe desejarem boa sorte, Patrick partiu
para sua missão exploradora. Mal tinha andado quinhentos metros pelo túnel
quando ouviu um barulho à sua frente. Parou para escutar, mas não conseguiu
identificar nada. Algumas centenas de metros adiante, alguns sons começaram a
ficar mais distintos. Patrick ouviu definitivamente o ruído de escovas se
arrastando várias vezes. Ouviu também um barulho de objetos de metal batendo
uns nos outros ou contra a parede. Patrick ficou escutando durante alguns
minutos e, lembrando-se das instruções, voltou para onde estavam seus amigos.
Depois de uma longa discussão, Patrick foi despachado novamente para
sua missão exploratória. Desta vez disseram-lhe para se aproximar o mais
possível das octoaranhas e observá-las em silêncio o máximo que pudesse. Mais
uma vez, ele ouviu o arrastar das escovas à medida que se aproximava da sala da
catedral. Mas quando realmente chegou à sala grande no fundo da rampa, não
viu nenhuma octoaranha por lá. Para onde elas foram?, pensou. Seu primeiro
impulso foi virar-se e seguir na direção de onde viera. Mas como não havia
encontrado, nenhuma octoaranha ainda, decidiu que talvez fosse melhor subir a
rampa, sair para Nova York e continuar sua missão.
Patrick ficou chocado ao descobrir, um instante depois, que a saída da
toca das octos tinha sido lacrada com uma espessa combinação de varas de metal
e um material semelhante a cimento. Ele mal podia ver através da tampa, tão
pesada que todos os humanos juntos certamente não conseguiriam levantá-la.
Foram as octoaranhas que fizeram isso, pensou imediatamente, mas por que será
que nos prenderam aqui?
Antes de voltar com suas informações, Patrick inspecionou a sala da
catedral e viu que um dos quatro túneis de emergência também fora lacrado com
uma espécie de porta grossa ou portão. Esse deve ser o túnel que levava para o
canal, pensou. Patrick permaneceu ali mais uns dez minutos tentando ouvir o
som das octoaranhas, mas não ouviu mais nada.

11
— Então as octoaranhas nunca agiram com hostilidade? E o que vocês
dizem disso? Estamos encurralados — disse Max zangado, sacudindo a cabeça
com força. — Eu sabia desde o começo que era uma burrice vir para cá.
— Por favor, Max — disse Eponine. — Não vamos discutir agora. Ficar
brigando com todos aqui não vai adiantar nada.
Todos os adultos, exceto Nai e Benjy, tinham seguido pela passagem de
um quilômetro até a sala da catedral, para ver o que as octoaranhas haviam feito.
Os humanos estavam, na verdade, trancados dentro da toca. Dois dos três túneis
abertos que saíam da câmara davam no corredor vertical, e eles logo descobriram
que o terceiro dava em um depósito grande e vazio, sem saída.
— É bom a gente pensar em alguma coisa depressa — disse Max. — Nossa
comida só vai durar mais quatro dias, e não temos a menor idéia de como sair
daqui.
— Sinto muito, Max — disse Nicole —, mas ainda acho que a decisão de
Richard foi certa. Se tivéssemos ficado na nossa toca, teríamos sido capturados e
levados de volta para o Novo Éden, onde certamente seríamos executados...
— Talvez sim — interrompeu Max — e talvez não... Pelo menos as crianças
teriam sido poupadas. E acho que eles não matariam nem Benjy nem o médico...
— Tudo isso é retórica — falou Richard — e não resolve nosso problema
principal. Temos de pensar agora no que faremos.
— Tudo bem, gênio — disse Max em tom sarcástico. — Até agora o show
está sendo seu. O que você sugere?
Mais uma vez Eponine intercedeu.
— Você está sendo injusto, Max. Não é culpa de Richard estarmos nessa
situação... E, como eu já disse, não adianta...
— Ok, Ok — disse Max, andando na direção da passagem que levava para
o depósito. — Vou entrar nesse túnel para me acalmar e para fumar um cigarro
— falou, olhando para Eponine. — Quer dividir um comigo? Vão sobrar
exatamente vinte e nove cigarros depois que fumarmos este.
Eponine deu um sorriso sem graça para Nicole e Ellie.
— Ele está com raiva de mim porque eu não trouxe todos os nossos
cigarros quando saímos da toca — disse ela com calma. — Não se preocupem...
Max tem gênio ruim, mas logo melhora... Daqui a pouco a gente volta.
— Qual é o seu plano, querido? — perguntou Nicole a Richard, logo depois
que Max e Eponine saíram.
— Não temos muita escolha — disse Richard com ar sombrio. — Um
número mínimo de adultos deve ficar com Benjy, as crianças e as aves, e o resto
sai para explorar essa toca o mais rápido possível... Não consigo acreditar que as
octoaranhas realmente pretendam nos deixar aqui até morrermos de fome.
— Desculpe, Richard — Robert Turner falou pela primeira vez desde que
Patrick contara que a saída para Nova York estava barrada. — Mas você não está
de novo partindo do princípio de que as octoaranhas são de boa paz? Suponha
que elas não sejam ou, o que é mais provável na minha opinião, que a nossa
sobrevivência lhes seja totalmente indiferente, e que elas simplesmente nos
trancaram nesta toca para se protegerem de todos os humanos que apareceram
recentemente...
Robert parou, pelo visto tendo perdido o fio da meada.
— O que eu estava tentando dizer — continuou um instante depois — é
que as crianças, inclusive sua neta, estão em perigo tanto psicológico quanto
físico na nossa situação atual, e eu seria contra qualquer plano que as deixasse
desprotegidas e vulneráveis...
— Você está certo, Robert — interrompeu Richard. — Vários adultos",
inclusive pelo menos um homem, devem ficar com Benjy e as crianças. Na
verdade, Nai deve estar bem ocupada a essa altura... Por que você, Patrick e Ellie
não voltam para junto das crianças agora? Nicole e eu esperaremos por Max e
Eponine e nos encontraremos com vocês.
Richard e Nicole ficaram sozinhos depois que os outros se foram.
— Ellie disse que Robert anda muito irritado — falou Nicole com voz calma
—, mas não sabe expressar sua raiva de forma construtiva... Ele disse a Ellie que
acha que essa aventura foi um erro desde o começo, e passa horas a fio pensando
nisso... Ellie disse que está preocupada com a estabilidade emocional dele.
Richard sacudiu a cabeça.
— Talvez tenha sido um erro. Talvez você e eu devêssemos ter ficado aqui
sozinhos para o resto da vida. Eu só pensei...
Naquele instante Max e Eponine voltaram para a sala.
— Quero me desculpar com vocês dois — disse Max, estendendo a mão. —
Creio que fui dominado pelo medo e pela raiva.
— Obrigada, Max — falou Nicole. — Mas não precisa se desculpar. Seria
ridículo pensar que toda essa gente vá passar uma experiência dessas sem que
haja desentendimentos.
Todos estavam juntos no museu.
— Vamos examinar de novo o plano — falou Richard. — Nós cinco vamos
descer pelas estacas e explorar a área em volta da plataforma do metrô. Vamos
investigar com bastante cuidado todos os túneis que encontrarmos. Depois, se
não encontrarmos uma saída e se o trem grande do metrô estiver lá esperando,
Max, Eponine, Nicole e eu entraremos nele. Então Patrick voltará para cá.
— Você não acha que é perigoso nós quatro entrarmos no trem? —
perguntou Robert. — Por que não só dois de vocês primeiro? E se o trem do metrô
sair e nunca mais voltar?
— Estamos correndo contra o tempo — respondeu Richard. — Se não
tivéssemos tão pouca comida poderíamos fazer um plano mais cauteloso. Nesse
caso, só dois entrariam no trem do metrô. Mas e se o trem for a mais de um
lugar? Como já estava combinado que, por medida de segurança, exploraremos a
área sempre aos pares, poderíamos levar muito tempo para encontrar o caminho
da saída só com duas pessoas procurando.
Fez-se silêncio na sala até Timmy começar a grasnar para sua irmã. Nikki
chegou perto das aves e começou a fazer carinho nas suas asas aveludadas.
— Eu não pretendo ter todas as respostas — disse Richard. — Nem estou
subestimando a gravidade da situação, mas se houver uma forma de sairmos
daqui, e Nicole e eu achamos que deve haver, então é melhor começarmos a
procurar logo.
— Presumindo que vocês quatro tomem o trem do metrô — perguntou
Patrick —, quanto tempo devemos esperar por vocês aqui no museu?
— Esta pergunta é difícil — respondeu Richard. — Vocês têm comida para
mais quatro dias, e a água da cisterna deve mantê-los vivos um pouco mais ... Eu
não sei, Patrick. Acho que vocês devem ficar aqui pelo menos dois a três dias...
Depois disso, façam como acharem melhor... Se for possível, pelo menos um de
nós voltará para cá.
Benjy seguia a conversa com muita atenção. Ele compreendia mais ou
menos o que estava acontecendo, pois começou a chorar baixinho. Nicole foi
confortá-lo.
— Não se preocupe, filho. Tudo vai acabar bem. O homem-criança olhou
para a mãe e disse:
— Espero que sim, mamãe, mas estou com medo.
De repente, Galileu Watanabe deu um pulo para o outro lado da sala,
onde os dois rifles estavam encostados na parede.
— Se uma dessas octoaranhas entrar aqui — disse ele tocando no rifle
mais próximo, antes de Max tirá-lo de sua mão —, eu atiro nela. Bangue! Bangue!
Com aqueles gritos, as aves começaram a grasnar e a pequena Nikki a
chorar. Depois que Ellie secou as lágrimas da filha, Max e Patrick colocaram os
rifles no ombro e os cinco exploradores se despediram. Ellie foi até o túnel com
eles.
— Eu não queria dizer isso na frente das crianças — falou —, mas o que
nós devemos fazer se virmos uma octoaranha enquanto vocês estiverem fora?
— Tente não entrar em pânico — respondeu Richard.
— E não seja agressiva — continuou Nicole.
— Segure Nikki e saia correndo — disse Max, dando uma piscadela.

Nada de mais aconteceu enquanto eles desciam pelas estacas. Como há


anos, as luzes do nível mais baixo se acendiam quando alguém se aproximava de
uma área escura. Os cinco exploradores chegaram à plataforma do metrô em
menos de uma hora.
— Agora vamos ver se esses veículos misteriosos ainda estão funcionando
— disse Richard.
No meio da plataforma circular havia um pequeno buraco, também
redondo, com espetos de metal saindo dos lados, descendo nas profundezas
escuras. Nas duas extremidades opostas da plataforma, noventa graus à direita e
à esquerda de onde estavam os cinco, havia dois túneis escuros, cortados na
rocha e no metal. Um deles era grande, com cinco a seis metros de alto a baixo, e
o que ficava do lado oposto era bem menor. Quando Richard aproximou-se a
vinte graus do túnel maior, este de repente se iluminou, mostrando nitidamente
todo o seu interior. Parecia um grande cano de esgoto da Terra.
Os outros membros do grupo de exploração foram encontrar-se com
Richard assim que ouviram um ruído vindo do túnel. Em menos de um minuto,
um veículo subterrâneo veio velozmente de um canto distante e prosseguiu na
direção deles, parando com a parte dianteira a mais ou menos um metro do
ponto onde o corredor com estacas continuava a descer.
O interior do trem também era iluminado. Não havia bancos, apenas uns
canos verticais que desciam do teto até o chão, espalhados a esmo pelo vagão do
metrô. A porta de correr abriu-se uns quinze segundos depois que o trem parou.
Do lado oposto da plataforma, um veículo idêntico, mas exatamente com um
décimo do tamanho, parou uns cinco segundos depois.
Embora Patrick, Max e Eponine tivessem ouvido muitas vezes histórias
sobre os dois metrôs-fantasmas, a visão dos veículos deixou-os muito
apreensivos.
— Você está falando a sério, meu amigo? — perguntou Max a Richard,
depois que os dois examinaram rapidamente a parte externa do trem grande. —
Está pretendendo mesmo entrar nessa coisa maldita se não tivermos outro jeito?
Richard fez que sim.
— Mas ele pode ir parar em qualquer lugar — falou Max. — Não temos a
menor idéia do que é essa coisa, de quem a construiu, ou o que ela está fazendo
aqui. E depois que entrarmos ficaremos à mercê dela.
— É verdade — falou Richard com um sorriso. — Max, você entendeu
muito bem a situação.
Max sacudiu a cabeça.
— É bom encontrarmos alguma coisa nesse buraco dos infernos, pois não
sei se Eponine e eu...
— Tudo bem — disse Patrick ao aproximar-se dos dois homens. — Acho
que chegou a hora da próxima etapa da operação... Vamos, Max. Você está
pronto para descer mais um pouco pelas estacas?

Richard não tinha ali nenhum dos seus robôs inteligentes para colocar no
trem menor. Mas tinha uma máquina fotográfica em miniatura, com um precário
sistema de mobilidade que ele esperava que pesasse o suficiente para ativar o
sistema do trem menor do metrô.
— Em nenhuma hipótese — disse ele aos outros — o túnel pequeno será
uma saída para nós. Só quero saber por mim mesmo se houve alguma mudança
significativa nesses anos. Além do mais, não há nenhuma razão, pelo menos por
enquanto, para mais de dois de nós descermos lá para o fundo.
Enquanto Max e Patrick escorregavam devagar pelas estacas, e Richard
examinava pela última vez sua máquina fotográfica, Nicole e Eponine ficaram
passeando pela plataforma.
— Como você está indo, fazendeiro? — perguntou Eponine a Max, pelo
rádio.
— Até agora muito bem — respondeu ele. — Mas estamos só uns dez
metros abaixo de vocês. Estas estacas não ficam tão juntas umas das outras
como as de lá de cima, por isso temos de ser mais cautelosos.
— Seu relacionamento com Max deve ter se desenvolvido enquanto eu
estava na prisão — comentou Nicole um pouco depois.
— É verdade — respondeu Eponine, com naturalidade. — Para ser franca,
eu também me surpreendi com isso. Não pensava que um homem fosse capaz de
ter um caso sério com alguém que... você sabe... mas eu subestimei o Max. Ele é
realmente uma pessoa diferente. Por baixo daquele interior rude e machista...
Eponine parou ao ver o vasto sorriso de Nicole.
— Acho que Max não engana ninguém, pelo menos não os que o
conhecem bem. Aquele Max durão, dos palavrões, é uma fachada criada por
alguma razão naquela fazenda de Arkansas, provavelmente como autoproteção.
As duas mulheres ficaram algum tempo em silêncio.
— Mas acho que também subestimei Max — acrescentou Nicole. — Ele
merece ser admirado por gostar tanto de você, mesmo sem vocês dois poderem...
— Oh, Nicole — falou Eponine de repente, muito emocionada. — Não
pense que eu não quis, que não sonhei com isso. E o dr. Turner nos disse muitas
vezes que a possibilidade de Max contrair o RV-41 é muito remota se tomarmos
cuidado... Mas mesmo essa possibilidade muito remota me preocupa. E se por
acaso eu passasse para Max esse flagelo que está me matando? Como eu poderia
me perdoar por condenar o homem que amo tanto?
Os olhos de Eponine encheram-se de lágrimas.
— Nós somos íntimos, é claro — continuou ela —, e nos protegemos ao
nosso modo... E Max nunca se queixou. Mas posso dizer pelo seu olhar que ele
sente falta...
— Tudo bem agora — disse Max pelo rádio. — Estamos vendo o fundo uns
cinco metros abaixo de nós. Parece um chão normal, de onde saem dois túneis:
um do tamanho do túnel maior aí de cima, e o outro muito pequeno. Vamos
descer para inspecionar melhor.

Chegava a hora de os exploradores entrarem no trem do metrô. A máquina


fotográfica de Richard não encontrara nada de novo, e não havia definitivamente
nenhuma saída que os humanos pudessem usar no único nível da toca abaixo
deles. Richard e Patrick terminaram sua conversa particular, revendo em
detalhes o que o rapaz iria fazer quando voltasse para se encontrar com os
outros. Depois eles se juntaram a Max, Eponine e Nicole, e os cinco foram
andando lentamente pela plataforma, à espera do trem.
Eponine estava sentindo dor de estômago, como sentira aos quatorze
anos, pouco antes de expor seus trabalhos artísticos no orfanato de Limoges. Ela
respirou fundo e disse:
— Não tenho vergonha de dizer que estou com medo.
— Droga — falou Max —, você deve estar apavorada... Richard, como é
que vamos saber se esta coisa não vai despencar conosco por aquele penhasco
que você disse que existe?
Richard sorriu mas não respondeu até eles chegarem ao lado do trem.
— Tudo bem — disse depois. — Como nós não sabemos exatamente como
essa coisa é ativada, temos de tomar muito cuidado. Vamos todos entrar mais ou
menos ao mesmo tempo para evitar que as portas se fechem e o trem parta antes
de nós todos estarmos dentro.
Ninguém disse nada durante quase um minuto. Ficaram um ao lado do
outro, Max e Eponine no canto próximo ao túnel.
— Agora eu vou contar — disse Richard. — Quando eu disser três, todos
nós entraremos juntos.
— Posso fechar os olhos? — perguntou Max com um risinho. — Isso
ajudava um pouco quando eu era criança e andava na montanha-russa.
— Se preferir, pode — respondeu Nicole.
Os quatro entraram no trem e cada um deles segurou-se a um cano
vertical, mas nada aconteceu. Do outro lado da porta aberta, Patrick ficou
olhando para eles.
— Talvez o trem esteja esperando Patrick — disse Richard com calma.
— Não sei não — resmungou Max —, mas, se essa droga de trem não se
mexer em uns segundos, vou pular fora.
A porta fechou-se devagar logo depois do comentário de Max, dando tempo
para que cada um deles respirasse antes que o trem começasse a mover-se
velozmente pelo túnel iluminado.
Patrick acenou para eles e seguiu o trem com os olhos até ele desaparecer
na primeira esquina. Depois colocou o rifle no ombro e começou a descer pelas
estacas. Por favor, voltem depressa, pensou, antes que nós todos fiquemos
tomados de incerteza.
Patrick voltou para o nível de onde viera em menos de quinze minutos.
Depois de tomar um gole d'água do seu cantil, foi andando rapidamente pelo
túnel até o museu. Enquanto caminhava, ia pensando no que iria dizer a todos.
Ele nem notou que a sala estava escura quando atravessou o portal. Mas,
quando entrou e as luzes se acenderam, ficou um pouco desorientado. Não estou
no lugar certo, pensou de início, devo ter seguido pelo túnel errado. Não, continuou
a pensar, dando uma rápida olhada pela sala. A sala deve ser esta. Estou vendo
umas penas ali no canto, e as fraldas de Nikki...
A cada segundo que se passava seu coração batia mais forte. Onde
estarão eles?, dizia Patrick para si mesmo, vasculhando a sala com os olhos,
desesperado. O que pode ter acontecido com eles? Quanto mais olhava as paredes
vazias, lembrando-se de tudo o que haviam conversado antes da partida dos
cinco, mais Patrick percebia que sua irmã e seus amigos não poderiam ter saído
dali por vontade própria. Senão teriam deixado um bilhete! E Patrick ficou
procurando em cada cantinho da sala, mas não encontrou bilhete algum. Então
alguém, ou alguma coisa, deve tê-los forçado a sair, pensou.
Patrick tentou refletir com clareza, mas não conseguiu. Seu pensamento
mudava de uma coisa para outra, entre o que deveria fazer e as terríveis imagens
do que poderia ter acontecido. Aos poucos, concluiu que talvez eles tivessem
voltado para a primeira sala, aquela que sua mãe e Richard chamavam de galeria
de fotos, talvez porque as luzes do museu não estivessem funcionando bem ou
por alguma outra razão. Animado por essa idéia, saiu correndo pelo túnel.
Chegou à galeria de fotos três minutos depois. A galeria também estava
vazia, e ele sentou-se encostado na parede. Havia apenas duas direções que seus
companheiros poderiam ter seguido. Como Patrick não vira ninguém ao subir
pelas estacas, eles deveriam ter ido para a sala da catedral e para a saída
trancada. Enquanto descia pelo longo corredor, com a mão apertando seu rifle,
ele foi se convencendo de que as tropas de Nakamura não tinham saído da ilha, e
que eles tinham conseguido de alguma forma invadir a toca e capturar todo
mundo.
Logo antes de entrar na sala da catedral, Patrick ouviu Nikki gritando —
"Mamãe, mamãe!" —, e depois um chorinho triste. Patrick entrou no salão como
uma bala e, não vendo ninguém, subiu a rampa, na direção do grito da sobrinha.
Ao chegar perto da saída trancada, viu uma cena caótica. Nikki chorava
sem parar, e Robert Turner andava em círculo, como um louco, com os braços
estirados e os olhos virados para cima, dizendo sem parar: "Não, meu Deus, não!"
. Benjy soluçava num canto e Nai tentava confortar os gêmeos, sem muito
sucesso.
Quando viu Patrick, Nai deu um pulo e correu para ele.
— Oh, Patrick — falou, com as lágrimas escorrendo pelo rosto. — Ellie foi
levada pelas octoaranhas.

12
Patrick levou várias horas para conseguir montar uma história coerente a
respeito do que tinha acontecido depois que seu grupo de exploração partira da
sala do museu. Nai ainda estava em estado de choque, Robert não conseguia
falar mais do que um minuto sem cair no choro, e as crianças e Benjy
interrompiam com freqüência, dizendo coisas sem sentido. De início, Patrick só
conseguiu saber que as octoaranhas tinham entrado, levado Ellie e também as
aves, os melões-maná e o material séssil. Mais tarde, depois de muito perguntar,
compreendeu melhor como a coisa havia se passado.
Aparentemente, cerca de uma hora depois da partida dos exploradores,
mais ou menos na hora em que Richard, Patrick e os outros estavam na
plataforma do metrô, os humanos que tinham ficado na sala do museu ouviram o
ruído de escovas arrastadas do lado de fora da porta. Quando Ellie foi investigar e
viu as octoaranhas aproximando-se nas duas direções, voltou para a sala e
tentou acalmar Benjy e as crianças.
Quando a primeira octoaranha apareceu no portal, os humanos se
afastaram o máximo possível, abrindo caminho para as nove ou dez criaturas
passarem. No começo elas ficaram em grupo, mexendo as cabeças brilhantes de
onde saíam as mensagens coloridas com as quais se comunicavam. Depois de um
instante, uma delas deu um passo à frente, apontou diretamente para Ellie,
tirando do chão um dos tentáculos pretos e dourados, e expôs uma longa
seqüência de cores, que foi rapidamente repetida. Ellie achou (segundo Nai, mas
Robert insistia em dizer que Ellie sabia o que a octoaranha dizia) que os
alienígenas estavam pedindo os melões-maná e o material séssil. Foi apanhá-los
no canto e entregou-os para a octoaranha-chefe, que pegou os objetos com três
dos seus tentáculos ("uma cena inesquecível", exclamava Robert, "como elas
usam aquelas coisas e os cílios que têm por baixo") e passou-os para suas
subordinadas.
Ellie e os outros acharam que depois disso as octoaranhas sairiam, mas
estavam muito enganados. A octo-chefe continuou a encarar Ellie e passou sua
mensagem colorida. Outras duas octoaranhas começaram a mover-se lentamente
na direção de Tammy e Timmy.
— Não! — gritou Ellie. — Não façam isso.
Mas era tarde demais. As duas octoaranhas enrolaram seus vários braços
em torno dos filhotes de aves e os levaram embora, indiferentes aos seus
guinchos. Galileu Watanabe saiu correndo e atacou a octoaranha que tinha três
tentáculos em volta de Timmy, e ela simplesmente usou um quarto tentáculo
para levantar o garoto do chão e passá-lo para uma de suas colegas. Galileu foi
passado de mão em mão até ser colocado de volta no chão, no outro canto da
sala. As invasoras deixaram Nai consolar seu filho.
Àquela altura, três a quatro octoaranhas, as aves, os melões e o material
séssil já tinham desaparecido portal afora, mas ainda havia quatro octoaranhas
na sala, que ficaram conversando entre si por uns dez minutos. E durante esse
tempo, segundo Robert ("Eu não estava prestando muita atenção", dizia Nai.
"Estava apavorada e preocupada com os meus filhos"), Ellie observava as
mensagens coloridas das octoaranhas. A certa altura, Ellie levou Nikki para
Robert e coloçou-a nos braços dele. "Acho que entendi alguma coisa do que elas
disseram", falou Ellie (citação também de Robert), absolutamente lívida. "Elas
querem me levar também."
Mais uma vez a octoaranha-chefe andou na direção deles e começou a
falar através das cores, parecendo focalizar Ellie. O que aconteceu exatamente
nos dez minutos seguintes foi motivo de discussão entre Nai e Robert, com Benjy
em geral ficando do lado de Nai. A versão de Nai era de que Ellie tentara proteger
todos que estavam na sala, fazer uma espécie de trato com as octoaranhas. Além
de falar com elas, fazia vários gestos, para lhes dizer que iria com elas, se
garantissem que as outras pessoas da sala poderiam sair da toca em segurança.
— Ellie foi explícita — insistia Nai. — Explicou que estávamos trancados e
que não nos restava muita comida. Infelizmente as octoaranhas a pegaram antes
que ela tivesse certeza de que seu trato seria cumprido.
— Você é muito ingênua, Nai — disse Robert, com o olhar confuso e
sofrido. — Não compreende como essas criaturas são sinistras. Elas hipnotizaram
Ellie. É verdade. Assim que elas chegaram, quando Ellie ficou olhando com
atenção aquelas cores. Sei que ela estava fora de si. Toda aquela bobagem de
garantir que todos sairiam em segurança foi um subterfúgio. Ela queria ir com as
octoaranhas. Sua personalidade foi alterada ali, naquele lugar, com aquelas cores
loucas. E ninguém notou isso, só eu.
Patrick deu um bom desconto à versão do marido de Ellie, pois ele estava
enlouquecido. Mas Nai concordou com dois pontos dessa versão: Ellie não reagiu
nem protestou quando a primeira octoaranha a envolveu, e antes de desaparecer
da sala deixou instruções detalhadas para quem fosse ficar cuidando de Nikki.
— Como é que uma pessoa em seu juízo normal — disse Robert —, depois
de ter sido agarrada por um alienígena, pode falar calmamente sobre o cobertor
que sua filha segura quando está dormindo, dizer quando Nikki foi ao banheiro
pela última vez, ou coisa parecida... É claro que Ellie estava hipnotizada ou
drogada...
A explicação para o fato de todos estarem no patamar abaixo da saída
trancada foi dada de modo relativamente coerente. Depois que as octoaranhas
levaram Ellie, Benjy saiu correndo pelo corredor, gritando e atacando em vão as
octoaranhas pelas costas. Robert foi ao seu encontro e os dois seguiram Ellie e o
contingente alienígena até a sala da catedral. O portão estava aberto para o
quarto túnel. Uma das octoaranhas barrou Benjy e Robert com quatro grandes
tentáculos, e depois que as outras foram embora ela trancou o portão e se foi
também.

A viagem no metrô foi hilariante para Max, que se lembrou de um passeio


que fizera aos dez anos de idade a um grande parque de diversões perto de Little
Rock. O trem corria pelo túnel acima de uma espécie de cinta de metal e não
tocava em nada, o que levou Richard a imaginar que ele devia ser movido por
magnetismo.
O trem parou depois de dois minutos e a porta abriu-se depressa. Os
quatro exploradores viram uma plataforma vazia, de um branco lei toso, por trás
da qual havia um arco de cerca de três metros de altura.
— Segundo o plano A, creio que Eponine e eu devemos descer aqui —
disse Max.
— É verdade — falou Richard. — É claro que, se o metrô não continuar a
viagem, Nicole e eu nos encontraremos com vocês daqui a pouco.
Max deu a mão a Eponine e desceu para a plataforma. Assim que saíram
do vagão, a porta se fechou, e uns segundos depois o trem partiu em velocidade.
— Não é romântico? — perguntou Max, depois que eles deram adeus a
Nicole e Richard. — Aqui estamos nós dois, finalmente sozinhos. — Colocou os
braços em volta de Eponine e beijou-a. — Quero que você saiba, minha
francesinha, que eu te amo. Não tenho idéia de onde estamos, mas seja onde for,
estou contente de estar com você.
Eponine riu.
— Uma amiga minha do orfanato tinha a fantasia de ficar sozinha numa
ilha deserta com um famoso ator francês chamado Marcel duBois, que tinha um
peito colossal e braços como troncos de árvores. Eu me pergunto agora como ela
teria se sentido num lugar como este. — Olhou em volta e continuou: — Acho que
é melhor passarmos por baixo daquele arco.
Max deu de ombros.
— A menos que um coelho branco apareça e a gente caia numa espécie de
buraco...
Do outro lado do arco havia uma grande sala retangular de paredes azuis,
absolutamente vazia. A sala tinha uma única saída, que dava para um corredor
estreito e iluminado, paralelo ao túnel do metrô. Todas as paredes desse corredor,
que continuava nas duas direções, pelo menos até onde a vista de Max e Eponine
alcançava, tinham o mesmo tom de azul da sala.
— Para que lado vamos? — perguntou Max.
— Nessa direção dá para ver duas portas se abrindo para fora do metrô —
disse Eponine, apontando para a direita.
— E na outra direção há mais duas portas — falou Max, olhando para a
esquerda. — Por que não vamos até a primeira porta, damos uma olhada e depois
pensamos no que fazer?
De braços dados, eles andaram cinqüenta metros pelo corredor azul.
Chegando à porta, ficaram desapontados ao verem outro corredor azul idêntico,
de vários metros de extensão, com portas nas extremidades.
— Que merda — disse Max. — Isso aqui está parecendo uma espécie de
labirinto... Se a gente bobear acaba se perdendo.
— Então o que acha que devemos fazer? — perguntou Eponine.
— Acho que... devemos fumar um cigarro e discutir o assunto. Eponine
riu.
— Concordo plenamente com você — disse.

Os dois prosseguiram com muito cuidado. Cada vez que dobravam num
novo corredor azul, Max fazia marcas na parede com o batom de Eponine,
indicando todo o trajeto de volta para a sala por trás do arco. Ele também insistiu
que Eponine, mais hábil no computador do que ele, registrasse o trajeto também
no seu computador portátil.
— É para o caso de acontecer alguma coisa que retire as marcas que
deixei — disse Max.
No início a aventura estava divertida, e nas duas primeiras vezes em que
Max e Eponine tentaram voltar para o arco, para ver se conseguiam achar o
caminho, tiveram uma certa sensação de realização. Mas depois de pouco mais
de uma hora, quando a cada curva surgia mais um corredor azul, os dois
começaram a desanimar. A certa altura pararam, sentaram-se no chão e
fumaram outro cigarro.
— Por que uma criatura inteligente — disse Max soprando a fumaça no ar
— criaria um lugar desses? Ou nós estamos, sem saber, passando por uma
espécie de teste...
— Ou há alguma coisa aqui que eles não querem que seja encontrada
facilmente — terminou Eponine, tirando o cigarro de Max e dando uma tragada.
— Se for este o caso, deve haver um código simples definindo a localização dessa
coisa especial, um código como o daquelas fechaduras antigas, segundo à direita,
quarto à esquerda, e...
— Seguir em frente até de manhã — interrompeu Max, fazendo uma
careta. Em seguida deu um beijo em Eponine e levantou-se. — Então é melhor
assumirmos que estamos procurando uma coisa especial e organizar nossa busca
de forma lógica.
Eponine ficou de pé e olhou para Max com a sobrancelha franzida.
— O que você quis dizer com esta última frase?
— Não estou certo — ele respondeu, com uma risada —, mas a frase
pareceu muito inteligente.

Depois de andarem para cima e para baixo nos corredores azuis durante
quase quatro horas, Max e Eponine perceberam que estavam com fome. Assim
que começaram a comer a comida ramaiana, viram alguma coisa passar à sua
esquerda, num cruzamento de corredores. Max deu um pulo e correu até o
cruzamento. Ao chegar lá, notou que alguns segundos antes um veículo
minúsculo, de uns dez centímetros de altura, tinha feito uma curva à direita do
corredor seguinte. Max correu para a frente e chegou a ver o veículo desaparecer
por baixo de um pequeno arco cortado na parede de outro corredor azul, a uns
vinte metros de distância.
— Venha cá — gritou para Eponine. — Encontrei uma coisa.
Num segundo Eponine estava ao seu lado. A parede superior do pequeno
arco na parede ficava a apenas uns vinte e cinco centímetros do chão, por isso os
dois tiveram de ajoelhar-se e encolher-se um pouco mais para ver onde estava o
veículo. A primeira coisa que viram foram cinqüenta a sessenta criaturas
minúsculas, do tamanho de formigas, descendo do pequeno ônibus e espalhando-
se em todas as direções.
— Que droga é aquilo lá? — exclamou Max.
— Olhe, Max — disse Eponine excitada. — Olhe com cuidado... Aquelas
criaturazinhas são octoaranhas... Está vendo? São iguais àquela que você
descreveu para mim.
— Macacos me mordam — disse Max. — Você tem razão... Devem ser
bebês de octoaranhas.
— Acho que não — falou Eponine. — Bebês não entram assim naquelas
colméias, ou casas, ou sei lá o quê... Olhe ali, estou vendo uma espécie de canal,
e um barco...
— Onde está a máquina fotográfica? — gritou Max. — Vá lá pegar minha
máquina... Há uma verdadeira cidade em miniatura aqui.
Eponine foi correndo buscar a máquina que eles tinham colocado no chão
junto das mochilas, quando se sentaram para comer. Max continuou a olhar,
fascinado, aquele complexo mundo em miniatura do outro lado do arco. Um
minuto depois ele ouviu um grito abafado e sentiu um arrepio na espinha.
Seu idiota, pensou Max enquanto voltava para o lugar onde os dois tinham
parado para comer. Nunca, nunca largue o rifle.
Max fez a última curva e parou abruptamente. Ali onde tinham parado
para comer havia cinco octoaranhas, uma segurando Eponine com três
tentáculos e outra segurando o rifle. Uma terceira apanhara a mochila de
Eponine, onde ela guardava todos os seus artigos pessoais.
Eponine olhou para Max com horror e gritou:
— Por favor me ajude, Max...
Max deu um passo à frente mas foi barrado por duas octoaranhas. Uma
delas enviou uma série de mensagens coloridas pela cabeça.
— Não compreendo o que vocês estão falando — gritou Max com raiva. —
Mas soltem a moça.
Como se fosse um raio, Max passou pelas duas primeiras octos e estava
quase alcançando Eponine quando sentiu os tentáculos apertando seu braços e
seu peito. Por mais que esperneasse, foi tudo em vão. A criatura era
inacreditavelmente forte.
Três octoaranhas, inclusive a que tinha capturado Eponine, começaram a
se afastar pelo corredor azul.
— Max... Max... — gritou a moça em pânico. Mas ele não pôde fazer nada.
A octoaranha que o segurava não se moveu, e depois de um instante não deu
mais para ouvir os gritos de Eponine.
Max ficou enlaçado ali durante uns dez minutos, até sentir os poderosos
músculos que o prendiam se soltarem aos poucos.
— E agora? — disse, ao se ver livre. — O que mais vocês vão fazer?
Uma das octoaranhas apontou para a mochila dele, que ainda estava
encostada na parede. Max abaixou-se e tirou um pouco de água e de comida. As
octoaranhas conversaram em cores entre si enquanto Max, que sabia muito bem
que estava sendo vigiado, dava umas dentadas na comida.
Esses corredores são muito estreitos, pensou ele, considerando como
poderia fugir. E essas criaturas são muito grandes, especialmente com os seus
tentáculos. Acho que vou ter de esperar para ver o que acontece.
As duas octoaranhas não se moveram durante horas, e a certa altura Max
caiu no sono entre elas.

Quando Max acordou estava sozinho. Andou com cuidado até a primeira
esquina, olhou dos dois lados do corredor azul, mas não viu nada. Depois de
estudar durante um minuto as marcas de batom na parede, e fazer mais uns
rabiscos descrevendo o lugar da cidade das octoaranhas minúsculas, voltou para
a sala atrás da plataforma do metrô.
Max não sabia ao certo o que fazer. Passou vários minutos andando pelos
corredores azuis e de quando em vez gritando o nome de Eponine, mas tudo em
vão. Então decidiu sentar-se na plataforma e esperar o metrô. Depois de mais de
uma hora, quando estava disposto a voltar para a cidade em miniatura, ouviu o
trem se aproximando. Vinha na direção oposta aos corredores de estacas
verticais.
Quando o trem foi chegando, Max viu pela janela Richard e Nicole.
— Max! — gritaram eles ao mesmo tempo, antes que a porta se abrisse.
Os dois estavam extremamente agitados.
— Nós encontramos — dizia Richard, saindo para a plataforma. — Uma
sala gigantesca, com uma cúpula de uns quarenta metros de altura, com as cores
do arco-íris... Fica do outro lado do mar Cilíndrico; o trem do metrô atravessa o
mar em um túnel transparente... — Richard fez uma pausa enquanto o trem se
afastava.
— A sala tem banheiros, camas e água corrente — acrescentou Nicole
rapidamente.
— E comida fresca, acredite se quiser... umas frutas e verduras esquisitas,
mas que servem muito bem para todos...
— Onde está Eponine? — perguntou Nicole de repente, interrompendo
Richard no meio da frase.
— Ela foi embora — falou Max laconicamente.
— Embora? — disse Richard. — Mas como... para onde?
— Suas amigas não-hostis a levaram — falou Max secamente.
— O quê? — exclamou Richard.
Max contou a história devagar e com detalhes, sem omitir nada de
importante, e Richard e Nicole ouviram com atenção até ele terminar.
— Elas passaram a perna na gente — comentou Richard no final,
sacudindo a cabeça.
— Na gente não, em mim — falou Max enraivecido. — Elas fizeram com
que Ep e eu pensássemos que estávamos resolvendo uma espécie de quebra-
cabeça naquele labirinto de corredores azuis... Merda! Que merda!
— Não se culpe assim — disse Nicole com carinho, tocando no ombro de
Max. — Você não podia saber...
— Mas que estupidez colossal — falou Max, elevando a voz. — Eu trago
um rifle para me proteger, e onde está esse rifle quando nossas amigas de oito
patas aparecem? Encostado naquela parede de merda...
— Nós estivemos no começo em um lugar semelhante — disse Richard —,
só que todos os nossos corredores eram vermelhos, e não azuis. Nicole e eu
exploramos alguns durante uma hora e depois voltamos para a plataforma. O
trem do metrô nos apanhou dez minutos depois e atravessou o mar Cilíndrico.
— Você chegou a procurar Eponine? — perguntou Nicole. Max fez que
sim.
— Mais ou menos. Fiquei andando e gritando o nome dela por aí.
— Talvez fosse bom a gente gritar de novo — sugeriu Nicole.
Os três amigos voltaram para o mundo dos corredores azuis. Quando
saíram no primeiro cruzamento, Max explicou as marcas de batom na parede.
— Acho que seria melhor nos separarmos — disse Max. — Provavelmente
seria uma forma mais eficiente de encontrar Eponine... Por que não nos
encontramos na sala atrás do arco daqui a, digamos, uma meia hora?
Na segunda esquina, Max, que agora estava sozinho, não encontrou o
mapa de batom. Intrigado, tentou lembrar se tinha feito um mapa em cada curva,
ou se nunca tinha passado por ali... Enquanto pensava, sentiu uma mão em seu
ombro e quase morreu de susto.
— Epa! — disse Richard, vendo o ar assustado do amigo. — Sou eu... Você
não me ouviu chamar seu nome?
— Não — disse Max sacudindo a cabeça.
— Eu estava a apenas dois corredores de distância... Deve haver uma
fantástica redução acústica neste lugar... Bom, nem Nicole nem eu encontramos
nenhum dos seus mapas quando fizemos a segunda curva. Por isso não tínhamos
certeza...
— Que merda! — falou Max. — Aquelas imbecis espertas limparam as
paredes... Está vendo? Elas planejaram tudo isso desde o começo, e nós fizemos
exatamente o que elas queriam.
— Mas, Max — falou Richard —, elas não podiam prever com tantos
detalhes tudo que íamos fazer. Nem nós tínhamos um plano completo. Então
como elas podiam...
— Não posso explicar — disse Max. — Mas senti isso. Aquelas criaturas
esperaram deliberadamente para nos mostrar aquele veículo quando eu e
Eponine paramos para comer. Elas sabiam que nós iríamos atrás dele e que
teriam chance de agarrar Eponine... De certa forma estavam nos vigiando todo o
tempo...

Até mesmo Max concordou que não fazia sentido procurar mais por
Eponine naquele labirinto de corredores azuis.
— É claro que ela não está mais aqui — disse ele, com objetividade.
Enquanto o trio esperava o trem na plataforma, Richard e Nicole contaram
para Max mais detalhes do salão com a cúpula de arco-íris do lado sul do mar
Cilíndrico.
— O.K. — disse Max quando eles terminaram —, uma ligação é bem clara,
até mesmo para este fazendeiro de Arkansas. O arco-íris da cúpula está
obviamente ligado ao arco-íris do céu que distraiu as tropas de Nakamura. Então
esse pessoal do arco-íris, sejam eles quem forem, não quer que a gente seja
capturado nem morra de fome... Foram provavelmente eles que construíram o
metrô; pelo menos isso faz mais sentido para mim. Mas qual é a ligação entre o
pessoal do arco-íris e as octoaranhas?
— Antes de você nos contar que Eponine tinha sido raptada — falou
Richard —, eu estava quase certo de que eles eram uma entidade só. Agora já não
sei. O que você passou só pode ser interpretado como um ato hostil.
Max riu.
— Richard, você é muito jeitoso com as palavras. Por que continua a ter
dúvidas sobre aquelas cretinas horrorosas? Eu poderia esperar isso de Nicole,
mas de você! Essas octoaranhas já o prenderam durante meses, mandaram umas
criaturazinhas subirem pelo seu nariz e provavelmente mexeram no seu cérebro...
— Não temos certeza disso — disse Richard com calma.
— Tudo bem — falou Max. — Mas acho que você está se esquecendo de
muitas evidências...
Max parou quando ouviu o ruído familiar. O trem chegou, com a frente
voltada na direção da toca das octoaranhas.
— Então me diga — disse Max com um ar sarcástico, logo antes de
embarcarem —, por que este trem sempre segue na direção certa?

Patrick tinha conseguido convencer Robert e Nai a voltar para a sala do


museu, mas com grande dificuldade. Os dois adultos e as crianças estavam
muito traumatizados com o ataque das octoaranhas. Robert não conseguia
dormir, e os gêmeos eram atormentados por sonhos que os faziam acordar aos
gritos. Quando Richard, Nicole e Max apareceram, a comida quase tinha acabado
e Patrick já estava começando a fazer planos de racionamento.
Foi uma reunião tensa. Os dois raptos foram discutidos à exaustão,
deixando os adultos e até mesmo Nicole muito deprimidos. Ninguém se
entusiasmou muito com a notícia da cúpula de arco-íris do sul. Mas não havia
dúvida do que eles teriam de fazer. Richard fez um resumo da situação.
— Pelo menos lá debaixo da cúpula teremos comida — disse.
Eles juntaram todos os seus pertences em silêncio. Patrick e Max
carregaram as crianças pelo corredor vertical de estacas. Logo depois que todos
estavam na plataforma chegou o trem do metrô, que não parou em nenhuma das
duas estações intermediárias. Como Max previra, ele continuou pelo túnel
transparente através do mar Cilíndrico. Estranhas e maravilhosas criaturas
marinhas do lado de fora da parede do túnel, muito provavelmente biotas,
fascinaram as crianças e fizeram Richard lembrar-se da sua viagem a Nova York,
anos antes, quando foi procurar Nicole.
O amplo salão debaixo da cúpula na outra extremidade da linha do metrô
era verdadeiramente espantoso. No início, Benjy e as crianças se interessaram
mais pela variedade de comidas novas espalhadas sobre uma mesa comprida em
um lado da sala, mas os adultos estavam pasmos. Olhavam não só as brilhantes
cores do arco-íris acima de suas cabeças, mas também examinavam as alcovas
do fundo da plataforma, onde se localizavam os banheiros e as suítes individuais.
Max calculou as dimensões do andar principal: cinqüenta metros de lado
a lado, no seu ponto mais largo, e quarenta metros da ponta da plataforma do
metrô até as paredes brancas e as entradas para as alcovas na parte de trás do
salão. Patrick foi conversar com Max, que estava de pé ao lado da fenda cortada
na plataforma para o metrô, enquanto os outros escolhiam suas suítes.
— Sinto muito sobre Eponine — falou Patrick, pondo a mão no ombro do
amigo.
Max deu de ombros.
— De certa forma o desaparecimento de Ellie foi pior. Eu não sei se Robert
ou Nikki vão conseguir superar isso completamente.
Os dois homens ficaram lado a lado, olhando o túnel longo, escuro e vazio.
— Sabe, Patrick? — falou Max com tristeza. — Eu gostaria de convencer o
fazendeiro que existe em mim de que nossos problemas terminaram e que o
pessoal do arco-íris tomará conta de nós.
Kepler chegou correndo, segurando um legume comprido parecendo uma
cenoura verde.
— Sr. Puckett, o senhor precisa provar isso. É uma delícia.
Max aceitou o presente do meninozinho, enfiou o legume na boca e deu
uma dentada.
— É bom mesmo, Kepler — disse ele, fazendo um carinho na cabeça dele.
— Muito obrigado.
Kepler voltou correndo para onde estavam os outros, e Max ficou
chupando o legume devagar.
— Sempre cuidei muito bem dos meus porcos e das minhas galinhas —
disse a Patrick. — Eles tinham bastante comida e uma boa condição de vida. —
Max mostrou com a mão direita a cúpula e a mesa cheia de comida. — Mas eu
também retirava os animais, alguns de cada vez, quando chegava a hora de
matá-los ou vendê-los no mercado.
A OPERAÇÃO ARCO-ÍRIS

1
Nicole estava deitada de costas, acordada no meio da noite. Na luz fraca
do quarto ela via Richard dormindo profundamente ao seu lado. A uma certa
altura ela levantou-se quietinha e atravessou o quarto, saindo para o grande
salão da sua casa temporária.
O processo que controlava a iluminação facilitava o sono dos humanos,
reduzindo consideravelmente a claridade da cúpula de arco-íris durante
aproximadamente oito horas em cada período de vinte e quatro horas. Nesses
intervalos de "noite", o salão debaixo da cúpula ficava ligeiramente iluminado, e
os quartos individuais, incrustados nas paredes e sem luz própria, ficavam bem
escuros e possibilitavam um sono reparador.
Durante várias noites consecutivas Nicole vinha dormindo mal, acordando
no meio de sonhos aflitivos dos quais não conseguia se lembrar. Naquela noite
específica, enquanto lutava em vão para recordar-se das imagens que haviam
perturbado seu sonho, Nicole andou lentamente em volta do grande salão
circular, no qual sua família e seus amigos passavam a maior parte do tempo. Na
extremidade do salão, perto da plataforma vazia do metrô, parou e ficou olhando
o túnel escuro que ia dar no mar Cilíndrico.
O que está acontecendo aqui?, pensou. Que poder ou inteligência estará
nos mantendo agora?
Fazia quatro semanas que o pequeno contingente humano chegara àquela
magnífica caverna construída por baixo do Hemicilindro Sul de Rama. As novas
acomodações tinham sido projetadas especificamente para eles, com um
considerável esforço. Os quartos e banheiros das alcovas eram semelhantes aos
do Novo Éden. O primeiro trem de metrô que voltou depois de eles terem chegado
à cúpula trouxera mais comida e água, e também sofás, cadeiras e mesas para
mobiliar as salas. Os humanos receberam até pratos, copos e utensílios de
cozinha. Quem-, ou o quê, sabia tanto sobre a atividade diária deles para lhes
fornecer materiais tão detalhados?
É claro que foi alguém que vem nos observando cuidadosamente, pensou
Nicole. Lembrou-se da Águia e percebeu que estava sendo otimista. Mas quem
mais poderia ter sido? Só os ramaianos e a Inteligência Nodal têm bastante
informação...
Seus pensamentos foram interrompidos por um barulho vindo de trás.
Nicole virou-se e viu Max Puckett chegando do outro lado do salão.
— Você também não consegue dormir? — perguntou ele ao chegar perto
de Nicole.
Nicole sacudiu a cabeça.
— Nessas últimas noites tenho tido sonhos ruins.
— Eu continuo aflito com Eponine. Ainda vejo o terror nos olhos dela
quando a levaram à força. — Max virou-se em silêncio e olhou para o túnel do
metrô.
E você, Ellie, pensou Nicole, sentindo uma enorme ansiedade, está segura
com as octoaranhas? Ou Max está certo a respeito delas? Richard e eu estamos
fantasiando quando dizemos que as octos não pretendem nos fazer mal?
— Não consigo mais ficar aqui assim — disse Max para Nicole. — Preciso
fazer alguma coisa para ajudar Eponine... Ou pelo menos me convencer de que
estou tentando.
— Mas o que você pode fazer, Max? — perguntou Nicole depois de uma
curta pausa.
— Nosso único contato com o mundo lá fora é esse maldito metrô — falou
Max. — Da próxima vez em que o trem trouxer comida e água, que deve ser hoje
à noite ou amanhã, vou entrar e esperar lá dentro até ele partir de novo. Só vou
descer quando o trem parar, e então vou tentar encontrar uma octoaranha e fazer
com que ela me capture.
Nicole percebeu o desespero no rosto do amigo.
— Isso é uma ilusão sua — disse ela com carinho. — Você só vai
encontrar uma octoaranha se elas quiserem... Além do mais, nós precisamos de
você...
— Que merda, Nicole, eu não sou necessário aqui — falou Max elevando a
voz. — Não temos absolutamente nada para fazer, a não ser conversar e brincar
com as crianças. Pelo menos na toca de vocês nós sempre podíamos dar uma
volta em Nova York... Enquanto isso, Eponine e Ellie podem estar mortas, ou
desejando estar. Está na hora de fazermos alguma coisa...
Enquanto Max falava surgiram as luzes a distância no túnel do metrô.
— Lá vem o trem de novo. — Eu te ajudo a descarregar depois que acabar
de arrumar minhas coisas — disse Max, correndo para o seu quarto.
Nicole ficou esperando o trem se aproximar. Como sempre, as luzes
apareciam na frente quando ele zunia pelo túnel. Uns minutos depois o trem
entrou na sua fenda, uma incisão no chão circular, e parou abruptamente.
Quando as portas se abriram, Nicole foi examinar o que havia lá dentro.
Além de quatro grandes potes de água havia uma quantidade de produtos
frescos que os humanos tinham aprendido a comer e a gostar, e um tubo grande
com uma substância pegajosa, com gosto de laranja e mel. Mas onde é plantada
toda essa comida?, perguntou Nicole a si mesma pela centésima vez, enquanto
descarregava os alimentos, lembrando-se das várias discussões familiares sobre o
assunto. Todos acabavam sempre concluindo que devia haver grandes fazendas
em algum lugar no Hemicilindro Sul.
Quanto a quem fornecia tudo aquilo para eles, cada um tinha uma
opinião diferente. Richard tinha certeza de que eles eram alimentados pelas
próprias octoaranhas, basicamente porque todos os alimentos passavam pelo
território que ele considerava ser delas. Era difícil argumentar com essa lógica.
Max concordava que os alimentos talvez fossem fornecidos pelas octos, mas
achava que elas deviam ter segundas intenções. Não iriam alimentá-los com fins
humanitários.
Por que as octoaranhas seriam nossas benfeitoras?, pensava Nicole. Eu
concordo com Max quando ele diz que não faz sentido elas nos alimentarem e ao
mesmo tempo raptarem Eponine e Ellie... Não poderia haver outra espécie
interessada em interceder por nós? Apesar da caçoada de Richard quando os dois
estavam na intimidade do seu quarto, uma parte de Nicole se prendia
obstinadamente à idéia de que devia haver um "pessoal do arco-íris",
hierarquicamente superior às octoaranhas e interessado na preservação dos
humanos vulneráveis, e que eram eles quem ordenavam que as octoaranhas os
alimentassem.
No meio das coisas trazidas no trem havia sempre uma surpresa. Dessa
vez, no fundo do carro, Nicole viu seis bolas de vários tamanhos, cada uma com
uma cor mais brilhante que a outra.
— Olhe, Max — disse Nicole, que tinha voltado com sua mochila e estava
ajudando-a a esvaziar o carro. — Eles mandaram até bolas para as crianças
brincarem.
— Que maravilha! — disse Max com sarcasmo. — Agora podemos apreciar
as crianças brigarem para ver quem fica com a bola mais bonita.
Quando os dois terminaram de tirar tudo do carro, Max entrou e sentou-
se no chão.
— Quanto tempo você vai esperar aí? — perguntou Nicole.
— O tempo que for preciso.
— Você contou o que vai fazer a alguma outra pessoa?
— É claro que não — respondeu Max com veemência. — Por que eu iria
contar?... Nós não vivemos numa democracia aqui — disse ele, inclinando-se
para a frente. — Desculpe, Nicole, mas eu estou enfurecido. Eponine foi raptada
há um mês, meus cigarros acabaram, e eu me enfureço com facilidade. — Forçou
um sorriso e continuou: — Clyde e Winona me diziam, quando eu agia assim, que
meu pavio era muito curto.
— Tudo bem, Max — disse Nicole um pouco depois, abraçando-o antes de
ir embora. — Espero que você não corra perigo aonde quer que resolva ir.
O trem não partiu, mas Max recusou-se a sair de lá até mesmo para ir ao
banheiro. Seus amigos lhe levaram comida, água e o material necessário para que
ele mantivesse o trem limpo. No final do terceiro dia, o suprimento alimentar
começou a ficar escasso.
— Alguém precisa falar com Max — disse Robert aos adultos, depois que
as crianças foram dormir. — Está claro que o trem não vai se mover do lugar
enquanto ele estiver lá dentro.
— Estou pensando em discutir essa situação com ele amanhã de manhã
— falou Nicole.
— Mas já estamos quase sem comida agora — protestou Robert. — E não
sabemos quanto tempo leva...
— A gente pode racionar o que sobrou — interrompeu Richard — e fazer
com que a comida dure pelo menos mais uns dois dias... Olhe, Robert, nós todos
estamos tensos e cansados... É melhor falarmos com Max depois de uma boa
noite de sono.
— E o que vamos fazer se Max se negar a sair do trem? — Richard
perguntou a Nicole, quando eles ficaram sozinhos.
— Não sei. Patrick me fez essa mesma pergunta hoje à tarde... Ele está
com medo do que poderá acontecer se tentarmos forçar Max a sair de lá... Patrick
disse que Max está cansado e muito bravo.
Richard já tinha pegado no sono, mas Nicole continuou a fazer
conjecturas sobre a situação de Max. Um confronto deve ser evitado a todo custo,
pensou ela. Por isso é melhor eu falar com ele sozinha, sem ninguém por perto...
Mas o que vou dizer? E como devo reagir se Max se negar a me atender?
Quando Nicole finalmente dormiu estava exausta. Mais uma vez seus
sonhos foram aflitivos. No primeiro deles, a vila de Beauvois estava pegando fogo,
e ela não conseguia encontrar Geneviève. De repente o sonho mudou e Nicole viu-
se com sete anos, na Costa do Marfim, participando de uma cerimônia Poro. Ela
nadava seminua no pequeno lago no centro de um oásis. Nas margens do lago
havia uma leoa rondando, procurando a menina que tinha mexido no seu filhote.
Quando Nicole subiu à tona para respirar a leoa tinha ido embora, mas três
octoaranhas patrulhavam o lago.
— Mamãe, mamãe — Nicole ouviu Ellie dizendo.
Olhando por cima da água, Nicole tentou ver se havia alguém na margem
do lago.
— Nós estamos bem, mamãe — dizia Ellie nitidamente. — Não se
preocupe conosco.
Mas onde estava Ellie? Em seu sonho, Nicole viu uma silhueta humana na
mata por trás de três octoaranhas, e chamou:
— Ellie, é você, Ellie?
A figura escura respondeu "Sou eu" com a voz de Ellie e afastou-se,
ficando bastante visível à luz do luar. E Nicole reconheceu imediatamente aqueles
dentes brancos e brilhantes.
— Omeh — gritou ela, com um arrepio na espinha. — Omeh... Nicole
acordou com uma cutucada insistente, e viu Richard sentado na cama ao seu
lado.
— Você está bem, querida? — perguntou ele. — Você estava gritando o
nome de Ellie.... e de Omeh.
— Tive mais um dos meus pesadelos — falou Nicole levantando-se e
vestindo a roupa. — Alguém me disse no sonho que Eponine e Ellie estão bem.
Quando Nicole terminou de se vestir, Richard perguntou:
— Aonde você vai a essa hora?
— Vou falar com Max — respondeu ela.
Nicole saiu depressa do banheiro, passou para o salão debaixo da cúpula,
e ao olhar para cima viu uma coisa que não se lembrava de ter visto antes.
Parecia um desembarcadouro ou uma plataforma, cortada uns sete metros
abaixo da cúpula. Por que eu nunca vi aquilo antes?, ficou pensando enquanto
corria para o metrô. Será que as sombras são diferentes durante o dia? Ou será
que o desembarcadouro foi construído recentemente?
Max estava dormindo por cima de uma bola no canto do trem. Nicole
entrou devagarinho e, antes de tocar nele, ouviu-o murmurar o nome de Eponine
duas vezes e balançar a cabeça.
— Sim, querida — disse ele nitidamente.
— Max — chamou Nicole. — Acorde, Max. Quando ele acordou parecia ter
visto um fantasma.
— Eu tive um sonho fantástico, Max — falou Nicole. — Agora sei que Ellie
e Eponine estão bem... Vim pedir para você sair daqui para que eles nos mandem
mais comida. Sei que você quer muito fazer alguma coisa...
Nicole parou. Max tinha se levantado e preparava-se para sair do trem,
ainda com a mesma expressão assombrada no rosto.
— Vamos embora — disse ele.
— Agora mesmo? — perguntou Nicole surpresa, ao não encontrar
resistência da parte dele.
— É — disse ele descendo do trem. Um instante depois de Nicole ter
descido as portas se fecharam e o veículo afastou-se rapidamente.
— Quando você me acordou — disse Max, vendo o trem desaparecer —, eu
estava no meio de um sonho. Estava falando com Eponine. Um segundo antes de
ouvir a sua voz, ela me disse que você ia me trazer uma mensagem importante.
Max estremeceu, depois riu e começou a andar na direção das alcovas.
— É claro que eu não acredito nessa merda toda, mas foi de fato uma
grande coincidência.

O trem voltou antes de escurecer, dessa vez com dois carros. O da frente
era brilhante e aberto, cheio de comida e água como sempre. O segundo estava
totalmente escuro, e as portas e janelas continuaram fechadas.
— Muito bem, muito bem — disse Max, andando para a ponta da fenda do
metrô e tentando em vão abrir a porta do segundo carro. — Vamos ver o que há
aí.
Depois que a comida e a água foram retiradas, o trem não partiu como de
costume. Os humanos esperaram, mas o segundo carro misterioso recusava-se a
expor seus segredos. A uma certa altura, Nicole e seus amigos resolveram ir
jantar. A conversa durante a refeição foi desanimada e cheia de especulações
sobre o novo invasor.
Quando o pequeno Kepler inocentemente sugeriu que talvez Eponine e
Ellie estivessem dentro do carro escuro, Nicole contou de novo a história do dia
em que ela encontrara Richard em coma, depois de uma longa estada com as
octoaranhas. E um pressentimento espalhou-se entre eles.
— Nós devíamos ficar de vigília a noite toda — sugeriu Max depois do
jantar — para que não haja possibilidade de algum truque enquanto estivermos
dormindo. Eu dou o primeiro plantão de quatro horas.
Patrick e Robert também se ofereceram como voluntários. Antes de irem
para a cama, todos, inclusive Benjy e as crianças, foram até a ponta da
plataforma e ficaram olhando o trem.
— O que pode haver lá dentro, ma-mamãe? — perguntou Benjy.
— Não sei, querido — respondeu Nicole, abraçando o filho. — Eu
realmente não tenho idéia.
Na manhã seguinte, uma hora antes de as luzes da cúpula se
intensificarem, Richard e Nicole foram acordados por Patrick e Max.
— Venham — disse Max todo agitado —, vocês precisam ver uma coisa.
No centro do salão principal havia quatro grandes criaturas pretas,
segmentadas, com os dois lados simétricos, forma e estrutura de formigas. Em
cada um dos três segmentos do seu corpo prendiam-se um par de pernas e um
par de acessórios desdobráveis, que se ocupavam em empilhar materiais. Era
uma maravilha apreciar aquelas criaturas. Cada um dos braços longos de
serpente tinha a versatilidade da tromba de um elefante, com uma habilidade
adicional (e útil). Quando um braço não estava sendo usado para levantar alguma
coisa ou para equilibrar um peso carregado pelo membro oposto, ele se enfiava
dentro da sua cápsula na parte lateral, e aí ficava enroscado até voltar a
funcionar. Portanto, quando esses seres alienígenas não estavam
desempenhando nenhuma tarefa, seus braços não eram vistos.
Os humanos, estarrecidos, continuaram a observar aquelas criaturas
bizarras, de quase dois metros de comprimento e um metro de largura, que
esvaziaram rapidamente o conteúdo do carro escuro do metrô, examinaram as
pilhas e depois partiram no trem. Assim que os alienígenas desapareceram, Max,
Patrick, Richard e Nicole foram examinar as pilhas. Havia objetos de todas as
formas e tamanhos, mas o objeto dominante era uma peça chata e longa
parecendo um degrau de escada.
— Se me pedissem para dar um palpite — disse Richard pegando uma
pecinha com forma de caneta-tinteiro —, eu diria que a resistência dessa coisa
está entre o cimento e o aço.
— Mas para que serve isso, tio Richard? — perguntou Patrick.
— E quem são eles? — perguntou Max. Richard deu de ombros e sacudiu
a cabeça.
— Essas criaturas que acabaram de sair me pareceram animais
domésticos avançados, capazes de desempenhar complexas funções em
seqüência, mas não de pensar.
— Então eles não são o pessoal do arco-íris de quem a mamãe fala? —
perguntou Patrick.
— É claro que não — disse Nicole com um sorriso.

Os outros humanos, inclusive as crianças, foram detalhadamente


informados sobre as novas criaturas durante o café da manhã. Todos os adultos
concordaram que se aqueles alienígenas voltassem, como eles esperavam,
ninguém devia interferir em nenhuma de suas tarefas, a não ser que ficasse claro
que suas atividades constituíam alguma espécie de perigo.
Quando o trem do metrô parou na sua fenda, três horas depois, dois dos
novos seres saíram do carro da frente e foram para o centro do salão principal,
carregando um potinho no qual a toda hora enfiavam um dos braços e iam
deixando marcas vermelhas e brilhantes no chão. Essas linhas vermelhas
circunscreveram uma área que incluía a plataforma do metrô, todo o material que
fora empilhado e mais ou menos metade do salão.
Em seguida, mais uns dez desses animais enormes com acessórios em
forma de troncos saíram dos dois carros do metrô, carregando nas costas umas
estruturas curvilíneas grandes e pesadas. Por trás deles vinham duas
octoaranhas, com cores extremamente brilhantes girando em volta das suas
cabeças esféricas. As octos andaram pelo meio do salão, inspecionaram as pilhas
de material e ordenaram que as criaturas formigas começassem uma espécie de
construção.
— Então a coisa é essa — disse Max para Patrick quando os dois
observavam a cena a distância. — São nossas amigas octoaranhas que controlam
tudo por aqui. Mas que diabo elas estão fazendo?
— Quem pode saber? — disse Patrick, impressionado com o que via.
— Olhe, Nicole — disse Richard —, por cima daquela pilha grande. Aquela
formigona está definitivamente lendo as cores da octoaranha.
— E o que nós vamos fazer agora? — disse Nicole baixinho.
— Eu acho que devemos olhar e esperar — respondeu Richard.

A construção toda foi feita dentro das linhas vermelhas pintadas no chão.
Várias horas depois, quando outra carga de metrô com os componentes
curvilíneos foi retirada, a forma da construção ficou bem clara. De um lado da
sala estava sendo levantado um cilindro vertical de quatro metros de diâmetro,
com a parte do alto colocada no mesmo nível do fundo da cúpula. Dentro do
cilindro, os degraus da escada foram colocados de forma a subirem em espiral no
centro da estrutura.
O trabalho continuou durante trinta e seis horas ininterruptas. As
octoaranhas arquitetas supervisionavam as formigas gigantescas de braços
versáteis. Só houve uma única interrupção significativa durante a atividade.
Kepler e Galileu, cansados de observar durante horas a construção alienígena,
deixaram inadvertidamente uma bola cair na tinta vermelha e em cima de uma
formiga. O trabalho parou no mesmo instante, e uma octoaranha retirou a bola e
verificou se a operária estava bem. Com um movimento ágil de dois dos seus
tentáculos, a octoaranha jogou a bola de volta para os meninos e o trabalho foi
retomado.
Todos, menos Max e Nicole, estavam dormindo quando os alienígenas
terminaram a escada, pegaram a sobra dos materiais e partiram no trem do
metrô. Max foi até o cilindro e enfiou a cabeça para dentro.
— Muito impressionante — disse com um ar esquivo. — Mas para que
serve?
— Deixe de brincadeira— disse Nicole. — É claro que eles estão esperando
que a gente suba as escadas.
— Que merda, Nicole. Eu sei disso. Mas por quê? Por que essas
octoaranhas querem que a gente suba?... Você sabe que elas vêm nos
manipulando desde que nós entramos na toca delas. Raptaram Eponine e Ellie,
nos deslocaram para o Hemicilindro Sul e recusaram-se a me deixar voltar para
Nova York... O que aconteceria se não seguíssemos o plano delas?
Nicole ficou olhando para o amigo.
— Max, será que dá para adiar essa conversa para amanhã de manhã,
quando estivermos todos juntos?... Estou muito cansada.
— Certamente — disse Max. — Mas diga ao seu marido que eu acho que
devíamos fazer alguma coisa imprevisível, como por exemplo voltar andando pelo
túnel até a toca das octoaranhas. Eu não sei como tudo isso vai acabar.
— Não temos todas as respostas, Max — disse Nicole com um ar cansado
—, mas eu realmente acho que temos de cumprir os desejos das octoaranhas
enquanto elas controlarem nosso suprimento de comida e de água... Numa
situação como esta, talvez a gente deva simplesmente ter fé.
— Fé? — disse Max. — Esta palavra é uma desculpa para não se pensar
— falou ele, voltando para o cilindro. — E essa escada fantástica tanto pode nos
levar para o inferno como para o céu.

2
Na manhã seguinte, o trem do metrô voltou com mais comida e água.
Depois que ele partiu e todos inspecionaram a estrutura cilíndrica, Max
comentou que estava na hora de os humanos mostrarem que estavam cansados
de serem dominados pelas octoaranhas. Sugeriu que ele, e quem quisesse ir
junto, pegasse o rifle que sobrara e voltasse pelo túnel que passava por debaixo
do mar Cilíndrico.
— Mas qual é o seu plano? — perguntou Richard.
— Eu quero que as octoaranhas me capturem e me levem para junto de
Eponine e Ellie, para eu poder saber se elas estão bem mesmo. Só os sonhos de
Nicole não bastam...
— Mas, Max — argumentou Richard —, seu plano não é lógico. Pense
bem. Mesmo que você não seja atropelado pelo trem do metrô enquanto estiver
andando pelo túnel, como irá explicar o que quer para as octoaranhas?
— Eu estava contando com a sua ajuda, Richard — disse Max. — Eu me
lembro de como você e Nicole se comunicaram com as aves. Talvez você pudesse
fazer no computador uma figura gráfica de Eponine, para eu poder mostrá-la
para as octos no meu monitor...
Nicole sentiu o tom de súplica na voz de Max e puxou a mão de Richard.
— Por que não? — disse ela. — Alguém podia ir até as escadas para ver
aonde elas chegam enquanto você cria imagens de Eponine e Ellie para Max.
— Eu gostaria de ir com Max — disse Robert Turner de repente. — Se
houver alguma chance de encontrar Ellie, eu também quero ir... Nikki ficará bem
aqui com os avós.
Embora Richard e Nicole estivessem preocupados com aqueles planos,
preferiram não expressar sua ansiedade diante de todos. Patrick foi escolhido
para subir as escadas e explorar um pouco a área, enquanto Richard produziria
peripécias com o computador. Max e Robert foram para o quarto a fim de se
prepararem para a viagem, e Nicole e Nai ficaram sozinhas com Benjy e as
crianças no salão principal.
— Você acha um erro Max e Robert voltarem pelo túnel, não acha, Nicole?
— perguntou Nai, no tom gentil de sempre que caracterizava sua personalidade.
— Acho sim — respondeu Nicole. — Mas não estou certa se minha opinião
é relevante nesta situação... Os dois estão desolados e frustrados e sentem que
têm de fazer alguma coisa para encontrar suas parceiras... Mesmo que essa ação
não tenha muita lógica.
— O que você acha que irá lhes acontecer? — perguntou Nai.
— Não sei. Mas acho que Max e Robert vão encontrar Eponine e Ellie. Na
minha opinião, as duas foram raptadas por razões específicas... Embora eu não
tenha idéia de quais sejam essas razões, creio que as octoaranhas não farão mal
algum a Eponine e Ellie, e acabarão devolvendo-as para nós.
— Você é muito crédula — comentou Nai.
— Nem tanto. Minhas experiências com octoaranhas me dizem que
estamos tratando com uma espécie de alto senso de moralidade... Eu sei que os
raptos não são congruentes com esse quadro, e não culpo Max nem Robert por
terem opiniões diferentes sobre elas, mas aposto que a longo prazo nós
compreenderemos até mesmo o objetivo desses raptos.
— Nesse meio-tempo —; disse Nai — enfrentaremos uma situação difícil.
Se Max e Robert partirem e não voltarem...
— Eu sei — falou Nicole —, mas não há nada que se possa fazer. Os dois
decidiram que precisam tomar uma atitude agora, especialmente Max. É uma
coisa um pouco antiquada e machista, mas compreensível. E nós devemos nos
adaptar às necessidades deles, mesmo não concordando com as suas ações.

Patrick voltou em menos de uma hora, contando que a escada terminava


em um patamar que ia dar num corredor por trás da cúpula. Esse corredor
levava a uma outra escada menor, que subia mais dez metros e chegava em uma
espécie de iglu, uns cinqüenta metros ao sul do penhasco que dava para o mar
Cilíndrico.
— E como era do lado de fora de Rama? — perguntou Richard.
— A mesma coisa que no norte. Frio, mais ou menos uns cinco graus
centígrados, e escuro, com poucas luzinhas fracas no fundo... O iglu é quente e
bem iluminado, tem camas e um banheiro; certamente foi projetado para os
humanos, mas há pouco espaço para a gente se movimentar.
— Não há corredores nem passagens? — perguntou Max.
— Não — disse Patrick, sacudindo a cabeça.
— Tio Rich-ard fez ótimas ima-gens de El-lie e Ep-o-nine — falou Benjy
para o irmão. — Você precisa ver.
Max apertou dois botões do seu computador portátil e apareceu uma
excelente imagem com o rosto de Eponine.
— Richard não acertou fazer os olhos dela da primeira vez — disse Max —,
mas eu consertei... Criar a imagem de Ellie foi mais fácil para ele.
— Então vocês estão mesmo prontos para ir? — perguntou Patrick.
— Quase. Vamos esperar até amanhã de manhã para as luzes do salão
iluminarem mais o túnel.
— Quanto tempo acham que vão levar para chegar do outro lado?
— Mais ou menos uma hora, num passo rápido. Espero que Robert
consiga me seguir.
— E o que vão fazer se ouvirem o trem do metrô chegando? — perguntou
Patrick.
— Não poderemos fazer grande coisa — disse Max, dando de ombros. —
Já inspecionamos o túnel, e há muito pouco acostamento. Seu tio Richard disse
que devemos contar com o sistema do metrô de proteção contra falhas.
Durante o jantar houve uma discussão sobre o rifle. Richard e Nicole não
queriam de jeito algum que Max levasse a arma, não porque quisessem que ela
ficasse com o resto da família, mas porque tinham medo de um incidente que
pudesse afetar a todos. Richard não teve muito tato ao expor sua idéia, e Max
ficou ofendido.
— Então o senhor-sabe-tudo — replicou Max a certa altura — pode me
dizer como sabe que o meu rifle será inútil para eu encontrar Eponine?
— Max — disse Richard, perdendo a paciência —, as octoaranhas devem...
— Deixe que eu explico, querido — interrompeu Nicole. — Max — disse ela
num tom mais suave —, eu não posso imaginar uma situação em que o rifle
tenha alguma valia. Se você precisar dele para lidar com as octoaranhas é porque
elas são hostis, e o destino de Eponine e Ellie já terá sido decidido há muito
tempo... Nós só não queremos...
— E se encontrarmos outras criaturas hostis, não-octoaranhas, e
precisarmos nos defender? — perguntou Max obstinadamente. — E se eu
precisar usar o rifle para dar algum tipo de sinal para Robert?... Há várias
situações a serem pensadas...
O grupo não conseguiu dar uma solução para o assunto. Richard ficou
ainda com mais raiva quando Nicole e Max foram para o quarto.
— Será que Max não compreende que ele quer levar a arma para ter uma
sensação de segurança? Uma sensação falsa? E se fizer alguma coisa precipitada
e as octoaranhas não nos mandarem mais comida e água?
— Não podemos nos preocupar com isso agora, Richard. A essa altura
creio que não há nada a fazer senão pedir a Max para ser cuidadoso e lembrar-se
de que ele é nosso representante. Por mais que a gente fale, ele não vai mudar de
opinião.
— Então talvez se deva fazer uma votação para ver se ele leva o rifle ou
não. E mostrar a Max que todos estão contra ele.
— Meu instinto diz —- replicou Nicole depressa — que uma votação seria
uma forma absolutamente errada de lidar com Max. Ele já percebeu que todos
estão contra ele. Uma censura coordenada o isolaria e poderia fazer com que ele
viesse a ter um incidente... Não, querido, nesse caso é melhor esperarmos que
não ocorra nada de desagradável...
Richard ficou calado um instante.
— Eu acho que você tem razão — falou finalmente. — Como sempre... Boa
noite, Nicole.
— Boa noite, Richard.

— Nós vamos todos esperar aqui por quarenta e oito horas — disse
Richard para Max e Robert. — Depois disso começaremos a mudar nossas coisas
para o iglu lá de cima.
— Tudo bem — disse Max ajeitando a correia da sua mochila e dando um
risinho. — Não se preocupem. Eu só vou atirar nas suas amigas octoaranhas se
for absolutamente necessário. — Virou-se para Robert e falou: — Então, meu
amigo, está pronto para a aventura?
Robert não parecia muito confortável com sua mochila. Inclinou-se meio
desajeitado e levantou a filhinha para se despedir.
— Papai vai ficar fora só por pouco tempo, Nikki. Vovô e vovó vão estar
aqui tomando conta de você.
Antes dos dois partirem, Galileu chegou correndo pelo salão com um
pequeno pacote nas costas.
— Eu também vou — gritou. — Eu quero lutar com as octoaranhas. Todos
riram, e Nai explicou a Galileu por que ele não podia ir com Max e Robert. Patrick
atenuou a decepção do menino dizendo que ele seria o primeiro a subir a escada
quando a família se mudasse para o iglu.
Max e Robert entraram rapidamente no túnel. Nos primeiros cem metros
caminharam em silêncio, entretidos com as fascinantes criaturas marinhas do
outro lado do vidro ou plástico transparente. Duas vezes Max teve de diminuir a
marcha para esperar por Robert, que estava se cansando muito. Os dois não
encontraram nenhum trem do metrô. Depois de pouco mais de uma hora, a
lanterna deles iluminou a primeira estação do outro lado do mar Cilíndrico.
Quando Max e Robert estavam a cinqüenta metros da plataforma, todas as luzes
foram ligadas e eles puderam ver para onde estavam indo.
— Richard e Nicole estiveram aqui — disse Max. — Por trás do arco há
uma espécie de átrio, e depois um labirinto de corredores.
— O que vamos fazer aqui? — perguntou Robert, que, ao sentir-se fora do
seu elemento, deixou que Max liderasse a situação.
— Eu ainda não decidi. Creio que devemos explorar um pouco para ver se
encontramos alguma octoaranha.
Para surpresa de Max, além da plataforma, no meio do chão do átrio, ele
viu um grande círculo azul pintado, do qual saía uma linha azul grossa virando
para a direita, no início do labirinto de corredores vermelhos.
— Richard e Nicole nunca mencionaram essa linha azul — disse Max para
Robert.
— É obviamente uma sinalização para idiotas — disse Robert, rindo
nervoso. — Seguir a linha azul grossa é tão fácil como seguir o caminho de tijolo
amarelo.
Os dois entraram no primeiro corredor. A linha azul do centro do chão
estendia-se uns cem metros à frente e depois virava à esquerda, em um
cruzamento distante.
— Você acha que devemos seguir a linha, não é? — perguntou Max.
— E por que não? — disse Robert, dando uns passos no corredor.
— É óbvio demais — falou Max, para si mesmo e para o companheiro,
agarrando o rifle e seguindo Robert. Depois da primeira virada à esquerda ele
falou de novo: — Você não acha que esta linha foi colocada aqui especificamente
para nós, acha?
— Não — respondeu Robert, parando um instante. — Como alguém
poderia saber que vínhamos para cá?
— Foi exatamente isso que me perguntei — resmungou Max.
Os dois caminharam em silêncio seguindo a linha azul, e viraram mais
três vezes à esquerda até chegarem a um arco que ficava a apenas um metro e
meio do chão. Eles se abaixaram e entraram num salão com teto e paredes
vermelho-escuras. A linha azul terminava em um grande círculo azul no meio da
sala.
Os dois se sentaram no círculo azul, e menos de um segundo depois as
luzes se apagaram. Um filme silencioso, com uma imagem de cerca de um metro
quadrado, apareceu na parede diretamente em frente a eles. No centro da imagem
estavam Eponine e Ellie, vestidas com uns camisões amarelos esquisitos. As duas
conversavam entre si e com uma pessoa ou coisa à direita que não dava para ver,
mas Max e Robert não ouviam nada do que elas diziam. Um instante depois, as
duas deslocaram-se um pouco para a direita, passaram por uma octoaranha e
apareceram ao lado de um animal gordo e estranho, lembrando vagamente uma
vaca, com uma barriga branca chata. Ellie segurou uma caneta com forma de
cobra, apertou-a várias vezes e escreveu na superfície branca a seguinte
mensagem: "Não se preocupem. Nós estamos bem." As duas sorriram, e a imagem
desapareceu abruptamente um segundo depois.
Enquanto Max e Robert se recobravam do espanto, o filme de noventa
segundos foi repetido duas vezes integralmente. Na segunda repetição, eles
conseguiram prestar bastante atenção aos detalhes. Quando o filme terminou, a
sala vermelha iluminou-se toda de novo.
— Jesus Cristo — disse Max, sacudindo a cabeça. Robert estava contente.
— Ela está viva! — exclamou. — Ellie está viva!
— Se pudermos acreditar no que vimos — falou Max.
— Ora, Max — falou Robert um instante depois. — Por que as
octoaranhas fariam um filme para nos enganar? Não seria muito mais fácil não
fazerem nada?
— Não sei. Mas me diga uma coisa. Como elas sabiam que nós dois
estávamos preocupados com Eponine e Ellie? Só há duas explicações possíveis.
Ou elas nos observaram desde que entramos nesta toca ou alguém...
— .... do nosso grupo está passando informações para as octoaranhas.
Max, não passou pela sua cabeça nem um instante que pudesse ser Richard ou
Nicole, não é?...
— É claro que não — interrompeu Max. — Mas não consigo entender
como nós pudemos ser observados com tanto cuidado. Não vimos nenhum tipo
de dispositivo que pudesse captar nossa imagem... A não ser que uns lindos e
sofisticados transmissores tenham sido colocados em nós, ou dentro de nós, o
que não faz o menor sentido.
— Mas como eles puderam fazer isso sem que notássemos nada?
— Que merda — exclamou Max, abaixando-se para passar debaixo do
arco e ficando de pé no corredor, vermelho do lado oposto. — A menos que eu
esteja enganado, aquela droga de trem estará esperando por nós quando
chegarmos na estação, e as octoaranhas pretendem que a gente volte
pacificamente para casa. Tudo certinho demais.
Max estava certo. O trem estava estacionado com a porta aberta quando
Robert e ele chegaram no átrio vindos dos corredores vermelhos. Max parou, com
um olhar selvagem.
— Eu não vou entrar nessa merda de trem — disse em voz baixa.
— O que pretende fazer? — perguntou Robert, um pouco assustado.
— Vou voltar para o labirinto — disse Max. Pegando o rifle e voltando para
o corredor, ele afastou-se da linha azul e correu uns cinqüenta metros até
encontrar a primeira octoaranha. Logo em seguida apareceram várias outras, que
se espalharam por todo o corredor e começaram a andar na direção de Max.
Max parou, olhou para as criaturas que avançavam e olhou para trás. Na
extremidade do corredor, outro grupo de octoaranhas vinha em sua direção.
— Esperem um instante — gritou Max. — Eu tenho uma coisa a dizer.
Vocês devem entender pelo menos parte da nossa língua, senão não poderiam
saber que estávamos vindo para cá... Eu não estou satisfeito. Quero uma prova
de que Eponine está viva...
As octoaranhas, com as cabeças cercadas de cores, estavam quase ao lado
dele. Apavorado, Max deu um tiro no ar como um aviso. Em menos de dois
segundos ele sentiu uma mordida forte na nuca e caiu desmaiado no chão.
Robert, que por indecisão ficara na estação, correu pela plataforma
quando ouviu o tiro. Ao chegar ao corredor vermelho, viu as octoaranhas
levantando Max do chão e ficou vendo os extraterrestres carregarem Max para o
trem do metrô e depositá-lo gentilmente no canto do carro. Depois, as
octoaranhas mostraram a porta aberta para Robert e ele entrou no trem. Em
menos de dez minutos, os dois estavam de volta ao salão debaixo da cúpula do
arco-íris.

3
Max só acordou dez horas depois. Nesse meio-tempo, Robert e Nicole o
examinaram minuciosamente e não encontraram nenhum ferimento nem lesão.
Robert contou várias vezes as aventuras pelas quais eles tinham passado, exceto,
é claro, o que ocorrera durante o momento crítico em que Max ficou sozinho no
corredor vermelho.
A maioria das perguntas da família era sobre o que eles haviam visto no
filme. Ellie ou Eponine demonstravam estar estressadas ou forçadas a se
apresentar no filme? Elas tinham perdido peso? Pareciam descansadas?
— Creio que agora sabemos muito mais sobre a natureza das nossas
hospedeiras — disse Richard quando a família estava terminando de comentar
pela segunda vez a história de Robert. — Primeiro, e antes de tudo, está claro que
as octoaranhas, ou qualquer espécie que esteja encarregada de tudo isto aqui,
nos observam regularmente e podem compreender nossas conversas. Não há
outra explicação possível para aquele filme com Ellie e Eponine ser mostrado a
Max e Robert.
— Segundo, o nível tecnológico deles, pelo menos com relação a filmes, ou
está centenas de anos atrás do nosso ou, se Robert tem razão quando diz que não
havia um projetor na sala nem na parede, eles são tão adiantados que sua
tecnologia nos parece mágica. Em terceiro lugar...
— Mas, tio Richard — interrompeu Patrick —, por que o filme não tinha
som? Não seria mais fácil Eponine e Ellie simplesmente terem dito que estavam
bem? Não é mais provável que as octoaranhas sejam surdas do que elas não
terem uma tecnologia avançada na área de filmagem?
— Que idéia interessante, Patrick — comentou Richard. — Nós nunca
consideramos isso. É claro que elas não precisam ouvir para se comunicar...
— Criaturas que passaram a maior parte da sua vida evolutiva no fundo
do mar em geral são surdas — falou Nicole. — Suas necessidades sensoriais
básicas de sobrevivência têm outros comprimentos de onda, e, como elas têm um
número limitado de células para os sensores e seu processamento, a audição
delas não chega a se desenvolver.
— Eu trabalhei com surdos na Tailândia — disse Nai — e fiquei fascinada
ao perceber que não poder ouvir não é um empecilho significativo em uma
cultura avançada. A linguagem de sinais deles tem um alcance fantástico, e é
muito complexa... Os humanos da Terra não precisam mais ouvir para caçar, ou
para fugir de animais perigosos... A linguagem de cores das octoaranhas é mais
do que adequada à comunicação...
— Espere um instante — disse Robert. — Você não está desconsiderando
a forte evidência de que as octoaranhas podem ouvir? Como elas sabiam que Max
e eu íamos sair em busca de Ellie e Eponine se não ouviram nossa conversa?
Fez-se um minuto de silêncio, e Robert continuou:
— Talvez elas tenham mandado Ellie e Eponine traduzir o que estava
sendo dito — sugeriu Richard.
— Mas isso exigiria dois acontecimentos pouco prováveis — falou Patrick.
— Primeiro, se as octoaranhas são surdas, por que elas teriam um equipamento
sofisticado e miniaturizado para registrar sons? Segundo, mandar Eponine e Ellie
traduzir o que nós dissemos implica um nível de interação de comunicação difícil
de ser desenvolvido em um mês... Não, na minha opinião as octos provavelmente
perceberam a razão da viagem de Robert e de Max baseadas na evidência visual:
as imagens de Ellie e Eponine no monitor do computador portátil.
— Bravo — bradou Richard. — Brilhante raciocínio...
— Vocês vão ficar papeando sobre essa merda a noite toda? — disse Max
entrando no meio do grupo.
Todos pularam de susto.
— Você está bem? — perguntou Nicole.
— É claro. Estou até me sentindo descansado...
— Conte o que aconteceu — interrompeu Robert. — Eu ouvi o tiro, mas
quando cheguei na esquina duas octoaranhas já estavam carregando você.
— Também não sei o que aconteceu — disse Max. — Antes de eu desmaiar
senti uma picada forte na nuca... Foi isso... Uma das octos atrás de mim deve ter
me atingido por trás com uma espécie de dardo.
Max esfregou a nuca, e Nicole deu uma espiada.
— Não vejo nada, nem ao menos um furinho — disse ela. — Os dardos
devem ser muito finos.
Max olhou para Robert.
— Espero que você tenha pegado meu rifle.
— Sinto muito, Max — disse Robert. — Só pensei nisso quando estávamos
no trem.
Max olhou para os amigos.
— Muito bem, minha gente, quero que vocês saibam que minha revolta se
esgotou. Estou convencido de que não podemos lutar contra essas criaturas, por
isso é melhor tentarmos seguir o plano delas.
Nicole pôs a mão no ombro do amigo.
— Este é o novo Max Puckett — disse ela com um sorriso.
— Posso ser teimoso — replicou Max com sua risadinha característica —,
mas acho que não sou burro.

— Eu não acho que todos devam se mudar para o iglu de Patrick — falou
Max na manhã seguinte, depois que outro trem chegou com o suprimento de
comida e água.
— Por que você diz isso? — perguntou Richard. — É evidente que o iglu foi
projetado para os humanos, senão por que teriam construído uma escada?
— Não faz sentido — falou Max. — Especialmente para as crianças. O
lugar é apertado para se viver... Acho que o iglu é uma espécie de parada
temporária, como uma cabine na mata, se você preferir.
Nicole tentou imaginar os dez vivendo naquele espaço exíguo que Patrick
tinha descrito.
— Entendo seu ponto de vista, Max — disse ela —, mas o que você
sugere?
— Por que não vamos inspecionar o iglu com mais cuidado? Talvez Patrick
tenha deixado de ver alguma coisa, com o exame rápido que ele fez... De qualquer
forma, saberemos o que esperam que a gente faça. As octoaranhas, ou quem quer
que esteja nos guiando, não nos deixariam na incerteza.
Richard, Max e Patrick foram selecionados para a missão de
reconhecimento. A partida deles foi retardada para que Patrick pudesse manter
sua promessa a Galileu. Patrick seguiu o menino de seis anos pela longa escada
em espiral até o patamar, e depois até o fundo da segunda escada. Aquela altura,
o menino já estava exausto para continuar a subir. Na verdade, quando estavam
descendo da cúpula, suas pernas não agüentaram e Patrick teve de carregá-lo
nos últimos doze metros de descida.
— Você vai conseguir subir de novo? — perguntou Richard a Patrick.
— Creio que sim — disse ele, ajeitando sua mochila.
— Pelo menos assim ele não terá de esperar pelos velhinhos o tempo todo
— comentou Max com uma risada.
Os três pararam para admirar a vista do patamar do alto das escadas
cilíndricas.
— Às vezes — disse Max, olhando as maravilhosas cores do arco-íris da
cúpula, poucos metros acima da sua cabeça —, acho que tudo o que me
aconteceu desde que subi a bordo do Pinta foi um sonho... Como é que os porcos,
galinhas e até mesmo Arkansas se encaixam neste cenário?... É demais.
— Deve ser difícil — disse Patrick, caminhando pelo corredor — comparar
tudo isso com a sua vida normal na Terra. Mas pense na minha situação. Eu
nasci em uma espaçonave extraterrestre com destino a um mundo localizado
perto da estrela Sírius. Passei mais da metade da minha vida dormindo. Não
tenho idéia do que seja uma vida normal...
— Que merda, Patrick — disse Max, pondo o braço em torno do rapaz. —
Se eu fosse você estaria completamente maluco.
Mais tarde, quando estavam subindo a segunda escada, Max parou e
virou-se para Richard, abaixo dele.
— Espero que você entenda, Wakefield — disse, em tom caloroso —, que
sou um intratável e que não tive intenção de agredir você durante nossas
discussões dos últimos dias.
Richard sorriu.
— Eu compreendo, Max. E também sei que sou tão arrogante quanto você
é intratável... Aceito suas desculpas indiretas se você aceitar as minhas.
Max fingiu-se indignado.
— Não pedi desculpas porra nenhuma — disse ele, subindo o degrau
seguinte.
O iglu era exatamente como Patrick havia descrito. Os três homens
vestiram as jaquetas e se prepararam para ir para o lado de fora. Richard, que foi
o primeiro a sair pela porta, viu o outro iglu antes que Max e Patrick tivessem
dado a primeira respirada no ar de Rama.
— Aquele outro iglu não estava lá, tio Richard — insistiu Patrick. — Eu
andei por essa área toda.
O segundo iglu, exatamente um décimo menor do que o primeiro, ficava
cerca de trinta metros mais longe do penhasco que beirava o mar Cilíndrico e
brilhava na escuridão de Rama. Quando os homens começaram a andar na sua
direção, a porta do iglu menor abriu-se e surgiram duas figuras humanas
minúsculas, de cerca de vinte centímetros de altura e iluminadas por dentro.
— Que droga é aquilo? — exclamou Max.
— Olhe bem — disse Patrick excitado —, é minha mãe e tio Richard.
As duas figuras viraram-se para o sul na escuridão, afastando-se do
penhasco e do mar. Richard, Max e Patrick aproximaram-se delas para ver
melhor. As figuras estavam vestidas com as mesmas roupas que Richard e Nicole
haviam usado no dia anterior. A atenção para os detalhes era extraordinária. O
cabelo, o rosto, a cor da pele, e até mesmo a cor da barba de Richard, eram uma
perfeita réplica dos Wakefield. As figuras também estavam carregando mochilas.
Max parou para pegar a figura de Nicole, mas recebeu um choque elétrico
quando tocou nela. A figura virou-se para Max e sacudiu a cabeça enfaticamente.
Os homens seguiram o casal durante mais uns cem metros e depois pararam.
— Não há muita dúvida do que nós devemos fazer em seguida — disse
Richard.
— Não — disse Max. — Parece que você e Nicole estão sendo chamados.

Na tarde do dia seguinte, Richard e Nicole colocaram nas mochilas


alimento e água suficientes para vários dias e despediram-se da família. Nikki
tinha dormido na cama com eles na noite anterior e ficou muito chorosa quando
seus avós partiram. A subida pela escada era cansativa.
— Eu devia ter subido mais devagar — disse Nicole, respirando com
dificuldade, quando ela e Richard chegaram ao patamar abaixo da cúpula e
acenaram para todos. Nicole sentia os batimentos irregulares do seu coração, e
esperou pacientemente que as palpitações diminuíssem.
Richard também ficou sem ar.
— Já não somos mais tão jovens como éramos anos atrás em Nova York —
disse ele depois de um longo silêncio, sorrindo e pondo os braços em volta de
Nicole. — Está pronta para continuar nossa aventura?
Nicole fez que sim. Os dois foram andando devagar pelo longo corredor, de
mãos dadas.
— Querido — disse ela de repente —, não é incrível estarmos sozinhos de
novo, só nós dois, ainda que por poucas horas apenas?... Eu gosto dos outros,
mas é uma carga a gente se sentir responsável o tempo todo...
Richard deu uma risada.
— Foi o papel que você escolheu, Nicole, ninguém a forçou a isso. Richard
inclinou-se e beijou-lhe o rosto. Nicole virou-se para ele e lhe deu um forte beijo
nos lábios.
— Você sugeriu com esse beijo — perguntou Richard imediatamente, com
um amplo sorriso — que devíamos passar esta noite no iglu e começar a viagem
amanhã?
— Acho que você está lendo meus pensamentos, sr. Wakefield — falou
Nicole com um sorriso matreiro. — Na verdade, eu estava pensando que seria
divertido imaginarmos hoje à noite que somos amantes de novo... Pelo menos
nossa imaginação ainda deve funcionar bem.

Quando estavam a trezentos metros ao sul dos dois iglus, Richard e Nicole
não conseguiram ver mais nada, a não ser iluminando o caminho com a lanterna.
Embora a estrada de terra, com alguma pedras, fosse boa, era preciso andar com
muito cuidado, pois de vez em quando um deles tropeçava.
— Talvez essa caminhada no escuro seja longa e muito cansativa — falou
Nicole, quando pararam para beber água.
— E fria também — acrescentou Richard, bebendo um gole. — Você não
está sentindo frio?
— Quando me mexo, não — disse Nicole, esticando os braços e ajeitando
sua mochila.
Tinha se passado quase uma hora quando viram uma luz no céu ao sul,
movendo-se na direção deles e tornando-se maior.
— O que você acha que é isso? — perguntou Nicole.
— Será a Fada Azul? — respondeu Richard. — A gente podia fazer um
pedido para a estrela...
Nicole riu.
— Você é impossível — disse ela.
— Depois da noite passada — falou Richard, enquanto a luz continuava a
mover-se na direção deles —, estou me sentindo um garoto de novo.
Nicole riu satisfeita e balançou a cabeça. Eles se deram as mãos em
silêncio, enquanto a bola de luz continuava a aumentar de tamanho. Um minuto
depois ela parou, uns trinta metros à frente deles e uns vinte metros acima de
suas cabeças. Richard e Nicole desligaram as lanternas, pois agora podiam ver
bem o terreno em volta numa extensão de cem metros.
Richard tapou parcialmente os olhos e tentou identificar a fonte de
iluminação, mas a luz era tão brilhante que não dava para olhar diretamente
para ela.
— O que quer que isso seja — falou Nicole quando recomeçaram a
caminhar —, parece que sabe para onde nós devemos ir.
Duas horas mais tarde, Richard e Nicole encontraram um caminho que
levava para sudoeste, com campos cultivados dos dois lados da estrada. Quando
interromperam a viagem para almoçar, foram andar pelos campos e descobriram
que um dos alimentos básicos vindos da cúpula, um legume com gosto
semelhante à vagem mas parecendo uma abóbora amarela, era a principal
plantação dali. Esse legume se alternava com fileiras de uma planta de um
vermelho brilhante que eles nunca haviam visto. Richard puxou uma do chão e
deixou-a cair imediatamente quando a esfera verde e rija que ficara debaixo do
solo começou a enroscar-se no fundo do talo vermelho. Ao bater no chão, a
criatura rolou uns centímetros até seu buraco original e enterrou a esfera verde
no mesmo lugar.
Richard riu.
— Acho que vou ter de pensar duas vezes antes de fazer uma coisa assim.
— Olhe lá — falou Nicole um instante depois. — Não é um dos animais
que construíram a escada?
Os dois desceram pelo caminho e atravessaram o campo para ver melhor.
Era na verdade uma daquelas formigas grandes com os seis braços compridos,
que vinha andando na direção deles, colhendo os legumes com uma habilidade
fantástica, cuidando das três fileiras que ficavam de cada lado do seu corpo
principal. Cada braço, ou tronco, descascava os legumes e colocava-os em pilhas
que ficavam entre as fileiras, com cerca de dois metros de distância umas das
outras. Era uma cena fascinante, os seis braços desempenhando tarefas
diferentes simultaneamente, e a distâncias diferentes do corpo principal.
Quando a criatura chegou ao caminho, seus braços se recolheram
rapidamente, depois ela desceu seis fileiras e entrou no campo, seguindo na
direção oposta. A plantação estava sendo colhida de norte a sul, e, ao
recomeçarem a andar, Richard e Nicole passaram pela parte do campo onde a
colheita já fora terminada pela formiga gigante. Ali eles viram umas criaturinhas
velozes, parecendo roedores mas ligeiramente maiores, apanhando as pilhas
espalhadas e levando-as para oeste.
Richard e Nicole depararam-se com vários cruzamentos enquanto
andavam pelos campos, e a cada vez a luz flutuante indicava o caminho que eles
deviam seguir. Os campos estendiam-se por muitos quilômetros. As plantações
eram variadas, mas, como Richard e Nicole estavam ficando com fome e muito
cansados, não pararam mais para examinar cada novo legume que viam.
A certa altura, os dois chegaram numa área plana e aberta, de terra fofa.
A luz circulou três vezes acima deles e ficou pairando no centro da área.
— Acho que é aqui que devemos passar a noite — disse Richard.
— Tomara — disse Nicole, aceitando a ajuda de Richard para retirar sua
mochila. — Acho que não vou ter problema para dormir, mesmo que seja neste
chão duro.
Depois de jantarem, eles encontraram um lugar confortável para dormir
juntinhos. Quando ambos estavam quase dormindo, a luz começou a diminuir e
depois a baixar.
— Olhe — sussurrou Richard —, a luz vai descer para o chão.
Nicole abriu os olhos e ficou observando a luz reduzir seu brilho, formar
um arco gracioso e aterrissar do outro lado da área aberta, ainda brilhando
ligeiramente. Embora Richard e Nicole não pudessem ver bem a criatura, sabiam
que ela era comprida e magra, com asas duas vezes maiores que o corpo.
— É um vaga-lume gigante! — exclamou Richard, mas logo não puderam
mais perceber os contornos do animal.

4
— Biologia para luzes, biologia para fazendas e equipamentos de
construção... Será que nossas amigas octoaranhas, ou talvez quem esteja acima
delas nessa fantástica hierarquia simbiótica, são as grandes biólogas da galáxia?
— Não sei, Richard — respondeu Nicole terminando seu café da manhã.
— Mas parece que a evolução tecnológica delas seguiu um caminho bem
diferente do nosso.
Os dois haviam visto, assombrados, o vaga-lume gigante voltar a brilhar e
a tomar sua posição costumeira assim que percebeu que eles estavam acordando.
Um instante depois, uma segunda criatura semelhante veio se aproximando do
sul. E as duas luzes se juntaram, formando uma iluminação equivalente à luz do
dia no Novo Éden.
Richard e Nicole tinham dormido bem e sentiam-se descansados.
Atravessaram quilômetros e quilômetros pelos campos iluminados pelos seus dois
guias, e passaram por um lugar com gramados de mais de três metros de altura.
Uns cem metros adiante desse gramado fizeram uma curva fechada para a
esquerda e encontraram-se na beira de um conjunto de tanques d'água rasos,
que se estendiam a distância.
Eles andaram para a esquerda durante alguns minutos, até chegarem ao
que Richard identificou como o canto nordeste do conjunto. O sistema consistia
de uma série de tanques longos, rasos e retangulares, feitos de uma liga metálica
cinzenta. Cada um desses tanques tinha cerca de vinte metros de largura na
direção leste-oeste, centenas de metros de comprimento e um metro de altura.
Em seu interior havia um líquido parecendo água. Nos quatro cantos de cada
retângulo estreito viam-se postes cilíndricos vermelhos, brilhantes e grossos, com
cerca de dois metros de altura e esferas brancas na ponta.
Richard e Nicole andaram cento e sessenta metros de leste a oeste
examinando cada tanque e os oito postes cilíndricos grossos, que marcavam o
local onde os tanques adjacentes tinham lados em comum. Não viram nada nos
tanques além de água.
— Então isso é uma espécie de usina de purificação? — perguntou Nicole.
— Duvido muito — replicou Richard, parando com Nicole na ponta oeste.
— Olhe aquela quantidade de peças pequenas e detalhadas, presas na parede
interna deste tanque bem em frente ao cilindro... Eu diria que são tipos de
componentes eletrônicos complexos. Não haveria necessidade de tudo isso em um
sistema simples para purificar a água. Nicole olhou de esguelha para Richard.
— Esta não, Richard, isto é muita presunção. Como você pode querer
saber a função de um monte de linhas tridimensionais torcidas dentro de um
tanque d'água alienígena?
— Eu não disse que tinha certeza — respondeu Richard, dando uma
gargalhada. — Só estava tentando dizer que a coisa parece complexa demais para
servir apenas de purificador de água.
As luzes acima deles chamavam-nos para o sul. O segundo grupo de
tanques rasos também continha apenas água; porém, quando chegaram ao
terceiro conjunto de tanques retangulares e postes cilíndricos, Richard e Nicole
perceberam que a água estava cheia de bolinhas minúsculas de muitas cores.
Richard arregaçou a manga e enfiou a mão na água, tirando centenas dessas
bolinhas.
— São ovos — disse Nicole com firmeza. — Tenho tanta certeza disso como
você tem de que aquelas coisinhas dentro da parede do tanque são componentes
eletrônicos.
Richard riu de novo.
— Olhe — disse ele, colocando os objetos minúsculos na frente dos olhos
de Nicole —, há só cinco tipos, se você examiná-los com atenção.
— Cinco tipos de quê? — perguntou Nicole.
As coisinhas parecendo ovos enchiam todo o comprimento do terceiro
grupo de tanques. Quando Richard e Nicole estavam se aproximando da quarta
fileira de cilindros e de outro conjunto de tanques que se estendia mais cem
metros para o sul, os dois se sentiram cansados. — Se não virmos nada de novo
aqui — disse ela —, que tal parar para o almoço?
— Ótima idéia — disse Richard.
Mas, quando estavam a cinqüenta metros de distância da quarta fileira de
tanques, notaram algo diferente. Um veículo quadrado robotizado, com uns trinta
centímetros de comprimento e largura e dez de altura, movia-se velozmente entre
os postes cilíndricos.
— Eu sabia que esses postes eram marcas para algum tipo de veículo —
disse Nicole, brincando com Richard.
Richard estava fascinado demais para responder. Além do robô, que fazia
um ciclo completo por entre todas as fileiras de tanques de leste a oeste a mais
ou menos três minutos, havia outras maravilhas a serem observadas. Cada
tanque ali era subdividido em duas longas peças por uma cerca de malha
paralela às paredes, que ficava ligeiramente acima do nível da água. De um lado
da malha via-se um verdadeiro enxame de criaturas nadadoras de cinco cores
diferentes. Do outro lado, círculos brilhantes parecendo moedas de areia
espalhavam-se por todo o comprimento do tanque. A cerca era posicionada de
modo a que três quartos do volume do tanque ficassem do lado dos círculos,
dando a eles muito mais espaço para manobrar do que aos nadadores tão
densamente empilhados.
Richard e Nicole debruçaram-se para examinar aquela atividade. As
moedas de areia moviam-se em todas as direções. Como a água estava infestada
de tantas criaturas e tanta atividade, Richard e Nicole levaram vários minutos
para perceber os parâmetros. Em intervalos irregulares, cada moeda de areia
pulava por cima da cerca de malha, propulsionada por cílios em forma de chicote
colocados debaixo de seu corpo chato; depois, enquanto ficava ancorada na
cerca, ela usava outro par de cílios para capturar um nadador minúsculo e puxá-
lo pelos buracos da malha. Durante o tempo em que a moeda de areia ficava
encostada na cerca, sua luz ia esmaecendo. Se ela ficasse tempo demais e
pegasse vários nadadores, seu brilho sumia de todo.
— Olhe o que acontece quando ela sai da cerca — disse Richard,
apontando uma moeda logo abaixo deles. — À medida que ela vai nadando com
suas companheiras, sua luz vai sendo reativada.
Richard voltou depressa para o poste cilíndrico mais próximo, ficou de
joelhos no chão e fez um buraco com umas das ferramentas que estavam na sua
mochila.
— Há muito mais coisa no sistema subterrâneo — disse ele excitado. —
Aposto que todo esse conjunto faz parte de um gigantesco gerador de energia.
Richard deu três passos largos na direção sul, anotou com cuidado sua
posição e debruçou-se no tanque para contar as moedas de areia existentes entre
o poste cilíndrico e ele. Era difícil contá-las, em virtude do movimento constante
dos círculos brilhantes.
— Aproximadamente trezentas em três metros de comprimento do tanque,
totalizando cerca de vinte e cinco mil no tanque inteiro, ou duzentas mil em uma
fileira completa — disse Richard.
— Você está imaginando então — disse Nicole — que esses postes
cilíndricos são uma espécie de sistema de armazenagem? Como se fossem
baterias?
— Provavelmente — respondeu Richard. — Que idéia fabulosa! Encontrar
uma criatura viva que gera eletricidade internamente. Forçá-la a desistir de sua
carga acumulada para poder comer. O que poderia ser melhor que isso?
— E esse veículo robotizado, andando para baixo e para cima entre os
postes, qual é a função dele?
— Eu diria que é uma espécie de monitor — explicou Richard.
Richard e Nicole almoçaram e depois terminaram de inspecionar a
suposta usina elétrica. O conjunto todo consistia de oito colunas e oito fileiras,
num total de sessenta e quatro tanques. Apenas vinte estavam em atividade
naquela hora.
— Muita capacidade ociosa — comentou Richard. — Os engenheiros
compreendem claramente os conceitos de lucro e margem.
Os vaga-lumes gigantes agora dirigiam-se para leste por uma espécie de
auto-estrada. Por duas vezes, Richard e Nicole encontraram pequenos bandos
das criaturas semelhantes a formigas indo em direção oposta, mas não houve
qualquer interação.
— Essas criaturas serão inteligentes o bastante para cooperarem sem
supervisão? — perguntou Nicole. — Ou será que não nos deixam ver os seres que
lhes dão as ordens?
— Esta é uma pergunta interessante — comentou Richard. — Lembra-se
com que rapidez a octoaranha chegou até a formiga quando ela foi atingida pela
bola? Talvez elas tenham uma inteligência limitada, mas não funcionem bem em
ambientes novos ou desconhecidos.
— Como algumas pessoas que a gente conhece — disse Nicole com uma
risada.
A longa caminhada para leste terminou quando as duas luzes que lhes
serviam de guia pararam sobre um grande campo de terra fora da estrada. A
distância, eles viram no campo o que lhes pareceu quarenta traves de gol de
futebol cobertas de hera, distribuídas em cinco fileiras de oito traves cada.
— Quer checar o guia de viagem, por favor? — pediu Richard. — É mais
fácil a gente compreender o que vê quando lê a explicação antes.
Nicole sorriu.
— Parece mesmo que estamos fazendo uma viagem, não é? Por que será
que nossos hospedeiros querem que vejamos tudo isso?
Richard ficou em silêncio por um instante.
— Estou quase certo de que as octoaranhas são as donas deste território,
ou pelo menos são a espécie dominante de uma complexa hierarquia... Quem
quer que nos tenha buscado para fazer esta viagem acredita que, se nos
informarem sobre suas capacidades, os intercâmbios futuros se tornarão mais
fáceis.
— Mas se são as octoaranhas — disse Nicole —, por que só seqüestraram
Ellie e Eponine, e não nós todos?
— Não sei — respondeu Richard. — Talvez seu senso moral seja muito
mais complicado do que imaginamos.
Os dois vaga-lumes gigantes estavam dançando no ar sobre a vastidão de
traves de gol de futebol cobertos de hera.
— Acho que nossos guias estão ficando impacientes — disse Nicole. Se
Richard e Nicole não estivessem tão cansados depois de dois dias de árdua
caminhada, e se já não tivessem visto tantas cenas fabulosas naquele mundo
existente no Hemicilindro Sul de Rama, teriam ficado assombrados com a
complexa simbiose que descobriram nas horas seguintes.
As traves de gol não eram recobertas de hera. O que a distância parecia
ser folhas era na realidade pequenos ninhos em forma de cones, formados por
milhares de criaturas minúsculas semelhantes a pulgões. Essas criaturas
grudavam-se umas às outras para formar os ninhos com uma espécie de mel
doce e viscoso, que os humanos gostavam de comer debaixo da cúpula. Os
pulgões alienígenas fabricavam grandes quantidades dessa substância como
parte de sua atividade diurna normal.
Enquanto Richard e Nicole observavam tudo isso, bandos de besouros,
que viviam em montes de terra de vários metros de altura que rodeavam todo o
enclave, saíam de suas tocas a cada quarenta minutos e subiam pelos postes
para colher o excesso de mel dos ninhos. Esses besouros, com cerca de dez
centímetros antes de começarem a comer o mel, aumentavam três a quatro vezes
de tamanho quando completavam sua colheita e depois regurgitavam o conteúdo
de seus corpos inchados em umas cubas enterradas na base dos postes.
Richard e Nicole não conversaram muito enquanto observavam toda essa
movimentação. O sistema biológico diante dos seus olhos era intrincado e
maravilhoso; mais um exemplo dos fantásticos avanços das simbioses feitas por
seus hospedeiros.
— Aposto — disse Richard, quando ele e Nicole se preparavam para
dormir, não muito longe das tocas dos besouros — que, se esperarmos um pouco
mais, aparecerá algum burro de carga para levantar do chão as cubas de mel e
carregá-las para outro lugar.
Deitados lado a lado na terra, eles ficaram observando os dois vaga-lumes
descerem no chão a distância. Logo depois veio a escuridão.
— Não acredito que tudo isto tenha simplesmente acontecido — exclamou
Nicole. — Nem em outro planeta, nem em lugar algum. A evolução natural não
resulta na harmonia entre espécies que presenciamos nesses últimos dois dias.
— O que você está sugerindo, querida? — perguntou Richard. — Que
todas essas criaturas foram planejadas como máquinas para desempenharem
suas funções?
— É a única explicação plausível — respondeu Nicole. — As octoaranhas,
ou alguém, devem ter chegado a um nível tal que podem manipular os genes para
que eles produzam uma planta ou um animal exatamente como desejado. Por que
esses besouros depositam mel naquelas cubas? Qual é a compensação biológica
deles para esse tipo de ação?
— Talvez eles sejam compensados de alguma forma que nós ainda não
descobrimos — respondeu Richard.
— É claro — continuou Nicole. — E por trás dessa compensação há um
incrível arquiteto ou engenheiro de sistemas biológicos controlando todos esses
intercâmbios, não só para que cada espécie de sinta feliz, ou qualquer outro
adjetivo que se queira usar, mas também para que os próprios arquitetos tenham
alguma vantagem, como um alimento em forma de excesso de mel... E você
acredita que esse tipo de otimização possa ocorrer sem o envolvimento de uma
sofisticada engenharia genética?
Richard ficou em silêncio por um bom tempo, e depois falou devagar:
— Imagine um fantástico engenheiro-biólogo sentado em frente a um
teclado, projetando um organismo vivo que se adapte a determinadas
especificações do sistema... É um conceito um tanto assustador.
Mais uma vez os besouros saíram em bando de suas tocas, mal notando
os humanos que dormiam por perto, a fim de continuar sua colheita nas traves.
Nicole ficou observando aquelas criaturas até elas desaparecerem na escuridão.
Nós humanos entramos em uma nova era, pensou ela, antes de cair no sono. No
futuro toda a história irá referir-se a ac, "antes do contato", e dc, "depois do
contato". Pois a partir daquele primeiro momento em que soubemos, sem sombra de
dúvida, que substâncias químicas simples haviam atingido a consciência e a
inteligência em algum outro ponto da vastidão do nosso universo, a história
passada da nossa espécie tomou-se apenas um paradigma isolado, um fragmento
pequeno e relativamente insignificante na infinita tapeçaria que retrata a
espantosa variedade de vida sensível.

Depois do café da manhã, no dia seguinte, Richard e Nicole discutiram


ligeiramente sobre o minguado suprimento de comida, e decidiram pegar um
pouco de mel de uma das cubas.
— Acho que se eles não quiserem que a gente faça isso — disse Nicole
olhando em volta enquanto enchia um potinho —, algum policial alienígena vai
aparecer para nos impedir de agir.
Depois, as luzes-guias moveram-se diretamente para o sul, levando
Richard e Nicole por uma floresta espessa com árvores muito altas que se
estendia na direção leste-oeste. Os vaga-lumes viraram para a direita e ficaram
sobrevoando a orla da floresta à esquerda, escura e amedrontadora. A toda hora,
Richard e Nicole ouviam sons altos e estranhos vindo do seu interior.
Então Richard parou e foi até onde as altas árvores se adensavam. Entre
elas havia plantas menores, com grandes folhas verdes, vermelhas e marrons, e
vários tipos diferentes de trepadeiras que se entrelaçavam nos galhos mais altos
das árvores. Richard deu um pulo para trás quando ouviu um uivo que parecia
vir de poucos metros dali. Seus olhos percorreram a floresta, mas ele não
conseguiu identificar de onde vinha o uivo.
— Há alguma coisa estranha nesta floresta — disse, virando-se para
Nicole. — Ela está deslocada, como se não pertencesse a este lugar.
Durante mais de uma hora os vaga-lumes seguiram para oeste. Os sons
bizarros tornaram-se mais freqüentes enquanto Richard e Nicole caminhavam
lentamente em silêncio. Richard tem razão, pensou Nicole, já um tanto cansada.
Ficou olhando aquela estrutura organizada dos campos à sua direita e
comparando-a com o crescimento desordenado à sua esquerda. Há alguma coisa
estranha e aflitiva nesta floresta.
Os dois descansaram um pouco no meio da manhã. Richard calculou que
já deviam ter andado uns cinco quilômetros desde o amanhecer. Nicole pediu um
pouco do mel que estava na mochila de Richard.
— Meus pés estão doendo — disse ela, depois de comer e beber um gole de
água. — E minhas pernas doem desde a noite passada... Espero que a gente não
leve muito tempo para chegar ao lugar que não sabemos onde é.
— Eu também estou muito cansado — falou Richard. — Mas até que
estamos em forma para um casal de sexagenários.
— Neste momento estou me sentindo mais velha do que isso — falou
Nicole, levantando-se para se espreguiçar. — Como você sabe, nossos corações
podem estar com quase noventa anos. Talvez eles não tenham trabalhado muito
enquanto estávamos dormindo, mas mesmo assim se mantiveram bombeando.
Enquanto conversavam, um animalzinho arredondado, de um olho só,
pêlo branco e fofo e doze pernas esguias, saiu zunindo da floresta próxima e
enfiou-se na cuba de mel. Num instante a criatura e a comida haviam
desaparecido.
— O que foi isso? — perguntou Nicole, ainda assustada.
— Alguma coisa apreciadora de doce — disse Richard, olhando para a
floresta, onde o animal desaparecera. — O mundo lá é definitivamente outro.
Meia hora depois, os dois vaga-lumes viraram para a esquerda e ficaram
sobrevoando um caminho que dava na floresta. Esse caminho tinha cinco metros
de largura e era ladeado por densas árvores. A intuição de Nicole dizia-lhe para
não seguir os vaga-lumes, mas ela não falou nada. Quando ela e Richard deram
os primeiros passos na floresta e ouviram ruídos vindos das árvores mais altas,
sua apreensão aumentou. Os dois pararam, deram-se as mãos e ficaram
escutando, atentos.
— Parecem passarinhos, macacos e sapos — observou Richard.
— Eles devem ter notado nossa presença — falou Nicole, virando-se para
olhar para trás. — Você tem certeza de que estamos fazendo a coisa certa?
Richard apontou para as luzes em frente.
— Estamos seguindo esses insetos enormes há dois dias e meio. Não faz
muito sentido perder a fé neles agora.
Os dois continuaram a andar pelo caminho, seguidos de uivos e
grasnidos. De vez em quando, os tipos de folhagens de ambos os lados mudavam
um pouco, mas a floresta continuava densa e escura.
— Deve haver um grupo de jardineiros alienígenas — falou Richard a uma
certa altura — trabalhando nesta área várias vezes por semana. Olhe como todos
os arbustos e árvores são perfeitamente aparados... Eles não saem um milímetro
para fora acima da nossa cabeça.
— Richard — disse Nicole um pouco depois —, se os sons que estamos
ouvindo vêm de animais alienígenas, por que ainda não vimos nenhum? Nem
uma única criatura atravessou o nosso caminho — disse ela, abaixando-se para
examinar a terra por onde pisava. — E aqui não há nenhum sinal de vida, atual
ou passada... Nem ao menos uma formiga...
— Devemos estar andando num caminho mágico — falou Richard, dando
uma risadinha. — Talvez eles nos leve para a casa de balas e apareça uma bruxa
malvada... Vamos cantar a música de João e Maria e nos sentiremos melhor.
O caminho, absolutamente reto no primeiro quilômetro, começou a
tornar-se sinuoso, e os sons das criaturas da floresta cercaram Richard e Nicole.
Richard cantou músicas populares dos seus anos de adolescente na Inglaterra, e
Nicole o acompanhou, quando conhecia as canções, mas a maior parte do tempo
gastou sua energia tentando conter a crescente ansiedade e forçando-se a não
pensar no alvo fácil que eles eram para qualquer animal alienígena grande que
pudesse estar passando pela floresta.
De repente, Richard parou e respirou profundamente.
— Está sentindo esse cheiro? — perguntou a Nicole. Nicole farejou o ar.
— Estou... parece perfume de gardênia...
— Só que muito melhor — disse Richard. — É um cheiro absolutamente
divino.
O caminho em frente virou abruptamente para a direita. Na curva havia
um grande arbusto coberto de imensas flores amarelas do tamanho de bolas de
basquete, as primeiras flores que eles viam desde que entraram na floresta. A
medida que Richard e Nicole se aproximavam do arbusto o cheiro aumentava no
ar.
Richard não pôde se conter. Antes que Nicole dissesse alguma coisa, deu
uns passos para fora do caminho, enfiou o rosto em uma das flores e respirou
fundo. O cheiro era magnífico. Enquanto isso, um dos vaga-lumes voltou voando
até eles e começou a ziguezaguear no céu.
— Acho que nossos guias não aprovaram sua saída da trilha — comentou
Nicole.
— Provavelmente não — falou Richard. — Mas valeu a pena.
Mais flores, de todos os tamanhos, formas e cores, começaram a aparecer
em ambos os lados da trilha. Os dois nunca haviam visto tanta profusão de cores.
Ao mesmo tempo, os sons que vinham ouvindo até ali tornaram-se mais
longínquos. Pouco depois, quando Richard e Nicole chegaram no meio da área de
flores, os barulhos desapareceram completamente.
O caminho agora estreitava-se bastante, mal dando para os dois passarem
lado a lado sem encostarem nas plantas floridas. Richard saiu da trilha várias
vezes para inspecionar e/ou cheirar uma das flores magníficas. Apesar do
entusiasmo dele pela viagem e pela floresta, Nicole obedeceu aos guias e
continuou na trilha.
Richard afastou-se quase oito metros do caminho para tentar ver mais de
perto as flores gigantescas que pareciam um tapete oriental e, de repente,
desapareceu.
— Ai! — Nicole ouviu-o gritar quando caiu no chão.
— Você está bem? — perguntou ela imediatamente.
— Estou. Tropecei nuns cipós e caí num amontoado de espinhos... O
arbusto à minha volta tem folhas vermelhas e também florezinhas esquisitas, que
parecem balas de revólver... Aliás, elas têm cheiro de canela.
— Você precisa de ajuda? — perguntou Nicole.
— Não... Vou sair daqui num instante.
Nicole olhou para cima e notou que um dos vaga-lumes estava voando
para longe. Agora, o que será isso? pensou, quando ouviu a voz de Richard.
— Talvez eu precise de uma ajuda. Acho que estou preso aqui. Nicole deu
uma olhada com cuidado para fora da trilha. O outro vaga-lume parecia
enlouquecido, descendo a toda velocidade por cima do rosto dela. Nicole ficou
ofuscada, sem conseguir ver nada durante um tempo.
— Não chegue aqui, Nicole — disse Richard depois de um instante. — A
menos que eu esteja ficando louco, essa planta está se preparando para me
comer.
— O quê? — perguntou Nicole, agora muito assustada. — Está falando
sério? — perguntou, esperando impaciente que seus olhos se recuperassem do
excesso de luz.
— Estou sim. Volte para a trilha... Este arbusto bizarro enroscou-se nas
minhas pernas e braços... uns insetos já estão chupando o meu sangue que
começou a escorrer com os espinhos... há uma abertura no arbusto, e estou
vendo uma imensa boca, mais feia do que as que a gente vê no zoológico, para a
qual estou sendo empurrado aos poucos... Posso ver até alguns dentes.
Nicole podia sentir o pânico na voz de Richard. Deu mais um passo na
direção dele, mas o vaga-lume cegou-a outra vez.
— Não consigo enxergar nada — gritou Nicole. — Richard, você ainda está
aí?
— Estou, mas não sei por quanto tempo ainda.
Eles ouviram o barulho de animais correndo pela floresta, seguido de um
gemido alto, e logo depois três figuras escuras com armas peculiares cercaram
Richard. As octoaranhas atacaram o arbusto carnívoro com seus sprays líquidos,
e em poucos segundos Richard foi solto e a boca se fechou por trás dos galhos.
Richard saiu aos tropeções e abraçou Nicole. Os dois gritaram "Obrigado"
quando o trio de octoaranhas desapareceu pela floresta tão depressa como
surgira. Nem Richard nem Nicole notaram que os dois vaga-lumes pairavam de
novo sobre suas cabeças.
Nicole examinou Richard com cuidado, mas não encontrou nada além de
arranhões.
— Acho que vou ficar na trilha por algum tempo — comentou Richard com
um sorriso desenxabido.
— É uma boa idéia — replicou Nicole.
Os dois conversaram sobre o ocorrido enquanto continuavam a andar pela
floresta. Richard ainda estava trêmulo.
— Os galhos perto do meu ombro esquerdo puxavam para um lado, e vi
aquele buraco do tamanho de uma bola de beisebol. Mas, à medida que eu era
empurrado na sua direção, o buraco ia ficando maior. Foi então que vi os
dentinhos em volta de toda a circunferência. Eu já estava pensando qual seria a
sensação de ser comido quando nossas amigas octoaranhas apareceram.
— Afinal de contas, o que está acontecendo aqui? — perguntou Nicole um
pouco depois, quando saíram da região das flores e foram de novo rodeados por
árvores e intermitentes barulhos de animais.
— Sei tanto quanto você — disse Richard.

A floresta terminou abruptamente, bem na hora em que Richard e Nicole


começaram a sentir uma fome insuportável. Eles entraram numa planície vazia e
viram à sua frente, a uns dois quilômetros de distância, uma grande cúpula
verde.
— O que é isso?...
— É a Cidade de Esmeralda, querida — disse Richard. — Você deve estar
reconhecendo do velho filme... E dentro está o Mágico de Oz, pronto para
conceder nossos desejos.
Nicole sorriu e beijou o marido.
— O mágico era um embusteiro, você sabe — disse ela. — Ele não tinha
nenhum poder de verdade.
— Isso fica em aberto — falou Richard com um risinho.
Enquanto conversavam, as duas luzes que os guiavam apressaram-se em
direção à cúpula, deixando Richard e Nicole numa semi-escuridão. Eles tiraram
suas lanternas da mochila.
— Alguma coisa me diz que chegamos ao fim da nossa excursão — disse
Richard, iluminando o caminho na direção da Cidade de Esmeralda.
Os dois viram os portões através dos binóculos, a uma distância de mais
de um quilômetro, e foram ficando muito animados.
— Você acha que aqui é a terra das octoaranhas? — perguntou Nicole.
— Acho sim — respondeu Richard. — Deve ser um lugar e tanto. O alto
daquela cúpula verde está pelo menos a trezentos metros do chão. Eu diria que a
área por baixo dela tem mais de dez quilômetros quadrados...
— Richard — disse Nicole, quando estavam a apenas seiscentos metros da
cúpula —, qual é o seu plano? Vamos simplesmente chegar lá e bater no portão?
— Por que não? — respondeu Richard apressando o passo.
Quando estavam a duzentos metros da cidade, o portão se abriu e
surgiram três pessoas. Richard e Nicole ouviram um grito, e uma das figuras
começou a correr na direção deles. Richard parou e olhou de novo através dos
binóculos.
— É Ellie... e Eponine... Com uma octoaranha — gritou.
Nicole já tinha largado sua mochila e corria pelo campo aberto. Apertou
sua filha querida nos braços, levantando-a do chão com a força daquele abraço.
— Oh, Ellie, Ellie — disse, as lágrimas caindo-lhe pelo rosto.
5
— Este é nosso amigo Archie... Ele tem nos ajudado muito desde que
chegamos aqui... Archie, venha conhecer minha mãe e meu pai.
A octoaranha respondeu com uma seqüência iniciada com um vermelho
brilhante seguido de verde, lavanda, dois tons de amarelo (amarelo-açafrão e
limão, tendendo para o esverdeado) e, finalmente, roxo. A faixa de cores passava
em volta da cabeça esférica da octoaranha e desaparecia para trás, do lado
esquerdo da abertura formada de dois longos recortes paralelos no meio da cara.
— Archie está dizendo que está muito contente de conhecer vocês,
especialmente depois de ouvir falar tanto em vocês — explicou Ellie.
— Você sabe ler as cores? — perguntou Nicole, perplexa.
— Ellie é incrível — falou Eponine. — Ela pegou a língua das octos muito
depressa.
— Mas como vocês falam com elas? — perguntou Nicole.
— A visão delas é muito desenvolvida, e elas são muito inteligentes...
Archie e mais umas dez já aprenderam a ler os lábios... Mas podemos falar sobre
isso mais tarde, mamãe. Primeiro me conte se Nikki e Robert estão bem.
— Sua filha está cada dia mais adorável, e sente muito a sua falta... Mas
acho que Robert não se recuperou completamente. Ele ainda se culpa por não ter
protegido você melhor...
A octoaranha Archie seguiu a conversa gentilmente por algum tempo,
depois deu um tapinha no ombro de Ellie para lembrá-la de que seus pais
provavelmente estavam cansados e com frio.
— Obrigada, Archie — disse Ellie. — Bem, o plano é o seguinte: vocês dois
vão ficar na cidade pelo menos esta noite. Amanhã, uma espécie de suíte de hotel
está preparada, logo depois do portão, para nós quatro. Depois de amanhã, ou
quando vocês já estiverem bem descansados, nós todos vamos voltar para casa.
Archie irá conosco.
— Por que então vocês três não foram nos encontrar? — disse Richard
depois de um breve silêncio.
— Eu fiz a mesma pergunta, papai... e nunca recebi uma resposta
satisfatória...
As faixas de cor da cabeça de Archie interromperam o que Ellie dizia.
— Tudo bem — disse ela para a octoaranha, antes de virar-se para seus
pais. — Archie disse que as octos queriam que vocês dois em especial tivessem
uma clara idéia do que elas são; de qualquer forma, podemos discutir tudo isso
depois que nos instalarmos na suíte.

Os grandes portões da Cidade de Esmeralda se abriram quando os quatro


humanos e sua companheira octoaranha estavam a dez metros de distância.
Richard e Nicole não estavam preparados para a fantástica variedade de cenas
estranhas que viram ao entrar na cidade. Diretamente em frente a eles havia uma
avenida larga, com construções baixas dos dois lados, que levava a um alto
prédio rosa e azul em forma de pirâmide, de centenas de metros de altura, visto a
distância.
Richard e Nicole entraram em transe quando deram os primeiros passos
na cidade das octoaranhas. Nenhum dos dois se esqueceria jamais daqueles
primeiros momentos incríveis, em que foram rodeados por um caleidoscópio de
cores. Todos os elementos da cidade, inclusive as ruas, os prédios, as estranhas
decorações ao longo da avenida, as plantas do jardim (se é que eram mesmo
plantas) e a vasta gama de criaturas animais que pareciam correr em todas as
direções apresentavam coloridos brilhantes. Um grupo de quatro grandes vermes
ou cobras, parecendo bengalas de bala torcidas, só que muito mais ricas em
cores, estava enroscado no chão logo depois do portão, à esquerda de Richard e
Nicole. Estavam com as cabeças levantadas para o alto, aparentemente
esforçando-se para ver os visitantes alienígenas. Animais de um vermelho e
amarelo brilhantes, com oito pernas e patas como as da lagosta, carregavam
grossos bastões verdes por um cruzamento a cinqüenta metros de Richard e
Nicole.
É claro que dezenas ou talvez centenas de octoaranhas tinham vindo para
a área próxima ao portão a fim de darem uma olhada nos mais recentes
visitantes humanos. Estavam sentadas em grupos em frente aos prédios, ou de
pé ao lado da avenida, ou ainda andando pelos telhados. E todas falavam ao
mesmo tempo com suas brilhantes faixas coloridas, dando relevo às decorações
estáticas da rua com dinâmicas rajadas de cores de vários matizes.
Nicole olhou em volta e viu todas aquelas criaturas bizarras com os olhos
fixos nela. Depois virou a cabeça para trás e viu a cúpula verde por cima dela.
Havia uma espécie de nervuras finas e flexíveis em pontos isolados, mas a cúpula
era quase toda coberta por um dossel verde-escuro.
— No teto crescem trepadeiras e outras plantas, e há também insetos que
colhem as frutas e flores úteis — Nicole ouviu Ellie dizendo. — É um ecossistema
de vida completo, com a vantagem de servir de excelente cobertura para a cidade,
não deixando entrar o ar frio de Rama. Depois que os portões se fecharem, vocês
verão como as temperaturas são amenas dentro da cidade.
Espalhadas por baixo da cúpula havia cerca de vinte fontes de luz muito
brilhantes, consideravelmente maiores que os vaga-lumes que haviam guiado
Richard e Nicole até o domínio das octoaranhas. Nicole tentou examinar uma
dessas luzes, mas desistiu logo, pois ela era brilhante demais para seus olhos. A
menos que eu esteja errada, pensou, toda essa iluminação é provida por grupos
daqueles vaga-lumes que nos guiaram.
Seria cansaço ou excitação, ou as duas coisas juntas que fizeram com que
Nicole perdesse o equilíbrio? Qualquer que fosse a causa, enquanto ela olhava
para o teto verde acima, começou a sentir que tudo girava em volta, e agarrou-se
na mão de Richard. A explosão de adrenalina, sua tontura e o medo súbito
fizeram com que suas batidas cardíacas aumentassem.
— O que foi, mamãe? — perguntou Ellie alarmada com a palidez da mãe.
— Nada — disse Nicole, respirando devagar. — Não foi nada... só fiquei
tonta por um instante.
Nicole olhou para o chão a fim de se acalmar. A rua era pavimentada com
quadrados de cores brilhantes parecendo cerâmica. Sentadas na rua, uns
cinqüenta centímetros adiante, Nicole viu três criaturas estranhíssimas, do
tamanho de bolas de basquete. Sua parte hemisférica superior era de um
material azul-rei ondulado, parecendo, sob certos aspectos, cérebros humanos ou
a parte de uma água-viva que flutua na superfície da água. No centro dessa
massa constantemente em movimento havia um buraco redondo e escuro, do
qual saíam duas antenas finas de uns vinte centímetros de comprimento, com
gânglios ou nós a espaços de uns três centímetros cada. Quando Nicole deu um
passo atrás sem querer, sentindo-se ameaçada por aqueles animais esquisitos, as
antenas deles ficaram girando e os três passaram rapidamente para o canto da
avenida.
Nicole deu uma olhada rápida em volta. Faixas de cor raiavam em torno
da cabeça de todas as octoaranhas que estavam ali por perto. Nicole sabia que
elas estavam dissecando sua última reação, e de repente sentiu-se nua, perdida e
completamente dominada. Do fundo de sua alma surgiu um antigo e forte sinal
de angústia, e Nicole ficou com medo de dar um grito.
— Ellie — disse ela baixinho —, acho que por hoje basta para mim...
Podemos ir lá para dentro?
Ellie levou a mãe pelo braço até uma porta na segunda estrutura à direita
da avenida.
— As octos trabalharam dia e noite para transformar este lugar... Espero
que esteja a seu gosto.
Nicole continuava a olhar fixo para as octoaranhas da rua, mas o que via
não penetrava mais na sua mente cognitiva. Isto é um sonho, pensou, quando um
grupo de criaturas verdes e finas, parecendo bolas de boliche, passou à sua
frente. Não pode haver nenhum outro lugar como este.

— Eu também estava um pouco extenuado — disse Richard. — Nós


levamos aquele sustão na floresta, depois de andarmos durante três dias. Para
gente da nossa idade é um bocado... Não é de surpreender que sua mãe tenha se
sentido desorientada; aquela cena lá fora era muito estranha.
— Antes de ir embora — disse Ellie —, Archie desculpou-se de três formas
diferentes, tentando explicar que todas as criaturas tiveram permissão de passar
pela área do portão, pois as octoaranhas achavam que vocês ficariam
fascinados... Archie não pensou que talvez o impacto fosse grande demais...
Nicole sentou-se na cama.
— Não se preocupe, Ellie. Não estou assim tão frágil... Talvez não estivesse
preparada para tudo isso, principalmente depois de tanto exercício e emoção.
— Então você prefere descansar mais um pouco ou comer alguma coisa,
mamãe?
— Eu estou bem. Vamos fazer o que você tinha planejado... Aliás, Eponine
— disse ela, virando-se para a francesa que tinha falado muito pouco desde que
eles se encontraram do lado de fora da cidade —, Richard e eu lhe devemos
desculpas. Conversamos tanto com Ellie e vimos tanta coisa... que nos
esquecemos de dizer que Max mandou lembranças. Ele me fez prometer que se
eu visse você lhe diria que ele sente demais a sua falta.
— Obrigada, Nicole — replicou Eponine. — Desde que as octoaranhas nos
trouxeram para cá não há um dia em que eu não pense em Max e em todos
vocês.
— Você também está aprendendo a língua delas, como Ellie? — perguntou
Nicole.
— Não — respondeu Eponine devagar. — Eu tenho feito uma coisa
completamente diferente... — disse, procurando por Ellie, que tinha saído por um
instante, possivelmente para ajeitar o jantar. — Na verdade, passei umas duas
semanas quase sem ver Ellie, até começarmos a fazer planos para a chegada de
vocês.
Fez-se silêncio durante algum tempo.
— Você e Ellie são prisioneiras aqui? — perguntou Richard baixinho.
— E já descobriram por que foram seqüestradas?
— Não, não exatamente — respondeu Eponine, levantando-se.
— Ellie! — gritou ela. — Você está aí? Seu pai está fazendo umas
perguntas...
— Só um instante — ouviram Ellie gritar. Um pouco depois ela voltou para
a sala seguida da octoaranha Archie e percebeu o olhar do pai. — Archie é nosso
amigo — disse Ellie. — E nós combinamos que quando contássemos tudo a vocês
ele poderia ficar aqui... Para explicar, esclarecer e talvez responder a algumas
perguntas que nós não pudermos...
A octoaranha sentou-se entre os humanos e fez-se mais um instante de
silêncio.
— Por que tenho a sensação de que toda essa cena foi ensaiada? —
perguntou Richard depois de um tempo.
Nicole, preocupada, inclinou-se para a frente e pegou na mão da filha.
— Você não vai nos dar más notícias, não é? Você disse que voltaria
conosco...
— Não, mãe, mas Eponine e eu temos de dizer uma coisa para vocês... Ep,
por que você não começa?
Faixas coloridas saíam da cabeça de Archie quando ele, que obviamente
seguia a conversa de perto, mudou de posição para ficar bem em frente a
Eponine. Ellie observou com cuidado as faixas de luz.
— O que ele... o que a octoaranha está dizendo? — perguntou Nicole,
espantada com a proficiência de sua filha na língua alienígena.
— É melhor dizer ela em vez de ele — disse Ellie rindo. — Pelo menos foi o
que Archie me disse quando comentei sobre os pronomes... Mas Ep e eu sempre
dizemos "ele" quando nos referimos a Archie e ao dr. Azul... De qualquer forma,
Archie quer que a gente conte para vocês que Eponine e eu temos sido muito bem
cuidadas, que não sofremos nada, e que só fomos seqüestradas pelas
octoaranhas porque elas não souberam estabelecer uma comunicação não-hostil
conosco...
— Seqüestrar não é a forma própria de começar uma comunicação —
interrompeu Richard.
— Expliquei isso para Archie e os outros, papai — continuou Ellie —, e é
por isso que ele quer que eu conte tudo agora... Eles nos trataram muitíssimo
bem, e não vi nada que me dissesse que a espécie deles é capaz de atos hostis...
— Muito bem — falou Richard —, sua mãe e eu compreendemos o ponto
principal desse preâmbulo...
Archie começou a falar através das cores, pedindo que Ellie lhe explicasse
o significado da palavra "preâmbulo".
— A inteligência delas é incrível — disse Ellie. — Archie nunca me pediu
explicação de uma palavra mais de uma vez.
— Quando cheguei aqui — falou Eponine —, Ellie estava começando a
compreender a língua das octoaranhas... No início tudo era muito confuso... Mas
depois de uns dias, Ellie e eu entendemos por que elas tinham nos seqüestrado.
— Nós passamos uma noite inteira conversando sobre isso — comentou
Ellie. — Estávamos intrigadas... Não podíamos imaginar como elas tinham
conseguido saber...
— Saber o quê? — perguntou Richard. — Sinto muito, senhoras, mas
estou tendo dificuldade de acompanhar...
— Elas sabiam que eu tinha o vírus RV-41 — disse Eponine. — E tanto
Archie quanto o dr. Azul, um médico-octoaranha, que nós chamamos de dr. Azul,
porque quando ele fala sua faixa azul-cobalto se espalha além dos limites
normais...
— Espere um instante — disse Nicole, sacudindo a cabeça com força. —
Deixe ver se eu entendi bem. Você está dizendo que as octoaranhas sabiam que
você tinha o vírus RV-41. Como é possível isso?
Archie falou através de vários raios de luz, e Ellie pediu para ele repetir.
— Archie disse que todas as nossas atividades têm sido monitoradas pelas
octoaranhas desde que saímos do Novo Éden, e elas deduziram que Eponine
tinha algum tipo de doença incurável.
Richard começou a andar pela sala.
— Essa é uma das declarações mais espantosas que já ouvi — disse ele de
forma apaixonada, virando-se para a parede, perdido em seus pensamentos.
Archie lembrou a Ellie que ele não poderia entender nada do que Richard dizia a
não ser que ele ficasse na sua frente. A certa altura, Richard virou-se.
— Como elas conseguiram... olhe, Ellie, as octoaranhas não são surdas?
Quando Ellie fez que sim, Richard e Nicole aprenderam a primeira coisa da língua
das octoaranhas. Archie soltou um amplo raio vermelho (indicando que a frase
seguinte seria afirmativa; um raio roxo, como explicou Ellie, sempre precedia
uma frase interrogativa), seguido de um lindo raio água-marinha.
— Bem, se elas são surdas — exclamou Richard —, como conseguiram
saber que você tinha RV-41 ? A menos que sejam especialistas em ler o
pensamento dos outros, ou registrem tudo... não, mesmo assim não é possível.
Richard sentou-se, e houve outro instante de silêncio.
— Querem que eu continue? — perguntou Eponine. Richard fez que sim.
— Como eu ia dizendo, o dr. Azul e Archie explicaram a Ellie e a mim que
elas eram realmente muito avançadas em biologia e em medicina... e que, se nós
tentássemos cooperar, elas veriam se poderiam me curar com suas técnicas...
Desde que, é claro, eu me submetesse a todos os procedimentos...
— Quando nós perguntamos por que elas queriam curar Eponine —
continuou Ellie —, o dr. Azul nos disse que aquela cura seria um grande gesto de
amizade, um ato que solidificaria o intercâmbio harmonioso entre nossas duas
espécies.
Richard e Nicole estavam absolutamente pasmos com o que ouviam e
olhavam-se com um ar descrente, enquanto Ellie continuava sua explicação.
— Como eu ainda era uma principiante da língua — disse Ellie —, foi
muito difícil dar informações sobre o vírus RV-41. Mais tarde, depois de longas
aulas intensivas, conseguimos contar para as octoaranhas o que sabíamos sobre
essa doença.
— Ellie e eu tentamos nos lembrar de tudo o que Robert havia nos
explicado. Enquanto passávamos essas explicações, o dr. Azul, Archie e mais
duas octoaranhas ficavam à nossa volta. Embora elas não anotassem nada, nós
nunca tivemos de dar uma informação duas vezes — falou Eponine.
— Aliás — acrescentou Ellie —, sempre que inadvertidamente nós
repetíamos alguma coisa, elas nos lembravam que aquilo já havia sido explicado.
— Há mais ou menos três semanas — falou Eponine —, as octoaranhas
nos falaram que seu processo de coleta de informações havia terminado e que
elas estavam prontas para me submeterem aos testes. Explicaram que esses
testes eram às vezes dolorosos e fora do comum para os padrões humanos...
— A maioria dos testes — disse Ellie dessa vez — consistia em inserir no
corpo de Eponine criaturas vivas, umas microscópicas e outras que ela podia ver
a olho nu, através de injeção...
— Ou através dos meus... bem, acho que a melhor palavra a usar seria
orifícios — disse Eponine.
Archie interrompeu para perguntar o significado de "orifício" e
"inadvertidamente". Enquanto Ellie explicava, Nicole chegou bem perto de
Richard.
— Isso não está parecendo familiar? — perguntou ela. Richard fez que
sim.
— Mas eu nunca tive nenhum tipo de relacionamento, pelo menos não
que eu me lembre... Eu fiquei isolado...
— Tive as sensações mais estranhas de toda a minha vida — continuou
Eponine com um arrepio —, mas o pior de tudo foi quando cinco a seis vermes
minúsculos, do tamanho de um alfinete, entraram pela parte inferior do meu
corpo. Eu disse a mim mesma que, se sobrevivesse àquela invasão, nunca mais
me queixaria de nenhum desconforto físico.
— Você acreditou que as octoaranhas poderiam curá-la? — perguntou
Nicole.
— No início não. Mas, à medida que os dias se passaram, comecei a
pensar que seria possível. Eu via que elas tinham técnicas médicas
absolutamente diferentes das nossas... E tive a sensação de que estavam fazendo
progresso... — respondeu Eponine.
— Então, um dia, quando o teste terminou, Ellie apareceu no meu quarto
(àquela altura eu ficava em outra parte da cidade, provavelmente o equivalente a
um hospital) e disse que as octoaranhas tinham isolado o vírus RV-41 e
compreendiam como ele operava sobre seu hospedeiro, ou seja, eu. Elas pediram
que Ellie me dissesse que iam inserir um "agente biológico" no meu organismo
para procurar o RV-41 e destruí-lo completamente. O agente não poderia reduzir
os danos já causados pelo vírus, que eles afirmavam não serem graves, mas
acabaria de uma vez por todas com o RV-41.
— As octos me pediram para explicar também a Eponine — falou Ellie —
que esse agente poderia causar algum tipo de efeito colateral. Elas não sabiam
exatamente o que esperar, pois é claro que nunca haviam usado o agente em
humanos, mas seus "modelos" previam náusea e possíveis dores de cabeça.
— Eles acertaram quanto à náusea — falou Eponine. —,Eu vomitava de
quatro em quatro horas nos dois primeiros dias. Depois disso, o dr. Azul, Archie e
as duas octoaranhas reuniram-se em volta da minha cama e me disseram que eu
estava curada.
— O quê? — perguntou Richard, dando um pulo.
— Oh, Eponine — disse Nicole, abraçando a amiga —, estou felicíssima
por você.
— E você acredita nisso? — perguntou Richard. — Acredita que os
médicos-octoaranhas, que ainda não podem entender bem como o corpo humano
funciona, conseguiram em poucos dias o que nosso brilhante genro e sua equipe
do hospital não conseguiram em quatro anos?
— E por que não, Richard? — disse Nicole. — Se isso tivesse sido feito
pela Águia em Nodo, você teria aceitado imediatamente. Por que as octoaranhas
não podem ser muito mais avançadas do que nós em biologia? Lembre-se de tudo
o que vimos...
— Muito bem — falou Richard, sacudindo a cabeça e virando-se para
Eponine. — Desculpe, mas é difícil para mim... Meus parabéns. Eu também estou
muito feliz por você — falou, abraçando Eponine desajeitadamente.
Enquanto eles conversavam, alguém tinha colocado silenciosamente
legumes frescos e água do lado de fora da porta. Nicole viu o material destinado a
ser usado na refeição quando foi ao banheiro.
— Deve ter sido uma experiência fantástica — comentou Nicole com
Eponine quando voltou para a sala.
— Muito mais do que isso — comentou Eponine, sorrindo. — Embora eu
sinta de coração que estou curada, preciso que isso seja confirmado por você e o
dr. Turner.

Richard e Nicole ficaram extremamente cansados depois do lauto jantar.


Ellie disse que queria discutir alguns assuntos com seus pais, mas que seria
melhor eles dormirem um pouco.
— Gostaria de me lembrar mais daquela época que passei com as
octoaranhas antes de chegarmos em Nodo — disse Richard, quando ele e Nicole
estavam na cama de casal que seus hospedeiros haviam providenciado. — Talvez
então eu compreendesse melhor a história que Ellie e Eponine contaram.
— Você ainda duvida de que ela esteja curada? — perguntou Nicole.
— Não sei. Mas devo admitir que estou bastante intrigado com a diferença
de comportamento entre essas octoaranhas e as que me examinaram e testaram
anos atrás... As octos da Rama II nunca me libertariam daquela planta carnívora.
— Talvez elas sejam capazes de variar seu comportamento. Isso acontece
com os seres humanos. Aliás, acontece também com todos os mamíferos mais
desenvolvidos da Terra. Por que você esperaria que todas as octoaranhas fossem
iguais? — perguntou Nicole.
— Sei que você vai dizer que estou sendo xenófobo — falou Richard —
mas é difícil para mim aceitar essas novas octoaranhas. Elas parecem boas
demais para serem verdadeiras. Como bióloga, qual você acha que seria a
compensação delas por serem boas para nós, para usar a expressão de que você
gosta?
— Essa pergunta procede, querido — respondeu Nicole —, e não sei como
responder. Mas a idealista que existe em mim quer crer que encontramos uma
espécie que em geral se comporta de acordo com a moral, pois quem faz o bem
será recompensado.
Richard riu.
— Eu devia saber que a resposta seria essa. Especialmente depois daquela
nossa discussão sobre Sísifo no Novo Éden.

6
— Você acharia a língua delas fascinante, papai — disse Ellie enquanto
tomava o café da manhã com Richard. A essa altura, Nicole acordou, depois de
onze horas de sono. — É absolutamente matemática. Elas usam sessenta e
quatro cores ao todo, mas apenas cinqüenta e uma pertencem ao alfabeto. As
treze restantes são esclarecedoras, são usadas para especificar tempos dos
verbos, números ou comparativos e superlativos. É uma linguagem realmente
muito elegante.
— Não consigo imaginar como uma língua pode ser elegante; sua mãe é a
lingüista da família — disse Richard. — Consegui aprender a ler alemão, mas
quando resolvi falar foi um fracasso.
— Bom dia para todos — disse Nicole espreguiçando-se na cama. — O que
temos para o café da manhã?
— Uns legumes novos e diferentes... que talvez sejam frutas, pois não
temos equivalente no nosso mundo... Quase tudo o que as octoaranhas comem é
o que nós provavelmente chamaríamos de plantas, cuja energia deriva da luz. Os
vermes são praticamente a única coisa que elas comem cuja energia básica não
provém dos fótons.
— Então todas as plantas dos campos pelos quais passamos são movidas
por uma espécie de fotossíntese?
— Alguma coisa desse tipo — respondeu Ellie —, se é que entendi o que
Archie me explicou... Não se desperdiça quase nada na sociedade das
octoaranhas... Essas criaturas que você e papai chamam de "vaga-lumes
gigantes" sobrevoam os campos segundo uma programação semanal ou mensal
rígida... E a água é tratada com tanto cuidado quanto os fótons.
— Onde está Eponine? — perguntou Nicole, enquanto dava uma olhada
na comida que estava na mesa, no meio da sala.
— Está fazendo as malas — disse Ellie. — Ela achou que não devia
participar da conversa que vamos ter agora de manhã.
— Nós vamos ficar chocados de novo, como na noite passada? —
perguntou Nicole.
— Talvez — respondeu Ellie. — Não sei como vocês vão reagir... preferem
terminar café ou eu digo para Archie que estamos prontos para começar?
— Quer dizer que a octoaranha vai participar dessa conversa e Eponine
não? — perguntou Richard.
— Foi ela quem decidiu isso — respondeu Ellie. — Além do mais, como
Archie é o representante das octoaranhas, ele está muito mais envolvido no
assunto do que Eponine.
Richard e Nicole se entreolharam.
— Você tem idéia do que se trata? — perguntou Richard. Nicole sacudiu a
cabeça.
— Mas é melhor começarmos logo — disse.
Depois que Archie sentou-se entre os Wakefield, Ellie informou a seus
pais, e todos riram, que desta vez Archie faria o "preâmbulo". Ellie foi traduzindo,
às vezes um pouco hesitante, quando Archie começou a pedir desculpas a
Richard pela forma como ele fora tratado por suas "primas" anos atrás. Ele
explicou que aquelas octoaranhas, as que os humanos haviam encontrado em
Rama II antes da chegada em Nodo, pertenciam a uma colônia dissidente,
remotamente ligada às octoaranhas que agora viviam a bordo de Rama. E Archie
enfatizou que só depois que Rama III entrou na esfera de influência das
octoaranhas é que elas, como espécie, concluíram que a grande espaçonave
cilíndrica era importante.
Algumas sobreviventes daquela outra colônia, um grupo muito inferior,
segundo Archie (nesse ponto Ellie pediu que ele repetisse o que dizia para ela
traduzir melhor), ainda estavam a bordo da Rama III quando a nave foi
interceptada, no início de sua trajetória, pela atual colônia de octoaranhas que
havia sido especificamente selecionada para representar sua espécie. Os
sobreviventes do grupo dissidente foram retirados da nave, mas todos os seus
arquivos foram preservados. Archie e as outras octoaranhas da colônia souberam
com detalhe de tudo o que havia acontecido com Richard naquela época e agora
desejavam se desculpar por aquele tratamento.
— Então todo esse preâmbulo, além de ser fascinante — disse Richard —,
é também um pedido de desculpas?
Ellie fez que sim e Archie soltou um raio vermelho e outro água-marinha.
— Posso fazer uma pergunta antes de continuarmos? — disse Nicole
virando-se para a octoaranha. — Imagino, pelo que você nos disse, que sua
colônia entrou em Rama III no período em que estivemos dormindo. Vocês sabiam
que nós estávamos lá?
Archie respondeu que as octoaranhas tinham idéia de que os humanos
estavam vivendo no habitat do extremo norte, mas só souberam ao certo quando
a tranca externa do habitat humano foi violada pela primeira vez. Aquela altura,
segundo Archie, a colônia de octoaranhas já vivia a bordo havia doze anos
humanos.
— Archie fez questão de pedir as desculpas pessoalmente — disse Ellie
dando uma olhada para o pai e esperando que ele respondesse.
— Muito bem, acho que vou aceitar — disse Richard. — Embora não
tenha idéia de qual seja o protocolo adequado...
Archie pediu que Ellie lhe explicasse o significado de "protocolo", e Nicole
riu.
— Richard, às vezes você fica muito formal.
— De qualquer forma — continuou Ellie —-, já que não temos muito
tempo, eu mesma vou contar tudo a vocês. Segundo Archie, os arquivos das
octoaranhas dissidentes mostram que elas fizeram várias experiências com você,
grande parte das quais é ilegal nas colônias que Archie chama de "altamente
desenvolvidas". Uma das experiências, papai, como você muitas vezes sugeriu, foi
a introdução no seu cérebro de uma série de micróbios especializados para
apagar de sua memória o tempo em que você viveu no meio das octoaranhas. Eu
disse para Archie e para os outros que essa experiência surtiu um bom efeito,
mas não absoluto... A experiência mais complexa feita no seu corpo foi uma
tentativa de alterar o seu esperma. A colônia dissidente das octoaranhas não
sabia mais do que a nossa família para onde Rama II estava indo. Elas achavam
que talvez os humanos e as octoaranhas a bordo fossem coexistir durante
séculos, talvez até pela eternidade, e concluíram que seria absolutamente
essencial que as duas espécies se comunicassem. O que elas tentaram fazer foi
mudar os cromossomos do seu esperma para que sua descendência tivesse maior
capacidade de linguagem e uma melhor resolução visual de cores. Em suma, elas
tentaram me trabalhar geneticamente, pois eu fui a única filha que você e mamãe
tiveram depois de sua longa odisséia, para que eu pudesse me comunicar com
elas sem maiores dificuldades. Em complementação a essa experiência, elas
introduziram no seu corpo um conjunto de criaturas especiais...
Ellie parou e viu que Richard e Nicole a olhavam espantados.
— Então você é uma espécie de híbrido? — perguntou Richard.
— Um pouco, talvez — disse Ellie rindo para diminuir a tensão. — Se
entendi bem, só uns mil dos três bilhões de quilobases que definem meu genoma
foram alterados... E, por falar nisso, Archie e as octoaranhas querem comprovar,
para a pesquisa científica delas, que sou de fato o resultado de um esperma
alterado. Elas querem tirar amostras do sangue e de outras células suas para
poderem concluir, sem sombra de dúvida, que eu não poderia vir de uma união
"normal" de vocês dois. Assim, elas saberiam ao certo que minha facilidade para a
língua delas foi realmente trabalhada, e não apenas uma sorte incrível.
— Que diferença faz a essa altura? — perguntou Richard. — Acho que o
importante é você poder se comunicar...
— Estou surpresa com você, papai; logo você, que sempre foi um
entusiasta do conhecimento... Para a sociedade das octoaranhas as, informações
são o ponto alto da escala de valores. Elas já estão quase certas, em função dos
testes que fizeram em mim e dos arquivos das octoaranhas dissidentes, de que
sou o resultado de um esperma alterado. E, se examinarem seus genomas com
detalhe, isso poderá ser confirmado.
— Tudo bem, estou às ordens — falou Nicole um pouco hesitante,
abraçando Ellie. — De qualquer forma que você tenha sido alterada, você é minha
filha e eu a amo de todo o meu coração. E estou certa de que seu pai também vai
concordar, depois de pensar um pouco sobre o assunto — concluiu Nicole,
olhando para Richard.
Nicole sorriu para Archie, e a octoaranha soltou o raio vermelho seguido
de um azul-cobalto e um amarelo brilhante, o que queria dizer "Obrigado" na sua
língua.

Na manhã seguinte, Nicole achou que deveria ter feito mais perguntas
antes de se propor a ajudar as octoaranhas em sua pesquisa científica. Logo
depois do café da manhã, duas outras octoaranhas vieram reunir-se a Archie, o
permanente companheiro alienígena, na pequena suíte dos humanos. Um dos
recém-chegados, apresentado por Ellie como o "dr. Azul", um acadêmico de
medicina muito influente, explicou o que iria ocorrer. O procedimento com
Richard seria simples e direto. As octos só necessitavam de dados sobre Richard
que corroborassem o arquivo histórico de sua visita à colônia dissidente anos
atrás.
Quanto a Nicole, no banco de dados das octoaranhas não havia
informações fisiológicas sobre ela. Mas as octos já sabiam, através dos exames
detalhados feitos em Ellie, que a forma pela qual as características genéticas dos
humanos se expressam é dominada pela contribuição da mãe à sua
descendência. Por isso, seria necessário um procedimento muito mais elaborado.
O dr. Azul propôs fazer uma complexa série de testes em Nicole, dos quais o mais
importante era juntar dados dentro do seu corpo por meio de uma dúzia de
criaturas mínimas espiraladas, com cerca de dois centímetros de comprimento e
da espessura de um alfinete. Quando o médico octoaranha pegou uma sacola de
plástico e Nicole viu as criaturazinhas que seriam introduzidas em seu corpo, ela
se encolheu, horrorizada.
— Mas eu achei que vocês só precisariam do meu código genético — disse
Nicole —, e isso está contido em todas as células... Não deve ser necessário...
Cores brilhantes circundaram a cabeça do dr. Azul quando ele
interrompeu a parte final do protesto de Nicole.
— Nossas técnicas para extrair as informações do seu genoma — traduziu
Ellie — ainda não são muito avançadas. Nossos métodos funcionam melhor se
tivermos várias células de vários órgãos e subsistemas biológicos diferentes.
Depois, o médico agradeceu gentilmente a Nicole por sua cooperação,
terminando com a seqüência de raios azul-cobalto e amarelo brilhante, que ela já
tinha aprendido a interpretar. O azul do "obrigado" desceu pela lateral da cabeça
do dr. Azul, produzindo um efeito tão bonito que distraiu a atenção da lingüista
que havia dentro de Nicole. Manter essas faixas coloridas de forma regular deve
ser um comportamento adquirido, pensou ela. E nosso doutor tem algum tipo de
dificuldade de fala.
Mas a atenção de Nicole voltou-se forçosamente para o procedimento a ser
iniciado, logo depois que o dr. Azul explicou que as criaturas enrascadas
correriam por debaixo de sua pele e para dentro do seu corpo, aí permanecendo
durante meia hora. Ai, pensou Nicole imediatamente, elas parecem
sanguessugas.
Uma foi colocada no seu antebraço, e Nicole levantou o braço para ver o
animalzinho abrir caminho £>ela sua pele. Nicole não sentiu nada enquanto
estava sendo invadida, mas quando o bichinho desapareceu lá por dentro ela
estremeceu sem querer.
Disseram para Nicole deitar-se de costas, e o dr. Azul mostrou-lhe duas
criaturas, uma vermelha e uma azul, com oito patinhas e do tamanho de uma
mosca.
— Talvez a senhora venha a sentir um certo desconforto — disse o médico
através de Ellie — quando as criaturas espiraladas chegarem aos seus órgãos
internos. Esses bichinhos podem ser usados como anestesia se a senhora quiser
ser aliviada da dor.
Menos de um minuto depois, Nicole sentiu uma picada aguda no peito.
Era como se alguma coisa estivesse cortando uma das câmaras do seu coração.
Quando o dr. Azul viu o rosto de Nicole vincado de dor, ele colocou as duas
moscas anestésicas no seu pescoço e em poucos segundos ela entrou num estado
peculiar, entre a vigília e o sonho. Ainda ouvia a voz de Ellie explicando o que
estava acontecendo, mas não sentia mais nada dentro do seu corpo.
Nicole se descobriu fixando o olhar na frente da cabeça do dr. Azul, que
supervisionava todo o procedimento. Para seu grande espanto, ela achou que
estava começando a reconhecer expressões de emoção nas rugas do rosto da
octoaranha. Lembrou-se de que quando era criança teve certeza de ter visto seu
cachorro sorrir. Há muita coisa para ver, pensou ela com seu espírito flutuante,
muito mais do que a gente costuma ver.
Nicole teve uma imensa sensação de paz. Fechou os olhos um instante e
quando os abriu de novo se viu como uma meninazinha de dez anos, chorando ao
lado do pai quando a tumba de sua mãe foi sendo consumida pelas chamas em
uma cerimônia de funeral adequada à rainha Senoufo. Seu velho avô Omeh, com
uma máscara para espantar os demônios que tentassem acompanhar a mãe de
Nicole na sua vida no além, aproximou-se e pegou sua mão.
— A profecia se realizou, Ronata — disse ele, usando o nome senoufo de
Nicole —, nosso sangue foi espalhado pelas estrelas.
A máscara do xamã desapareceu e Nicole viu outro conjunto de cores em
volta da cabeça do dr. Azul e ouviu a voz de Ellie. Minha filha é híbrida, pensou
ela sem emoção. Eu gerei uma coisa mais que humana. Uma novo tipo de
evolução teve início.
Seu espírito ficou flutuando de novo e ela sentiu-se como um pássaro
voando alto na escuridão acima das savanas da Costa do Marfim. Nicole tinha
saído da Terra, virado as costas para o Sol, e passado como um foguete pelo vazio
mais além do sistema solar. E ela via claramente o rosto de Omeh.
— Ronata — chamava ele no céu escuro da Costa do Marfim —, não se
esqueça. Você foi a escolhida.
E ele poderia saber disso, pensou Nicole, ainda na zona fronteiriça da
vigília, há tantos anos, lá na África, na Terra? E se soube, como foi possível? Ou
será que há ainda outra dimensão que estamos apenas começando a
compreender?

Richard e Nicole estavam sentados na semi-escuridão, temporariamente


sozinhos. Ellie e Eponine tinham saído com Archie para fazer os preparativos
para a viagem de volta na manhã seguinte.
— Você andou muito quieta o dia inteiro — disse Richard.
— É, estou me sentindo esquisita, como se estivesse drogada, desde
aquela última intervenção de hoje de manhã... Minha memória está muito
ativada. Tenho pensado nos meus pais e em Omeh. E estou tendo visões que
costumava ter anos atrás.
— Você ficou surpresa com o resultado dos testes? — perguntou Richard
depois de um instante de silêncio.
— Não muito. Acho que tanta coisa já nos aconteceu... E ainda me lembro
de quando Ellie foi concebida... Você ainda não tinha voltado completamente a
ser você próprio.
— Conversei muito com Ellie e Eponine esta tarde, enquanto você estava
dormindo. As mudanças que as octoaranhas induziram em Ellie são
permanentes, como mutações. Nikki provavelmente tem algumas dessas
características; depende da exata mistura genética. É claro que a dela será
diluída ao longo de outra geração...
Richard não terminou seu pensamento. Deu um bocejo e pegou a mão de
Nicole. Os dois ficaram quietos durante vários minutos, até Nicole quebrar o
silêncio.
— Richard, você se lembra de eu ter falado sobre as histórias dos
senoufos? Sobre a mulher da tribo, a filha de uma rainha, que diziam que levaria
o sangue senoufo "até as estrelas"?
— Vagamente — respondeu Richard. — Já faz muito tempo que
conversamos sobre isso.
— Omeh tinha certeza de que eu era a mulher dessa história... "a mulher
sem companhia", como ele dizia... Você acredita que há alguma possibilidade de
se poder conhecer o futuro?
Richard riu.
— Tudo na natureza segue certas leis. Essas leis podem ser expressas
como equações diferenciais no tempo. Se soubermos precisamente as condições
iniciais do sistema em uma certa época e as equações exatas que representam as
leis da natureza, então teoricamente podemos predizer todos os acontecimentos
futuros. Mas é claro que não podemos, pois nosso conhecimento é sempre
imperfeito, e as regras do caos limitam a aplicabilidade de nossas técnicas de
avaliação...
— Suponha — disse Nicole, apoiando-se no cotovelo — que houvesse
indivíduos ou até mesmo grupos que não conhecessem matemática, mas
pudessem de certa forma ver ou sentir as leis e as condições iniciais que você
mencionou. Será que eles solucionariam intuitivamente pelo menos parte das
equações e prediriam o futuro através de um insight que não podemos modelar
nem quantificar?
— É possível — disse Richard. — Mas lembre-se de que pretensões
extraordinárias exigem...
— ...provas extraordinárias. Eu sei disso — falou Nicole, fazendo uma
pausa por um instante. — Gostaria de saber o que é o destino. Será uma coisa
que nós humanos criamos em vista de um fato? Ou o destino é real? E se o
destino existe como conceito, como pode ser explicado pelas leis da física?
— Não estou te entendendo, querida — disse Richard.
— Isso tudo é confuso para mim também — falou Nicole. — Eu sou o que
sou porque, como Omeh insistia em dizer quando eu era uma garotinha, era meu
destino viajar no espaço? Ou eu sou o que sou em função das escolhas que fiz
pessoalmente e dos conhecimentos que desenvolvi conscientemente?
Richard riu novamente.
— Agora você está se avizinhando dos enigmas filosóficos fundamentais, o
debate entre a onisciência de Deus e o livre-arbítrio do homem.
— Não foi essa a minha intenção — falou Nicole pensativa. — Só não
consigo tirar da cabeça a idéia de que nada do que aconteceu na minha vida
absolutamente incrível seria surpresa para Omeh.

7
O café da manhã de despedida foi uma festa. As octoaranhas enviaram
mais de uma dúzia de diferentes frutas e legumes, e também um cereal quente,
feito, segundo Archie e Ellie, com as gramas muito altas plantadas ao norte da
usina elétrica. Enquanto eles comiam, Richard perguntou à octoaranha o que
tinha acontecido com os filhotes de aves Tammy e Timmy, os melões-maná e o
material séssil. Ele não ficou satisfeito com a resposta um tanto vaga de que
todas as outras espécies estavam bem.
— Olhe aqui, Archie — disse Richard com seu modo ríspido característico.
Ele agora se sentia à vontade com seu hospedeiro alienígena e achava que não
tinha mais de ser gentil o tempo todo. — Tenho mais do que um interesse
passageiro por aquelas aves. Eu as salvei e criei desde que elas nasceram, e
gostaria de vê-las nem que fosse por um instante... De qualquer forma, acho que
mereço uma resposta mais clara à minha pergunta.
Archie levantou-se, saiu pela porta da suíte e voltou uns minutos depois.
— Você vai poder ver as aves pessoalmente hoje à tarde, na nossa viagem
de volta — disse ele. — Quanto às outras espécies, dois ovos acabaram de ser
germinados e são agora filhotes de myrmigatos. O desenvolvimento deles está
sendo monitorado de perto do outro lado do nosso território e você não vai poder
visitá-los.
Os olhos de Richard brilharam.
— Dois deles germinaram! Como vocês conseguiram isso?
— Os ovos da espécie séssil devem ser colocados em um líquido
termicamente controlado durante um mês do tempo dos humanos antes mesmo
que o processo do desenvolvimento do embrião comece — disse Ellie,
interpretando as cores de Archie muito lentamente. — A temperatura deve ser
mantida dentro de um limite extremamente baixo, menos de um grau dos
humanos, no mesmo valor considerado ótimo para a manifestação da espécie dos
myrmigatos. Caso contrário, os processos de crescimento e desenvolvimento não
ocorrerão.
Richard ficou de pé.
— Então é este o segredo — disse ele, quase aos gritos. — Que droga, eu
devia ter pensado nisso. Tinha várias pistas, tanto das condições dentro do
habitat deles quanto dos murais que me foram mostrados... — Enquanto falava,
ele andava de um lado para outro na sala. — Mas como as octoaranhas souberam
isso? — perguntou, de costas para Archie.
Archie respondeu depressa depois que Ellie lhe traduziu a pergunta.
— Nós colhemos informações da outra colônia de octoaranhas. Os
arquivos delas explicavam toda a metamorfose dos sésseis.
Tudo parecia simples demais para Richard. Pela primeira vez, ele
suspeitou que talvez seu colega alienígena não estivesse dizendo toda a verdade.
Richard estava pronto para fazer mais algumas perguntas quando o dr. Azul
entrou na suíte com mais três octos, duas das quais carregavam um objeto
grande hexagonal, embrulhado num material semelhante a papel.
— O que é isso? — perguntou Richard.
— É nossa festa oficial de despedida — respondeu Ellie. — E um presente
dos moradores da cidade.
Uma das octoaranhas pediu a Ellie que juntasse todos os humanos na
avenida para a cerimônia de despedida. Os humanos pegaram seus pertences e
saíram pelo vestíbulo para as luzes brilhantes. Nicole ficou surpresa com o que
viu. Com exceção das octoaranhas que haviam saído da suíte com eles, a avenida
estava deserta. Até mesmo as cores dos jardins pareciam mais apagadas, como se
dois dias antes tivessem sido temporariamente avivadas por toda a atividade que
cercara a chegada de Nicole e Richard dois dias antes.
— Onde estão todos? — perguntou Nicole a Ellie.
— Tudo está quieto de propósito — respondeu a filha. — As octos não
queriam ver você alarmada de novo.
As cinco octoaranhas enfileiraram-se no meio da avenida, de costas para o
prédio em forma de pirâmide. As duas do lado direito equilibravam o embrulho
hexagonal, maior do que elas. Os quatro humanos enfileiraram-se do lado oposto
às octoaranhas, em frente aos jardins da cidade. A octoaranha do centro, que
Ellie havia finalmente apresentado como o "Chefe Otimizador" (depois de várias
tentativas vãs de encontrar uma palavra humana exata para a descrição feita por
Archie das obrigações do chefe das octoaranhas), deu um passo à frente e
começou a falar.
O Chefe Otimizador expressou sua gratidão a Richard, Nicole, Ellie e
Eponine, incluindo uma atenção especial com um "obrigado" a cada um, e disse
que esperava que aquele breve intercâmbio fosse o "primeiro de muitos" que
levariam a uma maior compreensão entre as duas espécies. Depois, declarou que
Archie voltaria com os humanos, não só para que o intercâmbio pudesse
continuar e expandir-se como também para demonstrar aos outros humanos que
agora existia uma confiança mútua entre as duas espécies.
Durante uma breve pausa, Archie deu um passo para a área entre as
duas fileiras, e Ellie acolheu-o simbolicamente no grupo viajante. As duas octos
da direita abriram o presente, uma pintura magnífica, representando em detalhes
tudo o que Richard e Nicole haviam visto quando entraram na Cidade de
Esmeralda. A pintura era tão viva que Nicole ficou pasma por um instante. Um
minuto depois, os humanos aproximaram-se da pintura para examinar os
detalhes. Todas as criaturas estranhas estavam ali representadas, inclusive os
três onduladores azul-rei, cujas antenas longas e retas apontadas para cima, na
direção de uma massa fervilhante, fez Nicole lembrar-se de como ficara
perturbada no dia anterior.
Enquanto examinava a pintura e imaginava como ela teria sido criada,
Nicole lembrou-se do quase desmaio que tivera ao presenciar aquela cena. Eu
estava tendo uma premonição de perigo?, falou a si mesma. Ou foi alguma outra
coisa? Deu uma olhada em volta e viu as octoaranhas conversando. Talvez tenha
sido uma epifania, um instante de reconhecimento de uma coisa muito além da
minha compreensão. Uma força ou um poder nunca sentido antes por nenhum ser
humano. E sentiu um arrepio na espinha quando os portões da Cidade de
Esmeralda começaram a se abrir.

Richard estava sempre se preocupando em dar nome às coisas. Depois de


inspecionar em menos de um minuto as criaturas com quem eles iriam viajar,
chamou-as de "emassauros".
— Esse nome não é muito imaginativo, querido — falou Nicole brincando.
— Talvez não seja, mas é uma descrição perfeita. Elas parecem emas
gigantes com cara e pescoço daqueles dinossauros herbívoros.
As criaturas tinham quatro pernas de pássaros, um corpo macio e
emplumado com uma concavidade nas costas, onde quatro humanos podiam
sentar-se, e um pescoço comprido que se estendia a três metros em qualquer
direção. Como suas pernas tinham cerca de dois metros de comprimento, o
pescoço podia encostar no chão sem dificuldade.
Os dois emassauros eram incrivelmente velozes. Archie, Ellie e Eponine
viajaram em um deles, ao qual tinha sido amarrada, com uma espécie de
barbante, a grande pintura hexagonal. Nicole e Richard foram sozinhos na outra.
Os emassauros não eram guiados por rédeas nem por qualquer outro meio de
controle, mas antes que o grupo partisse da Cidade de Esmeralda, Archie passara
dez minutos "conversando" com eles.
— Ele está explicando todo o trajeto — disse Ellie. — E também dando
instruções sobre o que deve ser feito em caso de acidente.
— Que tipo de acidente? — perguntou Richard aos gritos, mas Ellie deu de
ombros.
No início, Richard e Nicole tinham se agarrado às "penas" que rodeavam a
concavidade na qual eles estavam sentados, mas depois de alguns minutos
relaxaram. Os emassauros caminhavam de modo muito suave, com poucos
solavancos.
— Você acha — disse Richard, depois que a Cidade de Esmeralda sumiu
ao longe — que esses animais evoluíram naturalmente desta forma, com esta
concavidade quase perfeita no meio das costas? Ou que a engenharia genética
das octoaranhas criou essas criaturas para servirem de meio de transporte?
— Não tenho dúvida sobre isso — respondeu Nicole. — Acho que a maioria
das coisas vivas que nós vimos, inclusive aquelas criaturas escuras espiraladas
que andaram por debaixo da minha pele, foi projetada pelas octoaranhas para
funções específicas. Não poderia ser de outra forma.
— Mas não dá para acreditar que esses animais tenham sido projetados a
partir de um esboço. Isso implicaria uma tecnologia fantástica, muito além do
que se possa imaginar.
— Eu não sei, querido. Talvez as octoaranhas tenham viajado para muitos
sistemas planetários diferentes e encontrado em cada um deles formas de vida
que pudessem ser ligeiramente alteradas para se encaixar nos seus grandes
esquemas simbióticos... Mas não aceito a idéia de que essa biologia harmoniosa
tenha acontecido por uma evolução natural.
Os dois emassauros e os cinco viajantes foram guiados por três vaga-
lumes gigantes. Depois de umas duas horas, o grupo aproximou-se de um grande
lago que se estendia para o sul e para o oeste. Os emassauros agacharam-se no
chão para Archie e os humanos descerem.
— Vamos almoçar e beber água aqui — disse Archie aos outros, passando
para Ellie uma vasilha com comida e depois levando os emassauros até o lago.
Nicole e Eponine foram ver umas plantas azuis que cresciam à beira d'água, e
Richard e Ellie ficaram sozinhos.
— Sua desenvoltura na língua delas é impressionante — disse Richard
enquanto ia comendo.
Ellie riu.
— Não sou tão boa quanto pareço. As octos fazem frases muito simples
para eu poder entender. E falam devagar, em largas faixas de cor... Mas estou
melhorando... Não sei se você percebeu que elas não usam sua verdadeira língua
quando falam conosco. Usam uma forma derivada.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou Richard.
— Expliquei para a mamãe lá na Cidade de Esmeralda, mas ela
certamente não teve oportunidade de comentar esse assunto com você... A língua
verdadeira das octoaranhas consiste de sessenta e quatro símbolos coloridos,
como falei, mas onze não são acessíveis a nós. Oito ficam na parte infravermelha
do espectro, e as outras três na ultravioleta. Portanto nós só conseguimos
distinguir claramente cinqüenta e três símbolos. No início isso foi um grande
problema... Mas, por sorte, cinco dos onze símbolos que ficam de fora são
esclarecedores. De qualquer forma, as octoaranhas desenvolveram em nosso
benefício uma espécie de dialeto, que usa apenas as cores que podem ser vistas
por nós... Archie disse que esse novo dialeto está sendo ensinado em algumas
classes adiantadas...
— Fantástico — disse Richard. — Quer dizer que elas adaptaram sua
linguagem às nossas limitações físicas?
— Não exatamente, papai. Elas ainda usam sua verdadeira língua quando
conversam entre si. É por isso que eu nem sempre entendo o que estão dizendo...
Mas esse novo dialeto está sendo desenvolvido e expandido só para que as
comunicações conosco se tornem mais fáceis.
Richard terminou de almoçar. Estava para fazer uma pergunta a Ellie
sobre a língua das octoaranhas quando ouviu Nicole gritar:
— Richard — gritou ela a uns cinqüenta metros de distância —, olhe lá no
ar, na direção da floresta.
Richard esticou o pescoço, fez sombra para os olhos e viu a distância dois
pássaros voando na direção deles. Por alguma razão, só foi reconhecê-los quando
ouviu seus guinchos. Deu um pulo e correu para as aves. Tammy e Timmy, já
completamente crescidos, deram um mergulho no céu e baixaram ao lado de
Richard, que ficou tomado de alegria com seus guinchos incessantes e começou a
acariciá-los.
As duas aves pareciam perfeitamente saudáveis, e não havia vestígio de
tristeza em seus olhos. Richard e elas ficaram juntos durante algum tempo até
que Timmy se afastou, gritou alguma coisa num tom muito alto e saiu voando.
Dentro de poucos instantes, voltou com uma companheira de plumas aveludadas
cor de laranja, diferente de tudo o que Richard jamais vira. Richard ficou um
pouco confuso, mas percebeu que Timmy estava tentando apresentá-lo à sua
companheira.
O resto da reunião com as aves durou de dez a quinze minutos. Depois
que Archie explicou que aquele lago supria quase metade da água fresca do
território das octoaranhas, ele insistiu que se continuasse a viagem. Richard e
Nicole já estavam na concavidade das costas do emassauro quando as três aves
partiram. Tammy ficou sobrevoando o grupo por algum tempo, perturbando a
criatura que os transportava, e a certa altura seguiu o irmão e sua companheira
na direção da floresta.
Richard permaneceu muito quieto enquanto suas montarias se dirigiam
para a floresta.
— Essas aves significam muito para você, não é? — perguntou Nicole.
— Muito mesmo. Durante muito tempo elas foram minha única
companhia. Timmy e Tammy dependiam de mim para sobreviver... Criar essas
aves foi o primeiro ato da minha vida despido de egoísmo e me expôs a novas
dimensões tanto de ansiedade quanto de felicidade.
Nicole pegou a mão de Richard.
— Sua vida emocional foi uma verdadeira odisséia — disse ela suavemente
—, com cada parte tão diversa quanto a viagem que você empreendeu.
Richard beijou Nicole.
— Ainda tenho alguns demônios que precisam ser exorcizados. Talvez,
com a sua ajuda, dentro de mais dez anos eu me torne um ser humano decente.
— Você não se dá muito crédito, querido — disse Nicole.
— Para o meu cérebro dou bastante crédito — disse Richard, com uma
risadinha que mudou o tom da conversa. — E você sabe o que meu cérebro
estava pensando agora mesmo? De onde veio aquela ave com a barriga cor de
laranja?
Nicole ficou intrigada.
— Do segundo habitat — disse ela. — Você mesmo nos disse que lá devia
haver quase mil aves antes da invasão das tropas de Nakamura... As octoaranhas
também devem ter salvo algumas.
— Mas eu vivi lá durante meses — protestou Richard. — E nunca vi uma
ave com a barriga cor de laranja. Nenhuma, senão eu teria me lembrado.
— O que você está querendo dizer?
— Nada. Mas estou começando a imaginar se nossas amigas octoaranhas
não têm alguns segredos que ainda não discutiram conosco.

Eles chegaram ao grande iglu próximo do mar Cilíndrico depois de


algumas horas. O pequeno iglu brilhante que havia a seu lado tinha
desaparecido. Archie e os quatro humanos apearam. A octoaranha e Richard
desamarraram a pintura hexagonal e encostaram-na na parede do iglu, e depois
Archie chamou os emassauros e deu-lhes instruções para sua viagem de volta.
— Eles não podem ficar um pouco aqui? — perguntou Nicole. — As
crianças iriam adorar vê-los.
— Infelizmente não — respondeu Archie. — Eles são poucos e muito
necessários.
Embora Eponine, Ellie, Richard e Nicole se sentissem cansados com a
viagem, estavam muito animados para se encontrarem com os outros. Antes de
saírem do iglu, Eponine e Ellie olharam-se no espelho e ajeitaram os cabelos.
— Por favor, minha gente — disse Eponine —, quero pedir um favor. Não
digam a ninguém que estou curada enquanto eu não contar ao Max em
particular. Esta vai ser minha surpresa para ele.
— Espero que Nikki me reconheça — falou Ellie nervosa, quando
começaram a descer a primeira escada e entraram no corredor que levava ao
patamar. O grupo todo ficou com medo de que os outros estivessem dormindo
àquela hora, mas Richard conferiu no seu computador e garantiu que debaixo da
cúpula do arco-íris eles estavam no meio da manhã.
Os cinco andaram pelo patamar, olhando para o chão circular abaixo. Os
gêmeos Kepler e Galileu estavam brincando, e a pequena Nikki os olhava e ria.
Nai e Max descarregavam a comida do trem do metrô, que aparentemente
acabara de chegar. Eponine não se conteve e gritou.
— Max, Max!
Max reagiu como se tivesse levado um tiro. Deixou cair a comida que
estava carregando e virou-se para o patamar. Ao ver Eponine acenando para ele,
saiu zunindo para a escada em espiral. Dois minutos depois apareceu no
patamar e apertou Eponine nos braços.
— Oh, minha francesinha — disse ele, levantando-a do chão e abraçando-
a com fúria —, como eu senti a sua falta!
8
Archie sabia fazer todo tipo de truques com as bolas coloridas. Pegava
duas bolas de repente e jogava-as em direções diferentes; jogava com seis bolas
simultaneamente usando quatro dos seus tentáculos, pois só precisava dos
outros quatro no chão para manter o equilíbrio. As crianças adoravam quando
Archie rodava as três ao mesmo tempo no ar, e ele parecia nunca se cansar de
brincar com elas.
No início é claro que as crianças tiveram medo do seu visitante alienígena.
Embora Ellie garantisse que Archie era amigo, a pequena Nikki ficava muito
preocupada, pois lembrava-se do terror que havia sido o seqüestro da mãe. Benjy
foi o primeiro a aceitar Archie como companheiro de brincadeiras. Os gêmeos
Watanabe ainda não tinham coordenação suficiente para brincadeiras
complicadas, e Benjy ficou feliz quando percebeu que Archie gostaria de brincar
com ele de pegar ou de outros jogos de bola.
Max e Robert ficaram perturbados com a presença de Archie. Aliás, uma
hora depois da chegada dos quatro humanos e da octoaranha, Max foi ver
Richard e Nicole no quarto deles.
— Eponine me disse — falou ele com raiva — que essa maldita octoaranha
vai viver aqui conosco. Vocês todos ficaram malucos?
— Pense em Archie como um embaixador, Max — explicou Nicole. — As
octos querem estabelecer uma comunicação regular conosco.
— Mas foram essas mesmas octoaranhas que seqüestraram sua filha e a
minha namorada, e as detiveram contra sua vontade por mais de um mês... E
você está me dizendo que devemos ignorar tudo isso que elas fizeram?
— Houve sobejas razões para esses seqüestros — replicou Nicole, olhando
ligeiramente para Richard. — E as mulheres foram bem tratadas... Por que você
não conversa com Eponine sobre isso?
— Eponine só faz elogiar as octoaranhas — falou Max. — É como se
tivesse sofrido uma lavagem cerebral... Pensei que vocês dois seriam mais
razoáveis.
Mesmo depois que Eponine contou a Max que as octoaranhas a tinham
curado do RV-41, ele continuou cético.
— Se isso for verdade — disse ele —, é a melhor notícia que recebo desde
que aqueles robôs apareceram na fazenda e confirmaram que Nicole tinha
chegado sã e salva a Nova York. Mas tenho muita dificuldade em aceitar esses
monstros de oito patas como nossos benfeitores. Quero que o doutor Turner
examine você com cuidado. Se ele disser que você está curada, então eu acredito.
Robert Turner foi abertamente hostil a Archie desde o começo. Nada que
Nicole ou até mesmo Ellie dissessem podia neutralizar a raiva que ele sentia
desde o seqüestro de Ellie. Seu orgulho profissional também foi gravemente
atingido com a aparente facilidade com que Eponine havia sido curada.
— Você espera demais, como sempre, Ellie — disse Robert na segunda
noite que passaram juntos. — Você chega, com notícias maravilhosas sobre esses
alienígenas que a afastaram de Nikki e de mim, e espera que a gente os abrace
imediatamente. Isso não é justo. Preciso de tempo para compreender e digerir
tudo o que está me contando... Você não percebe que Nikki e eu ficamos
traumatizados com o seu seqüestro? Temos cicatrizes emocionais profundas
causadas por essas mesmas criaturas que você agora quer que eu veja como
amigas... Não posso mudar de opinião da noite para o dia.
Robert também ficou perturbado com a informação de Ellie sobre as
mudanças genéticas no esperma de Richard, embora isso explicasse por que o
genoma de sua mulher não se encaixava na classificação dos testes que seu
colega Ed Stafford fizera no Novo Éden.
— Como pode ficar tão calma sabendo que é híbrida? — perguntou a Ellie.
— Você não compreende o que isso significa? Quando as octoaranhas alteraram o
seu DNA para melhorar sua resolução visual e fazer com que você aprendesse a
língua delas mais depressa, elas adulteraram um forte código genético que veio
evoluindo naturalmente ao longo de milhões de anos. Quem sabe que doenças,
suscetibilidades, enfermidades ou até mesmo mudanças negativas de fertilidade
poderão aparecer em você ou nas gerações subseqüentes? As octos podem
inconscientemente ter condenado todos os nossos netos.
Ellie não conseguiu apaziguar seu marido. Quando Nicole começou a
trabalhar com Robert para pesquisar se Eponine estava na verdade curada do
RV-41, notou que Robert se irritava toda vez que ela fazia um elogio a Archie ou
às octoaranhas.
— Precisamos dar mais tempo a Robert — disse Nicole para a filha uma
semana depois que voltaram. — Ele ainda acha que foi violado pelas octos, não só
porque seqüestraram você, mas também porque contaminaram os genes da sua
filha.
— Mamãe, há também outro problema... Sinto que Robert tem um ciúme
muito especial. Ele acha que passo muito tempo com Archie... E não aceita que
Archie só possa se comunicar com alguém através de mim.
— Como eu disse, precisamos ser pacientes. Com o tempo, Robert vai
aceitar a situação.
Mas pessoalmente Nicole tinha suas dúvidas. Robert estava determinado a
encontrar algum resquício do vírus RV-41 em Eponine; quando os testes feitos
com seu equipamento portátil, relativamente sem sofisticação, não mostraram
qualquer patogenia no sistema dela, continuou a apelar para outros
procedimentos. Como profissional, Nicole era de opinião de que não havia
necessidade de mais testes. Embora houvesse uma remota probabilidade de que
o vírus os tivesse iludido e continuasse em algum lugar dentro de Eponine, Nicole
achava que era praticamente certo que ela estivesse curada.
Os dois médicos entraram em conflito um dia depois de Ellie ter
confidenciado à mãe que Robert estava com ciúmes de Archie. Quando Nicole
sugeriu que parassem de fazer testes em Eponine e a considerassem curada,
ficou chocada ao ouvir o genro dizer que pretendia abrir a cavidade torácica de
Eponine para fazer uma biópsia dos tecidos que circundavam seu coração.
— Mas Robert — disse Nicole —, você já teve algum caso em que os testes
não tivessem apresentado vírus, mas que ainda houvesse patogenia ativa na
região cardíaca?
— Só com morte iminente, e com o coração deteriorado — admitiu Robert.
— Mas isso não impede que a mesma situação possa ocorrer mais cedo no ciclo
da doença.
Nicole ficou pasma. Não discutiu com Robert, pois sabia, pela rigidez de
seus músculos, que ele já havia decidido o que fazer em seguida. Mas uma
cirurgia extracorpórea é sempre um risco, mesmo realizada por mãos hábeis,
pensou Nicole. Neste ambiente, qualquer tipo de acidente poderia ser fatal. Por
favor, Robert, seja razoável. Caso contrário, serei forçada a ficar contra você em
favor de Eponine.

Max pediu para falar com Nicole em particular logo depois que Robert
recomendou a cirurgia cardíaca.
— Eponine está assustada — contou Max —, e eu também... Ela voltou da
Cidade de Esmeralda mais cheia de vida do que nunca. Robert primeiro me disse
que os testes terminariam em uns dois dias... Eles já duram quase duas
semanas, e agora ele vem com essa de fazer uma biópsia do tecido do coração
dela...
— Eu sei — disse Nicole com ar sombrio. — Ele me falou na noite passada
que ia recomendar uma cirurgia extracorpórea.
— Por favor, me ajude — disse Max. — Quero ter certeza de que
compreendi os fatos direito. Você e Robert examinaram o sangue de Eponine
várias vezes, e também vários tecidos do seu corpo que às vezes mostram
quantidades mínimas de vírus, e todos os espécimes foram negativos, sem
sombra de dúvida.
— Isso mesmo, Max — falou Nicole.
— E não é verdade que quando Eponine era examinada, desde que
contraiu o RV-41 anos atrás, seus exames de sangue indicavam a presença do
vírus?
— É — respondeu Nicole.
— Então por que Robert quer operar Eponine? Será que não quer
acreditar que ela está curada? Ou está sendo excessivamente cuidadoso?
— Não posso responder por ele.
Nicole olhou para o amigo e os dois perceberam qual seria a próxima
pergunta dele e como ela a responderia. Há decisões difíceis de serem tomadas na
vida, pensou ela. Quando eu era mais moça, tentava conscientemente evitar me
colocar numa posição em que fosse forçada a tomar decisões assim. Agora
compreendo que, se elas forem evitadas, alguém terá de decidir por mim. E às
vezes a decisão é errada.
— Se você fosse a médica encarregada do caso, Nicole — perguntou Max
— operaria Eponine?
— Não — respondeu ela com cuidado. — Acredito que é quase certo que
Eponine tenha sido curada pelas octoaranhas e que o risco de uma cirurgia não
se justifica.
Max sorriu e beijou a amiga na testa.
— Obrigado — disse.

Robert ficou ofendidíssimo. Lembrou a todos que passara mais de quatro


anos de sua vida estudando essa doença específica e tentando encontrar uma
cura para ela, e que sabia muito mais sobre o RV-41 do que todos eles juntos.
Como podiam ter mais fé numa cura alienígena do que na sua habilidade
cirúrgica? Como sua própria sogra, cujo conhecimento do RV-41 limitava-se ao
que ele lhe ensinara, tivera a coragem de emitir uma opinião diferente? Robert
não tinha o apoio de ninguém do grupo, nem mesmo de Ellie, de quem acabou se
afastando depois de várias discussões desagradáveis.
Durante dois dias, Robert recusou-se a sair do seu quarto. Não respondia
nem mesmo à filha Nikki quando ela lhe desejava boa noite. Sua família e seus
amigos ficaram profundamente preocupados com o tormento de Robert, mas não
sabiam como poderiam confortá-lo. A questão da estabilidade emocional de
Robert foi abordada em várias discussões. Todos concordaram que ele parecia
deslocado desde que fugira do Novo Éden, e que seu comportamento havia se
tornado cada vez mais imprevisível depois do seqüestro de Ellie.
Ellie contou à sua mãe que Robert tinha agido de forma "estranha" desde
que ela voltara.
— Ele não me procurou como mulher nenhuma vez — disse, com voz
triste. — Como se achasse que eu estava contaminada com a minha experiência...
Ele fica dizendo coisas como: "Ellie, você queria ser seqüestrada?"
— Tenho pena de Robert — falou Nicole. — Ele tem uma carga emocional
muito grande, que vem desde do tempo do Texas. E isso tudo foi demais para ele.
Nós devíamos ter...
— Mas o que a gente pode fazer por ele agora? — perguntou Ellie.
— Eu não sei, querida. Não sei mesmo.
Ellie tentou superar aqueles tempos difíceis ajudando Benjy a aprender a
língua das octoaranhas. Seu meio-irmão era absolutamente fascinado com tudo o
que dizia respeito aos alienígenas, inclusive com a pintura hexagonal trazida da
Cidade de Esmeralda. Benjy olhava para o quadro várias vezes por dia, e nunca
perdia uma chance de fazer perguntas sobre as espantosas criaturas retratadas
no quadro. Através de Ellie, Archie respondia pacientemente a todas as perguntas
dele.
Benjy tinha decidido, logo depois que começou a brincar regularmente
com Archie, que queria aprender a reconhecer pelo menos algumas frases do
vocabulário das octoaranhas. Observou que Archie sabia fazer leitura labial, e
queria mostrar-lhe que até mesmo um "humano retardado", se adequadamente
motivado, podia aprender um pouco da língua alienígena para manter uma
conversação simples.
Ellie e Archie começaram a ensinar o fundamental para Benjy. Ele
aprendeu as cores das octoaranhas para "sim" e "não", "obrigado" e "por favor"
sem dificuldade alguma. Os números também foram muito fáceis, pois tanto os
cardinais quanto os ordinais eram essencialmente uma combinação de
seqüências de duas cores básicas, vermelho vivo e verde-malaquita, usadas de
forma binaria e assinaladas na seqüência da frase por uma esclarecedora cor de
salmão. O que deu mais trabalho a Benjy foi compreender que as cores
individuais em si não significavam nada. Uma faixa castanho-avermelhada, por
exemplo, representava o verbo "compreender" caso fosse seguida de uma faixa
malva e um esclarecedor; porém, se a combinação castanho/malva fosse seguida
de um vermelhão, a palavra de três faixas significava "planta em flor".
As cores individuais também não faziam parte do alfabeto, em estrito
senso. Às vezes, a largura das cores, quando comparada com outras na
seqüência mais longa que definia uma única palavra, mudava o sentido
completamente. A combinação castanho/malva só significava "compreender" se
as duas faixas de cor fossem aproximadamente da mesma largura. A palavra
definida por um castanho-siena estreito seguido de um malva com o dobro da
largura significava "capacidade".
Benjy lutou com a língua, fazendo todas as repetições que lhe exigiam com
extrema aplicação. Sua ânsia para aprender serviu de consolo para Ellie, que
estava muito amargurada, sem saber como solucionar sua crise com Robert.

No início do terceiro dia do auto-exílio de Robert no seu quarto, o trem do


metrô chegou, como sempre, com seu suprimento de meia semana de comida e
água. Só que dessa vez chegaram também duas octoaranhas, que
desembarcaram e foram conversar com Archie. A família reuniu-se, esperando
ouvir alguma notícia incomum.
— As tropas humanas estão de novo em Nova York — contou Archie — e
estão se preparando para quebrar a tranca da toca de vocês. Dentro de pouco
tempo, eles descobrirão os túneis do metrô.
— Então, o que devemos fazer? — perguntou Nicole.
— Nós gostaríamos que vocês viessem viver conosco na Cidade de
Esmeralda — disse Archie. — Minhas colegas previram essa possibilidade e já
terminaram o projeto de uma parte especial da cidade só para vocês, que pode
ficar pronta em poucos dias.
— E se não quisermos ir? — perguntou Max.
Archie conversou rapidamente com as duas outras octoaranhas.
— Então podem ficar aqui esperando as tropas. Nós mandaremos o
máximo de comida que pudermos, mas vamos começar a desmontar o metrô
assim que tivermos evacuado todas as nossas associadas na parte norte do mar
Cilíndrico.
Archie continuou a falar, mas Ellie parou de traduzir. Pediu que as frases
seguintes fossem repetidas várias vezes, e enfim virou-se para sua família e seus
amigos, muito pálida.
— Infelizmente — traduziu ela —, as octoaranhas têm de se preocupar
com o seu bem-estar. Portanto, se algum de vocês decidir não vir conosco, terá
sua memória a curto prazo bloqueada, e não poderá lembrar-se com detalhes de
nenhum acontecimento ocorrido nas últimas semanas.
Max deu um assobio.
— Isso é que é comunicação e amizade! — disse ele. — Na hora do aperto,
todas as espécies funcionam do mesmo jeito.
Ele andou até Eponine e segurou sua mão. Eponine olhou-o intrigada
quando Max a empurrou para junto de Nicole e perguntou:
— Você pode nos casar? Nicole ficou aturdida.
— Neste instante? — perguntou ela.
— Neste exato instante — respondeu Max. — Eu amo esta mulher que
está ao meu lado e quero ter com ela uma fantástica lua-de-mel lá no iglu antes
que as coisas por aqui virem um inferno.
— Mas eu não tenho qualificação para... — protestou Nicole.
— Você é a mais qualificada para isso aqui — interrompeu Max. — Vamos,
pelo menos faça uma coisa o mais aproximada possível. — A noiva estava muda e
sorridente.
— Você, Max Puckett, aceita esta mulher, Eponine — disse Nicole
hesitante — como sua legítima esposa?
— Aceito, e já deveria ter feito isso há meses — respondeu Max.
— E você, Eponine, aceita este homem, Max Puckett, como seu legítimo
esposo?
— Aceito, Nicole, com muito prazer.
Max puxou Eponine e beijou-a apaixonadamente.
— Agora, Ar-chi-bald — disse, enquanto ele e Eponine dirigiam-se para a
escada —, caso lhe interesse saber, a francesinha e eu pretendemos ir com você
para a Cidade de Esmeralda da qual ela tanto fala. Mas não estaremos por aqui
nas próximas vinte e quatro horas ou talvez mais um pouco, dependendo da
energia de Eponine, e não queremos ser perturbados.
Max e Eponine foram depressa para a escada cilíndrica e desapareceram.
Ellie quase terminara de explicar a Archie o que estava se passando quando os
recém-casados acenaram do patamar no alto da escada. E todos riram quando
Max puxou Eponine para trás na direção do corredor.

Ellie sentou-se sozinha ao lado da parede, na luz sombria. É agora ou


nunca, pensou. Preciso tentar mais uma vez.
Lembrou-se da cena ocorrida algumas horas antes.
— É claro que você quer ir com seu amigo, a octoaranha Archie — disse
Robert com ironia. — E está pensando em levar Nikki com você.
— Todos vão aceitar o convite — explicou Ellie, sem tentar esconder as
lágrimas. — Por favor, venha conosco, Robert. Elas são uma espécie gentil, com
muito senso moral.
— Elas fizeram lavagem cerebral em vocês todos. De alguma forma
levaram vocês a crer que elas são melhores do que sua própria espécie — disse
Robert, olhando para Ellie com certa repugnância. — Sua própria espécie! Isso é
uma piada. Pois acho que você é tão octoaranha quanto humana.
— Isso não é verdade, querido — disse Ellie. — Eu já disse várias vezes
que elas só fizeram pequenas mudanças em mim... Sou tão humana quanto
vocês...
— Por quê, por quê, por quê? — gritou Robert de repente. — Por que me
deixei convencer a vir para Nova York? Devia ter ficado lá, onde estava cercado de
coisas que eu compreendia...
Apesar das suas súplicas, Robert foi inflexível. Ele não iria para a Cidade
de Esmeralda. E parecia até mesmo estar contente por sua memória recente ser
bloqueada pelas octoaranhas.
— Talvez — disse ele rindo com amargura — eu não guarde lembrança
alguma da sua volta. Assim não vou me lembrar que minha mulher e filha são
híbridas, e que meus amigos íntimos não têm respeito pela minha capacidade
profissional... É, vou poder me esquecer deste pesadelo das últimas semanas; vou
me lembrar apenas de que foi roubada de mim, como a minha primeira mulher,
quando eu ainda amava você desesperadamente.
Robert andava em volta da sala com um ar de fúria, e Ellie tentava
acalmá-lo e confortá-lo.
— Não, não! — gritou ele, evitando o carinho da esposa. — Agora é tarde
demais. Estou sofrendo muito. Não agüento mais.
No final da tarde, Ellie foi pedir conselhos à sua mãe, mas Nicole não
conseguiu dar nenhum alívio à filha. Disse que Ellie não devia desistir, mas
lembrou à filha que nada no comportamento de Robert indicava que ele tivesse
mudado de opinião.
Por sugestão de Nicole, Ellie aproximou-se de Archie e pediu-lhe um favor.
Se Robert insistisse em não partir com eles, será que Archie ou uma das outras
octoaranhas poderia levar Robert de volta para a toca deles, onde seria
encontrado depressa pelos outros humanos? Archie respondeu hesitante que sim.
Eu te amo, Robert, disse Ellie a si mesma, quando finalmente desistiu. E
Nikki também te ama. Nós queremos que você vá conosco, pois você é meu
marido e pai dela. Ellie respirou fundo e entrou no seu quarto.

Até mesmo Richard ficou com lágrimas nos olhos quando Robert Turner,
depois de dar um último abraço na esposa e na filha, foi andando com passos
hesitantes atrás de Archie até o metrô, a vinte metros de distância. Nikki chorava
baixinho, mas não percebia bem o que estava acontecendo. Ela ainda era muito
pequena.
Robert virou-se, deu um rápido adeus e entrou no trem. Em poucos
segundos o trem enfiou-se pelo túnel, e, menos de um minuto depois, o grupo
sombrio animou-se com os gritos de alegria ouvidos do patamar da escada.
— Olá, pessoal — gritou Max —, é melhor vocês se prepararem para uma
grande festa.
Nicole olhou para cima, por baixo da cúpula, e mesmo a distância, na luz
mortiça, viu os sorrisos radiantes dos recém-casados. É isso aí, pensou ela, ainda
com o coração doído pela perda sofrida pela filha. Tristeza e alegria. Alegria e
tristeza. Por onde haja seres humanos. Na Terra. Em novos mundos além das
estrelas. Agora e para sempre.
A CIDADE DE ESMERALDA

1
O pequeno transporte sem motorista parou numa praça circular, de onde
saíam ruas em cinco direções. Uma mulher escura, de cabelos grisalhos, e sua
companheira octoaranha desceram juntas do carro. Quando a octoaranha e a
mulher afastaram-se lentamente da praça, o transporte partiu, com as luzes
internas apagadas.
Um vaga-lume gigante solitário voava adiante de Nicole e do dr. Azul,
enquanto os dois iam conversando pela rua quase escura. Nicole teve o cuidado
de pronunciar bem as palavras para que seu amigo alienígena não tivesse
dificuldade em ler seus lábios. O dr. Azul respondia em amplas faixas de cor,
usando frases simples que sabia que Nicole poderia entender.
Quando chegaram à primeira das quatro moradias brancas de um andar,
no final de uma rua sem saída, a octoaranha tirou do chão um dos seus
tentáculos e deu um aperto de mão em Nicole.
— Boa noite — disse ela com um sorriso. — Foi um ótimo dia... Obrigada
por tudo.
Depois que o dr. Azul entrou na sua casa, Nicole foi até a fonte decorativa
que formava uma ilha no meio da rua e bebeu de uma das quatro torneiras que
jorravam um contínuo filete de água à altura da cintura. Um pouco da água que
espirrou no rosto de Nicole caiu na bacia, criando borbulhas na poça rasa.
Mesmo à luz mortiça, Nicole pôde ver as criaturinhas nadando para baixo e para
cima. Existem limpadores por todo lado, pensou ela, especialmente quando
estamos por perto. A água que encostou no meu rosto será purificada em segundos.
Nicole virou-se e aproximou-se das três outras casas da rua sem saída.
Quando atravessou o portal da casa, o vaga-lume lá de fora voou pela rua até a
praça. No átrio, Nicole bateu levemente na parede uma vez, e em poucos
segundos um vaga-lume menor, pouco brilhante, apareceu no corredor à sua
frente. Ela parou em um dos dois banheiros e foi até a porta do quarto de Benjy,
que roncava sonoramente. Nicole ficou observando o sono do filho por um
instante e depois continuou pelo corredor até o quarto principal que ela usava
com o marido.
Richard também dormia, pois não respondeu ao seu "alô". Nicole tirou os
sapatos e saiu do quarto. Quando chegou ao escritório, bateu duas vezes na
parede e a iluminação ficou mais forte. O escritório estava apinhado com os
componentes eletrônicos de Richard, que as octoaranhas haviam juntado para ele
durante vários meses. Nicole riu para si mesma quando foi abrindo caminho por
entre aquelas peças todas até chegar à sua escrivaninha. Ele sempre tem um
projeto, pensou ela. Pelo menos o tradutor será muito útil.
Nicole sentou-se na cadeira da escrivaninha, abriu a gaveta do meio e
tirou seu computador portátil, que as octoaranhas haviam finalmente adaptado
com novos subsistemas. Depois de abrir o ícone diário no menu, Nicole começou
a digitar, olhando de vez em quando para o pequeno monitor, a fim de ler o que
estava escrevendo.

Dia 221
Cheguei em casa muito tarde e, como esperava, todos estavam dormindo.
Fiquei tentada a tirar a roupa e me enfiar na cama com Richard, mas meu dia foi
tão extraordinário que fui compelida a escrever enquanto meus pensamentos e
sentimentos ainda estão frescos na minha cabeça.
Tomei o café da manhã aqui, com todo o clã humano, como sempre, mais
ou menos uma hora depois do alvorecer. Nai falou sobre o que as crianças iam
fazer na escola antes da sesta, Eponine disse que sua azia e enjôo estão
melhorando, e Richard queixou-se de que os "mágicos biológicos" (nossos
hospedeiros octoaranhas, é claro) eram medíocres engenheiros eletrônicos. Tentei
participar da conversa, mas minha crescente curiosidade e ansiedade com
relação ao encontro que teria pela manhã com os médicos octoaranhas ocupavam
meu pensamento.
Minha barriga estava roncando quando cheguei à sala de conferências da
pirâmide, logo depois do café. O dr. Azul e seus colegas médicos estavam prontos,
e as octoaranhas entraram imediatamente em uma longa discussão sobre o que
haviam deduzido dos testes de Benjy. O jargão médico já é difícil de entender na
nossa própria língua, mas foi quase impossível para mim seguir o que eles diziam
com suas cores. Várias vezes tive de pedir que repetissem algumas frases.
Em pouco tempo a resposta deles ficou evidente. Sim, os médicos
octoaranhas podiam definitivamente ver, por comparação, que o genoma de Benjy
era diferente do genoma de todos os outros. Sim, todos achavam que o grupo
específico de genes do cromossoma 14 era quase certamente a razão da síndrome
de Whittingham. Não, eles sentiam muito mas não viam nenhuma forma de sanar
esse problema, nem usando alguma coisa que interpretei como um transplante
de gene. Era muito complexo, disseram as octoaranhas, envolvia muitas cadeias
de aminoácidos, eles não tinham bastante experiência com seres humanos, havia
muitas chances de ocorrerem erros terríveis...
Chorei quando compreendi o que estavam me dizendo. E por acaso
esperava outra coisa? Por acaso pensei que de alguma forma a mesma habilidade
médica milagrosa que livrara Eponine do vírus RV-41 poderia curar Benjy de um
defeito congênito? Percebi, no meu desespero, que estava na verdade esperando
um milagre, embora racionalmente reconhecesse com muita clareza a diferença
significativa entre um mal congênito e um vírus adquirido. O dr. Azul tentou me
consolar ao máximo. Deixei minhas lágrimas maternas escorrerem pelo meu
rosto ali em frente às octoaranhas, pois sabia que precisaria manter minha
coragem quando voltasse para casa e contasse tudo isso aos outros.
Nai e Eponine souberam dos resultados assim que olharam para mim. Nai
adora Benjy e está sempre elogiando sua determinação em aprender apesar dos
obstáculos que ele tem de enfrentar. Benjy é espantoso. Passa horas e horas no
quarto, estudando suas lições com todo o afinco, lutando durante dias para
compreender a idéia de frações ou decimais que um menino normal de nove anos
de idade entenderia em meia hora. Na semana passada, Benjy sentiu-se
orgulhoso quando me mostrou que podia encontrar o menor denominador
comum para somar as frações 1/4, 1/5 e 1/6.
Nai é sua professora primária. Eponine é muito amiga de Benjy. Ep
provavelmente sentiu-se pior do que todos hoje de manhã. Ela estava certa, já
que as octoaranhas a haviam curado tão depressa, de que o problema de Benjy
também seria sanado pela magia médica. Mas não foi assim. Eponine soluçou
tanto hoje de manhã que fiquei preocupada com o bebê, mas ela deu uma
palmadinha na barriga e me disse para eu não me preocupar. Depois riu e disse
que sua reação provavelmente se devia aos seus hormônios superativados.
Os três homens ficaram nitidamente muito perturbados, mas não
mostraram muita emoção. Patrick saiu do quarto depressa, sem dar uma palavra.
Max expressou seu desapontamento com um grupo colorido de palavras de cinco
letras. E Richard fez uma careta e sacudiu a cabeça.
Nós tínhamos combinado, antes de começar os exames, não dizer a Benjy
o verdadeiro objetivo daqueles testes das octoaranhas. Será que ele sabia? Será
que imaginava o que estava ocorrendo? Talvez. Mas naquela manhã, quando eu
disse a ele que as octoaranhas tinham concluído que ele era um rapaz saudável,
não vi nada no seu olhar que sugerisse que ele estava a par do que acontecera.
Depois dei-lhe um abraço bem forte, lutando para não chorar de novo, voltei para
meu quarto e deixei que a dor de ter um filho retardado tomasse conta de mim
mais uma vez.
Tenho certeza de que Richard e o dr. Azul combinaram manter minha
cabeça ocupada o resto do dia. Eu estava no quarto havia apenas uns vinte
minutos quando ouvi baterem levemente na porta. Era Richard, dizendo que o dr.
Azul estava no vestíbulo, e que dois cientistas octoaranhas esperavam por mim
na sala de conferências. Eu estava esquecendo que iam fazer naquele dia uma
apresentação detalhada para mim sobre o sistema digestivo das octoaranhas?
A discussão com as octoaranhas foi tão fascinante que consegui me
esquecer temporariamente que o retardo do meu filho ia além da magia médica
delas. Os colegas do dr. Azul me mostraram desenhos anatômicos complexos do
interior das octoaranhas, detalhando todos os órgãos principais de seu aparelho
digestivo. Os desenhos eram feitos numa espécie de pergaminho ou couro, e
estavam espalhados em cima da mesa grande. As octoaranhas me explicaram, na
sua maravilhosa linguagem de cores, absolutamente tudo o que acontece com o
alimento dentro do seu corpo.
O mais curioso do processo digestivo das octoaranhas são os dois grandes
sacos nas duas extremidades do sistema. Tudo o que elas comem vai diretamente
para um saco de entrada, onde o alimento pode ficar durante até trinta dias. O
próprio corpo da octoaranha, baseado no nível de atividade individual, determina
automaticamente a velocidade com a qual o alimento do fundo do saco é
acessado, transformado quimicamente e distribuído para as células a fim de
gerar energia.
Na outra extremidade fica o saco residual, no qual é jogado todo o
material que não pode ser convertido em energia útil pelo organismo da
octoaranha. Aprendi que toda octoaranha saudável tem um animalzinho
chamado "devorador" (esta é minha melhor tradução para as cores com que as
octoaranhas se referem às centopéias minúsculas que vivem no seu saco
residual). Esse animalzinho nasce de um minúsculo ovo depositado por seu
antecessor dentro da octoaranha hospedeira. O devorador é essencialmente
onívoro; consome 99 por cento dos resíduos depositados no saco durante o mês
humano que ele leva para amadurecer. Quando chega à fase adulta, o devorador
deposita dois novos ovos, dos quais só um irá germinar, e deixa para sempre a
octoaranha na qual vivia.
O saco de entrada localiza-se bem atrás e abaixo da boca. As octoaranhas
comem muito raramente, mas quando o fazem elas literalmente se entopem.
Tivemos uma longa discussão sobre os seus hábitos alimentares. Dois fatos que o
dr. Azul mencionou surpreenderam-me bastante: primeiro, que quando o saco de
entrada fica vazio a octoaranha morre imediatamente, em menos de um minuto;
segundo, que um bebê octoaranha precisa aprender a monitorar o nível do seu
suprimento alimentar. Imagine! O bebê não sabe instintivamente quando está
com fome! Ao perceber meu espanto, o dr. Azul riu (uma seqüência confusa de
curtos raios coloridos) e garantiu-me que a inanição não é uma causa básica de
morte das octoaranhas.
Depois da minha sesta de três horas (ainda não consigo passar o longo dia
das octoaranhas sem dormir um pouco; do nosso grupo, só Richard é capaz de
abster-se da sesta regularmente), o dr. Azul me informou que, em vista do meu
interesse pelo processo digestivo delas, as octoaranhas haviam decidido mostrar-
me duas outras características especiais da sua biologia.
Entrei num transporte com as três octos, passei por um dos dois portões
da nossa área e atravessei a Cidade de Esmeralda. Achei que aquela viagem pelo
campo também tinha sido planejada para diminuir minha frustração com o
problema de Benjy. Enquanto viajávamos, o dr. Azul me lembrou (era difícil
prestar atenção ao que ele dizia, pois tínhamos saído da nossa área e eu via
criaturas fascinantes ao lado do nosso carro e nas ruas, inclusive muitas da
mesma espécie que eu vira rapidamente quando entrei pela primeira vez na
Cidade de Esmeralda) que as octoaranhas eram um gênero polimorfo e que havia
seis diferentes tipos adultos da espécie de octos que colonizaram nossa nave
Rama.
— Lembre-se — disse ele com suas cores — que um dos possíveis
parâmetros de variação é o tamanho.
Não havia possibilidade de eu estar preparada para o que vi vinte minutos
depois. Descemos do transporte em frente a um enorme armazém. Em cada
extremidade do prédio sem janelas havia duas octoaranhas colossais e bizarras,
com a cabeça medindo pelo menos sete metros de diâmetro, o corpo parecendo
um pequeno dirigível, e longos tentáculos cinzentos, em vez de pretos e dourados
como o normal. O dr. Azul informou-me que essa morfologia particular tinha uma
única função; servir de depósito alimentar para a colônia.
— Cada "repleta" (minha tradução das cores do dr. Azul) pode armazenar
centenas de alimentos para os sacos de uma octoaranha adulta comum — disse o
dr. Azul. — Como os nossos sacos de entrada podem manter os alimentos
normais durante trinta dias, ou quarenta e cinco dias numa dieta de energia
reduzida, imagine o que um grande armazém com dezenas dessas "repletas"
representa.
Enquanto eu ia observando, cinco octoaranhas aproximaram-se de uma
das suas irmãs colossais e falaram alguma coisa com suas cores. Dentro de
alguns segundos a criatura inclinou-se para a frente, baixou a cabeça até quase
encostar no chão e cuspiu uma pasta grossa da boca enorme, logo abaixo da sua
lente leitosa. As cinco octos de tamanho normal juntaram-se em volta do monte
formado pela pasta e alimentaram-se com seus tentáculos.
— Fazemos isso várias vezes ao dia com a "repleta" — disse o dr. Azul. —
Essas criaturas gigantes têm de ter muita prática, pois não são muito
inteligentes. Você deve ter notado que nenhuma delas fala com cores. Elas não
têm nenhuma capacidade de se exprimir pela linguagem, e sua mobilidade é
muito limitada. Seus genomas foram projetados para que elas armazenem os
alimentos com eficiência, preservem-nos durante longos períodos e os regurgitem
para alimentar a colônia quando solicitadas.
Eu ainda estava pensando nas imensas "repletas" quando nosso
transporte chegou ao que me disseram ser uma escola para octoaranhas. Antes
de entrarmos, comentei que a escola parecia deserta, ao que um dos médicos
octoaranhas respondeu que a colônia tivera um recente reabastecimento, se é que
entendi bem as cores. Mas ninguém me explicou claramente o que isso
significava.
Por uma extremidade da escola, entramos em um pequeno prédio sem
móveis. Dentro havia duas octoaranhas adultas e cerca de vinte mais jovens, de
mais ou menos metade do tamanho das outras, fazendo obviamente um exercício
de repetição. Mas não consegui seguir a conversa entre os jovens e seus
professores, primeiro porque as octoaranhas estavam usando seu alfabeto
completo, inclusive o ultravioleta e o infravermelho, e segundo porque a conversa
das "jovens" não usava raios de cores regulares como os que eu aprendera a ler.
O dr. Azul explicou que estávamos presenciando parte de uma "classe de
medição", onde os jovens são treinados para fazer avaliações da própria saúde,
inclusive para avaliar a quantidade de comida contida em seus sacos de entrada.
Depois que o dr. Azul me disse que a "medição" era uma parte integral do
currículo inicial de aprendizado para os jovens, perguntei por que as cores
usadas por eles eram irregulares. O dr. Azul explicou que as octoaranhas que
estavam ali eram muito novinhas, que não conheciam muito mais que a "primeira
cor" e que mal podiam comunicar suas idéias.
Depois que voltamos para a sala de conferência, as octoaranhas fizeram-
me várias perguntas sobre o sistema digestivo dos humanos. As perguntas eram
muito sofisticadas (dissecamos passo a passo o ciclo do ácido cítrico Krebs, por
exemplo, e falamos sobre outros elementos da bioquímica humana de que eu mal
me lembrava), e fiquei novamente espantada ao ver como as octoaranhas sabem
muito mais sobre nós do que nós sobre elas. Como sempre, eu nunca tinha de
repetir minhas perguntas.
Que dia! Começou com a triste notícia de que as octoaranhas não
poderiam ajudar Benjy. Depois, ao sair do meu desânimo motivada por tudo o
que aprendi naquele dia sobre as octoaranhas, percebi como a psique humana é
moldável. Fico assombrada com a variedade de emoções que os humanos
possuem, e como eles mudam rapidamente e se adaptam.
Eponine e eu estávamos falando na noite passada sobre a nossa vida aqui
na Cidade de Esmeralda, e como nossa condição especial de vida afetará as
atitudes do bebê que ela vai ter. A certa altura, Ep sacudiu a cabeça e sorriu.
— Você sabe o que é mais espantoso? — disse ela. — Aqui estamos nós,
um contingente humano isolado, vivendo num território alienígena dentro de uma
nave espacial colossal com destino ignorado... Mesmo assim nossos dias são
pontuados de risos, entusiasmo, tristeza e decepções, exatamente como se
estivéssemos na Terra.
— Isso pode parecer um waffle — disse Max —, e pode ter a textura do
waffle, mas certamente não tem gosto de waffle.
— Ponha mais geléia nele — disse Eponine, rindo. — E passe o prato para
cá.
Max passou os waffles para sua esposa.
— Que merda, francesinha — disse ele —, nessas últimas semanas você
tem comido tudo o que passa pela sua frente. Dá até para pensar que você e o
nosso bebê têm um desses sacos de entrada. Nicole me contou como eles
funcionam.
— Seria bem prático — disse Richard distraído. — A gente podia
armazenar comida e não precisava parar de trabalhar só para atender ao
estômago.
— Este cereal é o melhor de todos — falou Kepler do outro lado da mesa.
— Aposto que até o Hércules gostaria dele...
— Por falar em Hércules — interrompeu Max baixinho, olhando de um
lado da mesa para o outro —, qual é a intenção dele? Essa maldita octoaranha
aparece toda manhã, duas horas antes do alvorecer, e fica por aí. Quando as
crianças estão estudando com Nai, ela fica sentada na sala de trás...
— Ele brinca conosco, tio Max — gritou Galileu. — Hércules é realmente
muito divertido, e faz tudo o que pedimos... Ontem ele me deixou socar a sua
cabeça como se fosse um saco de areia.
— Segundo Archie — falou Nicole —, Hércules é o observador oficial. As
octoaranhas são muito curiosas, querem saber tudo sobre nós, até mesmo os
detalhes mais corriqueiros.
— Está tudo bem — replicou Max —, só que temos um ligeiro problema.
Quando você, Ellie e Richard forem embora, ninguém vai entender o que Hércules
disser. Oh, é claro que Nai sabe umas frases simples, mas nada mais sério.
Ontem, por exemplo, quando todos estavam fazendo a sesta, aquele maldito
Hércules me seguiu até o banheiro. Não sei como é com vocês, mas eu não
consigo resolver meus problemas nem mesmo com Eponine por perto. Com um
alienígena olhando para mim a uns metros de distância meu esfíncter ficou
absolutamente paralisado.
— Por que você não mandou Hércules ir embora? — perguntou Patrick
rindo.
— Mandei, mas ele continuou a me olhar com o líquido correndo pelas
suas lentes e a repetir o mesmo grupo de cores que era totalmente ininteligível
para mim.
— Você se lembra das cores? — perguntou Ellie. — Talvez eu possa dizer o
que Hércules estava falando com você.
— É claro que não — respondeu Max. — Além do quê, agora não adianta
mais... Não estou sentado aqui tentando cagar.
Os gêmeos Watanabe caíram na gargalhada, e Eponine fez uma cara feia
para o marido. Benjy, que quase não tinha falado durante o café da manhã, pediu
licença para levantar-se da mesa.
— Você está bem, querido? — perguntou Nicole.
Benjy fez que sim e saiu da sala, seguindo para seu quarto.
— Ele sabe de alguma coisa? — perguntou Nai.
Nicole sacudiu a cabeça e virou-se para sua neta. — Você já terminou de
comer, Nikki?
— Já, vovó — respondeu a menininha. Pediu licença e um instante depois
Kepler e Galileu fizeram o mesmo.
— Acho que Benjy sabe mais do que todos nós imaginamos — disse Max,
assim que as crianças foram embora.
— Talvez você tenha razão — falou Nicole com suavidade. — Mas ontem,
quando falei com ele, não vi nenhuma indicação de que... — Nicole parou no meio
da frase e virou-se para Eponine: — A propósito, como você está se sentindo
hoje?
— Muito bem. O bebê estava muito ativo antes de clarear o dia. Ficou me
chutando durante quase uma hora; dava até para ver seus pezinhos se mexendo
por baixo da minha barriga. Tentei fazer com que Max sentisse os chutes, mas ele
ficou todo cheio de dedos.
— E por que você chama o bebê de ele, francesinha, se sabe muito bem
que eu quero uma menina igualzinha a você?...
— Não acredito nem um minuto em você, Max Puckett — interrompeu
Eponine. — Você só diz que quer uma menina para não ter decepções. Nada o
agradaria mais do que ter um filho para ser seu companheiro... Além do mais, é
comum a gente referir-se ao bebê como ele quando o sexo ainda não foi
especificado.
— O que me leva a uma outra questão sobre nossas octoaranhas
especialistas — disse Max, tomando um gole do simulacro de café e olhando para
Ellie e depois para Nicole. — Alguma de vocês duas sabe qual é o sexo das nossas
amigas octoaranhas, se é que elas têm sexo? — perguntou rindo. — Não vi nada
no corpo delas que me desse uma pista...
Ellie sacudiu a cabeça.
— Não sei, Max. Archie me disse que Jamie não é filho dele nem do dr.
Azul, pelo menos não no mais estrito senso biológico.
— Então Jamie deve ser adotado — falou Max. — Mas Archie é o homem e
o dr. Azul a mulher, ou vice-versa? Ou nossos vizinhos são um desses casais gays
que criam um filho?
— Talvez as octoaranhas não tenham o que chamamos de sexo — falou
Patrick.
— Então de onde vêm as novas octoaranhas? — perguntou Max. — Elas
certamente não surgem do ar.
— As octoaranhas são tão avançadas biologicamente — disse Richard —
que talvez tenham um processo de reprodução que nos pareceria uma verdadeira
mágica.
— Eu perguntei ao dr. Azul sobre o sistema de reprodução delas várias
vezes — disse Nicole. — Ele respondeu que é um assunto complicado,
especialmente porque as octoaranhas são polimorfas; depois falou que explicaria
tudo para mim logo que eu compreendesse os outros aspectos da biologia delas.
— Então, se eu fosse uma octoaranha — disse Max com uma risadinha —
ia querer ser um desses palermas que Nicole viu ontem. Deve ser o máximo ter
como única função comer e comer, para armazenar comida para todos os seus
irmãos... Que vida! Eu conheci o filho de um criador de porcos lá em Arkansas
que era como uma "repleta". Mas ele guardava a comida só para ele. Não dava
nada nem para os porcos... Acho que ele pesava mais de trezentos quilos quando
morreu, aos trinta anos.
Eponine terminou seu waffle.
— Piadas sobre gordura na presença de mulheres grávidas mostram falta
de sensibilidade — disse ela, fingindo estar ofendida.
— Que droga, Ep — falou Max —, você sabe que nada dessa merda
funciona mais. Nós somos animais de um zoológico aqui na Cidade de Esmeralda,
e estamos presos uns aos outros. Os humanos só se preocupam com sua
aparência quando são comparados com os outros.
Nai pediu licença para sair da mesa.
— Tenho de acabar de preparar umas aulas para hoje — disse ela. —
Nikki vai começar a aprender os sons consonantais; ela já fez todos os exercícios
do alfabeto.
— Tal mãe, tal filha — disse Max. Depois que Patrick saiu da sala de
jantar, deixando na mesa só os dois casais e Ellie, Max debruçou-se para a frente
com um sorriso malicioso nos lábios. — Meus olhos estão me enganando ou o
jovem Patrick está passando muito mais tempo com Nai do que passava logo que
chegou aqui?
— Acho que você está certo, Max — falou Ellie. — Eu notei a mesma coisa.
Ele me disse que se sente útil ajudando Nai com Benjy e as crianças. Afinal de
contas, você e Eponine se dedicam um ao outro e ao futuro bebê, eu estou
sempre ocupada com Nikki e as octoaranhas, mamãe e papai também se ocupam
com mil coisas...
— Você não entendeu o que eu disse, mocinha — falou Max. — Estou
pensando se está se formando um outro casal no nosso meio.
— Patrick e Nai? — perguntou Richard, como se a idéia tivesse lhe
ocorrido pela primeira vez.
— É, querido — falou Nicole rindo. — Richard pertence à categoria de
gênio com a capacidade de observação muito seletiva. Ele não deixa escapar
nenhum detalhe de um dos seus projetos, por menor que seja. Mas não vê as
mudanças óbvias no comportamento das pessoas. Lembro-me de uma vez no
Novo Éden, quando Katie começou a usar minissaia...
Nicole parou. Era difícil para ela falar sobre Katie sem ficar emocionada.
— Kepler e Galileu notaram que Patrick fica rondando Nai o dia inteiro —
disse Eponine. — Nai falou que Galileu está ficando com ciúmes.
— E o que Nai comenta sobre Patrick? — perguntou Nicole. — Está
contente com a atenção dele?
— Você conhece Nai — respondeu Eponine. — Sempre gentil, sempre
pensando nos outros. Acho que ela está preocupada com os problemas que um
possível relacionamento entre Patrick e ela poderia acarretar para os gêmeos.
Todos os olhos se voltaram para o visitante que apareceu na porta.
— Bem, bem. Bom dia, Hércules — disse Max, levantando-se da cadeira.
— Que surpresa agradável!... Está precisando de alguma coisa?
A octoaranha entrou na sala de jantar com as cores jorrando de sua
cabeça.
— Ele está dizendo que veio ajudar Richard com seu tradutor automático
— traduziu Ellie. — Principalmente com as partes que ficam fora do nosso
espectro visível.

2
Nicole estava sonhando. Dançava num ritmo africano em volta de uma
fogueira, num bosque na Costa do Marfim. Era Omeh quem liderava a dança. Ele
estava vestido com a túnica verde que tinha usado quando fora a Roma alguns
dias antes de a nave Newton ser lançada no espaço. Todos os seus amigos
humanos da Cidade de Esmeralda, além das octoaranhas mais íntimas deles,
também dançavam no círculo em torno da fogueira. Kepler e Galileu brigavam.
Ellie e Nikki estavam de mãos dadas. Hércules, a octoaranha, estava vestido com
uma roupa africana roxa brilhante. Eponine estava em adiantada gravidez e
muito pesada. Nicole ouviu chamarem seu nome do lado de fora do círculo. Seria
Katie? Seu coração disparou quando ela tentou reconhecer a voz.
— Nicole — dizia Eponine ao lado de sua cama. — Estou tendo
contrações. Nicole sentou-se e sacudiu a cabeça.
— Com que freqüência? — perguntou automaticamente.
— Estão irregulares. Tive duas com cinco minutos de intervalo e depois
nada mais durante meia hora.
Provavelmente é só uma acomodação, pensou Nicole. Ainda faltam cinco
semanas para completar a gravidez.
— Venha deitar no sofá — falou Nicole, vestindo seu robe. — E diga-me
quando a próxima contração começar.
Max ficou esperando na sala enquanto Nicole terminava de lavar as mãos.
— Ela está tendo o bebê? — perguntou.
— Provavelmente, não — disse Nicole, fazendo uma ligeira pressão na
barriga de Eponine para tentar localizar o bebê.
Enquanto isso, Max andava na sala de um lado para o outro.
— Eu daria tudo por um cigarro agora — resmungou.
Quando Eponine teve outra contração, Nicole percebeu que havia uma
ligeira pressão na cérvix não dilatada. Ficou preocupada porque não tinha
absoluta certeza de onde o bebê estava.
— Desculpe, Ep — disse Nicole depois de uma segunda contração cinco
minutos depois. — Eu acho que é um falso trabalho de parto, uma espécie de
exercício do corpo, mas posso estar errada... Nunca lidei com gravidez nesse
estágio sem fazer uma monitoração com algum tipo de equipamento...
— Algumas mulheres têm bebês mais cedo, não é? — perguntou Eponine.
— Têm, mas é raro. Só um por cento das primíparas tem parto com quatro
semanas de antecedência. E quase sempre devido a alguma complicação. Ou
hereditariedade... Por acaso você ou um de seus irmãos foi prematuro?
Eponine sacudiu a cabeça.
— Eu nunca soube nada sobre a minha família verdadeira.
Droga, pensou Nicole. Estou quase certa de que são contrações de
acomodação... Mas não tenho certeza absoluta...
Nicole disse a Eponine para se vestir e voltar para casa.
— Preste atenção nas contrações. O importante é o intervalo entre uma
série de contrações sucessivas. Quando elas ocorrerem regularmente, a cada
quatro minutos mais ou menos, sem espaçamentos significativos, então volte
para cá.
— Pode ser algum problema? — perguntou Max a Nicole, enquanto
Eponine se vestia.
— Não é provável, Max, mas há sempre essa possibilidade.
— O que você acha de pedir ajuda a nossos amigos, os mágicos
biológicos? — perguntou ele. — Por favor, desculpe se eu estiver te ofendendo,
mas é que...
— Já pensei nisso, Max. E já decidi conversar com o dr. Azul hoje de
manhã.

Max ficou nervoso muito antes de o dr. Azul começar a abrir o que ele
chamava de vidro dos insetos.
— Espere um instante, doutor — falou Max, encostando levemente a mão
no tentáculo que segurava o jarro. — O senhor se importa de me explicar o que
vai fazer antes de soltar essas criaturas?
Eponine estava deitada no sofá na sala de sua casa. Estava nua, mas
quase toda coberta com dois lençóis das octoaranhas. Nicole ficou segurando sua
mão durante os vários minutos que as três octoaranhas levaram para montar o
laboratório portátil. Depois, ela foi para o lado de Max para poder traduzir o que o
dr. Azul dizia.
— O dr. Azul não é especialista nesse campo — traduziu Nicole. — Ele
está dizendo que uma das outras duas octoaranhas terá de explicar os detalhes
do processo.
Depois de uma ligeira conversa entre as três octoaranhas, o dr. Azul deu
um passo para o lado e outro alienígena ficou diretamente em frente a Nicole e a
Max. O dr. Azul informou a Nicole que aquela octo, a quem chamava de
"engenheiro de imagens", estava começando a aprender o dialeto simplificado
usado para a comunicação com os humanos.
— Talvez ele tenha um pouco de dificuldade para compreender — disse o
dr. Azul.
— Essas coisinhas no jarro — disse Nicole um segundo depois que as
cores começaram a jorrar da cabeça do engenheiro — chamam-se... quadróides
de imagem, acho que essa seria uma tradução adequada... De qualquer forma,
elas são câmeras vivas em miniatura que rolarão dentro de Eponine para
fotografar o bebê. Cada quadróide tem capacidade de... vários milhões de
elementos fotográficos que podem ser distribuídos para até 512 imagens por nillet
de octoaranha. Elas podem até mesmo criar uma imagem em movimento..
Nicole hesitou e virou-se para Max.
— Estou simplificando tudo isso, se você não se importar. É altamente
técnico, e tudo em matemática das octoaranhas. O engenheiro estava me
explicando no final todas as formas em que o usuário pode especificar as fotos.
Richard teria adorado ouvir isso.
— Lembre-se de me dizer de novo quantos minutos há em um nillet —
falou Max.
— Mais ou menos vinte e oito segundos — respondeu Nicole. — Oito
nillets em um feng, oito fengs em um woden, oito wodens em um tert, e oito terts
num dia das octoaranhas. Richard calcula que o dias delas tenha trinta e duas
horas, quatorze minutos e pouco mais de seis segundos.
— Que bom que alguém entende dessas coisas — falou Max.
Nicole olhou de novo para o engenheiro de imagens e a conversa
continuou.
— Cada quadróide de imagem — traduziu ela devagar — atinge o alvo
especificado, tira as fotos e volta para o processador de imagens, aquela caixa
cinza ao lado da parede, onde ele joga a imagem, recebe sua recompensa e volta
para a fila.
— O quê? Que tipo de recompensa? — perguntou Max.
— Mais tarde, Max — disse Nicole, lutando para entender uma frase que
já tinha pedido para a octoaranha repetir. Nicole ficou em silêncio por um
instante, depois sacudiu a cabeça e virou-se para o dr. Azul. — Desculpe, mas
não consegui entender a última frase.
As duas octoaranhas se falaram rapidamente em seu dialeto natural e
depois o engenheiro de imagens virou-se de novo para Nicole.
— OK — disse ela a uma certa altura —, acho que entendi agora... Max, a
caixa cinza é uma espécie de gerenciador de dados programável, que armazena os
dados das células vivas e prepara os outputs dos quadróides para serem
projetados na parede, ou onde quer que se queira ver a imagem, conforme o
protocolo escolhido...
— Já tive uma idéia da coisa — interrompeu Max. — Tudo isso vai muito
além do meu conhecimento... Se você acha que essa geringonça não vai fazer mal
a Ep, é melhor começarmos logo.
O dr. Azul entendeu o que Max disse. A um sinal de Nicole, ele e as outras
octoaranhas saíram da sala dos Pucketts e foram buscar uma espécie de gaveta
no transporte estacionado do lado de fora.
— Neste container — disse o dr. Azul para Nicole — encontram-se vinte a
trinta dos menores membros da nossa espécie, morfologias cuja função básica é
comunicar-se diretamente com os quadróides e as outras criaturazinhas que
fazem esse sistema funcionar... As morfologias irão, na verdade, gerenciar essa
intervenção.
— Meu Deus! — disse Max quando a gaveta abriu-se e as octos
minúsculas, com uns dois centímetros de altura, começaram a espalhar-se pelo
meio da sala... — Essas... — gaguejava Max — são as que Eponine e eu vimos no
labirinto azul, na toca do outro lado do mar Cilíndrico.
— As morfologias midget — explicou o dr. Azul — tomam a nossa
dianteira e organizam todo o processo. São elas que irão programar a caixa
cinza... Agora, só precisamos que vocês especifiquem o tipo de imagens que
querem e onde querem vê-las.

A grande foto colorida da parede da sala dos Pucketts mostrava um lindo


menino perfeitamente formado, enchendo quase todo o útero da mãe. Max e
Eponine estavam celebrando há uma hora, desde que puderam ver pela primeira
vez que o bebê era um menino. Mais para o fim da tarde, quando Nicole aprendeu
melhor a especificar o que queria ver, a qualidade das fotos melhorou
sensivelmente. Agora, a imagem, com o dobro do tamanho natural, estava
espantosamente clara.
— Posso ver ele chutar mais uma vez? — perguntou Eponine.
O engenheiro de imagens disse alguma coisa para a midget-chefe, e em
menos de um nillet foi mostrada mais uma vez a imagem do jovem Puckett
chutando dentro da barriga da mãe.
— Olhe que pernas fortes! — exclamou Max, agora mais relaxado. Depois
de recobrar-se do choque das imagens iniciais, Max tinha se preocupado com
toda a parafernália que rodeava seu filho dentro do útero de Eponine. Nicole
acalmara aquele marinheiro de primeira viagem, mostrando a ele o cordão
umbilical e a placenta, e garantindo que estava tudo normal.
— Então eu não vou ter um bebê prematuro, não é? — perguntou Eponine
quando a filmagem terminou.
— Não — respondeu Nicole. — Acho que ainda faltam de cinco a seis
semanas. Em geral, os bebês chegam um pouco atrasados... Talvez você ainda
tenha algumas contrações intermitentes daqui até o dia do parto, mas não se
preocupe.
Nicole, Max e Eponine agradeceram muito ao dr. Azul. Depois, as
octoaranhas guardaram todos os componentes biológicos e não-biológicos do seu
laboratório portátil. Quando as octoaranhas partiram, Nicole atravessou a sala e
pegou a mão de Eponine.
— Es-tu heureuse? — perguntou à amiga.
— Completamente — respondeu Eponine. — E também aliviada. Eu
pensei que havia alguma coisa errada.
— Não. Foi só um alarme falso.
Max atravessou a sala e deu um abraço em Eponine. Ele estava exultante.
Nicole afastou-se um pouco e ficou observando a cena. Em hora alguma um casal
se ama tanto quanto antes do nascimento de seu primeiro filho.
Nicole aprontou-se para ir embora.
— Espere um instante — disse Max. — Você não quer saber como ele vai
se chamar?
— É claro que sim — respondeu Nicole.
— Marius Clyde Puckett — disse Max orgulhoso.
— Marius — acrescentou Eponine — porque ele era o amante com que a
desamparada Eponine sonhava em Les misérables. Eu vivia sonhando com um
Marius nas minhas noites solitárias do orfanato. E Clyde em homenagem ao
irmão de Max de Arkansas.
— É um nome excelente — falou Nicole sorrindo para si mesma, ao virar-
se para ir embora. — Um nome excelente.

Richard não conseguia conter sua alegria ao voltar para casa naquela
tarde.
— Passei duas horas fascinantes na sala de conferências com Archie e as
outras octoaranhas — disse ele para Nicole em sua voz alta. — Eles me
mostraram todo o aparato que usaram com você e Eponine hoje. Fantástico! Que
gênio incrível! Não, mágico é um termo melhor. Eu digo isso desde o princípio,
essas malditas octoaranhas são mágicos biológicos. Imagine só... Elas têm
criaturas vivas que funcionam como câmeras fotográficas, um conjunto de
insetos microscópicos que lêem imagens e armazenam cada pixel individual, uma
espécie de urdidura genética deles mesmos que controla o processo, e uma
quantidade limitada de componentes eletrônicos, se necessário, para realizar as
tarefas normais de gerenciamento de dados... Quantos milhares de anos se
passaram para tudo isso ocorrer? Quem arquitetou tudo isso, em primeiro lugar?
É uma coisa absolutamente estarrecedora!
Nicole sorriu para o marido.
— Você viu o Marius? O que achou dele?
— Eu vi todas as fotos hoje à tarde — continuou Richard, exultante. —
Você sabe como as midgets se comunicam com os quadróides de imagem?
Usando um comprimento de onda especial na faixa extrema do ultravioleta do
espectro. Isso mesmo. Archie me disse que aqueles insetozinhos e as octoaranhas
midgets têm uma linguagem própria. E não é tudo. Algumas morfologias têm até
oito linguagens diferentes de microespécies. Até o próprio Archie pode se
comunicar com quarenta outras espécies, quinze usando as cores básicas das
octoaranhas e o resto num conjunto de linguagens que inclui sinais, agentes
químicos e outras partes do espectro eletromagnético.
Richard ficou parado por um instante no meio do quarto.
— Isso é incrível, Nicole, simplesmente incrível.
Ele ia dar início a outro monólogo quando Nicole perguntou como as octos
comuns e as midgets se comunicavam.
— Não vi nenhum grupo de cores na cabeça delas hoje — disse Nicole.
— Elas conversam em ultravioleta — respondeu Richard, começando a
andar pela sala de novo. De repente virou-se e apontou para o meio de sua testa.
— Nicole, aquela lente no meio da fenda na cabeça das octoaranhas é um
verdadeiro telescópio, capaz de receber informações em praticamente qualquer
comprimento de onda... É fantástico! Elas organizaram todas essas formas de
vida em um grande sistema simbiótico muito mais complexo do que qualquer
coisa que nós já concebemos...
Richard sentou-se no sofá ao lado de Nicole.
— Olhe — disse ele, mostrando seus braços para ela —, ainda estou
arrepiado... Essas criaturas me deixam pasmo... Jesus, ainda bem que elas não
são hostis.
Nicole olhou para o marido com um ar sério.
— Por que você diz isso?
— Elas podiam comandar um exército de bilhões, ou talvez trilhões.
Aposto que elas podem até falar com as plantas! Você viu como elas tomaram
uma providência rápida aquele dia na floresta... Imagine o que seria se o seu
inimigo pudesse controlar todas as bactérias, até mesmo os vírus, e fazer com
que eles acatassem suas ordens... Que idéia assustadora!
Nicole riu.
— Você não acha que está exagerando? Só porque elas trabalharam
geneticamente um grupo de câmeras vivas não quer dizer que...
— Eu sei — falou Richard, pulando do sofá. — Mas não posso deixar de
pensar na extensão lógica do que vimos hoje... Nicole, Archie admitiu para mim
que o único objetivo das octoaranhas midgets é permitir lidar com o mundo
minúsculo. As midgets podem ver coisas do tamanho de um micrômetro, ou seja,
um milésimo de um milímetro... Agora estenda essa idéia a outras várias ordens
de magnitude. Imagine uma espécie cujas morfologias envolvam quatro a cinco
relações semelhantes à relação entre as octoaranhas normais e as midgets. Talvez
a comunicação com as bactérias não fosse nada impossível.
— Richard — disse Nicole —, você não vai dizer nada sobre o filho de Max
e Eponine? Que ele parece ter uma saúde perfeita?
Richard ficou quieto por um instante.
— É maravilhoso — ele disse, um pouco encabulado. — Eu acho que devia
ir até lá dar os parabéns aos dois.
— Talvez seja melhor esperar para jantar — falou Nicole, olhando para um
dos relógios especiais que Richard fizera para ela. Era um relógio que mostrava o
tempo humano em relação com o tempo das octoaranhas.
— Faz uma hora que Patrick, Ellie, Nikki e Benjy estão na casa de Max e
Eponine — continuou Nicole sorrindo —, desde que o dr. Azul trouxe umas fotos
do pequeno Marius no útero. Como você diria, eles devem chegar em casa dentro
de um feng.

3
Nicole terminou de escovar os dentes e olhou seu reflexo no espelho.
Galileu tinha razão. Sou uma velha.
Esfregou o rosto com os dedos, massageando metodicamente as rugas
espalhadas por toda a face. Ouviu Benjy e os gêmeos brincando e depois Nai e
Patrick chamando-os para a escola. Eu não nasci velha, pensou ela. Houve uma
época em que também ia à escola.
Nicole fechou os olhos, tentando lembrar-se de como era em criança mas
não conseguiu definir uma imagem clara de si própria naquela época. Várias
outras imagens de anos intermediários distorciam a imagem de Nicole a
menininha indo para o colégio.
A certa altura reabriu os olhos e olhou-se no espelho. Na imaginação,
apagou todas as bolsas sob os olhos e as rugas do rosto. Mudou a cor do cabelo e
das sobrancelhas de cinza para preto-escuro e, vendo-se finalmente uma bela
mulher de vinte e um anos, sentiu uma saudade intensa daqueles seus dias de
juventude. Pois nós éramos jovens, e sabíamos que nunca iríamos morrer,
lembrou-se ela.
Richard enfiou a cabeça pela porta.
— Ellie e eu vamos trabalhar com Hércules no escritório — disse ele. —
Por que você não vem também?
— Daqui a pouco — respondeu Nicole. Enquanto ajeitava o cabelo, pensou
na rotina desse grupo de humanos na Cidade de Esmeralda. Em geral, eles se
reuniam no café da manhã na sala dos Wakefield. A escola terminava antes da
hora do almoço. Depois da refeição todos menos Richard faziam a sesta, uma
acomodação ao dia oito horas mais longo. Nicole, Ellie e Richard passavam quase
todas as tardes com as octoaranhas, aprendendo cada vez mais sobre suas
hospedeiras ou contando suas experiências do planeta Terra. Os outros quatro
adultos ficavam a maior parte do tempo com Benjy e as crianças, no seu canto
sem saída.
E aonde tudo isso nos leva?, Nicole perguntou de repente a si própria. Por
quantos anos seremos hóspedes das octoaranhas? E o que acontecerá quando
Rama chegar a seu destino?
Nicole não tinha resposta para nenhuma dessas perguntas. Até Richard
tinha deixado de se preocupar com o que acontecia fora da Cidade de Esmeralda.
Ele estava completamente envolvido com as octoaranhas e seu projeto de
tradução, e passara a só pedir dados da navegação celestial a Archie de dois em
dois meses. A cada vez Richard informava aos outros, sem acrescentar seu
comentário, que Rama ainda seguia na direção geral da estrela Tau Ceti.
Como o pequeno Marius, pensou Nicole, nós estamos contentes aqui no
nosso útero. Enquanto o mundo exterior não se impuser a nós, não faremos
perguntas transcendentais.
Nicole saiu do banheiro e seguiu pelo corredor até o escritório. Richard
estava sentado no chão entre Hércules e Ellie.
— Identificar o modelo da cor e registrar a seqüência no processador é
fácil — dizia ele. — O mais difícil na tradução é converter automaticamente o
modelo das cores em uma frase inteligível em inglês.
Richard olhou para Hércules e falou bem devagar.
— Como a língua de vocês é muito matemática, tendo cada cor uma série
de ângstroms definida a priori, o sensor só precisa identificar o fluxo das cores e
a largura das faixas. Assim, o conteúdo das informações é captado. Como as
regras são muito precisas, não é difícil codificar um algoritmo simples contra
erros para ser usado por jovens ou por quem não fale bem sua língua, no caso de
algum erro de cor à esquerda ou à direita do espectro. Porém, traduzir o que uma
octoaranha falou na sua língua é um processo bem mais complexo. O dicionário
de tradução é bastante direto. As palavras e os esclarecedores apropriados podem
ser identificados com presteza. Mas é quase impossível dar o próximo passo, em
frases, sem alguma intervenção humana.
— Isto porque a língua das octoaranhas é basicamente diferente da nossa
— comentou Ellie. — Tudo é especificado e quantificado, para minimizar a
possibilidade de mal-entendidos. Não há subterfúgios nem nuances. Veja como
elas usam o pronome nós, eles e vocês. Os pronomes são sempre marcados por
esclarecedores numéricos, e até mesmo séries, quando há incertezas. A
octoaranha nunca diz "uns wodens" ou "vários nillets"; há sempre um número ou
um grau numérico para especificar a duração de tempo com maior precisão.
— Do nosso ponto de vista — disse Hércules em cores —, há dois aspectos
da língua humana que são extremamente difíceis. Um é a falta de especificações
precisas, o que exige um vocabulário maciço. Outro é o uso de frases indiretas na
comunicação... Ainda tenho dificuldade em compreender Max, porque em geral o
que ele diz é exatamente o contrário do que quer dizer.
— Não sei como fazer isso no seu computador — disse Nicole para Richard
—, mas todas as informações quantitativas das frases das octoaranhas devem ser
refletidas pela tradução. Quase todo verbo ou adjetivo que elas usam têm um
esclarecedor numérico correlato. Como, por exemplo, Ellie acabou de traduzir
"extremamente difícil" e "vocabulário maciço"? Hércules disse "difícil" com o
número cinco usado como esclarecedor, e "grande vocabulário" com o número
seis como esclarecedor de "grande". Todos os esclarecedores comparativos dizem
respeito à questão de ênfase do adjetivo. Como o sistema numérico deles tem
base octal, a série dos comparativos fica entre um e sete. Se Hércules tivesse
usado o sete para esclarecer a palavra "difícil", Ellie teria traduzido a frase como
"impossivelmente difícil". Se tivesse usado um dois como esclarecedor na mesma
frase, ela poderia dizer "ligeiramente difícil".
— Os erros na ênfase dos adjetivos, embora sejam importantes — disse
Richard, mexendo distraidamente em um pequeno processador —, quase nunca
causam mal-entendidos. Mas quando há erros na interpretação própria dos
esclarecedores do verbo a coisa é diferente... como aprendi recentemente depois
de fazer meus primeiros testes. Tomemos o verbo ir na língua das octoaranhas,
que significa, como vocês sabem, deslocar-se sem ajuda, sem transporte. A faixa
amarela com tons de marrom/roxo/limão, cada uma das cores da mesma
largura, inclui dezenas de verbos nossos, como andar, passear, perambular,
correr e até mesmo zunir.
— É exatamente sobre isso que eu estava falando — disse Ellie. — Não se
pode traduzir sem uma completa interpretação dos esclarecedores... Para esse
verbo específico, as octos usam um duplo esclarecedor para referir-se a "com que
velocidade"? Em certo sentido, as octoaranhas podem ir em sessenta e três
velocidades diferentes... Para complicar ainda mais as coisas, elas podem usar
também um esclarecedor em série; assim, a frase imperativa "vamos" pode ter
inúmeras traduções.
Richard fez uma careta e sacudiu a cabeça.
— O que foi, papai? — perguntou Ellie.
— Estou desapontado — respondeu Richard. — Eu esperava que a versão
simplificada do tradutor estivesse completa a essa altura. Mas parti do princípio
de que a essência do que se dizia podia ser determinada sem o conhecimento de
todos os esclarecedores. Incluir todas essas curtas faixas coloridas vai aumentar
a armazenagem e diminuir a velocidade da tradução. Talvez eu tenha problema
para projetar um tradutor que trabalhe no tempo real.
— E daí? — perguntou Hércules. — Por que você está tão preocupado com
o tradutor? Ellie e Nicole já compreendem nossa língua muito bem.
— Não é bem assim — disse Nicole. — Ellie é a única de nós verdadei-
ramente fluente nas suas cores. Eu ainda estou aprendendo.
— Embora eu tivesse começado este projeto como um desafio e para me
acostumar com a língua de vocês — disse Richard para Hércules —, Nicole e eu
comentamos na semana passada como o tradutor se tornou importante. Ela
disse, e eu concordei, que nosso clã humano da Cidade de Esmeralda está
dividido em dois grupos. Ellie, Nicole e eu temos uma vida mais interessante
porque aumentamos nosso intercâmbio com a sua espécie, mas os outros,
inclusive as crianças, se mantêm completamente isolados. Se eles não tiverem
como se comunicar com vocês, vão acabar se sentindo insatisfeitos. Um bom
tradutor automático é a chave para eles se ambientarem aqui.

O mapa estava amassado e rasgado em vários pontos. Patrick ajudou Nai


a desdobrá-lo devagar e pregá-lo na parede da sala de jantar, que era também a
sala de aula das crianças.
— Nikki, você se lembra do que é isso? — perguntou Nai.
— É claro, sra.Watanabe — respondeu a menininha. — É o mapa da
Terra.
— Benjy, pode nos mostrar onde seus pais e avós nasceram?
— De novo? — disse Galileu bem alto para Kepler. — Ele nunca vai
aprender isso. Ele é burro demais.
— Galileu Watanabe! Vá para o seu quarto e fique sentado na cama du-
rante quinze minutos.
— Não faz mal, Nai — disse Benjy andando até o mapa. — Eu já estou
acostumado com isso.
Galileu, com quase sete anos segundo as contas humanas, parou na porta
para ver se seu castigo seria suspenso.
— O que está esperando? — ralhou a mãe. — Já disse para você ir para o
seu quarto.
Benjy ficou parado um instante em frente ao mapa.
— Minha mãe — disse afinal — nasceu aqui na França. — Afastou-se um
pouco do mapa e tentou localizar os Estados Unidos, do lado oposto do oceano
Atlântico. — Meu pa-pai nasceu aqui em Bos-ton, na A-mé-ri-ca.
Benjy já ia sentar-se quando Nai lhe fez outra pergunta.
— E seus avós? Onde eles nasceram?
— A mãe da minha mãe — disse ele devagar — nasceu na A-fri-ca. —
Ficou olhando o mapa e continuou: — Mas não me lembro onde fica isso.
— Eu sei, sra.Watanabe — falou Nikki imediatamente. — Posso mostrar,
Benjy?
Benjy virou-se e olhou sorrindo para a garotinha de cabelos pretos.
— Pode me dizer, Nik-ki.
A garota atravessou a sala e colocou o dedinho na parte oeste da África.
— A mãe da minha avó nasceu aqui — disse orgulhosa —, nesse país
verde... chamado Costa do Marfim.
— Muito bem, Nikki — falou Nai.
— Desculpe, Nai — disse Benjy. — Eu tenho estudado tanto as frações
que não tive tempo de pegar em geo-gra-fia.
Ficou esperando a garotinha de três anos sentar-se e virou-se para Nai
com os olhos cheios de lágrimas.
— Nai, não estou com vontade de ficar na escola hoje... Acho que vou
voltar para casa.
— OK, Benjy — disse Nai gentilmente. Quando Benjy se encaminhou para
a porta, Patrick quase foi atrás dele, mas Nai fez um sinal para ele ir embora.
A classe toda ficou em silêncio por um instante.
— Agora é a minha vez? — perguntou finalmente Kepler.
— Nai fez que sim e o garoto foi até o mapa.
— Minha mãe nasceu aqui na Tailândia, na cidade de Lampun, e o pai
dela também. Minha avó materna também nasceu na Tailândia, mas em uma
outra cidade chamada Chiang Saen. Aqui está ela, na fronteira com a China.
Kepler deu um passo para a direita e apontou para o Japão.
— Meu pai, Kenji Watanabe, e os pais dele nasceram na cidade japonesa
de Kioto.
O menino afastou-se do mapa, parecendo que queria dizer alguma coisa.
— O que foi, Kepler? — perguntou Nai.
— Mamãe — disse o garoto depois de um longo silêncio —, o meu pai era
um homem mau?
— O quê? — perguntou Nai espantada, olhando diretamente nos olhos do
filho. — Seu pai era um ser humano maravilhoso... Inteligente, sensível, amoroso,
com alto senso de humor, um verdadeiro príncipe. Ele...
Nai teve de parar, pois sentia sua emoção aflorar. Levantou-se, olhou um
instante para o teto e recobrou o controle.
— Kepler — disse ela —, por que você me fez essa pergunta? Você adorava
seu pai. Como pôde pensar...
— O tio Max nos disse que o sr. Nakamura veio do Japão, e nós sabemos
que ele é um homem mau. Galileu disse que como o papai veio do mesmo lugar...
— Galileu — gritou Nai, com uma voz que assustou as crianças. — Venha
cá imediatamente.
O menino entrou na sala e olhou intrigado para a mãe.
— O que você andou dizendo a seu irmão sobre o seu pai?
— O que você quer dizer com isso? — perguntou Galileu, com um ar de
inocente.
— Você disse que o papai devia ter sido mau, porque veio do Japão como o
sr. Nakamura...
— Bom, eu não me lembro muito bem do papai. O que eu disse é que
talvez...
Nai teve de se controlar para não dar um tapa em Galileu. Ela pegou o
menino pelos ombros e falou:
— Mocinho, se eu ouvir você falando contra o seu pai outra vez...
Nai não terminou a frase, pois não sabia como poderia ameaçar seu filho
nem o que mais poderia dizer. E de repente sentiu-se completamente esmagada
por tudo o que lhe acontecera na vida.
— Sentem-se, por favor — disse ela afinal para os gêmeos —, e ouçam
com bastante atenção. — Nai respirou fundo e continuou, apontando para o
mapa: — Este mapa na parede mostra todos os países do planeta Terra. Em cada
nação há todos os tipos de pessoas, boas, ruins, a maioria uma mistura de boas e
ruins. Nenhum país tem só gente boa ou só gente má. Seu pai cresceu no Japão,
e o sr. Nakamura também. Concordo com o tio Max que o sr. Nakamura é um
homem muito mau. Mas o fato de ele ser mau não tem nada a ver com ser
japonês. Seu pai, Kenjy Watanabe, que também era japonês, era um dos
melhores homens que conheci. Sinto muito se vocês não conseguem se lembrar
dele e se nunca souberam como ele era...
Nai fez uma pausa.
— Eu nunca me esquecerei do seu pai — disse ela num tom suave, como
que falando consigo própria. — Ainda me lembro dele voltando para casa no Novo
Éden no final da tarde. Vocês dois gritaram ao mesmo tempo: "Oi, papai, oi
papai", quando ele entrou. Ele me beijou, pôs vocês no colo e levou-os para o
balanço no quintal. Mesmo quando o dia dele tinha sido difícil, sempre era
carinhoso e paciente...
A voz de Nai vacilou, seus olhos encheram-se de lágrimas e seu corpo
começou a tremer. Ela virou-se de costas e olhou para o mapa.
— A aula terminou por hoje.

Meia hora depois, quando Patrick estava ao lado de Nai vendo os gêmeos e
Nikki brincarem com uma grande bola azul no final da rua sem saída, ela falou:
— Desculpe, Patrick — disse Nai. — Eu não esperava ficar...
— Você não tem nada para se desculpar — replicou o rapaz.
— Tenho sim. Anos atrás me prometi que nunca mostraria meus senti-
mentos diante de Kepler e Galileu. Eles não podem entender.
— A essa altura os dois já se esqueceram do assunto — disse Patrick
depois de um breve silêncio. — Olhe para eles. Estão completamente absortos na
brincadeira.
Naquele instante, os gêmeos estavam tendo uma de suas discussões típi-
cas. Como sempre, Galileu tentava tirar alguma vantagem em uma brincadeira
que não tinha regras rigorosas. Nikki estava ao lado dos meninos, acompanhando
todas as palavras que eles diziam.
— Meninos, meninos — chamou Nai. — Parem com isso... Se não pu-
derem brincar sem discutir é melhor virem para dentro de casa.
Um instante depois a bola azul foi rolando pela rua na direção da praça e
as três crianças correram atrás dela.
— Gostaria de beber alguma coisa, Patrick? — perguntou Nai.
— Gostaria sim... você ainda tem aquele suco de melão verde que Hér-
cules trouxe na semana passada? Era um bocado gostoso.
— Tenho — respondeu ela, abaixando-se para pegar o suco na cômoda
onde guardava as bebidas. — A propósito, por onde anda o Hércules? Eu não o
vejo há dias.
Patrick riu.
— Tio Richard recrutou-o para trabalhar em horário integral no tradutor.
Até Ellie e Archie estão indo lá toda tarde. — Patrick agradeceu a Nai pelo copo de
suco.
Nai deu um gole do seu próprio copo e foi até a sala de estar.
— Sei que você queria consolar o Benjy hoje de manhã — disse ela. — Só
o impedi porque conheço seu irmão muito bem... Benjy é muito orgulhoso, e não
quer que ninguém sinta pena dele.
— Eu compreendi — disse Patrick.
— Benjy notou hoje de manhã, até certo ponto, que mesmo Nikki, que ele
considera ainda um bebê, vai em breve passar à sua frente na escola. Ao
descobrir isso, ficou chocado e lembrou-se de suas próprias limitações.
Nai ficou em frente ao mapa da Terra, que ainda estava preso na parede.
— Nada neste mapa tem um significado especial para você, não é? —
perguntou ela.
— Não muito. Vi muitas fotos e filmes, é claro, e quando era mais ou
menos da idade dos gêmeos meu pai costumava me falar sobre Boston, a cor das
folhas na Nova Inglaterra durante o outono e a viagem à Irlanda com o pai dele...
Mas "minhas lembranças são de outros lugares... A toca de Nova York é uma
lembrança muito viva na minha cabeça, assim como o ano fantástico que
passamos em Nodo. — Patrick ficou calado um instante e depois continuou. — E
a Águia! Que criatura! Eu me lembro dela com mais clareza que meu pai.
— Você se considera um habitante da Terra? — perguntou Nai.
— Esta é uma pergunta interessante — respondeu Patrick. — Certamente
eu me considero um humano. Mas um habitante da Terra? Acho que não.
Nai encostou o dedo no mapa.
— Se Lampun, minha terra natal, fosse maior, apareceria aqui, bem ao sul
de Chiang Mai. Às vezes não me parece possível que eu tenha vivido lá quando
era criança.
Os dedos de Nai correram pelo contorno da Tailândia, enquanto ela se
mantinha em silêncio ao lado de Patrick.
— Na outra noite — disse ela a certa altura —, Galileu jogou um copo de
água na minha cabeça quando eu estava dando banho neles, e de repente
lembrei-me dos três dias que passei em Chiang Mai com meus primos, quando
tinha quatorze anos... Era época do festival de Songkran, em abril, e o povo da
cidade estava celebrando o Ano Novo tailandês. Havia paradas e os discursos de
sempre, sobre a forma como os reis Chakri desde a primeira nave Rama tinham
preparado o povo tailandês para seu importante papel no mundo. Mas o que
lembro com mais clareza é o passeio que fiz pela cidade com minha prima Oni e
seus amigos, em uma camionete movida a eletricidade. Por todo lugar que
passávamos, jogávamos um balde de água em alguém e eles jogavam em nós, e
todos nós ríamos muito.
— Por que uns jogavam água nos outros? — perguntou Patrick.
— Já não lembro mais — disse Nai dando de ombros. — Era alguma coisa
ligada com a cerimônia... Mas a experiência em si, os risos, as roupas
completamente ensopadas no corpo e de repente ser atingida por mais um balde
de água, tudo isso eu me lembro com detalhes.
Os dois ficaram mais uma vez em silêncio quando Nai tirou o mapa da
parede.
— Então acho que Kepler e Galileu também não irão se considerar habi-
tantes da Terra — falou, pensativa, enrolando o mapa com cuidado. — Talvez
estudar geografia e a história da Terra seja uma perda de tempo.
— Eu não penso assim — falou Patrick. — O que as crianças estudarão
então? Além do mais, nós todos precisamos compreender de onde viemos.
Três rostos infantis apareceram no portal da sala.
— Já está na hora do almoço? — perguntou Galileu.
— Quase — disse Nai. — Vão lavar as mãos primeiro... Um de cada vez —
disse ela quando os pezinhos passaram pelo corredor.
Nai virou-se abruptamente e viu que Patrick olhava para ela de uma forma
diferente. Nai sorriu.
— Apreciei muito sua companhia hoje de manhã — ela falou. — Sua
presença tornou as coisas mais fáceis para mim. — Nai estendeu os braços e
pegou as mãos de Patrick. — Você tem me ajudado muito com Benjy e as
crianças nestes últimos dois meses. E seria bobagem minha não reconhecer que
não me sinto tão solitária desde que você começou a passar os dias conosco.
Patrick deu um passo desajeitado na direção de Nai, mas ela segurou
firme nas mãos dele.
— Ainda não. Ainda é muito cedo — disse, de modo carinhoso.
4
Menos de um minuto depois que os grande bandos de vaga-lumes da cú-
pula da Cidade de Esmeralda anunciaram o começo de um novo dia, a pequena
Nikki foi para o quarto dos avós.
— Já é dia claro, vó — disse ela. — Eles vêm nos buscar daqui a pouco.
Nicole saiu da cama e deu um abraço na netinha.
— Ainda temos umas duas horas, Nikki — disse para a menina excitada.
— Vovô ainda está dormindo... por que você não volta para o seu quarto e brinca
com seus brinquedos enquanto tomamos uma chuveirada?
Quando a menina, desapontada, finalmente foi embora, Richard sentou-se
na cama e esfregou os olhos.
— Nikki não pensa em outra coisa há uma semana senão neste dia —
disse Nicole. — Ela está sempre no quarto de Benjy olhando para a pintura. Nikki
e os gêmeos já deram nomes a todos aqueles animais bizarros.
Nicole pegou a escova de cabelo ao lado da cama.
— Por que as crianças pequenas têm tanta dificuldade em entender o
conceito de tempo? Embora Ellie tenha feito um calendário para ela e venha
contando dia após dia, Nikki me pergunta toda manhã se "chegou o dia".
— Ela está muito excitada. Todos estão — falou Richard, levantando-se da
cama. — Espero que não fiquemos desapontados.
— Como poderíamos ficar? — disse Nicole. — O dr. Azul disse que
veremos coisas mais incríveis ainda do que as que você e eu vimos quando
entramos na cidade pela primeira vez.
— Acho que todos os animais estarão nas ruas — disse Richard. — Aliás,
você sabe o que as octoaranhas estão celebrando?
— Uma espécie de... alguma coisa parecida com o Dia de Graças dos
americanos, que as octos chamam de Dia da Fartura. Há um dia separado para
celebrar a qualidade de vida delas... Pelo menos foi o que o dr. Azul me explicou.
Antes de ir para o chuveiro, Richard perguntou:
— Você acha que o convite para participarmos da celebração de hoje tem a
ver com o seu comentário sobre a discussão da nossa família na mesa do café
duas semanas atrás?
— Quando Patrick e Max deram a entender que eles gostariam de voltar
para o Novo Éden?
Richard fez que sim.
— Acho sim — respondeu Nicole. — Creio que as octoaranhas tinham se
convencido de que estávamos perfeitamente satisfeitos aqui. O convite para
participarmos da comemoração delas é uma tentativa de nos integrar na sua
sociedade.
— Eu gostaria de ter terminado todos aqueles malditos tradutores — disse
Richard. — No momento tenho só dois... e eles não foram completamente
checados. Será que eu deveria dar um deles para o Max?
— Seria uma boa idéia — falou Nicole, empurrando o marido para dentro
do banheiro.
— O que você está fazendo? — perguntou Richard.
— Vou tomar banho junto com você — disse ela com uma gargalhada —, a
menos que você esteja velho demais para uma companhia.

Jamie apareceu para dizer que o transporte estava pronto. Ele era o mais
moço das três octoaranhas vizinhas (Hércules morava sozinho do outro lado da
praça), e os humanos tinham tido pouco contato com ele. Os guardiões de Jamie,
Archie e o dr. Azul, explicaram que ele vivia envolvido em seus estudos e estava
chegando a uma fase crucial da vida. Embora à primeira vista Jamie parecesse
exatamente como as três octos adultas que o clã via regularmente, era um pouco
menor, e as faixas douradas dos seus tentáculos eram ligeiramente mais
brilhantes.
Os humanos tinham ficado sem saber o que usar na celebração das
octoaranhas, mas viram logo que suas roupas não tinham significado algum para
elas. Nenhum elemento das espécies alienígenas da Cidade de Esmeralda se
cobria, fato que as octoaranhas comentavam com freqüência. Quando Richard
uma vez sugeriu de brincadeira que talvez os humanos também devessem
dispensar suas roupas enquanto vivessem na Cidade de Esmeralda, o grupo
compreendeu logo como as roupas eram fundamentais para o conforto psicológico
dos humanos.
— Eu não conseguiria ficar nua nem mesmo na frente de vocês, meus
amigos mais íntimos, sem me sentir extremamente sem jeito — disse Eponine,
resumindo todos os seus sentimentos.
O contingente heterogêneo de onze humanos e suas quatro colegas
octoaranhas atravessou a rua na direção da praça. Eponine, em adiantada
gravidez, era a última, caminhando devagar e cobrindo a barriga com a mão. As
mulheres haviam decidido caprichar nas roupas; Nai usava um vestido tailandês
de seda, com flores azuis e verdes. Mas os homens e as crianças, com exceção de
Max (com uma horrenda camisa havaiana que ele reservava para ocasiões
especiais), estavam de camiseta e jeans, sua roupa de todos os dias desde que
chegaram à Cidade de Esmeralda.
Pelo menos todas as suas roupas estavam limpas. No início, encontrar um
meio de lavar as roupas fora um problema grave para os humanos. Mas depois
que explicaram essa dificuldade a Archie, em poucos dias ele os apresentou aos
dromos, seres do tamanho de insetos que limpavam automaticamente todas as
roupas.
Ao chegar à praça o grupo entrou no transporte. Logo antes do portão que
indicava o final da zona deles o transporte parou, e duas octoaranhas
desconhecidas entraram no carro. Richard fez uso do seu tradutor para captar a
conversa entre o dr. Azul e os recém-chegados. Ellie leu no monitor por cima do
ombro de seu pai e fez um comentário sobre a tradução. Em geral, a tradução era
bastante fiel, mas a velocidade era muito baixa, pelo menos considerando a
velocidade normal de uma conversa. Uma frase era traduzida enquanto três eram
faladas, e Richard tinha de reorganizar o sistema regularmente. Ele não podia, é
claro, compreender muito de uma conversa em que faltavam duas a três frases.
Depois que atravessaram o portão, a visão que se tinha do carro de
transporte tornou-se fascinante. Os olhos de Nikki foram se arregalando à
medida que ela, Benjy e os gêmeos, numa grande gritaria, identificavam a maioria
dos animais que haviam visto na pintura das octoaranhas. Havia um tráfego
intenso nas ruas largas, não só de carros de transporte deslocando-se em ambas
as direções em trilhos de bondes como de pedestres de todas as espécies e
tamanhos, criaturas guiando veículos semelhantes a uniciclos e bicicletas, e um
grupo misturado de seres em um emassauro.
Max, que nunca saíra da zona dos humanos desde que chegara à Cidade
de Esmeralda, entremeava suas observações com palavrões que Eponine havia
lhe pedido para retirar do seu vocabulário antes que o bebê nascesse. Max ficou
muito preocupado com Eponine quando, na primeira parada do transporte depois
do portão, um pequeno grupo de novas criaturas lotou o carro. Quatro das
recém-chegadas encaminharam-se na direção de Eponine a fim de examinar o
banco especial que as octoaranhas haviam instalado para ela devido à sua
gravidez. Max ficou ao seu lado para protegê-la, apoiando-se em uma das barras
verticais espalhadas pelo carro de dez metros de comprimento.
Depois entraram mais dois passageiros, que as crianças chamavam de
"caranguejos listrados", umas criaturas vermelhas e amarelas, de oito patas, mais
ou menos do tamanho de Nikki, com o corpo redondo coberto por uma concha
dura e tenazes assustadoras. As duas começaram imediatamente a esfregar suas
antenas nas pernas de Eponine por baixo do seu vestido. Elas só estavam sendo
curiosas, mas causaram uma sensação esquisita em Eponine, que se encolheu de
medo dos alienígenas. Archie, que estava de pé do lado oposto, esticou seu
tentáculo e empurrou os alienígenas gentilmente. Um dos caranguejos listrados
recuou nas suas quatro patas traseiras, com as tenazes no ar em frente ao rosto
de Eponine, e aparentemente disse alguma coisa ameaçadora com suas rápidas
antenas. Um instante depois Archie estendeu dois tentáculos, levantou o
caranguejo hostil do chão do carro e depositou a criatura na rua.
A cena alterou o humor de todos os humanos. Enquanto Archie explicava
o que tinha ocorrido para Max e Eponine através da tradução de Ellie (Max estava
mobilizado demais para usar seu próprio tradutor), os gêmeos Watanabe
chegaram para bem perto de Nai, e Nikki esticou os bracinhos para que seu avô a
segurasse.
— Essa espécie não é muito inteligente — disse Archie para seus amigos
humanos —, e temos tido dificuldade em trabalhar suas tendências agressivas.
Aquela criatura que joguei para fora do carro já criou encrencas antes. O
otimizador responsável pela espécie já havia marcado isso com dois pontinhos
verdes na parte traseira da sua carapaça, não sei se vocês notaram... Essa última
transgressão certamente redundará no término da espécie.
Quando Ellie terminou a tradução, os humanos inspecionaram os outros
alienígenas que estavam dentro do carro de transporte para ver se identificavam
mais alguns pontinhos verdes. Aliviados ao confirmar que todas as outras
criaturas não ofereciam perigo, os adultos se tranqüilizaram.
— O que aquela "coisa" disse? — Richard perguntou a Archie, quando o
transporte se aproximava de outra parada.
— Foi uma ameaça padrão — replicou Archie —, típica de animais com
inteligência limitada... Suas antenas passaram uma mensagem rude, com muito
pouco conteúdo informativo.
O transporte continuou a descer a avenida durante oito a dez nillets,
parando duas vezes para que novos passageiros entrassem, inclusive meia dúzia
de octoaranhas e cerca de vinte outras criaturas de umas cinco espécies dife-
rentes. Quatro animais azul-rei, com o topo hemisférico contendo um material
ondulado semelhante a um cérebro, ficaram agachados ao lado de Richard, que
ainda segurava Nikki no colo. Suas oito antenas, no total, estenderam-se para
cima, na direção dos pés de Nikki e entrelaçaram-se, como se estivessem se
comunicando. Quando a menina mexeu ligeiramente os pés, as antenas se
recolheram rapidamente para a massa estranha que formava os corpos das
criaturas alienígenas.
Àquela altura o carro estava lotado. Um animal que os humanos nunca ti-
nham visto, e que Max mais tarde disse que parecia uma salsicha com um nariz
comprido e seis pernas curtas, levantou-se por uma das barras verticais e agar-
rou a bolsa de Nai com as duas patas dianteiras. Jamie intercedeu antes que
algum dano fosse causado à bolsa ou a Nai, e logo depois Galileu chutou com
força a salsicha e ela teve de largar a barra. O menino explicou que pensara que a
salsicha estava se preparando para agarrar a bolsa de novo. A criatura foi para o
outro lado do carro, olhando fixamente para Galileu.
— É bom ter cuidado — disse Max com ironia, despenteando o cabelo do
garoto —, senão as octos colocam dois pontinhos verdes no seu traseiro.
Na avenida enfileiravam-se prédios de um e dois andares, quase todos
pintados com motivos geométricos em cores brilhantes. Grinaldas e coroas com
flores e folhas de cores vivas enfeitavam as portas e os telhados. Em uma longa
parede que Hércules disse a Nai ser os fundos do hospital principal, um imenso
mural retangular de quatro metros de altura e vinte de comprimento retratava
médicos octoaranhas cuidando de doentes da sua espécie e ajudando muitas
outras criaturas que viviam na Cidade de Esmeralda.
O transporte diminuiu ligeiramente a marcha e começou a descer a
rampa. O veículo cruzou uma ponte de centenas de metros de comprimento sobre
um largo rio ou canal, onde se viam barcos, octoaranhas divertindo-se, e várias
outras criaturas marinhas desconhecidas. Archie explicou que eles estavam
entrando no centro da Cidade de Esmeralda, onde ocorriam todas as cerimônias
principais e onde os otimizadores mais importantes viviam e trabalhavam.
— Lá — disse Archie, apontando para um prédio octogonal de cerca de
trinta metros de altura — é nossa biblioteca e centro de informações.
Em resposta à pergunta de Richard, Archie disse que o canal, ou fosso,
rodeava todo o centro administrativo.
— Salvo em ocasiões especiais como aquela, ou algum acontecimento
oficial aprovado pelos otimizadores — disse Archie —, só as octoaranhas têm
acesso a essa área.
O transporte estacionou em uma área grande e plana ao lado de uma es-
trutura oval que parecia um estádio, ou um auditório descoberto. Depois que eles
desceram do carro, Nai contou a Patrick que durante a última etapa da viagem
tivera uma sensação de claustrofobia que não tinha desde que estivera no metrô
de Kioto na hora do rush, quando foi visitar a família de Kenji.
— Pelo menos no Japão — disse Patrick com um ligeiro estremecimento —
você estava rodeada de outros seres humanos... Aqui é tudo tão esquisito... Eu
me senti como se estivesse sendo examinado por todos. Tive de fechar os olhos
para não enlouquecer.
Quando desembarcaram e começaram a se dirigir para o estádio, os hu-
manos caminharam em grupo, rodeados pelos quatro amigos octoaranhas e as
outras duas que tinham entrado no carro ainda na zona dos humanos. Essas seis
octoaranhas protegiam Nicole e os outros das centenas de criaturas vivas
espalhadas por todas as direções. Eponine começou a sentir-se tonta com a
mistura de cheiros e visões estranhas, e também por ter andado demais, e então
Archie fez o grupo descansar a cada cinqüenta metros. Finalmente, eles entraram
por um dos portões para a área destinada aos humanos.
Havia só uma cadeira na sessão reservada para os humanos. Na verdade,
a cadeira de Eponine devia ser a única de todo o estádio. Olhando por cima da
arquibancada superior da arena com os binóculos de Richard, Max e Patrick
viram vários seres apoiados em fortes postes verticais espalhados pelos terraços,
mas não viram nenhuma cadeira.
Benjy ficou fascinado com as sacolas de pano que Archie e outras octoa-
ranhas carregavam, todas idênticas, do tamanho de uma bolsa de mulher e em
tom creme. As sacolas ficavam penduradas na altura do pseudoquadril das
octoaranhas, presas por cima da cabeça com uma simples tira. Era a primeira vez
que os humanos viam octoaranhas usando acessórios. Benjy reparou logo nas
sacolas e perguntara a Archie para que elas serviam, quando ainda estavam na
praça. Benjy pensou que Archie não entendera a sua pergunta naquela hora e
esqueceu o assunto, mas quando chegaram ao estádio ele viu outras sacolas
semelhantes.
Archie deu uma explicação um tanto vaga sobre a utilidade daquele
acessório, e Nicole pediu que ele repetisse as cores para que ela pudesse
responder a Benjy.
— Archie falou que é um equipamento de que ele pode precisar para nos
proteger numa emergência.
— Que tipo de e-qui-pa-men-to? — perguntou Benjy, mas Archie estava
longe dali, falando com outra octoaranha numa área adjacente.
Os humanos ficaram separados das outras espécies por duas cordas
retesadas de metal, passadas em torno da parte superior e da base de pilastras
verticais, do lado de fora do enclave, e por duas octoaranhas protetoras (ou
guardas, como Max as chamou), que se postaram na área vazia entre as
diferentes espécies. Ao lado dos humanos, à direita, havia um grupo de centenas
de alienígenas com seis braços flexíveis, as mesmas criaturas que haviam
construído a escada debaixo da cúpula do arco-íris. À esquerda e abaixo do clã
humano, do outro lado de uma grande área vazia, havia uns mil animaizinhos
marrons atarracados, parecidos com iguanas, com rabos compridos e pontudos e
dentes protuberantes. Eram do tamanho de gatos domésticos.
O que ficou imediatamente óbvio para todos é que o estádio inteiro era
rigidamente segregado. Cada espécie tinha seu lugar próprio. E, com exceção dos
guardas, não havia nenhuma octoaranha na arquibancada superior. As mil e
quinhentas octoaranhas (segundo estimativa de Richard), presentes como
espectadores, estavam na arquibancada inferior.
— Há razões para essa segregação — explicou Archie, sendo traduzido por
Ellie. — Primeiro, o que o Chefe dos Otimizadores disser vai ser transmitido em
trinta a quarenta línguas simultaneamente. Se vocês olharem com atenção vão
ver que cada seção especial tem um aparelho (ali está o de vocês, por exemplo,
que Richard chama de microfone) para apresentar o que for dito na língua
daquela espécie. Todas as octoaranhas, inclusive as várias morfologias, podem
entender nossa língua-padrão de cores. É por isso que ficamos na arquibancada
de baixo, onde não há nenhum equipamento especial de tradução... Vocês já vão
entender o que estou falando... Olhem lá (Archie esticou um tentáculo), estão
vendo aquele grupo de caranguejos listrados? Estão vendo os dois arames
grandes verticais naquela mesa em frente à seção deles? Quando o Chefe
Otimizador começar a falar, aqueles arames serão ativados e apresentarão o que
estiver sendo dito na língua das antenas deles.
Bem ao longe, por cima do que seria um campo afundado em um estádio
da Terra, uma ampla cobertura com faixas coloridas foi suspensa a partir de
montantes presos nas seções dos fundos da arquibancada inferior.
— Você consegue ler o que está escrito lá? — perguntou Ellie ao pai.
— O quê? — falou Richard, ainda assombrado com a grandeza do
espetáculo.
— Há uma mensagem naquela cobertura — falou Ellie, apontando para
baixo. — Leia as cores.
— Então é isso — falou Richard lentamente. — Fartura significa comida,
água, energia, informações, equilíbrio e... qual é a última palavra?
— Eu traduziria como "diversidade" — falou Ellie.
— O que significa essa mensagem? — perguntou Eponine.
— Creio que vamos descobrir isso.

Um instante mais tarde, depois de Archie ter explicado aos humanos que
a outra razão para a segregação das espécies era confirmar o censo feito pelas
octoaranhas, a cobertura do campo foi enrolada por cima de dois postes grossos e
compridos por dois pares de animais pretos gigantescos. Os pares partiram de
lados opostos do meio da arena e encaminharam-se para as extremidades do
estádio, enrolando a cobertura em volta de seus postes para desvelar o campo
inteiro.
Ao mesmo tempo, um grupo de vaga-lumes desceu do alto do estádio para
que todos os espectadores pudessem ver claramente não só a abundância das
frutas, legumes e grãos agrupados em centenas de pilhas dos dois lados do
campo, como também as duas coleções de seres diversos que se encontravam em
áreas separadas do chão da arena, dos dois lados do seu centro. O primeiro
grupo de alienígenas andava em torno de um grande círculo numa superfície
normal de terra, presos uns aos outros por uma espécie de corda. Ao lado deles
havia uma grande piscina, onde mais trinta a quarenta espécies, também presas
umas às outras, nadavam em um segundo grande círculo.
Exatamente no meio do campo havia uma plataforma elevada, onde se
viam apenas algumas caixas pretas espalhadas, e rampas desciam na direção das
duas áreas adjacentes. Enquanto todos olhavam, quatro octoaranhas irromperam
do círculo na piscina e subiram pela rampa até a plataforma. Mais quatro
octoaranhas saíram do grupo que andava na área de terra e foram juntar-se às
suas colegas. Depois, uma dessas oito octoaranhas ficou de pé sobre uma caixa
no meio da plataforma e começou a falar em cores.
— Estamos reunidos hoje aqui... — A voz assustou os humanos, e a pe-
quena Nikki começou a chorar. De início foi extremamente difícil para eles
compreender o que estava sendo dito, pois cada sílaba tinha a mesma inflexão e
os sons, embora pronunciados com cuidado, não eram muito inteligíveis, como se
fossem produzidos por alguém que nunca tivesse ouvido um humano falar.
Richard ficou estupefato. Largou imediatamente seu tradutor e abaixou-se para
examinar o dispositivo que emitia aqueles sons.
Ellie pegou os binóculos de Richard para poder seguir as cores com mais
rapidez. Embora ela tivesse de adivinhar algumas palavras por causa de parte
das faixas fora do seu raio de visão, achava mais fácil observar do que se
concentrar completamente nas palavras ouvidas através do equipamento de
áudio das octoaranhas.
Com o tempo, os adultos se adaptaram à cadência e à pronúncia da voz
alienígena e pegaram grande parte do que estava sendo dito. A octoaranha Chefe
Otimizador declarou que tudo ia bem no seu reino de fartura, e que o permanente
sucesso de sua sociedade complexa e diversa refletia-se na variedade de
alimentos encontrados no campo.
— Uma fartura como esta — dizia ele — não poderia ter sido produzida
sem a grande cooperação entre as espécies.
Mais adiante, na sua breve mensagem, o Chefe Otimizador entregou
kudos pelos desempenhos excepcionais. Várias espécies foram destacadas; a
produção de uma substância semelhante ao mel, por exemplo, aparentemente
tinha sido excelente, pois dezenas de vaga-lumes iluminaram a seção dos
besouros focinhudos por alguns instantes. Depois de uns três fengs de discurso,
os humanos ficaram cansados de tentar compreender o que dizia aquela voz
estranha e não prestaram mais atenção às suas palavras. Por isso ficaram
surpresos quando os vaga-lumes pairaram por cima de suas cabeças e os
apresentaram à multidão alienígena. Milhares de olhos estranhos voltaram-se na
direção deles durante meio nillet.
— O que ele disse sobre nós? — perguntou Max a Ellie, que continuava a
traduzir as cores. Ele tinha conversado com Eponine durante quase todo o
discurso do Chefe Otimizador.
— Falou que nós somos novos no território deles e que ainda estão estu-
dando as nossas habilidades... Depois apareceram vários números que devem ter
sido usados para nos descrever. Essa parte eu não entendi.
Depois de mais duas espécies terem sido rapidamente apresentadas, o
Chefe Otimizador começou a fazer um resumo dos pontos principais do seu
discurso.
— Mamãe, mamãe! — gritou Nikki de repente por cima da voz alienígena.
Enquanto os humanos adultos prestavam atenção ao discurso e ao espe-
táculo em volta, Nikki subira no muro baixo que cercava a seção dos humanos e
entrara no espaço aberto que os separava dos iguanas. A octoaranha Hércules,
que patrulhava a área, pelo visto também não tinha notado a menina ali, pois não
percebera que um dos iguanas tinha enfiado a cabeça pelo vão das duas cordas
de metal em volta da sua seção e agarrara o vestido de Nikki com seus dentes
afiados.
O terror na voz da criança paralisou momentaneamente a todos, até
mesmo a Benjy. Num abrir e fechar de olhos, ele pulou por cima do muro para
ajudar Nikki e apertou a cabeça do iguana com toda força. A criatura alienígena,
assustada, soltou o vestido de Nikki. Seguiu-se um pandemônio. Nikki correu de
volta para os braços da mãe, mas, antes que Hércules e Archie conseguissem
alcançar Benjy, o iguana enraivecido atravessou o vão entre as cordas e pulou
nas costas dele. Benjy deu um grito lancinante quando sentiu os dentes do
iguana no seu ombro e começou a se debater, tentando fazer com que a criatura
o largasse. Um instante depois, o iguana caiu no chão completamente
inconsciente, e dois pontos verdes apareceram claramente entre o rabo e o corpo
da criatura.
Todo o incidente ocorreu em menos de um minuto, e o discurso não foi
interrompido. Com exceção das seções próximas à dos humanos, ninguém mais
notou o ocorrido. Mas Nikki ficou apavorada, Benjy saiu seriamente ferido e
Eponine começou a ter uma contração. Abaixo deles, os iguanas enfurecidos
forçavam as cordas de metal, desconhecendo as ameaças das dez octoaranhas
que tinham se deslocado para o espaço entre as duas espécies.
Archie disse que estava na hora de os humanos partirem, e ninguém
discutiu. Archie escoltou-os para fora do estádio às pressas; Ellie carregava a
filhinha nos braços e Nicole esfregava desesperadamente no ferimento de Benjy
um anti-séptico que estava na maleta médica.

Richard apoiou-se nos cotovelos quando Nicole entrou no quarto.


— Ele está bem? — perguntou.
— Creio que sim — falou Nicole, suspirando. — Ainda estou com medo de
que a saliva daquela criatura contenha alguma substância que possa fazer mal a
Benjy... O dr. Azul foi de grande valia para mim. Ele me explicou que os iguanas
não têm veneno tóxico, mas recomendou que eu preste atenção em alguma
possível reação alérgica em Benjy... Dentro de um ou dois dias, poderemos saber
se vamos ter problemas ou não.
— E a dor, já melhorou?
— Benjy não se queixa... Acho que ele está se sentindo orgulhoso, e não
quer dizer nada que possa tirá-lo da posição de herói da família.
— E Eponine? — perguntou Richard depois de um breve silêncio. — Ainda
está tendo contrações?
— Não, as contrações pararam temporariamente. Mas se seu parto for
amanhã, Marius não será o primeiro bebê com nascimento induzido por
adrenalina.
Nicole começou a se despir.
— Ellie é que está tendo um momento difícil... Está se considerando uma
mãe terrível, e disse que não pode se perdoar por não ter vigiado Nikki melhor...
Um instante atrás, ela estava se parecendo com Max e Patrick, falando em voz
alta consigo mesma se não seria melhor voltar para Novo Éden e correr o risco de
ser presa por Nakamura. "Para o bem da minha filha", dizia ela.
Nicole terminou de se despir e pulou na cama, beijou Richard e pôs as
mãos por trás da cabeça.
— Richard, esse assunto é muito sério... Você acha que as octoaranhas
permitiriam que voltássemos para o Novo Éden?
— Não — disse ele depois de uma pausa. — Pelo menos não todos nós.
— Acho que concordo com você — disse Nicole. — Mas não quero dizer
isso para os outros... Talvez eu deva levar essa questão de novo para Archie.
— Ele vai tentar desconversar, como fez da primeira vez.
Os dois ficaram deitados de mãos dadas durante vários minutos.
— Em que você está pensando, querido? — perguntou Nicole, ao notar que
os olhos de Richard ainda estavam abertos.
— No dia de hoje — disse ele. — Em tudo o que aconteceu hoje. Fico
recapitulando cena por cena. Agora que estou velho e minha memória não é tão
boa quanto antes, tento usar técnicas para melhorá-la...
Nicole riu.
— Você é impossível. Mas eu o amo assim mesmo.

5
Max estava agitado.
— Não quero ficar neste lugar nem mais um minuto do que o necessário.
Não confio mais nelas... Olhe, Richard, você sabe muito bem que tenho razão.
Você viu com que rapidez Archie tirou aquele tubo da sua mala quando o iguana
alienígena pulou nas costas de Benjy? E ele não hesitou um segundo em usar o
tubo. Só ouvi pff, e logo o lagarto caiu morto ou paralisado. Ele teria feito o
mesmo com um de nós que se comportasse mal.
— Max, acho que você está exagerando — falou Richard.
— Estou? E é exagero dizer que a cena de ontem reforçou na minha
cabeça como nós somos impotentes aqui...
— Max — interrompeu Nicole —, você não acha que devíamos ter essa
discussão em outra hora, quando você estiver mais calmo?
— Não — disse Max com ênfase. — Não acho... quero discutir isso agora,
hoje de manhã. Foi por isso que pedi a Nai para dar o café da manhã para as
crianças na casa dela.
— Mas certamente você não está sugerindo que a gente vá embora neste
momento, quando Eponine está para ter o bebê a qualquer hora, não é? —
perguntou Nicole.
— É claro que não — respondeu Max. — Mas acho que devíamos dar o
fora daqui assim que ela puder viajar... Meu Deus, Nicole, que tipo de vida nós
podemos ter aqui? Nikki e os gêmeos estão apavorados. Aposto que não vão
querer sair da nossa zona durante semanas, ou talvez nunca mais... E isso não
responde à pergunta principal: por que as octoaranhas nos trouxeram para cá?
Você viu todas aquelas criaturas no estádio ontem? Não teve impressão de que
todas elas trabalham para as octoaranhas, de uma forma ou de outra? Não é
provável que nós também acabemos ocupando um lugar no sistema delas?
Ellie falou pela primeira vez desde o início da conversa.
— Eu sempre confiei nas octoaranhas, e ainda confio. Não creio que elas
tenham algum tipo de plano diabólico para nos integrar a seu esquema de uma
forma que nos seja inaceitável... Mas aprendi uma coisa ontem, ou melhor,
reaprendi uma coisa. Como mãe, é minha responsabilidade providenciar para
minha filha um ambiente onde ela possa se desenvolver e ter uma chance de ser
feliz... E não acho mais que isso seja possível aqui na Cidade de Esmeralda.
Nicole olhou surpresa para Ellie.
— Então você também quer ir embora? — perguntou.
— Quero, mãe.
Nicole olhou em volta da mesa. Ela podia dizer pelas expressões de Epo-
nine e Patrick que eles concordavam com Max e Ellie.
— Alguém sabe qual é a opinião de Nai sobre isso? — perguntou. Patrick
corou ligeiramente quando Max e Eponine olharam para ele, como se esperassem
que respondesse.
— Nós conversamos sobre isso na noite passada — disse ele a uma certa
altura. — Nai está convencida, já há algum tempo, de que as crianças têm uma
vida muito limitada, isoladas aqui na nossa zona. Mas ela também está
preocupada, especialmente depois do que aconteceu ontem, com os perigos que
as crianças podem correr se tentarmos viver livremente na sociedade das
octoaranhas.
— Acho que isso encerra a questão — disse Nicole. — Vou falar com
Archie sobre a nossa partida na primeira oportunidade.

Nai era uma ótima contadora de histórias. As crianças adoravam os dias


de aula em que ela dispensava as atividades planejadas e simplesmente lhes
contava histórias. Na verdade, Nai estava contando para as crianças mitos gregos
e chineses no primeiro dia em que Hércules apareceu para observar a aula. As
crianças batizaram a octoaranha com esse nome depois que ela ajudou Nai a
trocar os móveis de lugar.
A maioria das histórias que Nai contava tinha um herói. Como até mesmo
Nikki ainda tinha alguma lembrança dos biotas humanos do Novo Éden, as
crianças se interessavam mais por histórias sobre Albert Einstein, Abraham
Lincoln e Benita Garcia do que por personagens históricos ou míticos com os
quais não haviam tido envolvimento pessoal.
Na manhã seguinte ao Dia da Fartura, Nai explicava como, durante as
últimas fases do grande caos, Benita Garcia usou sua fama considerável para
ajudar milhões de pobres no México. Nikki, que herdara o espírito compassivo da
mãe e avó, comoveu-se com a história de Benita, desafiando corajosamente a
oligarquia mexicana e as corporações multinacionais americanas, e declarou que
Benita Garcia era seu herói.
— Heroína — corrigiu Kepler, com seu senso de precisão. — E você,
mamãe? — disse o menino um instante depois. — Você teve um herói ou heroína
quando era criança?
Apesar de estar numa cidade alienígena, em uma espaçonave extraterres-
tre, a uma inacreditável distância de sua cidade natal de Lampun, na Tailândia,
Nai transportou-se durante quinze a vinte segundos à sua infância e viu-se
claramente com um vestido simples de algodão, descalça, no templo budista,
para prestar homenagem à rainha Chamatevi. E viu também os monges com
roupas cor de açafrão, e acreditou por um instante sentir o cheiro de madeira
queimada em frente ao principal Buda do templo.
— Tive — disse Nai, comovida com seu poder de recordação —, eu tive
uma heroína... A rainha Chamatevi do Haripunchai.
— Quem era ela, sra. Watanabe? — perguntou Nikki. — Era como Benita
Garcia?
— Não exatamente. Chamatevi foi uma moça bonita que viveu no reinado
Mon no sul da Indochina, há mil anos. Sua família era rica e intimamente ligada
ao rei dos Mons. Mas Chamatevi, que era extremamente culta para uma mulher
daquela época, ansiava por fazer alguma coisa diferente e inusitada. Certa vez,
quando Chamatevi tinha dezenove ou vinte anos, um profeta visitou...
— O que é um profeta, mamãe? — perguntou Kepler. Nai sorriu e
respondeu:
— Uma pessoa que prediz o futuro, ou pelo menos tenta predizer. Bem,
esse profeta disse ao rei que, segundo uma lenda antiga, uma bela mulher Mon,
de nascimento nobre, iria para o norte através das selvas, para o vale de
Haripunchai, e realizaria a união de todas as tribos guerreiras da região. Essa
moça, continuou o profeta, criaria um reino cujo esplendor igualaria o dos Mons,
e se tornaria conhecida em muitas terras por sua notável liderança. O profeta
contou essa história durante uma festa na corte, e Chamatevi a escutou. Quando
ele terminou a história, a moça dirigiu-se ao rei dos Mons e lhe disse que devia
ser ela a mulher da lenda. Apesar da oposição de seu pai, Chamatevi aceitou a
oferta do rei de dinheiro, provisões e elefantes, embora a comida só tivesse
durado os cinco meses de travessia da selva até a terra de Haripunchai. Se a
lenda não fosse verdadeira e as várias tribos do vale não aceitassem Chamatevi
como sua rainha, ela não conseguiria voltar para os Mons e seria forçada a
vender-se como escrava. Mas nem por um instante Chamatevi teve medo. É claro
que a lenda foi realizada, as tribos do vale acolheram sua rainha, e ela reinou por
muitos anos numa época conhecida na história tailandesa como a Idade de Ouro
do Haripunchai... Quando Chamatevi ficou bem velha, ela dividiu seu reino em
duas partes iguais, que deu aos seus filhos gêmeos. Depois retirou-se para um
mosteiro budista para agradecer a Deus por Seu amor e proteção. Chamatevi
manteve-se lúcida e saudável até morrer, aos noventa e nove anos.
Por razões que não compreendeu por completo, Nai sentiu-se muito co-
movida enquanto contava sua história. Quando terminou, ainda continuava a ver
em pensamento os painéis da parede do templo de Lampun que ilustravam a
história de Chamatevi. Nai empolgara-se tanto com sua história que nem notou
que Patrick, Nicole e Archie tinham entrado na sala de aula e estavam sentados
no chão, ao lado das crianças.
— Nós temos muitas histórias semelhantes — disse Archie um instante
depois, através da tradução de Nicole —, que também contamos para as crianças.
A maioria delas é muito, muito antiga. Serão histórias verdadeiras? Isso
realmente não importa para as octoaranhas. As histórias divertem, instruem e
servem de exemplo.
— Tenho certeza de que as crianças gostariam de ouvir uma de suas
histórias — disse Nai para Archie. — Na verdade, todos nós gostaríamos.
Archie não disse nada durante quase um nillet. O líquido de suas lentes
estava em grande atividade, movendo-se para cima e para baixo, como se ele
estivesse estudando atentamente os seres humanos que o olhavam. A certa
altura, as faixas coloridas começaram a sair da sua fenda e a girar em torno da
sua cabeça cinza.
— Há muito, muito tempo — começou ele —, em um local muito, muito
distante, com fartos recursos e beleza indescritível, todas as octoaranhas viviam
em um vasto oceano. Na terra havia muitas criaturas, dentre elas os...
— Desculpe — disse Nicole para Archie e os outros —, mas não sei como
traduzir a última faixa de cor.
Archie fez várias outras frases para tentar definir a palavra em outros
termos.
Aqueles que se foram antes... — disse Nicole para si mesma. — Tudo bem,
provavelmente não é essencial para a história que cada palavra esteja exatamente
correta... Vou simplesmente chamar essas criaturas de "precursores".
— Nas porções de terra desse belo planeta — continuou Nicole a traduzir
para Archie —, havia muitas criaturas, dentre as quais as mais inteligentes de
todas eram os precursores. Eles construíram veículos que voavam no ar,
exploraram todos os planetas e estrelas vizinhas, e aprenderam até mesmo a criar
vida, a partir de simples elementos químicos, onde não havia vida antes. Eles
mudaram a natureza da terra e dos oceanos com seu conhecimento incrível.
Aconteceu que os precursores determinaram que a espécie das octoaranhas tinha
um enorme potencial não desenvolvido, uma capacidade que nunca fora expressa
durante seus muitos e muitos anos de existência, e começaram a lhes mostrar
como elas podiam se desenvolver e usar suas habilidades latentes. A medida que
os anos se passaram, as octoaranhas, graças aos precursores, tornaram-se a
segunda espécie mais inteligente do planeta e desenvolveram um relacionamento
muito complexo e íntimo com os precursores.
— Durante aquele tempo, os precursores ajudaram as octoaranhas a
aprender a viver fora da água, retirando oxigênio diretamente do ar do belo
planeta. Colônias inteiras de octos começaram a passar toda a vida na terra.
Certo dia, depois de uma grande reunião entre os chefes otimizadores dos
precursores e das octoaranhas, foi anunciado que todas as octoaranhas se tor-
nariam criaturas da terra e renunciariam às suas colônias no mar. Nas pro-
fundezas do mar havia uma pequena colônia de octos, com uns mil indivíduos no
máximo, administrada por um otimizador local que não concordou com a decisão
tomada pelos chefes otimizadores das duas espécies. Esse otimizador local
resistiu ao aviso, e, embora ele e sua colônia tivessem sido discriminados pelos
outros e não compartilhassem da fartura oferecida pelos precursores, ele e
muitas gerações que se seguiram continuaram a viver sua vida isolada e sem
complicações no fundo do oceano. Acontece que uma grande calamidade assolou
o planeta, e tornou-se impossível sobreviver na terra. Milhões de criaturas
morreram, e só as octoaranhas, que viviam confortavelmente na água,
sobreviveram durante os milhares de anos em que o planeta foi devastado.
Quando finalmente o planeta se recuperou e algumas octoaranhas do oce-
ano aventuraram-se na terra, não encontraram nenhum elemento da sua espécie,
e nenhum precursor tampouco. O otimizador local que vivera milhares de anos
antes tinha sido um visionário. Sem a sua atuação, todas as octoaranhas teriam
perecido... E é por isso que até mesmo hoje as octoaranhas espertas se mantêm
capazes de viver tanto na terra como no mar.
Nicole reconheceu, logo no início da história, que Archie estava contando
para eles uma coisa completamente diferente de tudo o que lhes contara antes.
Seria devido à conversa que tiveram naquela manhã, quando ela disse a Archie
que queriam voltar para o Novo Éden assim que o bebê dos Puckett nascesse?
Nicole não tinha certeza. Mas sabia que a lenda de Archie contava coisas sobre as
octoaranhas que os humanos não poderiam ter imaginado de nenhuma outra
forma.
— Foi uma história maravilhosa — disse Nicole, tocando ligeiramente em
Archie. — Não sei se as crianças gostaram...
— Eu achei legal — disse Kepler. — Não sabia que vocês podiam respirar
água.
— Como um bebê recém-nascido — falou Nai, quando Max apareceu todo
nervoso na porta.
— Venha depressa, Nicole. As contrações estão vindo a cada quatro
minutos.
Nicole levantou-se e virou-se para Archie.
— Por favor, diga para o dr. Azul trazer o engenheiro de imagens e o
sistema quadróide. E depressa!

Era incrível ver um nascimento do lado de fora e de dentro ao mesmo tem-


po. Nicole dava orientações a Eponine e ao engenheiro de imagens das
octoaranhas através do dr. Azul.
— Respire, você precisa respirar durante as contrações — ela gritava para
Eponine. — Mande-os mais para perto, mais para baixo no canal de nascimento,
com um pouco mais de luz — dizia para o dr. Azul.
Richard estava absolutamente fascinado. Ele procurou não atrapalhar e
foi para o canto do quarto, com o olhar se alternando entre as imagens na parede
e as duas octoaranhas com seu equipamento. O que as imagens mostravam
chegava com o atraso de uma contração em relação ao que acontecia na cama. No
final de cada contração, o dr. Azul passava para Nicole um pedaço de pano
redondo que Nicole enfiava na parte interna da coxa de Eponine. Em poucos
segundos, os pequenos quadróides que tinham estado dentro de Eponine na
última contração corriam para o pano, e novos quadróides subiam pelo colo do
útero. Com uma diferença de vinte a trinta segundos para o processamento dos
dados, outro conjunto de imagens aparecia na parede.
Max estava deixando todos malucos. Quando ouvia um grito ou gemido de
Eponine, à medida que ela se aproximava do auge de cada contração, corria para
o lado dela e agarrava a sua mão.
— Ela está sofrendo muito — dizia Max para Nicole. — Você precisa fazer
alguma coisa para ajudar a pobrezinha.
No intervalo das contrações, por sugestão de Nicole, Eponine ficava de pé
ao lado da cama para deixar a gravidade artificial ajudar o processo do
nascimento, mas Max piorava ainda mais as coisas. A imagem do filho ainda não
nascido encaixado no colo do útero, lutando contra a pressão da contração
anterior, levou Max a uma torrente de palavras.
— Oh, meu Deus, olhe, olhe! A cabeça dele está achatada. Que merda! O
espaço não é suficiente. Ele não vai conseguir passar.
Nicole tomou duas decisões importantes pouco antes de Marius Clyde
Puckett entrar no universo. Primeiro, ela concluiu que o bebê não nasceria sem
alguma ajuda. Seria necessário fazer uma episiotomia para aliviar a dor do parto.
E concluiu também que Max devia ser retirado do quarto antes que ficasse
histérico e fizesse alguma coisa que interferisse com o processo do nascimento.
Ellie esterilizou o bisturi a pedido de Nicole, e Max a olhou com olhos
arregalados.
— O que você vai fazer com isso? — perguntou.
— Max — disse Nicole calmamente, quando Eponine sentiu que outra
contração estava vindo —, eu te adoro, mas quero que você saia do quarto. Por
favor. O que eu vou fazer vai facilitar o nascimento de Marius, mas não é uma
coisa bonita de se ver...
Max não se mexeu. Patrick, que estava na porta, pôs a mão no ombro do
amigo quando Eponine começou a gemer de novo. A cabeça do bebê estava
claramente pressionando a abertura vaginal. Nicole começou a cortar, e Eponine
gritou de dor.
— Não! — disse Max frenético assim que viu o sangue. — Não... que
merda... oh, que merda!
— Agora... saia agora! — gritou Nicole imperiosamente quando terminou a
episiotomia. Ellie ficou secando o sangue o mais depressa que podia. Patrick
virou Max de costas, deu-lhe um abraço e tirou-o do quarto.
Nicole checou a imagem assim que ela apareceu na parede. O pequeno
Marius estava em posição perfeita. Que tecnologia fantástica, pensou ela. Isso
muda o nascimento completamente.
Nicole não teve mais tempo de refletir; outra contração estava começando.
Ela pegou a mão de Eponine.
— Deve ser agora — disse. — Quero que você empurre com toda a sua
força... Durante todo o tempo da contração. — E disse ao dr. Azul que não
precisava de mais imagens.
— Empurre — gritaram Nicole e Ellie ao mesmo tempo.
A cabeça do bebê apontou. Dava para ver uns fiapos do cabelo castanho-
claro.
— Mais uma vez — gritou Nicole. — Empurre de novo.
— Não consigo — gemeu Eponine.
— Consegue sim... Empurre!
Eponine arqueou as costas, respirou fundo e um instante depois o bebê
Marius estava nas mãos de Nicole. Ellie tinha aprontado a tesoura para cortar o
cordão umbilical. O menino chorou naturalmente, sem precisar levar uma
palmada, e Max entrou no quarto correndo.
— Seu filho chegou — disse Nicole. Terminou de limpar o excesso de
líquido, amarrou o cordão umbilical e passou o bebê para o pai orgulhoso.
— Oh, meu... oh, meu... O que eu faço agora? — disse Max radiante,
segurando o pequeno Marius como se ele fosse frágil como um cristal e precioso
como um brilhante.
— Pode dar um beijo nele — respondeu Nicole com um sorriso. — Seria
um bom começo.
Max abaixou a cabeça e beijou Marius cora todo o cuidado.
— E pode trazer o bebê para ele conhecer a mãe — disse Eponine.
Lágrimas de alegria escorriam pelo rosto da nova mamãe quando ela olhou seu
bebê bem de perto pela primeira vez. Nicole ajudou Max a deitar o pequeno
Marius no peito de Eponine.
— Oh, francesinha — disse Max, apertando a mão dela —, como eu te
amo... eu te amo demais...
Marius, que estava chorando desde que tinha nascido, acalmou-se na
nova posição sobre o peito da mãe. Eponine esticou a mão que Max não estava
segurando e acariciou seu filhinho. De repente, os olhos de Max encheram-se de
lágrimas.
— Obrigado, querida — disse para Eponine. — Obrigado, Nicole. Obrigado,
Ellie.
Max agradeceu a todos no quarto várias vezes, inclusive às duas octoa-
ranhas. Nos cinco minutos seguintes, ele virou uma verdadeira máquina de dar
abraços, e nem mesmo as octoaranhas escaparam de seus abraços agradecidos.

6
Nicole bateu de leve na porta e enfiou a cabeça no quarto.
— Com licença. Vocês já acordaram?
Eponine e Max se mexeram, mas seus olhos não se abriram para cum-
primentar Nicole. O pequeno Marius estava dormindo satisfeito, aninhado entre
seus pais. A certa altura, Max resmungou:
— Que horas são?
— Quinze minutos depois da hora marcada para o exame do Marius —
disse Nicole. — O dr. Azul vai voltar daqui a pouco.
Max gemeu e cutucou Eponine.
— Entre — disse ele para Nicole. Estava com um aspecto horrível, olhos
vermelhos e bolsas debaixo dos olhos. — Por que os bebês não dormem mais de
duas horas seguidas? — perguntou, bocejando.
Nicole ficou na porta.
— Alguns dormem, Max... Mas cada bebê é diferente. Logo depois que
nascem, eles em geral seguem a mesma rotina a que se acostumaram dentro do
útero.
— De que você está se queixando? — perguntou Eponine, tentando
sentar-se. — Você ouve o choro dele, muda uma fralda de vez em quando e volta
a dormir... Eu tenho de ficar acordada para amamentar... Queria ver você tentar
dormir com um bichinho desses sugando seu seio.
— O que é isso? — perguntou Nicole rindo. — Os novos papais já per-
deram sua aura de neófitos em apenas quatro dias?
— Ainda não — falou Eponine, forçando um sorriso enquanto se vestia. —
Mas, meu Deus, estou tão cansada!
— Isso é normal — falou Nicole. — Seu organismo passou por um trauma.
Você precisa descansar... Como eu disse no dia em que Marius nasceu, quando
vocês insistiram em fazer uma festa, o único jeito de vocês dormirem nas duas
primeiras semanas é adaptando seu horário ao dele.
— Eu sei disso — falou Max, passando aos tropeções pela porta, com as
roupas na mão, para ir ao banheiro.
Eponine deu uma olhada ligeira para o tampão retangular azul que Nicole
acabara de tirar da bolsa.
— Essa é uma das novas fraldas? — perguntou.
— É — respondeu Nicole. — Os engenheiros octoaranhas fizeram uns
aprimoramentos... Aliás, a oferta deles de um devorador especial continua de pé.
Eles ainda não criaram nada para a urina de Marius, mas calculam que com o
devorador o bebê só faça cocô...
— Max é completamente contra isso — interrompeu Eponine. — Ele disse
que seu filho não vai servir de experiência para as octoaranhas.
— Eu não chamaria isso de experiência — falou Nicole. — A espécie de
devorador que eles projetaram é uma versão ligeiramente modificada dos que vêm
limpando nossos banheiros há seis meses. E pense no trabalho que você
evitaria...
— Não — disse Eponine com firmeza. — Mas mesmo assim agradeça às
octoaranhas.
Quando Max voltou, estava vestido para o dia, embora ainda não tivesse
feito a barba.
— Eu queria te dizer, Max — falou Nicole —, antes de o dr. Azul voltar,
que finalmente tive uma longa conversa com Archie sobre a nossa volta para Novo
Éden... Quando expliquei a ele que nós todos queríamos voltar e tentei dar
algumas das razões para essa nossa decisão, ele me disse que não lhe cabia dar a
permissão para nossa partida.
— Então cabe a quem? — perguntou Max.
— Archie disse que é um assunto para o Chefe Otimizador.
— Ah! Então eu estava certo desde o começo. Nós realmente somos pri-
sioneiros aqui, e não hóspedes.
— Não, se é que eu entendi bem o que Archie falou. Ele me disse que isso
"pode ser arranjado, se necessário", mas que só o Chefe Otimizador compreende
bem "todos os fatores" para poder tomar uma decisão.
— Mais blá-blá-blá dessas malditas octoaranhas — resmungou Max.
— Acho que não. Na verdade, eu fui encorajada. Mas Archie disse que só
poderá programar um encontro com o Chefe Otimizador depois da Matrícula...
um processo que está tomando todo o tempo de Jamie. Aparentemente isso só
acontece a cada dois anos e envolve a colônia toda.
— Quanto tempo essa Matrícula leva? — perguntou Max.
— Mais uma semana. Richard, Ellie e eu fomos convidados a participar
hoje à noite de uma parte do processo... Estou curiosa.
— De qualquer forma, Marius e eu só poderemos ir embora daqui a
algumas semanas — disse Eponine para Max. — Portanto, esperar uma semana
não é problema.
Naquele instante, o dr. Azul bateu na porta e entrou no quarto com um
equipamento especializado que seria usado para examinar Marius. Max olhou de
esguelha para as duas maletas com as criaturas espiraladas que pareciam uma
pasta preta.
— O que são essas malditas coisas? — perguntou com a cara amarrada.
Nicole terminou de colocar seus próprios instrumentos em cima da mesa, ao lado
da cama.
— Max — disse ela sorrindo —, por que você não sai durante uns quinze
minutos?
Max franziu as sobrancelhas.
— O que vocês vão fazer com o meu filho? Cozinhar o menininho no óleo?
— Não, não — Nicole deu uma risada. — Mas quem ouve o barulho desses
instrumentos pode pensar que estamos fazendo isso.

Ellie pôs Nikki no colo e lhe deu um abraço, e a menininha parou de


chorar por algum tempo.
— Mamãe vai sair com a vovó e o vovô, Archie e o dr. Azul — disse Ellie. —
Nós só vamos voltar depois que você estiver dormindo... Você vai ficar aqui com a
sra. Watanabe e Kepler...
— Eu não quero ficar aqui — falou Nikki no seu tom mais desagradável. —
Quero ir com minha mamãe. — Nikki deu um beijo em Ellie. Seu rosto mostrava
a expectativa.
Quando Ellie pôs a filhinha no chão, ela recomeçou a chorar.
— Eu não quero... — gritava ela quando a mãe saiu do quarto. Ellie
sacudia a cabeça enquanto os cinco seguiam para a praça.
— Não sei o que fazer com ela — disse Ellie. — Desde aquele incidente no
estádio ela está grudada comigo...
— Pode estar passando por uma fase normal — falou Nicole. — As crian-
ças mudam muito depressa na idade dela... E Nikki não é mais o centro de
atenção; agora temos o Marius.
— Acho que o problema é mais profundo — disse Ellie, depois de alguns
segundos. Ela se virou para Nicole. — Desculpe, mamãe, mas creio que a
insegurança de Nikki tem mais a ver com Robert do que com Marius.
— Mas Robert foi embora há mais de um ano — observou Richard.
— Isso não importa — replicou Ellie. — Em certa medida, Nikki deve
ainda se lembrar de quando seus pais estavam juntos... Ela provavelmente acha
que primeiro eu a abandonei e depois abandonei Robert. Por isso se sente tão
insegura.
Nicole fez um carinho na filha.
— Mas Ellie, se isso for verdade, por que só agora ela está reagindo tanto?
— Não tenho certeza — disse Ellie. — Talvez o encontro com o iguana
tenha lhe mostrado como ela é frágil... E como sente falta da proteção do pai...
Eles ouviram o choro de Nikki vindo do outro lado da rua.
— Não sei o que a está perturbando, mas espero que ela consiga superar
isso logo. Quando Nikki chora assim, sinto como se meu estômago estivesse
queimando.
Não havia nenhum transporte na praça. Archie e o dr. Azul continuaram
andando na direção da pirâmide onde as octoaranhas e os humanos em geral
faziam suas conferências.
— Esta noite é muito especial — explicou o dr. Azul —, e há muitas coisas
que devemos lhes dizer antes de sairmos da sua zona.
— Onde está Jamie? — perguntou Nicole quando eles entraram no prédio.
— Pensei que ele iria conosco... E, por falar nisso, o que aconteceu com Hércules?
Não o vemos desde o Dia da Fartura.
Enquanto subiam a rampa para o segundo andar da pirâmide, o dr. Azul
informou que Jamie e seus colegas estavam ocupados com a Matrícula naquela
noite, e que Hércules tinha sido reescalado.
— Meu Deus — disse Richard brincando —, Hércules nem se despediu da
gente.
As octoaranhas, que ainda não haviam aprendido a reconhecer muito o
senso de humor dos humanos, desculparam-se pela falta de gentileza de
Hércules. Depois disseram que não haveria mais uma octoaranha entre os
humanos fazendo o papel de observador diário.
— Hércules foi despedido por alguma razão? — perguntou Richard, ainda
em tom de brincadeira. Mas as duas octoaranhas ignoraram a pergunta.
Eles entraram na sala de conferências onde Nicole havia sido instruída
sobre o sistema digestivo das octoaranhas. Várias folhas do pergaminho ou
couro, nas quais as octos haviam feito seus desenhos e diagramas, ainda
estavam num canto em frente à parede. O dr. Azul pediu que Richard, Nicole e
Ellie se sentassem.
— O que vocês vão ver esta noite — disse Archie — nunca foi visto por
uma não-octoaranha desde que a nossa colônia foi criada aqui em Rama.
Estamos levando vocês conosco numa tentativa de melhorar a qualidade da
comunicação entre nossas duas espécies. É imperativo que vocês compreendam,
antes de sairmos desta sala e passarmos para o Domínio Alternativo, não só o
que irão ver, mas também como deverão se comportar.
— Em nenhuma circunstância — acrescentou o dr. Azul —, vocês devem
interromper os procedimentos ou tentar interagir com alguém ou alguma coisa,
na ida ou na volta. Vocês devem seguir todas as instruções. Se não puderem ou
não quiserem aceitar essas condições, devem dizer agora, e não os levaremos
conosco.
Os três humanos se entreolharam alarmados.
— Vocês nos conhecem bem — falou Nicole finalmente. — Espero que não
nos peçam para fazer alguma coisa incompatível com nossos valores ou
princípios. Nós não poderíamos...
— Isso não nos preocupa — interrompeu Archie. — Estamos simples-
mente pedindo que vocês sejam observadores passivos, independentemente do
que vejam ou sintam. Se ficarem confusos ou amedrontados e por alguma razão
não puderem localizar um de nós, sentem-se onde estiverem, com as mãos de
lado, e esperem que nós chegaremos.
Houve uma breve pausa.
— Não posso deixar de enfatizar — continuou Archie — a importância do
comportamento de vocês esta noite. A maioria dos outros otimizadores se opôs
quando pedi que permitissem a entrada de vocês aqui. O dr. Azul e eu garantimos
pessoalmente que vocês não teriam um comportamento inadequado.
— Nossas vidas estão em perigo? — perguntou Nicole.
— Provavelmente não — replicou Archie. — Mas poderiam estar... E se a
noite de hoje for um fracasso por causa de alguma coisa que um de vocês fizer,
não sei se... — De forma muito pouco comum às octoaranhas, Archie não
terminou a frase.
— Você está nos dizendo — falou Nicole — que nosso pedido para voltar
para o Novo Éden está de certa forma ligado a tudo isso?
— Nosso relacionamento chegou ao auge. Ao mostrarmos uma parte
crítica do nosso processo de Matrícula para vocês, estamos tentando chegar a um
novo nível de compreensão. Neste sentido, a resposta à sua pergunta é sim.

Eles passaram quase meio tert, duas horas humanas, na sala de


conferências. Archie começou explicando o que significava a atividade da
Matrícula. Jamie e seus companheiros, disse a octoaranha, tinham saído da
adolescência e iam entrar no período de transição para a idade adulta. Como
jovens, sua vida era controlada, e eles não tinham permissão de tomar decisões
de grande importância. No final da Matrícula, Jamie e as outras octos tomariam
uma única decisão, uma decisão que iria alterar fundamentalmente a vida deles.
O objetivo da Matrícula, e mais ainda do ano anterior à transição, era fornecer às
octoaranhas adolescentes informações que as ajudassem a tomar aquela
importante decisão.
— Hoje à noite — disse Archie —, os jovens serão levados em grupo ao
Domínio Alternativo para verem uma...
Nem Ellie nem Nicole conseguiram de início achar uma palavra para
traduzir o que as jovens octoaranhas iriam ver. Mas depois de alguma discussão
entre elas e das várias frases de esclarecimento do dr. Azul e de Archie, as
mulheres acharam que a melhor interpretação para o que Archie dissera em
cores seria "peça de moralidade".
Nos minutos seguintes, a conversa tomou outro rumo, quando o dr. Azul e
Archie explicaram, em resposta às perguntas dos humanos, que o Domínio
Alternativo era uma seção específica do reinado das octoaranhas que não ficava
sob a cúpula.
— No sul da Cidade de Esmeralda — disse Archie — há outra colônia com
um estilo de vida absolutamente diferente do nosso. Cerca de duas mil
octoaranhas vivem no Domínio Alternativo atualmente, com outras três a quatro
mil criaturas de mais de dez espécies diferentes. A vida deles é caótica e
desestruturada. As octoaranhas alternativas não têm uma cúpula sobre suas
cabeças para protegê-las, nem têm tarefas específicas, diversões programadas,
acesso a informações na biblioteca, estradas ou casas, a não ser as que
construíram coletivamente. E sua expectativa de vida é de um décimo da
expectativa média das octoaranhas da Cidade de Esmeralda.
Ellie lembrou-se que a área de Avalon fora criada por Nakamura para lidar
com os problemas que os colonos do Novo Éden desejavam esquecer, e pensou
que talvez o Domínio Alternativo fosse uma colônia semelhante.
— Por que — perguntou ela — tantas octoaranhas, cerca de dez por cento,
se minha aritmética estiver correta, foram forçadas a viver fora da cúpula?
— Nenhuma octoaranha foi forçada a viver no Domínio Alternativo —
disse o dr. Azul. — Todas elas estão lá em virtude de uma decisão crítica.
O dr. Azul foi até o canto e pegou alguns gráficos, e as duas octoaranhas
usaram os diagramas durante a longa discussão que se seguiu. Primeiro expli-
caram que há centenas de gerações seus biólogos haviam identificado corre-
tamente a conexão entre a sexualidade na sua espécie e muitas outras caracte-
rísticas comportamentais, inclusive ambição pessoal, agressividade, senso
territorial e envelhecimento, para citar só as mais importantes. Essa descoberta
foi feita durante um período da história das octoaranhas em que ocorria pela
primeira vez a transição para a Otimização, mas, apesar da suposta aceitação
universal do que era teoricamente uma base superior para a estrutura da
sociedade das octoaranhas, a transição foi impedida pelo desencadeamento de
guerras, dissidências tribais e outros problemas semelhantes. Os biólogos
octoaranhas da época acreditavam que só uma sociedade assexuada, ou na qual
apenas uma pequena fração da população fosse sexuada, conseguiria seguir os
princípios da Otimização, segundo os quais os desejos do indivíduo se
subordinavam ao bem-estar da colônia como um todo.
Uma sucessão aparentemente sem fim de conflitos convenceu todas as
octoaranhas daquele período de que a Otimização nada mais era que um sonho
tolo, a menos que encontrassem algum método ou técnica para combater o
individualismo que inevitavelmente bloqueava a aceitação da nova ordem. Mas o
que se poderia fazer? Só muitas gerações depois é que se fez a brilhante
descoberta de que existiam químicas especiais em um produto semelhante à
cana-de-açúcar, chamado barrican, que retardava a maturidade sexual das
octoaranhas. Passaram-se centenas de anos até que os engenheiros genéticos
octoaranhas conseguissem projetar e produzir uma variação desse barrican, que
quando ingerido regularmente parava por completo o advento da maturidade
sexual.
Os testes nas colônias tiveram um sucesso muito além do esperado pelos
biólogos e cientistas políticos progressistas. Octoaranhas sexualmente imaturas
eram mais receptivas aos conceitos do grupo de Otimização. E, além de a
maturidade sexual não ocorrer nas octoaranhas que comiam o barrican
regularmente, seu envelhecimento era muito retardado. Os cientistas
octoaranhas aprenderam rapidamente que o envelhecimento se relacionava ao
mesmo mecanismo interno da puberdade, e na verdade as enzimas que impediam
que as células se recuperassem adequadamente nas octoaranhas mais velhas só
eram ativadas num período específico após a maturidade sexual.
A sociedade das octoaranhas passou por rápidas mudanças, afirmaram
Archie e o dr. Azul, depois dessas descobertas colossais. A otimização espalhou-
se por todo lado. Os cientistas sociais octoaranhas começaram a contemplar uma
sociedade na qual as octos seriam praticamente imortais, morrendo apenas de
acidentes ou de uma deficiência súbita em um órgão importante. Octoaranhas
assexuadas povoaram todas as colônias, e, como os biólogos haviam previsto, a
ambição pessoal e a agressividade tornaram-se quase inexistentes.
— Toda essa história ocorreu há muitas gerações — disse Archie —, e é
informação básica para ajudá-los a compreender o que é a Matrícula. Sem fazer
alusão à complexa história intermediária, o dr. Azul irá resumir como estamos
hoje na nossa colônia específica. Todas as octoaranhas que vocês viram até agora
— disse o dr. Azul —, com exceção das morfologias midgets e das "repletas",
ambas permanentemente assexuadas, são criaturas cuja maturidade sexual foi
retardada pelo barrican. Muitos anos atrás, antes que um biólogo esperto
mostrasse como um tipo diferente de sexualidade podia ser elaborado
geneticamente na nossa espécie, só a octoaranha-rainha podia produzir
descendentes... Entre as octoaranhas adultas normais havia dois sexos, mas a
única diferença significativa entre os sexos era que um deles, ao atingir a
maturidade, tinha capacidade para fertilizar a rainha. Os adultos sexualizados
copulavam por prazer, mas, como esse contato não tinha conseqüência, as
distinções entre os sexos apagaram-se. Na verdade, ligações a longo termo na
colônia ocorriam com maior freqüência entre membros do mesmo sexo, pois eles
tinham sentimentos semelhantes e pontos de vista em comum... Agora a situação
é muito mais complicada. Na nossa espécie de octoaranhas, graças à engenharia
genética de nossos antecessores, uma fêmea adulta é capaz de produzir, através
de uma união sexual com um macho adulto, uma única descendente, não-fértil,
com expectativa de vida limitada e capacidade um tanto reduzida. Vocês ainda
não viram uma dessas morfologias porque elas vivem no Domínio Alternativo. O
dr. Azul fez uma pausa e Archie continuou:
— Cada cidadão jovem da nossa colônia, macho ou fêmea, decide se
deseja tornar-se sexualmente maduro no período imediatamente posterior à
Matrícula. Se a decisão for negativa, a octoaranha coloca sua sexualidade nas
mãos dos Otimizadores e da colônia como um todo. Foi o que o dr. Azul, que é
fêmea, e eu fizemos muito tempo atrás. Pela lei das octoaranhas, é só
imediatamente após a Matrícula que o indivíduo pode fazer sua própria escolha
sexual sem quaisquer conseqüências. Os Otimizadores não são tolerantes com
aqueles que decidem passar por uma metamorfose sexual, sem a explícita
permissão da colônia, depois de suas carreiras terem sido cuidadosamente
estruturadas e planejadas.
Mais uma vez o dr. Azul falou:
— De acordo com o que nós lhes expusemos, seria improvável que uma
octoaranha jovem tomasse a decisão de uma maturidade sexual precoce. Porém,
a bem da justiça, devemos dizer que há fortes razões, pelo menos para algumas
octoaranhas jovens, para elas escolherem tornar-se alternativas. Antes de tudo, a
octoaranha fêmea sabe que suas chances de ter descendentes são bem menores
se ela resolver permanecer assexuada depois da Matrícula. De acordo com a
nossa história, só numa emergência um grande número dessas fêmeas será
convocado a octoaranhas jovens. Em geral, a capacidade reduzida e a
infertilidade desse tipo de prole as tornam menos desejáveis do ponto de vista da
colônia como um todo, a não ser que sejam necessárias mais octoaranhas para
apoiar a infra-estrutura social. Algumas dessas octoaranhas também consideram
inaceitáveis o regime e o organização da nossa vida na Cidade de Esmeralda, e
desejam uma existência onde elas possam tomar suas próprias decisões. Outras
temem que os otimizadores as coloquem em uma carreira inadequada. Todas as
que escolhem uma sexualidade precoce vêem o Domínio Alternativo como um
lugar livre e emocionante, cheio de encanto e aventura. Elas não levam em conta
aquilo a que estão renunciando... e, na sua exuberância momentânea, a qualida-
de da sua vida é mais importante que a sua duração...
Durante toda essa longa conversa, Richard, Nicole e Ellie fizeram poucas
interrupções para pedir esclarecimentos sobre os pontos mais significativos. E
puderam confirmar, a cada vez, que tinham traduzido adequadamente o que as
octoaranhas haviam explicado. A medida que a noite avançava, os três humanos
foram se sentindo oprimidos. Havia informações demais para serem assimiladas
em uma única exposição.
— Esperem um instante — disse Richard abruptamente, quando Archie
indicou que estava na hora de partirem. — Desculpe... mas há uma coisa
fundamental sobre isso que ainda não entendi. Por que essa escolha é permitida?
Por que os otimizadores não decretam simplesmente que todas as octoaranhas
comerão sempre o barrican e permanecerão assexuadas até que a colônia precise
que elas se reproduzam?
— Esta é uma boa pergunta — falou Archie — que tem uma resposta
complexa. Vou tentar simplificar, em função do tempo, dizendo que a nossa
espécie acredita na livre escolha. Além disso, como vocês viram hoje à noite, há
algumas funções para as quais só as alternativas são adequadas, e das quais a
colônia toda se beneficia.

7
Depois de deixar a zona deles, o transporte seguiu um itinerário diferente
daquele que tomara para levar os humanos ao estádio no Dia da Fartura. Desta
vez, passou por ruas de luz mortiça, na periferia da cidade, sem aqueles cenários
coloridos que os humanos haviam visto na excursão anterior. Depois de vários
fengs, o transporte aproximou-se de um grande portão fechado, muito semelhan-
te àquele pelo qual eles haviam entrado da primeira vez na Cidade de Esmeralda.
Duas octoaranhas vieram inspecionar o carro. Archie lhes disse alguma
coisa em cores, e uma delas voltou para uma espécie de casa da guarda. A
distância, Richard viu cores refletindo-se em uma parede plana.
— Ela está checando com as autoridades — disse o dr. Azul aos humanos.
— Estamos fora do nosso horário de chegada, por isso nosso código não está
mais válido.
Enquanto esperavam mais uns nillets, a outra octoaranha entrou no
transporte e inspecionou-o detalhadamente. Nenhum dos humanos jamais tinha
visto tantas precauções de segurança na Cidade de Esmeralda, e nem mesmo no
estádio. O mal-estar de Ellie aumentou quando o agente de segurança
octoaranha, sem dizer nada, abriu sua bolsa para ver o que havia dentro. Depois
o inspetor devolveu a bolsa a Ellie e desembarcou. Os portões se abriram, o
transporte saiu da cúpula verde e estacionou no escuro menos de um minuto
depois.
No estacionamento, o transporte ficou no meio de outros trinta a quarenta
veículos.
— Esta área — explicou o dr. Azul quando eles desceram do carro e
apareceram dois vaga-lumes — é chamada Distrito das Artes. O Distrito e o
Zoológico, que não fica longe daqui, são as únicas partes do Domínio Alternativo
visitadas com regularidade pelas octoaranhas que vivem na Cidade de Esmeralda.
Os otimizadores não aprovam muitas solicitações de visitas às áreas de moradia
alternativas que ficam mais ao sul; aliás, a única vista completa do Domínio
Alternativo que a maioria das octoaranhas faz é durante um passeio na última
semana da Matrícula.
O ar estava muito mais frio do que na Cidade de Esmeralda. Archie e o dr.
Azul começaram a andar mais depressa do que os humanos jamais haviam visto
uma octoaranha andar.
— Temos de nos apressar — disse Archie virando-se para o grupo —,
senão será tarde demais. — Os humanos tiveram de correr para seguir os dois.
Quando se aproximaram de uma área iluminada a uns trezentos metros
do seu transporte, Archie e o dr. Azul foram para as duas extremidades da linha
dos humanos, de modo que os cinco ficaram lado a lado.
— Estamos entrando na praça dos Artesãos — disse o dr. Azul —, onde os
alternativos oferecem seus trabalhos artísticos para transferência.
— O que é "transferência"? — perguntou Nicole.
— Os artistas precisam de créditos para comida e outras coisas essen-
ciais. Eles oferecem seus trabalhos a um residente da Cidade de Esmeralda que
tenha crédito sobrando — respondeu o dr. Azul.
Por mais que Nicole quisesse seguir a conversa, ela foi atraída pela quanti-
dade de objetos inusitados, de octoaranhas e outros animais vistos na praça dos
Artesãos. Era uma praça grande, de setenta a oitenta metros quadrados, que
atravessava a larga avenida do teatro para onde eles se dirigiam. Archie e o dr.
Azul, nas pontas da fila, estenderam um tentáculo nas costas dos humanos para
que os cinco se movessem como um só naquela praça barulhenta.
O grupo foi abordado por várias octoaranhas com objetos para serem
transferidos. Richard, Nicole e Ellie compreenderam logo o que Archie lhes
dissera durante a longa reunião, ou seja, que os alternativos não obedeciam às
normas da língua oficial usada pelas octoaranhas na Cidade de Esmeralda. Não
se viam faixas definidas de cores em volta da cabeça daquelas octoaranhas,
apenas seqüências desmaiadas de manchas de cor de alturas variáveis. Um dos
vendedores ambulantes que os abordou era pequeno, obviamente um jovem, e,
depois de ter sido mandado embora por Archie, deu um susto em Ellie, ao enrolar
um tentáculo em volta do braço dela numa fração de segundo. Archie pegou o
agressor com três dos seus tentáculos e jogou-o para fora do caminho, na direção
de uma das octoaranhas com uma sacola de pano ao ombro. O dr. Azul explicou
que aquela sacola indicava que a octoaranha era um policial.
Nicole andava tão depressa e havia tanta coisa para ver que de repente
notou que estava prendendo a respiração. Embora não soubesse para que
serviam muitos dos objetos oferecidos para transferência na praça, ela reco-
nheceu e apreciou várias pinturas e esculturas, e algumas miniaturas em
madeira ou outro material semelhante de todos os diferentes animais que viviam
na Cidade de Esmeralda. Em uma seção da praça havia exposições de desenhos
coloridos impressos sobre pergaminho. O dr. Azul explicou mais tarde, quando
estavam dentro do teatro, que aquela forma artística particular representada
pelos desenhos era uma combinação de poesia e caligrafia, conforme o termo dos
humanos.
Pouco antes de atravessar a rua, Nicole tinha visto em uma parede a vinte
metros de distância um grande mural de rara beleza. As cores eram fortes e
atraentes, e a composição era obra de um artista que entendia tanto de estrutura
quanto de apelo óptico. A técnica também era impressionante, mas o que mais
fascinou Nicole foi a emoção retratada nos corpos e rostos das octoaranhas e
outras criaturas do mural.
O Triunfo da Otimização — disse Nicole para si mesma, quando esticou o
pescoço para ler o título em cores na parte superior do mural. Na pintura havia
de um lado uma nave espacial com uma estrela no fundo, de outro um oceano
cheio de seres vivos, e nos cantos opostos uma selva e um deserto. Mas a imagem
central era de uma octoaranha gigante, carregando um bastão, de pé no alto de
uma pilha de trinta a quarenta animais disparatados, que rolavam na terra
debaixo dos seus tentáculos. O coração de Nicole começou a bater forte quando
ela viu que um daqueles seres era uma jovem humana, morena, com olhos azuis
e cabelos curtos e crespos.
— Olhem! — gritou ela para os outros. — Lá, naquele mural.
Naquele instante algum tipo de animal pequeno começou a importunar os
humanos, andando em volta dos seus pés, e conseguiu atrair a atenção de todos.
As duas octoaranhas enxotaram o animal e puxaram a fila para o teatro. Quando
Nicole atravessou a rua, olhou para o mural de novo a fim de se certificar de que
não havia imaginado aquela moça no meio da pintura. Daquela distância, o rosto
e as feições da mulher eram imprecisos, mas Nicole estava convencida de ter visto
um ser humano na obra de arte. Mas como é possível?, perguntou a si mesma,
quando entraram no teatro.
Preocupada com sua descoberta, Nicole ouviu só metade do que Richard
falava com Archie sobre sua intenção de usar o tradutor durante a peça. Ela nem
sequer olhou quando, depois de eles terem arranjado um lugar na quinta fila, o
dr. Azul apontou com um dos seus tentáculos para o setor da direita, onde
estavam Jamie e outras octoaranhas da Matrícula. Nicole foi tomada de um forte
impulso de voltar à praça e verificar o que vira. Mas então lembrou-se que Archie
dissera como era importante seguir as instruções com cuidado naquela noite. Eu
sei que vi uma mulher naquela pintura, disse Nicole para si mesma, quando três
grandes vaga-lumes desceram e ficaram sobrevoando o palco no centro do teatro.
Mas se eu vi, o que isso quer dizer?
A peça não tinha intervalos, e levou pouco mais de dois wodens. A ação
era contínua, com um ou mais atores octoaranhas ocupando o palco iluminado o
tempo todo. Não havia cenários, nem vestuários. No início da peça, os sete
personagens principais deram um passo à frente e se apresentaram: duas
octoaranhas da Matrícula, uma de cada sexo, um par de pais adotivos para cada
um e um macho alternativo cujas cores brilhantes e bonitas espalhavam-se até a
ponta dos seus tentáculos quando ele falava.
Nos primeiros minutos da peça foi mostrado que os dois jovens da Matrí-
cula tinham sido amigos íntimos durante anos e que, apesar dos bons conselhos
de seus pais adotivos, tinham decidido que teriam uma maturidade precoce
juntos. "Meu desejo", dizia a jovem octoaranha fêmea no seu primeiro monólogo,
"é ter um bebê de uma união com meu querido companheiro." Ou pelo menos foi
o que Richard traduziu. Ele estava contente com o desempenho do seu tradutor
aprimorado, e, quando se lembrou de que as octoaranhas eram surdas, falou
intermitentemente ao longo da performance.
Os quatro pais octoaranhas vieram juntos ao centro do palco e expressa-
ram sua ansiedade sobre o que aconteceria quando as "poderosas novas
emoções" que acompanhavam a transformação sexual fossem enfrentadas por
seus filhos adotivos. Porém, eles tentaram ser justos, e os quatro adultos
admitiram que sua própria escolha de não se tornarem sexualmente maduros
depois da Matrícula significava que não podiam dar conselhos baseados numa
experiência verdadeira.
No meio da peça, as duas octoaranhas jovens ficaram isoladas em cantos
opostos do palco, e o público concluiu, diante do espetáculo pirotécnico dos vaga-
lumes e de algumas breves declarações dos atores, que os jovens haviam parado
de comer o barrican e estavam sozinhos em um tipo de Domínio de Transição.
Quando as duas octoaranhas transformadas andaram pelo palco e se en-
contraram no centro, os padrões coloridos de sua conversa estavam alterados.
Era um efeito forte, porém obtido pelos próprios atores: não só as cores
individuais eram mais brilhantes do que antes da transição como também as
faixas rígidas e quase perfeitas que caracterizavam as primeiras conversas entre
os dois jovens já estavam marcadas com desenhos individuais diferentes e
interessantes. Em volta deles no palco havia meia dúzia de outras octoaranhas,
todas alternativas, a julgar pela sua linguagem, e uns dois animais-salsicha
caçando qualquer coisa que pudessem encontrar. O casal estava agora
nitidamente no Domínio Alternativo.
Da escuridão das coxias entrou no palco o macho alternativo apresentado
no início da peça. Com uma exibição brilhante de desenhos coloridos horizontais
e verticais movendo-se em duas direções e criando um movimento ondulado, e
depois com padrões geométricos e explosões de fogos de artifício que começavam
em torno de sua cabeça, o recém-chegado magnetizou a jovem octoaranha fêmea
e tirou-a do seu melhor amigo de infância. Uns nillets depois, o alternativo mais
velho, com suas cores fantásticas, obviamente pai do bebê octoaranha carregado
pela fêmea, deixou-a "chorando" (tradução de Richard para a sentada no canto do
palco e emitindo vários pulsos desestruturados de cores misturadas) sozinha.
Àquela altura da peça, a octoaranha macho que tinha se matriculado nas
cenas anteriores surgiu na luz, viu seu amor em desespero com o bebê e pulou
para a escuridão que rodeava o palco. Um instante depois, voltou com o
alternativo que havia corrompido sua namorada, e as duas octoaranhas macho
engajaram-se numa briga terrível mas fascinante no meio do palco. Com as
cabeças rodeadas de raios coloridos, eles se bateram, se contorceram e lutaram
durante um feng. O macho mais moço acabou ganhando a luta, pois o alternativo
ficou imóvel no palco quando a ação terminou. A tristeza expressa nas
observações finais do herói e da heroína garantiu que a moral da peça ficasse
bem clara. Quando a peça terminou, Richard olhou para Nicole e Ellie e
comentou, com um riso irreverente:
— Essa é uma das peças negras, como Othelo, em que todos morrem no
final.
Sob a supervisão dos policiais octoaranhas, todos com sacolas, os jovens
da Matrícula saíram do teatro primeiro, seguidos por Archie, pelo dr. Azul e seus
amigos humanos. O cortejo organizado parou do lado de fora, formando um anel
em volta de três outras octoaranhas que estavam no meio da avenida. Richard,
Nicole e Ellie sentiram os fortes tentáculos dos amigos nas suas costas quando se
colocaram em posição de ver o que estava ocorrendo. Duas das octoaranhas no
centro da rua seguravam bastões e usavam sacolas, e a terceira, agachada entre
elas, transmitia a mensagem em cores, em largas faixas desestruturadas: "Por
favor me ajudem."
— Esta octoaranha — disse um dos policiais — não conseguiu ganhar
seus créditos desde que veio para o Domínio Alternativo, depois da Matrícula,
quatro ciclos atrás. No último ciclo ela foi avisada de que se tornara um peso
morto nos nossos recursos comuns, e recentemente, dois dias antes do Dia da
Fartura, disseram-lhe que se apresentasse para ser exterminada. Desde esse dia,
ela vem se escondendo entre os amigos no Domínio Alternativo...
De repente, a octoaranha agachada ergueu-se e pulou para o meio dos
observadores, perto de onde estavam os humanos. A multidão afastou-se para
trás e Ellie, que estava mais próxima do ponto por onde a octoaranha tentara
escapar, foi jogada ao chão na confusão que se seguiu. Em menos de um nillet, a
polícia, com a ajuda de Archie e de vários jovens da Matrícula, dominou mais
uma vez a fugitiva.
— Deixar de se apresentar para uma exterminação programada é um dos
maiores crimes que uma octoaranha pode cometer — disse o policial. — A
punição é a exterminação imediata depois da prisão. — Um dos policiais tirou da
sacola várias criaturas semelhantes a vermes. A octoaranha fugitiva reagiu
violentamente na primeira vez em que os policiais tentaram forçá-la a engolir os
vermes. Mas depois que cada policial bateu na fugitiva duas vezes com o bastão,
a condenada caiu entre eles. Ellie, que já estava de pé àquela altura, não pôde
deixar de dar um grito de terror quando as criaturas entraram na boca da octo e
ela começou a vomitar. Sua morte foi instantânea.
Nenhum dos humanos deu uma palavra enquanto andavam de braços da-
dos com Archie e o dr. Azul pela praça, na direção do seu transporte estacionado.
Nicole estava tão pasma com o que presenciara que nem se lembrou da pintura
em que havia visto um rosto humano.

No meio da noite, Nicole, que não conseguira dormir, ouviu um barulho


na sala de estar. Levantou-se da cama bem quieta e vestiu seu robe. Ellie estava
sentada no sofá no escuro. Nicole sentou-se ao lado da filha e pegou a sua mão.
— Eu não consegui dormir, mamãe. Fiquei com tudo aquilo na cabeça e
nada faz o menor sentido... Estou me sentindo como se tivesse sido traída.
— Eu sei, Ellie. Estou sentindo a mesma coisa.
— Eu achei que conhecia as octoaranhas — disse Ellie. — Eu confiava
nelas... Pensei que elas eram superiores a nós sob muitos aspectos, mas depois
do que vi hoje à noite...
— Nenhum de nós se sente bem vendo alguém matar — disse Nicole. —
Até Richard ficou horrorizado no começo... Mas depois que fomos para a cama ele
me disse ter certeza de que aquela cena na rua foi cuidadosamente ensaiada para
impressionar os jovens da Matrícula... E disse também que nós não devíamos
tirar muitas conclusões precipitadas, nem nos deixar levar emocionalmente por
um incidente isolado...
— Eu nunca tinha visto um ser inteligente assassinado diante dos meus
olhos... E qual foi o crime dela? Deixou de se apresentar para ser exterminada?
— Não podemos julgá-las como julgaríamos seres humanos. As
octoaranhas são uma espécie inteiramente diferente, com uma organização social
completamente separada, que talvez seja ainda mais complexa do que a nossa.
Estamos apenas começando a entender as octoaranhas... Você já se esqueceu de
que elas curaram Eponine do RV-41 ? E nos deixaram usar sua tecnologia
quando estávamos aflitos com o nascimento de Marius?
— Não, não me esqueci — replicou Ellie, ficando em silêncio por algum
tempo. — Sabe, mãe, estou me sentindo tão frustrada quanto me sentia muitas
vezes no Novo Éden, quando ficava imaginando como os seres humanos, que são
capazes de tanta coisa boa, podiam tolerar um tirano como Nakamura... Agora
me parece que as octoaranhas, a seu próprio modo, podem ser tão más quanto
Nakamura... Há muita incongruência por todo lado...
Nicole consolou sua filha com um abraço. Não há respostas fáceis, minha
querida Ellie, pensou Nicole. Na sua imaginação, ela viu uma montagem ilumi-
nada das incríveis atividades da noite, inclusive uma ligeira aparição do que ela
acreditava ser um rosto humano no mural das octoaranhas. E o que era aquilo,
minha velha senhora?, perguntou Nicole a si mesma. Aquele rosto estava mesmo
ali ou sua cabeça cansada e imaginativa criou essa imagem para confundi-la?

8
Max terminou de fazer a barba e tirou o resto do creme de barbear do
rosto. Logo destampou a pia de pedra e a água escoou. Depois de secar o rosto
com uma pequena toalha, Max virou-se para Eponine, que estava sentada atrás
dele, amamentando Marius.
— Tudo bem, francesinha — falou, dando uma gargalhada. — Tenho de
admitir que estou muito nervoso. É meu primeiro encontro com um Chefe
Otimizador. — Deu um passo até Eponine e continuou: — Uma vez, quando eu
estava em Little Rock numa convenção de fazendeiros, puseram-me ao lado do
governador do Arkansas durante um banquete... E eu fiquei um pouco nervoso
também.
Eponine sorriu.
— Acho difícil imaginar você nervoso.
Max ficou em silêncio um instante, admirando sua mulher e seu bebê, que
enquanto mamava fazia um barulhinho suave.
— Você gosta bem de amamentar, não é? Eponine concordou.
— É um prazer diferente de tudo o que eu já senti antes. A sensação de...
não sei que palavra definiria isso exatamente, talvez uma comunhão... é
indescritível.
Max sacudiu a cabeça.
— A nossa existência é incrível, não é? Na noite passada, quando eu
estava mudando a fralda de Marius, pensei como provavelmente somos se-
melhantes a milhões de outros casais humanos, babando com nosso primeiro
filho... mas do lado de lá daquela porta existe uma cidade alienígena governada
por uma espécie... — Max não terminou seu pensamento.
— Ellie anda diferente desde a semana passada — comentou Eponine. —
Ela perdeu a vivacidade, e só fica falando em Robert...
— Ela ficou horrorizada com a execução — comentou Max. — Tenho para
mim que as mulheres são mais sensíveis à violência. Eu me lembro que logo
depois que Clyde e Winona se casaram, quando ela foi para a fazenda e viu pela
primeira vez matarem dois porcos, seu rosto ficou branco como papel... Ela não
disse nada, mas nunca mais quis ver aquele tipo de cena.
— Ellie não quer falar sobre aquela noite — falou Eponine, trocando
Marius de peito. — E isso não é típico dela.
— Richard fez umas perguntas ontem a Archie sobre o incidente, quando
foi pedir as peças para fazer tradutores para nós todos... Segundo Richard, a
maldita octoaranha foi muito evasiva e não deu nenhuma resposta direta. Archie
nem ao menos confirmou o que o dr. Azul disse a Nicole sobre sua política básica
de extermínio.
— Isso é muito assustador, não é? — falou Eponine, fazendo uma careta.
— Nicole disse que fez o dr. Azul repetir sua explicação várias vezes, e tentou
várias versões na nossa língua na presença dele para ter certeza de que havia
entendido tudo direitinho.
— É uma política muito simples — falou Max com um riso forçado —, até
mesmo para um fazendeiro. Toda octoaranha adulta cuja contribuição para a
colônia durante um período definido não equivaler em valor aos recursos
investidos para o seu sustento será colocada na lista de extermínio. Se a
contagem negativa não for corrigida durante um certo tempo previsto, essa
octoaranha será exterminada.
— Segundo o dr. Azul — disse Eponine depois de um curto silêncio — são
os otimizadores quem interpretam as políticas. São eles quem decidem o valor de
tudo...
— Eu sei — disse Max, fazendo carinho nas costas do bebê —, e acho que
é por isso que Nicole e Richard estavam tão angustiados hoje. Ninguém disse
nada explicitamente, mas estamos usando muitos recursos há muito tempo; e é
difícil ver que droga de contribuição nós demos...
— Você está pronto, Max? — perguntou Nicole enfiando a cabeça pela
porta. — Todos estão lá fora na fonte.
Max abaixou-se e beijou Eponine.
— Você e Patrick vão conseguir cuidar de Benjy e das crianças? — per-
guntou.
— É claro. Benjy não é problema, e Patrick tem passado muito tempo com
as crianças; já virou um especialista no assunto.
— Eu te amo, francesinha — disse Max, dando um adeus.

Havia cinco cadeiras para eles na área de operação do Chefe Otimizador.


Mesmo quando Nicole explicou a palavra "escritório" para Archie e o dr. Azul pela
segunda vez, seus colegas octoaranhas insistiram que a expressão "área de
operação" era uma tradução melhor para o lugar onde o Chefe Otimizador
trabalhava.
— O Chefe Otimizador às vezes se atrasa um pouco — disse Archie
desculpando-se. — Acontecimentos inesperados na colônia podem forçá-lo a
desviar-se do seu planejamento.
— Deve estar realmente acontecendo alguma coisa inusitada — disse
Richard para Max. — A pontualidade é uma das características da espécie das
octoaranhas.
Os cinco humanos esperaram ali em silêncio, cada qual envolto nos seus
próprios pensamentos. O coração de Nai batia descompassado. Ela estava ao
mesmo tempo apreensiva e excitada. Lembrava-se de ter tido um sentimento
semelhante quando estava no colégio esperando por uma audiência com a filha
do rei da Tailândia, a princesa Suri, por ter ganho o primeiro prêmio num
concurso acadêmico de âmbito nacional.
Um instante depois uma octoaranha mandou-os entrar na sala seguinte,
onde eles foram informados que o Chefe Otimizador e alguns conselheiros iriam
vê-los em um instante. A sala tinha janelas transparentes, e eles podiam ver toda
a atividade à sua volta. O lugar onde estavam sentados lembrava a Richard uma
área de controle de uma usina de energia nuclear, ou talvez de um vôo espacial
pilotado. Os computadores das octoaranhas e os monitores visuais espalhavam-
se por todo lado, e também os técnicos. Richard fez uma pergunta sobre alguma
coisa que acontecia numa área distante, mas, antes que Archie pudesse
responder, três octoaranhas entraram na sala.
Os cinco humanos levantaram-se instintivamente. Archie apresentou o
Chefe Otimizador, o assistente do Chefe Otimizador na Cidade de Esmeralda e o
Chefe Otimizador de Segurança. As três octoaranhas estenderam um tentáculo
para os humanos e apertaram-se as mãos. Archie fez sinal para os humanos se
sentarem, e o Chefe Otimizador começou a falar imediatamente.
— Estamos cientes de que vocês solicitaram, através do nosso represen-
tante, voltar para o Novo Éden a fim de se reunirem aos outros membros da sua
espécie em Rama. Essa solicitação não nos surpreendeu por completo, pois
nossos dados históricos mostram que espécies mais inteligentes com emoções
fortes, depois de viverem um período em uma comunidade alienígena,
desenvolvem um senso de alheamento e ficam ansiosos por voltar a um mundo
mais familiar... O que nós gostaríamos de fazer nesta manhã seria lhes fornecer
mais informações que pudessem influenciar sua solicitação de voltar para o Novo
Éden.
Archie pediu que os humanos seguissem o Chefe Otimizador. Eles pas-
saram por uma sala semelhante às outras duas onde tinham esperado e en-
traram numa área retangular com dezenas de telas de parede espalhadas em
volta, no nível dos olhos das octoaranhas.
— Temos observado de perto os desenvolvimentos do seu habitat — disse
o Chefe Otimizador quando estavam todos juntos — desde antes de vocês
fugirem. Hoje queremos que vocês saibam de alguns acontecimentos observados
por nós recentemente.
Um instante depois, todas as telas de parede foram ligadas, e os humanos
viram segmentos de filmes da vida diária dos remanescentes do Novo Éden. A
qualidade dos vídeos não era perfeita, e nenhum segmento durava mais que um
nillet, mas não havia dúvida do que lhes estava sendo apresentado nas telas.
Durante vários segundos, os humanos ficaram sem saber o que dizer.
Estavam pasmos, grudados às imagens na parede. Em uma das telas apareceu
Nakamura vestido como um shogun japonês, fazendo um discurso para uma
grande multidão na praça da Cidade Central. Segurava uma imagem grande,
pintada à mão, de uma octoaranha. Embora os vídeos não tivessem som, parecia,
pelos gestos e pela imagem, que Nakamura estava exortando todos a agirem
contra as octoaranhas.
— Macacos me mordam — falava Max, passando os olhos de uma tela
para outra.
— Olhe lá — disse Nicole. — É El Mercado, em San Miguel.
No mais pobre dos quatro vilarejos do Novo Éden, uma dezena de brancos
e amarelos, com fitas de karatê na cabeça batia em quatro jovens negros e
mulatos diante de dois policiais do Novo Éden e de uma multidão consternada de
umas vinte pessoas. Os biotas Tiasso e Lincoln pegaram os corpos quebrados e
ensangüentados de tanta pancadaria e colocaram-nos em um grande triciclo de
carga.
Em outra tela, um segmento mostrava uma multidão bem-vestida, a
maioria de brancos e orientais, chegando para uma festa ou um festival na Vegas
de Nakamura. Luzes brilhantes iluminavam o cassino, por cima do qual um
imenso cartaz proclamava o Dia de Apreciação do Cidadão e anunciava que todos
iriam receber de graça uma dúzia de bilhetes de loteria para celebrar a ocasião.
Dois grandes posters de Nakamura, sorrindo e usando camisa branca e gravata,
ladeavam o cartaz.
Um monitor na parede por trás do Chefe Otimizador mostrava o interior
da prisão da Cidade Central. Uma nova detenta, de cabelo multicor, estava sendo
levada para uma cela onde já havia duas outras presas. A recém-chegada parecia
estar se queixando da falta de espaço, mas os policiais empurraram-na para a
cela e riram. Quando o policial voltou para sua mesa, o vídeo mostrou duas
fotografias na parede por trás dele, uma de Richard e outra de Nicole, embaixo
das quais via-se a palavra PROCURA-SE escrita em letras de forma bem grandes.
As octoaranhas esperaram que os olhos dos humanos passassem de tela
para tela.
— Como é que pode? — disse Richard, sacudindo a cabeça. De repente as
telas ficaram brancas.
— Juntamos um total de quarenta e oito segmentos para mostrar a vocês
hoje — disse o Chefe Otimizador —, todos tirados de observações feitas nos
últimos oito dias no Novo Éden. O otimizador que vocês chamam de Archie vai
catalogar esses segmentos, que foram classificados de acordo com o local, o
tempo e a descrição do evento. Vocês podem passar o tempo que quiserem aqui,
olhando esses segmentos, conversando e fazendo perguntas às duas octoaranhas
que os trouxeram para cá. Eu, infelizmente, tenho outros assuntos para tratar...
Se no final dessa pesquisa vocês quiserem comunicar-se de novo comigo, estarei
à sua disposição.
O Chefe Otimizador foi embora, seguido de seus dois assistentes. Nicole
sentou-se em uma das cadeiras, muito pálida e enfraquecida, e Ellie foi ter com
ela.
— Você está bem, mamãe?
— Creio que sim — respondeu Nicole. — Logo depois que eles começaram
a passar os vídeos, senti uma forte dor no peito, provavelmente pela surpresa e a
excitação, mas agora melhorou.
— Quer ir para casa descansar? — perguntou Richard.
— Você está brincando? — disse Nicole com seu sorriso característico. —
Eu não perderia por nada esse espetáculo, mesmo que no meio houvesse a
possibilidade de cair dura aqui.

Eles assistiram aos filmes mudos durante quase três horas, e puderam
constatar claramente que não havia mais liberdade individual no Novo Éden e
que a maioria dos colonos lutava para manter até mesmo uma vida modesta.
Nakamura havia consolidado sua força na colônia e acabara com toda a oposição.
Mas a colônia que ele governava era quase toda habitada por cidadãos
entristecidos e infelizes.
Os humanos começaram observando o mesmo segmento juntos, mas,
depois de uns três ou quatro serem rodados, Richard disse que eles não estavam
sendo eficientes olhando um segmento de cada vez.
— Até parece um otimizador falando — disse Max, apesar de concordar
com Richard.
Num segmento, Katie apareceu rapidamente. Era uma cena de Vegas à
noite. As prostitutas de rua estavam em atividade do lado de fora de um dos
clubes. Katie aproximou-se de uma delas, teve uma ligeira conversa sobre um
assunto qualquer e depois desapareceu de vista. Richard e Nicole comentaram
entre si que Katie estava muito magra, quase esquálida, e pediram que Archie
passasse aquele segmento várias vezes.
Outra seqüência era inteiramente dedicada ao hospital da Cidade Central.
Não foram necessárias palavras para os humanos compreenderem que havia
escassez de medicamentos críticos e de funcionários, e que os equipamentos
estavam em estado deplorável. Uma cena especialmente comovente mostrava
uma mocinha do Mediterrâneo, possivelmente grega, morrendo depois de um
parto doloroso. A sala de parto estava iluminada com velas, e o equipamento de
monitoração que poderia ter identificado suas dificuldades e salvado sua vida
estava inexplicavelmente desligado ao lado da cama.
Robert Turner era visto por todo lado nas cenas do hospital. A primeira
vez em que Ellie o viu andando pelos corredores, não conseguiu conter as
lágrimas. Soluçou durante todo o segmento e depois pediu que o passassem de
novo. Só quando assistiu ao filme pela terceira vez é que fez seu primeiro
comentário.
— Ele está desfigurado, e parece estar trabalhando demais. Robert nunca
soube tomar conta de si próprio.
Quando todos estavam emocionalmente exaustos e ninguém pediu que
fosse passado mais um segmento, Archie perguntou se eles queriam conversar
com o Chefe Otimizador de novo.
— Agora não — respondeu Nicole, em nome dos demais. — Ainda não
tivemos tempo de digerir o que acabamos de ver.
Nai perguntou se poderiam levar alguns filmes para casa na Cidade de
Esmeralda.
— Eu gostaria de vê-los de novo com mais calma — disse. — E seria ótimo
se pudéssemos mostrá-los a Eponine e Patrick.
Archie disse que sentia muito, mas os segmentos só podiam ser vistos em
um dos centros de comunicação das octoaranhas.
Na viagem de volta para a zona dos humanos, Richard foi conversando
com Archie e mostrando-lhe como o seu tradutor estava funcionando bem. Os
testes finais tinham terminado no dia anterior. O tradutor podia traduzir tanto o
dialeto natural das octoaranhas como a língua criada especificamente para o
espectro visual dos humanos. Archie declarou-se impressionado.
— Aliás — disse Richard, em tom mais alto, para que seus compatriotas
pudessem ouvi-lo —, será que haveria possibilidade de você nos contar como
conseguiram todos esses segmentos de vídeo do Novo Éden?
Archie não hesitou em responder.
— Quadróides de imagem voadores. Uma espécie mais avançada, e muito
menor.
Nicole traduziu para Max e Nai.
— Que merda — disse Max entre dentes. Ele se levantou e foi para o lado
oposto do carro de transporte, sacudindo a cabeça vigorosamente. — Nunca vi
Max tão solene e tão tenso — disse Richard para Nicole.
— Nem eu. — Os dois estavam fazendo uma caminhada de uma hora
depois do jantar com a família e os amigos. Um vaga-lume solitário mantinha-se
voando acima de Richard e Nicole, enquanto eles iam e vinham do final do beco
sem saída até a praça do outro lado da rua.
— Você acha que Max não vai mais querer ir embora? — perguntou
Richard, quando os dois contornavam a fonte mais uma vez.
— Não sei. Acho que ele está em estado de choque... Max detesta pensar
que as octoaranhas podem observar tudo o que fazemos. É por isso que ele quer
tanto voltar com a família para o Novo Éden, mesmo que nós todos fiquemos
aqui.
— Você teve oportunidade de conversar com Eponine sobre isso?
— Anteontem ela trouxe o Marius aqui depois da sesta da tarde. Enquanto
eu estava pondo um remédio na assadura do bebê, ela me perguntou se eu disse
a Archie que eles queriam ir embora... Parecia um pouco assustada.
Os dois foram até a praça. Sem parar, Richard pegou um paninho e lim-
pou o suor da testa.
— Tudo mudou — disse ele, mais para si mesmo do que para Nicole.
— Tenho certeza de que tudo isso faz parte do plano das octoaranhas —
replicou Nicole. — Elas não nos mostraram esses vídeos só para comprovar que
nada vai bem no Novo Éden. Elas sabiam como nós iríamos reagir depois que
avaliássemos o real significado do que havíamos visto.
O casal foi caminhando em silêncio na direção da sua casa temporária. Na
próxima volta em torno da fonte, Richard disse:
— Se elas observam tudo o que fazemos, estarão ouvindo nossa conversa?
— É claro — replicou Nicole. — Esta foi a primeira mensagem que as
octoaranhas nos transmitiram ao nos deixar ver esses vídeos... Nós não podemos
ter segredos. Fugir está fora de questão. Estamos completamente no poder
delas... Talvez eu seja a única, mas ainda não acredito que elas pretendam nos
prejudicar... E há também a possibilidade de permitirem que a gente volte para o
Novo Éden... quem sabe...
— Isso nunca vai acontecer — disse Richard. — Senão elas teriam gasto
muitos recursos sem nenhum retorno mensurável, uma situação decididamente
não aceitável... Não, estou certo de que as octoaranhas ainda estão tentando
programar nossa própria inserção no seu sistema.
Richard e Nicole andavam a toda velocidade na parte final da caminhada.
Passaram pela fonte e tomaram um pouco de água.
— Como está se sentindo? — perguntou Richard.
— Muito bem — disse Nicole. — Sem dor, sem falta de ar. Quando o dr.
Azul me examinou ontem, não encontrou nenhuma patologia nova. Meu coração
está velho e fraco... e é natural que eu venha a ter problemas esporádicos.
— Eu gostaria de saber que nicho iremos ocupar no mundo das
octoaranhas — disse Richard um instante depois, quando os dois lavavam o
rosto.
Nicole olhou para o marido.
— Não foi você — disse ela — que riu de mim uns meses atrás por fazer
suposições sobre os motivos delas?... Como pode estar tão certo de que sabe o
que as octos pretendem fazer?
— Não estou tão certo — disse Richard, com um sorriso sarcástico. — Mas
é natural achar que uma espécie superior seja pelo menos lógica.

Richard acordou Nicole no meio da noite.


— Desculpe incomodá-la, querida, mas tenho um problema.
— O que foi? — perguntou Nicole, sentando-se na cama.
— É complicado. Foi por isso que não falei nada antes... Tudo começou
depois do Dia da Fartura... Eu achei que iria passar, mas na semana passada a
dor tornou-se insuportável...
— Ora, Richard — falou Nicole um pouco irritada por ter sido impor-
tunada no meio do sono —, diga logo de que dor você está falando...
— Toda vez que eu urino tenho uma sensação de queimadura... Nicole
tentou controlar um bocejo enquanto pensava.
— E você está urinando com mais freqüência?
— Estou... como é que você sabia?
— Aquiles deve ter sido segurado pela próstata quando foi enfiado no rio
Styx — disse ela. — A próstata é certamente a estrutura mais frágil da anatomia
masculina... Deite de barriga para baixo para eu poder examinar você.
— Agora? — perguntou Richard.
— Se você me acordou no meio do meu sono porque estava sentindo dor
— disse Nicole rindo —, o mínimo que pode fazer é cerrar os dentes enquanto eu
tento comprovar meu diagnóstico.

O dr. Azul e Nicole estavam sentados na casa da octoaranha. Em uma das


paredes haviam sido projetadas quatro composições quadróides.
— A imagem bem à esquerda — disse o dr. Azul — mostra o tumor visto
naquela manhã, há dez dias, quando você me pediu para confirmar o diagnóstico.
A segunda composição é uma figura muito ampliada de um par de células tiradas
do tumor. As anomalias da célula, que vocês chamam de câncer, estão marcadas
com a tinta azul.
Nicole sorriu com tristeza.
— Estou tendo dificuldade em organizar meu pensamento — disse ela. —
O senhor nunca usa as cores para "doença" quando descreve o problema de
Richard, usa sempre a palavra que na sua língua eu defino como "anomalia".
— Para nós — respondeu o dr. Azul —, a doença é uma disfunção causada
por um agente externo, como uma bactéria ou um vírus hostil. Mas uma
irregularidade na química celular que leva à produção de células impróprias é um
problema completamente diferente. Na nossa medicina, os tratamentos são
completamente diferentes para os dois casos. Esse câncer do seu marido está
mais ligado ao envelhecimento, de um modo geral, do que a uma doença, como
pneumonia ou gastroenterite.
O dr. Azul estendeu um tentáculo para a terceira figura.
— Essa imagem mostra o tumor há três dias, depois que a química espe-
cial levada por nossos agentes microbiológicos foi espalhada no local da
anomalia. O tumor começou a diminuir porque a produção das células malignas
parou. Na última imagem, tirada hoje de manhã, a próstata de Richard parece
normal de novo. A essa altura, todas as células cancerígenas morreram, e outras
não foram produzidas.
— Então ele vai ficar bom? — perguntou Nicole.
— Provavelmente — respondeu o dr. Azul. — Não podemos garantir
porque ainda não temos tantos dados como gostaríamos sobre o ciclo de vida das
células dos humanos. Há algumas características especiais das células de vocês
(como sempre há nas espécies que passaram por uma evolução distinta de
quaisquer dos nossos seres anteriormente examinados) que podem permitir um
reaparecimento da anomalia. Porém, baseado na nossa experiência com outras
criaturas vivas, eu diria que o desenvolvimento de outro tumor na próstata é
pouco provável.
Nicole agradeceu ao colega octoaranha.
— Isso foi incrível — disse ela. — Que maravilha seria se o seu conheci-
mento médico pudesse ser transportado de alguma forma para a Terra.
As imagens sumiram da parede.
— Isso criaria também muitos problemas sociais — disse o dr. Azul — se é
que compreendi bem nossas discussões sobre o seu planeta natal. Se os
indivíduos da sua espécie não morressem de doenças ou anomalias das células, a
expectativa de vida aumentaria acentuadamente... Nossa espécie passou por um
problema semelhante depois da nossa Idade de Ouro da Biologia, quando a
duração de vida das octoaranhas dobrou em apenas duas gerações... Só depois
de ser fortemente implantada a Otimização como uma estrutura básica é que
uma forma de equilíbrio social foi alcançada. Temos muitas comprovações de
que, sem um extermínio eficaz e uma política de reposição, uma colônia de seres
quase imortais chega ao caos em um período relativamente curto.
O interesse de Nicole foi despertado.
— Entendo o que você está dizendo, pelo menos num plano intelectual —
disse ela. — Como os recursos são finitos, se todos vivessem para sempre, ou
quase isso, a população em breve acabaria com todos os alimentos e o espaço de
vida. Mas devo admitir, especialmente sendo uma pessoa de idade, que a idéia de
uma política de exterminação me assusta.
— No início da nossa história — falou o dr. Azul —, nossa sociedade era
estruturada de um modo semelhante à sua, com quase todo o poder de decisão
nas mãos dos membros mais velhos da espécie. Foi mais fácil limitar a reposição,
depois que a expectativa de vida aumentou dramaticamente, do que lidar com o
difícil assunto dos extermínios planejados. Porém, depois de um período
relativamente breve, a sociedade idosa começou a estagnar-se. Como Archie ou
qualquer bom otimizador diria, o coeficiente de ossificação das nossas colônias
tornou-se tão grande que finalmente todas as novas idéias foram rejeitadas.
Essas colônias geriátricas sucumbiram, basicamente porque não conseguiam
lidar com as condições de mudança do universo em torno delas.
— Então é aí que entra a Otimização?
— É — respondeu o dr. Azul. — Se todo indivíduo aceitar o preceito de que
o bem-estar da colônia como um todo deve ter o maior peso na principal função
objetiva, torna-se claro que os extermínios planejados são um elemento crítico da
solução ideal. Archie poderia lhe mostrar quantitativamente como é desastroso,
do ponto de vista da colônia como um todo, gastar quantidades imensas de
recursos com aqueles cidadãos cuja contribuição integrada é relativamente baixa.
A colônia beneficia-se mais investindo nos membros que têm uma vida longa e
saudável pela frente, portanto, com grande probabilidade de pagar o
investimento.
Nicole repetiu para o dr. Azul algumas das frases mais importantes que
ele dissera, para ter certeza de que entendera bem a idéia, e depois ficou calada
por um nillet.
— Eu suponho — falou finalmente — que, embora o envelhecimento de
vocês seja retardado pelo adiamento da maturidade sexual e por sua fantástica
capacidade médica, a uma certa altura preservar a vida de uma octoaranha velha
torna-se uma coisa extremamente cara, em certo sentido.
— Exatamente — comentou o dr. Azul. — Nós podemos estender a vida de
um indivíduo quase para sempre. Mas há três fatores importantes que tornam a
extensão extra de vida contra-indicada para a colônia. Primeiro, como você
mencionou, o esforço para estender a vida aumenta muito de custo quando cada
subsistema biológico, ou órgão, começa a operar de forma menos eficiente.
Segundo, à medida que o tempo do indivíduo se torna cada vez mais consumido
pelo simples processo de se manter vivo, a quantidade de energia que a
octoaranha teria para contribuir para o bem-estar da colônia diminui
consideravelmente. Terceiro — e os otimizadores sociais comprovaram esse ponto
controvertido muitos anos atrás —, embora muitos anos depois que a agilidade
mental e a capacidade de aprendizado começam a declinar, a sabedoria
acumulada seja mais do que compense, em termos de valor para a colônia, a
diminuição do poder do cérebro, chega o momento na vida da octoaranha em que
o mero peso da sua experiência passada torna extremamente difícil qualquer
aprendizado a mais. Mesmo numa octoaranha saudável, essa fase de vida,
chamada por nossos otimizadores de Início da Flexibilidade Limitada, indica uma
capacidade reduzida de contribuir para a colônia.
— Então os otimizadores determinam quando chega o tempo do
extermínio?
— Determinam — disse o dr. Azul —, mas eu não sei exatamente como.
Primeiro há um período de experiência no qual a octoaranha entra na lista de
extermínio e ganha um tempo para melhorar seu equilíbrio. Esse equilíbrio, se
entendi a explicação de Archie, é calculado comparando-se as contribuições
daquela octoaranha específica com os recursos necessários para o seu sustento.
Se o equilíbrio não melhorar, seu extermínio é programado.
— E como reagem as selecionadas para o extermínio? — perguntou Nicole,
tremendo sem querer, ao lembrar-se da véspera da data marcada para a sua
execução.
— De formas diferentes — respondeu o dr. Azul. — Algumas, especial-
mente as que não são saudáveis, aceitam o fato de não serem capazes de atingir
um equilíbrio satisfatório e planejam sua morte de uma forma organizada. Outras
pedem conselhos ao otimizador e solicitam novas atribuições que possam
permitir que elas atinjam suas quotas de contribuição... Isso foi o que Hércules
fez logo antes de vocês chegarem...
Nicole ficou um instante sem fala, e sentiu um arrepio na espinha.
— Você vai me contar o que aconteceu com Hércules? — perguntou ela,
juntando coragem afinal.
— Hércules foi repreendido por não ter protegido bem Nikki no Dia da
Fartura — disse o dr. Azul. — Ele recebeu uma nova atribuição, mas foi avisado
pelo otimizador de extermínio que não havia praticamente nenhuma forma de se
recuperar da avaliação altamente negativa do seu último trabalho... E Hércules
então solicitou ser exterminado imediatamente.
Nicole ficou engasgada. Lembrou-se do amigo octoaranha no beco sem
saída, jogando bola para divertir as crianças. E agora Hércules está morto,
pensou. Porque não se saiu bem no trabalho. Isso é cruel e impiedoso.
Nicole levantou-se e agradeceu de novo ao dr. Azul. Tentou dizer para si
própria que estava radiante por Richard estar curado do câncer de próstata e que
não devia se preocupar com a morte de uma octoaranha relativamente
insignificante. Mas a imagem de Hércules continuava a persegui-la. Elas são uma
espécie completamente diferente, disse para si mesma. Não as julgue pelos
padrões humanos.
Quando Nicole ia saindo da casa do dr. Azul, teve subitamente um desejo
incontido de saber mais sobre Katie. Lembrou-se de que, numa noite recente,
depois de ter tido um sonho muito vivido com Katie, acordara pensando se as
octoaranhas não permitiriam que ela visse um pouco mais da vida da filha no
Novo Éden.
— Dr. Azul — disse Nicole já na porta —, eu gostaria de lhe pedir um
favor. Não sei se devo pedir isso ao senhor ou a Archie... Não sei nem se o que
vou pedir é possível...
A octoaranha perguntou-lhe que favor era aquele.
— Como o senhor sabe — disse Nicole —, tenho uma filha que ainda está
vivendo no Novo Éden. Eu a vi rapidamente em um dos vídeos que o Chefe
Otimizador nos mostrou no mês passado... Gostaria muito de saber o que está
acontecendo na vida dela.

9
Ao conversar com Nicole no dia seguinte, Archie lhe disse que seu pedido
de ver os vídeos de Katie não podiam ser atendidos. Mas Nicole insistiu,
aproveitando todas as ocasiões em que ficava sozinha com Archie ou o dr. Azul
para reiterar seu pedido. Como nenhuma das duas octoaranhas dizia que nos
seus arquivos não havia imagens da vida de Katie no Novo Éden, Nicole ficou
certa de que os dados do vídeo estavam disponíveis. E ver esses dados tornou-se
uma obsessão para ela.
— O dr. Azul e eu conversamos hoje sobre Jamie — disse Nicole certa
noite, quando Richard e ela iam dormir. — Ele decidiu entrar no treinamento de
otimizador.
— Que bom — disse Richard com sono.
— Eu disse ao dr. Azul que ele tinha sorte, como guardião, de poder
participar dos acontecimentos da vida do seu filho... E expressei de novo nossa
preocupação com a vida de Katie... Richard — disse Nicole num tom de voz
ligeiramente mais alto —, o dr. Azul não disse hoje que não permitiriam que eu
visse os vídeos de Katie. Você acha que isso indica uma mudança de atitude?
Será que estou conseguindo solapar a resistência deles?
De início, Richard não respondeu, mas depois de pensar um pouco
sentou-se na cama.
— Será que nós podemos dormir só uma noite sem discutirmos nova-
mente sobre Katie e os malditos vídeos das octoaranhas? Meu Deus, Nicole, você
não fala em outra coisa há duas semanas. Está perdendo seu controle...
— Não estou — interrompeu Nicole de forma defensiva. — Estou simples-
mente preocupada com a nossa filha. Tenho certeza de que as octoaranhas têm
pilhas de filmes que poderiam mostrar para nós. Você não quer saber...
— É claro que quero — disse Richard, dando um suspiro profundo. — Mas
nós já conversamos sobre isso diversas vezes. De que adianta falar mais uma vez
sobre isso no meio da noite?
— Eu disse para você — falou Nicole — que senti uma mudança na
atitude deles. O dr. Azul não...
— Eu ouvi o que você disse — interrompeu Richard zangado —, e não
acho que isso signifique alguma coisa. Provavelmente o dr. Azul está tão cansado
quanto eu de discutir esse assunto — disse Richard sacudindo a cabeça. — Olhe,
Nicole, nosso grupo está tendo dificuldades... Nós precisamos desesperadamente
da sua sabedoria e sanidade mental. Max resmunga todo dia sobre a invasão das
octoaranhas na sua intimidade, Ellie anda lúgubre, a não ser nos raros
momentos em que Nikki a faz sorrir, e agora, em meio a tudo isso, Patrick
anunciou que ele e Nai querem se casar... Mas você anda tão obcecada com Katie
e os vídeos que não é capaz de aconselhar ninguém.
Nicole olhou feio para Richard e deitou-se de costas, sem dar resposta ao
seu último comentário.
— Por favor, não fique emburrada, Nicole — disse Richard um instante
depois. — Só estou pedindo que você seja tão objetiva sobre seu próprio
comportamento quanto é em geral sobre o comportamento dos outros.
— Não estou emburrada — replicou Nicole —, e não estou ignorando os
outros. De qualquer forma, por que sou sempre eu a responsável pela felicidade
da nossa vida familiar? Por que ninguém pode de vez em quando fazer o papel de
mãe do grupo?
— Porque ninguém é como você — respondeu Richard. — Você sempre foi
a melhor amiga de todos.
— Pois agora cansei —- disse Nicole. — E tenho um problema meu, uma
obsessão, segundo você... A propósito, Richard, estou desapontada com sua
aparente falta de interesse. E sempre achei que Katie era sua favorita...
— Isso não é justo, Nicole — replicou Richard imediatamente. — Nada me
deixaria mais feliz do que saber que Katie está bem... Mas tenho outras coisas na
cabeça...
Nenhum dos dois disse nada durante algum tempo.
— Diga uma coisa, querida — falou Richard num tom mais suave. — Por
que Katie se tornou tão importante de repente? O que mudou? Não me lembro de
você tão preocupada com ela antes.
— Eu me fiz essa mesma pergunta — respondeu Nicole. — E não tenho
uma resposta pronta para isso. Só sei que Katie tem sido uma presença
constante nos meus sonhos ultimamente, mesmo antes de vê-la no vídeo, e que
tenho sentido uma vontade incontrolável de falar com ela... Além disso, a
primeira coisa que passou pela minha cabeça depois que o dr. Azul falou da
morte de Hércules foi que eu tinha de ver Katie de novo antes de morrer... Não sei
realmente por quê, nem sei o que quero dizer a ela, mas nosso relacionamento
ainda me parece muito incompleto...
Mais uma vez fez-se silêncio no quarto.
— Desculpe eu ter sido meio insensível ainda há pouco — falou Richard.
Tudo bem, Richard, pensou Nicole. Esta não é a primeira vez, e nem será
a última. Mesmo nos melhores casamentos há falhas de comunicação. Nicole
acariciou a mão do marido.
— Aceito suas desculpas — disse, dando-lhe um beijo no rosto.

Nicole ficou surpresa ao ver Archie de manhã tão cedo. Patrick, Nai, Benjy
e as crianças tinham acabado de passar para a outra casa que servia de escola.
Os outros adultos ainda não tinham acabado de tomar o café da manhã quando a
octoaranha apareceu na sala de jantar dos Wakefield. Max foi rude.
— Desculpe, Archie — disse ele —, mas nós não recebemos visita, pelo
menos as que são visíveis, antes do café da manhã, ou que merda for essa que a
gente bebe todo dia de manhã.
Nicole levantou-se da mesa quando a octoaranha fez menção de sair.
— Não preste atenção em Max — disse ela —, ele está sempre de mau-
humor.
Max pulou da cadeira segurando um dos pacotes vazios onde ainda
restava um pouco de cereal e balançou-o no ar, primeiro em uma direção e depois
em outra, sem fechar bem o pacote antes de passá-lo para Archie.
— Sirva-se de uns quadróides — disse Max em voz alta. — Ou será que
eles se moveram depressa demais para mim?
Archie não respondeu. Os outros humanos ficaram sem jeito. Max voltou
para seu lugar ao lado de Eponine e Marius.
— Que merda, Archie — disse ele em frente à octoaranha —, acho que em
breve você vai me marcar com dois daqueles pontinhos verdes. Ou será que vai
me exterminar sumariamente?
— Max! — gritou Richard. — Você está saindo da linha... Pelo menos
pense na sua mulher e no seu filho.
— É só neles que venho pensando, amigo, há quase um mês. E sabe o que
mais, Richard? Este fazendeiro aqui do Arkansas não consegue pensar em nada
que ele possa fazer para mudar... — A voz de Max falhou, e de repente ele deu um
soco em uma das cadeiras. — Que merda! — gritou ele. — Eu me sinto tão inútil.
Marius começou a chorar. Eponine saiu da mesa com o bebê e Ellie foi
ajudá-la. Nicole levou Archie até o vestíbulo, deixando Richard e Max sozinhos.
Richard debruçou-se sobre a mesa e disse:
— Acho que sei como você está se sentindo, Max — falou com suavidade
—, e estou do seu lado... Mas não vamos melhorar a situação insultando as
octoaranhas.
— Que diferença faz? — disse Max, olhando para Richard com uma cara
zangada. — Somos prisioneiros aqui, isso é óbvio. Deixei meu filho nascer em um
mundo onde ele será sempre um prisioneiro. Que tipo de pai sou eu?
Enquanto Richard tentava acalmar Max, Nicole recebia de Archie o recado
que esperava havia dias.
— Conseguimos permissão — disse a octoaranha — para você usar a
biblioteca de dados hoje. Nós compilamos os vídeos em que aparece sua filha
Katie em nossos arquivos históricos.
Nicole fez Archie repetir as cores para ter certeza de que entendera bem
suas palavras.

Archie e Nicole não conversaram quando o transporte atravessou, sem pa-


rar, a Cidade de Esmeralda até o alto prédio onde ficava a biblioteca das
octoaranhas. E Nicole não prestou muita atenção às cenas da rua. Estava
completamente imersa em seus próprios pensamentos e emoções. Lembrava-se
de vários momentos importantes de sua vida, quando Katie era ainda criança.
Lembrava-se especialmente do terror e da alegria de sua descida na toca das
octoaranhas, anos atrás, para procurar sua filhinha de quatro anos que estava
perdida. Você sempre esteve perdida, Katie, pensou Nicole. De uma forma ou de
outra. Nunca consegui fazer você sentir-se segura.
Nicole sentia o coração batendo com fúria quando Archie finalmente a
levou a uma sala onde havia apenas uma cadeira, uma mesa grande e uma tela
de parede. Archie mandou-a sentar-se na cadeira.
— Antes de você aprender a usar este equipamento, quero lhe dizer duas
coisas. Primeiro, que como otimizador do grupo quero responder oficialmente à
solicitação de alguns de vocês para voltarem para o Novo Éden.
Archie fez uma pausa. Nicole concentrou-se. Era difícil tirar Katie tempo-
rariamente da cabeça, mas ela sabia que tinha de se concentrar no que Archie ia
lhe dizer. Os outros do grupo esperariam um relatório textual dela.
— Acho — continuou Archie um instante depois — que não será possível
nenhum de vocês partir no futuro próximo. Só estou autorizado a dizer que o
assunto foi examinado pelo próprio Chefe Otimizador em uma reunião de equipe,
e que a solicitação foi negada por motivos de segurança.
Nicole ficou assombrada. Não esperava por isso, certamente não naquela
hora. Ela havia dito a todos que achava que eles permitiriam...
— Então Max tinha razão — disse, lutando contra as lágrimas que ame-
açavam escorrer-lhe pelo rosto. — Nós somos prisioneiros.
— Você pode interpretar a decisão como quiser — disse Archie. — Mas vou
lhe dizer que, até onde posso compreender sua língua, acho que o termo
"prisioneiro" que Max usa com freqüência não é correto.
— Então me dê uma palavra melhor, e um pouco mais de explicação —
disse Nicole furiosa, levantando-se da cadeira. — Você sabe o que os outros vão
dizer...
— Não posso — replicou Archie. — Já transmiti toda a nossa mensagem.
Nicole ficou andando para cima e para baixo na sala, com o humor pas-
sando da raiva à depressão. Ela sabia como Max iria reagir. Todos ficariam
furiosos. Mas por que não explicam nada mais?, pensou ela. Isso não é
característico das octoaranhas. Nicole sentiu uma ligeira dor no peito e afundou
na cadeira.
— E qual é a segunda coisa que você tem a me dizer? — perguntou ela a
certa altura.
— Eu trabalhei pessoalmente com os engenheiros de dados — disse Archie
— para preparar os arquivos de vídeo que você vai ver agora... Pelo que conheço
dos seres humanos, e de você especificamente, acho que vai ficar muito
angustiada ao ver esse material... Por isso peço que considere a desistência
desses arquivos.
Archie escolheu palavra por palavra com cuidado, sem dúvida porque
sabia como aqueles vídeos eram importantes para Nicole. A mensagem dele era
clara. O que eu vou ver vai me causar sofrimento, pensou Nicole. Mas não tenho
escolha. Entre nada e sofrimento, escolho o sofrimento.
Depois de Nicole agradecer a Archie por sua preocupação e informar à
octoaranha que queria ver os vídeos de qualquer jeito, Archie empurrou a cadeira
na qual Nicole estava sentada para perto da mesa e mostrou-lhe como acionar os
dados. O código de tempo fora traduzido pelas octoaranhas em números
humanos, em termos de dias antes do presente; as imagens podiam ser vistas em
quatro velocidades, cobrindo quatro ordens octais de magnitude, de um oitavo de
tempo real a sessenta e quatro vezes a velocidade normal.
— Os dados sobre Katie estão quase completos — disse Archie — com
relação aos últimos seis meses do seu tempo. Nosso processo normal de
gerenciamento de dados filtra e resume os dados mais antigos, com base na sua
importância. Os arquivos de Katie mostram a maioria dos acontecimentos
principais dos últimos dois anos, mas antes disso há pouca coisa.
Nicole pegou os controles, e quando entrou com os dados mais recentes e
viu o rosto de Katie aparecer na tela, sentiu Archie bater no seu ombro.
— Pode usar o aparelho o dia inteiro — disse a octoaranha quando ela se
virou —, mas é só isso... Como há muitos dados disponíveis, sugiro que você use
as altas velocidades para localizar os acontecimentos do seu interesse.
Nicole respirou fundo e virou-se para a tela.

Ela achou que não poderia chorar mais. Seus olhos quase se fechavam de
tão inchados pelas lágrimas incessantes. Nicole já vira Katie injetando a droga
kokomo pelo menos dez vezes, mas a cada vez que via sua filha enrolar o cordão
de borracha no braço e introduzir a agulha na veia intumescida, vinham-lhe mais
lágrimas aos olhos.
O que vira em quase dez horas era tão pior do que as piores coisas que
tinha imaginado. Nicole estava arrasada. Apesar de não haver som em nenhuma
das imagens, foi fácil para Nicole perceber o tipo de vida que Katie levava.
Primeiro, sua filha era uma viciada irrecuperável. Pelo menos quatro vezes ao dia,
e mais quando a vida não lhe corria bem, Katie retirava-se para seu apartamento
charmoso, sozinha ou com amigos, e usava a elegante parafernália de droga que
mantinha trancada numa caixa grande, no seu quarto de vestir.
Katie ficava exuberante logo depois da droga. Tornava-se afável, engra-
çada e cheia de energia e aparente autoconfiança. Mas quando o efeito das drogas
acabava no meio de uma festa, Katie transformava-se numa mulher vulgar e
agressiva, acabando muitas noites sozinha no seu apartamento com suas
agulhas.
Seu emprego oficial era o gerenciamento das prostitutas de Vegas. Seu
cargo também incluía o recrutamento de novos talentos. De início, o coração
partido de Nicole relutou em reconhecer o que seus olhos viam. Mas depois de
uma seqüência sórdida, que começava com Katie aliciando uma adolescente linda
e pobre de San Miguel e terminava com a menina, agora ricamente vestida e
cheia de jóias, transformada na concubina temporária de um dos chefes
zaibatsus de Nakamura alguns dias depois, Nicole foi forçada a admitir para si
própria que sua filha era absolutamente despida de moral e de escrúpulos.
Depois que Nicole estava vendo os vídeos havia várias horas, Archie en-
trou na sala e ofereceu-lhe alguma coisa para comer, mas ela recusou. Sabia que,
no seu estado de agitação, seria impossível manter qualquer alimento no
estômago.
Por que Nicole ficava olhando tanto tempo para aquilo? Por que não
desligava os controles e saía da sala? Mais tarde, ela se fez essas mesmas
perguntas e concluiu que, depois das primeiras horas, começara, pelo menos
subconscientemente, a buscar a possibilidade de algum sinal de esperança para
a vida de Katie. Não fazia parte da sua natureza aceitar sem argumentação que
sua filha fosse fundamentalmente corrupta. Nicole ansiava por ver alguma coisa
nos vídeos que lhe sugerisse que o futuro de Katie poderia ser diferente.
Com o passar das horas, ela encontrou dois elementos na vida infeliz de
Katie que lhe pareceram sinais de que talvez um dia a filha abandonasse aquele
comportamento autodestrutivo. Durante seus terríveis acessos de depressão, que
ocorriam com mais freqüência quando seu suprimento de drogas estava baixo,
Katie em geral ficava frenética, quebrando tudo o que encontrava no
apartamento, com exceção das fotos de Richard e de Patrick. No final desses
acessos de cólera, quando sua energia diminuía, Katie sempre tirava aquelas
fotos da penteadeira e colocava-as com cuidado em cima da cama. Deitava-se ao
lado delas e ficava soluçando durante uns trinta minutos. Para Nicole, esse
comportamento repetido indicava que Katie ainda mantinha algum amor pela
família.
O outro elemento de esperança, na cabeça de Nicole, era Franz Bauer, o
capitão de polícia que era o companheiro regular de Katie. Nicole não tentava
compreender aquela relação bizarra; uma noite o casal tinha uma briga terrível e
obscena, e na outra Franz lia para Katie poemas de Rainer Maria Rilke como um
prelúdio a várias horas de atividade sexual energética e incessante. Mas ela podia
ver pelos vídeos que Franz amava Katie na sua forma estranha, e que não
aprovava o vício dela. Durante uma das brigas, Franz pegou o suprimento de
droga de Katie e ameaçou jogar tudo no vaso sanitário e dar a descarga. Katie
ficou tomada de fúria e atacou Franz com uma escova de cabelo.
Hora após hora, Nicole ficou assistindo àquilo, tentando compreender a
vida trágica de sua filha. A medida que o dia foi passando e Nicole continuava a
olhar os vídeos anteriores, alguns nos primeiros dias de droga de Katie, foi
descobrindo que Katie tinha tido um envolvimento sexual com o próprio
Nakamura, e que o tirano do Novo Éden fornecia drogas para Katie regularmente
durante todo o tempo em que estiveram ligados.
Àquela altura, Nicole estava entorpecida. Sentia-se tão esgotada
emocionalmente que não tinha forças para se mover. Quando finalmente desligou
os controles, pôs a cabeça na mesa, chorou durante mais algum tempo e
adormeceu. Archie acordou-a quatro horas depois e lhe disse que era hora de
voltar para casa.

Estava escuro. O transporte estacionara na praça havia dez minutos, mas


Nicole não desembarcava. Archie estava de pé ao lado dela.
— Não vou conseguir dizer a Richard o que vi hoje — disse, olhando para
a octoaranha. — Ele vai ficar completamente destruído.
— Eu compreendo — falou Archie com simpatia. — Agora você sabe por
que sugeri que você não assistisse àqueles vídeos.
— Você tinha razão — respondeu Nicole, soltando aos poucos a barra
vertical e esticando resignadamente uma perna para fora do carro —, mas é tarde
demais agora. Não posso apagar aquelas cenas horríveis da minha cabeça.
— Você me disse antes — falou Archie, assim que saíram do carro de
transporte — que ficou óbvio através dos vídeos que Patrick sabia alguma coisa
sobre a vida que Katie estava levando antes de fugir do Novo Éden. Mas ele
preferiu não contar a você e a Richard os detalhes piores. Seria contra os seus
princípios fazer uma coisa semelhante?
— Obrigada, Archie — disse Nicole, batendo no ombro da octoaranha,
quase sorrindo —, por ler meus pensamentos... Você está começando a nos
conhecer bem demais.
— Nós também tivemos um tempo difícil com a verdade na nossa socie-
dade — comentou Archie. — Uma das linhas fundamentais para os novos
otimizadores é dizer a verdade em todas as ocasiões. É aceitável guardar infor-
mações, diz a polícia, mas não passar informações falsas. Os otimizadores mais
jovens são muito exigentes com a verdade, sem levar em conta as conse-
qüências... Às vezes, a verdade e a compaixão não são compatíveis.
— Concordo com você, meu sábio amigo alienígena — disse Nicole com
um suspiro. — E agora, depois de um dos piores dia da minha vida, vou ter de
enfrentar não uma, mas duas missões muito difíceis. Preciso dizer a Max que ele
não poderá sair da Cidade de Esmeralda, e preciso informar a meu marido
Richard que sua filha favorita é uma viciada e uma gerenciadora de prostitutas.
Espero que essa humana velha e exausta encontre a força necessária para
cumprir essas duas obrigações da melhor forma possível.

10
Richard estava dormindo quando Nicole chegou em casa, e ela sentiu-se
confortada por não ter de explicar nada para ele imediatamente. Nicole vestiu a
camisola e entrou de mansinho na cama, mas não conseguiu dormir. Na sua
mente, continuava a ver aquelas horríveis imagens que vira ao longo do dia, e
ficou pensando como iria contar a Richard e aos outros tudo aquilo.
No seu estado de vigília, Nicole de repente viu-se sentada nos terraços em
Rouen, ao lado de seu pai, na praça onde Joana d'Arc fora queimada viva
oitocentos anos antes. Sentiu-se então de novo uma adolescente, como era de
fato quando seu pai a levara a Rouen, para que visse o cortejo em celebração a
Joana d'Arc. A carroça que carregava a mártir estava chegando na praça, e o povo
gritava.
— Papai — perguntou a adolescente Nicole, gritando para que seu pai a
ouvisse por cima daquele tumulto —, o que posso fazer para ajudar Katie?
Seu pai não ouviu a pergunta. Sua atenção estava completamente voltada
para a Donzela de Orleans, ou melhor, para a francesinha que estava inter-
pretando Joana. Nicole viu quando a menina, que tinha os mesmos olhos claros e
penetrantes atribuídos a Joana, foi amarrada na estaca e começou a rezar
baixinho, enquanto um dos bispos lia sua sentença de morte.
— E Katie? — perguntou Nicole de novo, mas outra vez ficou sem
resposta.
A platéia em volta dela nos terraços tossiu quando as pilhas de madeira
que rodeavam Joana começaram a pegar fogo. Nicole levantou-se com a multidão
quando as chamas espalharam-se rapidamente em volta da base da imensa
fogueira. Ela podia ouvir claramente as preces de Santa Joana, invocando a
bênção de Jesus. As chamas aproximaram-se da menina. Nicole olhou para o
rosto da adolescente que mudara a história e sentiu um arrepio na espinha.
— Katie! — gritou. — Não! Não!
Nicole tentou desesperadamente encontrar um jeito de escapar das cha-
mas, mas viu-se bloqueada de todos os lados. Não havia como salvar sua filha do
fogo.
— Katie! Katie! — gritou Nicole de novo, lutando para escapar da multidão
em volta.
Sentiu então braços em torno do seu peito, mas só alguns segundos de-
pois percebeu que aquilo era um sonho e que Richard a olhava alarmado. Antes
que ela pudesse falar, Ellie, de robe entrou no quarto.
— Você está bem, mamãe? Eu estava acordada e fui dar uma espiada em
Nikki quando ouvi você gritando o nome de Katie...
Nicole olhou primeiro para Richard e depois para Ellie, e fechou os olhos.
Ainda podia ver o rosto angustiado de Katie, contorcido de dor, logo acima das
chamas. Nicole abriu os olhos de novo e olhou para o marido e para a filha.
— Katie está muito infeliz — disse, caindo em prantos.
Nicole estava inconsolável. Toda vez que começava a contar para Richard e
para Ellie os detalhes do que havia visto, começava a chorar.
— Eu me senti tão frustrada, tão desprotegida! — disse enfim, quando
conseguiu se controlar. — Katie está numa situação terrível e não há nada que
possamos fazer para ajudá-la.
Resumindo a história da filha sem omitir nada, a não ser algumas cenas
sexuais mais escabrosas, Nicole desistiu de tentar suavizar seu relato. Richard e
Ellie ficaram assombrados e entristecidos com as notícias.
— Não sei como você conseguiu ficar lá sentada vendo isso durante tantas
horas — falou Richard a certa altura. — Eu teria saído em poucos minutos.
— Katie está tão perdida, tão terrivelmente perdida — disse Ellie, sacu-
dindo a cabeça. Minutos depois, a pequena Nikki entrou pelo quarto procurando
por sua mãe. Ellie a abraçou e voltou para seu próprio quarto com a filha.
— Desculpe eu ter ficado tão perturbada, Richard — disse Nicole um
pouco depois, antes de voltarem a dormir.
— Isso é compreensível — falou Richard. — O dia deve ter sido horrível
para você.
Nicole secou os olhos pela milésima vez.
— Só me lembro de ter chorado tanto assim uma única vez em toda a
minha vida — observou, tentando sorrir. — Eu tinha quinze anos, e meu pai me
disse que estava pensando em propor casamento a uma inglesa com quem ele
estava saindo. Eu não gostava dela, era uma mulher distante e fria, mas achava
que não tinha o direito de dizer nada para meu pai... De qualquer forma, fiquei
arrasada. Peguei Dunois, meu pato selvagem, e fui correndo até o nosso lago em
Beauvois. Remei até o meio do lago, coloquei os remos dentro do bote e fiquei
chorando durante várias horas.
Os dois ficaram em silêncio por um instante. Depois, Nicole debruçou-se
para beijar Richard.
— Obrigado por ficar me ouvindo — disse. — Eu estava precisando de
apoio.
— Também não é fácil para mim — falou Richard. — Mas pelo menos eu
não vi Katie, e assim fica parecendo...
— Oh, meu Deus — interrompeu Nicole —, eu quase ia me esquecendo...
Archie também me disse hoje que nenhum de nós terá permissão para voltar para
o Novo Éden, por razões de segurança... Max vai ficar furioso.
— Não se preocupe com isso agora — falou Richard de forma carinhosa. —
Tente dormir um pouco. A gente fala sobre isso amanhã.
Nicole aninhou-se nos braços de Richard e caiu no sono.

— Por razões de segurança! — gritou Max. — E que merda eles querem


dizer com isso?
Patrick e Nai levantaram-se da mesa do café.
— Deixem a comida aí — disse Nai, mandando que as crianças a seguis-
sem. — A gente come fruta e cereais na escola.
Kepler e Galileu relutaram em sair. Eles sentiram que alguma coisa im-
portante seria discutida. Só quando Patrick chegou na mesa é que eles em-
purraram a cadeira para trás e se levantaram.
Benjy teve permissão para ficar depois de prometer a Nicole que não
repetiria nada da conversa para as crianças. Eponine saiu da mesa para
amamentar Marius em um dos cantos da sala.
— Eu não sei o que isso significa — disse Nicole para Max depois que as
crianças saíram. — Archie não deu maiores explicações.
— Ora, que maravilha — disse Max. — Nós não podemos sair daqui, mas
seus amigos magricelas nem ao menos nos dizem por quê... Por que você não
pediu para falar com o Chefe Otimizador naquela mesma hora? Você não acha
que eles nos devem algum tipo de explicação?
— Acho sim — replicou Nicole. — E talvez fosse uma boa idéia pedirmos
uma audiência com o Chefe Otimizador... Sinto muito, Max, mas não tratei desse
caso muito bem... Eu estava preparada para assistir aos vídeos de Katie e, para
falar com franqueza, a declaração de Archie me pegou desprevenida...
— Que merda, Nicole — falou Max. — Não estou te culpando... De qual-
quer forma, como Ep, Marius e eu somos os únicos que ainda querem voltar para
o Novo Éden, é problema nosso ir contra essa decisão... Eu duvido que o Chefe
Otimizador já tenha visto um bebê de dois meses em carne e osso.
O resto da conversa na mesa do café foi sobre Katie e o que vira no dia
anterior nos vídeos. A família explicou a razão da infelicidade de Katie sem entrar
em maiores detalhes.
Quando Patrick voltou, disse que as crianças já estavam concentradas na
aula.
— Nai e eu temos conversado sobre muitas coisas — disse ele, dirigindo-se
a todos na mesa. — Primeiro, Max, queremos lhe pedir para ser um pouco mais
cuidadoso diante das crianças com seus comentários negativos sobre as
octoaranhas... Elas vivem com medo quando Archie ou o dr. Azul estão por aí, e
devem ter esse tipo de reação baseadas no que escutam quando estamos
conversando.
Max começou a resmungar.
— Por favor, Max — acrescentou Patrick —, você sabe que sou seu ami-
go... Não vamos discutir sobre isso... Só pense no que eu disse e lembre-se de que
talvez a gente tenha de ficar com as octoaranhas por muito tempo...
— Em segundo lugar — continuou Patrick —-, Nai e eu achamos, espe-
cialmente em vista do que ouvimos hoje de manhã, que as crianças deviam
aprender a língua das octoaranhas. E queremos que elas comecem o mais
depressa possível... Acho que vamos precisar de Ellie ou de mamãe, além de uma
ou duas octoaranhas... não só para ensinar, mas também para familiarizar as
crianças de novo com nossos hospedeiros alienígenas... Hércules foi embora há
uns dois meses... Mamãe, você pode falar com Archie sobre isso?
Nicole fez que sim e Patrick desculpou-se, dizendo que precisava voltar
para a sala de aula.
— Pa-trick é um ótimo pro-fes-sor — disse Benjy. — Ele é muito pa-ci-en-
te comigo e com as cri-an-ças.
Nicole sorriu intimamente e olhou para o filho por cima da mesa do café
da manhã. Considerando as circunstâncias, pensou ela, nossos filhos se saíram
bem. Eu devia estar contente por ter Patrick, Ellie e Benjy. E não me preocupar
tanto assim com Katie.

Em um dos cantos do seu quarto, Nai Watanabe terminou sua meditação


e fez as preces budistas, parte de sua rotina diária desde que era menina na
Tailândia. Nai atravessou a sala de estar, encaminhando-se ao outro quarto para
acordar os gêmeos, e viu, para sua surpresa, que Patrick estava dormindo no
sofá. Ele ainda estava vestido, com o leitor eletrônico em cima do peito. Nai
sacudiu-o com cuidado.
— Acorde, Patrick. Já é de manhã... Você dormiu a noite inteira aqui.
Patrick acordou imediatamente e pediu desculpas a Nai. Quando estava saindo,
disse que tinha vários assuntos para conversar com ela, sobre budismo, é claro,
mas que podia deixar a conversa para uma hora mais conveniente. Nai sorriu e
deu-lhe um beijo no rosto, dizendo que ela e os meninos iriam tomar o café da
manhã dentro de meia hora.
Ele é tão jovem e sério, disse Nai para si mesma quando Patrick estava
indo embora. E gosto muito da sua companhia... Mas será que alguém poderá
substituir Kenji como meu marido?
Nai lembrou-se da noite anterior. Depois que os gêmeos foram dormir,
Patrick e ela tiveram uma conversa longa e séria. Patrick queria se casar logo, e
ela respondeu que não tinha pressa, que concordaria em marcar uma data
quando tivesse se habituado com a idéia. Patrick perguntou então, de forma
desajeitada, se poderiam ter um "maior intercâmbio sexual" enquanto esperavam.
Então Nai lembrou a Patrick que lhe dissera desde o início que a relação deles
não passaria dos beijos antes do casamento. Para tranqüilizá-lo, Nai lhe garantira
que o achava muito atraente fisicamente e que gostaria de fazer amor com ele
quando se casassem, mas que, pelas razões que já tinham discutido várias vezes,
ela insistia em adiar o "intercâmbio sexual" por enquanto.
Durante o resto da noite, o casal ficou conversando sobre os gêmeos e
sobre budismo. Nai disse que estava preocupada com o impacto que o casamento
poderia causar a Galileu, sobretudo porque o menino se sentia seu protetor.
Patrick disse a Nai que não acreditava que seus freqüentes choques com Galileu
tivessem alguma coisa a ver com ciúmes.
— O menino se ressente de qualquer autoridade — disse Patrick — e
resiste à disciplina... Kepler, por sua vez...
Quantas vezes nos últimos seis anos, pensou Nai, alguém começou um
comentário com a frase "Kepler, por sua vez"... Lembrou-se de quando Kenji ainda
estava vivo e os meninos apenas começavam a andar. Galileu caía e dava
encontrão nas coisas com freqüência. Kepler, por sua vez, era cuidadoso e preciso
nos seus passos. Quase não caía.
Os vaga-lumes gigantes ainda não tinham levado a aurora para a Cidade
de Esmeralda. Nai continuou a divagar, como sempre fazia depois de um
meditação pacífica. Disse a si mesma que ultimamente andava fazendo muitas
comparações entre Kenjy e Patrick. Isso não é justo. Só posso me casar com
Patrick depois que esse processo estiver terminado.
Mais uma vez ela pensou na noite anterior, e sorriu ao recordar-se da
discussão acalorada que tiveram sobre a vida de Buda. Patrick ainda é ingênuo
como uma criança, um idealista puro. Essa é uma das coisas que mais gosto nele.
— Eu admiro tanto a filosofia básica de Buda quanto sua abordagem —
dissera Patrick. — Admiro mesmo... Mas tenho alguns problemas... Como você
pode adorar um homem, por exemplo, que deixa a esposa e o filho para se tornar
um mendigo?... E a responsabilidade dele para com sua família?
— Você está tirando a ação de Buda do seu contexto histórico — res-
pondera Nai. — Em primeiro lugar, no norte da Índia, há dois mil e setecentos
anos, viver pelas estradas mendigando era uma coisa aceitável. Havia alguns
mendigos nos vilarejos e muitos nas cidades. Quando um homem queria procurar
a verdade, seu primeiro passo era despir-se de todos os confortos materiais...
Além do mais, você se esqueceu de que Buda veio de uma família muito rica. Sua
mulher e seu filho não ficariam sem comida, abrigo, roupas e outras coisas
essenciais...
Tinham conversado durante duas horas, depois se beijado um pouco
antes de Nai ir, sozinha, para seu quarto. Patrick já retomara sua leitura sobre
budismo quando Nai lhe disse boa noite da porta do quarto.
Como é difícil, pensou Nai, quando a luz do vaga-lume irrompeu na cidade
das octoaranhas, explicar a relevância do budismo a alguém que nunca viu a
Terra... Mas mesmo aqui, neste estranho mundo alienígena entre as estrelas, o
desejo ainda causa sofrimento, e os seres vivos ainda buscam paz espiritual. É
por isso que alguns elementos do budismo, do cristianismo e das outras grandes
religiões da Terra durarão enquanto houver seres humanos em algum lugar.

11
Richard saiu da cama com mais entusiasmo do que de costume, e
começou a tagarelar com Nicole.
— Deseje-me boa sorte — disse, enquanto se vestia. — Archie disse que
nós vamos ficar fora o dia inteiro.
Nicole, que era sempre lenta para acordar e detestava atividades frenéticas
de qualquer espécie nas primeiras horas da manhã, rolou na cama e tentou
aproveitar seus últimos momentos de descanso. Abriu um olho ligeiramente, viu
que ainda estava escuro e fechou-o de novo.
— Não me sinto tão animado assim desde que terminei aquelas duas
últimas peças do tradutor — disse Richard. — Sei que as octoaranhas pensam
seriamente em me pôr para trabalhar... Só estão tentando encontrar a coisa certa
para mim.
Ele saiu do quarto e demorou alguns minutos. Pelos ruídos na cozinha,
Nicole, ainda meio adormecida, percebeu que Richard estava preparando seu
café. Logo voltou, comendo uma das grandes frutas rosadas de que tanto gostava,
e ficou ao lado da cama, chupando a fruta ruidosamente.
Nicole abriu os olhos aos poucos e olhou para o marido.
— Imagino — disse ela suspirando — que você esteja esperando que eu
diga alguma coisa.
— Estou — falou Richard. — Gostaria que você dissesse algumas coisas
gentis antes de eu ir embora. Afinal de contas, esse pode ser o dia mais
importante da minha vida desde que chegamos à Cidade de Esmeralda.
— Você tem certeza — disse Nicole — de que Archie pretende lhe arranjar
um trabalho?
— Absoluta — respondeu Richard. — Essa é a finalidade do nosso en-
contro hoje. Ele vai me mostrar alguns dos sistemas mais complexos de
engenharia e tentar avaliar onde meus conhecimentos poderão ser usados... Pelo
menos foi isso que me disse ontem.
— Mas por que você está indo tão cedo? — perguntou Nicole.
— Porque tenho de ver muita coisa, acho eu... De qualquer forma, me dê
um beijo. Ele vai chegar daqui a pouco.
Nicole beijou Richard obedientemente e fechou os olhos de novo. O Banco
de Embriões era um edifício grande, retangular, localizado no extremo sul da
Cidade de Esmeralda, bem perto de onde terminava a Planície Central. A menos
de um quilômetro do banco havia um conjunto de três escadas, cada qual com
dezenas de milhares de degraus, que subiam para o cilindro do pólo sul. Acima
do Banco de Embriões, quase na escuridão de Rama, surgiam as estruturas
imponentes do Grande Chifre com seus seis acólitos pontudos, maiores do que
qualquer construção de engenharia do planeta Terra.
Richard e Archie haviam montado num emassauro nas imediações da
Cidade de Esmeralda, e, acompanhados de três vaga-lumes, passaram pelo
Domínio Alternativo em uma questão de minutos. Na parte sul do reinado das
octoaranhas havia poucos prédios. Apesar de algumas plantações ocasionais de
cereais, Richard notou que a maior parte da área meridional pela qual eles
viajavam assemelhava-se, mesmo naquela luz mortiça, ao Hemicilindro Norte de
Rama II antes da construção dos dois habitats.
Richard e seu amigo octoaranha entraram no Banco de Embriões por
duas portas muito grossas que os levaram diretamente a uma grande sala de
conferências. Lá Richard foi apresentado a várias outras octoaranhas, que
obviamente esperavam por ele. Richard usou seu tradutor e as octos leram seus
lábios, embora ele tivesse de falar devagar e pronunciar bem as palavras, pois
essas octoaranhas não eram tão experientes na língua dos humanos quanto
Archie.
Depois de breves formalidades, uma das octoaranhas levou os dois para
uma série de painéis de controle que alojavam o equivalente a teclados feitos com
as faixas coloridas das octos.
— Temos quase dez mil embriões armazenados aqui — disse a
octoaranha-chefe como introdução —, que representam mais de cem mil espécies
distintas, e três vezes esse mesmo número de híbridos. Suas durações naturais
de vida variam de meio tert a vários milhões de dias, ou seja, cerca de dez mil
anos humanos. Seus tamanhos em adultos variam de uma fração de nanômetro a
colossos quase tão grandes quanto este prédio. Cada embrião é armazenado no
que acreditamos serem as condições quase ideais para sua preservação. Porém,
na realidade, só cerca de mil ambientes distintos, combinações de temperatura,
pressão e químicas ambientais são necessários para abranger a variedade de
condições exigidas. O prédio também aloja um imenso sistema de gerenciamento
de dados e monitoração. Esse sistema rastreia automaticamente as condições em
cada um dos ambientes distintos e monitora o início do desenvolvimento dos
milhares de embriões que estão sempre em germinação ativa. O sistema possui
mecanismos de detecção e correção automática de erros, uma estrutura de
parâmetro dual de advertência, e também dirige a projeção de informações de
status e de catálogo tanto para estas paredes como para as de qualquer área de
pesquisa nos andares de cima.
O cérebro de Richard entrou em aceleração quando ele começou a com-
preender mais claramente o objetivo do Banco de Embriões. Que conceito fan-
tástico, pensou. As octoaranhas armazenam aqui todas as sementes de outras
plantas ou espécies animais que possam vir a servir para qualquer finalidade.
— ...Os testes são contínuos — dizia a octoaranha —, para assegurar a
integridade dos sistemas de armazenamento e preservação e fornecer espécimes
para as atividades de engenharia genética. Cerca de duzentos biólogos
octoaranhas estão permanentemente ocupados com experiências genéticas aqui.
A meta dessas experiências é produzir formas de vida alteradas que possam
aprimorar a eficiência da nossa sociedade...
— Pode me mostrar um exemplo de experiência genética? — interrompeu
Richard.
— Certamente — replicou a octoaranha, dirigindo-se ao painel de controle
e usando três tentáculos para apertar uma seqüência de botões coloridos. —
Creio que o senhor conhece um de nossos métodos fundamentais de geração de
energia — disse a octo quando um vídeo foi projetado na parede. — O princípio
básico é bem simples, como o senhor sabe. As criaturas marinhas circulares
geram e armazenam uma carga eletrônica em seu corpo. Nós captamos essa
carga em uma rede de arame, contra a qual os animais têm de se comprimir para
pegar seu suprimento alimentar. Embora esse sistema seja bastante satisfatório,
nossos engenheiros observaram que ele pode ser substancialmente aprimorado se
o comportamento da criatura sofrer umas tantas alterações.
— Olhe esse close-up em movimento rápido de meia dúzia de criaturas
marinhas geradoras de energia. Note que durante esse breve filme cada uma das
criaturas passará por três a quatro ciclos de carga-descarga. Que aspecto desses
ciclos seria de maior interesse para um engenheiro de sistemas?
Richard observou o vídeo cuidadosamente. As criaturas ficam opacas
depois de sua descarga, refletiu, mas voltam ao seu brilho original em um
intervalo de tempo relativamente curto.
— Partindo do princípio de que o brilho é uma medida de carga armaze-
nada — disse Richard de repente, como se estivesse sendo submetido a uma
espécie de teste —, o sistema poderia ser mais eficiente se fosse aumentada a
freqüência da alimentação.
— Exatamente — respondeu o chefe das octoaranhas.
Archie passou uma mensagem rápida para a octoaranha hospedeira, que
foi completada antes que Richard tivesse chance de usar o telescópio do seu
tradutor. Nesse meio-tempo, uma imagem diferente apareceu na parede.
— Aqui estão três variantes genéticas da criatura marinha circular, que
estão atualmente sendo testadas e avaliadas. O principal candidato à substitui-
ção é o da direita. Esse protótipo come com o dobro de freqüência que o
componente atualmente em uso; mas ele tem um desequilíbrio metabólico que
aumenta significativamente sua suscetibilidade a doenças contagiosas. Todos
esses fatores estão sendo pesados na presente avaliação...

Richard foi levado de uma demonstração a outra, sempre acompanhado


de Archie. Mas para cada demonstração havia um grupo de especialistas octoa-
ranhas preparados para uma minipalestra e um grupo para as discussões que se
seguiam. Uma das apresentações focalizou a relação entre o Banco de Embriões,
o grande zoológico que ocupava uma considerável área no Domínio Alternativo, e
a barreira de florestas que formava uma cinta completa em torno de Rama, pouco
menos de um quilômetro ao norte da Cidade de Esmeralda.
— Todas as espécies vivas do nosso reino — disse o apresentador — estão
em simbiose ativa, observação temporária em um domínio isolado (no zôo, na
floresta ou, no seu caso específico, na própria Cidade de Esmeralda), ou então
estão sendo submetidas a experiências aqui no Banco de Embriões.
Depois de uma longa caminhada por vários corredores, Richard e Archie
se reuniram a meia dúzia de octoaranhas, que estavam avaliando uma reco-
mendação de substituição de toda uma cadeia simbiótica de quatro espécies
diferentes. Essa cadeia era responsável pela produção de uma substância
gelatinosa que melhorava consideravelmente uma doença comum na lente das
octoaranhas. Richard ouviu fascinado quando os parâmetros do teste da nova
simbiose proposta (recursos consumidos, taxas de reprodução, interações
necessárias com as octoaranhas, coeficientes de erros e previsão de
comportamento) foram comparados com o sistema existente. Terminada a
reunião, decidiu-se que em uma das três zonas de fabricação a nova simbiose
seria instalada durante várias centenas de dias operacionais, ao fim dos quais a
decisão seria reconsiderada.
No meio do dia de trabalho, Archie e Richard foram deixados sozinhos
durante meio tert. A pedido de Richard, os dois apanharam seus almoços e
bebidas, voltaram a montar no emassauro, recrutaram um par de vaga-lumes e
deram uma volta pela fria e escura planície Central. Quando Richard desmontou,
deu uma caminhada com os braços estendidos e olhou para a vastidão de Rama.
— Quem entre vocês se preocupa ou tenta imaginar o significado de tudo
isso? — perguntou ele a Archie, movendo os braços em círculo.
A octoaranha respondeu que não tinha compreendido a pergunta.
— Entendeu sim, seu hipócrita — disse Richard sorrindo. — Só que esse
intervalo que estamos tendo foi reservado pelos seus otimizadores para um tipo
diferente de conversa entre nós... O que eu quero discutir, Archie, não é em que
departamento específico de engenharia do seu Banco de Embriões eu gostaria de
trabalhar para poder dar a contribuição que justifique os recursos necessários
para a minha manutenção... O que eu quero perguntar a você é o que está
acontecendo realmente aqui. Por que nós todos — humanos, sésseis, aves e vocês
com toda a sua coleção de animais — estamos a bordo desta imensa e misteriosa
nave espacial com destino à estrela que os humanos chamam de Tau Ceti?
Archie se manteve calado por uns trinta segundos.
— Foi dito aos membros da nossa espécie, enquanto eles estavam em
Nodo, como você esteve, que uma inteligência superior está catalogando formas
de vida na galáxia, com ênfase especial para os viajantes do espaço. Nós
montamos uma típica colônia, como nos foi exigido, e a estabelecemos dentro
desta Rama, para que pudessem ser realizadas observações detalhadas da nossa
espécie.
— Então as octoaranhas não sabem nada mais sobre quem ou o quê está
por trás desse grande esquema do que nós humanos sabemos?
— Não — respondeu Archie. — Na verdade, nós provavelmente sabemos
menos. Nenhuma octoaranha que viveu em Nodo existe ainda na nossa colônia.
Como eu já disse, aquele contingente de octoaranhas da Rama II era uma espécie
diferente e inferior. A única fonte de informação de primeira mão sobre Nodo a
bordo dessa nave espacial são você, sua família e os possíveis dados comprimidos
que possam existir dentro daquele pequeno volume de material séssil que ainda
está sendo mantido no nosso zôo.
— E fica nisso? — perguntou Richard. — Nenhum de vocês faz perguntas?
— Nós somos treinados desde jovens a não perder tempo com assuntos
que não possam ter explicações significativas — respondeu Archie.
Richard ficou um instante em silêncio e depois perguntou abruptamente:
— Como você sabe tanto sobre as aves e os sésseis?
— Desculpe, Richard — disse Archie depois de uma pausa —, mas não
posso falar sobre esse assunto agora... Minha obrigação durante esse nosso
intervalo, como supôs, é avaliar se você gostaria ou não de trabalhar como
engenheiro no Banco de Embriões; e, em caso de uma resposta positiva, saber
quais das áreas vistas hoje lhe parecem mais interessantes.
— É uma droga de incumbência — disse Richard rindo. — Eu gostaria
sim, Archie; tudo isso é fascinante, especialmente o que eu chamo de de-
partamento de enciclopédia. Acho que preferiria trabalhar lá, pois poderia
aumentar meu parco conhecimento de biologia... Mas por que está me fazendo
essa pergunta agora? Nós não vamos ter mais demonstrações depois do almoço?
— Vamos — respondeu Archie. — Mas o programa desta tarde já está
praticamente tomado. Praticamente metade do Banco de Embriões dedica-se à
microbiologia. O gerenciamento dessa atividade é mais complexo, e envolve a
comunicação com os midgets. É difícil imaginar você trabalhando em algum
desses departamentos.

Por baixo do laboratório microbiológico básico havia um porão no qual só


se entrava com credenciais especiais. Quando Archie mencionou que uma grande
quantidade de imagens quadróides voadoras era produzida no porão do Banco de
Embriões, Richard praticamente implorou para observar o processo. Sua visita
oficial foi interrompida, e Richard ficou sem fazer nada durante vários fengs,
enquanto Archie obtinha permissão para visitarem o viveiro dos quadróides.
Duas octoaranhas guiaram-nos por várias rampas que desciam para a
área subterrânea.
— O viveiro foi construído propositalmente longe do nível do chão — disse
Archie — para haver maior isolamento e proteção. Há três outros locais
semelhantes espalhados por todo o nosso território.
Que incrível, disse Richard a si mesmo, enquanto ele e seus três
companheiros octoaranhas chegaram a uma plataforma da qual se via, abaixo,
uma grande área retangular. Seu reconhecimento foi instantâneo. Vários metros
abaixo deles, cerca de cem midgets espalhavam-se pela área, executando tarefas
que não identificou. Do teto pendiam oito treliças retangulares, de cinco metros
de comprimento e dois metros de largura, colocadas simetricamente em volta da
sala. Logo abaixo de cada uma dessas treliças via-se um grande objeto oval com a
parte externa rígida. Esses oito objetos parecendo nozes colossais eram rodeados
por um espesso emaranhado ou teia.
— Vi um arranjo semelhante a este há muitos anos, por baixo de Nova
York. Foi antes do meu primeiro encontro pessoal com uma de suas primas.
Nicole e eu ficamos assustadíssimos... — disse Richard excitado.
— Acho que li alguma coisa sobre esse incidente — replicou Archie. —
Antes de trazermos Ellie e Eponine para a Cidade de Esmeralda, eu estudei todos
os arquivos antigos sobre a sua espécie. Alguns dados estavam compactados, por
isso não havia muitos detalhes...
— Eu me lembro desse incidente como se fosse ontem — interrompeu
Richard. — Coloquei dois robôs em miniatura em um pequeno trem do metrô e
eles desapareceram num túnel. Eles chegaram a uma área como esta aqui, e
depois de subirem pelas teias foram capturados por uma de suas primas.
— Sem dúvida os robôs caíram em um viveiro de quadróides, e as octos
agiram para proteger o viveiro. É realmente muito simples... — Archie fez um
sinal para o guia-engenheiro, avisando que estava na hora da sua explicação.
— As rainhas quadróides passam os períodos de gestação em
compartimentos especiais, fora do chão — disse o engenheiro octoaranha. —
Toda rainha põe milhares de ovos. Depois que vários milhões de ovos são postos,
eles são coletados e colocados juntos em um desses compartimentos ovais. O
interior desses compartimentos é mantido a uma temperatura muito alta, que
reduz notadamente o tempo de desenvolvimento dos quadróides. O espesso
emaranhado em volta dos recipientes absorve o excesso de calor, tornando as
condições de trabalho aceitáveis para as midgets que supervisionam o viveiro...
Richard ouvia parcialmente, mas sua atenção se fixou numa ocorrência de
muitos anos atrás. Agora está tudo claro, disse para si mesmo. E aquele metrô
minúsculo era destinado às midgets.
— ...A monitoração dentro dos compartimentos identifica exatamente
quando os quadróides estão prontos para se agrupar. As treliças ali em cima são
encharcadas com agentes químicos apropriados durante alguns fengs, antes que
os recipientes ovais se abram automaticamente. As novas rainhas voam primeiro,
atraídas para os elementos das treliças. Segue-se o vôo das hordas frenéticas de
machos, que chegam a formar nuvens pretas, apesar de seu tamanho minúsculo.
Os quadróides são colhidos da treliça e vão imediatamente para o treinamento de
massa...
— Muito elegante — disse Richard. — Mas tenho uma pergunta simples.
Por que os quadróides tiram todas essa fotos para vocês?
— A resposta é simples — disse Archie. — Porque elas foram trabalhadas
geneticamente durante milhares de anos para nos serem receptivas. Nós, ou
melhor, nossos especialistas em morfologias de midgets falam a linguagem
química que os quadróides usam para se comunicar. Quando os quadróides
fazem o que lhes é pedido, recebem comida. Quando seu desempenho é
satisfatório durante um longo período, têm permissão de gozar os prazeres do
sexo.
— De um certo grupo, ou enxame, qual a percentagem de quadróides que
seguem suas ordens?
— A taxa de erro na primeira foto é de cerca de dez por cento — respondeu
o engenheiro octoaranha. — Depois que o modelo é estabelecido e o ciclo de
recompensa é posto em vigor, a taxa de erro cai muito.
— Muito impressionante — falou Richard em tom de elogio. — Talvez essa
biologia tenha mais coisas do que jamais pensei.

Na viagem de volta para a Cidade de Esmeralda, Richard e Archie


discutiram sobre as forças e fraquezas relativas dos sistemas de engenharia
biológica e não-biológica. Uma conversa um tanto esotérica e filosófica, com
poucas conclusões definitivas. Porém eles concordaram que a função
enciclopédica, basicamente armazenagem, manipulação e apresentação de
grandes quantidades de informações, era mais bem trabalhada por sistemas não-
biológicos.
Quando estavam se aproximando da cidade da cúpula, o brilho verde
extinguiu-se de repente. A noite caíra de novo sobre o centro do território das
octoaranhas. Logo depois, mais um par de vaga-lumes apareceu para iluminar
melhor o caminho do emassauro.
O dia tinha sido longo, e Richard estava cansado. Quando entraram nas
imediações do Domínio Alternativo, ele teve a impressão de ver uma coisa voando
à sua direita na escuridão.
— O que aconteceu com Tammy e Timmy? — perguntou.
— Eles acasalaram — respondeu Archie — e tiveram vários filhotes, que
são cuidados no zôo.
— Posso vê-los? — perguntou Richard. — Você me disse uns meses atrás
que um dia isso seria possível...
— Creio que sim — replicou Archie depois de um curto silêncio. — Em-
bora o zôo seja uma zona restrita, a área das aves é muito próxima da entrada.
Chegando à primeira grande estrutura do Domínio Alternativo, Archie des-
montou e entrou no prédio. Ao voltar, falou alguma coisa com o emassauro.
— Podemos fazer uma visita muito rápida — disse, quando o emassauro
se desviou da via principal e começou a serpentear pelas faixas menores da
comunidade.
Richard foi apresentado ao zelador do zoológico, que os levou em um carro
ao departamento das aves, a apenas uns cem metros da entrada. Tammy e
Timmy estavam ali, e reconheceram Richard imediatamente; seus
matraqueamentos e guinchos de prazer encheram os céus escuros. As aves
apresentaram Richard aos filhotes agrupados. Eles se mostraram muito tímidos
diante do primeiro ser humano que viam. Richard sentiu uma forte emoção
quando acariciou o papo aveludado de seus amigos alienígenas, e recordou-se
dos dias em que era seu único protetor na toca abaixo de Nova York.
Richard despediu-se das aves e entrou no carro com Archie e o zelador do
zôo. Quando estavam a meio caminho da saída, ele ouviu um som que o pôs em
alerta e fez com que ficasse todo arrepiado. Richard sentou-se imóvel e se
concentrou. O som repetiu-se logo antes que o carro silencioso parasse. — Posso
estar enganado — falou Richard para Nicole. — Mas ouvi duas vezes. Não há
nenhum outro som igual ao choro de uma criança humana.
— Não estou duvidando de você, Richard — disse Nicole. — Só estou
tentando excluir pela lógica todas as outras possíveis fontes do som que você
ouviu. Aves novinhas têm um guincho especial que pode parecer um pouco com o
choro de um bebê... e, afinal de contas, você estava em um zôo. Pode ter sido
algum outro animal.
— Não — disse Richard. — Eu sei o que ouvi. Já convivi com muitas
crianças e ouvi muito choro na minha vida.
Nicole sorriu.
— Agora o sapato está no outro pé, não é, querido? Você se lembra da sua
reação quando eu disse que tinha visto o rosto de uma mulher naquele mural, na
noite em que assistimos à peça das octoaranhas? Você caçoou de mim e disse
que eu era "absurda", se é que me lembro bem da palavra.
— Então qual é a explicação? As octoaranhas raptaram humanos de
Avalon, e o incidente nunca foi relatado? Mas como elas puderam...
— Você disse alguma coisa para Archie? — perguntou Nicole.
— Não. Eu estava pasmo. No início fiquei intrigado, porque nem ele e nem
o zelador do zôo fizeram comentário de espécie alguma, e depois me lembrei de
que as octoaranhas são surdas.
Os dois ficaram em silêncio por um instante.
— Ninguém esperava que você ouvisse aquele som, Richard — falou Ni-
cole. — Nossos hospedeiros quase perfeitos fizeram uma manobra não-ótima.
Richard riu.
— É claro que eles estão gravando nossa conversa. Amanhã eles saberão
que nós sabemos...
— É melhor não contarmos isso ainda para os outros — falou Nicole. —
Talvez as octoaranhas decidam dividir seu segredo conosco... Aliás, quando você
começa a trabalhar?
— Quando eu quiser — respondeu Richard. — Eu disse a Archie que
antes tinha de terminar uns trabalhos meus.
— Parece que seu dia foi fascinante — comentou Nicole. — Por aqui tudo
esteve muito calmo; a única novidade foi que Patrick e Nai marcaram a data do
casamento... de amanhã a três semanas.
— O quê? — disse Richard. — Por que não me contou isso antes? Nicole
riu.
— Não tive chance... Você entrou aqui falando sem parar sobre choro no
zôo, e aves, e quadróides, e o Banco de Embriões... Eu sabia, por experiência, que
teria de esperar para contar as novidades depois que você se cansasse.
— Muito bem, mãe do noivo — falou Richard logo depois —, como está se
sentindo?
— Considerando tudo, estou muito contente... Você sabe como eu gosto de
Nai... Só que o tempo e o lugar são estranhos para se começar um casamento.

12
Estavam todos sentados na sala de estar dos Wakefield, esperando que a
noiva aparecesse. Patrick, nervoso, esfregava as mãos.
— Tenha paciência, garoto — disse Max, atravessando a sala e pondo os
braços em volta de Patrick. — Ela vai chegar... A mulher gosta de ficar bem
bonita no dia do seu casamento.
— Comigo foi diferente — disse Eponine. — Na verdade, nem me lembro
da roupa que eu estava vestindo no dia em que me casei.
— Eu me lembro muito bem, francesinha — falou Max rindo —, espe-
cialmente quando chegamos no iglu. A maior parte do tempo você usou a roupa
com que nasceu.
Todos riram. Nicole entrou na sala e disse:
— Dentro de mais uns minutos ela estará aqui. Ellie está ajudando Nai a
dar os últimos retoques no vestido. — Deu uma olhada em volta. — Onde estão
Archie e o dr. Azul?
— Foram em casa um instante buscar um presente especial para a noiva
— disse Ellie.
— Eu não gosto quando essas octoaranhas ficam por aqui — disse Galileu
com um tom desagradável. — Elas me deixam arrepiado.
— A partir da semana que vem, Galileu — disse Ellie com sua voz suave,
vocês vão ter uma octoaranha na escola quase todo o tempo... Ela vai ajudá-los a
aprender a língua delas...
— Não quero aprender a língua delas — disse o menino com ar de desafio.
Max foi para perto de Richard.
— Então, como vai indo o trabalho, amigo? Quase não o temos visto
nessas duas últimas semanas.
— O trabalho é absolutamente fascinante, Max — disse Richard com
entusiasmo. — Estou trabalhando num projeto de enciclopédia, ajudando as
octoaranhas a projetar um novo conjunto de software para exibir todas as
informações fundamentais sobre centenas de milhares de espécies que se
encontram no Banco de Embriões... As octoaranhas acumulam uma enorme
riqueza de dados nos seus testes, mas surpreendentemente não sabem muito
bem como gerenciá-los com eficiência. Ontem comecei a trabalhar com dados
recentes de testes de um conjunto de agentes microbiológicos que são
classificados, na taxinomia das octoaranhas, pela série de plantas e animais para
os quais são letais...
Richard parou quando Archie e o dr. Azul entraram carregando uma caixa
de mais ou menos um metro de altura, embrulhada no papel pergaminho das
octoaranhas. Colocaram o presente em um canto e ficaram esperando de pé na
sala. Ellie entrou um instante depois, cantando a marcha nupcial de
Mendelssohn, seguida de Nai.
A noiva de Patrick usava seu vestido tailandês de seda, enfeitado com as
flores brilhantes amarelas e pretas que as octoaranhas haviam dado a Ellie. As
flores estavam presas estrategicamente no vestido. Patrick levantou-se e foi para
o lado de Nai, em frente à sua mãe, e o casal se deu as mãos.
Nicole foi convidada a presidir a cerimônia e fazer tudo da forma mais
simples possível. Enquanto ela se preparava para dizer umas palavras para os
noivos, foi tomada de repente pela lembrança de outros casamentos na sua vida.
Viu Max e Eponine, Michael O'Toole e sua filha Simone, Robert e Ellie... Nesse
ponto, Nicole estremeceu ligeiramente, ao se lembrar dos tiros. Mais uma vez,
pensou ela, forçando-se a voltar ao presente, estamos todos reunidos aqui.
Ela mal conseguia falar, invadida por seus sentimentos. Este é meu último
casamento, percebeu ela, quase pensando alto. Não vai haver outro. Uma lágrima
rolou pelo seu rosto.
— Você está bem, Nicole? — perguntou a noiva baixinho, atenciosa como
sempre. Nicole fez que sim e sorriu.
— Meus amigos — começou Nicole —, estamos reunidos aqui hoje para
assistir e comemorar o casamento de Patrick Ryan O'Toole e Nai Buatong
Watanabe. Vamos formar um círculo em volta deles dando-nos as mãos, para
mostrar nosso apoio ao seu casamento.
Nicole fez um sinal para as duas octoaranhas quando o círculo foi for-
mado, e elas também colocaram seus tentáculos em volta dos humanos que
estavam a seu lado.
— Patrick — disse Nicole com a voz embargada —, aceita esta mulher,
Nai, como sua legítima esposa, para amar e cuidar por toda a vida?
— Aceito — disse Patrick.
— E você, Nai, aceita este homem, Patrick, como seu legítimo esposo, para
amar e cuidar por toda a vida?
— Aceito — disse Nai.
— Então eu os declaro marido e mulher. — Patrick e Nai abraçaram-se e
todos gritaram. O primeiro abraço dos recém-casados foi reservado a Nicole.

— Você algum dia conversou com Patrick sobre sexo? — perguntou Nicole
a Richard, quando a festa terminou e todos foram embora.
— Não. Max disse que faria isso... Mas não deve ter sido necessário. Afinal
de contas, Nai já foi casada... Meu Deus, como você estava emocionada esta
noite! O que aconteceu?
Nicole sorriu.
— Eu fiquei pensando em outros casamentos, Richard. No de Simone e
Michael, Ellie e Robert...
— Desse eu gostaria de me esquecer — falou Richard. — Por muitas
razões.
— Eu achei, durante a cerimônia, que estava chorando porque esse seria
provavelmente o último casamento a que assistiria. Mas depois, durante a festa,
pensei em outra coisa. Você nunca se importou, Richard, por nós não termos tido
uma cerimônia oficial de casamento?
— Não — disse Richard, sacudindo a cabeça. — Eu tive uma cerimônia
com Sarah, e isso bastou para mim...
— Mas você teve uma cerimônia, Richard, e eu não. Tive filhos de três pais
diferentes, mas nunca fui uma noiva.
Richard ficou em silêncio por um tempo.
— E você acha que era por isso que estava chorando?
— Talvez, mas não tenho certeza.
Nicole deu uma volta na sala e Richard ficou pensando.
— Não é linda a estátua de Buda que as octoaranhas deram a Nai? —
perguntou ela. — Uma peça de arte magnífica... Acho que Archie e o dr. Azul se
divertiram bastante. Não sei por que Jamie veio buscá-los tão cedo...
— Você gostaria de ter uma cerimônia de casamento? — perguntou
Richard de repente.
— Na nossa idade? — falou Nicole, dando uma risada. — Nós já somos
avós.
— Mas se a fizesse feliz...
— Você está me pedindo em casamento, Richard Wakefield?
— Creio que sim. Não quero que você fique triste porque nunca foi uma
noiva.
Nicole atravessou a sala e beijou o marido.
— Talvez fosse divertido. Mas não vamos planejar nada antes de Patrick e
Nai se instalarem. O momento de glória agora é deles.
Richard e Nicole foram para o quarto abraçados e levaram um susto
quando viram que a passagem estava bloqueada por Archie e o dr. Azul.
— Vocês precisam vir conosco imediatamente — disse Archie. — É uma
emergência.
— Agora? A essa hora? — perguntou Nicole.
— É — respondeu o dr. Azul. — Só vocês dois. O Chefe Otimizador está
esperando... Ele vai explicar tudo.
Nicole sentiu seu coração disparar quando a adrenalina entrou no seu
sistema.
— Vou precisar de um casaco? — perguntou. — Nós vamos sair da
cidade?
Por alguma razão, a primeira idéia de Nicole foi que aquela emergência
tinha a ver com o choro de criança que Richard ouvira depois de sua primeira
visita ao Banco de Embriões. Será que a criança estava doente? Será que estava
morrendo? Então por que não estavam indo diretamente para o zôo, que ficava
fora da cúpula, no Domínio Alternativo?
O Chefe Otimizador e sua equipe estavam esperando. Havia duas cadeiras
na sala. Assim que Richard e Nicole se sentaram, o chefe das octoaranhas
começou a falar em cores.
— Está havendo uma crise grave, que infelizmente poderá levar à guerra
entre nossas duas espécies. — O Chefe Otimizador fez um sinal com seu
tentáculo e começaram a aparecer imagens de vídeo na parede. -— Hoje bem cedo
dois helicópteros começaram a descer tropas da ilha de Nova York para o extremo
norte do nosso território, bem ao lado do mar Cilíndrico. Os dados dos nossos
quadróides indicam que não só a sua espécie está se preparando para nos atacar
como também que seu líder Nakamura obteve apoio do Senado para os
preparativos da guerra, e num tempo relativamente curto criou um arsenal que
poderá causar danos substanciais à nossa colônia.
O Chefe Otimizador parou, enquanto Nicole e Richard observavam as
imagens mostrando as bombas, bazucas e metralhadoras sendo fabricadas no
Novo Éden.
— Os humanos fizeram investigações nos últimos quatro dias através de
pequenos grupos por terra e dois helicópteros no ar. Essas missões de reco-
nhecimento chegaram à barreira de floresta ao sul, e cobriram todo o alcance
cilíndrico do nosso território. Quase trinta por cento de nossa comida, energia e
suprimento de água encontram-se na região onde os humanos fizeram o
reconhecimento. Não houve nenhum combate, pois nós não oferecemos
resistência às atividades de exploração. Mas colocamos cartazes em lugares
estratégicos, usando palavras que conhecemos da sua língua, para informar às
tropas humanas que todo o cilindro sul pertence a uma espécie avançada, mas
pacífica, e solicitando que os humanos voltem para seu próprio território. Nossos
cartazes foram ignorados.
— Dois dias atrás ocorreu um incidente preocupante. Enquanto colhíamos
cereais em uma de nossas grandes plantações, um helicóptero ficou sobrevoando
a área. Logo depois o veículo aterrissou por perto e desceram quatro soldados.
Sem que fossem de forma alguma provocados, esses humanos executaram os três
animais que faziam a colheita, aquelas criaturas de seis braços que vocês viram
no primeiro reconhecimento que fizeram do nosso território, e atearam fogo à
plantação. A partir desse incidente, as palavras dos nossos cartazes mudaram.
Nós deixamos bem claro que qualquer outro comportamento semelhante será
considerado um ato de guerra. Entretanto, pela ações de hoje de manhã, parece
que nossos avisos não foram considerados e que a sua espécie está planejando
começar um conflito do qual não tem condições de sair vitoriosa. Estive pensando
hoje em fazer uma declaração de guerra, acontecimento extremamente grave para
uma colônia de octoaranhas com ramificações em todos os níveis da nossa
sociedade. Porém, antes de tomar essa decisão irreversível, consultei esses outros
otimizadores, cuja opinião respeito muito. A maioria da minha equipe é a favor da
declaração de guerra, pois não vê nenhum meio para convencer seus
conterrâneos de que um conflito conosco representaria um desastre para eles. A
octoaranha que vocês chamam de Archie, entretanto, apresentou à minha equipe
uma proposta que pensamos que tem alguma possibilidade de funcionar. Embora
nossos analistas estatísticos digam que provavelmente ocorrerá a guerra, nossos
princípios exigem que façamos todo o possível para evitá-la... Como a proposta de
Archie requer seu envolvimento e cooperação, vocês foram chamados aqui esta
noite.
O Chefe Otimizador parou de falar em cores e foi para o lado da sala.
Richard e Nicole entreolharam-se.
— O seu tradutor pegou tudo? — perguntou Nicole.
— Quase tudo — respondeu Richard. — Pelo menos entendi a essência da
situação... Você tem alguma pergunta a fazer? Ou devemos sugerir que eles
expliquem a proposta de Archie?
Nicole fez um sinal na direção de Archie e ele foi para o centro da sala.
— Eu me ofereci — disse a octoaranha — para negociar pessoalmente com
os líderes humanos, a fim de tentar deter um conflito antes que se chegue a uma
guerra em alta escala. Porém, para conseguir isso, vou precisar obviamente de
ajuda. Se eu aparecer de repente no acampamento dos soldados humanos, eles
me matarão. E, mesmo que não me matem, não terão como compreender o que
eu vou lhes falar. Portanto, algum humano que compreenda a nossa língua deve
me acompanhar para traduzir minhas cores, caso contrário não haverá
possibilidade de ser iniciado um diálogo significativo...

Depois que Richard e Nicole disseram ao Chefe Otimizador que concor-


davam com o conceito básico proposto por Archie, os dois humanos e seu colega
octoaranha foram deixados a sós para discussão dos detalhes. A idéia de Archie
era direta. Nicole e ele chegariam juntos, perto do acampamento próximo ao mar
Cilíndrico, e solicitariam um encontro com Nakamura e os outros chefes
humanos. Nesse encontro, Archie e Nicole explicariam que as octoaranhas eram
uma espécie pacífica que não tinha reivindicações territoriais do lado norte do
mar Cilíndrico. Archie pediria que os humanos se retirassem do acampamento
deles e parassem de sobrevoar aquela área. Se necessário, em sinal de boa
vontade das octoaranhas, Archie ofereceria suprimentos de comida e água para
ajudar os humanos nas dificuldades que estavam atravessando. Seria
estabelecido um relacionamento permanente entre as duas espécies e preparado
um tratado para codificar o acordo.
— Meu Deus — disse Richard, ao terminar a tradução dos comentários de
Archie. — E eu que pensei que Nicole é que fosse idealista!
Archie não entendeu a observação de Richard, e Nicole explicou pacien-
temente à octoaranha que os líderes do Novo Éden provavelmente não seriam tão
razoáveis quanto Archie supunha.
— É bem possível — falou ela, mostrando o perigo da proposta de Archie
— que eles matem a nós dois, antes mesmo que possamos dizer alguma coisa.
Archie insistiu que sua proposta acabaria sendo aceita, pois atendia cla-
ramente aos interesses dos humanos que viviam no Novo Éden.
— Olhe, Archie — disse Richard irritado —, o que você disse não está
certo. Há muitos seres humanos, inclusive Nakamura, que não dão a mínima
para o que é bom para a sua colônia. Na verdade, o bem-estar comum nem ao
menos é considerado na função objetiva subconsciente, para usar os termos de
vocês, que rege o comportamento deles. Toda decisão é considerada a partir do
aumento de poder ou influência pessoal que poderá trazer. Na nossa história, os
líderes sempre destroem seu próprio país, ou colônias, na tentativa de manter o
poder.
A octoaranha permaneceu obstinada.
— O que você está descrevendo não pode ser verdade em espécies avança-
das — insistiu Archie. — As leis fundamentais da evolução indicam claramente
que as espécies cujo valor básico é o bem-estar do grupo sobreviverão àquelas em
que o indivíduo é supremo... Você está sugerindo que os seres humanos são uma
aberração, uma anomalia da natureza que viola um fundamento...
Nicole interrompeu.
— Isso tudo é muito interessante, mas nós temos assuntos mais urgentes.
Precisamos fazer um plano de ação que não tenha ciladas... Richard, se você não
aprova o plano de Archie, o que sugere?
Richard refletiu um instante antes de falar.
— Creio que Nakamura levou o Novo Éden a essa ação contra as octoa-
ranhas por muitas razões, uma das quais é afastar a crítica das falhas internas
de seu governo. Acho que ele só será dissuadido de sua idéia se os cidadãos
forem ferozmente contra a guerra, e, sinto dizer, acho que isso só acontecerá se
os colonos se convencerem de que a guerra será um desastre.
— Então você acha que haverá necessidade de ameaças? — perguntou
Nicole.
— Pelo menos um mínimo. Uma demonstração do poder militar das
octoaranhas seria perfeito — falou Richard.
— Mas isso é impossível — comentou Archie —, pelo menos nas cir-
cunstâncias atuais.
— Por quê? — perguntou Richard. — O Chefe Otimizador falou com
confiança que ganharia qualquer guerra que houvesse. Se vocês atacassem e
destruíssem aquele acampamento...
— Agora é você que não está nos entendendo — disse Archie. — Como a
guerra, ou qualquer conflito que possa resultar em mortes deliberadas, é uma
forma não-ótima de resolver atritos, nossa colônia tem regras muito rígidas
relativas a ações hostis conjuntas. Os controles são construídos na nossa
sociedade para que a guerra seja um recurso extremo... Nós não temos um
exército permanente nem armamentos em estoque, por exemplo... E há outras
restrições também. Todos os otimizadores que participam de uma declaração de
guerra, e todas as octoaranhas que se engajam em um conflito armado, são
exterminados imediatamente após a guerra.
— O quê? — disse Richard, sem acreditar no seu tradutor. — Isso não é
possível.
— É sim — replicou Archie. — Como você pode imaginar, esses fatores
detêm significativamente nossa participação em hostilidades não-defensivas. O
Chefe Otimizador sabe que assinou a própria morte duas semanas atrás, quando
autorizou o início das preparações de guerra. As oitenta octoaranhas que
trabalham agora no Domínio da Guerra serão exterminadas quando a guerra
acabar ou a ameaça de guerra for oficialmente afastada... Eu próprio, por fazer
parte das discussões de hoje, serei colocado na lista de extermínio se a guerra for
declarada.
Richard e Nicole estavam sem fala.
— A única justificativa possível de uma octoaranha para a guerra —
continuou Archie — é uma ameaça incontestável aos próprios sobreviventes da
colônia. Uma vez identificada e reconhecida a ameaça, nossa espécie passa por
uma metamorfose e leva avante a guerra, sem misericórdia, até a ameaça ser
extinta ou nossa colônia ser destruída... Há algumas gerações, otimizadores
muito sábios perceberam que os indivíduos octoaranhas que se ocupavam em
matar e com o projeto de matar ficavam tão alterados psicologicamente por suas
experiências que se tornavam um grande problema para as operações de uma
colônia pacífica. Por isso foram estabelecidas as cláusulas adicionais de
extermínio.
Richard e Nicole continuaram em silêncio, mesmo depois que Archie
terminou de falar. A certa altura, Richard pediu a Archie para sair da sala para
que pudesse falar com sua mulher em particular, mas logo se lembrou dos
quadróides que estavam presentes em toda parte.
— Nicole, querida — disse finalmente —, não aprovo o plano de Archie por
vários motivos. Para começar, eu devo ir com ele e não você...
Quando Nicole fez menção de interrompê-lo, Richard fez um gesto com as
mãos para que ela se calasse.
— Agora quero que você me ouça. Ao longo do nosso casamento, especi-
almente desde que saímos de Nodo, foi sempre você quem tomou a dianteira das
coisas, quem deu seu tempo e energia em prol da família ou da colônia... Agora é
a minha vez... Neste caso específico, acredito que sou mais adequado para a
tarefa proposta. Posso facilmente assustar nossos conterrâneos, descrevendo
imagens dos golpes terríveis proferidos pelas octoaranhas...
— Mas você não fala a língua deles muito bem — protestou Nicole. — Sem
o seu tradutor...
— Já pensei nisso — falou Richard. — E acho que, por várias razões, Ellie
e Nikki devem ir com Archie e comigo. Primeiro, levando uma criança, a
probabilidade de sermos mortos pela tropa de Nakamura é muito menor.
Segundo, Ellie é completamente fluente na língua das octoaranhas e pode me
ajudar, caso eu não tenha o tradutor à mão ou ele falhe na tradução. Terceiro, e
talvez a razão mais importante, é que o único crime que Nakamura e sua corja
podem atribuir às octoaranhas é o seqüestro de Ellie. Se Ellie aparecer, saudável
e elogiando o inimigo alienígena, o motivo da guerra acabará.
Nicole franziu a testa.
— Não gosto da idéia de meter Nikki nisso... É muito perigoso. Eu não me
perdoaria se alguma coisa acontecesse com a menina...
— Nem eu — falou Richard. — Mas acho que Ellie não iria sem ela...
Nicole, não existem bons planos... Teremos de escolher o que for menos
insatisfatório.
Durante uma breve pausa na conversa, Archie falou em cores.
— Os pontos levantados por Richard são excelentes — disse a octoaranha
para Nicole. — E há mais uma razão para você ficar na Cidade de Esmeralda: o
resto dos humanos que forem deixados aqui irá precisar de sua liderança nos
dias difíceis que terão pela frente.
A cabeça de Nicole estava fervendo. Ela não tinha pensado em Richard se
apresentar como voluntário.
— Você está me dizendo que aprova a sugestão de Richard, inclusive de
levar Ellie e Nikki junto? — perguntou Nicole.
— Isso mesmo — respondeu a octoaranha.
— Mas, Richard — continuou ela, virando-se para o marido —, você odeia
toda essa baboseira política, para usar suas próprias palavras. Tem certeza de
que pensou bem nisso?
Richard fez que sim, e Nicole deu de ombros.
— Tudo bem, então. Vamos falar com Ellie. Se ela concordar, o plano está
feito.

O Chefe Otimizador achou que a emenda à proposta tinha possibilidade


de sucesso, mas viu-se forçado a lembrar a todos que, com base na análise das
octoaranhas, havia uma grande probabilidade de Archie e Richard serem mortos.
O coração de Nicole quase parou de bater quando ela traduziu as palavras do
líder das octoaranhas. O Chefe Otimizador não estava dizendo nada que Nicole
não soubesse, mas ela tinha estado tão envolvida no plano e nas discussões
sobre o assunto que não pensara nos possíveis resultados das decisões tomadas.
Nicole falou muito pouco enquanto os chefes traçavam uma linha de ação.
Quando ouviu Richard dizer que Archie e ele sairiam da Cidade de Esmeralda um
tert depois do próximo alvorecer, com ou sem Ellie e Nikki, Nicole estremeceu.
Amanhã, passou-lhe rapidamente pela cabeça. Amanhã nossa vida vai mudar de
novo.
Ela ficou calada na viagem de volta para a sua zona. Enquanto Richard e
Archie falavam sobre vários assuntos diferentes, Nicole tentava lutar contra o
medo cada vez maior que sentia. Uma voz interior, que não ouvia há anos, dizia-
lhe que nunca mais veria Richard depois que ele partisse. Será uma reação
peculiar da minha parte?, perguntou a si mesma em tom crítico. Estarei com
dificuldade de deixar Richard ser o herói?
A premonição ficou mais forte, apesar de Nicole tentar combatê-la. Ela
lembrou-se de um terrível pesadelo que tivera aos dez anos de idade, quando
acordou gritando no seu quarto da casinha de Chilly-Mazarin: "Mamãe morreu."
Seu pai tentara consolá-la, explicando que sua mãe estava viajando, visi-
tando a família na Costa do Marfim. O telegrama anunciando a morte da sua mãe
chegara sete horas depois.
— Se vocês não têm armas em estoque nem soldados treinados — disse
Richard —, como vão poder se preparar para se defender numa guerra?
— Isso eu não posso lhe dizer — falou Archie. — Mas só sei que um
conflito agora entre as duas espécies resultaria na aniquilação da civilização
humana de Rama.
Nicole não conseguia acalmar seu coração atormentado. Por mais que se
dissesse que estava exagerando, o medo premonitório não passava. Ela pegou a
mão de Richard, e ele continuou a conversar com Archie.
Nicole olhou dentro dos olhos dele. Estou orgulhosa de você, Richard, mas
também estou assustada. Continuou a pensar, sentindo as lágrimas escorrendo-
lhe pelo rosto. E ainda não estou pronta para dizer adeus.

Era muito tarde quando Nicole foi para a cama. Ela tinha acordado Ellie
suavemente, sem perturbar Nikki nem os gêmeos Watanabe, que estavam dor-
mindo com os Wakefield para que Nai e Patrick pudessem passar a noite de
núpcias sozinhos. Ellie fez muitas perguntas. Richard e Nicole lhe explicaram o
plano, inclusive tudo de importante que tinham ouvido de Archie e do Chefe
Otimizador naquela noite. Ellie ficou com medo, mas finalmente concordou em
acompanhar Richard e Archie no dia seguinte, levando Nikki.
Nicole não conseguiu dormir de verdade. Virou-se na cama durante uma
hora, até entrar numa seqüência de sonhos curtos e caóticos. No último sonho,
estava com sete anos, na Costa do Marfim, no meio de uma cerimônia Poro.
Estava seminua na água, e a leoa rondava à beira do lago. A pequena Nicole
respirou fundo e mergulhou na água. Quando subiu à tona viu Richard, jovem e
sorrindo, no lugar onde a leoa tinha estado. Mas, à medida que o olhava, ele ia
envelhecendo rapidamente, tornando-se o Richard que estava ao seu lado na
cama. Então ela ouviu a voz de Omeh. "Olhe com cuidado, Ronata", disse a voz.
"E lembre-se..."
Nicole acordou. Richard dormia tranqüilamente. Ela sentou-se na cama e
deu uma batida na parede. Um vaga-lume solitário apareceu na porta,
iluminando um pouco o quarto. Nicole olhou para o marido, viu o cabelo e a
barba grisalhos e lembrou-se do tempo em que eram pretos. Lembrou-se do ardor
e do humor dele quando começou a cortejá-la em Nova York. Nicole fez uma
careta, respirou fundo, beijou seu dedo indicador e colocou-o nos lábios de
Richard. Ele não se mexeu. Nicole ficou imóvel por uns minutos, estudando as
feições do marido. As lágrimas desceram pelo seu rosto, caindo pelo queixo e
pelos lençóis.
— Eu te amo, Richard — disse baixinho.
GUERRA EM RAMA

RELATÓRIO Número 319


Hora da Transmissão: 156 307 872 574.2009
Hora desde o Primeiro Estágio de Alerta: 111.9766
Referências: Nodo 23-419
Espaçonave 947
Viajantes espaciais 47 249 (A & B)
32 806
2 666

Durante o último intervalo, a estrutura e a ordem das comunidades dos


viajantes espaciais dentro da nave continuaram a desintegrar-se. Apesar das
advertências das octoaranhas (viajante espacial # 2 666) e suas louváveis
tentativas de evitar um grande conflito entre os humanos (# 32 806), agora é mais
provável que uma guerra desastrosa entre as duas espécies, que deixaria muito
poucos sobreviventes, venha a ocorrer nos próximos intervalos. A situação,
portanto, reúne todas as condições necessárias para uma intercessão de estágio
dois.
A atividade intercessionária anterior foi declarada um fracasso, basica-
mente porque a espécie mais agressiva, a dos humanos, é insensível a toda uma
série de técnicas intercessionárias sutis. Só poucos humanos responderam às
várias tentativas de alterar seu comportamento hostil, e os que reagiram não
foram capazes de parar o genocídio das aves e dos sésseis (# 47 249 — A & B)
perpetrado por seus dirigentes.
Os humanos são organizados de uma forma hierárquica rígida,
encontrada com freqüência em espécies anteriores à dos viajantes espaciais. Eles
continuam a ser dominados por uma liderança centralizada na manutenção do
poder pessoal. O bem-estar da comunidade humana e até mesmo sua
sobrevivência são subordinados na função objetiva implícita dos atuais líderes
humanos à continuação de um sistema político que lhes dê absoluta autoridade.
Conseqüentemente, há pouca probabilidade de que a ameaça de um grande
conflito entre os humanos e as octoaranhas seja evitada através de apelos lógicos.
Um pequeno quadro de humanos, inclusive quase toda uma família que
viveu em Nodo por mais de um ano, permanece na cidade principal das
octoaranhas. Seu intercâmbio com seus hospedeiros demonstrou que é possível
as duas espécies viverem juntas em harmonia. Recentemente, uma delegação
mista desses humanos e de uma octoaranha decidiu fazer um esforço conjunto
para evitar uma guerra em larga escala entre as espécies, entrando em contato
para evitar uma guerra em larga escala entre as espécies, entrando em contato
direto com os líderes da colônia humana. Porém, a probabilidade de essa
delegação ter sucesso é muito pequena.
Até agora as octoaranhas não tiveram nenhuma atitude hostil, porém já
começaram a preparar-se para a guerra contra os humanos. Embora elas só
venham a lutar se concluírem que a sobrevivência da sua comunidade está em
perigo, suas avançadas técnicas biológicas fazem com que o resultado de uma
guerra dessas possa ser previsto.
O que não se sabe ao certo é como os humanos reagirão quando o conflito
aumentar e eles tiverem grandes baixas. É possível que a guerra termine
rapidamente, e que com o tempo as duas comunidades sobreviventes possam
chegar de novo a uma condição próxima do equilíbrio. Porém, com base nos
dados disponíveis pela observação dos humanos, há probabilidade de que essa
espécie continue a guerrear até que quase todos estejam mortos. Tal resultado
destruiria todos os vestígios de pelo menos uma das duas sociedades de viajantes
espaciais restantes na nave. Para evitar um resultado tão desvantajoso para o
projeto, é recomendada a consideração da intercessão do estágio dois.

2
Nicole acordou com o barulho das três crianças na sala de estar. Quando
estava vestindo o roupão, Ellie chegou na porta do quarto e perguntou se ela
tinha visto a boneca favorita de Nikki.
— Acho que está debaixo da cama — respondeu Nicole.
Ellie voltou a fazer as malas. Nicole ouviu Richard no banheiro. Está che-
gando a hora, pensou, quando sua neta apareceu de repente na porta.
— Mamãe e eu estamos indo embora, vovó — disse a menininha sorrindo.
— Nós vamos ver o papai.
Nicole abriu os braços e Nikki correu para lhe dar um abraço.
— Eu sei, querida — falou Nicole, apertando a neta nos braços e passando
a mão em seus cabelos. — Vou sentir a sua falta, Nikki — disse.
Um instante depois, os gêmeos Watanabe entraram no quarto.
— Estou com fome, sra. Wakefield — disse Galileu.
— Eu também — acrescentou Kepler.
Nicole soltou sua neta com relutância e atravessou o quarto.
— Tudo bem, meninos. Vou preparar seu café da manhã em um instante.
Quando as três crianças tinham quase terminado de comer, Max, Eponine e
Marius chegaram na porta.
— Adivinhe uma coisa, tio Max — falou Nikki antes que Nicole tivesse
tempo de cumprimentar os Pucketts. — Eu vou ver o meu papai.
As quatro horas passaram depressa. Richard e Nicole explicaram tudo
duas vezes, primeiro para Max e Eponine e depois para os recém-casados, que
ainda estavam radiantes com os prazeres de sua noite de núpcias. Quando foi
chegando a hora de Richard, Ellie e Nikki partirem, a excitação e energia que
tinham caracterizado a conversa da manhã começaram a diminuir. Nicole sentia-
se tonta. Relaxe e sorria, disse para si mesma. Você não vai facilitar as coisas se
ficar triste.
Max foi o primeiro a despedir-se.
— Venha cá, princesa, dar um beijão no tio Max — disse para Nikki, que
seguiu as ordens obedientemente. Então Max levantou-se e atravessou a sala
para falar com Ellie, que estava conversando com sua mãe. — Cuide bem dessa
garotinha, Ellie — disse, abraçando-a —, e não deixe aqueles cretinos criarem
uma encrenca. — Max apertou a mão de Richard e levou os gêmeos Watanabe
para fora da sala.
O astral na sala estava ligeiramente alterado. Apesar de ter prometido a si
mesma manter-se calma, Nicole sentiu um certo pânico quando percebeu de
repente que tinha apenas alguns minutos para se despedir de todos. Patrick, Nai,
Benjy e Eponine tinham seguido Max e estavam se despedindo do trio, já pronto
para partir.
Nicole tentou abraçar Nikki outra vez, mas a menina correu para fora,
para brincar com os gêmeos. Ellie terminou de despedir-se de Eponine e virou-se
para Nicole.
— Vou sentir sua falta, mamãe. Te amo muito. Nicole lutou para manter-
se equilibrada.
— Eu não podia ter tido uma filha melhor que você — disse. Enquanto as
duas mulheres se abraçavam, Nicole falou baixinho no ouvido da filha. — Tome
cuidado. Há muita coisa em jogo...
Ellie se soltou e olhou dentro dos olhos da, mãe, respirando fundo.
— Eu sei, mamãe — disse ela com um ar sombrio —, e estou assustada.
Espero não desapontar...
— Você não vai desapontar ninguém — disse Nicole, batendo no ombro da
filha. — Lembre-se do que o grilo do Pinóquio disse.
Ellie sorriu.
— E sempre deixe sua consciência ser seu guia.
— Archie chegou! — Nicole ouviu Nikki gritar, e procurou o marido. Onde
está Richard?, pensou assustada. Eu não me despedi dele... Ellie já se dirigia para
a porta, carregando duas mochilas.
Nicole mal pôde respirar quando ouviu Patrick dizer:
— Onde está o tio Richard?
E uma voz respondeu do escritório:
— Estou aqui.
Nicole saiu correndo pelo corredor até o escritório. Richard estava sentado
no chão no meio dos seus componentes eletrônicos, com a mochila aberta. Nicole
parou na porta por um segundo para tomar fôlego.
Richard ouviu-a por trás da porta e virou-se.
— Oi, querida — disse ele calmamente. — Ainda estou tentando descobrir
quantos componentes de back-up devo levar para os meus tradutores.
— Archie chegou — disse Nicole com tranqüilidade. Richard olhou para o
relógio.
— Acho que está na hora de ir. — Pegou um punhado de peças eletrônicas
e enfiou-as na mochila. Depois levantou-se e foi para perto de Nicole.
— Tio Richard — gritou Patrick.
— Estou indo num minuto — respondeu Richard.
Nicole começou a tremer assim que Richard pôs os braços à sua volta.
— Ei, está tudo bem... Nós já nos separamos antes — disse ele.
O medo de Nicole tornou-se tão grande que ela não conseguia falar.
Tentou desesperadamente armar-se de coragem, mas tudo em vão. Sabia que era
a última vez que tocaria no marido.
Nicole pôs uma das mãos por trás da cabeça de Richard para poder beijá-
lo. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Queria deter o tempo, fazer com que
aquele momento durasse uma eternidade. Seus olhos fotografaram o rosto de
Richard, e ela beijou-o suavemente nos lábios.
— Eu te amo, Nicole — disse Richard.
Por um instante, ela achou que não seria capaz de responder, mas final-
mente conseguiu dizer:
— Eu também te amo.
Richard pegou a mochila e acenou um adeus para Nicole, que ficou de pé
na porta vendo-o sair. Dentro de sua cabeça, ela ouviu a voz de Omeh dizendo:
"Lembre-se."

Nikki mal podia acreditar no que via. Ali em frente, fora dos portões da
Cidade de Esmeralda, um emassauro esperava por eles, como Archie dissera. Ela
ficou impaciente quando sua mãe ajeitou seu zíper.
— Posso dar comida para ele, mamãe? Posso? Posso? — perguntava Nikki.
Mesmo com o emassauro sentado no chão, Richard teve de ajudar Nikki a montar
o animal.
— Obrigado, vovô — disse a menina quando se acomodou
confortavelmente na concavidade do bicho.
— Os horários foram estudados com muito cuidado — disse Archie a
Richard e Ellie, quando se dirigiam para a floresta. — Chegaremos ao
acampamento quando as tropas estiverem começando a tomar o café da manhã.
Assim, todos nos verão.
— Como saberemos precisamente quando devemos aparecer? — per-
guntou Richard.
— Uns quadróides estão sendo orientados dos acampamentos do extremo
norte. Logo depois que os primeiros soldados acordarem e estiverem se
movimentando nas barracas, Timmy, sua ave amiga, sobrevoará as barracas no
escuro carregando uma mensagem escrita sobre a nossa chegada iminente. Nessa
mensagem informará que seremos precedidos pelos vaga-lumes, e que levaremos
uma bandeira branca, como você sugeriu.
Nikki percebeu uns olhos estranhos olhando para ela da floresta escura.
— Não é engraçado? — disse ela para sua mãe. Ellie não respondeu.

Archie parou o emassauro a cerca de um quilômetro do acampamento hu-


mano. As lanternas e outras luzes do lado de fora das barracas distantes
pareciam estrelas brilhando à noite.
— Timmy deve estar jogando nossa mensagem agora — falou Archie. Eles
se moviam cautelosamente no escuro há quase um tert; não queriam usar os
vaga-lumes para que não houvesse a menor possibilidade de serem notados antes
da hora. Nikki dormia pacificamente, com a cabeça no colo da mãe. Richard e
Ellie estavam tensos.
— O que faremos — perguntou Richard antes de pararem — se as tropas
atirarem em nós antes de podermos falar alguma coisa?
— Daremos meia-volta e fugiremos o mais rápido possível — respondeu
Archie.
— E se eles nos perseguirem com helicópteros e holofotes? — perguntou
Ellie.
— Em alta velocidade, o emassauro leva quase quatro wodens para chegar
à floresta — disse Archie.
Timmy voltou para o grupo e relatou a Archie, numa língua que misturava
guinchos e cores, que sua missão fora cumprida. Depois, Richard e Timmy se
despediram. Quando Richard fez um carinho na barriga da ave, percebeu em
seus olhos grandes uma emoção que nunca vira antes. Um instante depois,
quando Timmy voou para a Cidade de Esmeralda, um par de vaga-lumes
iluminou o caminho e dirigiu-se para o acampamento humano. Richard liderava
o cortejo, agarrando a bandeira branca com a mão direita. O emassauro vinha
uns cinqüenta metros atrás, carregando Ellie, Archie e Nikki, que ainda dormia.
Richard viu os soldados através dos seus binóculos quando estava a uns
quatrocentos metros de distância deles. Contou vinte e seis soldados ao todo,
inclusive três com rifles e dois vasculhando a escuridão com binóculos.
Conforme planejado, Ellie, Nikkie e Archie desmontaram quando estavam
a uns duzentos metros do acampamento. O emassauro foi mandado de volta para
a Cidade de Esmeralda antes de os quatro se aproximarem dos soldados
humanos. Nikki, que ainda não estava bem acordada, começou a reclamar; mas,
ao sentir a importância do pedido de sua mãe, ficou em silêncio.
Archie caminhava entre os dois adultos. Nikki segurava a mão de sua mãe
e tentava seguir seu passo.
— Ei, vocês aí — gritou Richard quando achou que já podia ser ouvido. —
Eu sou Richard Wakefield. Nós viemos em paz — disse, acenando a bandeira
branca com força. — Estou com minha filha Ellie, minha neta Nikki e um
representante das octoaranhas.
Deve ter sido uma cena incrível para os soldados, pois nenhum deles
tinha visto uma octoaranha antes. Com os vaga-lumes sobrevoando as tropas,
Richard e seu grupo emergiram do escuro.
Um dos soldados deu um passo à frente.
— Eu sou o capitão Enrico Pioggi, comandante deste acampamento...
Aceito sua rendição em nome das forças armadas do Novo Éden.

Como a chegada iminente deles tinha sido anunciada no acampamento


menos de meia hora antes, o comando do Novo Éden não teve tempo de formular
um plano para os prisioneiros. Assim que foi confirmado que um grupo composto
de um homem, uma mulher, uma criança e uma octoaranha alienígena
aproximava-se do acampamento, o capitão Pioggi comunicou-se de novo pelo
rádio com o quartel-general de Nova York e pediu instruções de procedimento. O
coronel encarregado da campanha lhe disse para cuidar dos prisioneiros e
esperar novas ordens.
Richard previra que nenhum dos oficiais se disporia a tomar qualquer
atitude definitiva sem antes consultar o próprio Nakamura. Ele dissera a Archie,
durante a longa viagem no emassauro, que seria importante aproveitar o contato
com os soldados para começar a rebater a propaganda que o governo do Novo
Éden estava espalhando.
— Esta criatura — disse Richard em voz alta, depois que os prisioneiros
foram revistados e as tropas curiosas os rodearam — é uma octoaranha. Todas as
octoaranhas são muito inteligentes, de certa forma mais inteligentes do que nós;
cerca de quinze mil vivem no Hemicilindro Sul, que se estende daqui até a base
do pólo sul. Minha família e eu vivemos no território delas há mais de um ano,
por livre escolha, e consideramos as octoaranhas muito pacíficas. Minha filha
Ellie e eu viemos aqui com este representante, a quem chamamos de Archie, para
tentar encontrar um meio de deter um confronto militar entre nossas duas
espécies.
— A senhora não é esposa do dr. Robert Turner? — perguntou um sol-
dado. — A que foi raptada pelas octoaranhas?
— Sou — respondeu Ellie com uma voz bem clara. — Só que não fui
exatamente raptada. As octoaranhas queriam estabelecer comunicações conosco
e não conseguiam. Eu fui levada porque elas acreditavam que pudesse aprender
a sua língua.
— Essa coisa fala? — perguntou outro soldado incrédulo.
Até aquele momento, Archie tinha ficado quieto, como planejado. Os
soldados olharam estupefatos quando as cores começaram a jorrar do lado direito
da sua fenda e a passar em volta da sua cabeça.
— Archie está cumprimentando vocês — traduziu Ellie. — Disse que quer
que vocês saibam que nem ele nem qualquer membro da sua espécie pretendem
lhes fazer mal. Disse também que sabe ler os lábios, e que terá prazer em
responder a qualquer pergunta de vocês...
— Isso é verdade? — perguntou um soldado.
Enquanto isso, o capitão Pioggi, irritado, relatava pelo rádio ao coronel em
Nova York o que estava presenciando.
— Sim, senhor — dizia ele —, cores em volta da cabeça dela... cores dife-
rentes, senhor, vermelho, azul, amarelo... como se fossem retângulos, retângulos
móveis em volta da cabeça dela, e depois outros... O quê, senhor? A mulher, a
esposa do doutor, senhor... aparentemente sabe o significado das cores... Não,
senhor, não são letras coloridas, só faixas coloridas... Nesse instante, senhor, o
alienígena está conversando com os soldados... Não, senhor, eles não estão
usando cores... Segundo a mulher, a octoaranha sabe ler os lábios... como se
fosse uma pessoa surda, senhor... eu creio que é a mesma técnica... de qualquer
forma, ela responde em cores e a esposa do doutor traduz... Nenhuma arma,
senhor... muitos brinquedos, roupas, objetos de aspecto estranho que o
prisioneiro Wakefield diz serem componentes eletrônicos... Brinquedos, senhor,
eu disse brinquedos... a menininha trouxe vários brinquedos na sua mochila...
Não, nós não temos um escaneador aqui... Muito bem, senhor... o senhor tem
idéia de quanto tempo vamos ter de esperar?

Quando o capitão Pioggi finalmente recebeu ordens para mandar os


prisioneiros para Nova York em um dos helicópteros, Archie tinha impressionado
todos os soldados do acampamento. A octoaranha começara a demonstrar suas
prodigiosas habilidades mentais multiplicando de cabeça números de cinco e seis
casas decimais.
— Como podemos saber que aquela octoaranha está dando a resposta
certa? — perguntou um dos soldados. — Ela jorra uma porção de cores e está
acabado.
— Meu rapaz — disse Richard dando uma gargalhada —, você não acabou
de verificar na calculadora do tenente que o número dado pela minha filha estava
correto? Você acha que ela computou o resultado de cabeça?
— Ah, é mesmo — disse o jovem. — Entendo o que o senhor quer dizer. O
que realmente assombrou os soldados foi a memória fenomenal de
Archie. A um sinal de Richard, um dos elementos da tropa listou uma se-
qüência de centenas de números em uma folha de papel, e depois leu para Archie
um número de cada vez. A octoaranha repetiu os números todos através de Ellie,
sem errar nenhum. Alguns soldados acharam que havia algum truque naquilo,
que talvez Richard estivesse passando sinais codificados para Archie. Mas
quando Archie duplicou sua façanha em condições cuidadosamente controladas,
quem ainda tinha dúvidas saiu convencido de sua memória prodigiosa.
O ambiente do acampamento era de congraçamento quando chegaram as
ordens para que os prisioneiros fossem transportados para Nova York. A primeira
parte do plano deles teve mais sucesso do que o esperado. Entretanto, Richard
não estava muito confiante quando eles subiram no helicóptero para atravessar
uma parte do mar Cilíndrico.

Eles só ficaram em Nova York por aproximadamente uma hora. Guardas


armados receberam os prisioneiros no heliporto, na praça ocidental, confiscaram
as mochilas, apesar dos protestos veementes de Richard e Nikki, e fizeram com
que eles caminhassem até o Porto. Richard carregava Nikki nos braços, e mal
teve tempo de admirar seus arranha-céus preferidos projetando-se na escuridão.
O iate que atravessou com eles a parte norte do mar Cilíndrico era seme-
lhante aos barcos que Nakamura e seus asseclas usavam em suas farras no lago
Shakespeare. Em hora alguma durante a travessia os guardas falaram com os
prisioneiros.
— Vovô — cochichou Nikki para Richard depois de fazer várias perguntas
que não foram respondidas —, esses homens não sabem falar?
Um aerobarco os esperava em um cais, recentemente construído para
fazer face às novas atividades em Nova York e no Hemicilindro Sul. Com grande
esforço e despesa, os humanos haviam feito uma abertura na barreira do sul,
numa área adjacente ao habitat das aves e dos sésseis, e construído um grande
ancoradouro.
No início, Richard ficou pensando por que seria que ele e seus companhei-
ros não tinham sido enviados diretamente para o Novo Éden de helicóptero. Mas
depois de um instante concluiu que, em virtude da enorme altura da barreira,
que se estendia bem acima da região em que a gravidade artificial causada pelo
movimento giratório da nave Rama começava a diminuir substancialmente, e da
provável falta de pilotos hábeis, havia um limite máximo de altitude para aqueles
helicópteros construídos às pressas. Quer dizer, pensou Richard quando entrou
no aerobarco, que os humanos devem movimentar todo o seu equipamento e seu
pessoal por esse cais ou através de um fosso e um túnel debaixo do segundo
habitat.
O aerobarco era guiado por uma biota Garcia. Em frente e atrás deles
havia dois outros aerobarcos, ambos com homens armados. Eles atravessaram a
escuridão da planície Central, Richard sentado no banco da frente ao lado da
Garcia, e Archie, Ellie e Nikki instalados no banco de trás. Richard virou-se para
Archie e ia lembrar-lhe dos cinco tipos de biotas do Novo Éden quando a Garcia o
interrompeu:
— O prisioneiro Wakefield deve olhar para a frente e permanecer em
silêncio — disse ela.
— Isso não é um tanto ridículo? — perguntou Richard.
A Garcia tirou o braço direito do timão e deu um tapa no rosto de Richard
com as costas da mão.
— Olhe para a frente e permaneça em silêncio — repetiu a biota, enquanto
Richard se encolhia com o impacto do tapa.
Nikki começou a chorar depois da súbita demonstração de violência. Ellie
tentou acalmar e confortar sua filha.
— Eu não gosto dela, mamãe — disse a garota. — Não gosto mesmo. Era
noite no Novo Éden quando eles passaram pela guarda na entrada do habitat.
Archie e os três humanos foram colocados em um carro elétrico aberto, guiado
por outra biota Garcia. Richard notou imediatamente que estava quase tão frio no
Novo Éden quanto em Rama. O carro balançava pela estrada, que estava em
péssimo estado de conservação, e dobrou em direção ao norte num lugar que
antes fora uma estação ferroviária para o vilarejo de Positano. Quinze a vinte
pessoas amontoavam-se em torno de fogueiras nas áreas de concreto que
rodeavam a antiga estação, e mais três a quatro dormiam pelo chão debaixo de
caixas de papelão e roupas velhas.
— O que essa gente está fazendo, mamãe? — perguntou Nikki. Ellie não
respondeu porque a Garcia virou-se rapidamente com ar hostil.
Já dava para ver em frente as luzes de neon de Vegas quando o carro fez
uma curva fechada para a esquerda, entrando numa área residencial em uma
seção arborizada que tinha sido parte da floresta de Sherwood. O carro fez uma
parada súbita em frente a uma grande casa tipo rancho. Dois orientais armados
com pistolas e punhais aproximaram-se do carro, fazendo gestos para os
passageiros descerem e dispensando a biota.
— Venham conosco — disse um dos homens.
Archie e seus companheiros humanos entraram na casa e foram levados
por uma longa escada que dava num porão sem janelas.
— Há comida e água na mesa — disse o outro homem, virando-se para
subir as escadas.
— Espere um instante — falou Richard. — Nossas mochilas... nós
precisamos das mochilas.
— Elas serão devolvidas — disse o homem com impaciência — assim que
seu conteúdo for inspecionado.
— E quando nós vamos ver Nakamura? — perguntou Richard.
O homem deu de ombros com um ar inexpressivo e subiu rapidamente as
escadas.

3
Os dias se passavam lentamente. No começo, Richard, Ellie e Nikki perde-
ram a referência do tempo, mas logo souberam que as octoaranhas têm um
relógio interno absolutamente preciso, que é calibrado e aprimorado durante sua
educação. Depois que Archie passou a usar as medidas humanas de tempo
(Richard usou sua eterna citação "Em Roma, como os romanos" para convencer
Archie a abandonar, pelo menos temporariamente, seus terts, wodens, fengs e
nillets), eles descobriram, olhando de relance os relógios digitais dos guardas que
lhes traziam comida e água, que o relógio interno de Archie não variava mais de
dez segundos em cada vinte e quatro horas.
Nikki divertia-se perguntando constantemente as horas a Archie. De tanto
observarem suas respostas, Richard e Nikki aprenderam a ler as cores de Archie
referentes ao tempo e a pequenos números. Na verdade, à medida que se
passavam os dias, as conversas rotineiras no porão ampliavam sensivelmente a
compreensão geral de Richard da língua das octoaranhas. Embora sua
capacidade de compreender as faixas coloridas ainda não fosse igual à de Ellie,
depois de uma semana Richard pôde conversar à vontade com Archie sem que
sua filha precisasse servir de intérprete.
Os humanos dormiam em futons no chão, e Archie enroscava-se por trás
deles nas poucas horas em que dormia por noite. Um dos orientais trazia-lhes
comida uma vez por dia, e sempre que um deles entrava Richard dizia que suas
mochilas ainda não tinham sido devolvidas e que eles estavam esperando pela
audiência com Nakamura.
Depois de oito dias, os banhos diários de esponja na bacia ao lado do
banheiro do porão não foram mais satisfatórios. Richard perguntou se podiam
tomar um banho de chuveiro com sabão. Algumas horas depois, um grande
tanque de lavar roupa foi trazido pelas escadas. Todos os humanos se banharam,
embora de início Nikki tivesse vergonha de ficar nua na frente de Archie. Richard
e Ellie sentiram-se bem melhor depois do banho e ficaram mais otimistas.
— Ele não vai poder nos manter escondidos aqui para sempre — disse
Richard. — Muitos soldados das tropas nos viram... e vão acabar revelando
alguma coisa, por mais que Nakamura os proíba.
— Tenho certeza de que virão nos buscar em breve — acrescentou Ellie,
animada.
Porém, no final da segunda semana de prisão, seu otimismo temporário
enfraqueceu. Richard e Ellie começaram a perder as esperanças. Nikki começou a
dar trabalho, reclamando o tempo todo que não tinha nada para fazer ali, e
Archie passou a lhe contar histórias para mantê-la ocupada. Suas lendas das
octoaranhas (ele teve uma longa discussão com Ellie sobre o sentido exato da
palavra, até que finalmente aceitou o termo) encantaram a menininha.
Quando as traduções de Ellie vinham com as frases ressonantes que Nikki
já associava aos contos de fadas contados na hora de dormir, "Era uma vez..." ou
"Antigamente, na época dos precursores...", ela começava a dar gritinhos de
alegria.
— Como eram os precursores, Archie? — perguntou a menina depois de
uma dessas histórias.
— As lendas não dizem — respondeu Archie. — Portanto, você pode criar
na sua imaginação a imagem que desejar.
— Essa história é verdadeira? — perguntou ela em outra ocasião. — As
octoaranhas realmente nunca teriam deixado seu próprio planeta se os
precursores não as tivessem levado para o espaço?
— Assim dizem as lendas — replicou Archie. — Dizem que quase tudo o
que aprendemos até há mais ou menos cinqüenta mil anos nos foi ensinado
originalmente pelos precursores.
Certa noite, depois que Nikki dormiu, Richard e Ellie perguntaram a
Archie sobre a origem das lendas.
— Elas existem há dezenas de milhares dos anos de vocês — disse a
octoaranha. — Os primeiros documentos referentes à nossa espécie contêm
muitas das histórias que tenho lhes contado nos últimos dias... As opiniões
quanto à veracidade das lendas são diversas... o dr. Azul acredita que elas sejam
verdadeiras, e provavelmente obra de algum exímio contador de histórias, um
alternativo cujo gênio não foi reconhecido durante sua vida.
— Se as lendas são verdadeiras — disse Archie respondendo a outra per-
gunta de Richard —, há muitos e muitos anos as octoaranhas eram criaturas
marinhas simples, que evoluíram com um mínimo de inteligência e consciência.
Foram os precursores que descobriram nosso potencial através do mapeamento
da nossa estrutura genética e que nos alteraram ao longo das gerações até nos
tornarmos o que éramos na época da Grande Calamidade.
— O que aconteceu com os precursores? — perguntou Ellie.
— Há muitas histórias sobre eles, algumas contraditórias. A maioria ou
todos os precursores que viviam originalmente no planeta conosco foram
provavelmente mortos na Grande Calamidade. Segundo algumas lendas, seus
povoados remotos em volta das estrelas próximas sobreviveram durante centenas
de anos, mas acabaram sucumbindo também. Uma das lendas diz que os
precursores continuaram a prosperar em outros sistemas estelares mais
favoráveis, e se tornaram a forma dominante de inteligência da galáxia. Não
sabemos. Só temos certeza de que a porção da terra do nosso planeta primitivo
ficou inabitável durante muitos e muitos anos, e que, quando a civilização das
octoaranhas aventurou-se novamente no mar, nenhum dos precursores estava
vivo.

Os quatro prisioneiros do porão desenvolveram seu próprio ritmo diário à


medida que as semanas se passavam. Toda manhã, antes que Nikki e Ellie
acordassem, Archie e Richard conversavam sobre uma série de assuntos de
interesse mútuo. Aquela altura, a leitura de lábios de Archie era quase perfeita, e
a compreensão de Richard das cores das octoaranhas era tão boa que Archie
raramente tinha de repetir o que havia dito.
Muitas conversas versavam sobre ciência. Archie era fascinado pela his-
tória da ciência na espécie humana. Ele queria saber que descobertas haviam
sido feitas e quando, o que havia suscitado as investigações ou experiências
básicas, e que modelos incorretos explicando fenômenos haviam sido descartados
em função de novos conceitos.
— Então foi a guerra que acelerou o desenvolvimento da aeronáutica e da
física nuclear na sua espécie — disse Archie certa manhã. — Que conceito
fantástico!... Você não pode imaginar — disse uns segundos depois — como é
espantoso para mim experimentar, ainda que indiretamente, a progressão do
conhecimento de vocês sobre a natureza... Nossa história é completamente
diferente. No início nossa espécie era ignorante de todo. Logo depois foi criado um
novo tipo de octoaranha, que não só pensava mas também observava o mundo e
compreendia o que estava vendo. Nossos mentores e criadores, os precursores, já
tinham explicações para tudo. Nossa tarefa como espécie era muito simples.
Aprendemos o que pudemos com nossos mestres. Naturalmente, não tínhamos o
conceito de tentativa e erro que faz parte da ciência. Portanto, não tínhamos idéia
alguma de como evoluem os componentes de uma cultura. A brilhante
engenharia dos precursores nos permitiu pular centenas de milhões de anos de
evolução. Nem preciso dizer que, infelizmente, não tínhamos nenhum preparo
para cuidar de nós próprios depois que ocorreu a Grande Calamidade. Segundo a
mais histórica de nossas lendas, nossa atividade intelectual primitiva durante as
centenas de anos seguintes limitou-se a acumular e compreender o maior
número possível das informações dos precursores que encontrássemos ou de que
nos lembrássemos. Nesse ínterim, como não tínhamos mais benfeitores para nos
transmitirem princípios éticos, nosso progresso sociológico foi negativo. Entramos
em um longo período no qual se questionava se as novas octoaranhas inteligentes
criadas pelos precursores sobreviveriam ou não...
Richard estava tomado pela idéia do que chamou de "espécie tecnológica
derivativa".
— Nunca pensei — disse ele a Archie certa manhã, com seu habitual
entusiasmo por descobertas — que pudesse haver uma espécie de viajantes do
espaço que nunca tivesse elaborado por conta própria as leis da gravidade, e
nunca tivesse deduzido, através de uma longa seqüência de experiências, as
essências da física, tais como as características do espectro eletromagnético. É
uma coisa incrível... Mas, agora que compreendo o que você está me dizendo, me
parece natural. Se a espécie A, de avançados viajantes do espaço, entrar em
contato com a espécie B, inteligentes mas de certa forma mais lentos
tecnologicamente, é perfeitamente lógico supor que, depois do contato, a espécie
B omita os degraus intermediários...
— O nosso caso — explicou Archie naquela mesma manhã — foi ainda
mais inusitado. O paradigma que você está descrevendo é na verdade bem
natural e aconteceu, segundo nossa história e as lendas, com grande freqüência.
Vários viajantes espaciais são mais derivativos, para usar o seu termo, do que
evolutivos. Vejamos as aves e os sésseis. A simbiose deles, que se desenvolveu
sem qualquer interferência externa, já existia em um sistema estelar próximo do
nosso planeta há milhares de anos, quando os precursores exploraram esse
sistema. As aves e os sésseis certamente nunca teriam desenvolvido a capacidade
de viajar no espaço por conta própria. Contudo, depois de encontrarem os
precursores e verem a primeira nave espacial, eles solicitaram e obtiveram a
tecnologia necessária para a viagem espacial... Nossa situação é genericamente
distinta, e definitivamente mais derivativa. Se nossas lendas forem verdadeiras,
os precursores já eram viajantes do espaço quando as octoaranhas ainda eram
totalmente inconscientes. Naquela época, nós não éramos capazes de conceber a
idéia de um planeta, e muito menos do espaço que o rodeava. Nosso destino era
decidido pelos seres avançados com os quais compartilhávamos nosso mundo. Os
precursores reconheceram o potencial da nossa estrutura genética e, através da
sua engenharia, nos aprimoraram, deram-nos uma inteligência, passaram-nos
informações e criaram uma cultura avançada que provavelmente nunca teria
existido...
Uma ligação profunda desenvolveu-se entre Richard e Archie em função
dessas conversas regulares no início das manhãs. Sem quaisquer outras
distrações, os dois intercambiavam seu amor fundamental pelo conhecimento.
Um passava seu conhecimento para o outro, enriquecendo assim sua admiração
mútua pelas maravilhas do universo.
Nikki quase sempre acordava antes de Ellie. Logo depois que ela termi-
nava o café da manhã, os adultos entravam na segunda parte da sua rotina
diária. Embora Nikki às vezes jogasse cartas com Archie, ela passava a maior
parte da manhã estudando. Eram três os professores. Nikki lia um pouco, fazia
contas de somar e subtrair, conversava com seu avô sobre ciência e natureza, e
com Archie sobre moral e ética. E também aprendeu o alfabeto das octoaranhas e
umas frases simples. Nikki era muito rápida com a língua das cores, fato que os
outros atribuíram aos seus genes alterados e à sua inteligência natural.
— Nossos jovens passam uma boa parte do tempo na escola discutindo e
interpretando casos que envolvem problemas morais — disse Archie a Richard e
Ellie certa manhã, durante uma discussão sobre educação. — Escolhem-se
situações reais de vida como exemplos, embora às vezes os fatos sejam
ligeiramente mudados para aguçar o interesse, e as jovens octoaranhas avaliam a
aceitabilidade das várias respostas possíveis. Isso é feito em discussões abertas.
— Isso é feito para expor os jovens bem cedo ao conceito de Otimização?
— perguntou Richard.
— Não exatamente — replicou Archie. — O que tentamos fazer é preparar
a juventude para a vida real, o que envolve um intercâmbio com outros, com
muitas escolhas comportamentais. Todo jovem é encorajado a usar os estudos de
casos para desenvolver seu próprio sistema de valor. Nossa espécie acredita que o
conhecimento não existe no vácuo. Só quando ele é parte integrante de uma
forma de viver é que tem um significado real...
Archie apresentava a Nikki estudos de casos com problemas éticos sim-
ples porém clássicos. Os temas básicos sobre mentira, justiça, preconceito e
egoísmo foram examinados nas oito primeiras aulas. As respostas da menina às
situações em geral eram tiradas de exemplos da sua própria vida.
— Galileu sempre vai fazer ou dizer o que for necessário para sua opinião
prevalecer — disse Nikki durante uma aula, mostrando que compreendia o
princípio fundamental levantado pelo caso em questão. — Para ele, o que ele quer
é mais importante do que qualquer outra coisa... Kepler é diferente. Ele nunca me
faz chorar...
Nikki fazia a sesta à tarde. Enquanto ela dormia, Richard, Ellie e Archie
trocavam comentários e impressões que salientavam as semelhanças e as
diferenças entre as duas espécies.
— Se entendi direito — disse Ellie um dia, depois de uma conversa ani-
mada sobre como os seres inteligentes e sensíveis deviam lidar com os membros
da sua comunidade que se comportam de modo anti-social —, sua sociedade é
muito menos tolerante do que a nossa... Há claramente uma forma preferida de
viver nas suas comunidades. As octoaranhas que não seguem esse modelo
preferido não só são afastadas cedo como não têm permissão para participar de
muitas atividades gratificantes e são exterminadas depois de um período de vida
mais curto que o normal...
— Na nossa sociedade — disse Archie em resposta —, o aceitável é sempre
claro; não é dúbio como na sua. Assim, os nossos indivíduos fazem suas escolhas
com pleno conhecimento das conseqüências... A propósito, o Domínio Alternativo
não é como uma das suas prisões. É um lugar onde as octoaranhas, e também
outras espécies, podem viver sem a regulamentação e a otimização necessárias
para o contínuo desenvolvimento e sobrevivência da colônia. Alguns alternativos
vivem até muito tarde, e são bastante felizes... Sua sociedade, pelo menos o que
eu pude observar dela, parece não compreender a inconsistência básica entre
liberdade individual e bem-estar comum. Essas duas coisas devem ser
cuidadosamente equilibradas. Nenhum grupo pode sobreviver, que dirá
prosperar, se o bem-estar de toda a comunidade não for mais importante do que
a liberdade individual. Tomemos como exemplo a alocação de recursos. Como
pode um ser dotado de inteligência justificar, em termos da comunidade como
um todo, o acúmulo de bens materiais por poucos indivíduos quando outros mal
têm o que comer, vestir e outras coisas essenciais?
No porão Archie não era reticente nem evasivo, como era às vezes na
Cidade de Esmeralda. Falava abertamente a respeito de todos os aspectos da sua
civilização, como se a missão que estava desempenhando junto com os humanos
o tivesse liberado, de certa forma, de todas as suas contenções. Estaria ele
enviando inconscientemente uma mensagem aos outros humanos que deviam
estar gravando aquelas conversas? Talvez. Mas até que ponto aquelas conversas
seriam compreendidas pelos homens de Nakamura, se eles não conheciam nada
da linguagem das cores? Não, era mais provável que Archie tivesse percebido,
melhor que seus companheiros humanos, que sua morte era iminente, e quisesse
que seus últimos dias fossem os mais significativos e estimulantes possíveis.
Certa noite, antes de Richard e Ellie dormirem, Archie disse que tinha
uma coisa pessoal para lhes contar.
— Eu não desejo alarmar vocês, mas já consumi quase todo o suprimento
de barrican da minha reserva. Se ficarmos aqui muito tempo e meu barrican
acabar, vou entrar na minha maturidade sexual, como vocês sabem. Segundo
nossos arquivos, vou me tornar agressivo e possessivo ao mesmo tempo. Espero
que não...
— Não se preocupe com isso — disse Richard, dando uma gargalhada. —
Eu já lidei com adolescentes antes... E certamente posso lidar com uma
octoaranha que não tem mais um temperamento perfeito.

Uma manhã, o guarda que trazia comida e água disse a Ellie para
preparar-se para sair com a menina.
— Quando? — perguntou Ellie.
— Daqui a dez minutos — respondeu o guarda.
— Para onde nós vamos? — perguntou ela outra vez. O guarda não disse
nada e desapareceu escada acima.
Enquanto Ellie se esforçava para ajeitar-se o melhor possível (tinha trazido
apenas três mudas de roupa e era difícil lavá-las), foi treinando com Richard e
Archie o que diria caso se encontrasse com Nakamura ou algum dos líderes da
colônia.
— Embora você vá dizer que as octoaranhas são uma espécie pacífica —
disse seu pai aos cochichos em um canto da sala —, não se esqueça de
acrescentar que só conseguiremos deter uma guerra se pudermos convencer
Nakamura de que ele não se sairá vitorioso de um conflito armado. É importante
que eles saibam que a tecnologia das octoaranhas é muito mais avançada do que
a nossa.
— Mas se me pedirem exemplos específicos?
— Eles não esperam que você saiba detalhes. Diga-lhes que eu posso dar
vários exemplos da tecnologia delas.
Ellie e Nikki foram levadas no carro elétrico até o hospital da colônia na
Cidade Central. As duas foram conduzidas pela entrada de emergência e
chegaram a um consultório árido, com duas cadeiras, um sofá que servia de
cama de exame e alguns equipamentos eletrônicos complexos. Ellie e Nikki
ficaram sentadas ali durante uns dez minutos, até o dr. Robert Turner entrar.
Ele estava muito envelhecido.
— Oi, Nikki — disse, sorrindo e agachando-se com os braços estendidos.
— Venha dar um abração no papai.
A menina hesitou por um instante e depois saiu correndo para o colo do
pai. Robert levantou-a e girou-a pela sala.
— Que bom te ver, Nikki.
Ellie levantou-se e ficou esperando. Depois de alguns segundos Robert
colocou a filha no chão e olhou para a esposa.
— Como vai, Ellie? — perguntou.
— Bem — disse ela, sentindo-se pouco à vontade de repente. — E como
vai você, Robert?
— Mais ou menos na mesma.
Os dois encontraram-se no meio da sala e abraçaram-se. Ellie tentou
beijá-lo com ternura, mas ele beijou-a secamente e virou-se de lado. Ellie pôde
sentir como seu marido estava tenso.
— O que foi, Robert? — perguntou ela de forma carinhosa. — O que
aconteceu?
— Tenho trabalhado demais, como sempre — respondeu Robert, andando
até a cama de exame. — Por favor, tire sua roupa e deite-se aqui, Ellie. Quero ter
certeza de que você está bem.
— Nesse instante? — perguntou Ellie incrédula. — Antes de falarmos
sobre tudo o que aconteceu nesses meses em que estivemos separados?
— Sinto muito, Ellie — disse Robert, com um ligeiro sorriso. — Estarei
muito ocupado hoje à noite. A equipe do hospital está muito reduzida. Eu os
convenci a soltar vocês prometendo que...
Ellie chegou-se para o lado do marido e pegou a mão dele.
— Robert, eu sou sua esposa. Eu te amo. Não nos vemos há mais de um
ano. Certamente você pode tirar um minuto para...
Os olhos de Robert encheram-se de lágrimas.
— O que foi, Robert? Conte para mim — falou Ellie assustada. Ele se
casou com outra mulher, pensou ela em pânico.
— O que aconteceu com você, Ellie? — disse ele de repente em voz alta. —
Como você pôde dizer àqueles soldados que não foi raptada e que as octoaranhas
não eram hostis?... Você fez de mim motivo de chacota... Todos os cidadãos do
Novo Éden me viram na televisão, descrevendo aquele momento terrível em que
você foi seqüestrada... Minha lembrança desse dia é tão clara...
Ellie dera um passo atrás quando Robert começou a falar alto. Ficou ali
ouvindo, ainda segurando na sua mão, sentindo toda a angústia do marido.
— Fiz aqueles comentários, Robert, porque estava, e estou, tentando fazer
o possível para deter o conflito entre nós e as octoaranhas... Sinto muito se
minhas observações prejudicaram você.
— As octoaranhas fizeram lavagem cerebral em você, Ellie — disse Robert
num tom amargo. — Percebi isso assim que os homens de Nakamura me
mostraram os relatórios. De alguma forma, elas adulteraram sua mente a fim de
que você perdesse o senso de realidade.
Nikki ficou choramingando quando seu pai elevou a voz. Ela não com-
preendia por que seu pai e sua mãe estavam discutindo, mas sabia que as coisas
não iam bem. Agarrou-se na saia da mãe e pôs-se a chorar.
— Está tudo bem, Nikki — disse Ellie consolando a filha. — Seu pai e eu
estamos só conversando.
Quando Ellie olhou para o alto, viu Robert tirando da gaveta um capuz
transparente.
— Então você vai me fazer um eletroencefalograma para ter certeza de que
não me tornei uma octoaranha? — perguntou, nervosa.
— Isso não tem graça nenhuma, Ellie — replicou Robert. — Os meus
eletroencefalogramas saem esquisitos desde que voltei para o Novo Éden. Nem eu
nem o neurologista da minha equipe temos uma explicação para isso. Ele disse
que nunca viu mudanças tão radicais na atividade cerebral de um indivíduo, a
não ser por lesão grave.
— Robert — disse Ellie, segurando a mão dele de novo —, as octoaranhas
bloquearam sua memória quando você foi embora, para se protegerem... Talvez
isso explique em parte suas ondas cerebrais peculiares.
Robert olhou para Ellie durante longo tempo sem falar nada.
— Elas raptaram você, adulteraram meu cérebro... E só Deus sabe o que
terão feito com a nossa filha... E você ainda defende as octoaranhas?

Ellie submeteu-se ao eletroencefalograma e os resultados não mostraram


nenhuma irregularidade nem grandes diferenças dos testes de rotina que lhe
tinham feito nos primeiros dias da colônia, o que deixou Robert muito aliviado.
Depois ele disse a Ellie que Nakamura e o governo estavam dispostos a retirar as
acusações contra ela e deixá-la voltar para casa com Nikki, onde ficaria em prisão
domiciliar, se desse informações sobre as octoaranhas. Ellie pensou bem no
assunto e concordou. Robert sorriu e lhe deu um abraço.
— Ótimo. Você vai começar amanhã... Vou lhes dizer imediatamente.
Richard avisara Ellie, durante a viagem no emassauro, que Nakamura po-
deria tentar usá-la de alguma forma, provavelmente para justificar a realização
da guerra. Ellie sabia que, se aparentemente concordasse em ajudar o governo do
Novo Éden, estaria tomando um rumo muito perigoso. Preciso ter cuidado, disse a
si mesma enquanto mergulhava numa banheira com água quente, para não dizer
nada que possa prejudicar meu pai e Archie. Ou que possa dar às tropas de
Nakamura uma vantagem injusta em caso de uma guerra.
De início, Nikki estranhou o seu antigo quarto, mas depois de uma hora
brincando com seus brinquedos pareceu muito contente. Foi até a banheira e
perguntou à mãe:
— A que horas o papai vai chegar em casa?
— Ele vai chegar tarde, querida. Depois que você for para a cama dormir
— respondeu Ellie.
— Eu gostei do meu quarto, mamãe. É muito melhor do que aquele lá no
porão.
— Que bom — replicou Ellie. A menininha sorriu, saiu do banheiro e Ellie
respirou fundo. Não teria adiantado nada se eu tivesse me recusado, e eles nos
mandariam de novo para a prisão.

4
Katie não havia terminado sua maquiagem quando ouviu o zumbido. Deu
uma baforada no cigarro que queimava no cinzeiro ao seu lado e apertou o botão
em que estava escrito "Falar".
— Quem é? — perguntou.
— Sou eu — foi a resposta.
— O que está fazendo aqui no meio do dia?
— Tenho notícias importantes — disse o capitão Franz Bauer. — Abra a
porta para eu subir.
Katie tragou o cigarro e largou a guimba. Levantou-se, foi até o espelho e
ajeitou o cabelo antes que batessem à porta.
— As notícias devem ser importantes mesmo, Franz — disse Katie abrindo
a porta para ele. — Você sabe que eu tenho de dar orientações a duas garotas
daqui a uns minutos e detesto me atrasar.
Franz deu uma risada.
— Você pegou as duas saindo da linha de novo? Meu Deus, Katie, eu
detestaria se você fosse minha chefe.
Katie olhou para Franz com um ar de impaciência.
— Então? O que era tão importante assim?
Franz começou a andar pela sala sofisticada, onde se via um sofá branco e
preto, um conversador, duas cadeiras combinando e diversos objetos de arte
interessantes nas mesas laterais e na de centro.
— Não há possibilidade de nossa conversa estar sendo grampeada, não é?
— Você é quem deve saber, sr. Capitão de Polícia. Francamente, Franz —
disse ela olhando o relógio —, eu não tenho....
— Nós fomos informados por fonte segura — disse Franz — de que seu pai
está no Novo Éden neste instante.
— O quê? Como é possível isso? — falou Katie atônita, sentando-se no
sofá e pegando outro cigarro na mesa de centro.
— Um tenente da minha divisão é muito amigo de um dos guardas do seu
pai, que disse que Richard e uma daquelas octoaranhas estão presos num porão
de uma residência particular perto daqui.
Katie atravessou a sala e pegou o telefone.
— Daria — disse ela —, diga a Lauren e Atsuko que o encontro de hoje
está cancelado... Houve um imprevisto... Marque para amanhã às duas horas da
tarde... Ah, é mesmo, já ia me esquecendo... Que droga... Tudo bem, marque
então para as onze da manhã... Não, onze e meia, eu não quero acordar muito
cedo.
Katie voltou para o sofá, pegou o cigarro, deu uma tragada e soprou os
círculos para cima da cabeça.
— Quero que você me conte tudo o que soube a respeito do meu pai.
Franz informou Katie que, segundo lhe haviam dito, seu pai, sua irmã Ellie, sua
sobrinha e uma octoaranha tinham aparecido de repente, uns dois meses atrás,
levando uma bandeira branca, no acampamento do extremo sul do mar
Cilíndrico. Eles estavam bastante descontraídos e tinham brincado com os sol-
dados, disse Franz. Seu pai e sua irmã disseram para as tropas que estavam ali,
com um representante das octoaranhas, para ver se evitavam um conflito armado
entre as duas espécies através de negociações. Nakamura ordenou que o caso
fosse mantido em segredo e os levou... Katie estava andando pela sala.
— Meu pai está vivo — disse excitada —, e está aqui, no Novo Éden... Eu
já te disse, Franz, que meu pai é absolutamente o ser humano mais inteligente
que já existiu?
— Já disse isso umas dez vezes — disse Franz rindo. — Eu não imagino
como alguém possa ser mais inteligente do que você.
Katie balançou a mão.
— Ao lado dele eu pareço uma perfeita idiota... Ele sempre foi muito
querido. Eu podia fazer qualquer coisa — disse ela, parando de andar e tragando
seu cigarro. Seus olhos brilhavam quando ela soltou a fumaça. — Franz, eu
preciso ver meu pai... preciso mesmo.
— Isso é impossível, Katie — disse ele. — Ninguém deve saber que ele está
aqui. Eu seria expulso, ou talvez mais que isso, se alguém descobrisse que lhe
contei...
— Eu lhe imploro, Franz — disse Katie, atravessando a sala e pegando-o
pelos ombros. — Você sabe como detesto pedir favores a alguém... mas isso é
muito importante para mim.
Franz adorou que pelo menos uma vez Katie lhe pedisse alguma coisa.
Mas mesmo assim lhe disse a verdade.
— Katie, você ainda não entendeu. Há um guarda armado em volta da
casa o tempo todo. O porão inteiro está grampeado com monitores de áudio e
vídeo. Não há jeito de você entrar lá.
— Há sempre um jeito — falou Katie com ênfase — quando a coisa é
muito importante. — Ela enfiou a mão na camisa dele e começou a mexer no seu
mamilo. — Você me ama, não é, Franz? — Beijou-o com a boca toda aberta,
brincando com a língua dentro da boca de Franz. Depois empurrou-o
ligeiramente, continuando a mexer no seu mamilo.
— É claro que te amo, Katie — disse Franz, já muito excitado. — Mas não
sou louco.
Katie entrou no quarto e voltou menos de um minuto depois com dois
maços de notas.
— Eu vou ver meu pai, Franz — disse ela, jogando o dinheiro na mesa de
centro. — E você vai me ajudar... Pode subornar qualquer pessoa com esse
dinheiro.
Franz ficou impressionado com a soma de dinheiro.
— E o que você vai fazer por mim? — perguntou, quase brincando.
— O que eu vou fazer por você? O que eu vou fazer por você? — disse
Katie puxando-o pela mão para dentro do quarto. — Agora, capitão Bauer, você
vai tirar a roupa toda e deitar-se de costas. E vai ver o que eu vou fazer por você.
Ao lado do quarto de Katie havia um quarto de vestir. Ela entrou lá,
fechou a porta, destrancou uma grande caixa decorada que estava em cima do
balcão e tirou uma seringa que estava preparada desde o começo da manhã.
Levantou o vestido e fez um torniquete na coxa com uma borrachinha preta.
Esperou até poder identificar claramente uma veia no meio das marcas na sua
coxa, e enfiou a agulha com agilidade. Depois de injetar todo o líquido na corrente
sangüínea, esperou uns segundos pela fantástica reação e então tirou o
torniquete.
— O que eu faço enquanto estou esperando?
— Rilke está no meu ledor eletrônico, querido, em alemão e em inglês.
Daqui a um instante vou para aí.
Katie estava voando. Começou a cantarolar, jogou fora a seringa e colocou
o torniquete de volta na caixa. Tirou toda a roupa, parou duas vezes para admirar
seu corpo no espelho e empilhou a roupa no banquinho da penteadeira. Depois
abriu um gavetão da penteadeira e tirou uma venda.
Quando Katie entrou no quarto, Franz ficou olhando embasbacado para
aquele corpo flexível.
— Olhe bem — disse ela —, pois é só isso que você vai ver durante toda a
tarde.
Katie esfregou seu corpo no dele e beijou-o enquanto amarrava a venda
em seus olhos. Depois de certificar-se de que a venda estava bem presa, saiu da
cama.
— E agora, o que vai acontecer? — perguntou Franz.
— Você vai ter de esperar para ver — disse Katie em tom de brincadeira,
enquanto remexia numa gaveta grande onde havia uma parafernália sexual,
inclusive ajudas eletrônicas de todo tipo, loções, cordas e outros equipamentos do
gênero, máscaras e vários modelos de genitália. Katie selecionou um vidrinho de
loção, um frasco com um pó branco e umas contas enfiadas em um cordão fino.
Ainda cantarolando e rindo para si mesma, Katie foi para a cama e co-
meçou a correr os dedos no peito de Franz, beijando-o provocativamente com o
corpo colado no dele. Depois sentou-se, despejou a loção nas mãos e esfregou-as
com força. Afastou as pernas de Franz, sentou por cima da barriga dele e
começou a aplicar a loção nas suas partes mais sensíveis.
— Ummmmm — murmurou Franz quando a loção quente começou a fazer
efeito. — Que maravilha!
Katie passou o pó branco na genitália dele e montou-o devagar. Franz
entrou em êxtase. Katie ficou se mexendo para a frente e para trás num ritmo
lento. Quando notou que Franz estava quase gozando, parou de mexer um
instante e passou a mão por baixo dele para enfiar as contas. Voltou a mexer-se
mais umas três vezes e parou de novo.
— Não pare agora — gritou Franz.
— Então repita o que eu vou dizer — falou Katie, rindo e dando mais uma
mexida. — Eu prometo...
— Prometo qualquer coisa, mas não pare agora — disse Franz.
— Eu prometo — continuou Katie — que Katie Wakefield vai ver seu pai
nos próximos dias.
Franz repetiu a promessa e Katie recompensou-o. Quando puxou o cordão
depois que ele atingiu o clímax, Franz deu um grito com toda a força dos seus
pulmões, como um animal selvagem.

Ellie não gostou de seus interrogadores. Eles eram secos, não tinham
senso de humor e trataram-na com desprezo.
— Assim não vai funcionar, meus senhores — disse ela exasperada, no
primeiro dia de interrogatório. — Se vocês insistirem em fazer as mesmas
perguntas a toda hora... Pelo que entendi, vocês queriam que eu desse umas
informações sobre as octoaranhas... mas até agora as perguntas todas foram
sobre meu pai e minha mãe.
— Sra. Turner — disse o primeiro homem —, o governo está tentando
juntar todas as informações possíveis sobre este caso. Sua mãe e seu pai são
fugitivos há muitos...
— Olhe — interrompeu Ellie —, eu já disse que não sei nada sobre como,
quando e por que meus pais saíram do Novo Éden. Nem sei se eles foram
ajudados na sua fuga pelas octoaranhas... Portanto, se vocês não mudarem a
linha do interrogatório...
— Não é você, mocinha — falou o segundo homem, com os olhos bri-
lhando de raiva —, quem decide quais são as perguntas que devem ser feitas.
Talvez você não tenha percebido como sua situação é séria. Você só não será
julgada, e devo dizer que as acusações são graves, se cooperar completamente
conosco.
— De que sou acusada? — perguntou Ellie. — Estou curiosa para saber...
pois nunca fui considerada uma criminosa antes.
— Você pode ser acusada de alta traição — disse o homem — por ajudar
deliberadamente e favorecer o inimigo durante um período de declaradas
hostilidades.
— Mas isso é absurdo — replicou Ellie, já um tanto assustada. — Não
tenho idéia do que vocês estão falando.
— Você nega que, durante o período em que ficou com os alienígenas,
passou-lhes informações sobre o Novo Éden que poderão ser usadas durante a
guerra?
— É claro que dei informações — disse Ellie, com um riso nervoso. —
Contei tudo o que sabia sobre a nossa colônia, e as octoaranhas também nos
contaram tudo sobre a colônia delas.
Os dois homens escreviam furiosamente nos seus blocos. Como eles
ficaram assim?, pensou Ellie de repente. Como uma criança risonha e curiosa
pode se transformar num adulto hostil e inflexível? Será conseqüência do
ambiente ou da hereditariedade?
— Vejam bem, meus senhores — disse Ellie quando eles fizeram a pró-
xima pergunta —, isso não vai dar certo. Quero fazer uma interrupção para
organizar meus pensamentos. Talvez eu faça algumas anotações antes de
recomeçarmos... Pensei num processo completamente diferente, numa coisa
muito mais descontraída...
Os dois homens concordaram em parar. Ellie atravessou o corredor para
encontrar-se com Nikki, que estava sendo cuidada por uma funcionária do
governo.
— Pode ir agora, sra. Adams — disse Ellie. — Nós vamos almoçar. Nikki
sentiu que sua mãe estava muito preocupada.
— Esses homens estão sendo maus com você, mamãe? — perguntou ela.
Ellie não pôde deixar de sorrir.
— Você acertou, Nikki. Você acertou em cheio.

Richard deu suas últimas passadas em volta do porão e foi para o tanque
no canto da sala, parando primeiro na mesa para tomar um pouco de água.
Archie continuava imóvel no chão, por trás do colchão de Richard.
— Bom dia — disse Richard, limpando o suor com um pedaço de pano. —
Está pronto para tomar o café da manhã?
— Não estou com fome — disse a octoaranha em cores.
— Você tem de comer alguma coisa — falou Richard animado. — Eu
também acho a comida horrível, mas não se pode viver só de água.
Archie não se mexeu nem disse nada. Nos últimos dias, desde que seu
suprimento de barrican se esgotara, ele não tinha sido das melhores companhias.
Richard não conseguia manter as conversas estimulantes com Archie, e estava
preocupado com a sua saúde. Colocou um pouco de cereal na tigela, jogou um
pouco de água em cima e passou a tigela para o amigo.
— Tente comer um pouco — disse com gentileza.
Archie levantou um par de tentáculos e pegou a tigela. Quando começou a
comer, um feixe cor de laranja jorrou da sua fenda, desceu por um de seus
tentáculos e esmaeceu.
— O que foi isso? — perguntou Richard.
— Uma expressão emocional —- respondeu Archie, soltando mais feixes
coloridos irregulares.
Richard sorriu.
— OK, mas que tipo de emoção?
Depois de longa pausa, os feixes de cor de Archie ficaram mais fortes.
— Acho que você chamaria isso de depressão — disse a octoaranha.
— É isso que acontece quando o barrican acaba? — perguntou Richard.
Archie não respondeu. A certa altura, Richard voltou para a mesa e pre-
parou para si próprio uma tigela cheia de cereais. Depois voltou e sentou-se no
chão ao lado de Archie.
— É melhor você falar sobre isso — disse Richard gentilmente. — Não
temos mais nada para fazer.
Pelo movimento da lente de Archie, Richard percebeu que a octoaranha o
estudava com cuidado. Deu umas colheradas no cereal, antes de Archie começar
a falar.
— Na nossa sociedade, os rapazes e as moças que estão atravessando sua
maturidade sexual são retirados da sua vida habitual e levados para um am-
biente apropriado, com indivíduos que passaram por esse processo antes. Aí eles
descrevem o que estão sentindo e são informados de que aquelas emoções novas
e complexas são absolutamente normais. Agora eu entendo como esse programa
de atenção intensiva é necessário.
Archie fez uma pausa e Richard deu um sorriso simpático.
— Nestes últimos dias — continuou a octoaranha —, pela primeira vez,
desde que eu era criança, minhas emoções não aceitaram ser controladas por
minha mente. Durante o treinamento de otimização, sempre que tínhamos de
tomar uma decisão, separávamos com cuidado todas as evidências disponíveis e
eliminávamos todos os pensamentos preconcebidos decorrentes de reações
emocionais pessoais. Com a minha atual intensidade de sentimentos, seria quase
impossível relegar esses sentimentos a um segundo plano. Richard riu.
— Por favor, não me leve a mal, Archie. Não é de você que estou rindo.
Mas você acabou de descrever, numa típica frase das octoaranhas, o que a
maioria dos humanos sente o tempo todo. Muito poucos humanos chegam a
controlar suas "reações emocionais pessoais" como gostariam... Talvez esta tenha
sido a primeira vez em que você realmente nos compreendeu, se é que entende o
que estou falando.
— É terrível — continuou Archie. — Estou tendo um profundo senso de
perda, sinto falta do dr. Azul e de Jamie, e uma grande raiva de Nakamura por
nos manter prisioneiros aqui... Tenho receio de que essa raiva me leve a fazer um
ato não-ótimo.
— Mas as emoções que você está descrevendo nem sempre são ligadas à
sexualidade, pelo menos entre os humanos — disse Richard. — O barrican
também age como uma espécie de tranqüilizante, arrefecendo todos os
sentimentos?
Archie terminou de comer antes de responder.
— Você e eu somos criaturas muito diferentes, e, como eu já disse, é
perigoso fazer projeções de uma espécie para a outra... Lembro-me das nossas
primeiras discussões sobre os humanos na reunião com os Otimizadores, logo
depois que você violou a integridade do seu habitat... No meio da reunião, o Chefe
otimizador enfatizou que nós não devíamos olhar a sua espécie nos nossos
termos. Devíamos observar com cuidado, obter dados e fazer uma correlação
congruente entre eles, sem revesti-los com a nossa própria experiência...
Suponho que tudo isso leve a um repúdio, em certo sentido, do que vou falar para
você. No entanto, tenho para mim, baseado nas minhas observações dos
humanos, que para vocês o desejo sexual é a força motora por trás de todas as
emoções fortes... Nós, octoaranhas, sofremos uma descontinuidade na
maturidade sexual. De uma hora para outra deixamos de ser completamente
assexuados e nos transformamos num ser sexual. Nos humanos o processo é
muito mais lento e mais sutil. Os hormônios sexuais estão presentes, em
quantidades variadas, desde cedo, no desenvolvimento fetal. Sou de opinião, e
disse isso ao Chefe Otimizador, que talvez todas as suas emoções incontroláveis
estejam ligadas a esses hormônios sexuais. Um ser humano sem nenhuma
sexualidade talvez seja capaz do mesmo pensamento otimizado de uma
octoaranha.
— Que idéia interessante! — comentou Richard animado, levantando-se e
começando a andar em volta. — Então você está sugerindo que mesmo coisas
simples como, por exemplo, a recusa de uma criança em compartilhar seus
brinquedos podem estar de certa forma ligadas à sexualidade?...
— Talvez — respondeu Archie. — Talvez Galileu esteja praticando a
possessividade de sua sexualidade adulta quando se recusa a dividir seus
brinquedos com Kepler... Certamente a dedicação do menino à mãe e da menina
ao pai é uma prévia de atitudes adultas...
Archie parou, pois Richard estava de costas e tinha intensificado suas
passadas.
— Desculpe — disse ele, voltando um pouco depois e sentando-se de novo
ao lado da octoaranha. — Passou pela minha cabeça agora mesmo uma coisa na
qual pensei ligeiramente hoje de manhã, quando estávamos falando sobre
controle de emoções... Você se lembra de que, numa conversa anterior, atribuiu o
conceito de um Deus pessoal a uma aberração evolutiva necessária a todas as
espécies em desenvolvimento, como uma ponte temporária na transição entre a
fase da primeira conscientização e a era de informação? As recentes mudanças
ocorridas com você alteraram de alguma forma sua atitude com relação a Deus?
Várias faixas multicores, que Richard reconheceu como uma risada, jor-
raram sobre a parte superior do corpo da octoaranha.
— Vocês humanos são absolutamente preocupados com a noção de Deus.
Até mesmo aqueles, como você, Richard, que dizem não crer em Deus passam
grande do seu tempo pensando no assunto ou discutindo-o... Como falei alguns
meses atrás, nós octoaranhas valorizamos em primeiro lugar as informações, de
acordo com o que nos ensinaram os precursores... Não há informações sobre
nenhum Deus que possam ser constatadas, especialmente sobre um Deus
envolvido com os assuntos diários do universo...
— Você não entendeu exatamente a minha pergunta — interrompeu
Richard —, ou talvez eu não tenha me explicado bem... O que quero saber é se
nesse seu novo estado mais emocional você pode compreender por que outros
seres inteligentes criaram um Deus pessoal, para lhes dar conforto e também
para explicar todas essas coisas que eles não podem abranger.
Archie riu de novo em cores.
— Você é muito esperto, Richard — disse a octoaranha. — Quer que eu
confirme o que você pensa, ou seja, que Deus também é um conceito emocional,
nascido de um anseio não tão diferente do desejo sexual. Portanto, Deus também
derivaria de hormônios sexuais... Eu não vou até esse ponto. Não tenho
informações suficientes. Mas posso dizer que, baseado no tumulto dentro de mim
nesses últimos dias, agora compreendo essa palavra "anseio", que antes não fazia
sentido para mim...
Richard sorriu. Estava contente. O intercâmbio dos dois voltara a ser
como era antes de terminar o suprimento de barrican de Archie.
— Seria ótimo se pudéssemos conversar com todos os nossos amigos da
Cidade de Esmeralda, não é? — perguntou Richard de repente.
Archie sabia o que Richard estava sugerindo. Os dois não haviam men-
cionado os quadróides, nem tampouco sugerido que as octoaranhas tinham um
sistema de coleta de inteligência, pois não queriam que Nakamura e seus guardas
soubessem disso. Enquanto Richard observava em silêncio, faixas coloridas
passaram em torno da cabeça de Archie. Embora a octoaranha não estivesse
mais usando a língua derivativa que fora desenvolvida para a comunicação com
os humanos, Richard foi capaz de compreender a essência da transmissão.
Depois de cumprimentar formalmente o Chefe Otimizador e desculpar-se
pelo insucesso de sua missão, Archie enviou duas mensagens pessoais, uma
curta para Jamie e outra mais longa para o dr. Azul. Durante a transmissão para
seu parceiro dr. Azul, cores variadas jorraram de Archie ao longo de sua mensa-
gem. Richard, que aprendera a conhecer bem seu companheiro durante os dois
meses em que estavam presos, ficou fascinado e comovido com aquela bela
demonstração de emoção desinibida.
Quando Archie terminou, Richard chegou perto dele e pôs a mão nas suas
costas.
— Está se sentindo melhor agora? — perguntou.
— De certa forma sim — respondeu Archie. — Mas ao mesmo tempo me
sinto pior. Estou mais consciente agora de que talvez eu nunca mais veja o dr.
Azul e Jamie...
— Às vezes fico imaginando o que eu diria para Nicole — interrompeu
Richard — se pudesse falar com ela no telefone. — Ele pronunciou bem as
palavras, exagerando o movimento dos lábios. — Eu sinto muito sua falta, Nicole,
e te amo de todo o meu coração.

Richard não era de ter sonhos vividos. Portanto, não incorporava sons ex-
ternos a sonhos. Quando ouviu o que achou que fossem pés arrastando-se acima
dele, no meio da noite, acordou depressa.
Archie estava dormindo. Richard olhou em volta e percebeu que a luz do
banheiro estava apagada. Alarmado, acordou a octoaranha.
— O que foi? — perguntou Archie em cores.
— Ouvi alguma coisa lá em cima — sussurrou Richard.
Os dois ouviram a porta para as escadas do porão abrir-se lentamente.
Depois Richard percebeu um passo cuidadoso e depois outro no alto da escada.
Franziu os olhos, mas não conseguiu ver nada naquela escuridão.
— É uma mulher seguida de um policial — disse Archie, cuja lente podia
captar o calor infravermelho dos intrusos. — Eles pararam por um instante no
terceiro degrau.
Eles vieram nos matar, pensou Richard, apavorado, aproximando-se de
Archie. Então ouviu a porta do porão fechando-se lentamente e depois passos na
escada.
— Onde eles estão agora? — sussurrou ele.
— Aqui embaixo — disse Archie. — Estão vindo... acho que a mulher é...
— Papai — ouviu Richard, como se estivesse no passado. — Onde está
você, papai?
Meu Deus! É Katie! — Aqui, Katie — disse Richard bem alto. — Aqui —
repetiu, tentando conter sua agitação.
Uma lanterna pequena iluminou a parede por trás do colchão e acabou
clareando a barba de Richard. Um instante depois, Katie tropeçou sobre Archie e
literalmente caiu nos braços do pai.
Katie beijou-o e abraçou-o, com lágrimas correndo-lhe no rosto. Richard
estava tão espantado com tudo aquilo que de início não conseguiu responder às
perguntas da filha.
— Sim... sim... estou bem — disse depois. — Não posso acreditar que seja
você, Katie... Oh, Katie... Oh, sim, aquela massa cinzenta lá, na qual você acabou
de tropeçar, é meu amigo e companheiro de cela, Archie, a octoaranha...
Um segundo depois, Richard deu um forte aperto de mão em um homem
que Katie apresentou como "meu amigo".
— Não temos muito tempo — disse Katie apressada, depois de alguns
minutos de conversa sobre a família. — Nós criamos um curto-circuito em toda
essa área residencial, e daqui a pouco a energia já deve estar de volta.
— Então nós vamos fugir? — perguntou Richard.
— Não — disse Katie. — Eles pegariam você e o matariam... Eu só queria
lhe ver... Quando ouvi o boato de que você estava preso em algum lugar no Novo
Éden... Oh, papai, com eu estava com saudades! Eu o amo tanto...
Richard pôs os braços em volta da filha e abraçou-a enquanto ela chorava.
Ela está tão magra, pensou ele, parece até um fantasma.
— Eu também a amo, Katie — falou Richard, afastando-a ligeiramente. —
Ilumine seu rosto... eu quero ver esses olhos bonitos.
— Não, papai — falou Katie, enfiando o rosto no peito dele. — Estou
envelhecida e gasta... Quero que você se lembre de mim como eu era. Minha vida
tem sido dura...
— Não é provável que eles os mantenham aqui por muito tempo, sr.
Wakefield — disse o homem no escuro. — Quase todo mundo da colônia ouviu a
história da sua chegada no acampamento dos soldados.
— Você está bem, papai? — perguntou Katie depois de um longo silêncio.
— Estão lhe dando comida direito?
— Estou bem, Katie... mas não falamos nada sobre você. O que anda
fazendo? Está feliz?
—- Eu tive outra promoção — falou ela depressa. — E meu novo aparta-
mento é bonito... você devia ver... e tenho um amigo que gosta de mim...
— Fico contente com isso — disse Richard, enquanto Franz lembrava
Katie que estava na hora de irem embora. — Você sempre foi a mais inteligente
das minhas filhas... você merece um pouco de felicidade.
De repente, Katie começou a soluçar e baixou a cabeça no peito do pai.
— Papai, oh, papai — dizia ela aos soluços —, por favor, me abrace.
Richard pôs os braços em volta da filha.
— O que foi, Katie? — perguntou ele em tom carinhoso.
— Não quero mentir para você — falou Katie. — Eu trabalho para Naka-
mura, gerenciando prostitutas. E sou viciada em drogas... Absolutamente viciada
em drogas.
Katie chorou durante muito tempo. Richard abraçou-a com força e bateu
em suas costas.
— Mas eu te amo, papai — disse ela, finalmente levantando a cabeça. —
Sempre te amei, e sempre te amarei... sinto muito ter decepcionado você.
— Katie, nós temos de ir agora — falou Franz com firmeza. — Se a energia
voltar enquanto estivermos aqui, vai ser uma merda.
Katie beijou seu pai nos lábios às pressas e passou mais uma vez os dedos
em sua barba.
— Fique em paz, papai — disse ela. — E não perca a esperança.
O facho de luz estreito da lanterna precedeu os dois visitantes enquanto
eles rapidamente atravessavam o quarto em direção à escada.
— Adeus, papai — disse Katie.
— Eu também a amo, Katie — murmurou Richard, ouvindo os passos de
sua filha subindo os degraus.

5
A octoaranha sobre a mesa estava inconsciente. Nicole passou para o dr.
Azul o pequeno recipiente de plástico que o médico alienígena pedira e ficou
observando aquelas criaturas mínimas serem jogadas no líquido preto-esverdeado
que cobria o ferimento aberto. Em menos de um minuto o líquido sumiu e seu
colega octoaranha suturou o corte usando cinco centímetros de três dos seus
tentáculos.
— Este é o último por hoje — disse o dr. Azul em cores. — Como sempre,
Nicole, muito obrigado por sua ajuda.
Os dois atravessaram juntos a sala de cirurgia e passaram para um
aposento ao lado. Nicole ainda não se acostumara àquele processo de limpeza.
Ela respirou fundo, retirou o avental e colocou os braços em um grande reci-
piente com dezenas de seres parecendo peixinhos dourados. Nicole sentiu-se
repugnada quando aqueles bichinhos subiram pelos seus braços e mãos.
— Sei que isso não lhe agrada — falou o dr. Azul —, mas não temos
escolha, agora que o suprimento de água foi contaminado pelo bombardeio... E
não podemos correr o risco de alguma coisa daqui intoxicá-la.
— Tudo no norte da floresta foi destruído? — perguntou Nicole, enquanto
o dr. Azul terminava sua limpeza.
— Quase tudo — respondeu a octoaranha. — E parece que os engenheiros
humanos já terminaram as modificações nos seus helicópteros. O Chefe
Otimizador teme que eles comecem a sobrevoar a floresta dentro de uma a duas
semanas.
— E as mensagens que o senhor mandou ficaram sem resposta?
— Ficaram... Sabemos que Nakamura leu as mensagens... mas eles rap-
taram e mataram o último mensageiro octoaranha perto da usina elétrica...
apesar de ele estar carregando uma bandeira branca.
Nicole deu um suspiro, lembrando-se do que Max dissera na noite an-
terior, quando ela expressou seu espanto por Nakamura ter ignorado todas as
mensagens.
— Aquele homem não entende nada além de força bruta... — Max gritara
irritado. — Tudo o que aquelas mensagens idiotas dizem é que as octoaranhas
desejam paz, e que terão de se defender se os humanos não desistirem... As
ameaças que se seguem não fazem sentido. O que Nakamura vai pensar quando
suas tropas e helicópteros se espalharem por aí desimpedidos, destruindo tudo à
vista?... O Chefe Otimizador aprendeu alguma coisa sobre os humanos? As
octoaranhas devem levar o exército de Nakamura a algum tipo de batalha...
— As octoaranhas não funcionam assim — dissera Nicole. — Elas não se
envolvem em escaramuças ou guerras limitadas. Só lutam quando sua
sobrevivência está ameaçada... Nas mensagens tudo isso era exposto com muito
cuidado e foram feitos vários pedidos para Nakamura conversar com Richard e
Archie...
No hospital, o dr. Azul continuava sua conversa em cores com Nicole. Ela
sacudiu a cabeça e voltou ao presente.
— Você vai esperar por Benjy hoje? — perguntou a octoaranha. — Ou vai
direto para o centro administrativo?
Nicole olhou o relógio.
— Acho que vou agora. Em geral, levo umas duas horas para assimilar
todos os dados dos quadróides do dia anterior... Tanta coisa está acontecendo...
Por favor, peça ao Benjy para dizer aos outros que estarei em casa para o jantar.
Nicole saiu do hospital um pouco depois e dirigiu-se para o centro admi-
nistrativo. Embora ainda fosse dia, as ruas da Cidade de Esmeralda estavam
quase desertas. Nicole passou por três octoaranhas, todas andando apressadas
do outro lado da rua, e por um par de biotas caranguejos que pareciam deslo-
cados ali. O dr. Azul dissera a ela que os biotas caranguejos tinham sido recru-
tados para trabalharem como garis na Cidade de Esmeralda.
A cidade mudou muito desde o decreto, pensou Nicole. A maioria das
octoaranhas mais velhas está no Domínio da Guerra. E nós nunca vimos um
biota aqui até o mês passado, depois que a maioria das criaturas do grupo de
apoio foi enviada para outra locação. Max acha que muitas delas foram
exterminadas por causa dos racionamentos. Max sempre pensa o pior das
octoaranhas.
Em geral, depois do trabalho Nicole acompanhava Benjy até a parada do
carro de transporte. Seu filho também estava dando uma ajuda no hospital. A
medida que ele foi se conscientizando do que estava ocorrendo na Cidade de
Esmeralda, ficou cada vez mais difícil para Nicole esconder a seriedade da
situação que viviam.
— Por que nosso po-vo es-tá lu-tan-do contra as oc-to-a-ra-nhas? —
perguntara Benjy na semana anterior. — As octoaranhas não querem machucar
ninguém...
— Os colonos do Novo Éden não entendem as octoaranhas — dissera
Nicole. — E não vão deixar Archie e o tio Richard explicar nada.
— Então eles são mais es-tú-pi-dos do que eu — dissera Benjy
carrancudo. O dr. Azul e os outros membros da equipe do hospital das
octoaranhas que não haviam sido deslocados pela guerra estavam muito
impressionados com Benjy. No início, quando ele se apresentou como voluntário
para ajudar, as octoaranhas tiveram reservas quanto às suas limitações. Mas
Nicole explicava-lhe suas tarefas, ele repetia tudo para a mãe e nunca cometeu
um erro. Sua ajuda era especialmente preciosa nos trabalhos pesados, por ele ser
forte e jovem, um valioso atributo naquela hora em que várias das criaturas
maiores não estavam mais por ali.
Enquanto Nicole caminhava até o centro administrativo, com a cabeça
tomada de pensamentos agradáveis sobre Benjy, uma súbita imagem de Katie
superpôs-se à figura sorridente de seu filho retardado. A mente de Nicole ficou
dividida entre as duas imagens. Como pais, pensou ela suspirando, nós passamos
tempo demais envolvidos com o potencial intelectual, e deixamos de dar certa
atenção a outras qualidades mais palpáveis. O que mais importa não é o nível do
intelecto da criança, mas o que ela decide fazer com esse intelecto... Benjy superou
nossas expectativas, basicamente por causa da pessoa que ele é por dentro...
Quanto a Katie, nunca, em meus piores pesadelos...
Nicole interrompeu seus pensamentos quando entrou no prédio. Um
guarda octoaranha lhe acenou e ela sorriu. Ao chegar à sala de vídeo, Nicole ficou
surpresa ao ver que o Chefe Otimizador esperava por ela.
— Eu queria aproveitar essa oportunidade — disse o chefe das
octoaranhas — para agradecer sua contribuição nesse período difícil, e assegu-
rar-lhe que sua família e seus amigos que vivem aqui na Cidade de Esmeralda
serão cuidados como se fossem membros da nossa espécie, aconteça o que
acontecer nas próximas semanas.
Quando o Chefe Otimizador ia saindo da sala, Nicole perguntou:
— Então a situação está piorando?
— Está — respondeu a octoaranha. — Assim que os humanos sobrevo-
arem a floresta, seremos forçados a retaliar.
Depois que a octoaranha saiu, Nicole sentou-se em frente ao console para
escanear os dados dos quadróides do dia anterior. Ela não tinha acesso a todas
as informações do Novo Éden, mas podia colocar na tela as imagens das
atividades diárias de todos os membros de sua família. Nicole via todo dia o que
acontecia no porão com Richard e Archie, como Ellie e Nikki estavam se
adaptando no Novo Éden e o que ocorria no mundo de Katie.
À medida que o tempo passava, Nicole observava Katie cada vez menos,
pois lhe era muito penoso ver a filha naquele estado. Por outro lado, observar
Nikki era uma delícia. Ela gostava especialmente de ver a neta brincando à tarde
com outras crianças, no playground de Beauvois. Embora as imagens fossem
mudas, quase podia ouvir os gritinhos de felicidade de Nikki e das outras
crianças, emboladas umas sobre as outras enquanto jogavam bola.
Nicole andava muito preocupada com Ellie. Apesar dos seus esforços
heróicos, Ellie não estava conseguindo refazer seu casamento. Robert mantinha-
se ausente, trabalhava exageradamente e usava as demandas do hospital para
evitar toda e qualquer emoção, inclusive as suas próprias. Como pai, cumpria
suas obrigações, mas era contido, raramente mostrando seu contentamento com
Nikki. Robert não fazia amor com Ellie e nem falava sobre isso; quando ela tocou
no assunto três semanas depois de ter chegado ao Novo Éden, ele disse apenas
que não estava pronto.
Durante as longas e solitárias sessões de vídeo, Nicole ficava imaginando
se era possível, como mãe, observar uma filha em dificuldade sem se perguntar o
que poderia fazer para facilitar a vida dela. Ser mãe é uma aventura sem
resultados garantidos, pensou Nicole, estremecendo enquanto passava rapida-
mente pelas imagens de Ellie chorando sozinha à noite. A única coisa que a gente
sabe ao certo é que nunca se convencerá de ter feito o melhor possível.
Nicole sempre deixava Richard por último. Embora não tivesse se liber-
tado da premonição de que nunca mais tocaria no seu querido esposo, não
deixava que aquele sentimento empanasse sua alegria diária quando ficava
observando a vida de Richard no porão do Novo Éden. Gostava em especial das
conversas dele com Archie, embora fosse difícil ler os lábios do marido. As
discussões dos dois lembravam a Nicole os dias passados, a época em que ela
fugira da prisão e do Novo Éden, quando ficava conversando com ele sobre os
assuntos mais variados. Ver Richard sempre deixava Nicole animada, e muito
mais capaz de lidar com a sua própria solidão.
O encontro de Katie com Richard pegou Nicole de surpresa. Não estava
acompanhando a vida da filha em detalhes para saber que ela e Franz tinham
feito um plano para visitar Richard. Como as imagens dos quadróides cobriam a
porção infravermelha do espectro, além da porção visível, Nicole teve uma visão
mais nítida do encontro do que os próprios participantes. Ficou muito comovida
com a ação de Katie, e mais ainda com sua súbita confissão de que era viciada
em drogas (cena que Nicole repetiu diversas vezes, em câmera lenta, para ter
certeza de que estava lendo corretamente os lábios da filha). O primeiro passo
para superar um problema, Nicole lembrou de ter lido em algum lugar, é admitir a
alguém que se ama que o problema existe.
Nicole tinha os olhos cheios de lágrimas quando entrou no transporte,
quase vazio, que a levaria para o enclave humano na Cidade de Esmeralda. Mas
eram lágrimas felizes. Embora o estranho mundo à sua volta estivesse se
transformando num caos, sentia-se otimista em relação a Katie.

Patrick e os gêmeos estavam do lado de fora da casa quando Nicole desceu


do transporte, no fim da rua. Quando ela se aproximou, pôde ver que Patrick
estava tentando apartar uma das inúmeras brigas dos meninos.
— Ele sempre rouba — dizia Kepler. — Eu disse que não queria brincar
mais e ele me bateu.
— Isso é mentira — gritou Galileu. — Eu bati nele porque ele fez careta
para mim... Kepler não sabe perder. Quando não ganha, acha que é direito sair
da brincadeira.
Patrick separou os dois e mandou-os ficar de castigo em cantos opostos
da casa. Ao ver a mãe, deu-lhe um beijo e um abraço.
— Tenho novidades — disse Nicole sorrindo para o filho. — Richard teve
uma visita de surpresa hoje: Katie.
Patrick quis saber todos os detalhes da visita. Nicole fez um resumo do
que tinha visto e admitiu que ficara esperançosa quando Katie confessou que era
viciada em drogas.
— Não acredite tanto no que ela diz — falou Patrick. — A Katie que eu
conheci preferiria morrer a ficar sem sua preciosa droga.
Patrick virou-se de costas, e, quando estava prestes a dizer para os gême-
os que eles podiam voltar a brincar, dois foguetes riscaram o céu, caindo em
bolas vermelhas e brilhantes logo abaixo da cúpula. Um instante depois a cidade
ficou na escuridão.
— Vamos para dentro, meninos — disse Patrick.
— É a terceira vez hoje — comentou Patrick, quando ele e a mãe entraram
em casa com os gêmeos.
— O dr. Azul disse que eles apagam as luzes da cidade quando algum
helicóptero passa a vinte metros do topo da floresta. Em nenhuma circunstância
as octoaranhas querem que se descubra onde fica a Cidade de Esmeralda.
— Você acha que Archie e o tio Richard conseguirão se encontrar com
Nakamura? — perguntou Patrick.
— Duvido um pouco — replicou Nicole. — Se ele tivesse intenção de
receber os dois, já o teria feito.
Eponine e Nai vieram dar um abraço em Nicole, e as três conversaram
rapidamente sobre o blecaute. Eponine segurava no colo o pequeno Marius, que
se tornara um bebê grande, feliz e babão. Limpou o rosto do bebê para Nicole
poder beijá-lo.
— Ah — ela ouviu Max dizer —, a Rainha dos Carrancudos beijando o
Príncipe dos Babões.
Nicole virou-se e abraçou Max.
— Que história é essa de Rainha dos Carrancudos? Max passou-lhe um
copo com um líquido transparente.
— Tome um pouco disso aqui, Nicole. Não é tequila, mas é o mais parecido
que as octoaranhas conseguiram fazer a partir da minha descrição... Nós todos
esperamos que você volte ao seu senso de humor antes de terminar o drinque.
— Deixe disso, Max — disse Eponine. — Vai ficar parecendo que nós todos
estamos nessa... Afinal de contas, a idéia foi sua. Patrick, Nai e eu só dissemos
que também achamos que Nicole anda muito séria ultimamente.
— Agora, minha senhora — falou Max, tocando seu copo no dela —, quero
propor um brinde... A todos nós, que não temos controle algum sobre o nosso
futuro. Que a gente se ame e seja capaz de rir até o fim, quando e como isso
ocorrer.
Nicole não via Max bêbado desde o dia em que fora presa. Por insistência
dele, deu um gole na bebida. Sentiu a garganta e o esôfago queimarem, e os olhos
encheram-se de lágrimas. A bebida tinha alto teor alcoólico.
— Antes do jantar — disse Max de novo, abrindo os braços em um gesto
dramático —, nós vamos contar histórias da roça... para podermos dar boas
risadas, de que tanto precisamos... Você, Nicole des Jardins Wakefield, como
nossa líder, será a primeira a entrar em cena.
Nicole tentou dar um sorriso.
— Mas eu não conheço nenhuma história da roça — protestou. Eponine
ficou aliviada ao ver que Nicole não se ofendera com as brincadeiras de Max.
— Não se importe, Nicole — disse ela. — Nenhum de nós conhece... Max
sabe as histórias por todos nós.
— Era uma vez — começou Max depois de algum tempo — um fazendeiro
de Oklahoma que tinha uma esposa chamada Assobio. Ela era chamada assim
porque quando ia gozar na cama fechava os olhos, apertava a boca e soltava um
longo assobio...
Max deu um arroto e os gêmeos caíram na risada. Nicole ficou receosa de
que as histórias de Max não fossem apropriadas para os meninos, mas viu Nai
sentada atrás deles, rindo também. Relaxe, disse Nicole consigo mesma. Você
está se tomando mesmo a Rainha dos Carrancudos.
— Certa noite — continuou Max —, o fazendeiro e Assobio tiveram uma
briga feia, e ela foi para a cama cedo, furiosa. O fazendeiro ficou sentado à mesa
tomando tequila. Com o passar das horas, arrependeu-se de ter sido um filho da
puta com a sua mulher, e começou a desculpar-se em voz alta. Assobio, que ficou
ainda mais furiosa por ter sido acordada, sabia que quando o marido terminasse
sua tequila ia entrar no quarto e tentar fazer amor com ela em sinal de desculpa.
Enquanto ele esvaziava a garrafa, ela saiu de mansinho de casa, foi até o
chiqueiro, pegou a porca mais nova e menor que encontrou e levou-a para o seu
quarto. Quando mais tarde, o fazendeiro, bêbado entrou cambaleando no quarto
escuro, cantando um de seus hinos favoritos, Assobio ficou espiando do canto do
quarto a porca que estava na cama. O fazendeiro tirou a roupa e enfiou-se
debaixo das cobertas. Pegou a porca pela orelhas e beijou-a nos lábios. A porca
deu um guincho e o fazendeiro recuou para trás. "Assobio, meu amor", disse ele,
"você se esqueceu de escovar os dentes essa noite?" Então a esposa deu um pulo
do canto do quarto e começou a bater nele com uma vassoura...
Todos estavam rindo. Max ria tanto da sua própria história que quase
perdeu o equilíbrio. Nicole olhou em volta da sala. Max tem razão, pensou. Nós
precisamos disso. Temos andado muito preocupados.
—...Meu irmão Clyde — falou Max — sabia mais histórias da roça do que
todo mundo. Ele namorou Winona contando essas histórias, ou pelo menos foi o
que disse.. Clyde dizia que "quando a mulher ri já está pronta para tirar as
calcinhas"... Quando nós saíamos para caçar pato com o pessoal, não dávamos
um único tiro. Clyde ficava contando piadas, e nós ríamos e bebíamos o tempo
todo... Depois de algum tempo, não sabíamos mais por que tínhamos acordado às
cinco da madrugada para ficar sentados no frio...
Max parou de falar e a sala ficou em silêncio.
— Que merda — disse ele enfim. — Por um instante, achei que tinha
voltado para o Arkansas. — Max levantou-se. — Nem ao menos sei dizer para que
lado fica o Arkansas, ou a quantos bilhões de quilômetros de distância... — Max
sacudiu a cabeça. — Às vezes, quando estou sonhando e meu sonho parece reali-
dade, penso que voltei para o Arkansas. E, quando acordo, não sei onde estou, e
acho, por um instante, que essa vida aqui na Cidade de Esmeralda é um sonho.
— A mesma coisa acontece comigo — falou Nai. — Há duas noites sonhei
que estava fazendo minha meditação de manhã no hawng pra da casa da minha
família, em Lampun. Quando comecei a recitar meu mantra, Patrick me acordou
e disse que eu estava falando no sonho. E por um instante fiquei sem saber quem
ele era... fiquei muito assustada.
— Tudo bem — disse Max depois de um longo silêncio. — Acho que
estamos prontos para ouvir as notícias do dia. O que você tem para nos contar?
— falou, virando-se para Nicole.
— Os vídeos dos quadróides estavam muito especiais hoje — disse Nicole
sorrindo. — Nos primeiros minutos, cheguei a achar que tinha entrado no
arquivo errado... As imagens todas mostravam porcos, galinhas e um jovem
fazendeiro de Oklahoma namorando uma mocinha linda... Na última série das
imagens, o rapaz tentava beber tequila, comer galinha frita e fazer amor com sua
namorada, tudo ao mesmo tempo... Aliás, isso me fez lembrar que aquela galinha
parece estar ótima; por acaso alguém mais está com fome?

6
— Acho que eles se sentiram mais tranqüilos com o que o Chefe
Otimizador me disse — Nicole comentou com o dr. Azul. — É claro que Max teve
suas dúvidas... Ele não acredita que as octoaranhas darão prioridade à nossa
segurança, caso a situação se torne desesperadora.
— Isso é muito pouco provável — replicou a octoaranha. — Qualquer
retomada de hostilidades terá uma maciça retaliação... Muitas octoaranhas vêm
trabalhando nesses planos há quase dois meses.
— Será que entendi bem? — perguntou Nicole. — É verdade que qualquer
membro da sua espécie que se envolver no projeto e na realização dessa guerra
será exterminado quando a guerra acabar?
— É isso mesmo — respondeu o dr. Azul. — Mas eles não serão mortos
imediatamente... Serão notificados de que foram colocados na lista de exter-
mínio... O novo Chefe Otimizador definirá o programa exato do extermínio,
dependendo das necessidades da colônia e do ritmo do reabastecimento.
Nicole e seu colega octoaranha estavam almoçando juntos no hospital.
Eles tinham passado a manhã tentando em vão salvar a vida de duas criaturas
utilitárias de seis braços, que haviam sido feridas pelas tropas dos humanos
enquanto trabalhavam em uma das plantações remanescentes de cereais, ao
norte da floresta.
Durante o almoço, um biota centopéia apareceu no corredor ao lado deles,
e o dr. Azul notou o ar intrigado de Nicole.
— Quando entramos em Rama, antes de preenchermos todo o nosso
quadro de animais de apoio, nós usávamos os biotas disponíveis nas tarefas de
rotina, como manutenção... Agora estamos precisando da ajuda deles de novo.
— Mas como o senhor lhes dá instruções? — perguntou Nicole. — Nós
nunca conseguimos nos comunicar com esses biotas.
— A programação deles é feita na hora em que são fabricados... O que
fazíamos antigamente, com um tipo de teclado semelhante ao que você tem na
sua toca, era pedir aos ramaianos que alterassem a programação deles para
nosso uso específico... É para isso que todos os biotas estão aqui... para serem
transformados em empregados úteis pelos passageiros a bordo.
Bem, Richard, pensou Nicole, pelo menos esse conceito nós não
conhecíamos. Na verdade, acho que essa idéia nunca nos ocorreu...
— ...Queríamos que nosso assentamento aqui em Rama não se distin-
guisse de todas as nossas outras colônias — dizia o dr. Azul. — Portanto, como
não precisamos mais dos biotas, pedimos que eles fossem então retirados do
nosso território em Rama.
— E desde então vocês não tiveram mais nenhum contato direto com os
ramaianos?
— Não muito — respondeu o dr. Azul. — Mas mantivemos a possibilidade
de comunicação com as fábricas de alta tecnologia, debaixo da superfície...
basicamente para podermos solicitar a fabricação de certas matérias-primas que
não temos em nossos armazéns...
Uma porta do corredor abriu-se e uma octoaranha entrou. Ela falou ra-
pidamente com o dr. Azul em sua língua oficial, com faixas coloridas muito
estreitas. Nicole reconheceu as palavras permissão e esta tarde, mas quase nada
além disso.
Depois que a octoaranha saiu, o dr. Azul disse a Nicole que tinha uma
surpresa para ela.
— Hoje uma das nossas rainhas vai expelir o ovo. Seus atendentes calcu-
lam que isso vá acontecer em menos de um tert. O Chefe Otimizador atendeu o
meu pedido para você assistir... Ao que eu saiba, você é a única alienígena, fora
os precursores, que teve o privilégio de assistir à rainha expelindo o ovo... Penso
que vai achar interessante.
Durante o percurso no transporte até o Domínio das Rainhas, em uma
parte da Cidade de Esmeralda onde Nicole nunca estivera, o dr. Azul lembrou-lhe
alguns dos aspectos mais inusitados da reprodução das octoaranhas.
— Em tempos normais, cada uma das três rainhas da nossa colônia é
fertilizada uma vez a cada três ou cinco anos, e só uma pequena fração dos ovos
fertilizados chega à maturidade. Porém, em razão dos preparativos de guerra, o
Chefe Otimizador declarou recentemente um Evento de Reabastecimento. Nossas
três rainhas estão agora produzindo um conjunto completo de ovos. Elas foram
fertilizadas pelos novos machos guerreiros, as octoaranhas selecionadas para os
preparativos de guerra que passaram recentemente pela transição sexual. Essa
atividade é muito importante, pois garante, ao menos simbolicamente, que todas
essas octoaranhas terão um permanente envolvimento genético na colônia...
Lembre-se de que eles sabem, assim que são indicados como guerreiros, que seu
tempo de extermínio não está muito longe.
Sempre que penso que temos muito em comum com as octoaranhas,
refletiu Nicole, vejo alguma coisa bizarra que me faz lembrar como somos
diferentes. Mas, como diria Richard, como poderia ser de outra forma? Elas são
produto de um processo totalmente alheio a nós.
— ...Não fique alarmada com o tamanho da rainha... e, por favor, em
nenhuma circunstância expresse outra coisa senão admiração pelo que vir.
Quando sugeri que você assistisse à expulsão do ovo, um dos membros da equipe
do Chefe Otimizador fez objeção, e disse que não havia hipótese de você poder
apreciar o que iria ver. Outros membros da equipe ficaram receosos de que você
manifestasse mal-estar ou nojo, influenciando negativamente outras octoaranhas
que ainda deveriam passar por aquela experiência...
Nicole garantiu ao dr. Azul que ela não agiria de forma inconveniente
durante a cerimônia. Sentiu-se envaidecida por ter sido incluída naquela
atividade, e ficou muito agitada quando o carro de transporte deixou-os do lado
de fora do grossos muros do Domínio das Rainhas.
O prédio em que ela entrou com o dr. Azul era construído em pedra
branca, com teto em forma de cúpula, pé-direito de uns dez metros, e cobria uma
área de aproximadamente três mil e quinhentos metros quadrados. Havia um
grande mapa no hall de entrada e uma mensagem escrita em cores explicando
onde teria lugar a expulsão do ovo. Nicole, o dr. Azul e várias outras octoaranhas
subiram duas rampas e depois desceram por um longo corredor. No final desse
corredor viraram à direita e chegaram a um balcão, quatro metros acima de uma
área retangular de quinze metros de comprimento e cinco a seis de largura.
O dr. Azul levou Nicole para a primeira fila, protegida por uma
balaustrada de um metro de altura. As outras cinco filas por trás deles ficaram
logo lotadas. Do outro lado havia outro balcão semelhante, onde se aglomeravam
umas sessenta octoaranhas.
Ao olhar para baixo, Nicole viu um curso de água parecendo um amplo
canal, que corria pelo chão e desaparecia sob um arco à direita. Dos dois lados do
canal havia um passadiço estreito. Mas, do lado oposto, esse passadiço alargava-
se e acabava numa plataforma de cerca de três metros, que terminava na parede
de pedra à esquerda da grande sala. Nessa parede, pintada com várias cores e
desenhos variados, embutiam-se uns cem bastões de prata, ou pregos, com um
metro de saliência da parede. Nicole percebeu imediatamente a semelhança entre
essa parede e o corredor em declive e forma de barril por onde ela e seus amigos
tinham descido na toca das octoaranhas em Nova York.
Menos de dez minutos depois de os dois balcões ficarem lotados, o Chefe
Otimizador apareceu de uma porta lateral lá embaixo, postou-se ao lado do canal
e fez um curto discurso. O dr. Azul esclareceu as partes do discurso que Nicole
não conseguiu interpretar. O Chefe Otimizador lembrava à platéia que nunca se
sabia o tempo exato para a expulsão do ovo, mas que tudo indicava que a rainha
estaria pronta para entrar na sala dentro de mais uns fengs. Depois de comentar
a importância vital do reabastecimento para a continuidade da colônia, o Chefe
Otimizador saiu da sala.
E teve início a espera. Nicole passou o tempo observando as octoaranhas
do balcão em frente e tentando ouvir as conversas. Ela compreendia um pouco do
que estava sendo dito, mas não tudo. E pensou consigo mesma que ainda tinha
muito a aprender antes de se tornar fluente na língua natural das octoaranhas.
Finalmente as grandes portas da extrema esquerda do corredor abriram-
se e a rainha apareceu. Ela era colossal, com pelo menos seis metros de altura e
um corpo gigantesco acima dos seus oito longos tentáculos. Parou na plataforma
e disse alguma coisa para a platéia. Cores brilhantes espalharam-se em profusão
por todo o seu corpo, criando um verdadeiro espetáculo. Nicole não entendeu o
que a rainha estava dizendo porque não conseguiu acompanhar a seqüência
exata das cores que saíam de sua fenda.
A rainha virou-se lentamente para a parede, estendeu seus tentáculos e
deu início ao trabalhoso processo de subir pelos pregos. Ao longo da escalada,
desordenadas explosões de cor decoraram seu corpo. Nicole supôs que fossem
algum tipo de expressão emocional, talvez de dor ou de cansaço. Ao olhar
novamente para o outro balcão, notou que ninguém conversava na platéia.
Quando finalmente se posicionou no centro da parede, a rainha enrolou
os oito tentáculos em volta dos pregos e expôs sua barriga de cor creme. O
trabalho de Nicole no hospital deixara-a familiarizada com a anatomia das
octoaranhas, mas ela nunca imaginara que o tecido macio debaixo da barriga
delas pudesse se distender tanto. Enquanto Nicole observava, a rainha começou
a balançar-se ligeiramente para a frente e para trás, fazendo a parede de pedra
vibrar a cada movimento. As cores emocionais continuaram a jorrar do seu corpo,
chegando ao auge de intensidade quando um líquido preto esverdeado escorreu
da lateral da rainha, seguido imediatamente de um fluxo de objetos de tamanhos
diferentes contidos em um líquido grosso e viscoso.
Nicole estava estupefata. Abaixo dela, umas doze octoaranhas espalhadas
dos dois lados do canal faziam cair na água uns ovos e parte do líquido que se
encontravam nos passadiços. Outras oito octoaranhas esvaziavam na água o
conteúdo de imensos containers. A água fervilhava de sangue, de ovos e do
líquido viscoso misturado aos ovos. Em menos de um minuto, toda aquela
mistura que sujava o canal passou por baixo do arco à direita.
A rainha continuava na mesma posição. Depois que a água ficou limpa,
todas as lentes viraram-se para olhá-la. Nicole ficou espantada ao ver como a
octoaranha tinha encolhido. Calculou que a rainha havia perdido metade do seu
peso na fração de segundo que o ovo e os líquidos levaram para sair do seu corpo.
Ainda estava sangrando quando duas octoaranhas de tamanho normal subiram
na parede para lhe dar assistência. A essa altura, o dr. Azul bateu no ombro de
Nicole, em sinal de que estava na hora de irem embora.

Sentada sozinha em uma das salinhas do hospital das octoaranhas, Nicole


lembrava-se sem parar da cena da expulsão do ovo. Não tinha imaginado que
aquele acontecimento pudesse afetá-la tanto, do ponto de vista emocional. Nicole
ouviu só a metade das explicações do dr. Azul quando voltavam para o hospital.
Os containers esvaziados no canal continham animaizinhos que iriam procurar e
matar embriões específicos. Daquela forma, as octoaranhas controlavam a
composição exata da próxima geração, inclusive o número de rainhas, de
"repletas", de morfoses midgets e todas as outras variações.
A mãe dentro de Nicole lutava para compreender o que uma rainha
octoaranha deveria sentir durante a expulsão do ovo. De certa forma, Nicole
sentia-se profundamente ligada àquela criatura colossal que tinha subido nos
pregos das paredes. No instante da expulsão do ovo, o corpo de Nicole tinha se
contraído, e ela se lembrara da dor e da alegria do parto de seus seis filhos. O que
acontece no parto, pensou ela, que une todas as criaturas que já passaram por
isso?
Lembrou-se de uma conversa, muito tempo atrás, em Rama II, com
Michael O'Toole, depois que Simone e Katie tinham nascido, quando tentou lhe
explicar o que a mulher sentia no parto. Depois daquela conversa ela concluíra,
com certa relutância, que o parto era uma experiência impossível de ser
transmitida de uma pessoa para outra. O mundo divide-se em dois grupos, dissera
na época. O das mulheres que passaram pela experiência do parto e o das que não
passaram. Agora, dezenas de anos depois e a bilhões de quilômetros de distância,
ela gostaria de acrescentar um corolário a essa sua observação anterior. As
mulheres que são mães têm mais em comum, fundamentalmente, com mães de
outras espécies do que com mulheres humanas que nunca tiveram filhos.
Enquanto continuava a refletir sobre a cena que tinha presenciado, Nicole
foi tomada por um desejo de comunicar-se com a rainha octoaranha, para saber
o que aquela outra mãe inteligente sentiu e pensou imediatamente antes e
durante a expulsão do ovo. Teria a rainha, em meio à dor e à maravilha do
momento, sentido uma serenidade divina, uma visão da sua própria prole e da
prole seguinte, continuando, no futuro imprevisto, o milagroso ciclo da vida?
Teria sentido uma profunda e inefável paz logo depois da expulsão, uma paz que
criatura alguma jamais sentiu senão logo após o parto?
Nicole sabia que aquela conversa imaginária com a rainha nunca aconte-
ceria. Fechou os olhos mais uma vez, tentando reconstruir exatamente os jatos
de cor que vira no corpo da rainha pouco antes e depois do acontecimento.
Aquelas cores mostravam às outras octoaranhas o que a rainha estava sentindo?
Através de sua rica linguagem de cores, as octoaranhas podiam comunicar
sentimentos complexos como o êxtase, melhor do que os humanos com sua
limitada linguagem de palavras?
Não houve respostas. De repente, Nicole lembrou-se de que tinha coisas a
fazer no hospital das octoaranhas, mas que ainda não estava pronta para sair do
seu isolamento. Não queria que as fortes emoções que estava sentindo fossem
arrefecidas pelas exigências da vida diária.
Algum tempo depois, Nicole começou a sentir uma profunda solidão. A
princípio não ligou essa solidão à expulsão do ovo. Mas sabia que estava sentindo
um forte desejo de conversar com um amigo íntimo, de preferência Richard.
Queria compartilhar com alguém o que tinha sentido e visto no Domínio da
Rainha. No seu isolamento, Nicole lembrou-se de repente de umas linhas de um
poema de Benita Garcia. Abriu seu computador portátil, e depois de muito
procurar encontrou o poema inteiro.

Em momentos de profunda dúvida ou intensa dor,


Quando sou subjugada pela vida,
Procuro por todo lado possível
Caridosas almas com força para mitigar
O que me faz tremer, chorar e meditar.
Elas me dizem que não posso viver do meu jeito
Quando todos os meus sentimentos regem minha consciência.
Preciso me controlar antes do ato,
Ou aceitar o que há tanto tempo agüento,
Os dias brutais de solidão e cegueira.

Houve vezes, não muitas mas algumas,


Em que o bálsamo calmante de alguém
Pôs termo à minha angústia ou dor.
Mas a idade ensinou-me uma regra simples.
Dentro de mim preciso conter os gritos,
Quaisquer que sejam os demônios a enfrentar,
As lições aprendidas não mais serão perdidas.
Nós caminhamos sozinhos na viagem final.
Nenhuma mão pode nos ajudar no dia da morte.
É melhor aprendermos enquanto é tempo, amigo,
A confiar em nós mesmos e a manter o fôlego.

Nicole leu o poema várias vezes, e logo depois percebeu que estava com-
pletamente exausta. Debruçou-se sobre a mesa da sala e mergulhou no sono.

O dr. Azul bateu de mansinho no ombro de Nicole com um de seus tentá-


culos. Nicole se mexeu e abriu os olhos.
— Você está dormindo há quase duas horas — disse a octoaranha. —
Estão esperando-a no centro administrativo.
— O que está acontecendo? — perguntou Nicole esfregando os olhos. —
Por que estão me esperando?
— Nakamura fez um longo discurso no Novo Éden, e o Chefe Otimizador
quer discutir o assunto com você.
Nicole deu um pulo. Apoiou a mão na mesa e em alguns segundos sua
tontura havia passado.
— Obrigada, dr. Azul, por tudo — disse. — Estarei lá num minuto.

7
— Eu realmente acho que Nikki não deve assistir ao discurso — disse
Robert. — Ela vai ficar assustada.
— O que Nakamura disser vai afetar tanto a vida de Nikki quanto a nossa
— disse Ellie. — Se ela quiser ir, acho que devemos deixar... Afinal, Robert, ela
viveu com as octoaranhas.
— Mas ela não pode entender o que tudo isso significa — argumentou
Robert. — Nikki ainda não tem nem quatro anos.
O assunto continuou em suspenso até um instante antes de avisarem que
o ditador do Novo Éden iria aparecer na televisão. Naquela hora, Nikki entrou na
sala e aproximou-se da mãe.
— Eu não vou assistir — disse a menininha com uma incrível percepção
— porque não quero que você e papai briguem.
Uma das salas do palácio de Nakamura fora convertida num estúdio de
televisão, e era daí que o tirano geralmente se dirigia aos cidadãos do Novo Éden.
Seu último discurso fora há três meses, quando anunciou que as tropas seriam
mandadas ao Hemicilindro Sul para enfrentar a ameaça alienígena. Embora os
jornais e a televisão controlados pelo governo dessem notícias regulares do front,
muitas delas criando a idéia de uma intensa resistência oferecida pelas
octoaranhas, aquele era o primeiro comentário público de Nakamura sobre o
desenrolar e a direção da guerra no sul.
Para o discurso, Nakamura tinha ordenado que seus alfaiates lhe confec-
cionassem uma roupa completa de shogun, ornamentada com espada e adaga.
Ele ia aparecer com esse traje marcial japonês, dissera aos seus assessores, para
reforçar seu papel de chefe guerreiro e protetor dos colonos. No dia da trans-
missão, os assessores de Nakamura ajudaram-no a colocar dois cinturões pe-
sados para que ele passasse a idéia de guerreiro poderoso e ameaçador.
Nakamura falou de pé, olhando na direção da câmera, sem mudar sua
expressão séria durante todo o discurso.
— Todos nós nos sacrificamos nestes últimos meses — começou ele —
para apoiar nossos valentes soldados que lutam ao sul do mar Cilíndrico contra
um hediondo e implacável inimigo alienígena. Nosso serviço de inteligência nos
informou que essas octoaranhas, descritas em detalhes a vocês pelo dr. Robert
Turner depois de sua corajosa fuga, estão planejando um grande ataque contra o
Novo Éden em futuro próximo. Neste momento crítico da nossa história, devemos
redobrar nossa determinação e nos mantermos unidos contra o agressor
alienígena. Nossos generais da frente de batalha recomendaram que penetremos
além da barreira da floresta que protege a maior parte do domínio das
octoaranhas e interditemos seus suprimentos e material bélico antes que elas
comecem a nos atacar. Nossos engenheiros, que trabalham dia e noite para a
sobrevivência da colônia, fizeram modificações na nossa frota de helicópteros
para que essa interdição seja possível. Nossa ofensiva começará muito em breve.
Convenceremos os alienígenas de que eles não podem nos atacar impunemente.
Nesse meio-tempo, nossos guerreiros terminaram de fortificar toda a área de
Rama entre o mar Cilíndrico e a barreira da floresta. Durante ferozes batalhas,
destruímos centenas de inimigos e também suprimentos de água e usinas
elétricas. Nossas baixas foram poucas, basicamente em razão de nossos
excelentes planos de batalha e do heroísmo das nossas tropas. Mas não devemos
ficar excessivamente confiantes. Ao contrário, temos sobejas razões para
acreditar que ainda não enfrentamos a elite do Corpo da Morte que o dr. Turner
ouviu as octoaranhas mencionarem quando era prisioneiro delas. Temos certeza
de que é esse Corpo da Morte que estará na vanguarda dos alienígenas se não
nos mobilizarmos depressa para evitar um ataque ao Novo Éden. Lembrem-se, o
tempo é nosso inimigo. Devemos agir agora e destruir totalmente a capacidade
guerreira das octoaranhas. Há um pequeno item que eu gostaria de abordar esta
noite. Recentemente, o traidor Richard Wakefield e uma octoaranha renderam-se
às nossas tropas no sul. Disseram-se representantes do comando militar
alienígena em missão de paz. Suspeito que isso seja um truque, uma espécie de
cavalo-de-tróia, mas é meu dever, como chefe, promover um encontro com eles
nos próximos dias. Tenham certeza de que não negociarei nossa segurança, e
comunicarei o resultado desse encontro tão logo ele seja consumado.

— Mas, Robert — disse Ellie —, você sabe que grande parte do que ele
está dizendo é mentira... Não há Corpo da Morte, e as octoaranhas não oferece-
ram resistência. Como pode ficar calado? Como permite que ele lhe atribua
declarações que você nunca fez?
— Isso é política, Ellie — falou Robert. — Todo mundo sabe disso.
Ninguém acredita realmente...
— Mas isso é pior ainda. Você não vê o que está acontecendo? Robert fez
menção de sair de casa.
— Aonde você vai agora? — perguntou Ellie.
— Vou voltar para o hospital — respondeu Robert. — Tenho de visitar os
doentes.
Ellie não podia acreditar. Ficou olhando para o marido um instante e
depois descontrolou-se.
— É esta a sua reação — gritou Ellie. — Política, como sempre. Um luná-
tico anuncia um plano que provavelmente resultará na morte de todos nós e você
acha que é política... Robert, quem é você? Você não liga para nada?
Robert deu um passo até Ellie, furioso.
— Não venha de novo com essa atitude santificada — disse. — Nem
sempre você tem razão, Ellie, e não pode ter certeza de que todos nós seremos
mortos. Talvez o plano de Nakamura funcione...
— Você está se iludindo, Robert. Você se vira para o outro lado e diz a si
próprio que, enquanto seu pequeno mundo não for afetado, talvez as coisas
estejam bem... Você está errado, Robert. Muito errado. E, se não vai fazer nada a
respeito disso, então eu vou.
— Vai fazer o quê? — perguntou Robert elevando a voz. — Dizer ao mundo
que seu marido é um mentiroso? Tentar convencer a todos que aquelas
octoaranhas repugnantes são pacíficas? Ninguém vai acreditar em você, Ellie... E
ainda digo mais; assim que você abrir a boca será presa e julgada por traição.
Eles matarão você, Ellie, como vão matar seu pai... É isso que você quer? Nunca
mais ver sua filha?
Ellie percebeu um misto de tristeza e raiva nos olhos de Robert. Eu não
conheço esse homem, pensou ela. Como pode ser o mesmo homem que passou
milhares de horas cuidando de graça de pacientes terminais? Isso não faz
sentido.
Ellie resolveu não dizer mais nada.
— Agora vou embora — falou Robert enfim. — Devo chegar em casa por
volta de meia-noite.
Ellie foi para os fundos da casa e abriu a porta do quarto de Nikki, que
por sorte estava dormindo. Ellie sentia-se muito deprimida ao voltar para a sala,
mais arrependida do que nunca por ter saído da Cidade de Esmeralda. Mas tinha
saído, e agora, o que faria? Seria fácil se eu não tivesse de pensar em Nikki, disse
para si mesma, sacudindo a cabeça para a frente e para trás, e finalmente
soltando as lágrimas que estava contendo.

— Então, como é que eu estou? — perguntou Katie, fazendo uma pirueta


para Franz.
— Bonita, deslumbrante — respondeu ele. — Mais linda do que nunca.
Katie estava com um vestido preto simples, justo no corpo, com uma faixa branca
descendo dos dois lados. Era decotado na frente, mas um decote discreto, e ela
usava um colar de brilhantes e ouro.
Katie deu uma olhada no relógio.
— Meu Deus, pelo menos uma vez estou adiantada — disse, atravessando
a sala para acender um cigarro que tirou de cima da mesa.
A farda de Franz estava recém-passada e os sapatos engraxados à
perfeição.
— Então acho que temos tempo para a minha surpresa — disse ele, se-
guindo Katie até o sofá e entregando-lhe uma caixinha de veludo.
— O que é isso? — perguntou Katie.
— Abra — disse Franz.
Dentro da caixa havia um anel de brilhante, um solitário.
— Katie — disse Franz desajeitado —, quer se casar comigo?
Katie olhou para ele e depois para o lado. Deu uma tragada no cigarro e
soprou a fumaça no ar.
— Sinto-me lisonjeada, Franz — disse, levantando-se e beijando-o no
rosto. — De verdade... Mas isso não funcionaria. — Fechou a caixa e devolveu-lhe
o anel.
— Por que não? Você não me ama?
— Amo... acho que sim... se eu for capaz de ter esse tipo de emoção...
Mas, Franz, já falamos sobre isso. Não sou o tipo de mulher com quem você deve
se casar.
— Por que não me deixa decidir isso, Katie? Como pode saber de que tipo
de mulher eu preciso?
— Olhe, Franz — disse Katie, mostrando uma certa agitação —, prefiro
não falar nisso agora... Como eu disse, estou lisonjeada... mas ando nervosa com
essa audiência do meu pai, e você sabe que não lido bem com muita merda ao
mesmo tempo...
— Você sempre dá alguma razão para não querer falar sobre isso —
reclamou Franz, irritado. — Se você me ama, acho que mereço uma explicação. E
já...
Os olhos de Katie faiscaram.
— Você quer uma explicação agora, capitão Bauer... Muito bem, eu vou
dar... Siga-me, por favor... — Katie levou-o para o seu quarto de vestir. — Agora
fique aí, Franz, e preste bem atenção.
Katie abriu a penteadeira, tirou uma seringa e uma tira de borracha,
colocou a perna direita no banquinho e levantou o vestido acima das marcas de
sua coxa. Franz instintivamente virou o rosto para o lado.
— Não — disse Katie, virando-lhe o rosto para que ele a olhasse de frente.
— Não olhe para o lado, Franz... Quero que você me veja como eu sou...
Ela desceu a meia-calça e apertou a borracha. Olhou para cima para ver
se Franz ainda estava observando a cena, e viu que seu olhar estava triste.
— Está vendo, Franz? Não posso me casar com você porque já sou casa-
da... com essa droga mágica que nunca me desaponta... Está entendendo? Não
há jeito de você competir com essa droga.
Katie enfiou a seringa na veia e esperou uns segundos pelo efeito.
— Você me contentaria por umas semanas ou uns meses — disse Katie,
falando mais rápido agora —, porém mais cedo ou mais tarde entraria em baixa...
E eu o substituiria de coração por essa droga de novo.
Katie limpou as duas gotas de sangue com um papel fino e colocou a
seringa na pia. Franz estava desesperado.
— Anime-se — disse Katie, dando-lhe uma palmadinha no rosto. — Você
não perdeu sua parceira de cama... Ainda estarei aqui para todas as maluquices
que sonharmos fazer...
Franz virou-se e colocou a caixa de veludo no bolso da farda. Katie foi até
a mesa e deu uma última tragada no cigarro que estava queimando no cinzeiro.
— Agora, capitão Bauer, temos de ir à audiência.

A audiência foi realizada no salão de baile, no andar térreo do palácio de


Nakamura. Havia cerca de sessenta cadeiras ao longo das paredes, distribuídas
em quatro fileiras, para os convidados especiais. O próprio Nakamura, com a
mesma roupa japonesa do discurso na televisão dois dias antes, sentou-se em
uma grande cadeira entalhada, sobre um estrado colocado numa extremidade da
sala. Dois guarda-costas, também vestidos de samurais, estavam a seu lado. O
salão de baile era decorado em estilo japonês do século dezesseis, o que reforçava
a imagem do todo-poderoso shogun do Novo Éden que Nakamura tentava criar.
Richard e Archie, que só tinham sido avisados da audiência quatro horas
antes de saírem do porão, foram trazidos por três policiais e sentaram-se numas
almofadas pequenas no chão, a vinte metros de Nakamura. Katie notou que seu
pai parecia cansado e muito velho, e teve de resistir ao impulso de correr para lá
e falar com ele.
Um funcionário anunciou que a audiência estava aberta e lembrou a todos
os espectadores que não deviam falar nada nem interferir de forma alguma nos
procedimentos. Terminado o anúncio, Nakamura levantou-se e desceu
pomposamente os dois degraus do estrado.
— Esta audiência foi convocada pelo governo do Novo Éden — disse ele de
forma áspera, andando de um lado para o outro — para determinar se o
representante do inimigo alienígena está preparado, em nome da sua espécie, a
aceitar a rendição incondicional que exigimos como pré-requisito indispensável à
cessação das hostilidades entre nós. Se o ex-cidadão Wakefield, que é capaz de
comunicar-se com os alienígenas, for capaz de convencê-lo de que deve aceitar
nossas exigências, inclusive a de entregar todas as armas de guerra e preparar-se
para a nossa ocupação e administração de todas as terras alienígenas, então,
estaremos dispostos a ser misericordiosos. Em recompensa à sua ajuda para a
conclusão desse terrível conflito, estaríamos até dispostos a trocar a sentença de
morte do sr. Wakefield para prisão perpétua. Porém —, continuou Nakamura,
elevando a voz —, se este traidor e seu cúmplice alienígena se entregaram às
nossas tropas vitoriosas como parte de um plano traiçoeiro para minar nossa
vontade coletiva de punir os alienígenas por seus ataques agressivos contra nós,
então usaremos esses dois como exemplo para mandar uma mensagem incon-
testável ao nosso inimigo. Queremos que os líderes alienígenas saibam que os
cidadãos do Novo Éden se mantêm inabaláveis contra as metas expansionistas
deles.
Até aquele momento, Nakamura havia se dirigido a toda a platéia. Agora,
dirigia-se aos dois prisioneiros isolados no chão do salão de baile.
— Sr. Wakefield, este alienígena ao seu lado está autorizado a falar pela
sua espécie?
Richard levantou-se.
— Ao que eu saiba, está sim.
— E este alienígena então está preparado para ratificar o documento de
rendição incondicional que lhes foi mostrado?
— Nós só recebemos o documento há poucas horas, e não tivemos tempo
ainda de conversar sobre o seu teor. Expliquei as partes mais importantes para
Archie, mas ainda não sei...
— Eles estão criando obstáculos — gritou Nakamura, dirigindo-se à
platéia e sacudindo uma folha de papel no ar. — Esta única folha contém todos
os termos da rendição. — Virou-se de novo para Richard e Archie. — A questão
requer apenas uma simples resposta. Sim ou não?
Faixas coloridas jorraram da cabeça de Archie, e houve um murmúrio na
platéia. Richard olhou para Archie, fez uma pergunta a ele aos sussurros e depois
interpretou a resposta. Olhou para Nakamura e disse:
— A octoaranha deseja saber exatamente o que acontecerá caso o docu-
mento seja ratificado. Que acontecimentos se seguirão e em que ordem. Nada
disso está especificado no acordo.
Nakamura fez uma ligeira pausa.
— Primeiro, todos os soldados alienígenas deverão apresentar-se com suas
armas e entregar-se às nossas tropas no sul. Segundo, o governo alienígena, ou
qualquer que seja o equivalente a isso, deve nos enviar um inventário completo de
tudo o que existe em seu domínio. Terceiro, eles devem anunciar a todos os
membros da sua espécie que ocuparemos sua colônia, e que todos os alienígenas
deverão cooperar de todas as maneiras com nossos soldados e cidadãos.
Richard e Archie conversaram brevemente.
— O que acontecerá a todas as octoaranhas e aos outros animais que
apóiam a sociedade deles? — perguntou Richard.
— Eles terão permissão de voltar à sua vida normal, com algumas restri-
ções, é claro. Nossas leis e nosso cidadãos funcionarão como o governo atuante
das terras ocupadas.
— E então vocês acrescentarão uma emenda ou apêndice a esse docu-
mento de rendição, garantindo a vida e a segurança das octoaranhas, e dos
outros animais, desde que eles não violem nenhuma das leis promulgadas no
território ocupado?
Os olhos de Nakamura apertaram-se.
— Eu pessoalmente garantirei a segurança das octoaranhas que obedece-
rem às leis de ocupação... exceto os indivíduos alienígenas que forem consi-
derados responsáveis pela guerra agressiva desencadeada contra nós. Mas isso
são detalhes que não precisam ser escritos no documento de rendição.
Mais uma vez, Richard e Archie conversaram. Do lado da sala, Katie ob-
servava de perto a expressão do rosto do seu pai. De início, Richard pareceu
discordar da octoaranha, mas ao longo da conversa tornou-se mais cordato,
quase resignado. Katie teve a impressão de que ele estava memorizando uma
coisa...
A longa pausa durante a audiência irritou Nakamura. Os convidados
especiais começaram a cochichar entre si, e finalmente Nakamura falou de novo.
— Muito bem. Vocês já tiveram bastante tempo. Qual é a resposta?
A cabeça de Archie ainda estava coberta de cores. A uma certa altura, os
parceiros pararam de falar e Richard deu um passo à frente, hesitando um
instante antes de falar.
— A octoaranha deseja a paz — disse ele lentamente —, e gostaria de
encontrar uma forma de terminar esse conflito. Se a moral não fosse uma das
características dessa espécie, Archie poderia concordar em ratificar este docu-
mento de rendição para ganhar algum tempo. Mas as octoaranhas não agem
assim. Meu amigo alienígena, chamado Archie, só faria um acordo em nome da
sua espécie se tivesse certeza de que o tratado era conveniente para a sua colônia
e de que suas companheiras octoaranhas honrariam esse tratado.
Richard fez uma pausa.
— Nós não precisamos de um discurso — disse Nakamura impaciente. —
Só queremos uma resposta.
— As octoaranhas — falou Richard num tom mais alto — nos disseram
para negociar uma paz honrosa, não para nos rendermos incondicionalmente. Se
o Novo Éden não estiver disposto a negociar e a fazer um acordo respeitando a
integridade do domínio das octoaranhas, então elas não terão escolha... Por favor
— gritou Richard, olhando para os convidados dos dois lados da sala —,
compreendam que vocês não poderão vencer se as octoaranhas realmente
lutarem. Até agora elas não ofereceram resistência alguma. Vocês devem
convencer seus líderes a entrarem numa discussão equilibrada...
— Levem os prisioneiros — ordenou Nakamura.
— ...senão todos vocês morrerão. As octoaranhas são muito mais avan-
çadas do que nós. Acreditem em mim. Estou vivendo no meio delas há mais de...
Um dos policiais deu um soco na nuca de Richard e ele caiu no chão,
sangrando. Katie deu um pulo, mas Franz prendeu-a nos seus braços. Richard
estava com a mão na cabeça quando Archie e ele foram retirados da sala.

Richard e Archie estavam numa pequena cela no posto policial de Hakone,


perto do palácio de Nakamura.
— Como está sua cabeça? — perguntou a octoaranha em cores.
— Está bem — respondeu Richard. — Mas ainda muito inchada.
— Eles vão nos matar, não é? — perguntou Archie.
— Provavelmente — disse Richard entristecido.
— Obrigado por ter tentado — acrescentou Archie depois de longo silêncio.
Richard deu de ombros.
— Não adiantou muito... De qualquer forma, eu é que devia lhe agradecer.
Se você não tivesse se oferecido para vir, estaria seguro na Cidade de Esmeralda.
Richard foi até a bacia no canto para lavar o pano que estava servindo de
curativo para sua cabeça.
— Você não disse que a maioria dos humanos acredita na vida após a
morte? — perguntou Archie quando Richard voltou para o seu lado.
— Disse. Muita gente acredita que nós somos reencarnados e voltamos a
viver de novo como outra pessoa, ou até mesmo como um animal. Outros
acreditam que se a vida foi bem vivida há uma recompensa, uma vida eterna em
um lugar bonito e sem sofrimento chamado Céu...
— E você, Richard — interrompeu Archie com as cores —, em que você
acredita pessoalmente?
Richard sorriu e pensou um instante antes de responder.
— Eu sempre acreditei que qualquer coisa única que houvesse em nós,
definindo nossa personalidade especial e individual, desapareceria na hora da
morte. É claro que nossa química pode ser reciclada em outras criaturas vivas,
mas não há uma continuidade real, não em termos do que os humanos chamam
de alma... Richard riu.
— Mas agora, quando minha mente lógica diz que não tenho possibilidade
de viver muito mais, uma voz dentro de mim me pede para encampar uma dessas
histórias de fadas sobre a vida do além... Admito que seria fácil... Mas essa
conversão de última hora seria incoerente com a forma como vivi todos esses
anos...
Richard foi andando até a frente da cela, pôs as mãos nas barras de ferro
e olhou pelo corredor durante alguns minutos sem dizer nada.
— E o que as octoaranhas acham que ocorre depois da morte? — per-
guntou ele, virando-se para seu companheiro de cela.
— Os precursores nos ensinaram que cada vida é um intervalo finito, com
um começo e um fim. Nenhuma criatura individual, embora seja um milagre, é
tão importante no esquema das coisas como um todo. O que importa, diziam os
precursores, é a continuidade e a renovação. Segundo eles, cada um de nós é
imortal, não porque uma coisa relacionada a um indivíduo específico viva para
sempre, mas porque cada vida torna-se um elo crítico, em termos genéticos ou
culturais, da infindável cadeia da vida. Quando os precursores nos tiraram da
ignorância, aprendemos a não ter medo da morte, e a aceitar a renovação que se
segue a ela.
— Então você não sente tristeza nem medo ao ver que sua morte está
próxima?
— Idealmente não — respondeu Archie.
— Essa é a forma aceita na nossa sociedade para enfrentar a morte... Mas
é muito mais fácil quando na hora final o indivíduo está cercado de amigos e de
outros que representam a renovação que sua morte trará.
Richard pôs o braço em volta de Archie.
— Você e eu só temos um ao outro, meu amigo. É também a consciência
de que tentamos juntos parar uma guerra que provavelmente acabará matando
milhares. Não pode haver muitas causas...
Richard se deteve quando ouviu a porta dá cela abrir-se. Do lado de fora
estavam o capitão da polícia local e um dos seus homens, cercados por quatro
biotas, duas Garcias e dois Lincolns, todos de luvas. Nenhum dos biotas falou.
Uma das Garcias abriu a porta e os quatro biotas entraram na cela onde estavam
Richard e Archie. Um instante depois, as luzes se apagaram, ouviu-se um
barulho abafado de luta, Richard gritou e um corpo caiu contra as barras da cela.
Depois fez-se silêncio.

— Agora, Franz — disse Katie quando eles abriram a porta do posto poli-
cial —, use sua patente. Ele é apenas um capitão local, e não vai lhe dizer que
você não pode ver os prisioneiros.
Eles entraram um instante depois que os dois funcionários locais fecha-
ram a porta da cela por trás dos biotas.
— Capitão Miyazawa — disse Franz em tom oficial —, sou o capitão Franz
Bauer, do centro de operações... Vim ver os prisioneiros.
— Tenho ordens estritas da mais alta autoridade, capitão Bauer, para não
deixar ninguém entrar na cela — disse o policial.
A sala de repente ficou às escuras.
— O que está acontecendo? — perguntou Franz.
— Deve ser um fusível queimado — replicou o capitão Miyazawa. —
Westermark, vá lá fora checar o circuito.
Franz e Katie ouviram o grito. Depois do que pareceu uma eternidade, eles
ouviram a porta da cela abrir-se e em seguida uns passos. Três biotas
desapareceram pela porta da frente do posto quando as luzes voltaram.
Katie correu para a porta.
— Olhe, Franz — gritou frenética. — Sangue, eles tinham sangue nas
roupas. Precisamos ver meu pai.
Katie passou correndo pelos três policiais no corredor.
— Oh, meu Deus — gritou ela, quando se aproximou da cela e viu seu pai
no chão e sangue por todo lado. — Ele está morto, Franz. Papai está morto.

8
Nicole tinha visto o vídeo duas vezes. Apesar dos seus olhos inchados e da
exaustão emocional, ela perguntou se podia ver mais uma vez. O dr. Azul passou-
lhe um copo de água.
— Tem certeza de que quer ver mais? — perguntou a octoaranha.
Ela fez que sim. Mais uma vez não é demais, pensou Nicole. Quero cada
cena, por pior que seja, guardada para sempre na minha memória.
— Por favor, comece na audiência — pediu Nicole. — Em velocidade
normal até os biotas entrarem na cela. Depois passe em câmara lenta.
Richard nunca quis ser herói, pensou Nicole enquanto voltava à cena da
audiência. Não era do seu feitio. Ele só foi com Archie para que eu não precisasse
ir. Nicole estremeceu quando o guarda bateu em Richard e ele caiu no chão. O
plano não poderia ter êxito, disse ela para si mesma quando os policiais do Novo
Éden tiraram Archie e Richard do palácio de Nakamura. As octoaranhas sabiam
disso. Eu também sabia. Por que não abri a boca depois que tive minha
premonição?
Nicole pediu ao dr. Azul que pulasse para os últimos minutos do vídeo.
Pelo menos eles ficaram juntos até o fim, pensou ela quando Richard e Archie
estavam conversando pela última vez. E Archie tentou proteger Richard... Os
quatro biotas apareceram na tela e o vídeo entrou em câmara lenta. Nicole viu a
expressão nos olhos de Richard mudarem de surpresa para medo no momento
em que os biotas entraram na cela.
Quando as luzes se apagaram, o filme mudou de qualidade. As imagens
infravermelhas tiradas pelos quadróides mais pareciam negativos de fotos. Os
biotas pareciam lúgubres, com os olhos esbugalhados, nas imagens
infravermelhas.
No instante em que a cela ficou escura, uma das Garcias agarrou Richard
pela garganta, e as outras três tiraram as luvas e usaram os dedos pontudos e
afiados como lâminas. Quatro dos poderosos tentáculos de Archie enrolaram-se
na Garcia que tentava estrangular Richard. Quando a Garcia despedaçou-se,
formando um monte de cacos no chão da cela, os outros três biotas atacaram
Archie furiosamente. Richard tentou ajudá-lo, mas um Lincoln deu um soco tão
violento no pescoço de Archie que quase o decapitou. Richard gritou quando
sentiu o líquido interno do corpo de Archie empapando sua roupa. Com a
octoaranha fora da jogada, os biotas devastaram Richard, perfurando seu corpo
várias vezes com os dedos. Ele caiu contra as barras de ferro e escorregou pelo
chão. Seu sangue e o de Archie, de cores diferentes na imagem infravermelho,
correram pelo chão. da cela, formando uma poça.
O vídeo continuou, mas Nicole não via mais nada. Agora finalmente
compreendia que seu marido Richard, o único amigo íntimo que tivera em sua
vida adulta, estava realmente morto. Na tela, Franz levava Katie pelo corredor,
aos prantos, e depois acabavam as imagens. Nicole não se moveu. Ficou sentada,
quieta, olhando para o monitor. Seus olhos estavam secos, seu corpo não tremia,
ela parecia estar completamente controlada. Mas não conseguia se mover.
A luz era mortiça na sala de vídeo. O dr. Azul ainda estava sentado ao lado
de Nicole.
— Acho — disse ela devagar, surpresa por sua voz parecer tão distante —
que não acreditei nas duas primeiras vezes... Quer dizer, devo ter ficado tão
chocada... talvez ainda esteja... — Nicole não conseguiu continuar. Estava com
dificuldade para respirar.
— Você precisa beber um pouco de água e descansar — disse o dr. Azul.
Richard foi morto. Richard está morto. — Ah, sim, por favor — disse ela
baixinho. Nunca mais vou ver meu marido. Nunca mais vou falar com ele. —
Água fria, se for possível. — Eu vi Richard morrer. Uma vez. Duas vezes. Três
vezes. Richard está morto.
Havia outra octoaranha na sala de vídeo. As duas criaturas ficaram con-
versando, mas Nicole não conseguiu seguir as cores. Richard se foi para sempre.
Estou sozinha. O dr. Azul tentou fazer Nicole beber a água, mas ela não conse-
guiu engolir. Richard foi morto. Tudo era escuridão.

Alguém segurava sua mão. Era uma mão quente e agradável, fazendo cari-
nho na sua. Nicole abriu os olhos.
— Alô, mamãe — disse Patrick carinhosamente. — Está se sentindo
melhor?
Nicole fechou os olhos de novo. Onde eu estou?, pensou. Depois lembrou-
se. Richard está morto. Devo ter desmaiado.
— Uhmmmm — disse ela.
— Quer um pouco de água? — perguntou Patrick.
— Por favor — murmurou ela, com voz estranha. Nicole tentou sentar-se e
beber a água, mas não conseguiu.
— Calma — disse Patrick. — Não temos pressa.
Sua cabeça começou a funcionar. Eu preciso contar para eles. Richard e
Archie estão mortos. Os helicópteros estão vindo. Precisamos ter muito cuidado e
proteger as crianças.
— Richard... — conseguiu dizer.
— Nós já sabemos, mãe — falou Patrick.
Como eles souberam?, pensou Nicole. Eu sou a única aqui que sabe ler as
cores...
— As octoaranhas escreveram tudo, com muita dificuldade. Não ficou
perfeito, mas deu para entender o que elas contavam... E contaram também da
guerra...
Meu Deus, eles sabem. Eu posso dormir. Dentro da sua cabeça ela ainda
ouvia um eco. Richard está morto.

— De vez em quando ouço as bombas, mas acho que nenhuma delas atin-
giu a cúpula — dizia Max. — Talvez eles não tenham descoberto onde fica a
cidade.
— A cidade está completamente escura do lado de fora — disse Patrick.
— Eles aumentaram a cobertura e apagaram as luzes da rua.
— As bombas devem estar caindo no Domínio Alternativo. Não há como
esconder aquele lugar — disse Max.
— O que as octoaranhas estão fazendo? — perguntou Patrick. — Nós nem
ao menos sabemos se elas estão contra-atacando.
— Não se sabe ao certo, mas não posso acreditar que ainda não estejam
fazendo nada — replicou Max.
Nicole ouviu passos no corredor.
— Os meninos estão ficando claustrofóbicos — disse Nai. — Será que
podíamos deixar que eles brincassem lá fora?... Os clarões já passaram há meia
hora.
— Não vejo por que não — disse Patrick. — Mas diga para eles entrarem
caso vejam um clarão ou ouçam bombas.
— Eu vou ficar lá fora com eles — falou Nai.
— Onde está minha mulher? — perguntou Max.
— Está lendo com Benjy. Marius está dormindo — respondeu Nai. Nicole
virou para o outro lado. Tentou sentar, mas sentiu-se muito cansada.
Começou a sonhar acordada, lembrando-se de sua infância. O que é
preciso para ser uma princesa?, a pequena Nicole perguntou a seu pai. Ter um pai
rei ou um marido príncipe, respondeu o pai sorrindo e dando-lhe um beijo. Então
eu já sou uma princesa, porque você é um rei para mim...
— Como está Nicole? — perguntou Eponine.
— Ela se mexeu de novo hoje de manhã — falou Patrick. — A nota do dr.
Azul diz que talvez ela consiga sentar-se hoje à noite ou amanhã. Diz também que
eles constataram que o ataque não foi grave, que o coração não sofreu uma lesão
permanente, e que ela está respondendo bem ao tratamento.
— Posso ver minha mãe agora? — perguntou Benjy.
— Ainda não, Benjy, ela está descansando — respondeu Eponine.
— As octoaranhas têm sido maravilhosas, não é? — comentou Patrick. —
Mesmo no meio dessa guerra, elas encontram tempo para nos mandar
mensagens...
— Até eu estou acreditando nelas — falou Max. — E nunca pensei que
isso fosse possível.
Então eu tive um ataque cardíaco, pensou Nicole. Não foi apenas um
desmaio quando eu soube que Richard... Na primeira vez, ela não conseguiu
terminar a frase... que ele tinha morrido.
Ela ficou divagando, meio dormindo meio acordada, até que ouviu uma
voz familiar chamando seu nome. É você, Richard?, perguntou excitada. Sim,
Nicole, ele respondeu. Onde você está? Quero te ver, disse ela, e o rosto dele
apareceu em uma nuvem no meio do seu sonho. Você está parecendo ótimo. Está
bem mesmo? Estou, respondeu Richard, mas preciso falar com você.
O que foi, querido? Nicole perguntou. Você deve continuar sem mim, disse
ele, deve ser um exemplo para os outros. O rosto dele começou a alterar-se
quando a forma das nuvens mudaram. É claro, disse Nicole, mas para onde você
vai? Ela não podia mais ver o marido. Adeus, disse ele. Adeus, Richard,
respondeu Nicole.

Quando Nicole acordou da vez seguinte sua cabeça estava clara. Sentou-
se na cama e olhou em volta. Estava escuro, mas dava para ver que era o seu
próprio quarto na Cidade de Esmeralda.
Nicole não ouviu som algum, e pensou que fosse noite. Empurrou as
cobertas e pôs as pernas para fora da cama. Até agora tudo bem, pensou. Saiu da
cama e ficou de pé bem devagar. Suas pernas estavam trêmulas.
Havia um copo de suco na ponta da mesa-de-cabeceira. Nicole deu dois
passos com cuidado, segurando na cama com a mão direita, e pegou o copo. O
suco estava delicioso. Contente consigo própria, Nicole foi até o armário procurar
uma roupa para vestir, mas depois de dar alguns passos ficou tonta e tentou
voltar para a cama.
— Mãe, é você? — disse Patrick, aparecendo na porta.
— Sou eu, Patrick.
— Por que a gente não acende a luz? — disse ele. Bateu na parede e um
vaga-lume voou no meio do quarto. — Meu Deus, o que você está fazendo de pé?
— perguntou.
— Não posso ficar na cama a vida toda — respondeu Nicole.
— Mas tem de ir aos pouquinhos no começo — falou Patrick, aproximou-
se dela, ajudando-a a chegar até a cama.
Ela se agarrou ao braço do filho.
— Ouça bem, meu filho. Não tenho intenção de ficar inválida nem de ser
tratada como tal. Espero voltar a ser eu mesma em poucos dias, no máximo uma
semana.
— Sim, mãe — disse Patrick, com um sorriso preocupado.

O dr. Azul ficou encantado com a recuperação de Nicole. Depois de quatro


dias, ela andou até a parada do carro de transporte e de lá até em casa, apesar de
andar devagar e com a ajuda de Benjy.
— Não force muito seu organismo — disse o dr. Azul durante um exame
noturno. — Você está indo muito bem, mas me preocupa...
Quando a octoaranha terminou e se preparava para sair do quarto, Max
entrou e avisou que havia duas octoaranhas esperando por ele lá fora. O dr. Azul
saiu às pressas e voltou um instante depois com o Chefe Otimizador e um dos
membros da sua equipe.
O Chefe Otimizador desculpou-se por chegar sem avisar e por não ter
esperado até Nicole estar completamente restabelecida.
— Mas nós estamos numa situação de emergência e achamos que
devíamos nos comunicar com você imediatamente — disse o líder das
octoaranhas.
Nicole sentiu seu pulso acelerar-se e tentou manter a calma.
— O que aconteceu? — perguntou.
— Você provavelmente notou que não tem havido bombardeios nos últi-
mos dias — disse o Chefe Otimizador. — Os humanos pararam de atacar com os
helicópteros enquanto avaliam nosso ultimato... Há cinco dias levamos a mesma
mensagem para os três acampamentos das tropas. Nessa mensagem nós dizemos
que não toleraremos mais os bombardeios e que usaremos nossa tecnologia
superior para desfechar um ataque decisivo caso as hostilidades não cessem
imediatamente... Para ilustrar nossa capacidade tecnológica, incluímos na
mensagem uma cronologia nillet a nillet de tudo o que Nakamura e Macmillan
fizeram durante dois dias úteis na semana passada. Os líderes humanos ficaram
frenéticos, achando que nós havíamos subornado algum oficial do governo de alto
escalão e que conhecíamos todos os seus planos. Macmillan recomendou que
fosse aceito o nosso cessar-fogo e que as tropas se retirassem do nosso território.
Nakamura ficou furioso, mandou Macmillan sumir de sua presença e reorganizou
sua estrutura de comando. Em particular, ele admitiu para seu chefe de
segurança que qualquer retirada arruinaria a sua posição na colônia. Anteontem,
alguém sugeriu a Nakamura que talvez sua filha Ellie soubesse como obtivemos
essas informações. Ela foi levada ao palácio e interrogada pelo próprio Nakamura.
Ellie informou que em certos campos nós somos mais avançados do que os
humanos. E informou também que acredita que temos plena capacidade de obter
informações sobre acontecimentos no Novo Éden sem usar espiões nem outros
métodos convencionais da inteligência. Como Ellie foi muito direta, Nakamura
convenceu-se de que ela sabia mais do que estava contando. Interrogou-a duran-
te horas sobre vários assuntos, inclusive nossa capacidade militar e a geografia
do nosso domínio. Ellie astutamente evitou dar qualquer informação relevante,
como a existência da Cidade de Esmeralda, por exemplo, e respondeu várias
vezes que nunca havia visto nossas armas, nem soldados. Nakamura não
acreditou nela e a certa altura mandou que a levassem para a prisão e lhe
dessem uma surra. Desde então, Ellie tem se mantido em silêncio, apesar dos
maus-tratos que tem sofrido.
O Chefe Otimizador fez uma pausa. Nicole ficara muito pálida quando ele
descreveu o ocorrido com Ellie. O líder das octoaranhas virou-se para o dr. Azul e
perguntou:
— Posso continuar?
Max e Patrick estavam na porta. Eles não podiam compreender o que o
Chefe Otimizador dizia, mas viram a palidez de Nicole. Então Patrick entrou no
quarto e falou:
— Minha mãe esteve muito doente...
— Está tudo bem — interrompeu Nicole, fazendo um sinal com a mão e
respirando fundo. — Por favor, continue — disse para o Chefe Otimizador.
— Nakamura — continuou ele — agora convenceu-se, assim como os seus
assessores principais, de que nossa ameaça é um engodo. Ele acredita que, em-
bora nossa tecnologia seja muito avançada em alguma áreas, nós não temos um
bom esquema militar... Na última reunião com sua equipe, há apenas alguns
terts, ele concordou com um plano para nos vencer usando todo o seu arma-
mento disponível. O primeiro de seus ataques maciços será hoje de manhã.
— Portanto, nós concluímos com relutância que precisamos revidar a
esses ataques, caso contrário a sobrevivência da nossa colônia correrá risco.
Antes de vir ver você, autorizei a implementação do Plano de Guerra número 41,
uma de nossas respostas de força intermediária. Esse plano não resulta na
aniquilação dos colonos do Novo Éden, mas será suficientemente devastador para
que a guerra chegue a um rápido fim. Nossos analistas avaliam que vinte a trinta
por cento dos humanos morrerão...
O Chefe Otimizador parou quando viu a expressão de sofrimento no rosto
de Nicole. Ela bebeu um copo de água e perguntou com voz lenta:
— Nós poderemos saber mais detalhes sobre o seu ataque?
— Escolhemos um agente microbiológico, quimicamente muito semelhante
a uma enzima, que interfere na reprodução das células da sua espécie. Os
humanos jovens e saudáveis abaixo de quarenta anos têm defesas naturais fortes
o bastante para resistir à investida do agente. Os humanos mais velhos ou pouco
saudáveis sucumbirão rapidamente. Suas células não poderão se reproduzir de
forma adequada, e seus organismos simplesmente pararão de funcionar... Nós
usamos sangue, pele e outras células tiradas de todos vocês aqui da Cidade de
Esmeralda para verificar nossas previsões teóricas. Temos certeza de que os
jovens não serão afetados.
— Nossa espécie considera a guerra biológica imoral — disse Nicole depois
de uma breve pausa.
— Nós temos consciência — disse o Chefe Otimizador — de que dentro do
seu sistema de valores alguns tipos de guerra são mais aceitáveis do que outros.
Para nós, toda guerra é inaceitável. Nós só lutamos quando é absolutamente
necessário. Não podemos imaginar que faça diferença ser morto por um fuzil,
uma bomba, uma arma nuclear ou um agente biológico... Além do mais, teremos
de lutar com as armas de que dispomos.
Houve um longo silêncio. Nicole deu um suspiro, sacudiu a cabeça e enfim
falou.
— Eu devia estar agradecida por vocês nos contarem o que está aconte-
cendo nessa guerra estúpida, embora o espectro de tantas mortes seja muito
assustador. Gostaria que os resultados tivessem sido outros...
Quando as três octoaranhas fizeram menção de sair, Max e Patrick co-
meçaram a fazer perguntas a Nicole mesmo antes da saída dos visitantes.
— Espere um instante — disse Nicole aflita. — Chame os outros todos
aqui. Vou explicar só uma vez o que as octoaranhas me contaram.

Nicole não conseguiu dormir. Por mais que tentasse, não podia parar de
pensar no povo que iria morrer no Novo Éden. Rostos, a maioria de gente mais
velha, rostos de gente que ela conhecera e com quem tinha trabalhado durante
sua época ativa na colônia passavam por sua cabeça.
E Katie e Ellie?, pensou Nicole. E se as octoaranhas cometeram um erro?
Nicole viu Ellie como a vira da última vez, com seu marido e sua filha em casa.
Lembrou-se das brigas que tinha presenciado entre Ellie e Robert. O rosto can-
sado e gasto dele ficou fixado em sua mente. E Robert, oh, meu Deus. Ele é mais
velho e não se cuida nada.
Nicole virava-se na cama, frustrada por não poder fazer nada, até que
finalmente decidiu ficar sentada na escuro. Não sei se é tarde demais, disse para
si mesma. E pensou em Robert de novo. Eu não concordo com ele, e nem ao menos
tenho certeza de que é um bom marido para Ellie. Mas mesmo assim é o pai de
Nikki.
Um plano começou a desenvolver-se em sua cabeça. Nicole saiu da cama
animada e foi até o closet vestir uma roupa. Talvez eu não possa ajudar, mas pelo
menos saberei que tentei, pensou.
Nicole passou pelo corredor sem fazer o menor ruído. Não queria acordar
Patrick ou Nai, que estavam dormindo no quarto de Ellie desde que ela tivera o
ataque cardíaco. Eles me obrigariam a voltar para a cama.
Na Cidade de Esmeralda, do lado de fora, estava quase tão escuro quanto
dentro de casa. Nicole ficou na porta, esperando que seus olhos se acostumassem
para poder ver a casa ao lado. Depois de alguns minutos, conseguiu ver sombras.
Saiu do portal e virou para a direita.
Sua caminhada foi lenta. Dava uma meia dúzia de passos e parava para
olhar em volta. Levou vários minutos para chegar na porta da casa do dr. Azul.
Agora, se eu tiver sorte, pensou Nicole, lembrando-se, ele deve estar
dormindo no segundo quarto à esquerda. Ao entrar no quarto da octoaranha,
bateu levemente na parede. Um vaga-lume iluminou ligeiramente duas
octoaranhas empilhadas. O dr. Azul e Jamie dormiam juntinhos, com os
tentáculos emaranhados. Nicole deu uns passos e tocou de leve na cabeça do dr.
Azul, mas não houve resposta. Tocou com um pouco mais de força e a lente do
dr. Azul começou a girar.
— O que está fazendo aqui? — perguntou o dr. Azul em cores um instante
depois.
— Preciso da sua ajuda — respondeu Nicole. — É importante.
A octoaranha moveu-se lentamente, tentando soltar seus tentáculos sem
perturbar Jamie, mas em vão. O jovem octoaranha acordou. O dr. Azul disse para
Jamie voltar a dormir e foi até a porta com Nicole.
— Você devia estar na cama —- falou o dr. Azul.
— Eu sei, mas é uma emergência. Preciso falar com o Chefe Otimizador, e
queria que o senhor fosse comigo.
— A essa hora da noite?
— Não sei quanto tempo nos resta — disse Nicole. — Preciso ver o Chefe
Otimizador antes que esses agentes biológicos comecem a matar o povo do Novo
Éden... Estou preocupada com Katie e com toda a família de Ellie...
— Nikki e Ellie não sofrerão nada. Katie também é bem jovem, se é que
compreendi...
— Mas o organismo de Katie está corroído pelas drogas — interrompeu
Nicole. — O corpo dela provavelmente está velho... e Robert está desgastado de
tanto trabalho...
— Não tenho certeza se compreendi o que você me disse — falou o dr.
Azul. — Por que você quer ver o Chefe Otimizador?
— Para pedir um tratamento especial para Katie e Robert, partindo do
princípio de que Ellie e Nikki estarão bem... Deve haver algum modo, com a sua
mágica biológica, de eles serem identificados e poupados... por isso é que eu
quero que venha comigo... Para me apoiar.
A octoaranha não disse nada durante algum tempo.
— Tudo bem, Nicole — falou enfim —, eu vou, mas acho que você devia
estar na cama... E duvido que a gente possa fazer alguma coisa.
— Muito obrigada — falou Nicole, perdendo a formalidade por um instante
e abraçando o pescoço do dr. Azul.
— Você tem de me prometer uma coisa... — falou o dr. Azul enquanto
saíam pela porta da frente. — Não deve se esforçar demais... Se estiver se sen-
tindo fraca, me diga.
— Vou até me apoiar em você — disse ela sorrindo.
Foram andando devagar pela rua, Nicole apoiada em dois tentáculos do
dr. Azul. Porém as atividades e emoções do dia tinham sugado a pouca energia de
Nicole. Ela sentiu-se exausta antes de chegar no carro do transporte.
Parou para descansar. Os sons distantes que ela vinha ouvindo sem pres-
tar atenção tornaram-se mais fortes.
— Bombas, muitas bombas — falou Nicole.
— Nós fomos avisados dos ataques de helicópteros — disse a octoaranha.
— Mas não sei por que não estamos vendo os clarões...
De repente, parte da cobertura da cúpula explodiu em uma grande bola de
fogo. Um instante depois, Nicole ouviu um som ensurdecedor. Apertou com força
a mão do dr. Azul e olhou para o inferno a distância. No meio das chamas
identificou os restos de um helicóptero. Pedaços incinerados da cúpula caíam do
céu, alguns a menos de um quilômetro de distância.
Nicole não conseguia respirar, e o dr. Azul viu a expressão de exaustão em
seu rosto.
— Não vou conseguir — disse Nicole, agarrando-se à octoaranha com a
força que lhe restava. — Vá ver o Chefe Otimizador sozinho, em meu nome. Peça,
ou melhor, suplique para que ele faça alguma coisa por Katie e Robert... Diga que
é um favor pessoal... Para mim...
— Vou fazer todo o possível — falou o dr. Azul. — Mas primeiro vamos
voltar para sua casa...
— Mamãe! — Nicole ouviu Patrick gritar. Ele veio correndo pela rua e
chegou quando o dr. Azul entrava no transporte. Nicole olhou para a cúpula
exatamente quando a hélice do helicóptero, ardendo em chamas, caiu do céu e
espatifou-se à distância.

9
Katie jogou a seringa na pia e olhou-se no espelho.
— Agora sim, está bem melhor... Não estou mais tremendo —, disse em
voz alta.
Estava com o mesmo vestido que usara na audiência do pai. Também
tinha tomado uma decisão na semana anterior e contara a Franz o que estava
planejando fazer.
Virou-se e viu seu reflexo no espelho. O que será esse inchaço no meu
braço?, pensou. Era a primeira vez que reparava naquilo. No braço direito, entre o
cotovelo e o pulso, um caroço do tamanho de uma bola de golfe. Era um caroço
macio, não coçava nem doía, a não ser quando o apertava.
Katie deu de ombros e foi para a sala de estar mexer nos papéis que
deixara em cima da mesa. Fumou um cigarro, organizou os documentos e
colocou-os num envelope grande.
Ela recebera o telefonema do escritório de Nakamura naquela manhã.
Uma mulher de voz meiga tinha lhe dito que Nakamura poderia vê-la às cinco da
tarde. Quando Katie colocou o fone no gancho, mal pôde se conter. Tinha quase
perdido as esperanças de ver o grande líder. Três dias antes, quando pediu que
marcassem uma hora para falar de assuntos de interesse mútuo, a recepcionista
de Nakamura lhe dissera que ele andava muito ocupado com os preparativos da
guerra e não estava dando audiência a ninguém.
Katie olhou de novo para o relógio. Faltavam quinze minutos para as
cinco. Levaria apenas dez minutos para andar do apartamento até o palácio.
Pegou o envelope e abriu a porta do apartamento.

A espera estava abalando sua autoconfiança. Eram quase seis horas e


Katie ainda não havia sido admitida no santuário interno, a parte japonesa do
palácio onde Nakamura trabalhava e morava. Ela já tinha ido ao banheiro duas
vezes, e perguntado na volta se ainda teria de esperar muito. A recepcionista ao
lado da porta respondera nas duas vezes com um gesto vago e desinteressado.
Katie lutava consigo mesma. O efeito da droga estava diminuindo e ela
começou a ter dúvidas. Enquanto fumava um cigarro no banheiro, tentou
esquecer suas ansiedades pensando em Franz. Lembrou-se da última vez em que
fizeram amor. Ele estava muito triste quando foi embora. Franz me ama do seu
jeito, pensou Katie.
A japonesinha parou na porta e disse:
— Pode entrar agora.
Katie atravessou a sala de espera e entrou na parte principal do palácio.
Tirou os sapatos, colocou-os em uma prateleira e andou sobre o tatame só de
meias. Uma policial chamada Marge cumprimentou-a e disse a Katie para segui-
la. Apertando o envelope na mão, Katie andou uns,quinze metros até chegar a um
biombo à direita.
— Pode entrar — disse Marge.
Outra policial, oriental mas não japonesa, com um revólver na cintura,
esperava na sala.
— A segurança em torno de Nakamura-san anda especialmente reforçada
— explicou Marge. — Por favor, tire suas roupas e jóias.
— Toda a minha roupa? — perguntou Katie. — Até a calcinha?
— Tudo — disse a outra moça.
Suas roupas foram dobradas com cuidado e colocadas em uma cesta
marcada com seu nome, e as jóias foram postas em uma caixa especial. Marge
examinou-a toda, inclusive suas partes íntimas, e prendeu sua língua para
examinar a boca. Katie recebeu um yucata azul e branco e um par de sandálias
japonesas.
— Pode ir agora com Bangorn até a última sala de espera — falou Marge.
Katie pegou o envelope. Quando estava saindo, a policial oriental a deteve.
— Tudo fica aqui — disse ela.
— Mas é um encontro de negócios — protestou Katie. — O que eu vou
discutir com o sr. Nakamura está neste envelope.
As duas mulheres abriram o envelope, tiraram os papéis, examinaram um
a um contra a luz e depois passaram os papéis por uma máquina. Finalmente
colocaram tudo no envelope e a oriental chamada Bangorn fez sinal para Katie
segui-la.
A última sala de espera ficava a mais uns quinze metros dali. Mais uma
vez, Katie teve de sentar-se e esperar, e percebeu que estava começando a tremer.
Como pude achar que isso iria funcionar?, disse de si para si. Como sou idiota!
Quando se sentou, começou a sentir uma falta desesperada da droga, pior
do que todas as outras vezes. Com medo de gritar, disse a Bangorn que precisava
ir de novo ao banheiro. A policial acompanhou-a, e Katie pelo menos pôde lavar o
rosto.
Quando as duas voltaram, o próprio Nakamura estava na porta. Katie
achou que seu coração ia pular do peito. Está na hora, disse consigo mesma.
Nakamura usava um quimono amarelo e preto, coberto de flores brilhantes.
— Alô, Katie — disse ele com um sorriso malicioso. — Há quanto tempo
não vejo você.
— Alô, Toshio-san — respondeu ela nervosa.
Katie seguiu-o até o escritório e sentou-se de pernas cruzadas ao lado de
uma mesa baixa. Nakamura sentou-se na sua frente. Bangorn ficou na sala, em
um canto. Oh, não, pensou Katie ao ver que a mulher ia ficar ali, o que eu faço
agora?
— Eu devia ter entregue há muito tempo um relatório sobre o nosso traba-
lho — começou ela um instante depois, tentando falar normalmente e tirando o
documento de dentro do envelope. — Apesar de a economia estar em baixa, nós
conseguimos aumentar os lucros em dez por cento. Neste documento, poderá ver
que, embora a renda de Vegas não esteja alta, a retirada local, onde os preços são
mais baixos, subiu consideravelmente. Mesmo em San Miguel...
Nakamura deu uma olhada rápida no papel e colocou-o em cima da mesa.
— Não é preciso mostrar esses dados. Todos sabem que você é uma ótima
mulher de negócios. — Chegou um pouco para a esquerda e pegou uma grande
caixa preta de laca. — Seu trabalho foi muito elogiado. Se os tempos não
estivessem tão difíceis, você mereceria um grande aumento... Mas como as coisas
estão, eu gostaria ao menos de lhe oferecer um presente em sinal da minha
apreciação.
Nakamura estendeu a caixa para Katie.
— Obrigada — disse ela, admirando as montanhas e a neve desenhadas
na tampa. Era uma caixa muito bonita.
— Abra-a — falou Nakamura, pegando um dos bombons que estavam
num prato sobre a mesa.
Ao abrir a caixa e ver que estava cheia de droga, Katie deu um sorriso.
— Obrigada, Toshio-san. O senhor é muito generoso — disse.
— Pode experimentar — falou ele com um riso de escárnio. — Você não vai
me insultar.
Katie colocou um pouco do pó na língua e viu que era uma droga de alta
qualidade. Sem hesitar, tirou uma quantidade maior da caixa e enfiou na narina
esquerda com o dedo mindinho. Depois, tapou a narina, inspirou fundo e ficou
esperando a droga fazer efeito. Então, deu uma risada.
— Oba! — disse, desinibida. — Esta é das boas!
— Achei que você iria gostar — falou Nakamura, jogando o papel do
bombom em uma grande cesta de lixo ao lado da mesa.
Deve estar por aí em algum lugar, pensou Katie, lembrando-se do que
Franz dissera. Em algum lugar que não chame a atenção. Olhe na cesta de lixo.
Olhe por trás das cortinas. O ditador do Novo Éden estava sorrindo do outro lado
da mesa.
— Você queria me dizer mais alguma coisa? — perguntou. Katie respirou
fundo e sorriu.
— Só isso. — Chegou para a frente, colocou os cotovelos na mesa e beijou-
o nos lábios. Imediatamente sentiu as mãos ásperas da policial segurando seus
ombros. — Um pequeno agradecimento pelo que eu ganhei.
O julgamento de Katie foi correto. O desejo nos olhos dele era incon-
fundível. Nakamura fez um sinal para Bangorn sair.
— Pode nos deixar — disse ele para a policial, levantando-se. — Venha cá,
Katie, para me dar um beijo de verdade.
Katie deu uma olhada na cesta de lixo quando passou para o outro lado
da mesa, mas viu que só continha papéis. É claro, pensou. Aí seria muito óbvio...
Agora preciso fazer a coisa certa. Provocou Nakamura, dando-lhe um beijo e de-
pois outro, passando a língua pelos lábios dele. Depois afastou-se depressa rindo,
e Nakamura seguiu-a.
— Não — disse ela, dirigindo-se para a porta. — Ainda não... estamos só
começando.
Nakamura ficou parado e riu.
— Eu tinha me esquecido como você é talentosa. Aquelas meninas têm
sorte de tê-la como mentora.
— É preciso um homem excepcional para tirar o máximo de mim — falou
Katie, trancando a porta.
Olhou em volta do escritório e seus olhos pararam em outra cesta de lixo
menor, do lado oposto. Aquele parece ser o lugar ideal, disse para si mesma,
excitada.
— Você vai ficar de pé aí, Toshio, ou vai me dar um drinque? — perguntou
Katie.
— É claro — respondeu Nakamura, encaminhando-se para o bar escul-
pido à mão. — Uísque puro, não é?
— Sua memória é fenomenal — disse Katie.
— Lembro-me muito bem — falou Nakamura, enquanto preparava dois
drinques. — Nunca me esquecerei das suas brincadeiras, especialmente da
princesa e do escravo, a que mais gostei... Nós nos divertimos muito naquele dia.
Até você insistir em fazer outras brincadeiras. E duchas douradas. E até
mesmo coisas repugnantes, pensou Katie. Você deixou bem claro que eu não
bastava.
— Ei, rapaz — gritou em tom imperioso. — Estou com sede... onde está
meu drinque?
Nakamura franziu a sobrancelha, mas depois deu um sorriso.
— Sim, excelência — disse, trazendo um drinque de cabeça baixa e fa-
zendo uma reverência. — Alguma outra coisa, excelência?
— Sim — respondeu Katie. Tomou o uísque com a mão esquerda, segurou
o quimono de Nakamura com a direita, olhou direto nos seus olhos e beijou-o
com paixão para excitá-lo.
De repente, deu um passo atrás. Enquanto ele a observava, Katie foi
tirando seu yucata lentamente. Nakamura andou na sua direção, mas ela o
deteve com os braços.
— Agora, rapaz — ordenou ela —, baixe essas luzes e deite-se ali na
esteira, de costas, ao lado da mesa.
Nakamura obedeceu, e Katie foi até onde ele estava deitado.
— Agora — disse, em tom mais suave —, você sabe o que sua princesa
precisa, não é? Devagar, bem devagar, sem correria. — Katie baixou-se e
começou a acariciá-lo. — Acho que Musashi está quase pronto...
Katie beijou Nakamura, acariciando com os dedos seu rosto e seu
pescoço.
— Agora feche os olhos — cochichou no seu ouvido — e conte até dez,
bem devagarinho.
— Ichi, ni, san... — disse ele ofegante.
Com uma velocidade incrível, Katie atravessou a sala para examinar a
outra cesta de lixo. Pôs uns papéis de lado e encontrou o revólver.
— ... shi, go, ryoku...
O coração de Katie batia furiosamente quando ela pegou a arma, virou-se
e voltou para onde estava Nakamura.
— ... shichi, hachi, kyu...
— Isso é pelo que você fez com meu pai — disse Katie, encostando o cano
do revólver na cabeça dele e puxando o gatilho enquanto Nakamura abria os
olhos assustado.
— E isso é pelo que você fez comigo — disse, atirando três vezes seguidas
na sua genitália.
Os guardas arrombaram a porta em poucos segundos, mas Katie foi mais
rápida.
— E isso, Katie Wakefield — disse em voz alta, enfiando o revólver na boca
—, é pelo que você fez a si própria.

Ellie acordou quando ouviu mexerem nas chaves da sua cela. Esfregou os
olhos e perguntou:
— É você, Robert?
— Sou eu, Ellie. — Robert entrou na cela quando ela levantava e abraçou-
a. — Que bom ver você — disse ele. — Vim assim que Hans me disse que os
guardas tinham saído do posto.
Robert beijou sua esposa atônita.
— Desculpe, Ellie. Eu estava muito, muito errado. Ellie juntou seus
pertences em alguns segundos.
— Eles abandonaram o posto? Por quê, Robert? O que está acontecendo?
— Um caos completo e total — respondeu ele sério, com um ar de derrota.
— O que está dizendo, Robert? — gritou Ellie amedrontada. — Nikki está
bem, não é?
— Ela está ótima, Ellie... Mas há gente morrendo aos montes... E nós não
sabemos por quê... Ed Stafford desmaiou há uma hora e morreu antes de poder
ser examinado... É algum tipo de praga monstruosa.
As octoaranhas, pensou Ellie imediatamente, finalmente reagiram.
Abraçou-se ao marido e começou a chorar. Passado um instante, ele afastou-a e
falou:
— Desculpe, Ellie... Tem havido tanto tumulto... Você está bem?
— Estou, Robert... Faz dias que ninguém me interroga nem me tortura.
Mas onde está Nikki?
— Está com Brian Walsh na nossa casa. Lembra-se de Brian, o compa-
nheiro de computador de Patrick? Ele tem me ajudado a cuidar de Nikki desde
que você foi embora... Pobre rapaz, anteontem quando acordou, viu que seus pais
estavam mortos.
Ellie saiu do posto policial com Robert. Ele falava sem parar, passando de
um assunto para outro, mas deu para Ellie compreender algumas partes daquela
conversa quase incoerente. Segundo ele, mais de trezentas pessoas tinham
morrido em Novo Éden em apenas dois dias. E não havia sinal de que as coisas
parariam por aí.
— É estranho — observou ele —, só uma criança morreu... Em geral as
vítimas são idosas.
Na frente do posto de polícia de Beauvois, uma mulher desesperada, de
mais de trinta anos de idade, reconheceu Robert e agarrou-se a ele.
— O senhor tem de vir comigo imediatamente, doutor — gritou a mulher.
— Meu marido está inconsciente... Ele estava almoçando comigo e começou a
queixar-se de dor de cabeça. Quando voltei da cozinha encontrei-o caído no
chão... Tenho medo de que esteja morto.
— Está vendo?... — disse Robert, virando-se para Ellie.
— Vá com ela e depois para o hospital, se precisar... Eu vou para casa
cuidar de Nikki, e ficaremos esperando por você... — Deu um beijo no marido e
começou a dizer alguma coisa sobre as octoaranhas, mas desistiu.

— Mamãe, mamãe — gritou Nikki, correndo pelo corredor e pulando nos


braços de Ellie. — Senti muita falta sua, mamãe.
— E eu senti sua falta também, meu anjo. O que você tem feito?
— Tenho brincado com Brian — respondeu Nikki. — Ele é um homem
muito bom. Lê para mim e está me ensinando os números.
Brian Walsh, um rapaz dos seus vinte anos, apareceu no corredor com um
livro infantil na mão.
— Alô, sra. Turner. Não sei se está se lembrando de mim...
— É claro que estou, Brian. Pode me chamar de Ellie... Quero agradecer a
ajuda que você tem dado com Nikki...
— Foi um prazer, Ellie. Ela é uma criança incrível... Tirou uma porção de
pensamentos tristes da minha cabeça...
— Robert me contou sobre seus pais — interrompeu Ellie. — Sinto muito.
Brian sacudiu a cabeça.
— Foi tão estranho! Os dois estavam perfeitamente bem quando foram
dormir — disse, com os olhos cheios de lágrimas. — Eles pareciam tão pacíficos...
Brian virou-se e pegou um lenço para limpar as lágrimas.
— Vários amigos meus disseram que essa praga, ou o que seja, foi cau-
sada pelas octoaranhas. Você acha possível...
— Acho sim — respondeu ela. — Talvez elas tenham sido pressionadas
demais.
— Nós todos vamos morrer? — perguntou Brian.
— Não sei. Realmente não sei.
Os dois ficaram em silêncio por algum tempo.
— Bem, pelo menos sua irmã se livrou de Nakamura — disse Brian de
repente.
Ellie achou que não tinha ouvido a frase corretamente.
— De que você está falando, Brian? — perguntou.
— Você não ouviu nada sobre isso? Há quatro dias, Katie matou Na-
kamura e depois se matou.
Ellie ficou olhando estupefata para Brian.
— Papai me contou ontem sobre a tia Katie — falou Nikki. — Disse que ele
é que queria contar para você.
Ellie não dizia nada. Sua cabeça estava girando. Conseguiu despedir-se de
Brian e agradecer-lhe de novo, e depois sentou-se no sofá. Nikki foi para o lado
da mãe e pôs a cabeça no colo dela. As duas ficaram quietas por um longo tempo.
— E como seu pai ficou depois que eu fui embora? — perguntou Ellie
finalmente.
— Ficou bem, com exceção do caroço — disse a menina.
— Que caroço? — perguntou Ellie.
— No ombro, do tamanho da minha mão. Eu vi o caroço quando ele estava
fazendo a barba, há três dias. Papai disse que deve ter sido uma mordida de
aranha ou coisa parecida.

10
— Benjy e eu vamos para o hospital — anunciou Nicole. Os outros ainda
estavam terminando o café da manhã.
— Por favor, sente aí, Nicole — disse Eponine. — Pelo menos, termine seu
café.
— Obrigada — respondeu ela —, mas prometi ao dr. Azul que chegaríamos
cedo hoje. Houve muitas baixas no ataque aéreo de ontem.
— Mas você tem trabalhado demais, mãe — falou Patrick. — E não tem
dormido bastante.
— Isso ajuda a manter minha cabeça ocupada — disse Nicole. — Assim
não tenho tempo para pensar.
— Vamos, ma-mãe — falou Benjy entrando na sala e entregando o casaco
a Nicole.
De pé ao lado da mãe, Benjy sorriu e deu adeus para os gêmeos, que por
um milagre estavam quietos. Galileu fez uma careta e Benjy e Kepler riram.
— Ela ainda não se permitiu chorar a morte de Katie — disse Nai um
instante depois, assim que Nicole saiu. — Isso me preocupa. Mais cedo ou mais
tarde...
— Ela está com medo, Nai... — disse Eponine — de um outro ataque
cardíaco, ou talvez da sua sanidade... Nicole ainda está negando os fatos.
— Lá vem você, francesinha, com sua maldita psicologia — falou Max.
— Não se preocupe com Nicole... Ela é mais forte que todos nós. Vai
chorar a morte de Katie quando estiver pronta.
— Mamãe não vai à sala de vídeo desde que teve o ataque cardíaco.
Quando o dr. Azul contou a ela sobre o assassinato e suicídio de Katie, eu achei
que ela iria querer ver alguns dos vídeos... para ver Katie pela última vez... ou
pelo menos para ver como Ellie estava indo...
— A melhor coisa que sua irmã já fez, Patrick — comentou Max —, foi
matar aquele miserável. Por mais que se possa falar dela, Katie foi um bocado
corajosa.
— Katie tinha muitas qualidades — falou Patrick com tristeza. — Ela era
brilhante, sabia ser charmosa... só que tinha aquele outro lado também.
Fez-se um breve silêncio em volta da mesa do café. Eponine ia dizer
alguma coisa quando viram uma luz brilhante na porta da frente.
— Epa! — falou, levantando-se. — Vou passar o Marius para a outra casa.
Os ataques aéreos estão começando de novo.
Nai virou-se para Galileu e Kepler.
— Terminem depressa, meninos... vamos voltar para aquela casa especial
que o tio Max fez para nós.
Galileu fez uma careta.
— De novo? — reclamou.

Nicole e Benjy mal tinham chegado ao hospital quando as primeiras bom-


bas começaram a cair pela cúpula arrebentada. Todo dia ocorriam fortes ataques
aéreos. Mais de metade da cobertura da Cidade de Esmeralda fora destruída. As
bombas caíam em quase todas as partes da cidade.
O dr. Azul cumprimentou os dois e mandou logo Benjy para a área de
recepção.
— Mas eles estão finalmente sofrendo um impacto. O Chefe Otimizador
disse que os bombardeios devem cessar dentro de uns dois dias no máximo. Ele e
sua equipe estão fazendo planos para a próxima fase...
— Certamente os colonos não continuarão com a guerra — disse Nicole
forçando-se a não pensar muito no que estava ocorrendo no Novo Éden —
principalmente agora que Nakamura está morto.
— Devemos estar preparados para qualquer contingência — observou o
dr. Azul. — Mas eu espero que você esteja certa.
Ao passarem pelo corredor, foram abordados por outro médico octoaranha
que Benjy chamava de Penny, por causa da marca vermelha do lado direito da
sua fenda, que parecia com uma moeda do Novo Éden. Penny descreveu ao dr.
Azul as terríveis cenas que havia presenciado no começo da manhã, fora do
Domínio Alternativo. Nicole compreendeu grande parte do que Penny dizia, não só
porque a octoaranha repetiu as histórias várias vezes como também porque usou
frases muito simples na sua linguagem de cor.
Penny informou ao dr. Azul que havia necessidade urgente de pessoal e
suprimentos do departamento médico para cuidar dos feridos do Domínio
Alternativo. O dr. Azul tentou explicar a Penny que eles não tinham gente
suficiente nem para cuidar dos pacientes do hospital.
— Eu podia ficar com Penny algumas horas esta manhã — sugeriu Nicole
—, se puder ajudar.
O dr. Azul olhou para a sua amiga humana.
— Tem certeza de que vai agüentar, Nicole? Ouvi dizer que as coisas estão
muito feias por lá.
— Tenho me sentindo melhor a cada dia — replicou Nicole. — E quero ir
para onde possa ser mais necessária.
O dr. Azul disse a Penny que Nicole iria ajudá-la no Domínio Alternativo
no máximo durante um tert, desde que o próprio Penny se comprometesse a
trazê-la de volta para o hospital. Penny concordou e agradeceu a Nicole por ter se
oferecido como voluntária.
Logo que entraram no transporte, Penny explicou a Nicole o que estava
ocorrendo no Domínio Alternativo.
— Os feridos estão sendo levados para qualquer prédio que ainda esteja
de pé; ali são examinados, tratados com medicações de emergência se necessário
e depois levados para o hospital... A situação está pior a cada dia. Muitos
alternativos já perderam a esperança.
O resto da viagem foi deprimente. A luz dos poucos vaga-lumes, Nicole viu
destruição por todo lado. Na hora de abrirem o portão do sul, os guardas tiveram
de empurrar duas dúzias de alternativos, alguns deles feridos, que queriam
entrar na cidade. O teatro onde Nicole e seus amigos tinham assistido à peça de
moralidade estava em escombros. Mais de metade das construções junto ao
Distrito de Artes estava no chão. Nicole começou a sentir-se mal. Eu não tinha
idéia de que a coisa estivesse tão feia, pensou. De repente, uma bomba explodiu
no alto do carro de transporte.
Nicole foi jogada na rua. Tonta, ela tentou ficar de pé devagarinho. O carro
de transporte foi partido em dois. Penny e o outro médico octoaranha estavam
enterrados nos escombros. Nicole tentou tirar Penny de lá, mas depois de algum
tempo compreendeu que era impossível. Outra bomba explodiu ali perto. Nicole
agarrou sua maleta, que caíra na rua ao seu lado, e foi cambaleando por uma
ruela lateral em busca de um abrigo.
Uma octoaranha solitária estava caída no meio da rua. Nicole abaixou-se e
tirou a lanterna da bolsa. A lente da octoaranha estava imóvel. Nicole rolou a
criatura de lado e viu imediatamente o ferimento na sua cabeça. Uma grande
quantidade de material branco e corrugado saía do ferimento e escorria para a
rua. Nicole estremeceu e quase vomitou. Olhou em volta rapidamente para ver se
encontrava alguma coisa para cobrir a octoaranha. Nesse instante, uma bomba
atingiu um prédio a menos de duzentos metros dali, e Nicole resolveu levantar-se
e continuar seu caminho.
Encontrou um pequeno abrigo do lado direito da rua, mas já estava ocu-
pado por cinco ou seis animaizinhos tipo salsicha polonesa que a expulsaram.
Um deles foi mordendo seu calcanhar ao longo de uns vinte metros. A uma certa
altura, o animal foi embora, e Nicole parou para tomar fôlego. Passou um
instante examinando-se e descobriu, para seu espanto, que não estava muito
machucada, só tinha umas mordidas esparsas.
Houve um intervalo nos bombardeios. Fez-se um silêncio sepulcral no
Domínio Alternativo. Em frente a Nicole, a uns cem metros, um vaga-lume
sobrevoava um prédio que parecia intacto. Nicole viu duas octoaranhas, uma
delas obviamente ferida, entrarem no prédio. Deve ser um dos hospitais
temporários, pensou, dirigindo-se para lá.
Um instante depois, Nicole ouviu um som peculiar, logo acima de onde ela
estava. No início não registrou aquele som, mas da segunda vez percebeu que era
um choro e parou abruptamente na rua, toda arrepiada. É um choro de bebê,
pensou, permanecendo imóvel. Durante uns segundos não ouviu mais nada.
Seria imaginação minha?, perguntou a si própria.
Nicole apertou os olhos e olhou para a direita, tentando ver naquela
escuridão de onde vinha o choro. Viu uma cerca de arame quase toda caída, a
uns quarenta metros de uma rua transversal. Olhou de novo para o prédio
vizinho. As octoaranhas certamente estão precisando de mim ali, pensou. Mas não
posso deixar de... O choro ressoou na noite, dessa vez mais claro, subindo e
descendo de amplitude como um típico choro de bebê humano.
Nicole foi depressa para a cerca derrubada e viu um cartaz colorido, que-
brado no chão. Ajoelhou-se e pegou um pedaço do cartaz. Quando reconheceu as
cores do zoológico, seu coração deu um pulo. Richard ouviu o choro quando esteve
no zôo, lembrou-se.
Houve uma explosão a cerca de um quilômetro à esquerda, e depois outra
mais perto. Os helicópteros tinham voltado à carga. O choro do bebê tornou-se
contínuo. Nicole tentou andar naquela direção, mas seu progresso era lento. Era
difícil identificar o choro em meio ao barulho das explosões.
Uma bomba explodiu na sua frente, a menos de cem metros, e fez-se um
silêncio total. Oh, não, pensou aflita, logo agora que eu estava quase chegando.
Houve outra explosão a distância, seguida de um período de silêncio. Talvez fosse
um tipo diferente de animal, Nicole lembrou-se de ter dito a Richard. Em algum
lugar do universo deve haver uma criatura que chore como um bebê humano.
Tudo o que ela podia ouvir agora era a sua própria respiração. O que faço
agora? Continuo a busca, esperando que... ou viro as costas e vou embora?,
perguntou para si mesma.
Seu pensamento foi interrompido pelo reinicio do choro penetrante. Nicole
moveu-se tão depressa quanto podia. Não, continuou dizendo consigo mesma,
seu coração de mãe dilacerado por aquele choro, é inconfundível. Não pode haver
outro som como esse. A cerca estava caída do lado direito da rua estreita. Nicole
passou por cima dela e viu uma certa movimentação nas sombras à sua frente.
O bebê estava sentado no chão ao lado de um adulto humano sem vida,
possivelmente sua mãe. A mulher estava emborcada no chão de terra, coberta de
sangue. Depois de constatar rapidamente que a mulher estava morta, Nicole
abaixou-se e pegou a criança de cabelos escuros. Espantado, o bebê ofereceu
resistência e deu um berro no meio da noite. Nicole encostou-o no ombro e bateu
ligeiramente nas suas costas.
— Não, não, pare de chorar, tudo vai dar certo — falou, enquanto o bebê
continuava a gritar.
Na luz mortiça, Nicole viu que as roupas bizarras, duas camadas de sacos
com aberturas nos lugares apropriados, estavam manchadas de sangue. Apesar
dos protestos da criança, Nicole lhe fez um ligeiro exame. A não ser por um
pequeno ferimento na perna e a sujeira que cobria todo o seu corpo, a menina, de
cerca de um ano, parecia estar bem.
Nicole deitou a criança com cuidado em um pequeno pano limpo, tirado
de sua maleta médica, e começou a limpá-la. Toda vez que uma bomba explodia
na vizinhança, o corpo da menina estremecia. Nicole tentou acalmá-la cantando
uma canção de ninar de Brahms. A certa altura, a menina parou de chorar e
olhou-a com seus imensos olhos azuis. Quando Nicole começou a tirar sua
sujeira com um pano úmido, ela não protestou. Continuou a limpar por baixo da
roupa de saco e descobriu, assustada, um colarzinho de corda no peitinho da
menina, que começou a gritar de novo.
Nicole pegou a criança nos braços e levantou-se. Ela está com fome,
pensou, olhando em volta para ver se encontrava algum abrigo. Deve haver
alguma comida por aqui. Por baixo de uma saliência de pedra a uns quinze
metros de distância, que parecia ter sido uma área fechada antes do início dos
bombardeios, Nicole descobriu uma grande panela com água, uns pequenos
objetos com finalidade desconhecida, uma esteira de dormir e vários outros
pedaços de saco com os quais a criança e a mulher estavam vestidas. Mas não
viu qualquer comida. Tentou em vão fazer com que a menina bebesse um pouco
de água, e depois teve uma idéia.
Voltou para o corpo da mãe e verificou que ainda havia algum leite na-
queles seios, pois a mulher tinha morrido recentemente. Nicole levantou o tronco
da mulher e sentou-se por trás dela no chão. Apoiando o corpo morto no seu,
segurou o bebê contra os peitos da mãe e viu que ela mamava.
A criança estava faminta. No meio da mamada, uma bomba estourou e
iluminou o rosto da mulher morta. Era o mesmo rosto que Nicole vira na pintura
feita pelas octoaranhas na Praça dos Artistas. Então não era minha imaginação,
pensou.
A menininha dormiu quando terminou de mamar. Nicole enrolou-a em um
dos sacos que estavam por ali, colocou-a no chão e examinou a mulher morta
pela primeira vez. Dois grandes estilhaços de bombas haviam perfurado sua coxa
direita e ela sangrara até a morte. Quando examinava aqueles ferimentos, sentiu
uma saliência estranha na nádega direita da mulher. Curiosa, Nicole levantou
ligeiramente o corpo do chão, passou os dedos pela saliência e teve a impressão
de que um objeto duro fora implantado por baixo da pele da mulher.
Pegou a tesoura na sua maleta, fez uma incisão ao lado da saliência e
retirou um objeto que parecia ser de prata, do tamanho e forma de um charuto
pequeno, de doze a quinze centímetros de comprimento e cerca de dois centí-
metros de diâmetro. Estupefata, Nicole colocou o objeto na mão direita e tentou
imaginar o que poderia ser aquilo. Provavelmente é uma espécie de marcação do
zôo, pensou. Nesse instante, uma bomba explodiu ali perto, e a criança acordou.
Na direção da Cidade de Esmeralda, bombas caíam com intensidade cada
vez maior. Enquanto confortava a criança, Nicole pensava no que fazer. Uma
grande bola de fogo cortou o céu enquanto uma bomba produzia uma explosão
ainda maior no solo. Em meio ao clarão, Nicole pôde ver que ela e a criança
estavam no topo de um morro, muito perto da parte desenvolvida do Domínio
Alternativo. A planície Central começava a uns cem metros dali.
Nicole levantou-se com o bebê apoiado no ombro e sentiu-se exausta. —
Vamos sair desse bombardeio todo — disse em voz alta para o bebê, dirigindo-se
para a planície Central. Jogou o objeto cilíndrico dentro da sua maleta e pegou
mais uns dois sacos limpos. Eles podem ser úteis se fizer frio, pensou, jogando os
sacos pesados por cima dos ombros.
Foi preciso caminhar uma hora, carregando o bebê e os sacos, para che-
gar a um ponto da planície Central onde parecia a salvo do bombardeio. Nicole
deitou-se de costas, com o bebê em cima do peito, e enrolou os sacos em volta
delas duas. Um segundo depois estava dormindo.

Nicole acordou com o bebê se mexendo. Ela acabara de sonhar que estava
conversando com Katie, mas não se lembrava do que haviam dito uma à outra.
Sentou-se e improvisou uma fralda para o bebê com um pano limpo, tirado de
sua maleta. A criança olhava-a com um ar curioso, os olhos azuis bem abertos.
— Bom dia, menininha, quem quer que você seja — disse Nicole animada.
E a criança sorriu pela primeira vez.
Já não estava muito escuro. Um grupo de vaga-lumes iluminava a Cidade
de Esmeralda a distância, e os grandes buracos feitos na cúpula deixavam a luz
passar, clareando toda a área em volta de Rama. A guerra deve ter terminado,
pensou Nicole, ou pelo menos os bombardeios. Senão a cidade não estaria tão
iluminada.
— Bem, minha nova amiguinha — disse Nicole, colocando o bebê sobre
um dos sacos limpos e ficando de pé para dar uma boa espreguiçada — vamos
ver que aventuras nos foram reservadas para hoje.
A menina saiu de cima do saco e engatinhou pela terra da planície Cen-
tral. Nicole pegou-a e colocou-a de novo sobre o saco, porém mais uma vez ela
saiu engatinhando.
— Espere aí, garotinha — disse Nicole com uma risada, pegando a menina
pela segunda vez.
Foi difícil juntar seus pertences com o bebê no colo, mas enfim conseguiu
e foi andando lentamente na direção da civilização. Os prédios mais próximos do
Domínio Alternativo ficavam a uns trezentos metros; durante a caminhada, ela
decidiu ir direto procurar o dr. Azul no hospital. Partindo do princípio de que a
guerra terminara, ou que estava temporariamente suspensa, Nicole pensou em
passar a manhã tentando descobrir o que fazer com a criança. Quem são seus
pais e há quanto tempo eles foram raptados do Novo Éden seriam suas primeiras
perguntas. Ela estava zangada com as octoaranhas. Por que vocês não me
contaram que havia outros humanos na Cidade de Esmeralda? E como vocês
podem explicar a forma como trataram esta criança e sua mãe? Era o que
pretendia perguntar ao Chefe Otimizador.
A menina, que estava bem acordada, não parava quieta nos braços de
Nicole, que começou a sentir-se cansada. Decidiu então parar para descansar.
Enquanto a menina brincava na terra, ela ficou olhando a destruição à sua
frente, ali no Domínio Alternativo e na Cidade de Esmeralda ao longe, e de
repente sentiu-se muito triste. E para que tudo isso?, perguntou a si mesma. A
imagem de Katie passou pela sua cabeça, mas Nicole afastou-a, preferindo
sentar-se na terra e brincar com o bebê. Cinco minutos depois ouviu um apito.
O som vinha do céu, da própria Rama. Nicole deu um pulo e seu pulso
acelerou-se. Sentiu uma ligeira dor no peito, mas isso não impediu sua excitação.
— Olhe — gritou ela para a menina —, olhe lá ao sul!
Ao longe, raios coloridos brincavam em volta da ponta do Grande Chifre, o
obelisco maciço que subia ao longo do eixo de rotação da nave espacial cilíndrica.
Os raios de luz fundiram-se e formaram um imenso anel vermelho perto da ponta
do obelisco. Minutos depois, o anel planava lentamente para o norte ao longo do
eixo de Rama. Em torno do Grande Chifre juntaram-se mais cores, e um segundo
anel cor de laranja se formou e seguiu o anel vermelho na direção norte do céu de
Rama.
O apito continuou, mas não era um apito áspero nem estridente. Para
Nicole parecia um som quase musical.
— Alguma coisa vai acontecer — disse, exultante —, alguma coisa boa! A
menininha não tinha idéia do que acontecia, mas começou a rir quando a mulher
levantou-a e balançou-a no ar. Para ela, aqueles anéis eram fascinantes. Aos
poucos um anel amarelo e um verde cruzaram o céu negro de Rama, e o anel
vermelho, na frente da procissão, chegou ao mar Cilíndrico.
Mais uma vez Nicole balançou a menina no ar, e o colar que ela trazia por
baixo das roupas quase voou por cima de sua cabeça. Nicole pegou a menina e
deu-lhe um grande abraço.
— Eu tinha me esquecido do seu colar. Agora que a luz está mais forte,
vou dar uma olhada nele.
A menina deu um risinho quando Nicole puxou a corda do colar por cima
de sua cabeça para examinar a peça redonda de madeira, de uns quatro
centímetros de diâmetro, com a efígie de um homem com os braços erguidos,
cercado por todos os lados pelo que parecia ser fogo. Nicole tinha visto uma
escultura de madeira assim há muitos anos, na mesa do quarto de Michael
O'Toole em Newton. San Miguel de Siena, disse ela baixinho, virando a peça de
madeira.
No verso vinha escrito "Maria" em letras cuidadosamente gravadas em
baixo-relevo.
— Deve ser o seu nome. Maria... Maria — disse Nicole para a menina, que
não deu nenhum sinal de reconhecimento.
E, pela terceira vez, Nicole balançou-a no ar, dando uma risada.
Um instante depois, a criança estava no chão brincando na terra. Nicole
vigiava a menina e ao mesmo tempo observava os anéis coloridos no céu de
Rama. Agora podiam ser vistos oito anéis em azul, marrom, rosa e roxo sobre o
Hemicilindro Sul, os quatro primeiros da fila sobrevoando o norte. Quando o anel
vermelho sumiu no horizonte ao norte, outro da mesma cor formou-se na ponta
do Grande Chifre.
Exatamente como há muitos anos, pensou Nicole. Mas sua cabeça ainda
não estava concentrada naqueles anéis. Ela tentava lembrar-se de todas as
pessoas dadas como desaparecidas nos registros do Novo Éden. Tinha havido
alguns acidentes de barco no lago Shakespeare, e de vez em quando um doente
mental do sanatório de Avalon desaparecia... Mas como um casal pôde
desaparecer assim? E onde estava o pai de Maria? Eram muitas as perguntas que
pensava em fazer para as octoaranhas.
Os deslumbrantes anéis continuavam a flutuar sobre sua cabeça. Nicole
lembrou-se que quando Katie tinha uns onze anos ficou tão encantada com uns
anéis como aqueles que gritou de alegria. Ela sempre foi minha filha mais
desinibida, pensou Nicole, sem conseguir deter seus pensamentos. Sua risada era
contagiante e espontânea... Katie tinha muito potencial.
Seus olhos encheram-se de lágrimas. Nicole limpou os olhos, e com
grande esforço conseguiu concentrar-se em Maria, que estava toda feliz comendo
terra da planície Central.
— Não, Maria — disse Nicole, limpando com carinho as mãozinhas da
menina. — Isso é sujo.
Maria fez uma careta e começou a chorar. Até parece Katie, pensou Nicole
imediatamente. Não suportava que eu lhe dissesse não. E uma quantidade de
lembranças de Katie invadiu sua cabeça: primeiro Katie bebê e adolescente em
Nodo, e finalmente já uma moça no Novo Éden. Nicole sentiu uma dor forte no
coração, seu rosto se cobriu de lágrimas e seu corpo foi tomado de soluços.
— Oh, Katie — disse em voz alta. — Por quê? Por quê? Por quê? Maria
parou de chorar e ficou olhando assustada para aquela mulher com o rosto
coberto com as mãos.
— Não chore, Nicole — disse uma voz por trás dela. — Tudo vai acabar em
breve.
Nicole achou que estava delirando. Virou-se lentamente e viu a Águia
aproximando-se com os braços estendidos.

O terceiro anel vermelho tinha atingido o norte, e não havia mais luzes
coloridas em volta do Grande Chifre.
— Então todas as luzes aparecerão quando os anéis sumirem? — per-
guntou Nicole à Águia.
— Que boa memória! Você deve estar certa.
Maria, no colo de Nicole, deu um sorriso quando foi beijada com carinho.
— Obrigada pela menina — disse Nicole. — Ela é maravilhosa... e com-
preendo o que você está me dizendo.
A Águia olhou para Nicole.
— Do que está falando? — perguntou. — Nós não tivemos nada a ver com
esse bebê.
Nicole olhou fundo nos olhos azuis místicos da criatura alienígena. Ela
nunca vira dois olhos tão expressivos como aqueles. Mas fazia muito tempo que
não lia a linguagem dos olhos da Águia. Será que estava brincando a respeito de
Maria, ou estava falando sério? Certamente não foi por acaso que ela descobriu a
criança logo depois de Katie se matar...
Você está sendo muito severa no seu julgamento, dissera-lhe Richard um
dia em Nodo. Só porque a Águia não é como você e eu biologicamente não quer
dizer que não tenha vida. Ela é um robô, tudo bem, mas é muito mais inteligente
do que nós... e muito mais sutil...
— Então você esteve escondida em Rama todo esse tempo? — perguntou
Nicole pouco depois.
— Não — respondeu a Águia, sem maiores explicações. Nicole sorriu.
— Você já me disse que nós não chegamos a Nodo ou a algum lugar
equivalente, e estou certa de que não apareceu por aqui só para uma visita
social... Vai me dizer por que está aqui?
— Esta é uma intercessão no estágio dois — disse a Águia. — Nós deci-
dimos interromper o processo de observação.
— Sim — falou Nicole, pondo o a menina chão. — Eu compreendo o
conceito... mas o que irá acontecer agora?
— Todos irão dormir — respondeu a Águia.
— E quando acordarem?...
— Só posso dizer que todos irão dormir.
Nicole deu um passo na direção da Cidade de Esmeralda e levantou os
braços para o céu. Só restavam agora três anéis coloridos, e eles estavam muito
longe, acima do Hemicilindro Norte.
— Mais uma pergunta, só por curiosidade... Não estou reclamando, você
sabe... — disse Nicole com um traço de ironia na voz, olhando para a Águia. —
Por que você não intercedeu por nós há mais tempo? Antes de tudo isso
acontecer? Antes de ocorrerem tantas mortes?... — disse, estendendo os braços
para a Cidade de Esmeralda.
A Águia não respondeu imediatamente.
— Você não pode ter duas coisas ao mesmo tempo — disse afinal. — Não
pode ter livre-arbítrio e um poder superior benevolente que a proteja de si
mesma.
— Desculpe — falou Nicole com ar intrigado. — Terei feito por engano uma
pergunta religiosa?
— Não — respondeu a Águia. — Mas você precisa compreender que nosso
objetivo é desenvolver um catálogo completo de todos os viajantes espaciais nessa
região da galáxia. Não somos juízes. Somos cientistas. Não nos importa se vocês
forem naturalmente propensos à autodestruição. Porém, importa-nos se os
resultados futuros do nosso projeto não mais justificarem os recursos
significativos que aplicamos.
— O quê? — disse Nicole. — Está me dizendo que não vai interceder
contra esse derramamento de sangue, mas por outra razão?
— Estou. Mas agora tenho de mudar de assunto, pois nosso tempo é
extremamente limitado. As luzes aparecerão daqui a dois minutos, e você dormirá
um minuto depois... Se desejar comunicar alguma coisa a esta menina...
— Nós vamos morrer? — perguntou Nicole assustada.
— Não imediatamente — respondeu a Águia. — Mas não posso garantir
que todos estarão vivos depois desse período de sono.
Nicole sentou-se no chão ao lado da menina. Maria estava novamente com
a boca cheia de terra. Nicole limpou seu rosto com cuidado e ofereceu-lhe um
pouco de água. Para sua surpresa, Maria deu uns goles, derramando o resto pelo
queixo.
Nicole sorriu e Maria deu uma risadinha. Nicole fez cócegas debaixo do
queixo da menina, e ela soltou uma gargalhada, um riso mágico, puro e
desinibido. Era um som tão bonito e comovente que os olhos de Nicole encheram-
se de lágrimas. Tudo bem, se este for o último som que vou ouvir na vida...
De repente, Rama ficou toda iluminada. O espetáculo era assombroso. O
Grande Chifre e os seis acólitos que o rodeavam dominaram o céu por cima deles.
— Quarenta e cinco segundos? — Nicole perguntou à Águia.
O homem-pássaro alienígena fez que sim. Nicole pegou a menina e disse:
— Sei que nada do que te aconteceu recentemente faz sentido, Maria —
disse, com a menina no colo —, mas quero que saiba que você passou a ser muito
importante na minha vida e que eu te amo muito.
Os olhos da menina demonstravam certa sabedoria. Ela inclinou-se e
encostou a cabeça no ombro de Nicole, que ficou sem saber o que fazer. Depois
deu umas palmadinhas nas costas dela e começou a cantar baixinho:
— Deite aqui... pra descansar... Tenha um sono abençoado...
DE VOLTA A NODO

1
Os sonhos vieram antes da luz. Eram sonhos desconexos, imagens a
esmo, passando às vezes a blocos unificados, sem aparente finalidade ou direção.
Sonhos com cores e padrões geométricos foram os primeiros de que Nicole se
lembrou, mas sem saber quando tinham começado. A certa altura pensou pela
primeira vez — Sou Nicole, e ainda devo estar viva —, mas isso tinha sido há
muito tempo. Desde então ela havia visto em imaginação cenas inteiras, inclusive
rostos, dentre os quais conheceu alguns. Esse é Omeh, disse a si mesma. Aquele
é meu pai. E sentia grande tristeza à medida que ficava cada vez mais desperta.
Richard fazia parte dos seus últimos sonhos, e Katie também. Os dois estão
mortos. Eles morreram antes de eu dormir, lembrou-se.
Quando Nicole abriu os olhos, não conseguiu ver nada. A escuridão era
completa. Mas aos poucos foi tomando conhecimento do que a cercava. Deixou as
mãos caírem para o lado e sentiu com os dedos a textura macia da espuma.
Virou-se de lado com grande esforço. Devo estar sem peso, pensou, pondo a
cabeça para funcionar depois de anos de adormecimento. Mas onde estou?,
perguntou a si mesma antes de cair no sono de novo.
Na próxima vez em que acordou, Nicole viu uma luz vindo do outro lado
do container onde dormia. Soltou os pés da espuma branca que os prendia,
levantou-os em frente à luz e viu que estavam calçados com uns chinelos
transparentes. Esticou-se para ver se conseguia tocar na luz com os dedos dos
pés, mas a luz estava muito longe.
Nicole colocou as mãos em frente aos olhos. A luz era tão fraca que ela
não conseguiu ver detalhes, apenas a silhueta escura dos dedos. O container era
bastante espaçoso; ela se sentou, mas só conseguiu encostar a mão no teto
apoiando-se na outra mão e erguendo o corpo. Feito isso, apertou a espuma
macia com os dedos, e por trás da espuma sentiu uma superfície dura,
possivelmente de madeira ou até mesmo de metal.
Aquela ligeira movimentação deixou-a exausta. Sua respiração acelerou-
se, as batidas cardíacas aumentaram e a mente ficou mais alerta. Nicole lem-
brava-se perfeitamente de seus últimos momentos antes de cair naquele sono
profundo em Rama. A Águia veio logo depois que eu encontrei aquela menininha
no Domínio Alternativo... E onde estou agora? Quanto tempo fiquei dormindo?,
pensava Nicole.
Ela ouviu uma batida suave na porta do container e deitou-se de costas
na espuma. Alguém vem aí. Minhas perguntas serão em breve respondidas. A
tampa do container abriu-se lentamente, e Nicole protegeu os olhos da luz. Então
viu o rosto da Águia e ouviu sua voz.

Ela e a Águia estavam sentadas em uma grande sala onde tudo era
branco. As paredes, o teto, a mesinha redonda, e até mesmo as cadeiras, xícaras,
tigelas e colheres. Nicole tomou mais uma colherada da sopa quente, que parecia
um caldo de galinha. À sua esquerda, encostado na parede, ela viu o container
branco no qual ela estivera deitada. Não havia outros objetos na sala.
— ... Ao todo, uns dezesseis anos, no tempo dos viajantes — dizia a Águia.
Tempo dos viajantes, pensou Nicole. Esse era o termo que Richard usava... — Nós
não retardamos tanto seu envelhecimento como da outra vez. Nossos
preparativos foram um tanto apressados.
Apesar de não sentir seu peso, para Nicole cada ato físico era um esforço
monumental, pois seus músculos tinham ficado inativos durante muito tempo. A
Águia ajudou-a a arrastar os pés entre o container da parede e a mesa. Suas
mãos tremiam um pouco quando ela tomou a água e a sopa.
— Então estou com uns oitenta anos agora? — perguntou para a Águia
com uma voz fraca, que mal reconheceu.
— Mais ou menos — respondeu o alienígena. — Seria impossível dar uma
idade significativa para você.
Nicole olhou para seu Companheiro Águia do outro lado da mesa. Ele não
tinha mudado nada. Seus olhos azuis e o bico cinza não tinham perdido nada de
sua intensidade mística. As penas do alto da cabeça continuavam brancas como
a neve, contrastando com as penas cinza-escuras da cara, do pescoço e das
costas. Os quatro dedos de cada mão, esbranquiçados e sem penas, eram macios
como os de uma criança.
Nicole examinou suas próprias mãos pela primeira vez: estavam enru-
gadas e cheias de manchas senis. Virou-as e lembrou-se das palavras de Richard.
Encarquilhado. Não é uma palavra e tanto? Significa mais do que enrugado... Não
sei se vou ter a chance de ficar assim... A lembrança de Richard apagou-se.
Minhas mãos estão encarquilhadas, pensou Nicole.
— Você nunca envelhece? — perguntou à Águia.
— Não, pelo menos não no sentido que vocês dão a essa palavra... Sou
submetido a uma manutenção regular, e os subsistemas que mostram de-
sempenho e degradação são substituídos.
— Então você nunca morre? A Águia hesitou um instante.
— Não exatamente assim. Como todos os membros do meu grupo, fui
criado para um determinado fim. Quando minha existência não for mais
necessária e eu não puder ser programado rapidamente para desempenhar uma
função nova e necessária, serei desligado.
Nicole começou a rir, mas conteve-se.
— Desculpe, sei que não é engraçado... mas a forma de você usar as
palavras foi um tanto peculiar... Desligado é tão...
— Mas é a palavra correta — disse a Águia. — Dentro de mim há várias
fontes mínimas de energia, e também um sofisticado sistema de distribuição de
energia. Todos esses elementos são essencialmente modulares e portanto
transferíveis. Quando eu não for mais necessário, os elementos podem ser
retirados e usados em outro ser.
— Como se fosse um transplante de órgãos — falou Nicole, terminando de
beber sua água.
— Mais ou menos. O que me faz lembrar de outra coisa... Durante seu
sono profundo, seu coração parou de bater duas vezes, sendo que da segunda vez
logo depois que chegamos aqui no sistema Tau Ceti... Nós conseguimos mantê-la
viva com drogas e estímulo mecânico, mas seu coração está extremamente
fraco... Se você quiser ter uma vida ativa durante algum tempo, terá de pensar
em trocar de coração...
— Foi por isso que me deixou aqui durante tanto tempo? — disse Nicole
apontando para o container.
— Em parte foi — disse a Águia. Ele já explicara a Nicole que quase todos
os outros de Rama tinham acordado muito antes, alguns até um ano antes, e que
estavam vivendo amontoados em outro lugar perto dali. — Mas nós também
ficamos preocupados com o seu conforto naquela nave adaptada... Ela foi re-
modelada muito depressa, por isso não tem muita sofisticação... E também nos
preocupamos por você ser a sobrevivente humana mais velha de todas...
É isso mesmo, disse Nicole para si mesma. O ataque das octoaranhas
ceifou todas as pessoas acima de quarenta anos... Eu fui a única poupada...
A Águia parou de falar por algum tempo. Quando Nicole olhou para o
alienígena de novo, seus olhos hipnotizantes pareciam expressar emoção.
— Além do mais, você é muito especial para nós... você teve um papel
básico nesse nosso empreendimento...
Será possível, pensou Nicole de repente, ainda olhando para os olhos
fascinantes da Águia, que esta criatura eletrônica realmente tenha sentimentos?
Será que Richard tinha razão quando dizia que não há nenhum aspecto dos
humanos que não acabe sendo duplicado pela engenharia?
— ...Nós esperamos o máximo possível para acordar você — disse a Águia
—, para diminuir o tempo que você teria de passar em condições não ideais...
Mas agora estamos nos preparando para entrar em outra fase das nossas
operações... Como você vê, esta sala foi esvaziada há muito tempo. Só restou
você. Dentro de mais uns dez dias, começaremos a desmontar as paredes, e até lá
você já terá se recuperado...
Nicole perguntou de novo sobre sua família e amigos.
— Como eu já disse, todos sobreviveram ao longo sono. Mas a adaptação à
vida no que seu amigo Max chama de Grande Hotel não tem sido fácil para eles.
Todos os que estiveram com você na Cidade de Esmeralda, além de Maria e do
marido de Ellie, foram mandados para dois quartos grandes contíguos, em uma
seção da Estrela do Mar. Todos foram avisados de que aquele arranjo de vida
seria temporário, e que mais tarde seriam transferidos para um lugar melhor.
Porém Robert e Galileu não conseguiram adaptar-se bem às condições inusitadas
do Grande Hotel.
— O que aconteceu com eles? — perguntou Nicole alarmada.
— Foram transferidos, por razões sociológicas, para outro local mais bem
supervisionado da espaçonave. Robert foi o primeiro. Ele acordou do sono
profundo com uma depressão grave e não conseguiu se recuperar. Infelizmente
Robert morreu há quatro meses... Galileu está bem fisicamente, mas seu
comportamento anti-social continua...
Nicole teve muita pena quando soube da morte de Robert. Pobre Nikki,
pensou imediatamente, ela nunca teve chance de conhecer seu pai... e Ellie, seu
casamento não foi como ela esperava...
Nicole sentou-se em silêncio, lembrando-se de tudo o que dizia respeito a
Robert Turner. Você era um homem complicado, talentoso e dedicado ao seu
trabalho. Mas em termos pessoais não funcionava bem. Talvez uma parte essencial
sua tenha morrido há muito tempo... naquele tribunal no Texas, no planeta
chamado Terra...
Nicole sacudiu a cabeça.
— Acho que a energia que usei para salvar Katie e Robert dos agentes das
octoaranhas foi um desperdício — comentou ela.
— Não exatamente — disse a Águia com simplicidade. — Foi importante
para você naquela época.
Nicole sorriu e olhou para seu colega alienígena. Bem, meu amigo oniscien-
te, pensou, dando um bocejo, devo admitir que estou contente por estar de novo na
sua companhia... Talvez você não seja um ser vivo, mas é certamente um ótimo
conhecedor dos seres vivos.
— Vou ajudá-la a voltar para a cama — disse a Águia. — Você já ficou de
pé tempo demais para a primeira vez.

Nicole estava muito contente consigo mesma. Tinha finalmente consegui-


do dar uma volta completa pelo quarto sem parar.
— Bravo! — disse a Águia, chegando perto dela. — Você está fazendo um
progresso fabuloso. Pensamos que você não andaria tão bem em tão pouco
tempo.
— Mas agora preciso de um pouco de água — disse ela sorrindo. — Este
corpo velho está suando muito.
A Águia pegou um copo de água na mesa. Quando Nicole terminou de
beber virou-se para seu amigo alienígena.
— Agora você vai manter sua palavra? Você tem um espelho e uma muda
nova de roupas naquela mala ali?
— Tenho sim. E trouxe até os cosméticos que você pediu... Mas primeiro
quero examinar você para ver como seu coração respondeu ao exercício. — Ele
segurou um aparelhinho preto na frente de Nicole e esperou aparecerem umas
marcações na tela. — Ótimo. Aliás, excelente... Não houve qualquer
irregularidade. Só uma indicação de que seu coração está trabalhando muito, o
que deve se esperar numa mulher da sua idade...
— Posso ver isso? — perguntou, apontando para o monitor que a Águia
passou para ela. — Imagino que esta coisa esteja recebendo sinais de dentro do
meu corpo... mas o que são exatamente esses estranhos símbolos na tela?
— Você tem mais de mil sondas minúsculas dentro do seu corpo, sendo
mais da metade na região cardíaca. Elas não só medem o desempenho crítico do
seu coração e de outros órgãos como também regulam importantes parâmetros,
como fluxo sangüíneo e distribuição de oxigênio. Algumas sondas até
complementam as funções biológicas normais... O que você está vendo na tela é o
resumo de dados do tempo em que você esteve se exercitando. Eles foram
compactados e telemedidos pelo processador dentro do seu corpo.
Nicole franziu a sobrancelha.
— Talvez eu não deva perguntar, mas a idéia de ter todas essas coisas
eletrônicas dentro de mim me deixa aflita.
— As sondas não são realmente eletrônicas — explicou a Águia —, pelo
menos não no sentido que os humanos dão a essa palavra. E elas são absolu-
tamente necessárias nesse ponto da sua vida. Se não ficassem aí dentro, você não
sobreviveria nem um dia...
Nicole olhou para a Águia.
— Por que vocês não me deixaram morrer? — perguntou. — Vocês ainda
têm alguma finalidade para mim que justifique todo esse esforço? Alguma função
que eu deva desempenhar?
— Talvez — respondeu a Águia. — Mas talvez nós tenhamos considerado
que você gostaria de ver sua família e seus amigos mais uma vez.
— É difícil acreditar que meus desejos tenham um papel significativo na
sua hierarquia de valores — falou Nicole.
A Águia não respondeu. Foi até a mala que estava ao lado da mesa e
voltou com um espelho, um pano úmido, um vestido azul simples e uma bolsa
com cosméticos. Nicole tirou a camisola branca que estava usando, limpou-se
com o pano, colocou o vestido e respirou fundo quando a Águia lhe passou o
espelho.
— Tenho certeza de que não estou preparada para isso — disse ela com
um sorriso triste.
Ela não teria reconhecido o rosto do espelho se não tivesse se preparado
emocionalmente. Parecia uma colcha de retalhos, cheia de sulcos e rugas. Seu
cabelo, inclusive as sobrancelhas e pestanas, estavam grisalhos ou brancos. Seu
primeiro impulso foi chorar, mas ela conseguiu driblar as lágrimas bravamente.
Meu Deus, estou tão velha!... Será que sou eu mesma?, pensou.
Guiada pela memória, Nicole pesquisou suas feições no espelho, os ves-
tígios da mulher encantadora que fora em tempos idos. Viu aqui e ali uns traços
do que havia sido considerado um rosto bonito, mas foi preciso procurar muito.
Sentiu uma dor no coração ao lembrar-se de repente de um pequeno incidente
quando era adolescente e andava pela estrada com seu pai, perto de sua casa em
Beauvois. Uma velha apoiada em uma bengala vinha na direção deles, e Nicole
perguntou ao pai se podiam atravessar a estrada para não passarem perto dela.
— Por quê? — perguntou o pai.
— Porque não quero ver aquela mulher de perto. Ela é muito velha e feia...
e me dá arrepios.
— Você também vai ficar velha um dia — disse o pai, recusando-se a
atravessar a estrada.
Eu estou velha e feia, e provoco arrepios em mim mesma, pensou,
passando o espelho para a Águia.
— Você me avisou. Eu devia ter seguido seu conselho.
— É claro que você ficou chocada — disse a Águia. — Faz dezesseis anos
que não se vê no espelho. A maioria dos humanos tem dificuldades com o
processo de envelhecimento, mesmo que ele seja seguido dia a dia — falou a
Águia, entregando a bolsa de cosméticos para Nicole.
— Não, obrigada — disse ela, desanimada. — Não vai adiantar nada. Nem
mesmo Michelangelo poderia fazer alguma coisa com um rosto assim.
— Você é quem sabe — falou a Águia. — Mas eu achei que talvez quisesse
usar os cosméticos antes de sua visita chegar.
— Visita! — disse Nicole, entre alarmada e excitada. — Eu vou ter uma
visita... Quem é? — falou, pegando a bolsa de cosméticos.
— Acho que é melhor ser uma surpresa. Sua visita chegará daqui a um
instante.
Nicole pôs batom e pó, escovou os cabelos grisalhos e ajeitou as sobran-
celhas. Quando terminou, deu uma olhada no espelho.
— Isso é o melhor que posso fazer — disse para si própria e para a Águia.
Um instante depois, a Águia abriu a porta do outro lado do quarto, saiu e voltou
seguido de uma octoaranha.
Nicole viu a faixa azul-rei varrendo o quarto.
— Alô, Nicole. Como está se sentindo? — disse a octoaranha.
— Dr. Azul! — gritou ela, animada.

O dr. Azul segurou o aparelho na frente de Nicole.


— Vou ficar aqui até você poder ser transferida — disse o médico
octoaranha. — A Águia tem outras obrigações a cumprir.
Faixas coloridas apareceram na telinha.
— Não compreendo — disse Nicole, olhando para o aparelho de cabeça
para baixo. — Quando a Águia usou essa coisa, a legenda vinha em símbolos
engraçados.
— Essa é a linguagem tecnológica deles para fins especiais — disse o dr.
Azul. — É incrivelmente eficiente, muito melhor que as nossas cores... Mas é
claro que não sei ler nada disso... Este aparelho, na verdade, vem em todas as
línguas. Há até um módulo em inglês.
— Então que língua o senhor fala para se comunicar com a Águia quando
não estou por perto? — perguntou Nicole.
— Nós usamos cores — respondeu ele. — Elas passam na testa dela da
esquerda para a direita.
— O senhor está brincando — falou Nicole, tentando imaginar a Águia
com cores na testa.
— Nada disso. A Águia é fantástica. Matraqueia e guincha com as aves,
grita e assobia com os myrmigatos...
Nicole nunca ouvira a palavra myrmigato na linguagem de cores. Quando
perguntou o que significava, o dr. Azul disse que seis dessas estranhas criaturas
estavam vivendo no Grande Hotel, e que mais quatro iam nascer de melões-maná
germinados.
— Embora todas as octoaranhas e humanos tenham dormido durante a
longa viagem, os melões-maná transformaram-se em myrmigatos e depois em
material séssil. Agora vão entrar na geração seguinte.
O dr. Azul colocou o aparelho na mesa.
— Então, qual é o veredicto para hoje, doutor? — perguntou Nicole.
— Você está ganhando forças — respondeu o dr. Azul. — Mas só está viva
devido às sondas complementares que colocaram dentro de você. Em alguma
hora terá de considerar...
— ...Substituir meu coração... já sei — completou Nicole. — Pode parecer
estranho, mas a idéia não me agrada muito... Não sei exatamente por que sou
contra isso... Talvez eu não saiba ainda o que me resta para viver... Sei que se
Richard estivesse vivo...
Nicole parou e por um instante imaginou que estava na sala de vídeo
olhando as imagens em câmera lenta dos últimos segundos de vida de Richard.
Ela não tinha pensado naquilo desde que acordara.
— Importa-se que eu lhe faça uma pergunta muito pessoal? — disse
Nicole.
— De jeito nenhum — respondeu a octoaranha.
— Nós assistimos à morte de Richard e Archie juntos, e eu fiquei tão
desesperada que saí do ar... Archie foi assassinado na mesma hora, e ele era seu
companheiro de vida. Mas você ficou ao meu lado, me consolando.. Não teve
nenhuma sensação de perda ou de tristeza com a morte de Archie?
O dr. Azul não respondeu imediatamente.
— Nós, octoaranhas, somos treinadas desde que nascemos para controlar
o que os humanos chamam de emoção. Os alternativos, é claro, são muito
suscetíveis aos sentimentos. Mas nós que...
— Com o devido respeito — interrompeu Nicole gentilmente, encostando a
mão no colega octoaranha —, não fiz uma pergunta clínica, de médico para
médico. Fiz uma pergunta de amigo para amigo.
Uma curta explosão de raios roxos e depois azuis, desconexos, passou em
volta da cabeça do dr. Azul, que respondeu:
— Sim, eu tive uma sensação de perda. Mas sabia que isso iria acontecer,
mais cedo ou mais tarde. Quando Archie foi trabalhar nos preparativos de guerra,
seu fim ficou evidente... Além disso, minha obrigação naquele momento era
ajudar você.
A porta do quarto abriu-se e a Águia entrou. O alienígena carregava uma
grande caixa cheia de comida, roupas e artigos diversos, e informou a Nicole que
tinha trazido sua roupa espacial, e que muito em breve ela iria aventurar-se fora
do seu ambiente controlado.
— O dr. Azul disse que você sabe falar em cores — disse Nicole brincando.
— Será que pode me mostrar?
— O que quer que eu diga? — respondeu a Águia com faixas coloridas
ordenadas saindo do lado esquerdo de sua testa e passando para o direito.
— Isso basta — falou Nicole, dando uma gargalhada. — Você é realmente
incrível.

Nicole ficou de pé na fábrica gigantesca, olhando a pirâmide à sua frente.


À direita, a menos de um quilômetro de distância, um grupo de biotas para
finalidades especiais e dois tratores enormes construíam uma montanha alta.
— Por que vocês estão fazendo isso? — perguntou Nicole pelo mini-
microfone no interior de seu capacete.
— É parte do próximo ciclo — respondeu a Águia. — Nós determinamos
que essas construções específicas aumentam a possibilidade de tirarmos o que
queremos da experiência.
— Então vocês já sabem alguma coisa sobre os novos viajantes espaciais?
— Não sei responder a isso — disse a Águia. — Não tenho nenhuma
associação com o futuro de Rama.
— Mas você nos disse antes — falou Nicole, não satisfeita com a resposta
— que nenhuma mudança foi feita, a não ser as necessárias...
— Eu não posso ajudá-la — repetiu a Águia. — Vamos, entre no veículo, o
dr. Azul quer olhar a montanha mais de perto.
A octoaranha estava engraçada com sua roupa espacial. Na verdade,
Nicole riu alto quando viu pela primeira vez o dr. Azul com a roupa branca justa
cobrindo seu corpo escuro e seus oito tentáculos. O dr. Azul também tinha um
capacete transparente na cabeça, através do qual era fácil ler as cores.
— Eu fiquei atônita — disse Nicole ao dr. Azul, que estava sentado ao seu
lado, quando o veículo atravessou o terreno plano em direção à montanha —
assim que nós saímos aqui fora... Não, essa palavra não é suficientemente forte...
Você e a Águia haviam me dito que estávamos na fábrica, e que Rama estava
sendo preparada para outra viagem, mas eu não esperava tudo isso...
— A pirâmide foi construída à sua volta enquanto você dormia — disse a
Águia do banco do motorista em frente a eles. — Sem perturbar o seu ambiente.
Se não tivéssemos conseguido fazer isso, você teria sido acordada muito mais
cedo.
— E toda essa coisa não o deixa fascinado? — perguntou Nicole ao dr.
Azul. — Você não fica imaginando que tipo de seres teria concebido esse grande
projeto? E também criado uma inteligência artificial como a Águia? É quase
impossível imaginar...
— Não é tão difícil assim para nós — falou a octoaranha. — Lembre-se de
que ouvimos falar de seres superiores desde o início. Nós só existimos como
criaturas inteligentes porque os precursores alteraram nossos genes. Nunca
tivemos um período na nossa história em que pensássemos que estávamos no
ápice da vida.
— Nós também não pensaremos nunca mais — brincou Nicole. — A
história humana, independentemente de como irá terminar, foi alterada de forma
profunda e irrevogável.
— Talvez não — disse a Águia do banco da frente. — Nosso banco de
dados indica que algumas espécies não sofrem muito impacto quando entram em
contato conosco. Nossas experiências são programadas para que haja essa
possibilidade. Nosso contato ocorre durante um período finito, só com uma
pequena percentagem da população. Não há um intercâmbio contínuo, a não ser
que a espécie em estudo tome a iniciativa de criar esse intercâmbio... Eu duvido
que a vida na Terra neste momento seja muito diferente do que teria sido se
nenhuma espaçonave Rama tivesse entrado no sistema solar de vocês. Nicole
debruçou-se para a frente no banco.
— Você tem certeza disso, ou está apenas supondo? A resposta da Águia
foi vaga.
— Certamente a história da Terra foi mudada com o aparecimento de
Rama. Acontecimentos importantes não teriam ocorrido se não tivesse havido
nenhum contato. Porém, daqui a uns cem anos, ou quinhentos anos... A Terra
será tão diferente do que teria sido?
— Mas o ponto de vista humano deve ter mudado — argumentou Nicole.
— Certamente o conhecimento de que existe no universo, ou pelo menos existiu
em alguma época anterior, uma inteligência avançada o suficiente para construir
uma nave espacial robotizada interestelar do tamanho de uma cidade muito
grande não pode ser desconsiderado como se fosse uma informação
insignificante... Isso cria uma perspectiva diferente para toda a gama de
experiências humanas. A religião, a filosofia e até mesmo os fundamentos da
biologia devem ser revistos diante da...
— Estou contente de ver — interrompeu a Águia — que pelo menos um
pouco do seu otimismo e idealismo se manteve ao longo de todos esses anos...
Lembre-se, porém, que no Novo Éden os humanos sabiam que estavam vivendo
em um domínio construído especialmente para eles por extraterrestres. E foram
informados, por você e por outros, que estavam sendo continuamente
observados. Mesmo assim, quando se tornou aparente que os alienígenas, quem
quer que fossem, não pretendiam interferir nas atividades diárias dos humanos, a
existência desses seres avançados tornou-se irrelevante.
O veículo chegou na base da montanha.
— Eu tinha muita curiosidade de vir aqui — disse o dr. Azul. — Como
vocês sabem, não tínhamos nenhuma montanha no nosso reino em Rama. E não
tínhamos muitas na região do nosso planeta de origem quando eu era criança...
Achei que devia ser bom ficar no alto...
— Solicitei um desses tratores grandes — disse a Águia. — Nossa viagem
até o cume levará só dez minutos... Talvez vocês fiquem assustados em alguns
pontos por causa do declive da subida, mas é perfeitamente seguro, desde que
vocês usem o cinto de segurança.

Nicole não estava velha demais para apreciar a subida espetacular. O


trator, do tamanho de um prédio de escritórios, não tinha bancos muito
confortáveis para os passageiros, e alguns solavancos eram bem violentos, mas o
panorama descortinado à medida que subiam valia todo aquele desconforto.
A montanha tinha mais de um quilômetro de altura e cerca de dez de
circunferência. Nicole pôde ver claramente a pirâmide onde estivera antes quando
o trator estava a apenas um quarto do caminho da montanha. Mais adiante, o
horizonte estava salpicado em todas as direções de isolados projetos de
construções de finalidade desconhecida.
Então agora tudo começa de novo, pensou Nicole. Essa Rama reconstruída
entrará em breve em outro conjunto de sistemas estelares. E o que irá encontrar?
Quais serão os próximos viajantes espaciais a pisar neste solo? Ou a subir a
montanha?
O trator parou num platô bem perto do cume e os três passageiros de-
sembarcaram. A vista era deslumbrante. Enquanto Nicole olhava o cenário,
lembrou-se de como havia ficado maravilhada na sua primeira viagem em Rama,
quando desceu no teleférico e o vasto mundo alienígena estendeu-se à sua frente.
Obrigada, pensou, dirigindo-se à Águia, por me manter viva. Você tinha razão.
Basta esta única experiência e as memórias que ela suscita para me dar uma
razão mais do que suficiente para continuar.
Nicole virou-se para olhar o resto da montanha, e viu uma coisa pequena
voando para dentro e para fora de uma espécie de arbustos vermelhos, a apenas
uns vinte metros de distância. Foi andando até lá e pegou um dos objetos
voadores, do tamanho e da forma de uma borboleta. As asas eram decoradas com
uma variedade de motivos assimétricos, absolutamente diferentes de quaisquer
outros que Nicole já vira. Ela soltou o objeto e pegou outro. O padrão dessa
segunda borboleta ramaiana era completamente diferente, mas também tinha
cores e desenhos.
A Águia e o dr. Azul foram encontrar-se com ela. Nicole mostrou o que
tinha na mão.
— São biotas voadores — disse a Águia sem qualquer outro comentário.
Nicole maravilhou-se com as minúsculas criaturas. Alguma coisa
espantosa acontece todo dia, Richard lhe dissera uma vez. E nós somos sempre
lembrados da alegria de estarmos vivos.

2
Nicole tinha terminado seu banho quando os dois biotas entraram no
quarto. Um era um caranguejo e o outro uma espécie de caminhão de brinquedo
gigante. O caranguejo usou suas poderosas pinças e seus vários dispositivos
auxiliares para cortar o container de Nicole em pedaços, que foram empilhados
no caminhão. Quando ia saindo do quarto, menos de um minuto depois, o
caranguejo pegou a banheira branca e as cadeiras restantes e colocou tudo no
alto das pilhas do caminhão. Depois pôs a mesa nas costas e desapareceu do
quarto vazio por trás do caminhão biota. Nicole ajeitou o vestido.
— Nunca vou me esquecer da primeira vez em que vi um biota — comen-
tou com seus dois companheiros. — Foi na imensa tela do centro de controle de
Newton, muitos e muitos anos atrás. Nós todos ficamos apavorados.
— Então chegou o dia. Você está preparada para ir ao Grande Hotel? —
perguntou o dr. Azul em várias cores.
— Provavelmente não — disse ela com um sorriso. — Pelo que você e a
Águia disseram, acho que desfrutei do meu último minuto de solidão.
— Sua família e seus amigos estão loucos para vê-la — disse a Águia. —
Estive com eles ontem e disse que você iria... Você vai ficar com Max, Eponine,
Ellie, Marius e Nikki. Patrick, Nai, Benjy, Kepler e Maria moram no quarto ao
lado. Como lhe expliquei na semana passada, Patrick e Nai têm cuidado de Maria
como se ela fosse uma filha desde que todos acordaram... Eles souberam que
você a salvou do bombardeio...
— Não sei se salvar é o verbo apropriado — disse Nicole, lembrando-se
claramente das suas últimas horas na antiga nave espacial Rama. — Eu peguei
Maria porque não havia ninguém para cuidar dela. Qualquer um teria feito o
mesmo.
— Você salvou a vida dela — disse a Águia. — Uma hora depois de você
sair do zôo com a menina, três grandes bombas devastaram toda aquela área e as
duas seções adjacentes. Maria teria morrido se você não a tivesse encontrado.
— Ela é agora uma moça bonita e inteligente — disse o dr. Azul. — Eu a vi
uma vez há algumas semanas. Ellie disse que Maria tem uma energia incrível.
Segundo ela, é a primeira a acordar de manhã e a última a dormir à noite.
Como Katie, pensou Nicole. Quem é você, Maria? E por que entrou na
minha vida naquela hora?
— ...Ellie também disse que Maria e Nikki são inseparáveis — continuou o
dr. Azul. — Estudam juntas, comem juntas e conversam sem parar sobre tudo...
Nikki contou a Maria tudo sobre você.
— Como é possível isso? — disse Nicole com um sorriso. —- Nikki só tinha
quatro anos na última vez em que estive com ela. As crianças humanas não se
lembram de coisas que se passaram assim tão cedo...
— Mas se dormirem durante os quinze anos seguintes lembram-se de
tudo — explicou a Águia. — Kepler e Galileu também têm muitas lembranças
daqueles dias... Mas é melhor conversarmos durante a viagem. Está na hora de
irmos embora.
A Águia ajudou Nicole e o dr. Azul a colocarem suas roupas espaciais, e
depois pegou a mala e os pertences de Nicole.
— Você guardou sua maleta de remédios junto com as roupas e os cos-
méticos que vem usando nesses últimos dias — disse a Águia.
— Minha maleta? — perguntou ela rindo. — Meu Deus, eu tinha quase me
esquecido... Ela estava comigo quando encontrei Maria, não foi?... Obrigada.
Os três saíram do quarto, localizado no fundo da grande pirâmide. Mi-
nutos depois passaram pela grande entrada em arco do prédio. O veículo espacial
os esperava do lado de fora, na brilhante luz da fábrica.
— Vamos levar só uma meia hora até os elevadores de alta velocidade —
disse a Águia. — Nosso foguete está estacionado na Doca, no nível superior.
Quando o veículo espacial deu a partida, Nicole virou-se para olhar para
trás. Para além da pirâmide ficava a alta montanha que haviam subido três dias
antes.
— Então você não sabe mesmo por que as borboletas biotas estão aqui? —
perguntou Nicole pelo microfone da sua roupa espacial.
— Não — respondeu a Águia. — Minha tarefa cobre apenas o ciclo de
vocês.
Nicole continuou a olhar para trás. O veículo passou por um conjunto de
postes altos, uns dez ou doze ao todo, ligados por arames no alto, no meio e
embaixo. Tudo isso fará parte da nova Rama, pensou Nicole. E, ao perceber de re-
pente que estava vendo o mundo de Rama pela última vez, sentiu uma imensa
tristeza. Aqui foi a minha casa, e estou indo embora para sempre, disse para si
mesma.
— Seria possível — perguntou Nicole para a Águia sem se virar — ver
outras partes de Rama antes de partir para sempre?
— Para quê? — perguntou a Águia.
— Não estou bem certa... Talvez só para poder ficar por aqui mais uma
hora.
— Os dois bojos e o Hemicilindro Sul já foram completamente remode-
lados. Você não os reconheceria. O mar Cilíndrico foi drenado e retirado, e até
Nova York está sendo desmontada...
— Mas não está completamente destruída, está? — perguntou ela.
— Não, ainda não — replicou a Águia.
— Então dá para irmos até lá um pouquinho? Por favor...
Por favor, faça a vontade de uma velha senhora, pensou Nicole. Mesmo que
ela própria não compreenda por que quer ir lá.
— Tudo bem — disse a Águia —, mas nós vamos nos atrasar. Nova York
fica em outra parte da fábrica.

Eles estavam em um parapeito perto do topo de um dos arranha-céus. A


maior parte de Nova York não existia mais; os prédios haviam sido empilhados
pela força fantástica dos grandes biotas. Restavam apenas uns vinte ou trinta
edifícios em volta da praça.
— Havia três tocas debaixo da cidade — explicou Nicole ao dr. Azul. —
Uma nossa, outra das aves e a terceira das suas primas octoaranhas... Eu estava
na toca das aves quando Richard veio me buscar... — Nicole parou quando
percebeu que já havia contado essa história ao dr. Azul e que as octoaranhas não
se esquecem de nada. — Você se importa de ouvir? — perguntou Nicole.
— Por favor, continue — disse ele.
— Durante o tempo em que vivemos aqui, ninguém na ilha sabia que
havia entradas para alguns desses edifícios. Não é incrível? Oh, como eu gostaria
que Richard estivesse vivo e eu pudesse ver o rosto dele quando a Águia abriu a
porta do octaedro... Teria ficado chocado... De qualquer forma — continuou
Nicole —, Richard voltou para Rama a fim de me procurar... E quando nós nos
apaixonamos e descobrimos que podíamos fugir da ilha usando as aves... Foi um
dia glorioso, há muitos e muitos anos...
Nicole deu um passo à frente, segurou-se na balaustrada com as duas
mãos, olhou em volta e viu em imaginação a antiga Nova York. Ali ficavam as
muradas. Mais adiante, o mar Cilíndrico... e mais ou menos no meio daquelas
horríveis pilhas de metal ficavam o celeiro e o poço onde eu quase morri.
De repente, seus olhos ficaram cheios de lágrimas inesperadas, que lhe
desceram pelo rosto. Nicole não se virou. Cinco dos meus filhos nasceram ali,
debaixo do solo. Dois anos depois de Richard ter ido embora, nós o encontramos do
lado de fora da nossa toca, em coma, pensou Nicole.
As lembranças vieram uma a uma à sua cabeça, provocando uma dor
vaga no coração e novas lágrimas, que ela não conseguiu deter. Em certo momen-
to, ela descia na toca das octoaranhas para salvar Katie, em outro sentia-se
excitada e alegre voando por cima do mar Cilíndrico, montada em três aves com
arreios. Nós temos de morrer um dia, pensou Nicole, limpando as lágrimas com as
costas da mão, pois não sobra lugar no nosso cérebro para mais lembranças.
Enquanto olhava a paisagem destruída de Nova York, transformando-a
pela imaginação no que havia sido anos antes, teve uma forte recordação de um
tempo ainda mais anterior na sua vida. Lembrou-se de uma noite fria de fim de
outono em Beauvois, nos seus últimos dias na Terra, logo antes de Geneviève e
ela irem esquiar em Davos. Estava sentada com seu pai e sua filha em frente à
lareira na villa. Pierre estava muito pensativo naquela noite, e contou histórias
para a filha e para a neta de muitos momentos especiais do seu namoro com a
mãe de Nicole.
Mais tarde, na hora de ir para a cama, Geneviève fez uma pergunta à mãe.
— Por que o vovô fala tanto sobre o que aconteceu há tanto tempo?
— Porque isso é o que importa para ele — respondera Nicole. Desculpem-
me, pensou Nicole, olhando ainda os arranha-céus em frente a ela. Peço
desculpas a todas as pessoas idosas cujas histórias não me interessaram. Eu não
tinha intenção de ser rude nem complacente. Mas é que não compreendia o
significado da velhice. Nicole suspirou, respirou fundo e virou-se.
— Você está bem? — perguntou-lhe o dr. Azul
Com um gesto, disse que sim. Depois falou para a Águia, com voz
entrecortada:
— Obrigada por termos vindo. Agora estou pronta.

Ela viu as luzes assim que o pequeno foguete saiu do hangar. Embora as
luzes ainda estivessem a mais de cem quilômetros dali, já podiam ser vistas
contra o fundo escuro e as estrelas distantes.
— Este Nodo tem um vértice extra — disse a Águia —, formando um
tetraedro perfeito. O Nodo em que você esteve, perto de Sírius, não tinha o
Módulo do Conhecimento.
Nicole olhou para fora da janela do foguete, prendendo a respiração.
Aquela construção iluminada girando lentamente a distância parecia irreal, como
se criada por sua imaginação. Havia quatro grandes esferas nos vértices, ligadas
entre si por seis corredores de transporte lineares. As esferas tinham exatamente
o mesmo tamanho, e as seis longas linhas com que se comunicavam umas às
outras eram do mesmo comprimento. Naquela distância, todas as luzes dentro do
Nodo transparente combinavam-se em um contínuo, fazendo com que tudo aquilo
parecesse uma grande tocha tetraédrica na escuridão espacial.
— Que beleza! — disse Nicole, incapaz de encontrar outra palavra para
expressar seu assombro.
— Você devia ver isso do terraço de observação do Grande Hotel — disse o
dr. Azul. — É deslumbrante. Dá para ver as várias luzes dentro das esferas, e até
mesmo seguir os veículos que passam zunindo para a frente e para trás ao longo
dos corredores de transporte... Muitos residentes do Grande Hotel ficam no
terraço durante horas, tentando adivinhar quais são as atividades representadas
pelo movimento das luzes internas.
Nicole sentiu o braço arrepiar-se quando olhou para Nodo em silêncio.
Ouviu a voz distante de Francesca Sabatini, e o primeiro poema que aprendera no
colégio.

"Tigre! Tigre! que brilhas


Nas florestas da noite,
Que mão ou olho imortal
Terá criado tua temível simetria?"

Aquele que fez o Cordeiro te fez?, refletiu Nicole ao ver o tetraedro de luz
girando. E lembrou-se de uma conversa no fim da noite com Michael O'Toole,
quando estavam em Nodo, perto de Sírius.
— Devemos liberar Deus depois dessa experiência — dissera ele. — E
acabar com nossas limitações homocêntricas sobre Ele... O Deus que criou os
arquitetos de Nodo deve divertir-se com nossas patéticas tentativas de defini-Lo
em termos que nós humanos possamos compreender imediatamente.
Nicole ficou fascinada com Nodo. Mesmo a distância, girando lentamente,
os diferentes aspectos apresentados pelo tetraedro hipnotizavam. Enquanto
observava, o veículo tomou uma posição em que um dos quatro triângulos
eqüiláteros que formavam as faces vazias de Nodo ficou perpendicular à sua rota
de vôo. Nodo pareceu inteiramente diferente, como se não tivesse profundidade. O
quarto vértice, que estava na realidade a uns trinta quilômetros para além do
foguete, do lado oposto a Nicole, parecia ser um elo de luz no centro do triângulo
à sua frente.
Quando o foguete mudou abruptamente de direção, não se pôde mais ver
Nodo. Mas, a distância, Nicole identificou uma estrela solitária de luz amarela.
— É Tau Ceti — disse a Águia —, uma estrela muito parecida com o seu
Sol.
— E por que Nodo está aqui, nas proximidades da Tau Ceti? — perguntou
Nicole.
— É o melhor posicionamento temporário para dar apoio às nossas ati-
vidades de coleta de dados nesta parte da galáxia — respondeu a Águia.
Nicole deu uma cutucada no dr. Azul.
— Os seus engenheiros às vezes falam em cores coisas sem sentido? —
perguntou com um sorriso. — Nosso anfitrião acaba de dar uma resposta sem
sentido.
— Somos mais humildes, como espécie, do que vocês — respondeu a
octoaranha. — Provavelmente devido ao nosso relacionamento com os
precursores. Nós não fingimos que podemos compreender tudo.
— Falamos muito pouco sobre a sua espécie desde que acordei — falou
Nicole, como que se desculpando por sentir-se de repente autocentrada. — Mas
lembro do senhor me dizendo que seu antigo Chefe Otimizador, sua equipe e
todos os que levaram adiante a guerra tinham sido exterminados de uma forma
ordenada. A nova liderança está se saindo bem?
— Mais ou menos — respondeu o dr. Azul —, considerando a dificuldade
da nossa situação de vida. Jamie está trabalhando nos escalões mais baixos da
nova equipe, e está sempre muito ocupado. Ainda não conseguimos chegar a um
equilíbrio na nossa colônia, porque há um constante atrito do lado de fora.
— Em grande parte por causa dos humanos a bordo — falou a Águia.
— Nós não discutimos esse assunto ainda, Nicole, mas agora seria uma
boa hora... Estamos surpresos com a dificuldade que os humanos têm de se
adaptarem a viver com outras espécies. Só muito poucos aceitam a idéia de que
outras espécies podem ser tão importantes e capazes como eles.
— Eu lhe disse isso logo depois de nos conhecermos, muitos anos atrás —
comentou Nicole. — Expliquei que, por inúmeras razões históricas e sociais, os
humanos respondem a novas idéias e conceitos de várias formas diferentes.
— Sei disso, mas a experiência que tivemos com você e sua família nos
indicava o contrário. Até todos os sobreviventes serem despertados, achávamos
que o que tinha acontecido no Novo Éden — os humanos agressivos tomando
conta do poder — era uma anomalia explicada pela composição específica dos
colonos. Mas agora, depois de observar durante um ano as interações no Grande
Hotel, concluímos que tínhamos uma típica amostragem de humanos dentro de
Rama.
— Está me parecendo que vou enfrentar uma situação desagradável —
disse Nicole. — Há mais coisas que devo saber antes de chegar?
— Creio que não — falou a Águia. — Agora está tudo sob controle. Estou
certo de que seus colegas lhe contarão os detalhes mais importantes de suas
experiências... Além do mais, a situação atual é apenas temporária, e essa fase
está quase terminando.
— De início — contou o dr. Azul —, todos os sobreviventes de Rama
espalharam-se pela Estrela do Mar. Em cada raio havia humanos, octoaranhas e
alguns dos nossos animais de apoio que tiveram permissão de sobreviver graças
ao importante papel que desempenham na estrutura social de vocês. Tudo isso
foi mudado há alguns meses, basicamente por causa da contínua hostilidade e
agressividade dos humanos... Agora, as moradias de cada espécie concentram-se
numa única região...
— Segregação — disse Nicole com tristeza. — É uma das características
que definem a minha espécie.
— A interação entre espécies diferentes agora se dá apenas na lanchonete
e em outros lugares públicos no centro da Estrela do Mar — disse a Águia. —
Porém, mais da metade dos humanos só sai do seu raio para comer, e mesmo
nessas ocasiões evita a interação... Do nosso ponto de vista, os seres humanos
são incrivelmente xenófobos. Não há, em nosso banco de dados, muitos exemplos
de viajantes espaciais tão retrógrados socialmente quanto os da sua espécie.
O foguete mudou novamente de direção, e mais uma vez apareceu o
magnífico tetraedro. Eles estavam muito perto agora. Muitas luzes individuais
podiam ser vistas, tanto dentro das esferas quanto nas longas linhas de
transporte que as ligavam. Nicole olhou toda aquela beleza à sua frente e deu um
suspiro. A conversa com o dr. Azul e a Águia a tinha deprimido. Talvez Richard
tivesse razão, disse para si mesma, talvez a humanidade não possa ser mudada,
a não ser que toda a sua memória seja apagada, e comecemos de novo, em um
outro ambiente, com um sistema operacional mais avançado.

Nicole foi ficando nervosa quando o foguete se aproximou da Estrela do


Mar. Disse a si própria que não devia se preocupar com bobagens, mas mesmo
assim ficou aflita com a sua aparência. Olhou-se no espelho quando retocou a
maquiagem e não conseguiu diminuir sua ansiedade. Estou velha. As crianças
vão me achar horrível, pensou.
A Estrela do Mar não era tão grande quanto Rama, e Nicole logo com-
preendeu por que lá dentro estava tão lotado. A Águia explicara que a viagem
para Nodo tinha sido um plano de contingência, e que Rama chegara lá,
conseqüentemente, vários anos antes do programado. Aquela nave espacial
específica, obsoleta, que não passara pelo processo de reciclagem, fora
transformada num hotel temporário para abrigar os ocupantes de Rama até
poderem ser transferidos para outro lugar.
— Demos ordens estritas — disse a Águia — para que sua chegada seja a
mais calma possível. Não queremos que você se esforce mais que o necessário. O
Grande Bloco e seu exército limparam os corredores e as áreas comuns que vão
da estação do foguete até seu quarto.
— Então vocês não vão entrar comigo? — perguntou Nicole para a Águia.
— Não, tenho muito que fazer em Nodo — respondeu a Águia.
— Vou acompanhá-la pelo terraço de observação, até entrar no raio dos
humanos — disse o dr. Azul. — Depois você fica por conta própria. Por sorte, sua
casa não é longe da entrada do raio.
A Águia permaneceu no foguete, enquanto Nicole e o dr. Azul desem-
barcavam. O homem-pássaro alienígena deu adeus para os dois quando eles
entraram na câmara intermediária. Um instante depois, quando passaram por
uma grande sala do outro lado da câmara, Nicole e o dr. Azul foram saudados
pelo robô conhecido como Grande Bloco.
— Seja bem-vinda, Nicole des Jardins Wakefield — disse o robô gigante. —
Estamos contentes por você ter finalmente chegado... Por favor, coloque sua
roupa espacial que está no banco à sua direita.
O Grande Bloco, com pouco menos de três metros de altura, quase dois
metros de largura, construído com blocos retangulares semelhantes àqueles com
os quais as crianças humanas brincam, era exatamente igual ao robô que
supervisionara os testes de engenharia aos quais Nicole e sua família tinham sido
submetidos em Nodo, perto de Sírius, há muitos anos, antes de voltarem para o
sistema solar. O robô foi flutuando até Nicole e a octoaranha, menor que ela.
— Embora eu esteja certo de que vocês não vão causar nenhum problema
— disse o Grande Bloco com sua voz mecânica —, quero lembrar-lhes que todas
as ordens dadas por mim ou por um dos robôs menores devem ser seguidas sem
hesitação. É nosso propósito manter a ordem nesta espaçonave... Agora, por
favor, sigam-me.
O Grande Bloco virou-se, girando nas juntas do meio do seu corpo, e
rodou para a frente no seu único pé cilíndrico.
— Esta sala grande é chamada de terraço de observação — disse o robô.
— Em geral é a mais popular de nossas salas comunitárias. Nós a esvazia-
mos esta noite para que ficasse mais fácil você chegar à sua moradia.
O dr. Azul e Nicole pararam um instante diante de uma imensa janela em
frente a Nodo. A vista era realmente espetacular, mas Nicole não conseguia se
concentrar na beleza e na ordem da soberba arquitetura extraterrestre. Ela
estava ansiosa para ver sua família e seus amigos.
O Grande Bloco permaneceu no terraço de observação, enquanto Nicole e
sua companheira octoaranha andavam ao longo do amplo corredor que rodeava a
nave. O dr. Azul explicou a Nicole como localizar e identificar os lugares onde os
bondinhos paravam. A octoaranha também lhe informou que os humanos
estavam no terceiro raio, que se estendia dos dois lados da estação do foguete, e
as octoaranhas nos dois raios seguintes, encaminhando-se para a direita da
estação.
— O quarto e o quinto raios — explicou ele em cores — são projetados de
forma diferente. Todas as outras criaturas vivem lá, e também os humanos e
octoaranhas que estão sob vigilância.
— Então Galileu está numa espécie de prisão? — perguntou Nicole.
— Não é bem isso — respondeu o dr. Azul. — Só que há um número muito
maior de pequenos robôs de bloco naquela parte da Estrela do Mar.
Eles desceram juntos do bonde, depois de percorrerem uma parte da
Estrela do Mar. Quando chegaram à entrada do raio dos humanos, o dr. Azul
segurou o monitor na frente de Nicole e leu as cores da tela. Baseado nos dados
iniciais, a octoaranha usou os cílios debaixo dos seus tentáculos para solicitar
mais informações.
— Alguma coisa errada? — perguntou Nicole.
— Você teve umas palpitações nesta última hora — foi a resposta. — Só
queria checar a amplitude e a freqüência dessas irregularidades.
— Estou muito excitada — comentou Nicole. — É normal nos humanos ter
palpitações quando...
— Eu sei — falou o dr. Azul —, mas a Águia me recomendou muita
cautela. — Não saíram cores de sua cabeça enquanto ele examinava os dados da
tela. — Acho que está tudo bem — disse finalmente —, mas se você sentir uma
mínima dor no peito, ou alguma falta de ar, aperte logo o botão de emergência do
seu quarto.
Nicole deu um grande abraço no dr. Azul.
— Muito obrigada. Você foi maravilhoso — disse ela.
— Foi um prazer — falou o dr. Azul. — Espero que tudo corra bem... Seu
quarto é o de número quarenta e um; descendo o corredor, é mais ou menos a
vigésima porta à esquerda. O bonde pára a cada cinco quartos.
Nicole respirou fundo, virou-se e viu que o bonde menor esperava por ela.
Foi até lá, deslizando os pés no chão, entrou e deu adeus ao dr. Azul. Em um ou
dois minutos, estava diante de uma porta comum, com o número quarenta e um
pintado.
Bateu na porta, que se abriu imediatamente. Cinco rostos sorridentes a
saudaram.
— Bem-vinda ao Grande Hotel — disse Max com um grande sorriso e os
braços abertos. — Entre para dar um abração neste fazendeiro de Arkansas.
Nicole sentiu uma mão na sua assim que entrou no quarto.
— Alô, mãe — disse Ellie.
Nicole virou-se e olhou para sua filha caçula. Suas têmporas estavam
grisalhas, mas seus olhos estavam mais claros e brilhantes do que nunca.
— Alô, Ellie — disse Nicole, as lágrimas caindo. Aquelas lágrimas não
seriam as últimas que derramaria durante as várias horas de reunião.

3
O quarto deles era quadrado, com aproximadamente sete metros de lado.
Na parede dos fundos ficava a porta do banheiro, com pia, chuveiro e vaso
sanitário. Ao lado do banheiro havia um grande closet aberto, para todas as
roupas e pertences. Na hora de dormir, eles espalhavam colchonetes no chão, que
eram dobrados no dia seguinte.
Na primeira noite, Nicole dormiu entre Ellie e Nikki; Max, Eponine e
Marius dormiram do outro lado do quarto, onde ficavam a mesa e as seis
cadeiras, únicos móveis existentes. Nicole estava tão exausta que adormeceu
imediatamente, antes que as luzes se apagassem e todos tivessem terminado de
ajeitar os colchões. Depois de um sono pesado de cinco horas, Nicole acordou de
repente, sem saber onde estava.
Deitada no escuro, Nicole ficou pensando nos acontecimentos da noite
anterior. Durante a reunião, ela ficara tão tomada pela emoção que não teve
tempo de estudar suas reações ao que estava vendo e ouvindo. Logo depois de
sua chegada, Nikki foi buscar os outros no quarto ao lado. Nas duas horas
seguintes havia onze pessoas reunidas ali, pelo menos três a quatro falando ao
mesmo tempo. Nicole conversou ligeiramente com cada uma delas, mas não
conseguiu discutir nada de mais profundo com ninguém.
Os quatro jovens — Kepler, Marius, Nikki e Maria — foram muito arredios.
Maria, com seus lindos olhos azuis contrastando com a pele cor de cobre e os
cabelos pretos, tinha agradecido gentilmente a Nicole por ter salvo sua vida, e
disse a ela que não se lembrava de nada do que acontecera antes de dormir.
Nikki ficou nervosa no tête-à-tête com sua avó. Nicole percebeu sinais de medo no
olhar dela, mas Ellie disse mais tarde que provavelmente o que ela sentia era
respeito por aquela avó sobre quem contavam tantas histórias e que certamente a
considerava uma verdadeira lenda viva.
Os dois rapazes foram gentis, mas bastante reservados. A certa altura,
Nicole notou que Kepler olhava para ela com grande intensidade, e lembrou-se de
que era a primeira velha que eles viam. Os rapazes, em especial, têm dificuldade
com velhas encarquilhadas. Isso corta a fantasia deles sobre os membros do sexo
oposto, pensou ela.
Benjy deu as boas-vindas a Nicole com um grande abraço. Levantou-a do
chão com seus braços fortes, girou-a no ar em círculos e gritou de alegria: "Ma-
mãe! Ma-mãe!" Ele parecia muito bem, mas para sua surpresa estava ficando um
pouco careca e parecia definitivamente mais velho. Mais tarde, ela disse para si
mesma que não devia ter se surpreendido, pois Benjy já estava perto dos
quarenta anos.
Patrick e Ellie a receberam calorosamente. Ellie parecia cansada, mas ex-
plicou que seu dia tinha sido muito trabalhoso. Estava fazendo um trabalho no
Grande Hotel para estimular a atividade social entre as espécies.
— É o mínimo que posso fazer — disse ela —, pois sei falar a língua das
octoaranhas... Espero que você me dê uma mão assim que estiver mais forte.
Patrick contou a Nicole que estava preocupado com Nai.
— Essa situação do Galileu está acabando com ela. Nai está furiosa por-
que os cabeças de bloco, como são chamados, retiraram Galileu das suas
acomodações normais sem muita explicação e sem fazer nenhum processo ou
coisa semelhante. E também está irritada por não poder passar mais que duas
horas por dia com ele... Tenho certeza de que vai pedir ajuda a você.
Nai estava mudada. Seus olhos não denotavam mais aquele brilho e sua-
vidade, e suas observações eram negativas.
— Estamos vivendo aqui o pior tipo de estado policial. Bem pior do que no
tempo de Nakamura. Depois que você se organizar, tenho muitas coisas para lhe
contar — disse ela.
Max Puckett e sua adorável francesinha Eponine tinham envelhecido
como todos os demais, mas o amor que sentiam um pelo outro e pelo filho Marius
os sustentava dia a dia. Eponine deu de ombros quando Nicole perguntou se
aquela vida amontoada não a incomodava.
— Não muito — respondeu ela. — Eu vivi num orfanato em Limoges
quando era criança... Além do mais, estou contente por estar viva e ter Max e
Marius. Durante anos, achei que não viveria o suficiente para ver meus cabelos
embranquecerem.
Max continuava aquele mesmo ser irrefreável. Seu cabelo também estava
grisalho e ele andava com menos segurança, mas dava para perceber que
apreciava a vida.
— Tem um sujeito que eu vejo regularmente na sala de fumo que é um
grande admirador seu... Ele escapou da peste, mas a mulher dele não... — disse
Max com seu riso irônico. — Eu queria que vocês dois se encontrassem assim
que você tiver algum tempo livre... Ele é um pouco mais moço, mas acho que isso
não faz nenhuma diferença...
Nicole perguntou a Max se havia problemas entre os humanos e as
octoaranhas.
— Embora a guerra tenha ocorrido há uns quinze ou dezesseis anos, como
você sabe — respondeu ele —, os humanos ainda guardam lembranças muito
vividas daquele tempo. Todos aqui perderam alguém, um amigo, um parente ou
um vizinho, naquela peste. E eles não conseguem se esquecer de que a peste foi
causada pelas octoaranhas.
— Em reação à agressão dos exércitos dos humanos — disse Nicole.
— Mas a maioria não vê as coisas assim. Talvez eles acreditem na
propaganda de Nakamura e não na história oficial da guerra apresentada pela
Águia logo depois que fomos trazidos para cá... A verdade é que muitos humanos
detestam e temem as octoaranhas. Apenas cerca de vinte por cento das pessoas
tentam aproximar-se socialmente, apesar dos esforços de Ellie, ou aprender
alguma coisa sobre elas. A maioria fica no seu raio... Infelizmente, as
acomodações superlotadas não ajudam a aliviar esse problema.
Nicole rolou na cama. Sua filha Ellie dormia virada para o seu lado, com
os olhos contraídos. Ela está sonhando, pensou Nicole. Espero que não seja com
Robert... E pensou de novo no encontro com sua família e seus amigos... Acho que
a Águia sabia o que estava fazendo quando me manteve viva. Mesmo que não haja
nada específico para eu fazer... Enquanto não me tomar uma inválida ou uma
carga, posso ser útil aqui...

— Essa vai ser sua primeira grande experiência no Grande Hotel — disse
Max para Nicole. — Toda vez que vou à lanchonete me lembro daquele Dia da
Fartura na Cidade de Esmeralda... Aquelas criaturas estranhas que vieram com
as octoaranhas podem ser fascinantes, mas é muito melhor quando elas não
estão por perto.
— Você não pode esperar até chegar o nosso horário? — perguntou
Marius. — Os iguanas assustam Nikki. Eles nos olham com aqueles olhos
amarelos e fazem um ruído repulsivo quando estão comendo.
— Filho — disse Max —, se você e Nikki quiserem, podem esperar com os
outros até a hora do almoço em separado. Nicole quer comer com todos os
residentes. É uma questão de princípio para ela... Sua mãe e eu vamos
acompanhá-la para ela aprender a rotina da lanchonete.
— Não se preocupe comigo — falou Nicole. — Estou certa de que Patrick
ou Ellie...
— Bobagem — interrompeu Max. — Eponine e eu teremos o maior prazer
em acompanhar você... Além do mais, Patrick saiu com Nai para ver Galileu, Ellie
está na sala de recreação e Benjy está lendo com Kepler e Maria.
— Obrigada pela sua compreensão, Max — falou Nicole. — É importante
para mim fazer a coisa certa, especialmente no começo... A Águia e o dr. Azul não
me deram detalhes dos problemas...
— Não precisa explicar. Na verdade, depois que você foi dormir ontem à
noite, eu disse para a francesinha que tinha certeza de que você ia querer se
misturar com todos — disse ele, dando uma risada. — Não se esqueça de que nós
a conhecemos muito bem.
Eponine chegou e eles foram até o átrio, que estava quase vazio. Algumas
pessoas andavam no corredor à esquerda, longe do centro da Estrela do Mar, e
um homem e uma mulher estavam juntos na entrada do raio.
Os três esperaram uns três minutos pelo transporte. Quando estavam
perto da última parada, Max chegou perto de Nicole e disse:
— Aquelas duas pessoas na entrada do raio não estavam só passando o
tempo... São grandes ativistas do Conselho... Muito opinativos e insistentes.
Nicole pegou no braço de Max ao desembarcarem.
— O que eles querem? — perguntou baixinho, quando viu o casal
aproximar-se.
— Não sei — respondeu Max —, mas logo vamos saber.
— Boa tarde, Max... Alô, Eponine — disse o homem, de seus quarenta
anos. Olhou para Nicole e deu um sorriso de político. — A senhora deve ser Nicole
Wakefield — disse, aprontando-se para um aperto de mão. — Nós ouvimos falar
tanto da senhora... Bem-vinda... Bem-vinda... Eu sou Stephen Kowalski.
— E eu, Renée du Pont — disse a mulher, estendendo a mão para Nicole.
Depois de trocar algumas amabilidades, o sr. Kowalski perguntou a Max o
que eles estavam fazendo ali.
— Vamos levar a sra. Wakefield para almoçar — respondeu Max sim-
plesmente.
— É o horário comunitário — comentou o homem com um sorriso. — Se
esperarem uns quarenta e cinco minutos, Renée e eu iremos com vocês... Nós
fazemos parte do Conselho, como você sabe, e gostaríamos muito de conversar
com a sra. Wakefield sobre nossas atividades...
— Obrigado pela sugestão, mas estamos com fome. Queremos comer logo
— respondeu Max.
O sr. Kowalski franziu as sobrancelhas.
— Eu não faria isso se fosse você, Max. Há muita tensão por aí agora...
Depois daquele incidente de ontem na piscina, o Conselho votou por una-
nimidade o boicote a todas as atividades coletivas nos próximos dois dias... Emily
ficou especialmente enraivecida porque o Grande Bloco mandou prender Garland
e não tomou qualquer iniciativa contra a octoaranha. Esta é a quarta vez
consecutiva que os cabeças de bloco vão contra nós.
— Essa não, Stephen — disse Max. — Ouvi essa história ontem na hora
do jantar... Garland ficou na piscina quinze minutos depois do nosso horário
especial... Foi ele quem investiu contra a octoaranha.
— Foi uma provocação deliberada — disse Renée du Pont. — Havia só três
octoaranhas na piscina... Não era preciso que uma delas entrasse na faixa em
que Garland estava nadando.
— Além do mais — acrescentou Stephen —, como foi discutido no
Conselho na noite passada, o que nos preocupa não são os detalhes desse
incidente específico. É preciso que os cabeças de bloco e as octoaranhas saibam
que estamos unidos como espécie... O Conselho vai convocar uma sessão especial
para hoje à noite, a fim de fazer uma lista de agravos...
Max estava ficando irritado.
— Obrigado pela informação, Stephen — disse ele bruscamente. — Agora
nos deixe passar, porque queremos almoçar.
— Você está cometendo um erro — disse o sr. Kowalski. — Será o único
humano na lanchonete... E vamos relatar essa conversa na reunião do Conselho
hoje à noite.
— Vá em frente — falou Max.
Max, Eponine e Nicole entraram no corredor principal que formava um
anel em volta do centro da Estrela do Mar.
— O que é o Conselho? — perguntou Nicole.
— Um grupo que se auto-elegeu para representar todos os humanos —
respondeu Max. — No início eles eram apenas inconvenientes, mas nos últimos
meses têm começado a exercer algum poder... Chegaram a recrutar a pobre Nai
para sua organização em troca de solucionarem o problema de Galileu.
O grande bonde parou uns vinte metros à direita e dois iguanas desem-
barcaram. Dois robôs-blocos que estavam parados discretamente de um lado
atravessaram o corredor entre os humanos e os estranhos animais de dentes
ameaçadores. Quando os iguanas passaram, Nicole lembrou-se da cerimônia do
Dia da Fartura, quando Nikki foi atacada.
— Por que os iguanas andam por ali? — perguntou Nicole. — Eu pensava
que eles fossem muito agressivos...
— O Grande Bloco e a Águia explicaram em assembléias para os huma-
nos, em duas ocasiões distintas, que os iguanas são essenciais para a produção
da planta barrican, sem a qual as octoaranhas entram em parafuso... Eu não
segui todos os detalhes da explicação biológica, mas lembro que os ovos frescos
do iguana são um elo vital no processo... A Águia enfatizou várias vezes que só
pouquíssimos iguanas haviam sido admitidos aqui no Grande Hotel.
Os três estavam perto da entrada da lanchonete.
— Os iguanas causaram muitos problemas? — perguntou Nicole.
— Não muitos — respondeu Max. — Eles podem ser perigosos, como você
sabe, mas, se deixarmos de lado as besteiras que o Conselho conta, chegamos à
conclusão de que muito poucas vezes os iguanas atacaram sem serem
provocados... Em geral, as brigas são começadas pelos humanos... Nosso amigo
Galileu matou dois iguanas uma noite na lanchonete durante uma de suas crises
de violência.
Max notou a reação de Nicole ao seu comentário.
— Não quero que isso pareça fofoca de colégio —- continuou Max —, mas
esse caso do Galileu realmente destruiu a família... Eu prometi a Eponine que
deixaria você falar com Nai sobre isso primeiro.
Os robôs-blocos menores eram construídos no mesmo modelo do Grande
Bloco. Uns doze serviam na lanchonete, e mais uns seis a oito ficavam de pron-
tidão na área de refeições. Quando Nicole e seus amigos entraram, umas cinco
octoaranhas, inclusive duas repletas gigantes, e umas oitenta midgets, que comi-
am em um canto do chão, já estavam na lanchonete. Algumas viraram-se para
ver Nicole, Max e Eponine passando pela fila. Uns doze iguanas sentados perto da
fila de servir pararam de comer e ficaram espreitando os humanos.
Nicole ficou surpresa com a grande variedade de alimentos. Escolheu um
pouco de peixe e batatas, umas frutas das octoaranhas e o mel com sabor de
laranja para passar no pão.
— De onde vêm todos esses alimentos frescos? — perguntou, quando se
sentaram à mesa desocupada.
Max apontou.
— Há um segundo andar na Estrela do Mar. Toda essa comida é plantada
lá... Nós comemos muito bem, embora o Conselho tenha reclamado da falta de
carne.
Nicole deu umas colheradas na comida.
— Acho que deveria lhe dizer — falou Max debruçando-se sobre a mesa —
que duas octoaranhas estão vindo na nossa direção.
Nicole virou-se e viu as octoaranhas aproximando-se. Com o canto dos
olhos viu também o Grande Bloco correndo para a mesa.
— Alô, Nicole — disse uma da octoaranhas em cores. — Eu era assistente
do dr. Azul no hospital da Cidade de Esmeralda... Quero lhe dar as boas-vindas e
agradecer a ajuda que você nos deu...
Nicole tentou reconhecer a octoaranha.
— Desculpe — disse, num tom amigável —, mas não estou conseguindo
localizar você...
— Você me chamava de Leitosa — disse a octoaranha —, porque naquela
época eu estava me recuperando de uma operação na lente e tinha muito líquido
branco...
— Ah, agora me lembrei, Leitosa — disse Nicole com um sorriso. — Nós
não tivemos uma longa discussão, um dia no almoço, sobre a velhice? Se não me
engano, você teve dificuldade em acreditar que nós humanos continuamos a viver
mesmo que não sejamos mais úteis, até morrermos por algum motivo natural...
— Isso mesmo — respondeu Leitosa. — Bem, não quero perturbar seu
jantar, mas esta minha amiga queria muito conhecer você.
— E também lhe agradecer — disse a companheira de Leitosa — por ter
sido tão justa em tudo... O dr. Azul disse que você foi um exemplo para todas
nós...
Outras octoaranhas começaram a levantar-se de onde estavam e a fazer
fila por trás daquelas duas. As cores para "obrigado" eram visíveis em todas as
cabeças. Nicole ficou profundamente comovida. Por sugestão de Max, levantou-se
e falou para todas as octoaranhas.
— Obrigada — disse ela — por essa calorosa acolhida. Fiquei muito
contente... Espero ter oportunidade de falar com cada uma de vocês enquanto
estivermos morando aqui.
Nicole olhou à direita da fila das octoaranhas e viu Ellie e Nikki.
— Vim assim que pude — disse Ellie, aproximando-se para beijar sua
mãe. — Eu devia saber... — acrescentou com um sorriso, dando um grande
abraço em Nicole. — Eu te amo, mamãe. E senti muito a sua falta.

— Eu expliquei para o Conselho — falou Nai — que você tinha acabado de


chegar e não sabia bem o significado do boicote. Acho que eles ficaram satisfeitos.
Nai abriu a porta e Nicole seguiu-a até a lavanderia. Usando as lavadoras
e secadoras do Novo Éden como base, os alienígenas, que tinham adaptado o
Grande Hotel às pressas, haviam construído a lavanderia perto da lanchonete.
Nai resolveu usar as máquinas do lado oposto para poder ter uma conversa em
particular com Nicole.
— Pedi para você vir comigo hoje — disse Nai, enquanto começava a
separar as roupas — porque quero lhe falar sobre Galileu... — disse, hesitante. —
Desculpe, Nicole, mas meus sentimentos sobre este assunto são muito fortes...
Não estou certa se...
— Tudo bem, Nai — disse Nicole suavemente. — Eu compreendo...
Lembre-se de que também sou mãe...
— Estou desesperada, Nicole — continuou Nai. — Preciso da sua ajuda...
Nada na minha vida, nem mesmo a morte de Kenji, me afetou tanto quanto esta
situação... Estou morrendo de aflição por meu filho... Nem mesmo a meditação
tem me dado paz.
Nai tinha dividido as roupas em três pilhas. Colocou uma delas na má-
quina e voltou para onde estava Nicole.
— Olhe, eu sou a primeira a admitir que Galileu não teve um comporta-
mento perfeito... Depois do longo sono, quando fomos trazidos para cá, ele ficou
muito lento... Não participava das aulas que Patrick, Ellie, Eponine e eu dávamos
para as crianças, e quando participava não fazia os deveres de casa... Galileu
tornou-se difícil e desagradável com todos, menos com Maria. Ele nunca expôs
seus sentimentos para mim... A única coisa de que gostava era ir para a sala de
recreação fazer exercícios de musculação... Aliás, ele tornou-se muito orgulhoso
da sua força física.
Nai fez uma pausa.
— Galileu não é uma má pessoa, Nicole — disse ela, como que se des-
culpando. — Ele está apenas confuso... Ficou dormindo durante dezesseis anos e
acordou aos vinte e um anos de idade, com o corpo e os desejos de um rapaz...
Seus olhos encheram-se de lágrimas, e depois de um instante continuou,
com dificuldade.
— Como podiam esperar que ele agisse de outra forma... — Nicole es-
tendeu os braços para consolar Nai, mas ela se esquivou. — Eu tentei, mas não
consegui ajudar meu filho. Não sei o que fazer... e estou com medo de que seja
tarde demais.
Nicole lembrou-se das suas noites de insônia no Novo Éden, quando vivia
chorando por causa de Katie.
— Eu compreendo, Nai. Compreendo mesmo.
— Uma vez, só uma vez — continuou Nai —, percebi uma fresta naquele
exterior tão frio do qual Galileu tanto se orgulha... Foi no meio da noite, depois do
problema com Maria, quando ele voltou da sua sessão com o Grande Bloco.
Estávamos juntos no corredor, só nós dois, e ele começou a chorar e a bater na
parede... "Eu não queria machucar Maria, mãe; acredite em mim", ele gritava, "eu
amo a Maria... Só que não consegui me controlar..."
— O que aconteceu com Galileu e Maria? — perguntou Nicole quando Nai
parou de falar por um instante. — Não ouvi nada sobre isso.
— Oh — disse Nai surpresa —, eu estava certa de que alguém já tinha
contado esse episódio para você. Max disse um dia que Galileu tentou estuprar
Maria, e que só não conseguiu porque Benjy voltou para o quarto e arrastou-o
para fora... Mais tarde, Max admitiu que exagerou quando usou a palavra
estuprar, mas que Galileu tinha definitivamente saído da linha... Meu filho disse
que Maria o tinha encorajado, pelo menos no início, e que eles estavam no chão
se beijando... Segundo Galileu, Maria estava no maior entusiasmo até a hora em
que ele começou a tirar suas calcinhas... Foi aí que começou a briga...
Nai tentou acalmar-se.
Nai sacudiu a cabeça.
— Agora me diga, Nicole, como é possível uma menina de dezesseis anos
que só passou dois anos da sua vida acordada ser assim tão sofisticada? Acho
que Max e Eponine andaram lhe dizendo como ela deveria agir. Maria quis me
humilhar e fazer Galileu sofrer o máximo possível. E conseguiu.
— Sei que não parece provável — falou Nicole pela primeira vez depois de
longo tempo —, mas conheci gente que sabe desde cedo, intuitivamente, lidar
com qualquer tipo de situação. Talvez Maria seja assim.
Nai ignorou seu comentário.
— O encontro correu bem, Galileu foi cooperativo, e Maria aceitou as
desculpas que ele tinha mandado por escrito. Nas semanas seguintes, ela passou
a incluir Galileu nas atividades dos jovens... Mas ele continuou como um
estranho no grupo, dava para notar. E acho que ele também notou isso. Então
um dia, quando os cinco estavam sentados na lanchonete, dois iguanas
sentaram-se do outro lado da mesa. Nós tínhamos comido mais cedo e já
estávamos em casa. Segundo Kepler, os iguanas agiram de propósito de forma
repulsiva. Baixaram a cabeça na tigela, chuparam ruidosamente aqueles vermes
nojentos e depois ficaram olhando para as meninas, especialmente para Maria,
com os olhos amarelos em forma de contas. Nikki comentou que tinha perdido a
fome, e Maria concordou com ela. De repente, Galileu levantou-se, deu uns
passos na direção dos iguanas e tentou enxotá-los de lá, mas elas não se
mexeram. Ele deu mais um passo e um deles pulou-lhe em cima. Galileu
sacudiu-a com toda a sua força e torceu-lhe o pescoço. Então a outra atacou,
enfiando seus dentes afiados no braço dele. Quando os cabeças de bloco chega-
ram para apartar a briga, Galileu tinha matado o iguana, de tanto bater com ele
no tampo da mesa.
Nai parecia surpreendentemente calma quando terminou a história.
— Eles levaram Galileu, e três horas depois o Grande Bloco veio ao nosso
quarto informar que meu filho ficaria detido em outra parte da nave espacial.
Quando perguntei por quê, o Grande bloco me deu a mesma resposta que me dá
até hoje: "Nós concluímos que o comportamento do seu filho não é aceitável."
Novamente os sininhos tocaram, mostrando que o ciclo de secagem estava
completo. Nicole ajudou Nai a dobrar as roupas na mesa comprida.
— Só posso ver Galileu duas horas por dia — disse Nai. — Embora ele seja
orgulhoso demais para se queixar, sei que está sofrendo... O Conselho incluiu o
nome do meu filho na lista dos cinco humanos retidos sem justificativa, mas não
sei se os cabeças de bloco têm levado a sério essas queixas.
Nai parou de dobrar as roupas e pôs a mão no braço de Nicole.
— É por isso que estou pedindo sua ajuda — disse ela. — Na hierarquia
alienígena, a Águia está acima do Grande Bloco, e é óbvio que ela presta atenção
ao que você diz... Será que você conversaria com ela sobre Galileu?

— Assim é que está certo — disse Nicole para Ellie, tirando sua roupa do
armário. — Eu devia ter ido para o outro quarto desde o começo.
— Nós falamos sobre isso antes de você chegar, mas tanto Nai quanto
Maria disseram que Maria voltaria para o quarto ao lado para que você pudesse
ficar aqui comigo e com Nikki.
— Mesmo assim... — disse Nicole, pondo as roupas na mesa e olhando
para a filha. — Ellie, estou aqui há poucos dias, mas me espanta ver como todos
se absorvem nas coisas triviais do dia-a-dia... E não estou me referindo só a Nai e
seus problemas. As pessoas com quem conversei na lanchonete, ou em outros
lugares comunitários, passam grande parte do seu tempo discutindo sobre o que
realmente está acontecendo. Só duas pessoas me fizeram perguntas sobre a
Águia. E na noite passada, no terraço de observação, umas dez pessoas olhavam
abismadas para o tetraedro, mas nenhuma delas tinha interesse em saber quem
o tinha construído e com qual finalidade.
Ellie riu.
— Essas pessoas já estão aqui há um ano, mãe. E já fizeram todas essas
perguntas há muito tempo, durante muitas semanas, mas nunca tiveram uma
resposta satisfatória. É próprio da natureza humana, quando não se pode
responder a uma pergunta infinita, deixá-la de lado até dispor de novas
informações.
Ellie pegou as coisas da mãe e disse:
— Agora está na hora de você fazer sua sesta. Todos estão avisados para
não entrarem no quarto nas próximas duas horas. Por favor, mãe, aproveite para
descansar um pouco... Quando o dr. Azul saiu na noite passada, me disse que
seu coração está mostrando sinal de fadiga, apesar de todas as suas sondas
complementares.
— O sr. Kowalski certamente não ficou muito contente com a presença de
uma octoaranha no nosso raio — comentou Nicole.
— Eu já expliquei a ele, e o Grande Bloco também explicou. Não se
preocupe com isso.
— Obrigada, Ellie — disse Nicole, beijando o rosto da filha.

4
— Você está pronta, mãe? — perguntou Ellie, entrando no quarto.
— Creio que sim — respondeu Nicole. — Mas estou meio sem jeito. Fora
aquele jogo de ontem com você, Max e Eponine, eu não jogo bridge há anos.
Ellie sorriu.
— Não importa se você joga bem ou não, mãe. Já falamos sobre isso na
noite passada.
Max e Eponine estavam esperando na parada do transporte.
— Hoje vai ser muito interessante — disse Max depois de cumprimentar
Nicole. — Vamos ver quanta gente vai aparecer.
O Conselho votara na noite anterior por mais três dias de boicote. Embora
o Grande Bloco tivesse respondido à lista de agravos e persuadido as
octoaranhas, mais numerosas do que os humanos, a cederem mais tempo nas
áreas comuns para uso exclusivo dos humanos, o Conselho ainda não estava
satisfeito com muitas respostas.
Houve também uma discussão na reunião do Conselho sobre a forma de
fazer vigorar o boicote. Alguns dos participantes mais ativos queriam estabelecer
punições para aqueles que ignorassem a resolução. No final da reunião, ficou
decidido que os membros do Conselho engajariam ativamente os humanos que
continuassem a desconsiderar as recomendações do Conselho de evitar
intercâmbio com todas as outras espécies.
O transporte do corredor principal estava quase vazio. No primeiro carro
havia uma meia dúzia de octoaranhas, e no segundo, umas quatro e um par de
iguanas. Nicole e seus amigos eram os únicos humanos a bordo.
— Há três semanas, antes de começar essa nova onda de tensões — disse
Ellie —, tínhamos vinte e três mesas para o nosso torneio semanal de bridge.
Achei que estávamos fazendo progresso, pois entravam uns cinco a seis humanos
novos toda semana.
— Ellie — perguntou Nicole quando o transporte parou e outro par de
octoaranhas entrou —, de onde você tirou essa idéia de torneio de bridge?
Quando me falou pela primeira vez em jogar cartas com as octoaranhas, achei
que você estava ficando maluca.
Ellie riu.
— No começo, logo depois que todos nós fomos trazidos para cá, eu sabia
que seria preciso algum tipo de atividade organizada para facilitar a interação
entre as espécies. Ninguém iria puxar conversa com uma octoaranha, mesmo que
eu ou um cabeça de bloco servíssemos de intérpretes... E então achei que o jogo
poderia ser uma boa forma de estimular essa mistura... Isso funcionou durante
algum tempo, mas logo se tornou óbvio que os humanos não chegavam aos pés
das octoaranhas em jogo algum... Mesmo que ganhassem vantagens...
— No final do primeiro mês — interrompeu Max —, joguei xadrez com o
seu amigo, dr. Azul... Ele me deu uma vantagem de uma torre e dois peões para
começar o jogo, mas mesmo assim me deu uma surra... Foi deprimente...
— O último fiasco foi o nosso torneio de palavras cruzadas — continuou
Ellie. — Todos os prêmios foram das octoaranhas, embora as palavras usadas
fossem na nossa língua! Então percebi que tinha de inventar um jogo no qual os
humanos não jogassem contra as octoaranhas...
— O bridge foi uma solução perfeita. Cada par consiste de um humano e
uma octoaranha, e não é necessário que os parceiros conversem entre si. Preparei
umas convenções nas duas línguas, e até mesmo o humano menos brilhante
pode aprender em uma sessão os números das octoaranhas de um a sete e seus
símbolos para os quatro naipes... Funcionou às mil maravilhas...
Nicole sacudiu a cabeça.
— Ainda assim acho isso uma maluquice — disse sorrindo. — Embora eu
reconheça que a idéia é brilhante.
Havia só quatorze outras pessoas na sala de jogo do complexo de recrea-
ção na hora marcada para o bridge começar. Ellie ajeitou as coisas fazendo dois
jogos separados, um para os pares mistos, como os chamou, e outro só para as
octoaranhas.
O dr. Azul era parceiro de Nicole. Eles concordaram em fazer um leilão de
cinco cartas, uma das seis jogadas codificadas por Ellie, e sentaram-se a uma
mesa perto da porta. Como as cadeiras das octoaranhas eram mais altas que as
dos humanos, Nicole e seu parceiro ficavam sentados olho a olho. Ou melhor,
olho a lente.
Nicole nunca tivera um parceiro de bridge tão excepcional. Ela aprendera
a jogar quando estudava na Universidade de Tours, encorajada pelo pai, que
achava que através de atividades extracurriculares ela faria mais amigos. Nicole
também jogara bridge no Novo Éden, onde o jogo foi alta moda no primeiro ano
que se seguiu ao Assentamento. Porém, apesar de gostar bastante de bridge,
achava que era um jogo que consumia muito tempo, e que havia muitas outras
coisas mais importantes a serem feitas.
Nicole percebeu logo que o dr. Azul e as outras octoaranhas que tinham
vindo com seus parceiros humanos para o torneio duplo eram exímios jogadores
de cartas. Na segunda cartada, ele fez um contrato de "três sem trunfo"
terrivelmente difícil, usando as sutilezas de um jogador profissional.
— Muito bem — disse Nicole para seu companheiro octoaranha, depois
que o dr. Azul fez o contrato e uma vaza extra.
— É muito simples, desde que você saiba onde estão todas as cartas —
disse o dr. Azul em cores.
Era fascinante observar as octoaranhas usando o baralho. Elas retiravam
as cartas com as duas últimas juntas de um só tentáculo, com o ajuda dos cílios
das extremidades, e seguravam-nas na frente da lente com três tentáculos, um de
cada lado e um terceiro no meio. Para colocar uma carta na mesa, a octoaranha
usava o tentáculo mais próximo à carta em questão, equilibrando-a entre os cílios
durante a descida.
Nicole e o dr. Azul conversavam animadamente entre as cartadas. O dr.
Azul estava lhe dizendo que o novo Chefe Otimizador ficara intrigado com a
última ação do Conselho, quando a porta da sala de jogo abriu-se e entraram três
humanos, seguidos do Grande Bloco e um dos cabeças de bloco menores.
A mulher que vinha na frente, que Nicole reconheceu ser Emily Bronson, a
presidente do Conselho, deu uma olhada pela sala e encaminhou-se para a mesa
de Nicole. Estava começando uma rodada, e a octoaranha Leitosa e sua parceira,
uma bonita mulher de meia-idade chamada Margaret, tinham ido jogar com Ellie
e o dr. Azul.
— Ora, Margaret Young, estou espantada por vê-la aqui — disse Emily
Bronson. — Você não deve ter ouvido dizer que o Conselho estendeu o prazo do
boicote na noite passada.
Os dois homens que tinham entrado na sala com a sra. Bronson, um dos
quais era o Garland do incidente da piscina, seguiram-na até a mesa de Nicole.
Os três estavam em pé ao lado de Margaret.
— Emily... me desculpe — disse Margaret olhando para baixo —, mas você
sabe como eu adoro bridge...
— O que está em questão agora é muito mais do que o bridge — disse a
sra. Bronson.
Ellie tinha se levantado de uma mesa próxima e fez um apelo para o
Grande Bloco impedir a interrupção, mas Emily Bronson foi rápida.
— Todos vocês — disse num tom bem alto — estão sendo desleais com
sua presença aqui. Se saírem agora o Conselho não apresentará queixa contra
vocês... Mas se ficarem depois de terem sido avisados...
O Grande Bloco interveio e disse à sra. Bronson que ela e seus amigos
estavam interrompendo o jogo. Quando os três estavam saindo, mais de metade
dos humanos levantou-se para segui-la.
— Isso é um absurdo — disse Nicole de pé, com a mão apoiada na mesa e
uma voz incrivelmente clara e forte. — Sentem-se. Não se deixem levar por essa
fomentadora de ódios.
Os jogadores voltaram aos seus lugares.
— Cale a boca, sua velha — disse Emily Bronson com raiva. — Isso não
lhe diz respeito.
O Grande Bloco levou-a com seus companheiros para fora da sala.

— A senhora tem alguma idéia, sra. Wakefield, do que são esses objetos?
— Sei tanto quanto você, Maria — disse Nicole. — Certamente são coisas
que tinham algum significado especial para sua mãe. Na época eu pensei que o
cilindro de prata implantado na pele de sua mãe fosse uma espécie de placa de
identificação do zôo, mas como nenhum empregado do zôo sobreviveu ao
bombardeio, e como restaram muito poucos registros, não é provável que
possamos um dia confirmar a minha hipótese.
— O que é uma hipótese? — perguntou a garota.
— É uma suposição experimental, ou uma explicação do que aconteceu
quando não há prova suficiente para se chegar a respostas definitivas — respon-
deu Nicole. — Aliás, eu gostaria de dizer que você se expressa muito bem.
— Obrigada, sra. Wakefield.
As duas estavam sentadas em um salão comunitário fora do terraço de
observação, tomando suco de frutas. Embora Nicole já estivesse no Grande Hotel
há uma semana, era a primeira vez que tinha oportunidade de estar a sós com a
menina que ela encontrara nas ruínas do zôo das octoaranhas, dezesseis anos
antes.
— Minha mãe era mesmo bonita? — perguntou Maria.
— Era dessas pessoas que chamam a atenção — respondeu Nicole —,
embora eu não pudesse vê-la muito bem naquela luz mortiça. A pele era da
mesma cor que a sua, talvez um pouco mais clara, e sua estatura era mediana.
Devia ter uns trinta e cinco anos ou pouco menos.
— E não havia sinal do meu pai? — perguntou Maria.
— Não que eu visse. É claro que naquelas circunstâncias eu não pude
procurar muito... É possível que ele estivesse em algum lugar do Domínio
Alternativo, procurando ajuda. A cerca que separava o seu abrigo tinha sido
destruída no bombardeio. Quando acordamos na manhã seguinte, receei que seu
pai tivesse procurado por você, mas acabei me convencendo, pelo que tinha visto
no abrigo, que você e sua mãe estavam sozinhas.
— Então, segundo sua hipótese, meu pai já tinha morrido? — perguntou
Maria num tom tímido.
— Não necessariamente — replicou Nicole. — Eu não seria tão taxativa...
Mas não parecia que alguém pudesse manter-se vivo naquele lugar por muito
tempo.
Maria deu um gole no seu suco e fez-se um silêncio temporário.
— A senhora contou na outra noite, sra. Wakefield, quando estávamos
conversando com Max e Eponine, que supunha que minha mãe, ou talvez meus
pais, tivessem sido raptados muito antes pelas octoaranhas de um lugar
chamado Avalon... Não entendi muito bem o que a senhora disse...
Nicole sorriu para Maria.
— Você é muito gentil, Maria. Mas agora faz parte da família... pode me
chamar de Nicole.
Seu pensamento desviou-se para o Novo Éden, muitos e muitos anos
atrás. E de repente notou que Maria estava esperando uma resposta ao seu
comentário.
— Avalon era um assentamento fora do Novo Éden — disse Nicole -—, na
escura e fria planície Central, criada originalmente pelo governo da colônia a fim
de abrigar as pessoas que tinham um vírus mortal chamado RV-41. Depois que
Avalon foi construído, o ditador do Novo Éden, chamado Nakamura, convenceu o
Senado de que aquele era um lugar perfeito para outros humanos anormais,
inclusive os que protestavam contra o governo, os que eram mentalmente
retardados...
— O lugar não devia ser nada bom — comentou Maria.
Benjy viveu lá mais de um ano. Ele nunca fala sobre isso, pensou Nicole,
sentindo-se culpada por não ter passado mais tempo a sós com Benjy desde que
acordara. Mas ele nunca se queixou.
Mais uma vez, Nicole teve de esforçar-se para prestar atenção a Maria.
Nós, velhos, estamos sempre com a cabeça no ar, pois vemos e ouvimos muitas
coisas que nos fazem lembrar o passado, disse a si mesma.
— Eu já andei checando — respondeu ela. — Mas, infelizmente, todo o
pessoal administrativo de Avalon morreu na guerra... Descrevi sua mãe para
várias pessoas que passaram algum tempo em Avalon, mas ninguém se lembrou
dela.
— Será que ela era uma doente mental? — perguntou Maria.
— Talvez — respondeu Nicole. — Nunca saberemos ao certo... Aliás, o seu
colar é nossa melhor pista para a identidade de sua mãe. Ela era devota da
ordem da Igreja Católica criada por São Miguel de Siena... Ellie me disse que há
outros devotos dessa ordem a bordo... Pretendo conversar com eles quando tiver
tempo...
Nicole parou e virou-se para o terraço de observação, onde estava come-
çando uma movimentação. Alguns humanos e um grande grupo de octoaranhas
apontavam para a janela e gesticulavam. Um casal saiu em direção do corredor
principal, aparentemente para buscar outras pessoas para assistirem ao que
estavam vendo.
Nicole e Maria saíram da mesa, subiram para o terraço e olharam pela
grande janela. A distância, para além do tetraedro de luzes, uma imensa
espaçonave de teto chato, parecendo um transportador, aproximava-se de Nodo.
Nicole e Maria ficaram olhando, quietas, durante vários minutos, e a nave
espacial foi se tornando cada vez maior.
— O que é isso? — perguntou Maria.
— Não tenho a menor idéia — respondeu Nicole.
O terraço de observação lotou rapidamente. Não paravam de chegar mais
humanos, octoaranhas, iguanas, e até mesmo um par de aves. A multidão
começava a comprimir-se contra Nicole e Maria.
O veículo de teto chato era extremamente longo, ainda mais longo do que
os corredores de transporte que ligavam as esferas de Nodo. Dezenas de grandes
bolhas transparentes espalhavam-se por sua superfície. O transportador parou
perto de um dos vértices esféricos de Nodo e estendeu um longo tubo
transparente que se encaixou perfeitamente do lado da esfera.
O terraço estava tumultuado. Todos os tipos de criaturas empurravam-se
para chegar mais perto da janela. Um par de iguanas pulou para cima contra a
janela no vácuo, e logo depois uns dez a vinte humanos fizeram o mesmo. Nicole
começou a sentir claustrofobia e tentou sair do caminho. Não havia espaço
suficiente para toda aquela multidão. Nicole foi empurrada em todas as direções e
perdeu-se de Maria. Um grupo compacto empurrou-a de lado e jogou-a contra a
parede. Com o impacto, Nicole sentiu uma forte dor no quadril esquerdo. Com
toda a confusão que se seguiu, ela teria ficado muito mais machucada, não fosse
a interferência do Grande Bloco e dos cabeças de bloco que entraram no meio da
multidão e restauraram a ordem.
Nicole estava muito abalada quando o Grande Bloco chegou perto dela. A
dor no quadril era insuportável, e ela não conseguia andar.

— São coisas que vêm com a idade — disse a Águia. — Você precisa ter
mais cuidado. — Ela e Nicole estavam sozinhas no apartamento. Os outros
tinham saído para tomar o café da manhã.
— Não gosto de ser frágil — comentou Nicole. — Nem de não fazer as
coisas por medo de me machucar.
— Seu quadril vai ficar curado — falou a Águia. — Mas vai levar algum
tempo. Você teve sorte de não sofrer uma fratura, foi só uma luxação. Na sua
idade, uma fratura de quadril pode deixar a pessoa inválida para sempre.
— Obrigada pelas palavras confortadoras — disse Nicole, dando um gole
no seu café. Ela estava deitada na esteira com a cabeça ligeiramente elevada por
vários travesseiros. — Mas já basta de falar em mim... Vamos passar a outras
coisas mais interessantes... Que nave chata é aquela?
— Os outros humanos já começaram a chamá-la de transportador, um
nome muito apropriado — disse a Águia.
Houve um breve silêncio.
— Vamos — disse Nicole em tom irritado —, não brinque comigo... Estou
deitada aqui, dopada, mas ainda com dor... Será que vou ter de arrancar essa
informação de você?
— Essa fase da operação acabará logo — disse o alienígena. — Alguns de
vocês serão transferidos para o transportador e os outros irão para Nodo.
— E depois, o que vai acontecer? — perguntou Nicole. — Como será
decidido quem irá para onde?
— Ainda não posso lhe dizer isso — respondeu a Águia. — Só lhe direi que
você irá para Nodo... Mas, se contar a qualquer pessoa o que acabei de lhe dizer,
no futuro você nunca mais será informada de nada antecipadamente... Queremos
que a transição seja feita em ordem...
— Você sempre quer tudo em ordem... Ai! — disse ela ao trocar de
posição. — E acho que você não me deu informações muito significativas.
— Você sabe mais do que qualquer um.
— Grande coisa — disse ela zangada, tomando mais um gole de café. — A
propósito, você tem algum médico esperto em Nodo que saiba fazer uma mágica
para curar esse meu ferimento?
— Não — respondeu a Águia —, mas podemos lhe dar um quadril novo, se
você quiser. Ou um pseudoquadril, como você provavelmente diria.
Nicole sacudiu a cabeça e estremeceu quando foi colocar a xícara de café
no chão e deu uma batida no quadril.
— Ficar velha é uma merda — disse.
— Sinto muito — falou a Águia, fazendo menção de sair. — Virei visitá-la
sempre que puder.
— Antes que vá embora — disse Nicole —, tenho outros assuntos...
Prometi a Nai que lhe pediria para interceder por Galileu... Ela gostaria que ele
voltasse a viver com a família.
— Isso é irrelevante agora — disse a Águia ao sair. — Vocês todos sairão
daqui dentro de quatro a cinco dias... Adeus, Nicole. Não tente andar; use a
cadeira de rodas que eu lhe trouxe. Seu quadril só pode melhorar se você não
jogar seu peso sobre ele.

5
Era bem cedo, e a maioria dos humanos ainda dormia. Nicole tinha ficado
no longo corredor durante meia hora, experimentando os controles da cadeira de
rodas. Ficou surpresa ao ver que a cadeira se movia com rapidez e era silenciosa.
Ao passar pela série de salas de conferência, descendo o corredor de um
quilômetro de extensão, ficou imaginando que tipo de tecnologia avançada estaria
contida na caixa de metal lacrada debaixo da cadeira. Richard teria adorado esta
cadeira de rodas. Provavelmente tentaria desmontá-la, pensou.
Nicole passou por alguns humanos no corredor, quase todos tentando
fazer sua caminhada matutina. Ela riu para si própria quando dois deles se
afastaram depressa do seu caminho. Devo parecer muito estranha; uma velha
grisalha zunindo pelo corredor numa cadeira de rodas.
Ela deu meia-volta logo e emparelhou com um trenzinho que levava um
bando de passageiros para as áreas comuns, onde tomariam o café da manhã.
Continuou a apertar o botão do acelerador até a cadeira correr mais do que o
trem. Os passageiros olharam-na atônitos quando ela os ultrapassou, e Nicole
sorriu e acenou para eles. Mas quando uma porta cem metros à frente dela abriu-
se abruptamente, despejando duas mulheres no corredor, Nicole percebeu que
não era seguro andar tão depressa assim. Diminuiu a marcha, ainda rindo
consigo mesma pela emoção que sentira com a velocidade.
Quando se aproximou do apartamento, Nicole viu a Águia no final do raio,
no ponto onde ele desembocava no anel que rodeava a Estrela do Mar, e foi até lá.
— Parece que você está se divertindo — disse a Águia.
— Estou mesmo. Esta cadeira é um brinquedo fantástico. Quase me fez
esquecer a dor no quadril — disse Nicole.
— Você dormiu bem na noite passada? — perguntou a Águia.
— Muito melhor, obrigada. Dormi de lado, com o quadril elevado, como
nós achamos que seria melhor. Aliás, o remédio que você me deu realmente
diminuiu a dor.
A Águia acenou na direção de um saguão do outro lado do anel.
— Vamos para lá, por favor — disse a Águia. — Eu gostaria de conversar
em particular com você.
Nicole guiou a cadeira pelo anel principal até chegar à rampa que dava no
saguão. A Águia, que andava ao seu lado, fez sinal para ela continuar. Umas doze
octoaranhas estavam sentadas no salão. A Águia e Nicole escolheram um lugar à
direita, onde pudessem ficar sozinhas.
— A tarefa do transportador em Nodo está quase terminada — disse a
Águia. — Dentro de doze horas, ele vai fazer uma rápida parada perto deste
veículo para pegar uns passageiros... Eu vou anunciar depois do almoço quem
será transferido para o transportador.
O alienígena virou-se e olhou diretamente para Nicole com seus intensos
olhos azuis.
— Alguns humanos talvez não gostem do que eu vou anunciar... Depois
que foi tomada a decisão de dividir a sua espécie em dois grupos separados, ficou
óbvio para mim que seria impossível essa divisão agradar a todos... Gostaria que
você me ajudasse a tornar esse processo o mais suave possível.
Nicole examinou o rosto e os olhos fascinantes do seu companheiro
alienígena, e achou que já tinha visto antes aquela expressão nele. Foi lá em
Nodo, quando me pediram para fazer o vídeo, lembrou-se.
— O que você quer que eu faça? — perguntou.
— Decidimos permitir um grau de flexibilidade nesse processo. Embora
todos os indivíduos da lista de transferência para o transportador tenham de
acatar nossa seleção, alguns dos que forem selecionados para Nodo poderão
solicitar que seus casos sejam reconsiderados. Como não haverá intercâmbio
entre os dois veículos, no caso de fortes ligações emocionais, por exemplo, nós
não gostaríamos de forçar...
— Você está me dizendo que essa divisão poderá separar as famílias para
sempre? — perguntou Nicole.
— Talvez — respondeu a Águia. — Em alguns casos, um marido poderá
ser selecionado para o transportador e a mulher para Nodo. Da mesma forma,
haverá casos em que pais e filhos serão separados.
— Puxa! — exclamou Nicole. — Como vocês podem separar arbitra-
riamente duas pessoas que vivem juntas e esperar que elas fiquem felizes?... Você
terá sorte se não houver uma revolta depois que for anunciada essa divisão.
A Águia hesitou um instante.
— Não há nada de arbitrário no nosso processo — disse o alienígena
finalmente. — Há meses estudamos com cuidado os inúmeros dados de cada
criatura que vive atualmente na Estrela do Mar. Os registros incluem informações
completas de todos os anos em Rama também... Os que foram selecionados para
o transportador não preencheram, por uma razão ou por outra, os requisitos
necessários para serem transferidos para Nodo.
— E quais são exatamente esses requisitos? — perguntou Nicole.
— Tudo o que posso dizer agora é que em Nodo haverá um ambiente de
intercâmbio de espécies... Os indivíduos que têm adaptação limitada foram
selecionados para o transportador — disse a Águia.
— Está me parecendo que um subgrupo de humanos do Grande Hotel não
foi considerado aceitável, por alguma razão...
— Se entendi bem o que você disse — interrompeu a Águia —, você está
insinuando que essa divisão separa os grupos na base do mérito. Não é bem
assim. A nosso ver, quase todas as pessoas dos dois grupos serão mais felizes a
longo prazo no ambiente para o qual foram selecionadas.
— Mesmo sem seus cônjuges ou filhos? — perguntou Nicole, franzindo as
sobrancelhas. — Às vezes fico pensando se você realmente sabe o que motiva a
espécie humana. As ligações emocionais, para usar suas palavras, em geral são
essenciais para a felicidade dos humanos...
— Nós sabemos disso — falou a Águia. — Depois de revermos cada caso
em que as famílias serão separadas por essa divisão, fizemos algumas
adaptações. Na nossa opinião, as separações familiares, que não são tão
numerosas quanto você está pensando, são todas em função dos nossos dados de
observação.
Nicole ficou olhando para a Águia e sacudiu a cabeça.
— Por que essa divisão nunca foi mencionada antes?... Nunca, em todas
as discussões sobre a transferência iminente, vocês fizeram qualquer alusão a
essa divisão dos humanos em dois grupos...
— Só nos decidimos por isso há pouco tempo. Lembre-se de que nossa
intercessão nos negócios de Rama levou-nos a um regime de contingência na
nossa matriz de planejamento... Depois que ficou claro que algum tipo de divisão
se fazia necessário, não quisemos perturbar o status quo...
— Que bobagem! — disse Nicole de repente. — Não acredito em nada dis-
so. Vocês sabiam há muito tempo o que iriam fazer... Mas não quiseram ouvir
qualquer objeção...
Nicole virou a cadeira e deu as costas para seu companheiro alienígena.
— Não — continuou ela com firmeza —, não vou ser sua cúmplice numa
coisa dessas... E não gostei de você ter comprometido minha integridade não me
contando a verdade antes...
Apertou o botão de aceleração e dirigiu-se para o corredor principal.
— Há alguma coisa que eu possa fazer para você mudar de idéia? —
perguntou a Águia, andando ao seu lado.
Nicole parou.
— Nesse quadro, eu não posso imaginar uma forma de ajudar vocês... Por
que vocês não explicam as diferenças entre os dois ambientes de vida e deixam
que cada indivíduo de cada espécie decida por si próprio?
— Acho que isso será impossível — disse a Águia.
— Então não conte comigo — falou Nicole, acelerando a cadeira de novo.

Nicole estava de péssimo humor quando chegou à porta do seu


apartamento. Inclinou-se para a frente e apertou os números do seu código de
entrada.
— Patrick e mamãe estão procurando pela senhora — disse Kepler um
instante depois. — Eles ficaram preocupados porque não a encontraram no
corredor.
Nicole passou pelo rapaz e foi para o seu quarto. Benjy saiu do banheiro
com uma toalha enrolada na cintura.
— Alô, ma-mãe — disse ele com um amplo sorriso. Porém, ao notar seu ar
preocupado, correu para perto dela. — O que houve? Você não se ma-chu-cou de
novo, não é?
— Não, Benjy — respondeu Nicole. — Eu estou bem. Só estou preocupada
com uma discussão que tive com a Águia.
— Sobre o quê? — perguntou ele, segurando a mão da mãe.
— Mais tarde eu conto — falou Nicole hesitante. — Depois que você se
secar e puser sua roupa.
Benjy sorriu e beijou a mãe antes de voltar para o banheiro. A dor de
estômago que Nicole sentira enquanto conversava com a Águia tinha voltado. Oh,
meu Deus. Benjy não. Espero que a Águia não tenha tentado me dizer que vamos
nos separar de Benjy. Lembrou-se do comentário do alienígena sobre capacidades
limitadas e entrou em pânico. Não agora. Por favor, não agora. Não depois de todo
esse tempo.
Nicole lembrou-se de um momento especial, muitos anos antes, quando
toda a família fora levada a Nodo pela primeira vez. Ela estava sozinha no
banheiro quando Benjy entrou para tentar saber se queriam que ele voltasse com
sua família para o sistema solar, e ficou muito aliviado ao verificar que não seria
separado de sua mãe. Ele já sofreu o bastante, disse Nicole para si mesma,
lembrando-se da indicação de Benjy para Avalon quando ela estava presa no
Novo Éden. A Águia deve saber disso, se é que todos os dados foram bem
estudados.
Apesar de seu esforço consciente para manter-se calma, Nicole não con-
seguia libertar-se do medo e da raiva que cresciam dentro dela. Preferia ter
morrido enquanto dormia, pensou com amargura, esperando pelo pior. Não vou
conseguir dizer adeus a Benjy. Ele morreria de tristeza. E eu também.
Uma lágrima solitária desceu do olho esquerdo de Nicole e rolou pelo seu
rosto.
— A senhora está bem? — perguntou Kepler, preocupado.
— Estou sim, obrigada, Kepler — respondeu ela, limpando o rosto com as
costas da mão e sorrindo. — Gente velha fica muito emotiva. Não é nada demais.
Bateram na porta e Kepler foi atender. Eram Patrick e Nai, seguidos pela
Águia.
— Nós encontramos o seu amigo no corredor, mamãe — disse Patrick,
dando-lhe um beijo. — Ele disse que vocês dois tiveram uma conversa séria... Nai
e eu estávamos preocupados...
A Águia foi para o lado de Nicole e disse:
— Há um outro assunto sobre o qual eu gostaria de falar. Será que dá
para conversarmos mais um pouco lá fora?
— Acho que não tenho escolha — respondeu Nicole. — Mas não vou
mudar de idéia...
Um trem lotado passou por Nicole e a Águia quando saíam do
apartamento.
— O que é? — perguntou ela, impaciente.
— Quero que você saiba que todas as diferentes manifestações da espécie
séssil e as aves restantes serão incluídas no grupo que será transferido para o
transportador hoje à noite. Se você tiver algum desejo, como indicou uma vez,
durante uma conversa que tivemos logo depois que você acordou, de interagir
com os sésseis e de experimentar o que Richard descreveu...
— Diga uma outra coisa antes — interrompeu Nicole, agarrando a Águia
pelo braço com uma força surpreendente. — Benjy e eu vamos nos separar com
essa divisão que será anunciada hoje à tarde?
A Águia hesitou um instante.
— Não, vocês não vão se separar — disse afinal. — Mas eu não posso dar
mais detalhes sobre isso...
Nicole deu um suspiro de alívio.
— Obrigada — falou, tentando sorrir. Fez-se um silêncio prolongado.
— Os sésseis — continuou a Águia depois de algum tempo — não poderão
mais ser vistos depois...
— Tudo bem — falou Nicole. — Muito obrigada, é uma grande idéia. Eu
gostaria de prestar meu respeito a um séssil... Depois do café da manhã, é claro...
Os robôs-blocos menores ficavam em evidência no raio que abrigava as
aves e os sésseis. O raio era dividido em várias áreas, separadas por paredes que
iam do chão ao teto. Os robôs-blocos policiavam as entradas e saídas dessas
áreas, e também ficavam postados em cada uma das paradas do trem.
As aves e os sésseis viviam por trás do raio, no último prédio separado.
Um robô-bloco e uma ave guardavam a entrada quando a Águia e Nicole
chegaram. A Águia matraqueou e guinchou em resposta a uma série de
perguntas da ave. Depois que eles entraram no prédio, foram abordados por um
myrmigato, que começou a se comunicar com a Águia em explosões sonoras de
alta freqüência, saídas do pequeno orifício circular abaixo dos seus olhos ovais,
escuros e leitosos. Nicole maravilhou-se com a fidelidade da resposta da Águia. E
ficou também fascinada quando os dois outros olhos do myrmigato, presos a
hastes que se elevavam uns doze centímetros de sua testa, continuaram a girar e
a inspecionar o ambiente. Quando a Águia terminou de conversar com o
myrmigato, a criatura de seis patas, que parecia uma formiga gigante quando
ficava de pé, correu pelo corredor com a velocidade e a graça de um gato.
— Eles sabem quem você é — disse a Águia. — Estão encantados por
estarem sendo visitados.
Nicole olhou para seu companheiro.
— Como eles me conhecem? — perguntou. — Vi alguns deles nas áreas
comuns, mas na verdade nunca me aproximei...
— Seu marido é um deus para essa espécie... Nenhum deles estaria aqui
hoje se não fosse ele. Eles conhecem você de imagens gravadas em sua
memória...
— Como é possível isso? Richard morreu há dezesseis anos...
— Mas o registro da estada de Richard com eles foi cuidadosamente pre-
servado na sua memória coletiva — respondeu a Águia. — Todo myrmigato sai do
seu melão-maná com um conhecimento significativo dos componentes-chaves da
sua própria cultura e história... O processo embrionário que ocorre dentro do
melão não só fornece aumento físico para o crescimento e desenvolvimento do ser
como também passa informações básicas diretamente para o cérebro, ou
equivalente, do filhote de myrmigato.
— Você está me dizendo que essas criaturas começam sua educação antes
de nascerem? E que dentro dos melões-manás que eu costumava comer há
conhecimentos armazenados e eles são de algum modo implantados nos cérebros
dos myrmigatos ainda não-nascidos?
— Exatamente, e não entendo por que você está tão surpresa. Fisica-
mente, essas criaturas são muito menos complexas dos que as da sua espécie. O
processo de desenvolvimento embrionário do humano é muito mais sutil e
complexo do que o deles. Os recém-nascidos humanos chegam no mundo com
uma série de atributos e capacidades físicas. Mas os bebês dependem dos outros
membros da espécie para sua sobrevivência e educação. Os myrmigatos nascem
mais sabidos, portanto mais independentes, porém têm muito menos potencial de
desenvolvimento intelectual.
Os dois ouviram um som estridente vindo de um myrmigato de mais ou
menos cinqüenta metros.
— Ele está nos chamando — disse a Águia.
Nicole acelerou sua cadeira de rodas a uma velocidade compatível com o
passo da Águia.
— Richard nunca me disse que essas criaturas preservavam informações
de uma geração para outra.
— Ele não sabia. Mas conseguiu descobrir o ciclo metamórfico deles, e
sabia que os myrmigatos passavam informações para a rede ou teia neural, ou
qualquer nome que se dê à manifestação final... Mas ele nem suspeitava que os
elementos mais importantes das informações coletivas eram também
armazenados nos melões-manás e passados para a geração seguinte... Não é
preciso dizer que é um mecanismo de sobrevivência muito forte.
Nicole ficou fascinada com o que a Águia estava lhe dizendo. Imagine se as
crianças humanas pudessem nascer sabendo as coisas essenciais da nossa
cultura e história. Se, por exemplo, a placenta contivesse, de forma compactada,
bastante informação... Parece impossível, mas talvez não seja. Se ao menos uma
criatura puder fazer isso, então no final...
— Quantos dados são passados pelos melões-manás para os recém-nas-
cidos da espécie deles? — perguntou Nicole quando se aproximavam do
myrmigato.
— Cerca de um milésimo de um por cento das informações presentes em
um espécime maduro como aquele em que Richard residiu. A função básica da
manifestação final da espécie é manipular, processar e compactar os dados em
um pacote a ser incluído nos melões-manás... A forma como esse processo de
gerenciamento de dados funciona está sendo estudada por nós... Aliás, a rede
neural que você vai ver nos próximos minutos, continuou a Águia — era
originariamente apenas uma pequena lasca de material contendo dados críticos
comprimidos através de um brilhante algoritmo... Calculamos que naquele
cilindro pequeno que Richard levou para Nova York, há muitos anos, havia
informações equivalentes à capacidade de memória de cem cérebros de adultos
humanos.
— Espantoso! — disse Nicole sacudindo a cabeça.
— E isso é só o começo — continuou a Águia. — Cada um dos quatro
melões-manás que Richard levou tinha seu próprio conjunto de dados
compactados, com ligeiras diferenças, diria eu. E todos eles se transformaram em
myrmigatos... Espero que você esteja preparada para uma aventura e tanto.
Nicole parou a cadeira de rodas.
— Por que você não me contou tudo isso antes? Talvez eu tivesse passado
mais tempo...
— Duvido — interrompeu a Águia. — Sua prioridade era restabelecer suas
conexões com sua própria espécie... Acho que só agora você está preparada para
isso.
— Você tem me manipulado, controlando o que eu vejo e sinto — disse
Nicole sem rancor.
— Talvez — replicou a Águia.

Nicole sentiu muito medo quando finalmente chegou perto da rede neural.
A Águia e ela estavam juntas em um quarto semelhante ao do apartamento de
Nicole no raio dos humanos. Dois myrmigatos estavam sentados por trás deles,
encostados na parede. A rede, ou teia séssil, ocupava cerca de quinze por cento
do quarto, no canto direito. Havia um espaço no centro do denso e macio material
branco que dava para Nicole entrar com sua cadeira de rodas. Ela atendeu ao
pedido da Águia de dobrar as mangas da blusa e levantar o vestido acima dos
joelhos.
— Imagino que ele espere que eu entre naquele espaço para enrolar seus
filamentos em volta do meu corpo — disse ela com a voz um tanto trêmula.
— Isso mesmo — falou a Águia. — E está avisado por um dos myrmigatos
para soltá-la quando você pedir... Estarei aqui o tempo todo, se é que isso lhe
serve de conforto.
— Richard me disse que levou muito tempo para que houvesse uma
verdadeira comunicação... — disse ela, ainda hesitando em entrar.
— Isso agora não será problema — respondeu a Águia. — Certamente,
parte das informações armazenadas na lasca original era de dados sobre métodos
que poderiam ser usados para uma comunicação eficiente com os seres
humanos.
— Tudo bem — disse Nicole nervosa, passando a mão nos cabelos. — Lá
vou eu; me deseje boa sorte.
Nicole entrou com a cadeira no espaço vazio da rede que parecia algodão e
desligou o motor. Em menos de um minuto a criatura a tinha rodeado, e ela nem
conseguia ver o contorno da Águia do outro lado do quarto. Tentou sentir-se
segura. Isso não vai me machucar, disse para si própria, quando sentiu centenas
e depois milhares de fios minúsculos prendendo-se em seus braços, pernas,
pescoço e cabeça. Como esperava, os fios eram mais numerosos na cabeça. Ela se
recordou da descrição de Richard. Os filamentos individuais eram incrivelmente
finos, mas deviam ter partes muito afiadas por baixo. Só percebi que eles eram
inseridos bem dentro das camadas externas da minha pele quando tentei puxar
um deles.
Nicole olhou para o monte de fios mais ou menos a um metro do seu
rosto. Quando aquele monte se aproximou dela, os outros elementos da delicada
rede mudaram de posição. Nicole sentiu um arrepio na espinha. E finalmente
compreendeu que a rede que a envolvia era uma criatura viva. Só um pouco
depois é que as imagens começaram.
Nicole percebeu imediatamente que o séssil estava lendo sua memória.
Imagens do início de sua vida passaram-lhe pela cabeça em uma velocidade
fantástica, nenhuma demorando o tempo necessário para provocar emoção. Não
havia ordem nas imagens: a lembrança da infância na floresta atrás de sua casa
no subúrbio parisiense de Chilly-Mazarin era seguida da imagem de Maria rindo
das histórias de Max.
Esse é o estágio de transferência de dados, pensou Nicole, lembrando-se
da análise de Richard sobre o tempo que ele passara dentro da rede neural. A
criatura está copiando a minha memória para a sua, a uma velocidade incrível.
Nicole ficou imaginando o que o séssil iria fazer com todas aquelas imagens da
sua memória. De súbito, Nicole viu em sua mente nitidamente o próprio Richard
numa grande câmara que tinha um mural enorme e incompleto na parede. Essa
imagem tornou-se um filme de cinema apresentado na câmara, com uma
claridade assustadora. Parecia que ela estava diante de uma televisão colorida
localizada dentro do seu cérebro. Dava até para ver os detalhes do mural.
Enquanto assistia ao filme, um myrmigato dirigia a atenção de Richard para
detalhes específicos das pinturas. Em volta do quarto, outros doze myrmigatos
pintavam as seções incompletas do mural.
Era uma soberba obra de arte. Tinha sido criada para informar a Richard
o que ele podia fazer para ajudar a espécie alienígena a sobreviver. Parte do
mural era um texto de biologia, explicando em figuras as três manifestações da
espécie (melão-maná, myrmigato e séssil ou rede neural) e as relações entre elas.
As imagens que Nicole viu eram tão precisas que ela se sentiu transportada para
o quarto que Richard ocupara. Portanto, levou um susto quando o filme interno
de repente perdeu a continuidade e apresentou a imagem de Richard despedindo-
se do seu guia myrmigato.
Richard e o myrmigato estavam num túnel no fundo do cilindro marrom.
O filme detinha-se em cada detalhe dessa despedida final. Richard, barbudo,
parecia desconfortável carregando os quatro pesados melões-manás, dois ovos de
aves e o cilindro de material séssil no pacote pendurado às costas. E Nicole,
vendo o olhar determinado de Richard ao partir do habitat condenado dos
myrmigatos, pôde entender por que ele era um herói para aquela espécie. Ele
arriscou sua vida para salvá-los da extinção, lembrou-se.
Sua cabeça encheu-se de imagens do zôo das octoaranhas, registrando os
eventos posteriores à germinação dos melões-manás que Richard levara para
Nova York. Apesar da clareza dos filmes, Nicole não seguiu as imagens muito de
perto, pois ficou pensando em Richard. Desde que acordei ainda não me senti no
direito de sentir a sua falta, disse para si mesma, porque achei que isso
demonstraria fraqueza da minha parte. Mas agora, vendo seu rosto de novo com
tanta nitidez e lembrando como éramos companheiros, vejo como é ridículo forçar-
me a não pensar em você. Quando a gente sobrevive ao homem que ama, por que
não seria uma aceitável fonte de prazer reviver aquele amor?
Uma imagem rápida de três seres humanos, um homem, uma mulher e
um bebê, passou pelos olhos de Nicole e chamou sua atenção. Esperem, pensou
Nicole quase gritando. Voltem. Quero ver uma coisa. Mas a rede neural não leu a
sua mensagem, e continuou a passar os filmes. Nicole parou de pensar em
Richard e focalizou sua atenção nas imagens que apareciam na televisão de
dentro do seu cérebro.
Menos de um minuto depois, viu o trio de novo, andando no zoológico com
o zelador octoaranha, na frente da área onde ficavam os myrmigatos. Maria
estava no colo da mãe. Seu pai, um homem moreno e bonitão, com as têmporas
grisalhas, puxava de uma das pernas como se ela estivesse quebrada. Nunca vi
esse homem antes, senão me lembraria dele.
Não houve mais imagens dos pais de Maria. A torrente de figuras pas-
sando pela cabeça de Nicole mostrava a transferência dos myrmigatos para outro
local, longe do zôo e da Cidade de Esmeralda, pouco antes de começar o
bombardeio. Nicole supôs que a última seqüência de imagens fosse do período em
que todos os humanos e octoaranhas de Rama estavam dormindo. Não muito
tempo depois disso, se é que entendi bem o ciclo de vida deles, os quatro
myrmigatos que resultaram dos melões de Richard tomaram-se material de rede.
Com todas essas memórias intactas.
Os filmes na cabeça de Nicole logo tornaram-se completamente diferentes.
Agora ela via cenas que acreditava serem do planeta natal dos sésseis. Lembrou-
se de que Richard lhe descrevera essas imagens quando eles se encontraram,
depois que ela fugira do Novo Éden.
Nicole tinha colocado sua mão direita perto do painel de controle da
cadeira de rodas ao entrar na teia. Quando ela apertou o botão de ligar, o ligeiro
movimento da cadeira foi registrado pelo séssil. As imagens pararam no mesmo
instante, e os fios da criatura foram retirados em seguida.

6
No dia seguinte, uma hora antes de iniciar-se o período de almoço, parte
de uma parede em cada apartamento da Estrela do Mar transformou-se numa
grande tela de televisão, e os residentes foram informados de que uma importante
declaração seria feita nos próximos trinta minutos.
— Essa é a terceira vez que eles fazem uma transmissão geral — disse
Max para Nicole. — A primeira vez foi logo que chegamos aqui; a segunda,
quando decidiram segregar nossas áreas de moradia.
— O que vai acontecer agora? — perguntou Marius.
— Suponho que vamos saber dos detalhes da nossa mudança — respon-
deu Max. — Pelo menos este é o boato que corre por aí.
Na hora marcada, o rosto da Águia apareceu no monitor.
— No ano passado, quando todos vocês acordaram e foram transferidos de
Rama — falou a Águia, transmitindo ao mesmo tempo a mensagem em faixas
coloridas que se moviam sobre sua testa —, nós lhes dissemos que este veículo
não seria uma moradia definitiva. Agora, estamos prontos para transferi-los para
outros locais, onde a qualidade de vida será muito melhor.
A Águia fez uma pausa e continuou:
— Nem todos serão transferidos para o mesmo local. Cerca de um terço
dos residentes da Estrela do Mar passará para o transportador, aquela nave
espacial imensa e chata que está estacionada em Nodo desde a semana passada.
Nas próximas horas, o transportador terminará o que tem a fazer em Nodo e virá
para cá. Os que foram selecionados para o transportador serão transferidos hoje
à noite.
— Os outros se mudarão para Nodo dentro de três a quatro dias. Ninguém
ficará aqui na Estrela do Mar... Eu gostaria de repetir que as acomodações desses
dois locais são excelentes, muito superiores às que temos aqui neste veículo.
A Águia parou de falar durante quinze segundos, como se estivesse dando
tempo para a platéia reagir ao que fora dito.
— Quando esta comunicação terminar, todas as telas de televisão dos
apartamentos transmitirão repetidamente a lista de todas as criaturas a bordo,
pela ordem do número dos apartamentos, com as devidas indicações para as
transferências. As indicações são muito simples. Se seu nome ou código de
identificação aparecer no monitor em letra preta contra um fundo branco, você
será transferido para o transportador. Se seu nome vier escrito em letra branca
contra um fundo preto, você ficará aqui nos próximos dias até ser transferido
para Nodo. Para sua informação, no transportador cada espécie terá sua própria
área residencial separada. Não haverá intercâmbio de espécies, a não ser nos
arranjos simbióticos necessários, é claro. Ao contrário...
— Isso vai agradar aos líderes do Conselho — comentou Max. — Eles vêm
tentando há meses uma segregação total...
—... em Nodo haverá regularmente comunicação e atividades entre as
espécies... Ao selecionarmos os indivíduos para esses dois locais, procuramos
colocar cada um no ambiente mais adequado à sua personalidade. Nossas
seleções foram feitas com muito critério, baseadas nas nossas observações aqui,
na Estrela do Mar e em Rama... É importante que vocês saibam que não haverá
intercâmbio entre os dois grupos depois que as transferências tiverem lugar. Em
outras palavras, para que não haja mal-entendidos, aqueles que se mudarem
para o transportador hoje à noite nunca mais verão nenhum dos residentes que
serão transferidos para Nodo. Quem foi selecionado para o transportador —
continuou a Águia — deve começar a arrumar suas coisas imediatamente, de
modo a estar com tudo pronto para se mudar antes da hora do jantar. Quem foi
indicado para Nodo e acha que sua indicação não foi adequada, pode solicitar
uma reconsideração do seu caso. Hoje à noite, depois que todos os residentes
designados para o transportador tiverem sido transferidos, vou me encontrar na
lanchonete com aqueles que desejarem trocar de Nodo para o transportador... Se
algum de vocês tiver alguma dúvida, estarei durante uma hora na mesa grande
do saguão...

— O que a Águia falou para você? — perguntou Max a Nicole.


— A mesma coisa que falou para as outras vinte pessoas do saguão que
fizeram a mesma pergunta — respondeu Nicole. — Quem foi designado para o
transportador não terá possibilidade de mudar... Só serão reconsiderados os
casos de quem foi indicado para Nodo.
— Foi ao saber disso que Nai... desabou? — perguntou Eponine.
— Foi — respondeu Nicole. — Até aquela hora ela estava se contendo.
Quando veio ao nosso apartamento, depois que a lista foi transmitida pela
primeira vez, achei que ela estava calma demais... Certamente convencera-se de
início que havia algum erro na indicação de Galileu.
— Posso compreender como ela está se sentindo — disse Eponine. — Eu
estava aflitíssima antes de ver que todos nós ficamos juntos na lista de transfe-
rência para Nodo.
— Aposto que Nai não é a única que está sofrendo com essas seleções —
disse Max, levantando-se e andando pelo quarto. — Isso é realmente uma
arbitrariedade. O que teríamos feito se Marius tivesse sido indicado para o
transportador?
— Muito fácil — respondeu Eponine imediatamente. — Nós dois teríamos
nos candidatado a ir com o nosso filho.
— É — ele falou, depois de uma pausa. — Acho que você tem razão.
— É isso o que Patrick e Nai estão discutindo no apartamento ao lado —
falou Nicole. — Eles pediram que a rapaziada saísse para poderem conversar a
sós.
— Você acha que Nai vai agüentar mais esse problema, logo depois do...
incidente? — perguntou Eponine.
— Ela não tem escolha — disse Max. — Eles só têm mais pouco mais de
duas horas para tomar uma decisão.
— Nai parecia muito melhor há uns vinte minutos — falou Nicole. — O
sedativo que tomou era leve mas logo fez efeito... Patrick e Kepler foram muito
carinhosos com ela... Acho que Nai assustou-se mais com a sua própria reação.
— Ela atacou mesmo a Águia? — perguntou Eponine.
— Não. Um dos cabeças de bloco segurou-a logo que ela gritou —
respondeu Nicole. — Mas ela estava descontrolada... poderia ter feito alguma
coisa.
— Merda — disse Max. — Se você tivesse dito, quando morávamos na
Cidade de Esmeralda, que Nai poderia ficar violenta, eu lhe responderia...
— Quem nunca teve um filho — interrompeu Nicole — não pode
compreender os fortes sentimentos de uma mãe quando seus filhos estão em
jogo. Nai está zangada há meses... Eu não posso apoiar a reação dela, mas posso
compreender...
Nicole parou quando bateram na porta, e Patrick entrou. Seu rosto de-
notava ansiedade.
— Mãe — disse ele —, preciso falar com você.
— Eponine e eu vamos para o corredor — falou Max. — Se vocês acharem
melhor...
— Obrigado, Max... Eu prefiro mesmo que vocês saiam — falou Patrick
com dificuldade. Nicole nunca o vira tão preocupado.
— Não sei o que fazer — disse ele, assim que os dois ficaram a sós. —
Tudo está acontecendo muito depressa... Acho que Nai não está sendo racional,
mas não consigo... — Sua voz tremeu. — Mãe, ela quer que todos nós solicitemos
uma reconsideração. Todos. Você, eu, Kepler, Maria, Max... Todos nós... Senão
ela acha que Galileu vai se sentir abandonado.
Nicole olhou para o filho e viu que ele estava prestes a chorar. Ele ainda
não viveu o suficiente para lidar com uma crise dessas, pensou ela rapidamente.
Só viveu acordado pouco mais de dez anos.
— O que Nai está fazendo agora? — perguntou Nicole de forma carinhosa.
— Está meditando... — respondeu Patrick. — Ela disse que isso lhe dá
calma e cura a sua alma... E lhe dá força...
— E ela quer que você convença a nós todos?
— Acho que sim... Mas, mãe, Nai nem considerou que talvez alguém não
concorde com essa proposta. Ela acredita que o que todos nós devemos fazer é
absolutamente claro.
O sofrimento de Patrick era evidente. Nicole teve vontade de chegar perto
dele, de tocá-lo e expulsar sua agonia.
— O que você acha que devemos fazer? — perguntou Nicole depois de
algum tempo.
— Não sei — respondeu Patrick, andando pelo quarto. — Como todos os
outros, assim que a lista saiu eu notei que todos os membros ativos do Conselho
foram transferidos para o transportador, e também a maioria dos humanos que
tinham sido transferidos dos apartamentos comuns. As pessoas de que gostamos
e que respeitamos, assim como todas as octoaranhas, estão indo para Nodo...
Mas eu compreendo Nai. Ela não consegue imaginar Galileu isolado, desligado
para sempre do único sistema de apoio que ele conheceu na vida...
O que você faria, falou uma voz dentro de Nicole, se fosse Nai? Você não
entrou em pânico hoje de manhã, quando achou que talvez pudesse ser separada
de Benjy?
— ... Você pode ir lá, mãe, assim que ela acabar de meditar? — pediu
Patrick. — Ela ouvirá você. Nai sempre disse que respeita sua sabedoria.
— E você quer que eu lhe diga alguma coisa em especial? — perguntou
Nicole.
— Diga que... — falou Patrick, torcendo as mãos — diga que não cabe a
ela decidir o que é melhor para todos do nosso grupo. Ela devia concentrar-se na
sua própria decisão.
— Este é um bom conselho — falou Nicole. — Agora me diga, Patrick —
perguntou ela um instante depois —, você já decidiu o que vai fazer se Nai
resolver optar pelo transportador e nenhum de nós a seguir?
— Já, mãe — falou Patrick, tranqüilo. — Eu irei com Nai e Galileu.

Nicole estacionou sua cadeira de rodas em um canto em frente à janela de


observação. Ela estava sozinha, a seu próprio pedido. A tarde tinha sido tão
carregada de emoções que estava absolutamente exausta. No início, pensara que
seu encontro com Nai tinha sido bom. Nai ouvira com atenção o seu conselho,
sem muitos comentários. Por essa razão, Nicole ficou abismada quando, uma
hora depois, fervendo de raiva, Nai foi tomar satisfação com Max, Eponine, Ellie e
com ela.
— Patrick me disse que nenhum de vocês irá comigo — falou Nai. — Foi
essa a recompensa que tive pela minha permanente dedicação todos esses anos...
Tirei meus filhos da casa deles por lealdade a vocês, meus amigos... Privei Galileu
e Kepler de uma infância normal por causa do meu respeito e da minha
admiração por você, Nicole, meu modelo de mulher... E agora, quando peço pela
primeira vez um favor...
— Você está sendo injusta, Nai — disse Ellie com carinho. — Nós todos te
amamos e estamos muito aflitos com tudo isso... Nós gostaríamos de ir com você
e Galileu se achássemos...
— Ellie, Ellie — disse Nai, caindo de joelhos ao lado da amiga e desatando
a chorar. — Você se esqueceu de todas as horas que passei com Benjy em
Avalon?... Tenho de admitir que foi por minha livre e espontânea vontade, mas
será que eu teria me dedicado tanto a Benjy se ele não fosse seu irmão e você não
fosse minha melhor amiga?... Eu te amo, Ellie... Preciso do seu apoio... Por favor,
por favor, venham conosco. Você e Nikki, pelo menos...
Ellie também chorava. Até esse encontro terminar, ninguém ficou com os
olhos secos no quarto. No final, Nai desculpou-se com todos.
Nicole respirou fundo e olhou pela janela. Sabia que precisava de uma
pausa naquele tumulto emocional. Duas vezes durante a tarde sentira dor no
peito. Nem mesmo todas aquelas sondas mágicas, pensou, poderão me proteger se
eu não me cuidar.
O imenso transportador estava estacionado a apenas umas centenas de
metros dali. Era uma espantosa construção de engenharia, muito maior do que
parecia quando estava perto de Nodo. Como a nave espacial estava estacionada
de lado, só uma parte dela podia ser vista da janela. Seu topo era constituído de
uma superfície plana longa e chata, interrompida apenas por pequenos
equipamentos espalhados e cúpulas transparentes, ou bolhas, como eram
chamadas originariamente, localizadas de forma ordenada por todo o
comprimento e a largura da superfície. Algumas cúpulas eram bastante altas.
Uma, diretamente em frente à janela, elevava-se a uns duzentos metros. Outras
eram muito pequenas. Partes de onze bolhas transparentes eram visíveis da
janela. Quando o transportador se aproximou, no início da tarde, e a nave inteira
pôde ser vista, foram contadas ao todo setenta e oito cúpulas.
A parte inferior do transportador era de um cinza-metálico. Estendia-se
por cerca de um quilômetro abaixo da superfície plana, com ligeiras elevações
laterais e o fundo arredondado. A distância, a parte de baixo parecia
insignificante comparada à vasta superfície plana, que tinha pelo menos quarenta
quilômetros de comprimento e quinze de largura. Porém, de perto, ficava claro
que um enorme volume estava contido dentro daquela estrutura opaca.
Enquanto Nicole olhava fascinada, uma pequena reentrância do lado do
exterior cinza, logo abaixo da superfície, expandiu-se e transformou-se num tubo
redondo movendo-se para fora do transportador. O tubo chegou bem perto da
Estrela do Mar e então, depois de umas pequenas correções do vernier, fixou-se
na câmara de compressão principal.
Nicole sorriu. Mais um dia inacreditável, pensou, da minha espantosa
existência. Mudou de posição na cadeira e sentiu um pouco de dor no quadril. Eu
gostaria de poder fazer alguma coisa por Nai, disse para si mesma. Mas fazer com
que todos se sacrifiquem por Galileu não é a solução certa.
Nicole sentiu alguém tocando no seu braço. Era o dr. Azul.
— Como está se sentindo? — perguntou em cores a octoaranha.
— Agora estou melhor — respondeu ela. — Mas tive momentos difíceis
hoje à tarde.
Dr. Azul examinou Nicole com o aparelho de monitoração.
— Tive pelo menos duas grandes irregularidades — disse Nicole ao mé-
dico. — E lembro-me bem delas.
O médico octoaranha estudou as cores que apareceram no pequeno
monitor.
— Por que não me chamou? — perguntou.
— Pensei nisso, mas estava acontecendo tanta coisa... E achei que você
devia estar ocupado com seus próprios...
Dr. Azul passou para Nicole um pequeno frasco com um líquido azul
claro.
— Beba isto. Vai limitar sua resposta cardíaca ao estresse emocional nas
próximas doze horas.
— E nós vamos continuar juntos, o senhor e eu, depois que o transpor-
tador partir?... Não olhei a sua parte da lista com muito cuidado.
— Vamos sim — respondeu a octoaranha. — Oitenta e cinco por cento dos
da nossa espécie serão transferidos para Nodo. Mais de metade das octoaranhas
que vão para o transportador é alternativa.
— Então, meu amigo — disse Nicole depois de beber o líquido —, o que
vocês acham que significa essa transferência?
— Nós achamos que toda essa experiência chegou a uma encruzilhada
significativa, e que os dois grupos se envolverão em atividades radicalmente
diferentes.
Nicole riu.
— Isso não é muito específico — disse.
— Não, não é — respondeu a octoaranha.

Havia oitenta e dois humanos e nove octoaranhas na lanchonete quando a


Águia começou a reunião de reconsideração, cinco minutos depois de o último
residente da Estrela do Mar designado para o transportador ter partido através da
câmara de compressão. Só aqueles que tinham solicitado oficialmente uma
reconsideração tiveram permissão de participar da reunião. Muitos outros
membros de todas as espécies ainda estavam no terraço de observação e nas
áreas comuns, conversando sobre a partida e esperando para saber o resultado
da reunião com a Águia.
Nicole tinha voltado para seu posto na janela de observação. Estava na
cadeira de rodas, olhando para o transportador e refletindo sobre as cenas que
presenciara na última hora. Quase todos os humanos tinham partido contentes,
felizes por não terem mais de conviver com os alienígenas. Houve algumas
despedidas tristes na porta da câmara de compressão, mas, surpreendentemente,
foram poucas.
Galileu teve permissão de passar dez minutos com a família e os amigos
na área comum. Patrick e Nai garantiram ao rapaz, que demonstrava muito
pouca emoção, que eles e seu irmão Kepler, que ainda estava arrumando suas
coisas, iriam encontrar-se com ele no transportador antes do final da noite.
Galileu foi o último humano a sair da Estrela do Mar, seguido de um
pequeno contingente de aves e myrmigatos. O material rede-neural e os restantes
melões-manás tinham sido acondicionados em grandes engradados e carregados
por um grupo de robôs-blocos. Provavelmente nunca os verei de novo, pensou
Nicole quando a última ave virou-se e deu um guincho de adeus aos
espectadores.
— Todos vocês — começou a Águia na reunião da lanchonete — solici-
taram que sua designação seja reconsiderada, para que possam trocar seu futuro
lar de Nodo pelo transportador... Agora explicarei mais duas diferenças entre os
tipos de vida no transportador e em Nodo. Depois de pesarem essas informações,
se vocês ainda desejarem mudar sua designação, serão atendidos... Como eu já
disse hoje à tarde, não haverá intercâmbio entre espécies diferentes no
transportador. Não só cada espécie ficará isolada no seu próprio habitat como
não haverá nenhum tipo de interferência por parte de outra inteligência, nem
mesmo a que eu represento, nos problemas de cada espécie. Nem agora, nem
nunca. Cada espécie do transportador ficará por conta própria. Em Nodo, ao
contrário, onde haverá intercâmbio das espécies, a vida será supervisionada. Não
tanto quanto aqui na Estrela do Mar, mas será. Acreditamos que supervisão e
monitoração são essenciais quando espécies diferentes vivem juntas... A segunda
diferença talvez seja a mais importante. Não haverá reprodução no transportador.
Todos os indivíduos que habitarem o transportador, de qualquer espécie, ficarão
estéreis para sempre. Todos os elementos necessários a uma vida longa e feliz
serão fornecidos aos que forem viver no transportador, mas ninguém poderá
reproduzir. Em contraste, não haverá restrições à reprodução em Nodo... Por
favor, deixem-me terminar — disse a Águia, quando vários membros da platéia
tentaram fazer perguntas. — Vocês têm mais duas horas para decidir... Se ainda
quiserem transferir-se para o transportador, simplesmente tragam suas bagagens
e peçam que o Grande Bloco abra a câmara de compressão...

Nicole não se surpreendeu quando Kepler não quis mais embarcar no


transportador. O rapaz tivera muita dificuldade em tomar sua primeira decisão, e
só pedira reconsideração do seu caso em lealdade à sua mãe. Desde aquela hora,
ele tinha passado a tarde com Maria, a quem obviamente adorava.
Kepler pediu a todos da grande família que o ajudassem, caso houvesse
uma discussão com sua mãe, mas não houve. Nai concordou que Kepler não
deveria ser privado do prazer de ser pai, e chegou a sugerir, magnanimamente,
que Patrick deveria reavaliar sua própria decisão. Mas Patrick disse que ela não
poderia mais ter filhos e que ele já era pai, de certa forma, de Galileu e Kepler.
Nicole, Patrick, Nai e Kepler ficaram sozinhos em um dos apartamentos
para a despedida final. O dia tinha sido de lágrimas e grandes emoções. Os
quatro estavam exaustos. Duas mães disseram adeus aos seus filhos para
sempre. Houve uma comovente simetria nos comentários finais. Nai pediu que
Nicole guiasse Kepler com sua sabedoria, e Nicole pediu que Nai continuasse a
dar seu amor desprendido e incondicional a Patrick.
Patrick levantou as duas pesadas malas e jogou-as por cima dos ombros.
Quando Nai e ele foram para a porta, Kepler ficou ao lado da cadeira de rodas de
Nicole, segurando sua mão encarquilhada. Só depois que a porta se fechou é que
os olhos de Nicole encheram-se de lágrimas. Adeus, Patrick, pensou com tristeza.
Adeus Geneviève, Simone e Katie. Adeus, Richard.

7
Os sonhos vieram em torrentes, muitas vezes sem interrupção. Henry ria
por ela ser preta, depois um arrogante colega da faculdade de medicina impedia
que ela cometesse um erro numa rotineira operação de amígdalas. Mais tarde, Ni-
cole andava em uma praia com nuvens escuras por cima da cabeça. Uma figura
silenciosa, coberta com uma capa, fazia-lhe um sinal a distância. É a Morte, disse
Nicole para si própria no sonho. Mas era uma brincadeira cruel. Quando chegou
perto da figura e tocou sua mão estendida, Max Puckett tirou a capa e riu.
Nicole arrastava-se de joelhos num escuro tubo subterrâneo de cimento.
Seus joelhos começaram a sangrar. Estou aqui, dizia Katie. Onde você está?, per-
guntava Nicole frustrada. Estou a-trás de vo-cê, dizia Benjy. O tubo começou a
encher-se de água. Não posso ajudar meus filhos.
Nicole estava nadando com dificuldade. Havia uma forte corrente no tubo,
que a carregou para fora, tornou-se um riacho e depois uma floresta. As roupas
de Nicole prenderam-se em um arbusto debruçado sobre o riacho. Ela ficou de
pé, desvencilhou-se e começou a andar por um caminho.
Era noite. Nicole podia ouvir uns passarinhos e ver a lua pelas frestas
ocasionais das árvores altas. O caminho era sinuoso. Ela chegou numa en-
cruzilhada. Que direção devo tomar?, perguntou a si mesma no sonho. Venha co-
migo, dizia Geneviève, saindo da floresta e pegando-a pela mão.
O que você está fazendo aqui?, perguntava Nicole. Geneviève ria. Eu devia
fazer a mesma pergunta a você.
A jovem Katie vinha pelo caminho na direção delas. Alô, mamãe, disse ela,
pegando a mão de Nicole. Você se importa se eu andar do seu lado?, perguntou
Katie. É claro que não, disse Nicole.
A floresta ficava mais espessa. Nicole ouvia passos por trás dela e virava-
se de costas, enquanto continuava a andar. Patrick e Simone sorriam. Nós
estamos quase lá, dizia Simone. Aonde vocês vão?, perguntava Nicole. A senhora
deve saber, sra. Wakefield, respondia Maria. Foi a senhora quem nos disse para
vir. A menina agora caminhava ao lado de Patrick e de Simone.
Nicole e os cinco jovens entraram numa clareira, onde viram uma fogueira
ardendo. Omeh se aproximava pelo lado oposto da fogueira e os saudava. Então,
eles formaram um novo círculo em volta da fogueira, e o xamã jogou a cabeça
para trás e começou a cantar em senoufo. Enquanto Nicole observava a cena, viu
o rosto de Omeh despelar-se, deixando à mostra seu crânio. Mas o canto
continuava. Não, não, disse Nicole. Não, não.
— Ma-mãe — falou Benjy. — Acorde, ma-mãe... Você está tendo um
pesadelo.
Nicole esfregou os olhos e viu luz do outro lado do quarto.
— Que horas são, Benjy?
— É tarde, ma-mãe — respondeu ele com um sorriso. — Kepler já foi
tomar café com os outros... Nós achamos melhor deixar você dormir.
— Obrigada, Benjy — disse Nicole. Mexeu-se um pouco na esteira e sentiu
seu quadril doer. Olhou em volta do quarto e lembrou-se de que Patrick e Nai
tinham ido embora. Para sempre, pensou Nicole, tentando não sofrer mais.
— Você vai querer tomar uma du-cha agora? — perguntou Benjy. — Eu
posso lhe ajudar a tirar a roupa e levar você até o chuveiro.
Nicole olhou para seu filho careca. Eu estava errada sobre você. Você se
ajeitaria muito bem sem mim.
— Obrigada, Benjy. É uma boa idéia — respondeu Nicole.
— Vou tentar fazer tudo com cuidado — disse ele, desabotoando a
camisola da mãe. — Mas, se eu machucá-la, me avise.
Quando Nicole estava completamente nua, Benjy pegou-a nos braços, deu
dois passos com ela na direção do chuveiro e parou.
— O que houve, Benjy? — perguntou Nicole. Benjy deu um riso
encabulado.
— Eu não planejei as coisas muito bem, ma-mãe — respondeu Benjy. —
Devia ter temperado a água antes.
Benjy virou-se, colocou Nicole na esteira e foi até o chuveiro abrir a
torneira.
— Você não gosta de banho quente demais, não é? — perguntou.
— Isso mesmo — respondeu Nicole. Benjy voltou e pegou de novo a mãe.
— Eu co-lo-quei duas toa-lhas no chão para que ele não fique muito duro
nem muito frio.
— Obrigada, filho — disse Nicole.
Benjy foi buscar o sabonete e o xampu, e ficou conversando enquanto
Nicole jogava água no corpo, sentada nas toalhas no chão do boxe. Quando ela
terminou o banho, Benjy ajudou-a a secar-se e a vestir-se, e depois carregou-a
para a cadeira de rodas.
— Abaixe-se, por favor — falou Nicole, já sentada na cadeira. Deu um
beijo no filho e apertou-lhe a mão. — Obrigada por tudo, Benjy — disse, incapaz
de conter as lágrimas que enchiam seus olhos. — Você tem me dado uma ajuda
maravilhosa.
Benjy ficou ao lado dela, radiante. — Eu a amo, ma-mãe. Fico feliz de
poder ajudá-la.
— Eu também o amo, filho — replicou Nicole, apertando a mão dele de
novo. — Agora você vai tomar café comigo?
— Eu estava pensando em ir — disse ele, ainda sorrindo.

Antes de Nicole terminar o café, a Águia apareceu na lanchonete.


— O dr. Azul e eu iremos até o seu quarto, para fazer-lhe um exame
minucioso — disse o alienígena.
O sofisticado equipamento médico já estava no apartamento quando
Nicole e Benjy voltaram. O dr. Azul injetou mais umas microssondas no peito de
Nicole e depois outras na região dos rins. A Águia e o dr. Azul ficaram
conversando na língua nativa da octoaranha durante a meia hora do exame.
Benjy ajudava a mãe quando ela precisava se mexer ou ficar de pé. Estava
completamente fascinado com a capacidade da Águia de falar em cores.
— Como você aprendeu isso? — perguntou Benjy a certa altura do exame.
— Tecnicamente falando — respondeu a Águia —, não aprendi nada...
Quem me projetou acrescentou à minha estrutura um par de subsistemas
especializados; um para eu poder interpretar as cores das octoaranhas e outro
para eu criar as cores em volta da minha cabeça.
— Você não te-ve de ir para a es-co-la? — insistiu Benjy.
— Não — respondeu a Águia, sem dar detalhes.
— Os seus pro-je-tis-tas poderiam fazer isso em mim? — perguntou Benjy
um pouco depois, quando a Águia e o dr. Azul conversavam de novo sobre o
problema de Nicole.
A Águia virou-se e olhou para Benjy.
— Eu sou mui-to lento para a-pren-der — disse Benjy. — Seria ma-ra-vi-
lho-so se alguém pusesse tu-do dentro do meu cé-re-bro.
— Nós ainda não sabemos como fazer isso — disse a Águia. Quando o
exame terminou, a Águia pediu para Benjy juntar todos os pertences de Nicole.
— Para onde nós vamos? — perguntou ela.
— Vamos dar uma volta no foguete — falou a Águia. — Quero lhe expor
alguns detalhes do seu problema físico e levá-la para onde haja uma emergência
em caso de necessidade.
— Achei que o líquido azul e todas essas sondas dentro de mim
bastariam...
— A gente conversa sobre isso mais tarde — interrompeu a Águia,
pegando a mala de Nicole. — Obrigado pela ajuda, Benjy — disse o alienígena.

— Quero ter certeza de que entendi bem essa conversa — disse Nicole pelo
microfone do seu capacete quando o foguete se aproximou da área entre a Estrela
do Mar e Nodo. — Meu coração vai durar no máximo dez dias, apesar de toda a
sua medicina mágica; meus rins estão em estágio terminal, e meu fígado dá sinal
de estar bastante deteriorado. O resumo está certo?
— Está, sim — respondeu a Águia. Nicole forçou um sorriso.
— Você tem alguma notícia boa para me dar?
— Sua cabeça está funcionando às mil maravilhas, e você ficará curada da
luxação no quadril, se não morrer de outros problemas.
— E você está sugerindo que eu me interne hoje num hospital em Nodo,
para substituir meu coração, rins e fígado por máquinas avançadas que poderão
desempenhar essas mesmas funções?
— Talvez outros órgãos devam ser substituídos também — disse a Águia
—, já que iremos fazer uma operação grande. Seu pâncreas causa problemas de
vez em quando, e todo o seu sistema sexual está acabado... Talvez seja
aconselhável uma histerectomia total.
Nicole sacudiu a cabeça.
— E quando tudo isso se tornar inútil? Por mais que vocês façam agora,
dentro de algum tempo outros órgãos vão ter problemas. Qual será o primeiro?
Meus pulmões? Ou meus olhos?... Vocês poderiam transplantar meu cérebro se
eu não pudesse mais pensar?
— Poderíamos — respondeu a Águia. Nicole ficou quieta por um instante.
— Talvez o que eu vou dizer não faça sentido para você, pois não é exata-
mente lógico... Mas não estou gostando da idéia de me tornar um ser híbrido.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou a Águia.
— Em que ponto deixo de ser Nicole des Jardins Wakefield? Se meu
coração, meu cérebro, meus olhos e ouvidos forem substituídos por máquinas,
continuarei a ser Nicole? Ou serei outra pessoa ou outra coisa?
— Essa questão é irrelevante — respondeu a Águia. — Você é uma mé-
dica, Nicole. Considere o caso de um esquizofrênico que toma drogas re-
gularmente para alterar as funções do seu cérebro. Essa pessoa continua a ser
ela própria? É a mesma questão filosófica, só que em grau diferente.
— Entendi seu ponto de vista — disse Nicole depois de outro breve silên-
cio. — Mas isso não muda meus sentimentos... Sinto muito negar essa chance
que você me fez crer que tenho... Pelo menos hoje eu não aceito isso.
A Águia ficou olhando para Nicole, depois criou um outro conjunto de
parâmetros no sistema de controle do foguete, que mudou de direção.
— Então vamos voltar para a Estrela do Mar? — perguntou Nicole.
— Não imediatamente. Quero lhe mostrar outra coisa primeiro — disse o
alienígena, tirando da bolsa amarrada na cintura um pequeno tubo com um
líquido azul e um aparelhinho desconhecido. — Por favor, me dê seu braço. Não
quero que você morra antes do fim da tarde.

Quando eles se aproximaram do Módulo de Habitação de Nodo, Nicole


reclamou com a Águia da forma quase imediata com que os residentes da Estrela
do Mar foram divididos em dois grupos.
— Como sempre — disse Nicole —, você não pode ser acusado de mentir,
só de ocultar informações.
— Às vezes — falou a Águia —, não temos uma maneira satisfatória de
completar uma tarefa. Nesse caso, preferimos agir da forma menos insatisfatória.
O que você esperava que fizéssemos? Que contássemos aos residentes desde o
começo que não poderíamos cuidar de todos para sempre, de geração em
geração? Isso seria o caos... Além do mais, acho que vocês não nos dão muito
crédito. Nós salvamos milhares de seres de Rama, a maioria dos quais
provavelmente morreria em um conflito entre espécies se não fosse a nossa
intervenção... Lembre-se de que todos, inclusive os que foram designados para o
transportador, poderão completar sua existência.
Nicole ficou em silêncio, tentando imaginar como seria a vida no trans-
portador sem possibilidade de reprodução. Criou na cabeça a imagem de um
futuro distante, onde só restavam alguns indivíduos.
— Eu não gostaria de ser o último humano vivo no transportador — disse.
— Houve uma espécie nesta parte da galáxia, há cerca de três milhões de
anos — disse a Águia —, que ficou viajando no espaço durante quase um milhão
de anos. Eram engenheiros brilhantes, e construíram um dos prédios mais
incríveis jamais vistos. Sua influência espalhou-se rapidamente, e essa espécie
passou a dominar uma área maior do que vinte sistemas solares. Eram cultos,
compassivos e sábios. Mas eles cometeram um erro fatal...
— Qual foi? — perguntou Nicole imediatamente.
— O equivalente deles para o que vocês chamam de genoma continha
muito mais informações do que o seu, graças a quatro bilhões de anos de
evolução natural, e era extremamente complicado. Suas experiências iniciais com
engenharia genética, em outras espécies e na sua própria, tiveram um sucesso
sem igual. Eles achavam que compreendiam o que estavam fazendo. Porém, sem
que soubessem, os robustos genes que eram transferidos de geração a geração
foram se deteriorando de forma lenta mas progressiva... Quando eles finalmente
compreenderam o que haviam feito consigo próprios, era tarde demais. Eles não
tinham preservado os espécimes primitivos antes de começarem a modificar seus
próprios genes. Não puderam reverter a situação. Não havia nada que pudessem
fazer.
— Imagine — disse Nicole —, não só ser o último membro do seu grupo
em uma nave espacial isolada como o transportador como ser também um dos
últimos sobreviventes de uma espécie rica em história, arte e conhecimentos...
Nossa enciclopédia apresenta muitas histórias assim, cada uma delas com pelo
menos uma lição.
O foguete passou por uma abertura na lateral do módulo esférico e esta-
cionou suavemente ao lado de uma parede. Pórticos automáticos dos dois lados
foram acionados para que o veículo não deslizasse. Uma rampa fazia a ligação
entre a porta de saída dos passageiros até uma calçada, que por sua vez conduzia
ao centro do complexo do transporte.
Nicole riu.
— Eu estava tão concentrada na nossa conversa que nem olhei para este
módulo do lado de fora.
— Você não teria visto muita novidade — falou a Águia.
Depois, o alienígena voltou-se para Nicole e fez uma coisa pouco corri-
queira. Pegou as mãos enluvadas dela e disse:
— Em menos de uma hora você vai sentir uma coisa que vai espantá-la e
também suscitar suas emoções. De início, havíamos pensado em fazer esta
excursão de surpresa. Mas como você está muito enfraquecida, seu organismo
poderia reagir de forma negativa às fortes emoções... Então, decidimos contar
antes o que iremos fazer.
Nicole sentiu sua batida cardíaca se acelerar. De que ele está falando? O
que poderia ser tão diferente?
— ...Nós vamos entrar num carro menor, que irá viajar vários quilômetros
neste módulo. No final dessa curta viagem, você se encontrará com sua filha
Simone e com Michael O'Toole.
— O quê? — Nicole gritou, soltando as mãos da Águia e colocando-as do
lado do seu capacete. — Será que ouvi direito? Você disse que eu vou ver Simone
e Michael O'Toole?
— Disse — respondeu a Águia. — Nicole, tente relaxar...
— Meu Deus! — exclamou ela, ignorando o comentário da Águia. — Não
posso acreditar. Não posso acreditar... Espero que não seja algum tipo de
brincadeira de mau-gosto...
— Eu garanto que não é...
— Mas como Michael ainda pode estar vivo? — perguntou Nicole. — Ele
deve ter pelo menos cento e vinte anos de idade...
— Nós o ajudamos com a nossa medicina mágica, como você diz.
— Oh, Simone, Simone! — gritou Nicole. — Será possível? Será possível
mesmo?
Lágrimas escorreram-lhe pelo rosto. Apesar da dor no quadril e do ca-
pacete espacial desajeitado, Nicole quase pulou do banco para dar um beijo na
Águia.
— Obrigada, obrigada. Você não imagina o quanto isso representa para
mim.

A Águia firmou a cadeira de rodas de Nicole na escada rolante quando eles


desceram para o centro do complexo principal de transporte. Ela deu uma rápida
olhada em volta. A estação era idêntica à de Nodo perto de Sírius. Tinha uns vinte
metros de altura e era disposta em círculo. Uma meia dúzia de calçadas rolantes
rodeava a parte central, cada uma delas dando num diferente túnel em arco que
levava para fora do complexo. Acima dos túneis, à direita, viam-se duas
estruturas de vários níveis.
— Os trens intermodulares partem dali? — perguntou Nicole, lembrando-
se de uma viagem com Katie e Simone quando elas eram crianças.
A Águia confirmou. Depois, empurrou a cadeira de rodas para uma das
calçadas rolantes e eles saíram do centro da estação. Viajaram centenas de
metros por um túnel até que a calçada rolante parou.
— Nosso carro deve estar logo ali à direita, no primeiro corredor — disse a
Águia.
O carro pequeno, que se abria no topo, tinha dois bancos. A Águia levou
Nicole para o banco de passageiro, dobrou a cadeira de rodas até ela ficar do
tamanho de uma pasta e guardou-a num escaninho do veículo. Logo depois, o
carro começou a andar por um labirinto de passagens sem janelas. Nicole estava
quieta, tentando convencer-se de que ia ver a filha que havia deixado em outro
sistema estelar muitos e muitos anos atrás.
A viagem pelo Módulo de Habitação parecia interminável. Em certo ponto
eles pararam, e a Águia disse que Nicole podia tirar seu capacete.
— Estamos chegando? — perguntou ela.
— Ainda não, mas já entramos na zona atmosférica deles.
Por duas vezes encontraram alienígenas fascinantes em veículos que pas-
savam na direção oposta, mas Nicole estava agitada demais e só conseguia
prestar atenção ao que ia dentro de sua cabeça. Ela mal ouvia o que a Águia lhe
dizia. Calma, disse uma de suas vozes interiores. Não seja absurda, disse outra
voz. Eu vou ver uma filha que não vejo há quarenta anos. Não há como ficar calma.
— ... A seu próprio modo — dizia a Águia —, a vida deles tem sido tão
extraordinária quanto a sua. Mas diferente, é claro, completamente diferente.
Quando levamos Patrick para vê-los hoje de manhã...
— O que você disse? — perguntou Nicole abruptamente. — Você disse que
Patrick os viu hoje de manhã? Você levou Patrick para ver o pai dele?
— Levei — disse a Águia. — Nós sempre tivemos a intenção de
proporcionar esse encontro, desde que tudo saísse conforme os planos... Na
verdade, nem você nem Patrick teriam visto Simone, Michael e os filhos deles...
— Filhos! — exclamou Nicole. — Então eu tenho mais netos!
— ...antes de chegarem em Nodo, mas quando Patrick solicitou
reconsideração do seu caso... Bem, seria uma maldade deixar que ele partisse
para sempre sem conhecer seu pai natural...
Nicole não pôde mais se controlar e deu um beijo no rosto emplumado da
Águia.
— E Max disse que você nada mais era do que uma máquina insensível.
Como ele estava errado!... Obrigada... Eu agradeço em nome de Patrick...
Nicole tremia de excitação. Um instante depois, ela não conseguiu mais
respirar, e a Águia parou o carro rapidamente.

— Onde estou? — perguntou Nicole, saindo de uma bruma profunda.


— Estamos estacionados dentro da área fechada onde Michael, Simone e a
família deles moram — respondeu a Águia. — Você está dormindo aqui há quatro
horas.
— Eu tive um ataque cardíaco? — perguntou Nicole.
— Não exatamente... Só um forte mal-estar. Pensei em levá-la imediata-
mente para o hospital, mas achei melhor esperar que você acordasse. Além do
mais, eu tenho quase todos os medicamentos aqui...
A Águia olhou-a com seus olhos azuis intensos.
— O que você quer fazer, Nicole? Visitar Simone e Michael, como pla-
nejamos, ou ir para o hospital? A escolha é sua, mas compreenda que...
— Eu sei — interrompeu Nicole com um suspiro, olhando para a Águia. —
Preciso ter cuidado para não me excitar demais... Eu quero ver Simone, mesmo
que seja a última coisa que faça na vida... Você pode me dar alguma coisa para
eu me acalmar, mas que não me faça dormir?
— Um tranqüilizante fraco só vai ajudar se você tentar conscientemente
refrear sua excitação.
— Tudo bem. Vou fazer o possível — disse ela.
A Águia virou o carro em uma rua pavimentada, com árvores altas,
enfileiradas. Quando estavam passando, Nicole lembrou-se de um outono na
Nova Inglaterra, que ela passara com seu pai, quando era adolescente. As folhas
das árvores estavam vermelhas, douradas e marrons.
— É tão bonito! — disse Nicole.
O carro fez uma curva e passou por uma cerca branca que rodeava uma
área gramada. Dentro da cerca havia quatro cavalos, e dois adolescentes
humanos andavam entre eles.
— As crianças são verdadeiras — disse a Águia. — Os cavalos são simu-
lações.
No topo de uma colina suave, Nicole viu uma grande casa branca de dois
andares, com um telhado preto inclinado. A Águia parou o carro na entrada
circular. A porta da frente foi aberta e apareceu uma mulher escura, alta e
bonita, de cabelos grisalhos.
— Mamãe! — gritou Simone correndo para o carro.
Assim que Nicole abriu a porta, ela atirou-se nos braços da mãe. As duas
abraçaram-se e beijaram-se, chorando copiosamente, sem conseguirem dar uma
palavra.

8
— A visita de Patrick foi boa e ruim ao mesmo tempo — disse Simone,
pondo a xícara de café na mesa. — Ele ficou aqui mais de duas horas, que
pareceram poucos minutos.
Os três estavam sentados em volta de uma mesa que dava para o jardim
giratório que cercava a casa. Nicole olhava a cena bucólica vista da janela.
— A maior parte é ilusória — disse Michael. — Mas muito bem feita... Se
você não soubesse, pensaria que estava em Massachusetts ou no sul de Vermont.
— Este jantar está parecendo um sonho — comentou Nicole. — Ainda não
acreditei que tudo isso está acontecendo na realidade.
— Sentimos a mesma coisa na noite passada — falou Simone — quando
nos disseram que iríamos ver Patrick de manhã... Nem Michael nem eu
conseguimos dormir. — Simone riu. — A certa altura da noite, nós nos
convencemos de que íamos encontrar um falso Patrick, e ficamos pensando nas
perguntas que faríamos e que só o verdadeiro Patrick saberia responder.
— A capacidade tecnológica deles é assombrosa — disse Michael. — Se
quisessem criar um robô Patrick, seria difícil dizermos se era verdadeiro ou não.
— Mas não fizeram isso. Logo depois que Patrick entrou, vi que era ele
mesmo.
— O que você achou dele? — perguntou Nicole. — Com a confusão do
último dia, mal tive tempo de conversar com ele.
— Resignado — respondeu Simone —, mas certo de que tomou a decisão
correta. Ele disse que provavelmente levará semanas para digerir todas as
emoções que sentiu nessas últimas vinte e quatro horas.
— Acho que todos nós pensamos assim — observou Nicole. Fez-se um
breve silêncio.
— Você está cansada, mamãe? — perguntou Simone. — Patrick falou dos
seus problemas de saúde, e quando nos avisaram hoje de manhã que você estava
atrasada...
— É, estou um pouco cansada — interrompeu Nicole. — Mas não con-
seguiria dormir... Pelo menos não nesse instante... — Afastou sua cadeira de
rodas da mesa e baixou o assento. — Mas gostaria de ir ao toalete.
— É claro — disse Simone, dando um pulo da cadeira. — Eu vou com
você.
Simone acompanhou a mãe por um longo corredor com chão simulando
madeira.
— Então você tem seis filhos vivendo aqui, três dos quais de gravidez
natural?
— Isso mesmo — respondeu Simone. — Michael e eu tivemos dois me-
ninos e duas meninas pelo método natural, como você diz... O primeiro menino,
Darren, morreu aos sete anos... É uma longa história. Se houver tempo, conto
para você amanhã... As outras crianças foram desenvolvidas em embriões nos
laboratórios deles...
As duas chegaram na porta do toalete.
— Você sabe quantas crianças a Águia e seus colegas desenvolveram? —
perguntou Nicole.
— Não — respondeu Simone. — Mas eles disseram que tiraram mais de
mil óvulos saudáveis dos meus ovários.
Na volta para a sala de jantar, Simone explicou que todas as crianças que
haviam nascido pelo método natural tinham vivido sempre com Michael e ela.
Seus cônjuges, que eram também produto do esperma de Michael e dos óvulos
dela, haviam sido selecionados depois de uma técnica de combinação genética
desenvolvida pelos alienígenas.
— Então foram casamentos arranjados? — perguntou Nicole.
— Não exatamente — respondeu Simone rindo. — Meus filhos naturais
foram apresentados a vários candidatos possíveis, depois que todos eles
passaram pelos testes genéticos.
— E você não teve problemas com seus netos?
— Nada que fosse estatisticamente significativo, para usar a expressão de
Michael — respondeu Simone.
Quando elas chegaram à sala de jantar, a mesa estava vazia e Michael
disse que o bule de café e as xícaras estavam no escritório. Nicole acionou a
cadeira de rodas e seguiu-os até um escritório amplo, com estantes de madeira
escura e uma lareira acesa.
— Esse fogo é autêntico? — perguntou Nicole.
— É — disse Michael, inclinando o corpo para a frente. — Você perguntou
sobre nossos filhos. Queremos que você os conheça, mas achamos que seria
cansativo ver tanta gente ao mesmo tempo...
— Eu compreendo — disse Nicole, dando um gole no café fresco —, e
concordo com você... Não teríamos esse jantar sossegado se houvesse mais seis
pessoas aqui conosco.
— E não se esqueça dos quatorze netos — disse Simone.
Nicole olhou para Michael e sorriu.
— Desculpe, Michael, mas você é a parte mais irreal desta noite. Toda vez
que olho para o seu rosto fico confusa. Você deve ser uns quarenta anos mais
velho do que eu, mas não parece ter mais de sessenta, e está definitivamente
mais moço do que quando saí de Nodo. Como é possível?
— A tecnologia deles é absolutamente mágica — disse Michael. — Eles
refizeram praticamente todo o meu corpo. Meu coração, pulmões, fígado,
aparelho digestivo e sistemas excretores e a maior parte das glândulas endócrinas
foram substituídos, alguns várias vezes, por equivalentes menores e mais
eficientes. Meus ossos, músculos, nervos e vasos sangüíneos são reforçados com
milhões de implantes microscópicos, que, além de garantirem as funções críticas,
em muitos casos rejuvenescem bioquimicamente as células velhas. Minha pele é
feita de um material especial que foi aperfeiçoado recentemente; ela tem todas as
boas propriedades da pele humana, mas não envelhece nem cria manchas ou
verrugas... Uma vez por ano vou ao hospital, fico inconsciente durante dois dias e
saio de lá literalmente novo.
— Você se importa de chegar aqui para eu examiná-lo de perto? — per-
guntou Nicole rindo. — Não preciso encostar nas suas chagas feito São Tome,
mas você há de convir que é difícil acreditar no que está me contando.
Michael O'Toole atravessou a sala e ajoelhou-se ao lado da cadeira de
rodas. Nicole estendeu a mão e tocou no rosto dele. Era suave e macio como o de
um rapaz. Seus olhos eram frescos e claros.
— E quanto a seu cérebro, Michael — perguntou Nicole —, o que fizeram
com ele?
Michael sorriu, e Nicole notou que não havia rugas na sua testa.
— Muita coisa. Quando a minha memória começou a falhar, eles
recondicionaram meu hipocampo. E até o complementaram com uma pequena
estrutura especial que me torna mais capaz, segundo informaram... Há mais ou
menos vinte anos foi instalado no meu cérebro um sistema operacional melhor,
como eles descrevem, para aprimorar meu raciocínio...
Michael estava a menos de um metro dela, e a luz da lareira refletia-se em
seu rosto. De repente, Nicole foi tomada por uma torrente de lembranças. Re-
cordou-se de como tinham sido amigos em Rama, e dos seus momentos de
intimidade, quando Richard foi embora e pensaram que tinha morrido. Nicole
tocou mais uma vez no rosto dele.
— E você continua a ser Michael O'Toole — perguntou ela — ou tornou-se
outra pessoa, parte humano e parte alienígena?
Michael levantou-se sem dar uma palavra e voltou para sua cadeira. Seus
movimentos eram de um atleta, não os de um homem de mais de cento e vinte
anos.
— Não sei como responder à sua pergunta — disse ele. — Eu me lembro
com todos os detalhes da minha infância em Boston e de todas as fases
importantes da minha vida. Ao que eu saiba, ainda sou mais ou menos o
mesmo...
— Michael anda extremamente interessado em religião e na criação —
falou Simone pela primeira vez depois de algum tempo. — Mas ele mudou um
pouco; todos nós ficamos alterados com a nossa experiência de vida...
— Continuo a ser um devoto católico apostólico romano — disse Michael
— e faço minhas orações diariamente... Mas é claro que minha visão de Deus e
da humanidade mudou de forma drástica, em razão de tudo o que Simone e eu
vimos... Mas minha fé se fortaleceu... basicamente por causa das minhas con-
versas iluminadas com...
Michael parou e olhou para Simone.
— Nos primeiros anos, mãe — falou ela —, quando Michael e eu estáva-
mos sozinhos em Nodo perto de Sírius, enfrentamos muitas dificuldades...
Tínhamos só um ao outro para conversar... Eu era uma garota e Michael, um
homem maduro... Eu não conhecia nada de física, de religião ou de vários outros
assuntos favoritos dele...
— Nós não tínhamos um problema grave — falou Michael. — Mas éramos
muito solitários, de uma forma muito especial... Nossa vida em comum era ótima
e enriquecedora... Mas precisávamos de outra coisa, de uma coisa a mais...
— A Inteligência Nodal, ou qualquer outro nome que se dê ao poder que
cuidava de nós, percebeu nossa dificuldade. E também reconheceu que a Águia
poderia preencher nossas necessidades individuais. Então, criaram um
companheiro para cada um de nós, em certo sentido como a Águia.
— Foi um golpe de mestre — disse Simone — que acabou com a tensão
emocional que ameaçava nosso casamento perfeito. Quando São Michael...
— Deixe que eu conto, querida — interrompeu Michael. — Uma noite,
quase dois anos depois que você e os outros partiram, Simone estava no quarto
do apartamento, amamentando Katya, quando ouvimos uma batida na porta...
Imaginei que fosse a Águia... Ao abrir a porta, vi um rapaz de cabelos pretos e
crespos, olhos azuis, uma perfeita reconstrução de São Miguel de Siena. O rapaz
me disse que a Águia não teria mais contato conosco e que ele seria meu novo
intermediário com a inteligência que governava Nodo...
— São Michael — falou Simone — tinha um vasto conhecimento da
história da Terra, do catolicismo, de física e de todos os outros assuntos que eu
desconhecia por completo...
— Além disso — falou Michael, levantando-se da cadeira —, ele nos expli-
cava o que acontecia à nossa volta em Nodo... Não que a Águia não explicasse,
mas São Michael era muito mais caloroso, mais pessoal. Era como se tivesse sido
enviado por eles, ou por Deus, para ser um companheiro do meu pensamento.
Nicole ficou olhando para Simone e para Michael, cuja expressão era ab-
solutamente radiante. O fervor religioso dele não declinou, foi redirecionado,
pensou ela.
— E esse São Michael ainda anda por aqui? — perguntou Nicole, engo-
lindo o último gole de café.
— É claro — falou Michael. — Nós não o apresentamos a Patrick porque
ele não tinha muito tempo, mas queremos que você o conheça. — Michael
atravessou a sala, cheio de energia. — Lembra-se que Richard perguntava
infinitas vezes quem havia construído Nodo e Rama, e com que propósito? São
Michael pode dar essas respostas e explica tudo com grande eloqüência.
— Meu Deus! — exclamou Nicole com um ligeiro traço de ironia na voz. —
Parece uma coisa fantástica... Boa demais para ser verdade... Quando vou ter o
privilégio de conhecê-lo?
— Agora mesmo, se quiser — respondeu Michael O'Toole esperançoso.
— Muito bem — falou Nicole, dando um bocejo. — Mas lembre-se de que
estou cansada, doente, e que sou uma mulher idosa... Não posso ficar acordada
até tarde...
Michael foi até a porta do escritório.
— São Michael —- chamou —, pode vir até aqui conhecer a mãe de
Simone?
Um instante depois, um jovem padre de pouco mais de vinte anos, vestido
com uma túnica azul-escura, entrou na sala e foi até a cadeira de rodas de
Nicole.
— Estou encantado em conhecê-la — disse ele, com um sorriso
beatificado. — Ouço falar na senhora há muitos anos.
Nicole estendeu a mão e examinou o alienígena atentamente. Não havia
nada naquele indivíduo que demonstrasse que ele não era um ser humano
normal. Meu Deus, não só a tecnologia deles é fantástica como seu aprendizado é
incrível, pensou Nicole.
— Agora vamos deixar uma coisa bem clara desde o início — disse ela
para São Michael, com um sorriso de esguelha. — Há muitos Michaels aqui. Não
pretendo chamar você de São Michael; não é meu feitio. Posso chamar de São, de
Mike ou de Mikey? O que você prefere?
— Quando os dois estão juntos, eu chamo meu marido de Grande Michael
— falou Simone. — E tem dado certo.
— Muito bem — falou Nicole. — Como dizia Richard, "Em Roma, como os
romanos..." Sente-se aqui, Michael, perto da minha cadeira... O Grande Michael
fez tantos elogios a você que não quero perder uma filigrana da sua sabedoria por
causa da minha má audição.
— Obrigado, Nicole — disse São Michael com um sorriso. — Michael e
Simone também têm me falado das suas virtudes, mas eles subestimaram sua
inteligência aguçada.
E ele tem personalidade. Será que as maravilhas não vão cessar nunca?,
pensou Nicole.

Uma hora depois, Simone levou-a para o quarto de hóspedes no final do


corredor. Nicole deitou-se de lado e ficou olhando para a janela. Embora estivesse
muito cansada, não conseguia dormir. Sua cabeça funcionava a todo vapor,
repassando todos os acontecimentos do dia.
Talvez eu deva pedir um remédio para dormir, pensou, passando a mão
pelo botão da mesa-de-cabeceira. Simone disse que São Michael viria se eu o
chamasse. E que ele pode fazer tudo o que a Águia faz. Tendo certeza de que podia
pedir ajuda caso sua insônia persistisse, Nicole ajeitou-se numa posição
confortável e soltou seus pensamentos.
Pensou no que tinha visto e ouvido desde que chegara naquele isolado
enclave em que Michael, Simone e sua família viviam. São Michael explicara que
aquela pseudo-Nova Inglaterra era uma pequena seção do Módulo de Habitação
de Nodo, e que havia centenas de outras espécies vivendo de forma
semipermanente na vizinhança. Nicole tinha perguntado por que Michael e
Simone preferiram viver separados de todos os outros.
— Durante anos — Michael O'Toole respondeu —, vivemos em ambientes
com várias espécies. Na verdade, até depois de nossos quatro filhos naturais
nascerem fomos passados de um lugar para outro, a fim de que testassem nosso
senso de adaptação e compatibilidade com uma gama de outras plantas e
espécies animais... Naquela época, São Michael confirmou o que suspeitávamos,
isto é, que nossos hospedeiros queriam expor-nos a uma variedade de ambientes
para colher mais informações sobre nós... Cada novo local era um novo desafio...
Michael fez uma pausa, como se estivesse controlando sua emoção.
— As provações psicológicas foram terríveis nos primeiros dias. Assim que
nos adaptávamos a uma condição de vida, elas mudavam abruptamente... Eu
ainda acho que Darren não teria morrido se tudo não fosse tão estranho naquele
mundo subterrâneo... E quase perdemos Katya também quando ela estava com
uns dois anos e sua curiosidade foi tomada como um ato de agressividade por
uma criatura marinha semelhante a uma lula.
— Depois que nos puseram para dormir pela segunda vez — disse Simone
— e nos trouxeram para este Nodo, Michael e eu estávamos exaustos de tantos
testes durante anos e as crianças estavam crescidas e começavam a casar-se.
Pedimos para ter um pouco de privacidade, e nosso pedido foi acatado...
— Nós ainda vamos ao outro mundo — acrescentou Michael —, mas agora
interagimos com os seres exóticos de distantes sistemas estelares porque que-
remos, e não por obrigação... São Michael nos informa regularmente sobre os
jogos de basquete e as tartarugas voadoras. Ele é nossa janela informativa para o
resto do Nodo.
São Michael é extraordinário, pensou Nicole, e muito mais avançado até
mesmo do que a Águia. Responde a qualquer pergunta com segurança. Mas há
alguma coisa nele que me deixa intrigada... Será que todas aquelas respostas
sobre Deus, a origem e o destino do universo eram realmente corretas? Ou São
Michael foi programado para ser o perfeito companheiro alienígena de Michael, com
base no seu fervor religioso?
Nicole rolou na cama e considerou seu próprio relacionamento com a
Águia. Talvez eu esteja com ciúmes, porque parece que Michael aprendeu muito... e
a Águia não tem boa-vontade de responder, ou não sabe responder às minhas
perguntas... Mas quem sai ganhando mais, a criança cujo mentor sabe e conta
tudo, ou a criança cujo professor ajuda a encontrar suas próprias respostas?... Eu
não sei... Eu não sei... Mas foi uma apresentação e tanto de São Michael no altar...

— Está vendo, Nicole? — disse Michael, pulando da cadeira pela enésima


vez. — Todos nós estamos participando da grande experiência de Deus. Todo o
universo, não só a nossa própria galáxia, mas todas as galáxias que se estendem
até o final dos céus fornecerão pontos de referência para Deus... Ele busca a
perfeição, aquela pequena série de parâmetros iniciais que — como o universo é
movimentado pela transformação de energia em matéria — evoluirão ao longo de
bilhões de anos em uma harmonia perfeita, um testemunho da capacidade
consumada do Criador...
Nicole teve dificuldade em seguir a alta matemática, mas compreendeu a
essência dos diagramas que São Michael desenhou no quadro-negro do escritório.
— Então, neste momento — disse ela para o alienígena de cabelos pretos e
olhos azuis —, há inúmeros outros universos em evolução, cada um iniciado por
Deus em condições diferentes, e de certa forma Deus introduziu você, a Águia,
Nodo e Rama dentro desse específico processo de evolução para adquirir
informações? E tudo isso para que Ele possa definir alguma construção
matemática associada com a criação que sempre produzirá um resultado
harmonioso?
— Exatamente — respondeu São Michael, apontando mais uma vez para o
diagrama do quadro-negro. — Imagine que esse sistema coordenado que desenhei
seja uma representação simbólica em duas dimensões das hipersuperfícies
disponíveis de parâmetros que definem o instante da criação, o momento em que
a energia é transformada pela primeira vez em matéria. Qualquer disposição ou
vetor que represente um conjunto específico de condições iniciais para o universo
pode ser descrita com um único ponto no meu diagrama. O que Deus está e
esteve buscando é um conjunto muito especial, fechado e denso, localizado nesta
hipersuperfície matemática. A propriedade desse conjunto especial que Ele busca
é que qualquer de seus elementos, isto é, qualquer disposição de condições no
instante da criação, escolhida dentro deste conjunto, produza um universo que
finalmente terminará em harmonia.
— É um problema quase insolúvel — disse Michael — criar um universo
onde todos os seres vivos acabarão proclamando a glória de Deus. Se não houver
matéria suficiente, a explosão e a expansão do instante da criação resultarão
num universo expandindo-se para sempre, sem interação dos componentes
individuais durante a evolução para produzir e sustentar a vida. Se houver
matéria em excesso, o tempo será insuficiente para que a vida e a inteligência se
desenvolvam plenamente, antes que a gravidade determine a grande compressão
que acabará com o universo.
— O caos também atrapalha Deus — explicou São Michael — O caos é um
fruto de todas as leis físicas que regem a evolução de qualquer universo criado.
Ele impede a predição exata dos resultados dos processos em grande escala, e
assim Deus não pode, a priori, calcular o que irá acontecer no futuro e, através
de técnicas analíticas, isolar as zonas de harmonia... A experiência é a única
forma possível para Deus descobrir o que está buscando...
— A estrutura que se opõe ao projeto de Deus é avassaladora — acres-
centou Michael. — Para que Deus tenha êxito, não só a vida e a inteligência
devem evoluir de partículas subatômicas brutas a átomos, através dos
cataclismos estelares, como a vida deve alcançar um nível de conscientização
espiritual e capacidade tecnológica tal, que transforme ativamente tudo em volta
dela...
Então, Deus é o supremo projetista, o supremo engenheiro, pensou Nicole
no seu quarto, ao lembrar-se da discussão. Ele modela o momento da criação de
tal forma, que bilhões de anos .mais tarde os seres vivos atestam a maravilha da
criação...
— Há uma parte aí que ainda não entendo — falou Nicole para os dois
Michaels e Simone no final da noite. — Por que Deus cria tantos universos para
realizar sua experiência? Uma vez comprovado um resultado harmonioso, a tarefa
não se torna mais fácil? As condições iniciais daquele universo não podem
simplesmente ser repetidas?
— Esse não é um problema difícil para Deus — respondeu São Michael. —
Deus deseja saber a extensão da zona de harmonia na hipersuperfície dos
parâmetros de criação e também todas as características matemáticas da zona...
Além do mais, acho que você ainda não avaliou o alcance do problema de Deus.
Apenas uma fração minúscula de todos os universos possíveis poderá vir a ser
harmoniosa. O resultado natural da transformação de energia em matéria é um
universo absolutamente desprovido de vida, ou, na melhor das hipóteses, com
criaturas agressivas, de vida temporária, mais destrutivas que construtivas.
Mesmo uma pequena área de harmonia dentro de um universo em evolução é um
milagre... Por isso o empreendimento todo é tão desafiador para Deus.
Michael deu outro pulo e voltou a discursar.
— Deus está buscando um universo que alcance uma total harmonia
antes de morrer na grande compressão. Ele não deseja apenas que as espécies
vivas de todo o mundo trabalhem juntas para o bem comum, mas que todas as
partículas subatômicas da Sua criação participem ativamente dessa harmonia...
Durante algum tempo, eu mesmo não compreendia toda a grandeza desse
conceito. Então, São Michael me falou sobre uma espécie que cria seres vivos
com pedra e terra, como nosso Deus bíblico fez, transmutando e reorganizando os
elementos. A harmonia total requer que espécies avançadas, como nós, usem
seus instrumentos tecnológicos para transformar coisas inanimadas em criaturas
que contribuam para essa harmonia...
Nicole lembrou-se de que naquele ponto da conversa havia dito que sua
cabeça estava estourando e que queria ir para a cama. São Michael lhe pedira
para esperar só mais uns minutos para ele resumir a discussão, que a seu ver
fora desorganizada. Nicole tinha concordado.
— Voltando à nossa pergunta original — disse São Michael —, cada um
dos Nodos faz parte de uma inteligência hierárquica que colhe informações
através da sua galáxia específica. A maioria das galáxias, inclusive a Via-Láctea,
tem uma única superestação chamada Monitor Motriz, localizada perto dos
centros. O conjunto de Monitores Motrizes foi criado por Deus no mesmo instante
em que o universo começou, e depois foi desdobrado, a fim de conhecer ao
máximo os processos evolutivos. Os Nodos, os transportadores e todas as outras
construções de engenharia que você viu foram, por sua vez, projetados pelo
Monitor Motriz. Toda a atividade, inclusive a ocorrida desde que a primeira nave
Rama entrou no seu sistema solar muitos anos atrás, tem por objetivo o
desenvolvimento de critérios quantitativos, a serem usados pelo Criador, que
permitirão que os universos subseqüentes terminem em harmonia gloriosa,
apesar das tendências caóticas das leis naturais.
Nicole deu um assobio.
— Esta conversa está complicada demais e agora estou exausta — falou,
movimentando sua cadeira de rodas.
Mas não tão exausta a ponto de dormir, pensou. Como é possível dormir
depois de ouvir a explicação do objetivo do universo? Nicole riu para si própria na
cama. Não posso imaginar o que Richard diria depois dessa discussão... Uma boa
teoria talvez, mas como explicaria a liderança da África na Copa do Mundo de
2140 a 2160?... Nicole riu novamente. Richard teria gostado de São Michael, sem
dúvida alguma, mas teria feito centenas de perguntas... Nós teríamos feito amor
assim que voltássemos para o quarto e conversaríamos a noite toda...
Ela bocejou e virou-se para o outro lado. À medida que afundava no sono,
visões do universo dançavam na sua cabeça.
9
Nicole acordou descansada e com uma energia surpreendente. Ia apertar o
botão da mesa-de-cabeceira, mas resolveu passar para a sua cadeira de rodas.
Foi até a janela e puxou as cortinas.
A manhã estava bonita. Nicole viu um riacho à sua esquerda, e três crian-
ças entre oito e dez anos de idade jogando pedras num laguinho formado pelo
curso natural do riacho. Ao olhar para os campos perfeitamente simulados, com
árvores e morros arredondados, sentiu-se temporariamente jovem e cheia de vida.
Talvez fosse uma boa idéia eles me restaurarem toda, pensou. Substituir
todos os órgãos gastos e doentes... Eu poderia viver aqui, com Simone e Michael.
Talvez até pudesse ensinar umas coisinhas para meus netos...
As três crianças saíram do riacho e atravessaram correndo o gramado até
a cocheira dos cavalos. O garoto corria mais depressa, mas era quase do tamanho
da menina menor. Os três chegaram lá rindo e chamando os cavalos pela cerca.
— O menino é Zacarias — disse Michael por trás dela. — As duas meninas
são Colleen e Simone... Zacarias e Colleen são filhos de Katya, e Simone é a mais
velha de Timothy.
Nicole, que não ouvira Michael entrar no quarto, deu meia-volta com a
cadeira de rodas.
— Bom dia, Michael — disse, olhando para trás. — As crianças são ma-
ravilhosas.
— Obrigado — falou Michael, andando para a janela. — Sou um homem
de muita sorte. Deus me deu uma vida fascinante, com riquezas inacreditáveis.
Os dois ficaram em silêncio olhando as crianças brincarem. Zacarias
montou um cavalo branco e começou a se exibir.
— Fiquei triste quando soube da morte de Richard — disse Michael. —
Patrick nos contou a história ontem... Deve ter sido horrível para você.
— Foi — respondeu Nicole. — Richard e eu tínhamos uma amizade
maravilhosa... — Os dois olharam-se. — Você teria ficado orgulhoso dele,
Michael. Ele se tornou um homem diferente nos últimos anos.
— Imagino que sim... O Richard que conheci não teria se apresentado
como voluntário sabendo que correria perigo, especialmente com a intenção de
salvar a vida dos outros...
— Você devia ter visto Richard com a neta, Nikki, filha de Ellie. Eram
inseparáveis. Ele encontrou a ternura muito tarde na vida.
Nicole não pôde continuar, pois sentiu uma súbita dor no peito,
fortíssima. Foi até a mesa-de-cabeceira e deu um gole na garrafa com o líquido
azul.
Voltou para a janela, e os dois ficaram olhando um pouco mais as crian-
ças brincando. As meninas estavam a cavalo também e faziam algum tipo de
brincadeira.
— Patrick nos disse que Benjy tornou-se um ótimo rapaz, limitado sob
certos aspectos mas bastante especial, levando-se em conta sua capacidade
básica e os longos períodos de sono... Ele disse que Benjy é um tributo vivo aos
seus talentos, todos eles, e que você se dedicou incansavelmente a ele, nunca
deixando-o usar sua deficiência como desculpa...
Dessa vez foi Michael que não conseguiu continuar. Virou-se para Nicole
com lágrimas nos olhos e colocou suas mãos nas mãos dela.
— Não sei como lhe agradecer por educar esses dois meninos com tanto
carinho. Especialmente Benjy.
Nicole olhou para ele da sua cadeira de rodas.
— Eles são nossos filhos, Michael. Eu amo muito aqueles dois. Michael
esfregou o nariz e os olhos com um lenço.
— É claro que Simone e eu queremos que você conheça nossos filhos e
netos, mas achamos melhor lhe contar uma coisa primeiro... Não sabíamos
exatamente como você reagiria... Porém não seria justo não lhe contar, senão
você poderia não compreender por que as crianças estão reagindo...
— O que é, Michael ? — interrompeu Nicole sorrindo. — Você está com
dificuldade em me contar a história.
— Estou sim — disse ele, atravessando o quarto e apertando o botão ao
lado da cama de Nicole duas vezes em seguida. — Nicole, o que vou dizer é um
tanto delicado... Lembra-se da noite passada, quando nós dissemos que Simone e
eu tínhamos amigos alienígenas?...
— Lembro, Michael — respondeu Nicole.
Ela ainda estava olhando pela janela. Michael foi para o seu lado e pegou-
lhe a mão. Do lado de fora, uma mulher de seus quarenta anos, com a pele
cobreada, tinha saído da casa e caminhava devagar para a estrebaria. A figura da
mulher e seu jeito de andar pareceram familiares a Nicole. Quando as crianças
viram a mulher, acenaram para ela e vieram a cavalo na sua direção.
Quando Zacarias gritou o nome da mulher, Nicole de repente com-
preendeu e ficou estupefata. A mulher virou-se e Nicole se viu, exatamente como
era quando saiu do Nodo, quarenta anos antes. Foi difícil controlar suas
emoções.
— Como Simone sentia muito a sua falta — disse Michael, ao ver o olhar
de assombro no rosto de Nicole —, o alienígena criou para ela uma companheira
à sua imagem... É uma simulação notável. Não só pela aparência física, como
você pode ver, mas também pela sua personalidade. Simone e eu ficamos
espantados, especialmente no começo, com a réplica perfeita que eles
conseguiram. A alienígena falava como você, andava como você e até pensava
como você... Dentro de uma semana, Simone a chamava de mamãe, e eu, de
Nicole. Ela está conosco desde aquela época.
Nicole olhou para a réplica de si própria sem dar uma palavra. As expres-
sões faciais e até mesmo os gestos são corretos, pensou, continuando a olhar fixo
quando a mulher se aproximou da casa com as três crianças.
— Simone achou que talvez você ficasse um pouco perturbada, ou talvez
se sentisse deslocada quando descobrisse que sua réplica vive com a nossa
família há todos esses anos. Mas eu garanti a ela que você reagiria bem, só que
levaria algum tempo para acostumar-se à idéia... Afinal de contas, ao que eu
saiba, é a primeira vez que um ser humano é substituído por um robô de si
próprio.
A alienígena Nicole pegou uma das crianças e girou-a no ar; depois, os
quatro subiram os degraus da entrada da casa.
Eles a chamam de vovó, pensou Nicole. Ela pode correr, andar a cavalo e
girar as crianças no ar... Não está encarquilhada e confinada a uma cadeira de
rodas. Uma emoção que não agradava a Nicole, a autopiedade, começou a crescer
dentro dela. Talvez Simone não tenha sentido tanta saudade de mim. A "mãe" dela
vive aqui há muito tempo, está à sua disposição, não envelhece e não pede nada...
Nicole sentiu que ia chorar, mas controlou-se.
— Michael — disse, forçando um sorriso —, me dê um minuto para eu me
preparar para o café da manhã.
— Tem certeza de que não precisa de ajuda? — perguntou ele.
— Tenho sim... Eu me ajeito bem... Só quero lavar meu rosto e pôr um
pouco de maquiagem.
Assim que a porta se fechou, as lágrimas desceram pelo seu rosto. Não há
lugar para mim aqui também. Eles já têm uma vovó, melhor do que eu teria sido,
mesmo sendo apenas uma máquina...

Nicole não falou quase nada quando voltou para o centro de transporte.
Ficou quieta quando o foguete deixou o Módulo de Habitação e saiu pelo espaço.
— Você não quer contar nada, não é? — disse a Águia.
— Na verdade, não — falou Nicole pelo microfone do seu capacete.
— Gostou de ter vindo? — perguntou a Águia um pouco depois.
— É claro... gostei muito. Foi uma das experiências mais importantes da
minha vida... Muito obrigada.
A Águia controlou o vôo do foguete para que eles voltassem devagar. O
imenso tetraedro iluminado dominava a vista da janela.
— O processo de substituição pode ser feito hoje à tarde — disse a Águia.
— No início da semana que vem você vai parecer mais moça do que Michael.
— Não, obrigada — falou Nicole. Houve outro período de silêncio.
— Você não parece muito feliz — observou a Águia. Nicole virou-se para
olhar seu companheiro alienígena.
— Eu estou. E estou especialmente feliz por Michael e Simone... É maravi-
lhoso tudo o que eles realizaram na vida... — Nicole respirou fundo. — Talvez eu
esteja um pouco cansada. Muita coisa aconteceu num tempo muito curto.
— Provavelmente é isso — falou a Águia.
Nicole afundou em seus pensamentos, revendo metodicamente tudo o que
tinha acontecido desde que acordara. Os rostos dos seis filhos de Michael e
Simone e dos seus quatorze netos passaram-lhe pela cabeça. Um belo grupo, mas
sem grandes variações, pensou ela.
Mas era outro rosto, do qual se lembrava claramente no seu próprio
espelho, que lhe voltava a toda hora. Nicole concordara com Simone e Michael
que sua réplica tinha uma semelhança inacreditável com ela, era um absoluto
sucesso da tecnologia avançada. O que não conseguira discutir com eles foi a
sensação estranha que teve ao encontrar e conversar consigo própria quando
mais jovem. E ao ver que fora substituída por uma máquina nos corações e
mentes da sua própria família.
Nicole tinha observado em silêncio a sua réplica numa conversa bem-
humorada com Simone sobre uma discussão entre ela e sua irmã menor, Katie,
quando estavam em Nodo, há muitos anos. Quando a alienígena lembrou-se dos
detalhes da história, Nicole lembrou-se também. Até a memória dela é melhor que
a minha... Que solução perfeita para o problema de envelhecimento e da morte...
captar uma pessoa no auge da sua vida, com todos os seus poderes intactos, e
preservá-la para sempre como uma lenda, pelo menos aos olhos de seus entes
queridos.
— Como posso ter certeza de que a Simone e o Michael com quem con-
versei ontem e hoje de manhã são seres humanos reais, e não uma mera
simulação de alta fidelidade como a outra Nicole? — perguntou à Águia.
— São Michael disse que você fez várias perguntas sobre o início da vida
do Michael — disse a Águia. — Não ficou satisfeita com as respostas?
— Mas percebi, quando estávamos no carro, uma hora atrás, que algumas
informações podiam estar no arquivo biográfico de Michael na nave Newton, e sei
que vocês tiveram acesso àqueles dados...
— E iríamos tão longe só para enganar você? — perguntou a Águia. — Por
acaso já agimos assim alguma vez?
— Quantos outros filhos de Simone e Michael ainda estão vivos? —
perguntou Nicole um pouco depois, mudando de assunto.
— Trinta e dois estão aqui em Nodo — respondeu a Águia. — E mais de
cem em outros lugares.
Nicole sacudiu a cabeça, lembrando-se das crônicas de Senoufo. "E sua
prole será espalhada entre as estrelas..." Omeh teria gostado disso, pensou.
— Vocês aperfeiçoaram seu desenvolvimento de humanos fora do útero a
partir de óvulos fertilizados? — perguntou Nicole.
— Mais ou menos — respondeu a Águia.
Mais uma vez, eles ficaram voando em silêncio por longo tempo.
— Por que você nunca me contou sobre os Monitores Motrizes? — per-
guntou Nicole em seguida.
— Eu não tinha permissão para contar, pelo menos até você acordar... E
desde então o assunto não veio à baila.
— E tudo o que São Michael disse é verdade? Sobre Deus, o caos e muitos
universos?
— Ao que eu saiba sim — disse a Águia. — Pelo menos é isso que está
programado nos nossos sistemas... Nenhum de nós daqui jamais viu um Monitor
Motriz.
— E é possível — continuou Nicole — que toda essa história seja um tipo
de mito criado por uma inteligência hierarquicamente superior a você, como uma
explicação oficial a ser dada para os seres humanos?
A Águia hesitou.
— Essa possibilidade existe... Mas não tenho como saber.
— Você saberia se alguma coisa diferente, alguma outra explicação tivesse
sido programada nos seus sistemas antes?
— Não necessariamente. Eu não sou o único responsável pelo que é retido
na minha memória.
O comportamento de Nicole permaneceu estranho. Ela interrompeu os
prolongados períodos de silêncio com perguntas aparentemente desconexas, e a
certa altura perguntou por que alguns Nodos tinham quatro módulos e outros
três. A Águia explicou que o Módulo do Conhecimento criava um tetraedro do
triângulo nodal em cerca de cada décimo ou décimo segundo Nodo. Nicole quis
saber o que havia de tão especial no Módulo do Conhecimento. A Águia explicou
que era o repositório de todas as informações adquiridas sobre aquela parte da
galáxia.
— O Módulo do Conhecimento é parte biblioteca, parte museu, e contém
uma quantidade colossal de informações de várias formas — disse a Águia.
— Você já esteve dentro desse Módulo? — perguntou Nicole.
— Não, mas meu atual sistema contém uma descrição completa dele...
— Posso ir lá?
— Um ser humano precisa ter permissão especial para entrar no Módulo
do Conhecimento — respondeu a Águia.
Depois, Nicole perguntou o que iria acontecer com os humanos que se
transferissem para Nodo dentro de um a dois dias. A Águia explicou paciente-
mente que eles viveriam no Módulo Habitacional em um ambiente de teste com
várias outras espécies, que seriam monitorados de perto, e que Simone, Michael e
sua família talvez se integrassem aos humanos que iriam passar para Nodo.
Nicole tomou sua decisão alguns minutos antes de chegar na Estrela do
Mar.
— Quero ficar só mais esta noite aqui — disse lentamente — para me
despedir de todos.
A Águia olhou para ela com uma expressão curiosa.
— Amanhã, se você conseguir permissão — continuou Nicole —, quero
que me leve ao Módulo do Conhecimento... Depois que eu sair da Estrela do Mar,
quero que todos os meus medicamentos sejam suspensos... E não quero que
façam esforços heróicos se meu coração der problemas.
Nicole olhou em frente, através do visor do seu capacete espacial, pela
janela do foguete. Chegou a minha hora, disse para si mesma. Preciso ter a
coragem de não hesitar.

— Sim, mãe — disse Ellie. — Compreendo, compreendo mesmo... Mas sou


sua filha. Eu te amo. Por mais que seja lógico para você, não consigo ficar feliz
sabendo que não vou mais te ver.
— Então o que devo fazer? — perguntou Nicole. — Deixar que eles me
transformem num tipo de mulher biônica para eu ficar por aí para sempre? E ser
a grande dama da comunidade, pomposa e toda importante? Isso realmente não
faz muito sentido para mim.
— Mas todos admiram você, mamãe. Sua família a ama, e você pode levar
anos conhecendo a família de Simone e Michael... Você nunca seria um problema
para nenhum de nós...
— Não é esse o caso — falou Nicole, virando a cadeira de rodas para a
parede nua. — O universo está em constante renovação — disse, tanto para si
como para Ellie. — Tudo, indivíduos, planetas, estrelas, e até mesmo galáxias,
tem um ciclo de vida, uma morte assim como um nascimento. Nada dura para
sempre, nem mesmo o próprio universo... Mudança e renovação são parte
essencial do processo como um todo. As octoaranhas sabem muito bem disso.
Por isso os extermínios planejados são parte integrante do seu conceito de
reabastecimento.
— Mas, mamãe — disse Ellie por trás dela —, a menos que haja uma
guerra, as octoaranhas só mandam para a lista de extermínio os indivíduos que
não contribuem mais para a sua sociedade, e que portanto não justificam os
recursos gastos com eles... Não nos custará nada manter você viva... E sua
sabedoria e experiência ainda são valiosas.
Nicole virou-se e sorriu.
— Você é uma mulher brilhante, Ellie. E reconheço que há grande parte
de verdade no que está dizendo. Mas você está ignorando de propósito os dois
elementos-chaves da minha decisão, que já expliquei à exaustão... Por motivos
que nem você nem ninguém mais poderá compreender, é importante que eu
possa escolher minha própria hora de morrer. E quero tomar essa decisão antes
de me tornar uma carga ou de ficar inativa, e enquanto ainda tiver o respeito da
minha família e de meus amigos. Em segundo lugar, sinto que não tenho
nenhum canto definido no mundo de pós-transferência para Nodo. Portanto, a
meu ver, não posso justificar a maciça intervenção fisiológica que será necessária
para que eu funcione sem ser um problema para os outros... De vários pontos de
vista diferentes, agora parece uma hora excelente para eu partir.
— Como eu disse desde o início — falou Ellie —, sua análise fria e racio-
nal, seja correta ou não, não deve ser considerada isoladamente. E o que você me
diz dos sentimentos de perda de Nicole, Nikki, meu e dos outros? E ficaremos
ainda mais tristes sabendo que sua morte podia ter sido evitada...
— Ellie — falou Nicole —, uma das razões para eu vir me despedir de você
e dos outros foi tentar aliviar qualquer sentimento de perda que vocês pudessem
ter depois da minha morte... Lembre-se mais uma vez das octoaranhas... Elas
não sofrem...
— Mãe — interrompeu Ellie, lutando para conter as lágrimas —, nós não
somos octoaranhas, somos seres humanos... Nós sofremos... Ficamos desolados
quando alguém que amamos morre. Sabemos, teoricamente, que a morte é
inevitável e que faz parte do esquema universal, mas mesmo assim choramos e
temos um agudo senso de perda...
Ellie fez uma pausa.
— Você já se esqueceu de como se sentiu quando papai e Katie morre-
ram?... Ficou arrasada...
Nicole engoliu em seco e olhou para a filha. Eu sabia que não seria fácil,
pensou. Não devia ter voltado... Teria sido realmente melhor pedir para a Águia
dizer a todos que eu tinha morrido de um ataque cardíaco.
— Eu sei que você ficou transtornada — disse Ellie com carinho —
quando descobriu que um robô alienígena a tinha substituído na família de
Simone e Michael... Mas não é preciso exagerar... Mais cedo ou mais tarde, todos
os filhos e netos deles saberão que não pode haver substituta para a verdadeira
Nicole des Jardins Wakefield.
Nicole suspirou, sentindo que estava perdendo a batalha.
— Eu admiti para você, Ellie, que senti que não havia lugar para mim na
família de Simone e Michael. Mas não é justo insinuar que minha reação à outra
Nicole foi a única ou a principal razão da minha decisão.
Estava ficando exausta. Tinha planejado falar primeiro com Ellie, depois
com Benjy e finalmente com o resto do grupo antes de dormir. Mas Ellie foi muito
mais difícil do que imaginara. Você está sendo realista?, perguntou Nicole a si
mesma. É claro que Ellie não diria "que ótimo, mãe, isso faz sentido. Estou triste de
ver você partir mas compreendo perfeitamente".
Ouviu-se uma batida na porta do apartamento. A Águia entrou e olhou
para as duas mulheres.
— Estou atrapalhando? — perguntou. Nicole sorriu.
— Acho que estamos prontas para uma curta pausa — disse.
Ellie saiu, dizendo que ia ao banheiro, e a Águia foi para perto de Nicole.
— Como vão as coisas? — perguntou, debruçando-se sobre a cadeira de
rodas.
— Não tão bem — respondeu ela.
— Passei para dizer que seu pedido para visitar o Módulo do Conheci-
mento foi concedido. Partindo do princípio de que a situação básica que você me
descreveu no foguete ainda está de pé...
Nicole ficou radiante.
— Meu Deus, agora é só ter coragem de terminar o que comecei. A Águia
deu uma palmada nas suas costas.
— Você vai conseguir. Você é o ser humano mais extraordinário que já
conheci.

A cabeça de Benjy repousava no peito de Nicole, deitada de costas com o


braço em volta do filho. Talvez esta seja a última noite da minha vida, pensou ela,
tentando dormir. Sentiu um ligeiro tremor de medo e tentou controlar-se. Não
estou com medo de morrer, disse consigo mesma, não depois do que já passei.
A visita da Águia a fortalecera. Quando voltou a conversar com Ellie,
admitiu que todos os argumentos da filha eram válidos e que não pretendia
causar tristeza a seus amigos e sua família, mas que estava determinada a
persistir em sua decisão. Nicole mostrara a Ellie que Benjy e ela, e em certo
sentido os outros, teriam oportunidade de crescer com a sua ausência, pois não
haveria mais uma autoridade a quem pudessem recorrer.
Ellie disse a Nicole que ela era uma velha teimosa, mas que, como a
amava e respeitava muito, tentaria apoiá-la nas poucas horas que lhe restavam.
Depois perguntou se Nicole pretendia fazer alguma coisa específica para apressar
sua morte. Nicole riu e disse para a filha que não seria necessário tomar medidas
drásticas, pois a Águia lhe garantira que sem uma medicação complementar seu
coração não duraria muitas horas.
A conversa com Benjy não foi tão difícil. Ellie ofereceu-se para ajudar a
explicar tudo, e Nicole aceitou o oferecimento. Benjy sabia que a saúde de sua
mãe estava precária, e não tinha conhecimento de que os alienígenas podiam
resolver seus problemas médicos. Ellie garantiu a Benjy que Max, Eponine, Nikki,
Kepler, Marius e Maria continuariam a fazer parte do seu mundo diário.
Quando ao grande grupo, só Eponine ficou com lágrimas nos olhos
quando Nicole os informou da sua decisão. Max disse que não estava tão
surpreso. Maria falou que tinha pena de não ter passado mais tempo com a
mulher que salvara sua vida. Kepler, Marius e até mesmo Nikki ficaram sem
saber o que dizer.
Quando Nicole se preparava para dormir, prometeu a si mesma que lo-
calizaria o dr. Azul de manhã cedo para despedir-se da amiga octoaranha. Antes
de Nicole apagar as luzes, Benjy aproximou-se da mãe e perguntou se podia ficar
abraçado com ela como quando era pequeno, já que seria a última noite que
passariam juntos. Nicole concordou, e, depois que Benjy enroscou-se nela,
lágrimas lhe rolaram pelo rosto, molhando suas orelhas e a esteira de dormir.

10
Nicole acordou cedo. Benjy já estava vestido, mas Kepler ainda dormia do
outro lado do quarto. Benjy ajudou mais uma vez Nicole a tomar uma ducha e a
vestir-se.
Max chegou no apartamento pouco depois. Depois de acordar Kepler, foi
até a cadeira de rodas de Nicole e pegou sua mão.
— Eu não falei muito na noite passada, minha amiga, porque não en-
contrei as palavras certas... Mesmo agora não sei bem o que dizer...
Virou a cabeça para o outro lado e disse, com a voz entrecortada, sem
olhar para ela.
— Que merda, Nicole. Sabe muito bem o que eu sinto por você... você é
uma pessoa linda, linda.
Max se calou. O único ruído que se ouvia no quarto era a água do banho
de Kepler. Nicole apertou a mão dele.
— Obrigada, Max, isso significa muito para mim — disse, com muito
carinho.
— Quando eu tinha dezoito anos — disse Max virando-se para Nicole,
hesitante —, meu pai morreu de um câncer raro... Todos nós sabíamos que tinha
chegado a sua hora. Clyde, mamãe e eu vimos que ele estava definhando há
meses... Mas eu não queria acreditar, mesmo quando o vi deitado no caixão...
Fizemos uma cerimônia no cemitério, só para os amigos das fazendas vizinhas e
um mecânico de De Queen chamado Willie Townsend, que tomava um porre com
meu pai todo sábado à noite...
Max sorriu e relaxou. Ele adorava contar histórias.
— Willie era um bom sujeito, um solteirão de aspecto durão, mas muito
doce por dentro... Ele levou um fora da rainha dos esportes do ginásio de De
Queen quando era um garotão e nunca mais teve uma namorada... Minha mãe
me pediu para dizer umas palavras no túmulo do papai, e eu concordei... Eu
mesmo escrevi o discurso, decorei tudo e até mesmo pratiquei em voz alta em
frente de Clyde... Na hora da cerimônia eu estava pronto para fazer o discurso...
"Meu pai, Henry Allan Puckett, era um bom homem", comecei. Depois fiz uma
pausa, como tinha planejado, e olhei em volta. Willie já estava fungando e
olhando para o chão... De repente, não consegui me lembrar de mais nada do
discurso que estava preparado. Ficamos parados debaixo do sol quente do
Arkansas durante uns trinta segundos, que me pareceram um eternidade...
Nunca mais me lembrei do resto do discurso... Finalmente, por desespero e
constrangimento, eu disse "Ah, merda", e Willie completou imediatamente com
um alto "Amém". Nicole estava rindo.
— Max Puckett, não pode haver ninguém como você em todo o universo.
Max riu.
— Na noite passada, quando a francesinha e eu estávamos na cama,
conversamos sobre a outra Nicole criada pelos alienígenas para Simone e
Michael, e Ep ficou imaginando se eles poderiam fazer um robô Max Puckett para
ela. Disse que gostaria de ter um marido perfeito que fizesse sempre exatamente o
que ela queria... Mesmo à noite... Nós rimos a mais não poder tentando imaginar,
bem, você sabe, o que o robô saberia fazer na cama...
— Que vergonha, Max — falou Nicole.
— Na verdade, a francesinha é que foi mais imaginativa... Bem, eu fui
mandado aqui especificamente para informar a você que está sendo preparado
um lauto café da manhã no apartamento ao lado, uma cortesia dos cabeças de
blocos, para tentarmos nos despedir de você, ou desejar bon voyage, ou o que for
mais apropriado... E isso vai acontecer dentro de exatamente oito minutos...

Nicole ficou encantada quando viu que o ambiente na mesa do café estava
agradável e leve. Ela tinha dito várias vezes na noite anterior que não queria que
sua partida fosse motivo de tristeza, que deveria ser celebrada como o final de
uma vida feliz. Aparentemente, sua família e amigos tinham aceitado seu pedido
de coração, pois não havia um rosto sombrio ali.
Ellie e Benjy sentaram-se dos dois lados de Nicole na longa mesa prepa-
rada pelos robôs-bloco. Ao lado de Ellie estava Nikki, depois Maria e o dr. Azul.
Ao lado de Benjy, Max, Eponine, depois Marius, Kepler e a Águia. Durante a
refeição, Nicole notou com surpresa que Maria estava conversando com o dr.
Azul.
— Eu não sabia que você podia ler as cores — falou Nicole, em tom
elogioso.
— Só um pouco — disse a menina, um tanto encabulada com a atenção.
— Ellie tem me ensinado.
— Que ótimo — comentou Nicole.
— É claro que o verdadeira lingüista deste grupo — disse Max — é aquele
estranho homem-pássaro no final da mesa... Ontem ele estava conversando com
os iguanas em bizarros guinchos.
— Ui — disse Nikki —, eu não gostaria de conversar com aquelas
criaturas nojentas.
— Elas têm uma visão do mundo totalmente diferente de nós — disse a
Águia. — Uma forma muito simples, muito primitiva.
— Eu gostaria de saber — disse Eponine, inclinando-se para a frente e
dirigindo-se à Águia — o que preciso fazer para ter um companheiro robô
alienígena só para mim. Quero um que se pareça com Max, só que sem a rebeldia
dele, e que tenha alguns atributos aprimorados...
Todos riram. Nicole sorriu para si mesma quando olhou a mesa. Está tudo
perfeito. Eu não poderia ter uma despedida melhor, pensou.

O dr. Azul e a Águia deram a Nicole uma última dose do líquido azul
enquanto ela arrumava a mala, contente de poder despedir-se da octoaranha a
sós.
— Muito obrigada por tudo — disse ela simplesmente, abraçando a colega
octoaranha.
— Vamos sentir a sua falta — falou o dr. Azul em cores. — O novo Chefe
Otimizador queria organizar uma grande despedida para você, mas eu disse que
não achava apropriado... Ele me pediu para eu dizer adeus a você em nome de
toda a nossa espécie.
Todos acompanharam Nicole até a câmara de compressão. Depois de uma
outra sessão de abraços, a Águia e Nicole atravessaram a câmara de compressão.
Nicole deu um suspiro quando a Águia a colocou no assento do veículo
espacial e dobrou sua cadeira de rodas.
— Eles foram ótimos, não é? — disse Nicole.
— Todos amam e respeitam muito você — comentou a Águia. Depois que
saíram da Estrela do Mar, o grande tetraedro de luz virou-se de novo lentamente
à vista deles.
— Como está se sentindo? — perguntou a Águia.
— Aliviada e um pouco assustada — respondeu Nicole.
— Isso é de se esperar — disse a Águia.
— Quanto tempo tenho ainda? — perguntou Nicole um pouco depois. —
Até meu coração parar de funcionar?
— É difícil dizer exatamente.
— Eu sei, eu sei — falou Nicole impaciente. — Mas vocês são cientistas...
Devem ter computado esses dados...
— Entre seis e dez horas — respondeu a Águia.
Entre seis e dez horas estarei morta, pensou Nicole, agora com um medo
palpável que não conseguia controlar por completo.
— Como é estar morta? — perguntou ela.
— Nós achamos que você faria essa pergunta — respondeu a Águia. —
Disseram-nos que é como ter perdido toda a energia.
— Uma nulidade para sempre? — disse Nicole.
— Creio que sim.
— E o próprio ato de morrer? Há alguma coisa especial sobre isso?
— Nós não sabemos — disse a Águia. — Esperamos que você nos conte o
mais que puder sobre isso.
Os dois voaram em silêncio durante algum tempo. À frente deles, Nodo
aumentava rapidamente de tamanho. Em certo ponto, a nave espacial mudou
ligeiramente de orientação e o Módulo do Conhecimento apareceu no centro da
janela. Durante a aproximação final, os outros três vértices de Nodo ficaram
abaixo deles.
— Você se importa se eu lhe fizer uma pergunta? — disse a Águia.
— É claro que não — respondeu Nicole, virando-se para o alienígena e
sorrindo pelo capacete espacial. — Espero que você não vá ficar tímido a essa
altura.
— Eu não queria perturbar os seus pensamentos.
— Na realidade, neste momento não estou pensando em nada específico.
Estou com a cabeça no ar.
— Por que você quer passar seus últimos momentos no Módulo do Co-
nhecimento? — perguntou a Águia.
Nicole riu.
— É a primeira vez que ouço uma pergunta pré-programada. Já posso ver
minha resposta registrada num desses intermináveis arquivos, classificada como
"Morte: Seres Humanos", e em outras categorias correlatas.
A Águia não disse nada.
— Quando Richard e eu ficamos perdidos em Nova York, há muitos anos,
e pensávamos que não teríamos muita chance de escapar, conversávamos sobre o
que gostaríamos de fazer nos últimos momentos anteriores à nossa morte.
Concordamos que nossa primeira escolha seria fazer amor, e a segunda aprender
alguma coisa nova, para sentir a emoção da descoberta pela última vez...
— É um conceito muito avançado — comentou a Águia.
— E muito prático também — disse Nicole. — Pode ser que eu esteja
errada, mas creio que vou achar esse Módulo do Conhecimento tão intrigante que
nem vou me dar conta de que os últimos segundos da minha vida estão
próximos... Estou tão comprometida com esta ação que creio que seria tomada de
medo se não estivesse ativamente engajada durante minhas últimas horas.
O Módulo do Conhecimento enchia agora toda a janela.
— Antes de entrar — disse a Águia —, quero dar umas informações sobre
este lugar... O módulo esférico consiste na verdade de três domínios concêntricos
separados, cada um com um objetivo diferente. A região menor e mais externa
concentra-se no conhecimento associado ao presente, ou ao presente próximo. A
região do meio é onde estão registradas todas as informações históricas sobre
esta parte da galáxia. E a esfera grande e interna contém todos os modelos de
previsão do futuro, e também seqüências aleatórias das próximas eras...
— Pensei que você nunca tivesse entrado aí — disse Nicole.
— E não entrei — replicou a Águia. — Mas meu banco de dados do
Módulo do Conhecimento foi atualizado e ampliado na noite passada...
Um porta na superfície mais externa da esfera abriu-se e o veículo espa-
cial começou a entrar.
— Só um minuto — disse Nicole. — Certamente não sairei viva desse
módulo, não é?
— É — respondeu a Águia.
— Então quer por favor virar o veículo bem devagar para eu poder dar
uma última olhada no mundo exterior?
O veículo deu uma guinada lenta, e Nicole, sentada na beira do banco,
ficou olhando fixamente pela janela. Viu os outros módulos esféricos do Nodo, os
corredores de transporte e, a distância, a Estrela do Mar, onde sua família e
amigos arrumavam suas coisas para serem transferidos. Em uma certa
orientação, a estrela amarela Tau Ceti, muito semelhante ao Sol, era o único
objeto grande na janela e, apesar do seu brilho e da luz espalhada do Nodo,
Nicole pôde distinguir algumas outras estrelas contra a escuridão do espaço.
Nada neste cenário será mudado depois da minha morte, pensou Nicole. Só
haverá um par de olhos a menos para observar seu esplendor. E uma coleção a
menos de químicas englobadas em nível de consciência para imaginar o significado
de tudo isso.
— Obrigada — disse Nicole, depois que o veículo deu a volta completa. —
Agora podemos continuar.

11
Os veículos espaciais que entravam no Módulo do Conhecimento e os
tubos vindos dos outros três módulos terminavam em uma longa e fina estação
localizada de um lado do anel que rodeava completamente a imensa esfera.
— Há apenas duas entradas, com uma separação de cento e oitenta
graus, em cada um dos três domínios concêntricos do Módulo do Conhecimento
— disse a Águia, enquanto os dois eram rapidamente carregados ao longo do anel
por uma calçada rolante. À direita deles ficava a superfície transparente externa
do módulo. À esquerda havia uma parede de cor creme, sem janelas.
— Será que vou poder tirar logo minha roupa espacial e meu capacete? —
perguntou Nicole da sua cadeira de rodas.
— Vai, assim que entrarmos nas exposições — disse a Águia. — Eu tive de
especificar alguns pontos para você visitar, pois eles não poderiam mudar a
atmosfera de todo o módulo da noite para o dia. Nesses lugares, você não vai
precisar da sua roupa espacial.
— Então você já selecionou o que vamos ver?
— Foi inevitável. Este lugar é imenso, muito maior do que um dos
hemicilindros de Rama, e absolutamente apinhado de informações... Tentei
programar nossa visita baseado no que sei sobre os seus interesses, e no nosso
limite de tempo... Se houver outras coisas que...
— Não, não — disse Nicole. — Eu não teria idéia do que pedir para ver.
Tenho certeza de que você escolheu o melhor...
Os dois aproximaram-se de um lugar onde a calçada rolante parou e um
amplo corredor saía para a esquerda.
— A propósito — falou a Águia —, não expliquei a você que a nossa visita
é restrita às duas regiões externas... O Domínio das Previsões está fora dos
nossos limites.
— Por quê? — perguntou Nicole, movimentando sua cadeira de rodas pelo
corredor, ao lado da Águia.
— Não estou bem certo. Mas realmente não importa, se é que compreendi
seu objetivo ao vir aqui. Você vai ter muita coisa com que ocupar sua cabeça nos
dois domínios disponíveis.
Em frente a eles havia uma alta parede branca. Quando a Águia e Nicole
se aproximaram, uma porta larga da parede abriu-se para dentro, deixando ver
uma sala circular com uma esfera de dez metros de diâmetro no centro. A parede
e o teto da sala eram coalhados de pequenos acessórios ou equipamentos e
muitas marcações estranhas. A Águia disse a Nicole que não tinha idéia do que
aquilo significava.
— O que me disseram — falou o alienígena — é que a orientação para sua
visita a este domínio deve ocorrer dentro daquela esfera em frente a nós.
A esfera cintilante era dividida ao meio. A metade superior da bola oca
levantou-se o suficiente para a Águia e Nicole passarem por baixo até o interior
da esfera. Depois que estavam dentro, essa parte superior voltou à posição
original e os dois se viram completamente encerrados ali.
Durante uns dois segundos apenas ficou escuro. Em seguida, luzes espa-
lhadas iluminaram a parte lateral da esfera que ficava em frente a eles.
— A esfera é decorada com muitos detalhes — comentou Nicole.
— O que nós estamos vendo — falou a Águia — é um modelo do domínio
inteiro. Estamos olhando de dentro, como se estivéssemos bem no centro do
Módulo do Conhecimento e nenhum dos dois domínios internos existisse... Você
vai notar que, graças à disposição dos objetos ao longo e contra a superfície, não
só à nossa frente e atrás, mas também acima e abaixo de nós, nada interfere no
espaço vazio central além de uma determinada distância. A parede externa do
próximo domínio concêntrico localiza-se naquele ponto do módulo real... Agora,
as luzes vão lhe mostrar, no modelo, aonde iremos nas próximas horas.
Um grande setor da superfície da esfera interna em frente a eles, cerca de
trinta por cento de toda a área, ficou subitamente visível sob uma luz suave.
— Tudo o que se encontra na região iluminada — disse a Águia fazendo
um gesto circular com a mão — se associa à viagem espacial. Limitaremos nossa
visita a essa porção do domínio... A luz vermelha que pisca naquela superfície em
frente a nós mostra onde estamos no momento...
Quando Nicole olhou, uma linha de luzes vermelhas moveu-se rapida-
mente na superfície, parando num ponto acima da sua cabeça, onde havia uma
imagem da galáxia Via Láctea.
— Iremos primeiro à seção de geografia — disse a Águia, apontando para o
lugar onde a fileira de luzes tinha parado —, depois para a engenharia e
finalmente para a biologia... Depois de uma pequena pausa, seguiremos para o
segundo domínio... Alguma pergunta antes de começarmos?
Eles subiram por uma espécie de rampa num pequeno carro semelhante
ao que haviam usado no Módulo de Habitação quando foram visitar Simone e
Michael. Embora o caminho em frente e atrás deles fosse iluminado, o que
estivesse ao lado do carro ficava sempre no escuro.
— O que existe à nossa volta? — perguntou Nicole, uns dez minutos
depois de entrarem no carro.
— Em grande parte, armazenagem de dados, além de umas pequenas
exposições — disse a Águia. — Está escuro para você não se distrair sem
necessidade.
Mais tarde, eles pararam ao lado de outra porta alta.
— A sala em que você vai entrar agora — disse a Águia, montando a
cadeira de rodas de Nicole — é a maior sala deste domínio. Mede meio quilômetro
no seu ponto mais largo. Dentro há atualmente um modelo da Via-Láctea.
Quando entrarmos, vamos pisar numa plataforma móvel que nos levará a
qualquer ponto da sala sob o nosso comando... Vai estar escuro dentro, salvo
algumas demonstrações e estruturas acima e abaixo de nós. Talvez você tenha a
sensação de que vai cair, mas lembre-se de que está sem peso...
A vista da plataforma era espetacular. Mesmo antes de passarem para o
centro da imensa sala, Nicole ficou maravilhada. As luzes representando as
estrelas espalhavam-se pela escuridão que os rodeava. Estrelas simples, binárias,
triplas. Pequenas estrelas amarelas fixas, estrelas vermelhas gigantes, estrelas
anãs brancas passavam diretamente sobre uma supernova em explosão. Em
todos os lugares e em todas as direções havia alguma coisa diferente e fascinante
a ser vista.
Depois de uns minutos, a Águia parou a plataforma.
— Achei que seria bom começarmos aqui, onde o território lhe é familiar
— disse.
Com uma ponteira de raios de luz múltiplos, ele indicou uma estrela ama-
rela próxima.
— Você reconhece este lugar?
Nicole ainda olhava as infinitas luzes em todas as direções.
— Todas as estrelas de cem bilhões de anos da galáxia estão realmente
modeladas nesta sala? — perguntou ela.
— Não — respondeu a Águia. — O que você está vendo agora é apenas
uma grande seção da galáxia... Explicarei mais daqui a pouco, quando chegarmos
no topo da sala e virmos lá embaixo a planície galática central... Eu trouxe você a
esse lugar específico por outra razão.
Nicole reconheceu o Sol e a constelação do Centauro, sua vizinha mais
próxima, e até as estrelas Barnard e Sírius. Ela não se lembrava dos nomes de
grande parte das estrelas que ficavam perto do Sol, mas conseguiu localizar outra
estrela amarela solitária não muito distante.
— É Tau Ceti? — perguntou.
— É sim — respondeu a Águia.
Tau Ceti parece muito perto do Sol, pensou Nicole, mas na realidade fica
muito distante. O que significa que a galáxia é maior do que qualquer de nós
poderia supor.
— A distância do Sol até Tau Ceti — disse a Águia, como se estivesse
lendo o pensamento dela — é de um décimo de milésimo da extensão total da
galáxia.
Nicole sacudiu a cabeça quando a plataforma começou a afastar-se do Sol
e de Tau Ceti. Existe muito mais coisa do que eu imaginava, pensou. Até mesmo
minhas viagens foram feitas em uma ínfima área do espaço.
Fora da plataforma móvel, à direita, a Águia projetou um desenho em três
dimensões de um sólido retangular. Manipulando o aparelhinho preto que
segurava, tornou o volume do sólido maior e menor.
— Há várias formas diferentes de controlarmos o que está projetado nesta
sala — disse a Águia. — Com este aparelho, podemos mudar a escala e focalizar
de perto qualquer região da galáxia... Vou lhe mostrar. Vamos supor que eu
ponha a luz vermelha aqui no meio da nebulosa Órion, o que marcará a posição
inicial desejada da plataforma. Agora vou expandir essa forma geométrica para
que caibam aí umas mil estrelas... Então, pronto...
A sala tornou-se um breu durante um segundo. De repente, Nicole ficou
estupefata de novo, mas dessa vez com um conjunto diferente de luzes. As
estrelas aglomeradas ou individuais eram definidas muito mais claramente. A
Águia explicou que a sala toda estava agora contida dentro da nebulosa Órion, e
que a maior dimensão da sala equivalia agora a poucas centenas de anos-luz, em
vez de sessenta mil anos-luz, como antes.
— Esta área específica é um viveiro estelar, onde as estrelas e os planetas
acabaram de nascer — continuou a Águia, movendo a plataforma para a direita.
— Aqui está, por exemplo, um sistema estelar infantil, no seu primeiro estágio de
formação, com muitas das características apresentadas pelo seu sistema solar há
quatro e meio bilhões de anos.
A Águia inseriu um pequeno sólido em volta de uma das estrelas, e um
instante depois a sala foi tomada da luz de um sol jovem. Nicole ficou observando
uma gigantesca tempestade solar atravessar a superfície. Uma explosão na coroa
solar, acima da sua cabeça, projetou raios alaranjados e vermelhos na escuridão
do espaço.
A Águia virou a plataforma para um corpo muito menor e mais distante,
um entre uma dúzia de agregações de massa que podiam ser identificadas na
região em volta da jovem estrela. Aquele planeta específico mostrava uma
superfície derretida e ligeiramente avermelhada. Enquanto observavam, um
grande projétil estilhaçou-se no líquido quente, espalhando material da superfície
e criando um movimento ondulado em todas as direções.
— Segundo nossos dados estatísticos — disse a Águia —, esse planeta tem
uma boa probabilidade de criar vida depois de uns bilhões de anos de evolução,
quando o período de bombardeamento e formação for concluído. Ele terá uma
estrela hospedeira solitária e permanente, uma atmosfera com suficiente variação
climática, e todos os ingredientes químicos... Aqui, veja você mesma. Mantenha
os olhos fixos naquele planeta. Vou ativar uma rotina especial que explorará
rapidamente metade do fundo da carta periódica e mostrará dados quantitativos
a respeito do número comparativo dos diferentes tipos de átomos existentes
naquela massa em ebulição...
Uma magnífica demonstração visual apareceu no escuridão acima do
jovem planeta. Cada átomo contido na sua massa era indicado por uma cor
específica e por seu número de nêutrons e prótons. O tamanho do átomo
mostrava sua freqüência comparativa na mistura.
— Note que há significativas densidades de carbono, nitrogênio, halógenos
e ferro — dizia a Águia. — Esses são os átomos críticos. Foram criados por uma
supernova próxima, num passado não muito distante, e enriqueceram as
possibilidades organizacionais desse corpo em formação... Sem uma química
complexa não pode haver vida eficiente... Por exemplo, se o ferro não fosse o
átomo central da hemoglobina no seu planeta, o sistema de distribuição de
oxigênio em muitas formas de vida avançadas seria muito menos eficiente...
Então o processo continua, pensou Nicole, era após era. As estrelas e
planetas formam-se da poeira cósmica. Poucos planetas contêm a matéria química
certa que poderia acabar produzindo vida e inteligência. Mas o que organiza esse
processo? Que mão invisível faz com que essas químicas se tornem cada vez mais
complexas e estruturadas no tempo, até atingirem o estado de autoconsciência?
Haverá alguma lei natural ainda não formulada sobre a matéria organizando-se
segundo leis específicas?
A Águia agora explicava como era improvável que a vida evoluísse em
sistemas estelares que contivessem apenas átomos simples como o hidrogênio e o
hélio, sem nenhum dos átomos mais complexos, de ordem mais alta, forjados
pela morte das estrelas nas explosões das supernovas. Nicole começou a sentir-se
insignificante. E a ansiar por alguma coisa na escala humana.
— Até que ponto você pode diminuir esta sala? — perguntou de repente,
rindo da sua própria frase canhestra. — Para ser mais precisa, qual é a resolução
final desse sistema?
— O maior nível possível de detalhe — disse a Águia — é numa escala de
4096 para 1. Em outro extremo, podemos dispor um cenário intergalático com a
dimensão máxima de cinqüenta milhões de anos-luz... Lembre-se de que nosso
interesse por atividades fora da galáxia é limitado...
Nicole fazia seus próprios cálculos mentais.
— Já que a maior dimensão desta sala é meio quilômetro, no seu nível de
resolução mais alto seria possível caber nela um pedaço de terra de apro-
ximadamente dois mil quilômetros de comprimento?
— Seria — respondeu a Águia. — Mas por que está perguntando isso?
Nicole estava cada vez mais excitada.
— Nós podemos focalizar a Terra de perto? Podemos sobrevoar a França?
— Creio que sim — respondeu a Águia, um pouco hesitante. — Mas não
foi isso que planejei...
— Isso seria muito importante para mim.
— Tudo bem — falou a Águia. — Vai levar uns dois segundos, mas dá
para fazer...

O vôo começou sobre o Canal da Mancha. A Águia e Nicole já estavam


sentadas na plataforma no alto da sala escura por uns três segundos quando
viram uma explosão de luz logo abaixo. Depois que os olhos de Nicole se
adaptaram, ela reconheceu a água azul e a forma da costa da Normandia. A
distância, o Sena desaguava no Canal.
Nicole pediu que a Águia imobilizasse a plataforma sobre a foz do Sena e
depois a movesse lentamente na direção de Paris. À vista daquela geografia
familiar, Nicole ficou muito emocionada. Lembrou-se claramente dos dias da sua
juventude, quando andava livremente por aquela região com seu querido pai.
O modelo abaixo deles era soberbo. Chegava a ter três dimensões quando
o tamanho dos acidentes geográficos e das construções abaixo ultrapassava os
limites de resolução do sistema alienígena. Em Rouen, a famosa igreja onde
Joana d'Arc fora temporariamente repudiada, tinha meio centímetro de altura e
dois centímetros de comprimento. Ao aproximar-se de Paris, Nicole viu a forma
familiar do Arco do Triunfo elevando-se da superfície do modelo.
Quando chegaram a Paris, a plataforma pairou alguns segundos sobre o
16º arrondissement, e os olhos de Nicole focalizaram rapidamente um edifício. Ao
ver aquele edifício, um moderno centro de convenções, lembrou-se de um
momento pungente da sua adolescência. Para minha preciosa filha, Nicole, e todos
os jovens do mundo, ofereço uma simples percepção, dizia o pai, quase no final do
seu discurso ao receber o prêmio Mary Renault. Eu descobri ao longo da vida
duas coisas de valor inestimável: aprender e amar. Nada mais, seja fama, poder,
ou realização por si só, têm esse mesmo valor duradouro.
Uma imagem do pai surgiu na lembrança de Nicole. Obrigada, papai, pen-
sou ela. Obrigada por ter cuidado tão bem de mim depois que a mamãe morreu.
Obrigada por tudo o que você me ensinou...
Uma saudade forte e doída fez com que seus olhos se enchessem de
lágrimas. Por um instante, ela voltou a ser criança, querendo desesperadamente
falar com seu pai sobre a iminência da morte. De forma lenta e deliberada, Nicole
lutou contra as emoções que ameaçavam dominá-la. Não era isso que eu queria
sentir agora, disse a si mesma com dificuldade. Eu queria deixar tudo isso para
trás...
Nicole afastou os olhos do modelo da França abaixo dela.
— O que foi? — perguntou a Águia. Ela forçou um sorriso.
— Eu queria ver mais uma coisa. Uma coisa espetacular... e nova. Que tal
uma cidade das octoaranhas?
— Tem certeza?
Nicole fez um gesto afirmativo.
A sala escureceu imediatamente. Dois segundos depois, quando Nicole se
virou para o lado da luz, a plataforma sobrevoava um vasto oceano verde-escuro.
— Onde estamos? E para onde estamos indo?
— Estamos agora a uma distância de cerca de trinta anos-luz do Sol, no
primeiro planeta oceânico colonizado pelas octoaranhas depois do desapa-
recimento dos precursores... Estamos sobre o mar, é claro, a uns duzentos
quilômetros da mais famosa cidade das octoaranhas.
Nicole sentiu uma onda de excitação quando a plataforma focalizou de
perto o mar. A distância, ela podia ver o vago contorno de alguns prédios. Por um
instante, imaginou que era uma viajante espacial aventureira, chegando naquele
planeta pela primeira vez, ansiosa para ver as maravilhas das fabulosas cidades
que outros viajantes interestelares haviam descrito.
Que maravilha!, pensou Nicole, prestando atenção por um instante ao
oceano abaixo dela.
— Por que a água é tão verde? — perguntou à Águia.
— O ponto mais alto desta parte do oceano é um rico ecossistema próprio,
dominado por um gene especial de planta fotossintetizadora cujas várias
espécies, todas verdes, fornecem abrigo e alimento para dez milhões de cria-
turas... Algumas plantas individuais cobrem mais de um quilômetro quadrado de
território... Os precursores criaram esse domínio... As octoaranhas o descobriram
e aprimoraram...
Quando Nicole olhou, a plataforma estava quase sobre a cidade, com suas
centenas de prédios de vários formatos e tamanhos. Grande parte dos prédios da
cidade das octoaranhas era construída na terra, mas alguns pareciam flutuar na
água. O conjunto mais denso dessas estruturas situava-se ao longo de uma
península estreita, que se prolongava até o mar. No final da península viam-se
imensas cúpulas verdes, muito próximas umas das outras, dominando o
horizonte da cidade.
Na periferia via-se um amplo círculo separado com oito cúpulas menores,
todas ligadas por modelos lineares de transporte às cúpulas centrais. Essas
cúpulas eram de cores diferentes, e quase todos os prédios da seção da cidade
que rodeava cada uma delas eram pintados da mesma cor. No oceano, por
exemplo, a brilhante cúpula vermelha tinha oito longas barras vermelhas, finas e
longas, que representavam outros prédios e se estendiam para fora do mar num
padrão geométrico e equilibrado.
Todos os prédios da cidade ficavam dentro do círculo definido pelas oito
cúpulas coloridas. Nicole imediatamente encantou-se por uma estranha estrutura
marrom que flutuava na água, parecendo quase tão grande quanto as imensas
cúpulas centrais. Do alto, o prédio retangular dava a idéia de vinte camadas de
teias trançadas e densamente comprimidas; materiais de ninhos de pássaros
enchiam os vãos existentes em cada uma das centenas de células.
— O que é aquilo? — perguntou Nicole, apontando da plataforma.
— Essas octoaranhas são muito avançadas em termos de microbiologia —
respondeu a Águia. — Aquela estrutura, que se estende mais dez metros para
dentro do mar, tem mais de mil habitats diferentes de espécies microscópicas... O
que você está vendo é basicamente uma estação de suprimento, contendo a
população excedente desses seres minúsculos. Caso as octoaranhas precisem de
algumas dessas criaturas, vêm solicitá-las nesse prédio.
Nicole adorou aquela arquitetura inusitada. Podia imaginar-se andando
nas ruas e olhando espantada para uma variedade muito maior de criaturas do
que na Cidade de Esmeralda. Eu quero ir lá, disse para si mesma. Quero ver...
Pediu para a Águia movimentar a plataforma diretamente sobre uma das
grandes cúpulas verdes.
— O interior desta cúpula é semelhante ao da Cidade de Esmeralda? —
perguntou Nicole.
— Não. A escala é completamente diferente... O reino das octoaranhas em
Rama era um microcosmo comprimido. As funções, normalmente separadas nos
seus planetas por centenas de quilômetros de distância, devido às limitações de
espaço, tiveram de ser localizadas mais ou menos na mesma área... Nas colônias
avançadas dos genes das octoaranhas, por exemplo, as formas alternativas não
vivem em uma comunidade fora da cidade, e sim em um planeta completamente
diferente.
Nicole sorriu. Um planeta cheio de octoaranhas alternativas. Devia ser uma
visão e tanto, pensou.
— ...Esta cidade específica abriga mais de dezoito milhões de octoaranhas,
considerando todas as diferentes variações morfológicas — continuou a Águia. —
É também a capital administrativa deste planeta. Dentro de seus portões vivem
dez bilhões de criaturas, que representam cinqüenta mil espécies... Em extensão,
a cidade equivale mais ou menos a Los Angeles ou a qualquer grande área
urbana da sua Terra...
A Águia continuou a dissertar sobre fatos e estatísticas da cidade das
octoaranhas vista da plataforma. Mas Nicole pensava em outra coisa.
— Archie viveu aqui? — perguntou, interrompendo o monólogo enci-
clopédico do seu companheiro alienígena. — Ou o dr. Azul ou qualquer das
octoaranhas que nós conhecemos?
— Não — respondeu a Águia. — Na verdade, elas nem vieram deste
planeta ou desse sistema estelar... As octoaranhas de Rama vieram da chamada
"colônia de fronteira", especialmente projetada em termos genéticos para
intercambiar com outras formas de vida inteligentes...
Nicole sacudiu a cabeça e sorriu. É claro, eu devia ter suposto que elas
eram especiais, disse para si mesma.
Estava ficando cansada. Depois de alguns minutos, agradeceu à Águia e
disse que já vira o suficiente da cidade das octoaranhas. Em um instante, as
cúpulas, a estrutura marrom de teias trançadas e o mar verde-escuro desa-
pareceram, e a Águia reconduziu a plataforma para o alto da imensa sala.
Abaixo de Nicole, a Via-Láctea limitava-se a um pequeno espaço no centro
da sala.
— O universo é uma seqüência de vizinhanças e vácuos em permanente
expansão — dizia a Águia. — Veja o vazio em volta da Via-Láctea. Com exceção
das duas Nuvens de Magalhães, que não são realmente classificadas como
galáxias, Andrômeda é nossa vizinha galática mais próxima, embora esteja muito
distante. A maior distância da Via-Láctea em toda a sua extensão é apenas um
vigésimo da distância até Andrômeda.
Nicole não estava pensando em Andrômeda. Estava tomada de pensa-
mentos filosóficos sobre a vida e os diferentes mundos, sobre as cidades e sobre o
provável alcance das criaturas feitas de simples átomos que haviam evoluído,
com ou sem a ajuda de seres superiores, até se tornarem seres conscientes. Ela
saboreava aquele momento, sabendo que muito em breve não estaria mais
imaginando coisas que tanto haviam enriquecido sua vida.

12
— Nós passamos tanto tempo naquela exposição — disse a Águia quando
terminou o exame — que acho melhor reorganizarmos nossa visita. Os dois
estavam sentados lado a lado no carro.
— Esta é a sua forma diplomática de dizer que meu coração está enfra-
quecendo mais depressa do que você esperava? — perguntou Nicole, forçando um
sorriso.
— Não exatamente — disse a Águia. — De fato, passamos lá o dobro do
tempo que eu planejava... Não pensei que íamos sobrevoar a França, por
exemplo, nem visitar a cidade das octoaranhas...
— Aquela parte foi maravilhosa — disse Nicole. — Eu gostaria de ir lá de
novo, tendo o dr. Azul como guia, e conhecer mais sobre a forma de vida delas...
— Então você gostou mais da cidade das octoaranhas do que da visão
espetacular das estrelas?
— Eu não diria isso — replicou Nicole. — Foi tudo fantástico... O que eu vi
já comprovou que escolhi o lugar certo para... — Nicole não terminou a frase. —
Enquanto estava na plataforma, percebi que a morte não só é o fim do
pensamento e da consciência como também do sentimento... Não sei por que isso
não era óbvio para mim antes.
Houve um breve silêncio.
— Então, meu amigo — disse Nicole animada —, para onde iremos agora?
— Achei que devíamos ir para a engenharia, onde você poderá ver modelos
dos Nodos, dos transportadores e de outras naves espaciais. Depois disso, se
ainda tivermos tempo, podemos ir à seção de biologia. Alguns dos seus netos
gerados fora do útero vivem naquela região, em um dos nossos melhores habitats,
semelhantes à Terra. Perto de lá há uma comunidade onde vivem aquelas enguias
ou cobras esquisitas que encontramos uma vez em Nodo. E há também uma
exposição taxonômica, comparando e contrastando fisicamente todos os viajantes
do espaço que foram estudados nessa região...
— Parece tudo incrível — disse Nicole, dando uma risada súbita. — O
cérebro humano é espantoso... Imagine o que me veio à cabeça... A primeira linha
do poema de Andrew Marvell: "Para sua tímida amada". "Tivéssemos nós muitos
mundos de tempo, não seria um crime essa timidez..." De qualquer forma, eu
queria dizer que já que não temos tempo para sempre, vamos primeiro à
exposição do transportador. Eu gostaria de ver a nave onde Patrick, Nai, Galileu e
os outros irão viver... Depois disso, veremos quanto tempo nos resta.
O carro começou a mover-se. Ao notar que a Águia não havia dito uma
palavra sobre os resultados do seu exame, o medo de Nicole voltou, dessa vez
mais forte. O túmulo é um lugar bom e íntimo, lembrou-se ela. Mas acho que
ninguém vai lá por escolha.

Eles estavam juntos na superfície plana do modelo do transportador.


— Este é um modelo em escala de um para sessenta e quatro — disse a
Águia. — Dá para sentir como o transportador é grande.
Nicole olhou da sua cadeira de rodas.
— Meu Deus, essa nave deve ter quase um quilômetro de comprimento.
— Você calculou mal — disse a Águia. — O topo do atual transportador
tem cerca de quarenta quilômetros de comprimento e quinze de largura.
— E cada uma dessas bolhas tem um ambiente diferente?
— Tem. A atmosfera e outras condições são controladas pelos equipa-
mentos que ficam na superfície, e também pelos outros sistemas de engenharia lá
embaixo, no corpo principal da nave espacial... Cada um dos habitats tem sua
própria velocidade de rotação para criar a gravidade adequada... Existem
divisórias para separar as espécies, se necessário, dentro de uma das bolhas. Os
residentes da Estrela do Mar foram colocados no mesmo domínio, pois eles se
sentem bem em condições ambientais mais ou menos iguais. Mas não têm acesso
uns aos outros.
Eles estavam descendo por um caminho entre os equipamentos e as
bolhas.
— Alguns desses habitats — disse Nicole, examinando uma pequena
saliência oval que se elevava a apenas uns cinco metros da nave — parecem
muito pequenos e apertados para abrigar muitos indivíduos...
— Há alguns viajantes espaciais muito pequenos — disse a Águia. — Uma
espécie, de um sistema estelar não muito distante do seu, tem só um milímetro
de comprimento. A maior nave espacial deles não é nem do tamanho deste nosso
carro.
Nicole tentou imaginar um grupo inteligente de formigas ou pulgões
trabalhando em conjunto para construir uma nave espacial, e sorriu.
— E todos esses transportadores viajam só de um Nodo para outro? —
perguntou Nicole, mudando de assunto.
— Basicamente — respondeu a Águia. — Quando não há mais criaturas
vivas em uma bolha específica, aquele habitat é recondicionado em um dos
Nodos.
— Como no caso de Rama — disse Nicole.
— De certa forma — disse a Águia —, mas com algumas diferenças signi-
ficativas. Nós estamos sempre estudando qualquer espécie existente em uma
nave espacial da classe de Rama. Tentamos colocá-las no ambiente mais realista
possível, para podermos observá-las em condições naturais. Ao contrário, não
precisamos de mais nenhum dado sobre as criaturas designadas para o
transportador. Por isso não interferimos nos problemas deles.
— A não ser para impedir a reprodução... A propósito, na sua ética,
impedir a reprodução é mais humano, ou qualquer outra palavra equivalente, do
que exterminar criaturas diretamente?
— Nós acreditamos que sim — respondeu a Águia.
Eles chegaram a um local no alto do modelo do transportador, onde o
caminho saía para a esquerda, voltando para a rampa e os corredores do Módulo
do Conhecimento.
— Acho que consegui o que queria aqui — disse Nicole, hesitando por um
instante. — Mas ainda tenho umas duas perguntas a fazer.
— Pode perguntar — disse a Águia.
— Partindo do princípio de que a descrição de São Michael sobre a fina-
lidade de Rama, Nodo e tudo o mais está correta, vocês não estão transtornando e
alterando o próprio processo que observam? Parece que só o fato de estarem aqui,
interagindo...
— Você tem razão — disse a Águia. — Nossa presença aqui causa um
ligeiro impacto no curso da evolução. É uma situação análoga ao Princípio de
Incerteza de Heisenberg, da física... Não se pode observar sem influenciar...
Entretanto, nossas interações podem ser consideradas pelo Monitor Motriz e
levadas em conta na organização do processo como um todo. E temos regras que
minimizam nossos transtornos à evolução natural...
— Gostaria que Richard tivesse ouvido comigo a explicação de São
Michael sobre tudo — disse Nicole. — Ele teria ficado fascinado e, estou certa,
teria feito perguntas excelentes.
A Águia não respondeu. Nicole suspirou.
— O que vamos fazer agora, Senhor Diretor da Visita? — disse ela.
— Almoçar — respondeu a Águia. — Nós temos no carro uns dois sanduí-
ches, um pouco de água e aquela fruta das octoaranhas de que você tanto gosta.
Nicole riu e virou sua cadeira de rodas para o corredor.
— Você pensa em tudo — disse.

— Richard não acreditava no Céu — disse Nicole quando a Águia comple-


tou outro exame. — Mas se ele pudesse ter construído sua vida perfeita no além
teria incluído um lugar como este.
A Águia estava estudando as estranhas curvas que apareciam no monitor
que segurava na mão.
— Acho que seria uma boa idéia — disse, olhando para Nicole — deixar de
lado uma parte da visita... e passar diretamente para as exposições mais
importantes do próximo domínio.
— Meu exame está ruim, não é? — disse Nicole.
A dor ocasional que sentiu no peito antes de visitar a França e a cidade
das octoaranhas tornou-se constante.
E o medo também tornou-se constante. Entre cada palavra, cada pensa-
mento, ela tinha a exata consciência de que sua morte estava próxima. De que
você tem medo?, perguntou a si mesma. Como o nada pode ser tão ruim assim?
Mas seu medo persistia.
A Águia explicou que não havia tempo para uma orientação no segundo
domínio. Eles atravessaram os portões para a segunda esfera concêntrica e
viajaram durante uns dez minutos.
— O que sobressai neste domínio — dizia a Águia enquanto guiava — é
como tudo muda no tempo. Há uma seção separada para cada elemento
concebível na galáxia que seja afetado por, ou que afete, sua evolução total...
Achei que você ficaria especialmente interessada por esta primeira exposição.
A sala era semelhante àquela onde a Águia e Nicole tinham visto a Via
Láctea, só que muito menor. Mais uma vez, eles subiram numa plataforma móvel
para se moverem em volta da sala escura.
— O que você vai ver requer uma explicação — disse a Águia. — É
essencial um resumo do tempo da evolução das civilizações que viajaram no
espaço em uma região galática contendo o seu Sol e cerca de dez milhões de
outros sistemas estelares. Isto significa que é aproximadamente um décimo de
milésimo da galáxia inteira, mas o que você vai ver é uma representação da
galáxia como um todo... Você não verá nenhuma estrela, nem planeta, nem
qualquer outra estrutura física nessa exposição, embora a localização deles seja
considerada na concepção do modelo. Depois que começarmos, você vai ver luzes
representando um sistema estelar no qual uma espécie biológica tornou-se
viajante espacial, pelo menos por ter colocado uma nave em órbita em volta do
seu próprio planeta... Enquanto o sistema estelar continuar a ser um centro vivo
para viajantes espaciais ativos, a luz daquele local específico se manterá
brilhando... Vou começar a exposição há cerca de dez bilhões de anos, logo depois
que a atual galáxia da Via-Láctea foi inicialmente formada. Como havia muita
instabilidade e rápidas mudanças no início, não surgiu nenhum viajante espacial
por longo tempo. Portanto, nos primeiros cinco milhões de anos até a formação
do seu sistema solar, vou expor as imagens rapidamente, numa velocidade de
vinte milhões de anos por segundo... Para fins de referência, a Terra começará a
incorporar-se a esse processo cerca de quatro minutos depois. Vou interromper a
exposição nessa época.
Eles estavam sobre a plataforma na sala grande, a Águia de pé e Nicole na
cadeira de rodas. Havia apenas uma pequena luz na plataforma, que dava para
os dois se verem. Depois de olhar à sua volta na total escuridão durante mais de
trinta segundos, Nicole quebrou o silêncio.
— Você começou o processo? Não aconteceu nada.
— Exatamente — respondeu a Águia. — O que nós observamos, olhando
as outras galáxias muito mais velhas do que a Via-Láctea, foi que não surgiu
nenhuma vida até a galáxia estabelecer-se e desenvolver zonas estáveis. A vida
requer algumas estrelas constantes em um ambiente relativamente benigno e
uma evolução estelar, que resultam na criação dos elementos críticos no quadro
periódico, tão importantes em todos os processos químicos. Se a matéria toda for
composta de partículas subatômicas e de átomos mais simples, a probabilidade
de vida de qualquer tipo de vida é muito, muito pequena. Só depois que as
estrelas grandes completam seus ciclos de vida e produzem elementos mais
complexos, como nitrogênio, carbono, ferro e magnésio, é que haverá maior
probabilidade de surgimento de vida.
Abaixo deles brilhou uma luz temporária, mas durante os quatro pri-
meiros minutos só apareceram umas centenas de luzes esparsas, e apenas uma
durou mais de três segundos.
— Agora chegamos à época da formação da Terra e do sistema solar —
disse a Águia, preparando-se para ativar de novo a exposição.
— Espere um instante, por favor — falou Nicole. — Quero ter certeza de
que compreendi... Você acabou de me mostrar que na primeira metade da
história galática, quando não havia a Terra nem o Sol, relativamente poucos
viajantes espaciais passaram pela região em volta da qual o Sol iria mais tarde se
formar?... E que quase todos esses viajantes eram espécies cuja duração de vida
foi de menos de vinte milhões de anos, e que só uma conseguiu sobreviver por
sessenta milhões de anos?
— Muito bem — disse a Águia. — Agora vou acrescentar outro parâmetro
à exposição... Se o viajante espacial conseguiu viajar fora do seu próprio sistema
estelar e estabeleceu uma presença permanente em outro sistema, o que vocês
humanos ainda não conseguiram, a exposição reconhece essa expansão
iluminando o outro sistema também, com uma luz da mesma cor. Assim,
poderemos seguir a expansão de uma espécie determinada de viajante espacial...
Agora também vou mudar a velocidade da exposição, de dois para dez milhões de
anos por segundo...
No período seguinte, em meio minuto, uma luz vermelha apareceu num
canto da sala e foi rodeada por centenas de outras luzes da mesma cor seis a oito
segundos depois. Elas brilhavam com tal intensidade que o resto da sala, com
sua ocasional luz solitária, parecia escuro e desinteressante. De repente, o campo
de luzes vermelhas desapareceu em uma fração de segundo. Primeiro, o núcleo
interno do modelo vermelho escureceu, deixando pequenos grupos de luzes nas
extremidades do que tinha sido uma região gigantesca. Depois, num piscar de
olhos, todas as luzes vermelhas desapareceram também.
A cabeça de Nicole estava funcionando a todo vapor enquanto ela obser-
vava as luzes à sua volta. Deve ser uma história interessante, pensou, ao refletir
sobre as luzes vermelhas. Imagine uma civilização espalhada por uma região com
centenas de estrelas, e de repente aquela espécie desaparece... A lição é
inevitável... A imortalidade só existe como conceito, não como realidade.
Nicole deu uma olhada em volta. Um modelo geral recorrente se desen-
volvia à medida que mais e mais regiões apresentavam luzes ocasionais, indi-
cando o surgimento de novas civilizações de viajantes espaciais. Porém, a maioria
desses viajantes durava em média um breve momento, muito menos do que um
segundo completo, e mesmo aqueles que se espalhavam e colonizavam sistemas
estelares contíguos só raramente chegavam na proximidade de uma luz que
indicava a presença de outra espécie de viajante espacial.
Existe inteligência e viagem espacial na nossa parte da galáxia desde antes
de existir a Terra, pensou Nicole... Mas muito poucas dessas criaturas avançadas
tiveram a emoção do contato mantido com seus pares... Portanto, a solidão também
é um dos princípios básicos do universo... Pelo menos deste universo...
Oito minutos depois, a Águia congelou de novo a exposição.
— Chegamos agora em um ponto no tempo dez milhões de anos antes do
presente. Na Terra, os dinossauros desapareceram há muito tempo, destruídos
por sua incapacidade de adaptação às mudanças climáticas causadas pelo
impacto de um grande asteróide... Seu desaparecimento, contudo, permitiu que
os mamíferos prosperassem, e uma dessas linhas evolutivas dos mamíferos
começou a mostrar rudimentos de inteligência...
A Águia parou. Nicole estava olhando para ela com uma expressão in-
tensa, quase de dor.
— O que aconteceu? — perguntou o alienígena.
— Será que o nosso universo específico acabará em harmonia? — per-
guntou ela. — Ou nós nos tornaremos, por exclusão, um daqueles dados que
ajudam Deus a definir a região que Ele procura?
— O que fez você perguntar isso agora? — disse a Águia.
— Toda essa exposição — respondeu Nicole abanando as mãos — é um
espantoso catalisador. Estou com dezenas de perguntas na cabeça, mas, como
não tenho tempo para todas, achei melhor fazer a pergunta mais importante
primeiro... Olhe o que aconteceu aqui — continuou Nicole. — Até mesmo agora,
depois de dez bilhões de anos de evolução, as luzes continuam muito dispersas. E
nenhum dos agrupamentos existentes tornou-se permanente ou amplamente
espalhado, nem mesmo nessa porção relativamente pequena da galáxia. Se o
nosso universo for terminar em harmonia, certamente mais cedo ou mais tarde
as luzes que indicam viajantes espaciais e inteligência deverão brilhar em quase
todos os sistemas estelares de cada galáxia... Ou será que interpretei mal o que
São Michael quis dizer com harmonia?
— Eu creio que não — disse a Águia.
— Onde está nosso sistema solar nessa exposição? — perguntou Nicole.
— Bem aqui — disse a Águia, usando sua ponteira iluminada. Nicole deu
uma olhada primeiro na área em volta da Terra, e depois inspecionou o resto da
sala.
— Então, há dez milhões de anos, havia cerca de sessenta espécies de
viajantes espaciais nas nossas dez mil vizinhanças mais próximas... E uma
dessas espécies, creio que aquele agrupamento de luzes verde-escuro, originou-se
não muito longe de nós e chegou a desenvolver-se em vinte a trinta sistemas
estelares ao todo...
— Correto — falou a Águia. — Quer que eu passe as imagens mais uma
vez em menos velocidade?
— Daqui a pouco — respondeu Nicole. — Primeiro quero apreciar essa
configuração particular... Até agora tudo aconteceu rápido demais nessa ex-
posição e não pude assimilar muito bem.
Ficou olhando o grupo de luzes verdes e notou que sua borda externa não
ficava a mais de quinze anos-luz de onde a Águia indicara o sistema solar.
Depois, pediu que a Águia passasse as imagens de novo, e o alienígena disse que
a velocidade daquela vez seria de apenas duzentos mil anos por segundo.
As luzes verdes aproximaram-se cada vez mais da Terra e subitamente
desapareceram.
— Pare — gritou Nicole.
A Águia parou a exposição e olhou para Nicole com ar intrigado.
— O que aconteceu com aqueles sujeitos? — perguntou Nicole.
— Falei sobre eles com você há uns dois dias — disse a Águia. — Eles
foram manipulados geneticamente para deixarem de existir.
Eles quase chegaram na Terra, pensou Nicole. E como toda a história teria
sido diferente se tivessem chegado... Eles teriam reconhecido imediatamente o
potencial intelectual dos proto-humanos da África, e teriam sem dúvida feito com
eles o que os precursores fizeram com as octoaranhas. Então nós...
De repente, Nicole lembrou-se de São Michael explicando calmamente a
finalidade do universo em frente à lareira do escritório de Michael e Simone.
— Posso ver o começo? — perguntou Nicole.
— O começo de quê? — respondeu a Águia.
— O começo de tudo. O instante em que o universo começou e todo o
processo da evolução foi posto em movimento — disse ela, mostrando o modelo
abaixo deles.
— Podemos fazer isso — disse a Águia depois de uma breve pausa. Nós
não temos conhecimento de nada antes do universo ser criado — continuou a
Águia, quando os dois estavam juntos na plataforma em completa escuridão. —
Mas supomos que tenha existido algum tipo de energia antes do instante da
criação, pois nos disseram que a matéria desse universo resultou de uma
transformação de energia.
Nicole olhou à sua volta.
— Escuridão por todo lado — disse, quase para si mesma. — E em algum
lugar dessa escuridão havia energia, se é que a expressão algum lugar faz
sentido... E um Criador... Ou será que a energia fazia parte do Criador?
— Isso nós não sabemos — disse a Águia com certa hesitação. — O que
sabemos é que o destino de cada elemento do universo foi determinado naquele
instante inicial. A forma como aquela energia foi transformada em matéria definiu
bilhões de anos da história...
Enquanto a Águia falava, uma luz fortíssima tomou conta da sala. Nicole
virou-se de costas e tapou os olhos.
— Pegue isso — disse a Águia, tirando uns óculos da sua pochete.
— Por que você fez essa simulação tão brilhante? — perguntou ela
ajustando os óculos.
— Para indicar, pelo menos em alguma medida, como foram aqueles
momentos iniciais... Olhe — falou, apontando para baixo —, eu parei o modelo
em 10-40 segundos depois do instante da criação. O universo existia há apenas
um tempo infinitesimal, mas já era rico em estrutura física. Essa incrível
quantidade de luz vem toda daquela ínfima parte de mistura cósmica abaixo de
nós... Toda aquela coisa que forma o universo primitivo é completamente alheia a
qualquer coisa que possamos reconhecer ou entender. Não há átomos nem
moléculas. A densidade dos quarks, dos léptons e de seus companheiros é tão
grande que uma pitada menor que um átomo de hidrogênio daquela coisa pesaria
mais do que um grande aglomerado de galáxias na nossa era...
— Só por curiosidade, onde você e eu estamos neste momento? —
perguntou Nicole.
A Águia hesitou.
— Em lugar algum, seria a melhor resposta — disse depois de um
instante. — Para fins ilustrativos, estamos fora do modelo do universo. Mas
podíamos estar em outra dimensão. A matemática do universo primitivo só
funcionaria se houvesse inicialmente mais de quatro dimensões. É claro que tudo
no espaço-tempo que mais tarde se transformou no nosso universo é contido
naquele pequeno volume que produz essa luz ofuscante. A propósito, se o modelo
fosse uma representação verdadeira, a temperatura aqui seria dez trilhões de
trilhões de vezes mais alta do que a estrela mais quente que surgisse.
— Este nosso modelo também distorceu os conceitos de tamanho e
distância — continuou a Águia depois de uma breve pausa. — Dentro de um
instante, vou começar a simulação do início do universo de novo, e nós ficaremos
completamente subjugados quando a gotícula compacta de radiação explodir a
uma velocidade assombrosa... Enquanto a simulação daquilo que os cosmólogos
chamam de Era de Inflação estiver ocorrendo, o suposto tamanho desta sala
também aumentará rapidamente. Se não mudássemos a escala, você não poderia
ver agora a estrutura do universo 10-40 segundos após sua criação sem um
fantástico microscópio.
Nicole olhou para a fonte de luz lá embaixo.
— Então aquele minúsculo glóbulo informe de matéria quente e pesada foi
a semente de tudo? Daquela ínfima mistura de partículas subatômicas vieram as
grandes galáxias que você me mostrou no outro domínio? Não parece possível...
— Não só aquelas galáxias — disse a Águia. — O potencial de tudo do
cosmo está armazenado naquela mistura peculiar superaquecida...
Subitamente, o pequeno glóbulo começou a expandir-se em uma veloci-
dade imensa, e Nicole teve a impressão de que o exterior do glóbulo ia encostar
no seu rosto a qualquer instante. Milhões de estruturas bizarras formaram-se e
desapareceram em frente aos seus olhos. Nicole observou fascinada o material
mudar de natureza várias vezes, passando por estados de transição tão
peculiares e estranhos quanto o primitivo glóbulo superaquecido.
— Eu andei com o tempo para a frente neste modelo — disse a Águia um
pouco depois. — O que você está vendo lá agora, aproximadamente um milhão de
anos depois da criação, poderia ser reconhecido por qualquer bom aluno de
física. Alguns átomos simples se combinaram: três tipos de hidrogênio e dois de
hélio, por exemplo. O lítio é reconhecidamente o átomo mais pesado que existe
em abundância... A densidade do universo agora é mais ou menos equivalente à
do ar da Terra, e a temperatura caiu para cem milhões de graus, ou seja, vinte
ordens de magnitude menos do que na época do glóbulo quente.
A Águia ativou e guiou a plataforma entre as luzes, as massas e os
filamentos.
— Se fôssemos realmente inteligentes — disse a Águia —, poderíamos
olhar para toda essa matéria primitiva e prever quais as massas que acabariam
se tornando aglomerados de galáxias... Foi mais ou menos nessa época que o pri-
meiro Monitor Motriz apareceu, o único intruso nesse processo de evolução
natural... Nenhuma monitoração podia ter ocorrido antes, pois o processo é muito
sensível... Qualquer tipo de observação durante o primeiro segundo da criação,
por exemplo, teria distorcido por completo a resultante evolução.
A Águia apontou para uma esfera metálica mínima no centro de várias
imensas aglomerações de matéria.
— Aquele primeiro Monitor Motriz foi enviado pelo Criador de outra
dimensão do universo primitivo para o nosso sistema evolutivo de espaço-tempo.
Sua finalidade era observar o que estava ocorrendo e criar, se necessário, com
sua própria inteligência, os outros sistemas de observação que iriam colher todas
as informações pertinentes ao processo inteiro.
— Então, o Sol, a Terra e todos os seres humanos — disse Nicole lenta-
mente — resultaram da imprevisível evolução natural desse cosmo. Nodo, Rama e
até mesmo você e São Michael foram criados a partir de um desenvolvimento
projetado originalmente por aquele primeiro Monitor Motriz...
Nicole fez uma pausa, olhou em volta e virou-se para a Águia.
— Você podia ter sido previsto logo depois do momento da criação... Eu e
até mesmo a existência da humanidade viemos de um processo tão
matematicamente perverso, que não podíamos ter sido previstos nem mesmo cem
milhões de anos atrás, o que é apenas um por cento do tempo desde o início do
universo...
Nicole sacudiu a cabeça e as mãos.
— Muito bem, isso basta... Eu estou farta de tanto infinito.
A grande sala ficou escura de novo, a não ser pelas luzes do chão da
plataforma.
— O que foi? — perguntou a Águia, vendo a expressão de sofrimento no
rosto de Nicole.
— Não tenho certeza — respondeu ela. — Estou me sentindo triste, como
se tivesse sofrido uma grande perda pessoal... Se compreendi direito tudo isso,
todos os humanos são muito mais especiais do que vocês, ou até mesmo que
Rama. Há muito pouca probabilidade de que quaisquer criaturas, até mesmo
semelhantes a nós, voltem a surgir neste universo ou em qualquer outro... Somos
um dos produtos do caos. Você, ou pelo menos algo como você, provavelmente
existe em todos os outros universos que o Criador esteja observando...
Houve um minuto de silêncio.
— Acho que, depois de ouvir o que São Michael me disse — continuou
Nicole —, imaginei que haveria vozes humanas naquela harmonia que Deus
buscava... Agora vejo que é só no planeta Terra, neste universo específico, que
nossas canções...
Sentiu uma dor aguda no peito, que se tornou tão forte que não a deixava
respirar. Ela pensou por um instante que seu fim viria imediatamente.
A Águia, em silêncio, observou-a com cuidado. Quando finalmente
conseguiu respirar, Nicole disse, com voz entrecortada:
— Você me falou... na hora do almoço... de um lugar pessoal... onde eu
podia ver minha família e meus amigos...

Eles conversaram um pouco no carro quando a dor de Nicole deu um ins-


tante de trégua. Sabiam, sem precisar dizer nada, que seu próximo ataque seria o
último.
Os dois entraram em outra área de exposição do Módulo do
Conhecimento. A sala era um círculo perfeito, com um espaço numa pequena
parte do centro onde dava para a Águia ficar de pé ao lado da cadeira de rodas de
Nicole. Eles foram até o centro e viram réplicas de humanos representando cenas
da vida adulta de Nicole em cada um dos seis cenários de teatro que os
rodeavam.
Nicole ficou estupefata com a verossimilhança das representações. Não só
toda sua família e amigos eram mostrados como na época em que aquelas cenas
haviam acontecido como os cenários haviam sido reconstruídos na perfeição. Em
uma das cenas, Katie esquiava perto da costa do lago Shakespeare, rindo e
acenando com aquela sua espontaneidade característica. Em outra, Nicole
assistia ao pequeno corpo de teatro de Rama II durante uma festa em
homenagem ao milésimo aniversário de morte de Eleonor de Aquitânia. Ao ver
Simone aos quatro anos, Katie aos dois, Richard e ela própria, Nicole ficou com
os olhos cheios de lágrimas.
Foi uma vida fantástica, pensou. Movimentou sua cadeira de rodas até a
cena de Rama II e a ação parou. Inclinou-se para a frente e pegou o robô TB que
Richard criara para divertir as crianças. Até o peso do robô era o mesmo.
— Como conseguiram fazer isso? — perguntou.
— Tecnologia avançada — respondeu a Águia. — Eu não saberia explicar
para você.
— E se eu fosse lá onde Katie está esquiando, se tocasse na água, ficaria
com a mão molhada?
— É claro.
Nicole deixou o cenário segurando o pseudo-robô. Depois que ela saiu,
apareceu outro TB e a cena continuou igual. Eu tinha me esquecido, Richard, de
todas as suas brilhantes criações, disse para si mesma.
Seu coração lhe concedeu mais uns minutos para aproveitar aquelas re-
presentações da sua vida. Ficou emocionada no momento do nascimento de
Simone, reviveu sua primeira noite de amor com Richard logo depois de chegar a
Nova York, e sentiu pela segunda vez a incrível sensação de ser cumprimentada,
junto com Richard, por todas aquelas criaturas da Cidade de Esmeralda, quando
atravessaram seus portões pela primeira vez.
— Você pode fazer uma retrospectiva de qualquer acontecimento da minha
vida? — perguntou, sentindo um aperto no peito.
— Desde que tenha acontecido depois da sua chegada a Rama e que eu
possa encontrar nos arquivos — respondeu a Águia.
Nicole estava arfando. Seu último ataque cardíaco estava a caminho.
— Por favor — disse com dificuldade —, eu gostaria de ver minha última
conversa com Richard, quando ele foi embora...
Não vai demorar, dizia uma voz dentro de Nicole. Ela cerrou os dentes e
tentou concentrar-se na cena em que Richard explicava à pseudo-Nicole por que
era ele quem devia ir com Archie ao Novo Éden.
— Eu compreendo — disse a pseudo-Nicole na cena.
Eu compreendo, disse a verdadeira Nicole para si mesma. Essa é a
declaração mais importante que se pode fazer... compreender é a chave da vida... E
agora eu compreendo que sou uma criatura mortal e que a morte está chegando.
A próxima dor intensa veio acompanhada da lembrança de um verso em
latim de um antigo poema. "Timor mortis conturbat me"... mas eu não terei medo
porque compreendo.
A Águia a observava de perto.
— Eu gostaria de ver Richard e Archie nos seus últimos momentos... na
cela... logo antes da chegada dos biotas — disse ela, em grande sofrimento.
Eu não terei medo porque compreendo.
— E meus filhos, se eles puderem aparecer aqui... E o dr. Azul.
A sala ficou escura e os segundos se passaram. A dor era horrível. Eu não
terei medo...
As luzes acenderam-se de novo. Richard e Archie estavam na sua cela
bem em frente à cadeira de rodas de Nicole. E ela ouviu os biotas abrirem a porta
no corredor...
— Congele essa cena, por favor — falou Nicole gaguejando. À esquerda da
cena com Richard e Archie apareceram seus filhos e o dr. Azul. Nicole saiu com
esforço da cadeira e andou uns metros para ficar ao lado deles. Lágrimas
escorriam-lhe dos olhos quando tocou pela última vez aqueles rostos queridos.
As paredes do seu coração começaram a entrar em colapso. Nicole caiu no
cenário da cela de Richard e abraçou seu pseudomarido.
— Eu compreendo, Richard — disse.
Nicole foi caindo lentamente. Virou o rosto para a Águia e ainda conseguiu
dizer, com um sorriso:
— Eu compreendo.
E a compreensão é felicidade, pensou.

FIM
SUMÁRIO

PRÓLOGO...........................................................................................................................4

FUGA...................................................................................................................................8

A OPERAÇÃO ARCO-ÍRIS ................................................................................................87

A CIDADE DE ESMERALDA ...........................................................................................141

GUERRA EM RAMA ........................................................................................................226

DE VOLTA A NODO .........................................................................................................294

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