download (3)

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 22

PERSPECTIVA TEOLÓGICA ADERE A UMA LICENÇA CREATIVE COMMONS

ATRIBUIÇÃO 4.0 INTERNACIONAL – (CC BY 4.0 )

DOI: 10.20911/21768757v56n1p21/2024

ARTIGOS / ARTICLES / ARTÍCULOS

fé na revelação: as razões de nossa esperança


segundo joão batista libanio

Faith in Revelation: the Reasons for our Hope According to João Batista Libanio

Pedro Rubens Ferreira Oliveira *

RESUMO: Partindo das obras de J. B. Libanio relacionadas, diretamente, à sua


cátedra principal, a teologia fundamental, o artigo propõe, primeiro, retomar uma
das obras principais, fruto de vários anos de docência: “Teologia da Revelação a
partir da Modernidade”. Em segundo lugar, realiza-se uma releitura do tratado da
fé, resposta crente à revelação, mas, agora, perante desafios da pós-modernidade,
na obra “Eu creio, nós cremos”. Em terceiro lugar, impõe-se falar de uma obra
que pode ser considerada um pequeno testamento, publicada logo depois de sua
partida: “Introdução à Teologia Fundamental”. Enfim, em conclusão, algumas
questões permitirão pensar com Libanio as perspectivas dessa disciplina em um
mundo que não para de mudar, mas perante o qual nós, cristãos, temos a tarefa
de buscar as razões de nossa esperança.
PALAVRAS-CHAVE: Teologia Fundamental. Revelação. Concílio Vaticano II.
Libanio.

ABSTRACT: The provided text discusses the exploration of the works of J. B.


Libanio, specifically those related to his main chair in fundamental theology. The
article proposes, firstly, to revisit one of his major works, the result of several years
of teaching: “The Theology of Revelation from Modernity”. Secondly, a re-reading
of the treatise on faith, the believer’s response to revelation, is carried out, now

* Universidade Católica de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil.

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024 21

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 21 07/05/2024 20:40:47


facing challenges of post-modernity in the work “I believe, we believe”. Thirdly,
attention is given to a work that can be considered a small testament, published
shortly after his departure: “Introduction to Fundamental Theology”. Finally, in
conclusion, some questions are raised to reflect with Libanio on the perspectives
of this discipline in a constantly changing world. Despite the ongoing changes,
we Christians have the task of seeking the reasons for our hope.
KEYWORDS: Fundamental Theology. Revelation. Vatican Concil II. Libanio.

Preâmbulo

A tarefa da teologia fundamental é tão antiga quanto o cristianismo,


mas, como disciplina, ela é relativamente recente e contextualizada:
herdeira das apologias clássicas, surgiu como reação à crise da apologética
tradicional, sistema teológico que foi sendo elaborado em manuais, do
Concílio de Trento até antes do Concílio Vaticano II. Basicamente, estuda-
-se a fé cristã como resposta humana ao Deus que se revela.

O Concílio Vaticano II foi o maior aggiornamento da Igreja depois da crise


da cristandade e da apologética, e a sua recepção implicou também uma
nova maneira de pensar as disciplinas teológicas. O tema da revelação,
dada a sua importância, foi o primeiro a ser votado (1962), mas, diante
da reprovação do esquema preparatório “Constituição dogmática sobre
as fontes da revelação”, esse ainda marcado pelo Concílio Vaticano I
e a polêmica das “duas fontes”, a definição conciliar foi uma das últi-
mas, conforme atesta a Constituição Dogmática Dei Verbum, aprovada
somente em 18 de novembro de 1965, por “unanimidade moral” de
2.344 votos a favor e 6 contra (SESBOÜÉ; THEOBALD, 1996, p. 515).
Desse modo, a concepção de revelação atravessou, praticamente, toda
a assembleia conciliar, seus debates, reflexões e reelaborações, testemu-
nhando as transformações do próprio evento, a evolução das questões
e o consenso eclesial.

Outro aspecto a considerar: no início do Concílio Vaticano II, os padres


conciliares latino-americanos tiveram pouca participação, mas, progressiva-
mente, eles foram crescendo em protagonismo e liderança, o que justifica a
dinâmica de recepção criativa no período pós-conciliar, como atestam alguns
nomes internacionalmente conhecidos, as cinco conferências continentais,
a produção teológica e a dinâmica pastoral. Nesse ambiente efervescente
e até polêmico da teologia latino-americana, João Batista Libanio foi pro-
tagonista, dando uma contribuição ímpar, com uma bibliografia imensa
(OLIVEIRA, 2017). Graças à sua capacidade comunicativa de tradução das
realidades conceituais mais complexas e conflitivas a uma linguagem corri-
queira e bem-humorada, Libanio frequentou os ambientes mais intelectuais

22 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 22 07/05/2024 20:40:47


e também os mais populares. Como um dos mais importantes teólogos
latino-americanos, além do maior representante da teologia fundamental
no Brasil, ele não somente reinterpretou os tratados da revelação e da fé
à luz do macrocontexto da modernidade e pós-modernidade, mas também
do contexto “regional” latino-americano, incluindo “temas fronteiras” que,
como não cabiam nas outras disciplinas teológicas, foram associados à
teologia fundamental (METZ, 1965, p. 3).

Por ocasião da memória saudosa desse grande companheiro jesuíta, pro-


fessor, amigo e teólogo, proponho-me revisitar seu pensamento a partir
da perspectiva da teologia fundamental: primeiro, retomando sua obra
sobre a revelação em diálogo com a modernidade; em segundo lugar,
apresentamos o tratado da fé, desta feita a partir dos desafios da pós-
-modernidade; em terceiro lugar, trazemos à pauta seus últimos escritos,
uma introdução à teologia fundamental, marcada pelo propósito de
síntese e, enfim, a partir de algumas questões, buscaremos “pensar com
Libanio” os desafios e perspectivas dessa disciplina em um mundo que
não para de mudar.

1 Tratado da revelação: o desafio da razão moderna

Em sua obra Teologia da revelação a partir da modernidade, Libanio faz uma


releitura do tratado da revelação, partindo do Concílio Vaticano II como
marco divisor de águas. Essa releitura, à luz do concílio, considera uma
dupla realidade: “de um lado, a crescente e renovada visão bíblica da
revelação e, de outro, a resistência de uma compreensão tradicional es-
sencialista de Deus nos alunos que se aproximam da teologia” (LIBANIO,
1992, p. 9). O autor propõe, de forma didática, os desenvolvimentos dos
temas, uma bibliografia sobre a revelação e dinâmicas para revisão pessoal
e/ou grupal (LIBANIO, 1992, p. 11-13).

Os quinze capítulos da obra podem ser subdivididos em quatro partes:


Resgate histórico da revelação, mostrando a passagem das apologias an-
tigas à nova teologia fundamental (cap. 1-4); Compreensão da revelação
diante do tribunal da razão moderna (cap. 5) e seus imperativos, como
a subjetividade (cap. 6) e a experiência (cap. 7-8), e suas reconsiderações
na relação com a criação e as religiões (cap. 9); Reflexão sobre a revelação
diante da historicidade (cap. 10), trazendo consequências imediatas para a
interpretação das Sagradas Escrituras (cap. 11), entre a questão da verdade
(cap. 12) e a canonicidade (cap. 13), bem como a reinterpretação da própria
tradição cristã, notadamente consignada nos documentos conciliares (cap.
14); enfim, o autor insere a questão contextual, fazendo um exercício de
releitura da revelação na perspectiva do continente latino-americano como
novo jeito de fazer teologia (cap. 15).

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024 23

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 23 07/05/2024 20:40:47


1.1 Das apologias à teologia fundamental
O resgate histórico da temática da revelação é feito a partir de um novo
desafio epocal (cap. 1): a passagem da cristandade à modernidade repre-
sentou uma crise para a teologia cristã, como a própria Reforma protestante
atesta e agrava. Assim, embora a justificação racional da fé seja tão antiga
quanto o cristianismo (LIBANIO, 1992, p. 31), com o advento da razão
crítica moderna, identificamos não apenas um desafio, mas uma exigência
de nova compreensão e reelaboração da fé e da teologia.
Trata-se de mostrar como, nesse confronto com a razão moderna, a teologia
fundamental foi sendo construída na forma de uma apologética (cap. 2).
Diante de uma mentalidade cujo axioma dogmático moderno era “fora da
razão, não há salvação”, a teologia foi obrigada a defrontar-se com essa
nova racionalidade, dando uma resposta que ficou conhecida como apolo-
gética, construída como uma teologia fundamental (LIBANIO, 1992, p. 31).
Segundo o autor, a Reforma protestante foi o fator ad intra decisivo para
a crise do sistema cristão. Ressaltando os aspectos subjetivos em prol de
uma sola fide, sola gratia e sola Scriptura, os reformadores fizeram oposição
ao acento nos aspectos objetivos da fé, por sua vez ressaltados pela Igreja
católica. Assim como nas apologias antigas, os questionamentos foram sus-
citando reações em forma de argumentos, esquematicamente dentro de uma
perspectiva tríplice: contra os ateus que negam toda religião, afirma-se uma
demonstração da necessidade dela (demonstratio religiosa); contra os deístas
que defendem a religião natural, postula-se o cristianismo como verdadei-
ra religião (demonstratio christiana); e, finalmente, contra os reformadores
protestantes, afirma-se a Igreja católica como a única e verdadeira Igreja
de Cristo (demonstratio catholica). Outros momentos reforçaram o arsenal da
Igreja católica, como, por exemplo, os libertinos e ateus práticos do século
XVII e os deístas e enciclopedistas do século XVIII. A evolução diacrônica
dos problemas foi suscitando uma sistematização sincrônica, configurando
a famosa apologética moderna, segundo a formulação tripartida das de-
monstrações que marcará os manuais até a metade do século XX. Libanio,
de forma magistral e sintética, mostra o desenvolvimento do tratado de
teologia fundamental tradicional (LIBANIO, 1992, p. 40-49), concluindo que,
durante séculos, ela “cumpriu o papel importante na justificação e defesa
da fé católica para os fiéis” (LIBANIO, 1992, p. 49).
A passagem da apologética à teologia fundamental supõe características
novas: a centralidade da revelação, a questão do método e da tarefa de uma
teologia fundamental, resultando em uma nova compreensão da revelação,
na perspectiva do Concílio Vaticano II, marcado pela visão dialogal e ecumê-
nica (LIBANIO, 1992, p. 60-62). Libanio propõe sete modelos para pensar a
revelação, não necessariamente “excludentes entre si” (LIBANIO, 1992, p. 66):
persiste o modelo apologético; configura-se um modelo mais dogmático, partindo
do interior da fé; na perspectiva epistemológica, elabora-se um modelo mais
formal, segundo a preocupação com a natureza do conhecimento; dada a

24 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 24 07/05/2024 20:40:47


abertura conciliar, um modelo político explicita mais a realidade social como
dimensão da fé; graças a uma atenção aos sinais dos tempos, fala-se de um
modelo semeiológico; coerente com a experiência e perspectiva do concílio, e
surge um modelo mais ecumênico; por fim, um modelo que busca um diálogo
com o mundo contemporâneo (LIBANIO, 1992, p. 66-73). Mas existem quatro
pontos comuns e transversais aos diversos modelos: dar razões da nossa
esperança, respostas às perguntas fundamentais da fé, adaptação ao contexto
cultural e histórico e, finalmente, discurso válido também para não crentes.
O capítulo 4 aborda o novo ponto de partida da teologia fundamental.
Trata-se da fé do sujeito adulto no contexto de modernidade, em geral, e,
considerando o contexto cultural e histórico diferenciado, o ponto de partida
para nós “é a fé que se vive na América Latina, situada na encruzilhada de
dois caminhos” (LIBANIO, 1992, p. 79): o caminho da modernidade gene-
ralizada e o seu avesso, “o do mais triste desajuste social” (LIBANIO, 1992,
p.80). A reflexão considera deslocamentos importantes, como os próprios
títulos sugerem: 1) Da eloquente presença ao silêncio de Deus, compreen-
dido como silêncio respeitoso de Deus ou como silêncio descrente; 2) Do
silêncio ao reencontro, graças ao retorno do sagrado nos novos movimentos
religiosos; 3) Da visão estática de revelação à tensão do conceito-básico
de revelação entre seu caráter imanente e sua dimensão transcendente. E,
considerando que “a experiência religiosa é o lugar privilegiado para tal
percepção” (LIBANIO, 1992, p. 95), identificam-se várias trajetórias possíveis
e várias “etapas” da manifestação de Deus: a revelação natural, a revelação
bíblica, a revelação em Jesus e a revelação final escatológica.

1.2 A revelação perante o tribunal da razão moderna


No segundo bloco temático, o autor mostra a evolução histórica da reve-
lação e postula a sua tese: a necessidade de compreensão da revelação a
partir da modernidade (cap. 5 a 9). Antes de falar da revelação, portanto,
ele define a modernidade não como um simples momento da história,
mas como “um horizonte em que vivemos e dentro do qual praticamos
nossa fé” (LIBANIO, 1992, p. 113). Mas importa distinguir a dupla face
da mesma modernidade: uma que reflete a realidade do Primeiro Mundo
e uma outra que revela o contraste do Terceiro Mundo. Por isso, existem
vários discursos da modernidade: a razão moderna crítica ou o império
da deusa razão e suas consequências para todo o pensamento ocidental
(LIBANIO, 1992, p. 117-128); o discurso da autonomia e da liberdade
humanas fundamentais, critério de todo entendimento (LIBANIO, 1992,
p. 128-130) e as promessas de felicidade1, conforme os cânones modernos,

1
A Libanio, reverenciamos a compreensão pioneira da importância desse tema na teolo-
gia brasileira, mas importa destacar a recente obra do jovem teólogo Sérgio Albuquerque
Damião, primeira reflexão teologicamente cristã aprofundada sobre o tema, em Teologia da
Felicidade (2022).

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024 25

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 25 07/05/2024 20:40:47


incluindo o individualismo, em conflito com o discurso religioso tradicional
(LIBANIO, 1992, p. 130-137). As implicações da autonomia moderna para
a esfera cultural e social (LIBANIO, 1992, p. 137-150) representam uma
ruptura com a cristandade, mas existe uma face obscura dessa moder-
nidade que se reflete no Terceiro Mundo, insistência que o autor insere
como tema fundamental.
Esses reflexos da modernidade no Terceiro Mundo constituem a maior
novidade da teologia fundamental libaniana, não apenas indicando proble-
mas (a exclusão dos pobres, o desastre dos regimes militares autoritários,
a espiral da violência e a crise das instituições), mas também indicando
“lampejos de esperança”, notadamente com os movimentos de libertação
e a emergência de um novo sujeito social popular. Diante desse contexto
paradoxal, deve-se “pensar a existência e o significado de uma revelação
de Deus” (LIBANIO, 1992, p. 156).
Os capítulos seguintes irão tratar dos grandes eixos desse diálogo com a
modernidade. A revelação a partir da subjetividade (cap. 6) considera os
aspectos existenciais do ser humano como novo ponto de partida: a per-
gunta pelo sentido da vida, os problemas da existência, a abertura para
o outro e os clamores de libertação (LIBANIO, 1992, p. 167-171). Não se
trata somente de temas diferentes, mas também de uma necessidade de
mudança de método: distinguindo-se do tradicional, racional e abstrato, a
nova metodologia deverá considerar o aspecto existencial e fenomenológico
como o autor tenta desenvolver, passo a passo, a partir da fé compreendida
antropologicamente e aberta à transcendência (LIBANIO, 1992, p. 178-192).
“A virada antropocêntrica significa uma valorização crescente da experiên-
cia existencial” (LIBANIO, 1992, p. 197). Para Libanio, a experiência não
apenas é valorizada, mas determinante para a consciência da liberdade
moderna. Trata-se, portanto, de relacionar experiência e revelação, desde os
movimentos em busca de liberdade, felicidade e prazer até os conflitos –
tanto no campo religioso como no político ­– em que aparece a experiência
de libertação pessoal e coletiva. A experiência é o tema de dois capítulos
(cap.7 e 8), buscando uma atualização da experiência judeu-cristã e da
releitura pascal de Jesus, que inaugura um tempo novo com o Reino de
Deus, categoria central no Evangelho e muito importante para as teologias
latino-americanas da libertação.

Não surpreende que esse segundo bloco temático relacione, em conclusão,


a revelação com a criação e as religiões (cap. 9). Por um lado, o autor
distancia-se da linguagem tradicional concernente à revelação natural e,
em diálogo com o pensamento moderno e teológico, chega a uma nova
concepção de Deus, “cujo eixo já não será a distinção entre Deus e mundo,
mas o conhecimento da presença de Deus no mundo e da presença do
mundo em Deus” (LIBANIO, 1992, p. 260). Por outro lado, “na revelação
cristã, foi dada toda a revelação, mas não foi toda dita” (LIBANIO, 1992,

26 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 26 07/05/2024 20:40:47


p. 281). O nosso autor traz, assim, outro aspecto inovador do Concílio
Vaticano II, ressaltando não apenas a visão ecumênica, mas a perspectiva
de uma revelação de Deus nas outras culturas e religiões, fazendo alusão
também ao caso brasileiro, considerando as religiões indígenas, os cultos
afro, outras práticas religiosas e até realidades seculares de libertação, justiça
e respeito aos direitos humanos como mediações concretas de salvação e,
não menos, de revelação (LIBANIO, 1992, p. 282).

1.3 As escrituras da revelação no passo da história


No terceiro bloco temático, Libanio reúne cinco capítulos para refletir so-
bre a revelação diante da historicidade (cap. 10), suas consequências para
a interpretação das Sagradas Escrituras (cap. 11), incluindo a questão da
verdade (cap. 12) e da canonicidade (cap. 13), bem como a reinterpreta-
ção da própria tradição cristã, notadamente consignada nos documentos
conciliares (cap. 14). “A perspectiva moderna floresce na virada antropo-
cêntrica e na entrada da história” (LIBANIO, 1992, p. 285): se, no início
da época moderna, a razão não era historicizada, mas sobretudo crítica
em relação à tradição e aos dogmas, a dimensão e a consciência históricas
serão determinantes, obrigando a uma nova abordagem da revelação. Evi-
dente que, de acordo com algumas concepções de revelação e de história,
o conflito seria inevitável, com críticas de uma perspectiva e outra. Isso
faz parte da dinâmica hermenêutica que parte da busca de condições de
possibilidades de uma revelação histórica até afirmar a revelação de Deus
na história (LIBANIO, 1992, p. 289-292): “nessa perspectiva se pensará de
maneira dialética a distinção fundamental entre a revelação constitutiva e
a sua interpretação ao longo da história” (LIBANIO, 1992, p. 307).

“A Bíblia não caiu pronta do céu. Ela surgiu da terra, da vida do povo de
Deus” (LIBANIO, 1992, p. 309): com essa frase de Carlos Mesters, Libanio
abre o capítulo sobre a revelação bíblica. A reflexão é feita na perspectiva
do Concílio Vaticano II, ponto de chegada do movimento bíblico e novo
ponto de partida para a interpretação da Bíblia: “Deus falou na Sagrada
Escritura por meio de homens e de maneira humana” (DV, n. 2). Como
teólogo fundamental, ele faz primeiro algumas considerações epistemoló-
gicas (LIBANIO, 1992, p. 313-317) para reler as grandes etapas da história
da salvação e a própria historicidade dos livros bíblicos (LIBANIO, 1992,
p. 322-327), reinterpretando assim o tema da inspiração (LIBANIO, 1992, p.
327-338), não sem abordar o aspecto social da própria inspiração, “situada
dentro da ação multiforme do Espírito Santo na economia da Salvação”
(LIBANIO, 1992, p. 335).
Nos capítulos seguintes, Libanio tira consequências dessas afirmações,
tratando do problema da verdade na Bíblia (cap. 12), intimamente liga-
do à questão da inspiração, bem como ao processo de canonicidade ou
atestação da comunidade aos livros sagrados (cap. 13), mas ressaltando

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024 27

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 27 07/05/2024 20:40:47


a perspectiva ecumênica do próprio concílio, atestada, por exemplo, na
tradução ecumênica da Bíblia. Somente depois desse percurso, o autor
aborda o tema polêmico da tradição (cap. 14), refazendo o caminho dos
concílios, mas, genealogicamente, a partir do Vaticano II.

1.4 A dimensão contextual da teologia e da revelação


Por fim, Libanio insere a questão contextual, fazendo um exercício de
releitura da revelação na perspectiva do continente latino-americano (cap.
15). Se, por um lado, a modernidade provocou uma reinterpretação da
revelação de Deus, conforme a visão do Concílio Vaticano II, por outro,
outra reviravolta deve ser feita na sua recepção contextual latino-ameri-
cana, com aspectos que representam o avesso da modernidade, revelada
no rosto dos “pobres” em sua realidade multifacetada, como revelam os
rostos citados em Puebla.

Considero importante, enfim, termos detalhado melhor essa obra, porque


ela é matricial do ponto de vista da forma e até do próprio conteúdo da
teologia fundamental libaniana. Ainda me pergunto se o autor não deve-
ria ter assumido a perspectiva contextual logo no início, deixando mais
patente a sua contribuição e/ou instigação para pensarmos uma teologia
fundamental não somente a partir do pensamento moderno, mas do avesso
da história e da modernidade, em razão de suas consequências nefastas.

2 Tratado da fé: crer na pós-modernidade

No limiar do novo milênio, na 4ª edição do “tratado da revelação” a partir


da modernidade, o mais conhecido e importante professor de teologia
fundamental do Brasil do período pós-conciliar lançou um novo livro, a
partir da pós-modernidade: Eu creio, nós cremos: tratado da fé (2000). Mais
que completar sua reflexão sistêmica da disciplina em questão, trata-se
de “responder melhor às condições existenciais dos alunos, quer em sua
nova sensibilidade moderna e pós-moderna, quer em suas deficiências
de formação de fé num mundo menos marcado pela tradição religiosa
católica” (LIBANIO, 2000, p. 11). Em outras palavras: “passa-se da lógica
interna da revelação para a lógica existencial do que crê”, pois “na lógica
da revelação, a Palavra de Deus antecede, como proposta, a resposta da
fé” (LIBANIO, 2000, p. 11).
Ainda na introdução dessa obra, o autor indica que o processo de aprendi-
zagem de uma teologia crítica deveria responder a dois requisitos: primei-
ramente, o “lugar eclesial da fé” da própria faculdade, a saber “a tradição
bíblico-cristã e eclesial católica”; em segundo lugar, o “momento cultural
e geo-histórico”, caracterizado pela subjetividade moderna e pós-moderna,

28 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 28 07/05/2024 20:40:47


mas também situado num continente de contradições, notadamente a
“brecha entre pobres e ricos” (LIBANIO, 2000, p. 10). Considerando a
perspectiva da teologia latino-americana da libertação, do ponto de vista
teórico, portanto, Libanio evidencia a opção básica de um método “da fé
para a fé” (Rm 1,17) ou da práxis cristã para a práxis cristã. Isso significa
passar de uma fé inicial para uma fé mais esclarecida, mas, também, passar
da dimensão praxeológica, praxística ou pragmática extrínseca à fé externa
para uma práxis como interpretação-no-agir, intrínseca ao próprio evento
Jesus Cristo (LIBANIO, 2000, p. 12).

Percebe-se, de entrada, a perspectiva inovadora da abordagem pelas opções


sinteticamente apresentadas na introdução, mas não menos na própria
estrutura da obra, dividida em três partes. Primeiramente, ele aborda a
subjetividade do próprio ato de fé, em diálogo com a modernidade e pós-
-modernidade (“eu creio”), dialogando com a dimensão mais histórica e
contextual. Em segundo lugar, Libanio resgata a dimensão eclesial da fé,
ressituando a Igreja no momento cultural: agora a perspectiva é coletiva (o
“nós” eclesial), expressa na segunda parte do título “nós cremos”. Enfim,
na terceira parte, o autor evoca os “desafios atuais” – título dessa parte –
abordando a perspectiva holística e ecológica da fé cósmica, passando pelo
diálogo com as outras religiões e chegando à perspectiva da teologia da
libertação. Ainda na introdução, de forma didática, o professor indica uma
bibliografia e uma dinâmica de aproveitamento da leitura ou do curso,
segundo níveis (do razoável ao excelente), e, trazendo um breve texto de
Leonardo Boff, mostra como teologizar é preciso: a fé, o mundo, a vida,
a época e a realidade social pedem teologia (LIBANIO, 2000, p. 17-18).
Aliás, uma das novidades do livro é incluir algum trecho de textos de
autores importantes, bastante diversos, de Francisco de Assis a Lutero, de
Agostinho e Tomás de Aquino a Nietzsche, de Barth e Tillich a Leonardo
Boff e Lima Vaz.
Como chave de releitura de sua segunda grande obra, importa recordar
a categoria de experiência, particularmente cara a Libanio em sua com-
preensão da modernidade e da pós-modernidade, e indispensável para
a Teologia Fundamental contemporânea (BINGEMER, 2012, p. 243-263).

2.1 A experiência subjetiva da fé


A primeira parte começa redefinindo o ponto de partida (cap. 1) da teologia
fundamental, considerando desde a mudança do ambiente cultural, nota-
damente depois das crises provocadas pela modernidade e pela Reforma
protestante. A partir de então, a subjetividade moderna vai se impondo
como virada antropocêntrica por um lado, e, por outro, a reviravolta socio-
crítica que revela a outra faceta da modernidade. Nessa toada, assiste-se ao
triunfo da pós-modernidade cultural, não sem a necessidade de repensar a
subjetividade no contexto sociocultural e sociorreligioso em busca de uma

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024 29

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 29 07/05/2024 20:40:47


nova identidade em nosso continente, antes predominantemente marcado
pela fé católica, agora marcado por um duplo desafio: a subjetividade em
sua versão pós-moderna e, ao mesmo tempo, a realidade social gritante.
“Não há fé fora do contexto cultural em que vivemos” (LIBANIO, 2000, p.
41). Isso implica uma contextualização da experiência de fé no paradigma
cultural definido como modernidade e pós-modernidade, o que supõe
algumas reviravoltas destacadas pelo autor: a virada antropocêntrica, a
valorização da história, o processo de secularização e de politização, as
diferentes propostas éticas (LIBANIO, 2000, p. 43-48), bem como o impacto
dos meios de comunicação social e, insistência do autor, o reverso da mo-
dernidade, conforme atesta a realidade social como desafio à fé (LIBANIO,
2000, p. 49-50), agravada pelo surto da pós-modernidade – termo que,
embora cheio de ambiguidades, indica uma crítica à modernidade e uma
mudança de paradigmas, o que exige novas tendências da fé (LIBANIO,
2000, p. 55). Essas novas tendências são definidas pelo autor na forma
de passagem de uma situação a outra: da tradição para a decisão (mar-
cada pela centralidade da experiência), da definição para a comunicação
(marcada pelo diálogo com os demais), da comunicação a certa reserva
(marcada pelo medo de perda de identidade), da confissão para a práxis
social (marcada pelo acento na ortopráxis), da fé em grandes palavras à
fé vivida no cotidiano (marcada pela suspeita religiosa), da dimensão in-
telectual da fé à simbólica e estética (marcada pelas experiências diversas),
da razão instrumental à razão comunicativa (marcada pela busca de uma
nova racionalidade) e, enfim, passagem do racional ao emocional (marcada
pela busca sensível da experiência de fé). O autor conclui: “as tendências
são tentativas de respostas aos fatores sociais e culturais da hora atual.
Nessa perspectiva situa-se nossa reflexão” (LIBANIO, 2000, p. 74).
Na sequência, Libanio vai seguindo os passos do seu tratado centrado
na revelação a partir da modernidade e da realidade contextual latino-
-americana, com foco na ortopráxis, mas, agora, ele tenta partir dos acentos
críticos da pós-modernidade e da perspectiva do sujeito crente diante de
Deus (subjetividade), como indicam os títulos de capítulos: “A fé no mundo
da subjetividade e da experiência” (cap. 3), “Subjetividade e história” (cap.
4), “A subjetividade e a sociedade” (cap. 5) e “A subjetividade e o cosmos”
(cap. 6). Entrelaçando esses temas ou fazendo uma releitura da fé a partir
da subjetividade, o autor trata da “Estrutura subjetiva da fé”, ressaltando
a dimensão antropológica: “A confissão de fé é um ato do ser humano e
por isso deve respeitar-lhe a estrutura humana” (LIBANIO, 2000, p. 151).
Mas “quais são os elementos principais da estrutura do ato de fé, levan-
do em conta a complexidade da relação entre o ser humano e Deus?”
(LIBANIO, 2000, p. 152).
Partindo das questões linguísticas, o autor considera, primeiro, o aspecto
existencial (LIBANIO, 2000, p. 156), reinterpretando os termos e expres-

30 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 30 07/05/2024 20:40:47


sões tradicionais da questão da fé (como, por exemplo, fides quae e fides
qua). Depois, o aspecto existencial, dialogando com a modernidade e a
pós-modernidade, para em seguida tratar do aspecto hermenêutico, em
diálogo com o pensamento ocidental, do aspecto práxico segundo o acento
da teologia da libertação (LIBANIO, 2000, p. 161-165). Por fim, do aspecto
escatológico próprio do cristianismo: “A fé cristã tem a pretensão de, sem
negar a dimensão de tempo, de historicidade, do agora, ser o início já
começado da plenitude de vida eterna” (LIBANIO, 2000, p. 167).

Nessa releitura a partir da subjetividade, impõe-se redefinir a racionalidade


da fé, evitando extremos que o autor evoca, no início do capítulo 8, citando
Pascal: “Dois excessos: excluir a razão, só admitir a razão” (apud LIBANIO,
2000, p. 171). Primeiro, afirmando a racionalidade intrínseca à natureza da
própria fé, ele vai mostrar as diversas aproximações históricas da razão,
desde as Escrituras até os Padres da Igreja e pensadores cristãos. Essa
continuidade evolutiva, porém, sofre uma ruptura na modernidade, e suas
consequências vão distanciando a fé da cultura. Nesse passo, importa falar
da própria questão estrutural da racionalidade da fé, como também das
exigências diversas da racionalidade, dialogando com a pós-modernidade
e Libanio conclui citando o documento de João Paulo II Fides et ratio.

Depois de tratar da racionalidade como dimensão constitutiva do ser


humano e, portanto, da fé cristã, o autor levanta a pergunta mais espi-
nhosa desde a crise provocada pela modernidade: a liberdade do ato de
fé e sua motivação última (cap. 9). Afinal, “como o ser humano pode ser
livre diante de um Deus todo-poderoso que lhe revela a verdade? E qual
é última motivação que o leva a acolher a revelação de Deus?” (LIBANIO,
2000, p. 191).

Antes de relacionar a liberdade humana e a liberdade cristã, faz-se neces-


sário redefinir a natureza da liberdade do ato de fé: só há uma liberdade,
mas também “existem fontes de compreensão, de interpretação, de tema-
tização da liberdade” (LIBANIO, 2000, p. 196). Isso porque a liberdade
humana é, paradoxalmente, confrontada ao risco e ao sofrimento humano:
“como entender a liberdade da fé em contextos sociais tão condicionan-
tes?” (LIBANIO, 2000, p. 201). E, aqui, o autor insere a extrema miséria
como grave ameaça à fé em nosso continente e, assim, o seu combate é
uma exigência da justiça e da fé. Dito isso, nesse capítulo, as perguntas
parecem ser mais eloquentes que as pistas de respostas, método inte-
ressante para fazer pensar em diálogo com os grandes questionamentos
contemporâneos.

À guisa de conclusão parcial, Libanio aborda a questão do fundamento


último da fé (cap. 10) e a dimensão trinitária da fé cristã (cap. 11). A busca
de fundamento último da fé passa pela estrutura de qualquer ato humano,
respeitando a racionalidade e a liberdade, configurando uma resposta do

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024 31

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 31 07/05/2024 20:40:47


ser humano ao Deus que se revela. Esse mistério, porém, desemboca em
outro mistério igualmente inesgotável: a fé em um Deus trinitário. Ora,
essa perspectiva trinitária de Deus e do ato de fé conhece três movimentos
na Trindade, que são: “a Trindade nela mesma, a Trindade que se revela
na história e a Trindade experimentada por cada um de nós” (LIBANIO,
2000, p. 237). Passando pela relação entre a Trindade econômica e existen-
cial e a Trindade imanente, segundo a linguagem de Karl Rahner, Libanio
conclui, de forma simples e contextualizada na América Latina:
A revelação da Trindade só é acessível a nós por meio de Jesus. Ele associou
Deus, seu Pai, sua mensagem e prática e a ação do Espírito Santo à relação
horizontal com os demais. E nela privilegiou os pobres. Fora daí, a dimensão
trinitária da fé fica comprometida em sua estrutura interna (LIBANIO, 2000,
p. 239).

Uma citação de Leonardo Boff abre o último capítulo: “A Santíssima Trin-


dade é a melhor comunidade” (p. 225). E, se “a Igreja nasce da Trindade”,
cabe perguntar: quais as consequências para a vivência de nossa fé, tanto
na Igreja como na sociedade (LIBANIO, 2000, p. 245)? Assim, entramos
na segunda parte do tratado da fé, considerando a sua dimensão eclesial:
nós cremos.

2.2 A experiência eclesial da fé


Explicitando essa dimensão eclesial da fé (cap. 12), o autor retoma os
temas clássicos, mas segundo o seu propósito de escutar e tentar res-
ponder as grandes questões que foram surgindo na modernidade e que
ganharam amplidão com a pós-modernidade, sobretudo graças ao novo
contexto cultural, menos marcado pelos referenciais cristãos. O ato de fé,
considerado a partir da subjetividade, recoloca a questão da salvação, bem
como o papel da Igreja nessa história salvífica. E, de forma sintética, exclui
extremos, usando uma metáfora: “o relativismo religioso não percebe a
unidade da correnteza salvífica. O dogmatismo e o fanatismo totalitário
não percebem a diversidade de plagas que a mesma correnteza fertiliza”
(LIBANIO, 2000, p. 291).

Na sequência, o autor retoma a Trindade como fundamento último do


“nós cremos”, portanto, da dimensão comunitária da fé (cap. 14). Como
sabemos, na recepção do Concílio Vaticano II, os temas da relação da
Igreja e da sociedade foram bastante enfatizados na busca de dialogar
com o mundo: “uma compreensão do ‘nós cremos’ a partir da comunhão
trinitária permite ao cristão ter uma ação mais coerente na sociedade atu-
al”. Ainda: “Não se trata de fazer uma análise da atual sociedade – algo
complexo. Cabe indicar alguns elementos que permitam entender a tensão
entre comunhão, participação, de um lado, e individualismo, isolamento,
de outro” (LIBANIO, 2000, p. 304).

32 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 32 07/05/2024 20:40:48


Interessante como Libanio fez um percurso da Trindade à Igreja e, depois,
precisamente por conta da relação com a sociedade e a historicidade, foca
em Jesus Cristo, centro da fé eclesial ou do “nós cremos”: “Questiona-se
hoje a centralidade de Cristo, não só na sociedade, mas também no in-
terior da própria teologia” (LIBANIO, 2000, p. 313). Portanto, diante da
“crise do paradigma do cristianismo ocidental” (LIBANIO, 2000, p. 314),
faz-se necessário analisar os fatores socioculturais da crise – as questões
de credibilidade do cristianismo e a perda de espaço social e, ao mesmo
tempo, os efeitos da secularização e crescimento do pluralismo na sociedade,
fazendo aparecer o pluralismo religioso. Nesse cenário, Libanio recoloca
a questão da centralidade de Jesus Cristo em sua diversidade irredutível:
vertente dogmática, vertente histórico-salvífica, vertente existencial, vertente
ecumênico-cristã e vertente teocêntrica. Diante dessa diversidade, uma
nova tensão é formulada em termos de diálogo e anúncio. Mas, coerente
com sua abordagem, o autor insere a chave da opção pelos pobres: “As-
sim poderemos atravessar o milênio mais conscientes, mais livres e mais
enriquecidos na adesão à fé cristã” (LIBANIO, 2000, p. 332).
Dito isso, impõe-se ainda tratar, do ponto de vista da fé, a questão da
historicidade da revelação bíblica (cap. 16) e, pari passu, a releitura da
Escritura como fonte (cap. 17) e a Tradição (cap. 18). De toda forma,
Libanio conclui:
Os livros sagrados, a Inspiração que levou os redatores a consignar por escri-
to a revelação, a canonicidade que define os livros autênticos são, no fundo,
realizações concretas do projeto salvífico de Deus, que passa pela colaboração
dos homens e também sofre de suas limitações. A última garantia da verdade
de todo esse processo é a presença atuante de Deus Pai pela ação do Filho e
do Espírito Santo (LIBANIO, 2000, p. 364).

Neste último capítulo da 2ª parte, o autor ressalta a importância da Tra-


dição, mas a define como “o que a Igreja crê e vive”. Antes, ele precisará
levantar a problemática, fazendo distinções desse termo tão polemizado.
Dentro de uma compreensão mais ampla e discernida, ressaltando o papel
do teólogo e, não menos, o papel do pobre, Libanio retoma o próprio desejo
expresso pelo papa João XXIII nas vésperas do Concílio Vaticano II: “Em
face dos países subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta tal como é e quer
ser: a Igreja de todos e, particularmente, a Igreja dos pobres” (LIBANIO,
2000, p. 377). Infelizmente, apesar dos estudos feitos sobre esse rosto que
a Igreja deveria assumir, o tema foi diluído. Mas vale ressaltar aqui como
essa questão criteriosa foi retomada no “Pacto das catacumbas” e, notada-
mente, resgatada e projetada na recepção conciliar, seja na conferência de
Medellín, seja na de Puebla (OLIVEIRA; LIMA, 2021, p. 582-607). Aliás,
Francisco retoma essas orientações não apenas por ser latino-americano,
mas por ser o primeiro papa a ter sido ordenado depois da realização do
Concílio, seguindo as orientações conciliares não somente na letra, mas
no espírito.

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024 33

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 33 07/05/2024 20:40:48


2.3 Desafios (e oportunidades) atuais
As teáticas dos três capítulos da última parte, a rigor, também aparecem
no tratado da revelação: a fé cósmica (cap. 19), o diálogo com as religiões
(cap. 20) e a perspectiva da libertação, aplicada ao “nós cremos” (cap. 21).
De fato, “a teologia tradicional estudava o tema da criação e da graça num
único tratado, chamado De Deo creante et elevante” (LIBANIO, 2000, p. 383).
Partindo da virada antropocêntrica na cultura e a virada cristocêntrica na
teologia, o autor recoloca a questão da criação em perspectiva ecológica.
Libanio trata do surgimento de uma nova consciência em confronto com
os grandes interesses políticos e econômicos. Interessante como ele dis-
tinguia, já no ano 2000, a ecologia ambiental, a ecologia social, a ecologia
mental e, por fim, a ecologia integral e espiritual. Libanio, porém, indica
a necessidade de “repensar a fé cristã” (LIBANIO, 2000, p. 403) nessa
perspectiva cósmica, bastante inspirada por Teillard de Chardin, conforme
citação e um recorte textual sob o título “a divinização das passividades”
(LIBANIO, 2000, p. 407-408). Mas o autor, do ponto de vista da teologia
fundamental, acena que tal perspectiva deverá igualmente ajudar a repensar
a cristologia, a Trindade e a teologia da criação.

Na sequência, ele aborda outro fenômeno da atualidade: “o surto religioso”


(LIBANIO, 2000, p. 383). Afinal, “como, de um lado, pensar a fé cristã
nessa onda religiosa e, de outro, como responder ao reclamo do diálogo
com as outras denominações religiosas?” (LIBANIO, 2000, p. 409). Libanio
busca indicar tanto os fatos novos do “quadro religioso atual” como os
“modelos interpretativos da religião”, seguindo a dupla perspectiva do
desafio, não sem incluir a questão dos empobrecidos, desse modo buscando
a dimensão e força libertadoras da religião.

O tratado da fé chega a um capítulo conclusivo, como no livro sobre o tratado


da revelação, tentando abordar o tema sob a perspectiva latino-americana da
libertação. Primeiro, evoca o contexto sociopolítico da fé, embora de forma
muito ampla e até genérica, mas não menos insistente, da “opção da liber-
tação no interior da fé” e da “práxis libertadora” do ato de fé (LIBANIO,
2000, p. 439-440). Em segundo lugar, o autor aborda as diversas formas
ou figuras da relação entre fé e política, tanto ao longo da história como
no tempo presente nos documentos da Igreja, e também em sua novidade
latino-americana, tematizando, outramente, a relação entre teoria e prática:
Somente na serenidade de um diálogo em que se perceba a necessidade des-
ses dois polos – ortodoxia e ortopráxis – a Igreja poderá caminhar e crescer.
A radicalização num dos dois, como se a vida cristã pudesse ser reduzida a
um deles, é empobrecedora e prejudicial. Na linguagem da Dei Verbum, Deus
se revelou gestis verbisque. Portanto, essa revelação se fará vida a Igreja gestis
verbisque. Onde há muitas palavras, doutrina, haja profetas que atuem práticas
e gestas. Onde as gestas, as práticas desconhecem a doutrina, a palavra, haja
mestres que ensinem. (LIBANIO, 2000, p. 463)

34 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 34 07/05/2024 20:40:48


3 Revelação e fé às fronteiras: para pensar com Libanio
outramente...

Nas suas duas obras principais, expressamente relacionadas à teologia


fundamental, Libanio seguiu o esquema tradicional (tratados e temas),
embora atualizando seus conteúdos à luz do concílio Vaticano II e de sua
recepção na América Latina (método e conteúdo). Mas, ao mesmo tempo,
além dos conteúdos tradicionais da teologia fundamental, o grande teólogo
brasileiro incluiu temas às fronteiras das disciplinas, dos contextos culturais
e da própria fé. Para além do contexto de aggiornamento do Concílio, esses
eixos temáticos – revelação, fé e problemas fronteiras – correspondem, his-
toricamente, à tradição de uma teologia fundamental responsável, exigência
da esperança cristã, tarefa tão antiga quanto a própria história da fé cristã
e de suas contestações (METZ, 1999, p. 30). Os temas fronteiriços foram
tratados na perspectiva da teologia fundamental, mas em uma bibliografia
vasta e diversa (DE MORI, 2016, p. 211-238), que mereceriam um artigo
à parte. Retomemos, porém, a sua última obra, testamento e síntese, na
perspectiva de pensar com Libanio uma outra teologia fundamental.

3.1 Legado e testamento


Pensando em seus alunos e também no grande público, antes de partir,
Libanio deixou um livro já preparado, que foi publicado no ano mesmo
de seu falecimento, inclusive registrado pela editora como homenagem e
gratidão, por coincidir o fechamento da edição de seu último livro com
a sua despedida, em 30 de janeiro de 2014. Nessa Introdução à Teologia
Fundamental (LIBANIO, 2014), a rigor, não encontramos nenhum aspecto
realmente inédito, mas há de se notar um estilo maduro e simples de sua
reflexão, bem mais sintética, além de alguns toques epocais. Em princípio,
o autor mantém sua abordagem, inspirada no Concílio Vaticano II e sua
recepção, inclusive assumindo o jeito latino-americano de fazer teologia,
nos sete capítulos deste livro bastante agradável de ler, retomando o fun-
damental com leveza e concisão: um verdadeiro testamento.
No primeiro capítulo, fiel ao método da teologia latino-americana, o autor
parte da situação em seu duplo aspecto, cultural e religioso/eclesial, guiado
pela pergunta a ser feita diante do “simples fiel ou para o iniciante do
curso de teologia” (LIBANIO, 2014, p. 9): “Na condição sociocultural de
hoje, que desafios o cristão enfrenta para crer com lucidez e honestidade?”
(LIBANIO, 2014, p. 9). Nosso autor retomará, assim, a situação do crer na
cultura e realidade latino-americanas, mas, ao invés de aspectos econômicos
e políticos, ele abordará alguns “pontos centrais” como, por exemplo, “a
contínua mudança, os mitos, os ídolos, a magia e a violência” (LIBANIO,
2014, p. 10) e, ademais, tratará do impacto no contexto religioso e eclesial,
marcado não apenas por uma secularização generalizada, mas também,

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024 35

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 35 07/05/2024 20:40:48


especialmente em países como o Brasil, por uma efervescência e ambigui-
dade religiosas sem precedentes. Aliás, foi precisamente esse último aspecto
que me motivou, como eventual sucessor da cadeira de fundamental na
faculdade jesuíta, indicado pelo próprio Libanio, a postular uma teologia
como discernimento e não apenas um juízo teológico sobre a realidade,
considerando o rosto plural da fé e o problema da ambiguidade religiosa,
tanto do catolicismo tradicional brasileiro como da efervescência religiosa
atual, em vista de um verdadeiro discernimento teológico e pastoral do
crer (OLIVEIRA, 2008; OLIVEIRA, 2004).

Em segundo lugar, o autor faz uma releitura da própria teologia fun-


damental (cap. 2), partindo da modernidade e do Concílio de Trento,
consolidando-se como um verdadeiro sistema apologético até o 1º Concílio
Vaticano e desembocando no Concílio Vaticano II, quando se fez uma
verdadeira reinterpretação da revelação e da fé, relançando os novos
rumos desta disciplina e de toda a teologia católica, em diálogo com
outras formas de pensar e de viver (cap. 3). Na sequência, me parece
genial como Libanio trabalha a metáfora da “porta da fé” de Bento XVI,
mas dando-lhe uma maior dinamicidade, mostrando um “entra e sai”
interessante (cap. 4). Como sabemos, já nos umbrais do novo milênio,
João Paulo II havia tomado a imagem da porta, da mesma forma que o
papa Francisco o fez no ano da misericórdia e, em sentido amplo, tem
tentado abrir portas na igreja (MALZONI; PACHECO; OLIVEIRA, 2019,
p. 27-35). De uma parte, existem as portas de saída da igreja e da fé, a
saber, segundo Libanio: as ciências modernas, a autonomia do sujeito, a
consciência histórica, o fenômeno religioso difuso, o impacto da mídia e
a concepção contemporânea de práxis (LIBANIO, 2014, p. 217). De outra
parte, o autor indica também algumas portas de entrada desde o apelo
contínuo de Deus a determinas experiências existenciais, da leitura das
Sagradas Escrituras às inquietações intelectuais, das experiências comu-
nitárias à entrega da vida em martírio, do despertar ecológico às práticas
engajadas no campo da justiça social, dos novos movimentos à beleza da
liturgia e algumas inovações pastorais.

No entanto, nosso teólogo fundamental reafirma e privilegia ainda a ca-


tegoria de revelação, caracterizando-a como ponto central (cap. 4). Dito
isso, o autor segue as orientações do Concílio Vaticano II e, reafirmando o
critério central da revelação (cap. 5), faz uma reinterpretação de três aspec-
tos de importantes temáticas, sobretudo depois da reforma, na perspectiva
católica, a saber: Escritura, tradição e magistério (cap. 6). Realmente são
os temas em que a Dei Verbum relança a reflexão, superando o esquema
das duas fontes, reafirmando a fonte única do Evangelho e o problema
central da “transmissão” que se desenvolve nas três reinterpretações acima:
vale destacar que o novo concílio do Vaticano retoma a questão de Trento,
mas dentro de uma nova chave hermenêutica, notadamente ecumênica,
dialogal e pastoral.

36 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 36 07/05/2024 20:40:48


Enfim, no último e longo capítulo 7, ele aborda o tema da evangelização,
considerada por ele uma das maiores preocupações da Igreja católica,
em uma diversidade de concepções, mas em duas grandes perspectivas
principais: primeiramente, a proposta de Medellín ou a partir das refle-
xões latino-americanas voltadas para o dinamismo de comunidade; e, em
segundo lugar, a da falta de evangelização e a progressiva perda de fiéis,
conforme o esvaziamento de nossas igrejas, realidade que a pandemia
agravou ainda mais.

3.2 Para pensar com Libanio...


Agradecendo ao grande mestre, gostaria de “pensar com Libanio” (OLI-
VEIRA, 2004, p. 133)2 uma teologia fundamental outramente, desafiado por
novas gerações, suas questões e contestações. Afinal, parafraseando Tillich
referindo-se a Kant, compreender Libanio significa ir além dele (TILLICH,
1972, p. 273). Aliás, o próprio Libanio, indagando-se sobre que alterações
introduziria, caso voltasse a lecionar, do ponto de vista do método, disse que
Proporia antes tarefas que pedissem reflexão, ilação, articulação, sistematiza-
ção, e não conteúdo facilmente acessível. Usaria muito o método de perguntas
concatenadas de modo que o aluno, ao respondê-las, formaria um eixo de
compreensão da questão fundamental. E pediria que, a partir deles, expuses-
sem livremente um tema, não permitindo leitura de texto. No caso concreto
da Teologia Fundamental, sondaria quais são os problemas que a cultura de
hoje levanta-lhes e como eles percebem as respostas (LIBANIO, 2012, p. 24).

Do ponto de vista do conteúdo, ele indica alguns temas: primeiro, ecu-


menismo e pluralismo religioso, observando que deveria ser de forma
transversal; depois, temas de sociedade que precisam ser refletidos teologi-
camente, como a questão de gênero e da ecologia; e, por fim, compreender
melhor os movimentos restauradores, marcados pelo “neoconservadorismo
institucionalizante em cultura de extrema subjetividade” (LIBANIO, 2012,
p. 24-25).

Para pensar com Libanio, portanto, destacamos, primeiro, uma de suas


grandes lições; depois, levantamos alguns questionamentos e, por fim,
arriscamos uma proposta de ensino da teologia fundamental como “fé que
busca compreender” (MURAD, 2012, p. 105), conforme um jeito de pensar
a fé em diálogo com outros pensadores e com a sociedade.

Aprendemos de Libanio uma lição que se repete em suas três obras de


teologia fundamental: ele propõe partir das questões levantadas pelos

2
“Comprendre Kant c’est aller au-delà de lui” (TILLICH, 1972, p. 273). Inspirado nesta
frase, propus em minha tese “pensar com Tillich”, expressão indicativa de uma busca de
interlocução com o autor em uma realidade distinta: ao mesmo tempo de conversamos com
um autor e seu pensamento, avançamos além dele (OLIVEIRA, 2004).

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024 37

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 37 07/05/2024 20:40:48


estudantes para conversar melhor com as novas gerações, sem renunciar,
contudo, ao papel de levantar questões fundamentais, e arriscar critérios de
um real discernimento teológico e pastoral, tão urgente como necessário.

A crise contemporânea indica, porém, que “não vivemos uma época de


mudanças, mas uma mudança de época”, frase que se tornou corriqueira,
como ele mesmo atesta (LIBANIO, 2012, p. 199). Nesse contexto, a busca
de segurança e fundamentos sólidos em tempos líquidos (BAUMAN, 2007)
confirma ainda mais que vivemos um tempo de muitas incertezas – “O
futuro chama-se incerteza” (MORIN, 2000, p. 81) – realidade que suscita
mais perguntas que respostas. Isso, porém, não deixa de ser um sinal
dos tempos, a ser considerado também como pista e novo horizonte de
pensamento: “Há um momento em que percebemos que as perguntas nos
deixam mais perto do sentido, da abertura do sentido, do que as respostas”
(TOLENTINO MENDONÇA, 2017, p. 12). Nesse exercício, seguiremos a
pista de algumas perguntas para continuar a tarefa e o ensino de uma
teologia fundamental contemporânea.

1. Até que ponto o grande comunicador e teólogo J.B. Libanio não se


contentou apenas em traduzir e/ou atualizar conteúdos, de forma mais
explicativa e didática3, sem realizar uma virada significativa condizente
com a grande mudança de época que ele próprio vislumbrou? Certamente,
a tarefa de atualização era a mais urgente e decisiva no primeiro momento
pós-conciliar. Mas, passado o tempo, fiel ao próprio movimento de ag-
giornamento, não se fazia necessário deliberar sobre algumas evoluções da
teologia, da Igreja e da humanidade e, sobretudo, considerar questões fun-
damentais totalmente novas (LAMBERIGTS et al., 2015, p. 53-82; 151-156)?

2. A teologia libaniana, fortemente marcada pelos tratados da revelação e da


fé, não teria ficado muito presa à categoria de revelação, esta contextualizada
pela modernidade? É verdade que existe uma centralidade e importância da
revelação, sobretudo nesses últimos séculos, mas importa ampliar as formas
de dizer a manifestação de Deus, pois além de outras expressões fundamen-
tais (“caminho”, “tradição”, “mistério”, “doutrina”, “tradição”), nenhuma
delas pode substituir a de Evangelho (THEOBALD, 2001, p. 7). E, no cam-
po brasileiro, até que ponto não deveríamos pensar a revelação outramente,
para além da modernidade, como por exemplo: “a obra de Aquino Júnior
[Teologia e Hermenêutica] permitirá ao leitor ter contato com a genialidade
de um outro pensamento teológico para além do ser e que, portanto, leva
em conta o fato de que a Revelação de Deus de Jesus implodir os cânones
de uma teologia teológico-bíblica da viragem moderna dessa ciência inter-
pretativa. Em contrapartida, trata-se de uma outra teologia que se faz com
uma outra-(mente), isto é, uma teologia outramente hermenêutica que leva

3
O próprio Libanio confessou, inclusive como opção: “prefiro o gênero mais do generalista
ao do especialista” (LIBANIO, 2012, p. 210).

38 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 38 07/05/2024 20:40:48


em consideração a mente correlativa de um agir ou de uma práxis cravada
na Revelação e na hermenêutica que passa, necessariamente, pelo crivo da
carne, do corpo de Deus, isto é, da Palavra que se faz carne na palavra-carne
dos pobres a quem se destina a boa-nova da salvação em meio à vulnerabi-
lidade do Deus de Jesus crucificado, morto e ressuscitado pelas vítimas da
história” (RIBEIRO, 2021, p. 10-11).

3. Assim como “a Bíblia insiste, pedagogicamente, na pluralidade de


acessos” (TOLENTINO MENDONÇA, 2013, p. 15), a teologia, com muita
mais razão, deveria buscar essa diversidade para tentar aproximar-se do
mistério de Deus que se revela de tantas formas e expressões da realização
humana (QUEIRUGA, 2015, p. 67-72). Será que a sua visão de modernidade
e pós-modernidade não era demasiado entusiasta? Até que ponto Libanio
considerou a dinâmica de “escondimento” na revelação e silêncio na fé,
como acenam alguns autores (TOLENTINO MENDONÇA, 2015, p. 75-123;
MENDOZA-ALVAREZ, 2011)? Além disso, como considerar a perspectiva
decolonial na teologia fundamental, a exemplo do que se busca em outros
campos (RASCHIETTI, 2022)?

4. Será que as reflexões de Libanio não permaneceram, finalmente, reféns


de uma certa filosofia do sentido, confirmando que seu grande “interlo-
cutor privilegiado” foi sempre Henrique de Lima Vaz, como ele próprio
afirmou (LIBANIO, 2012, p. 210)? Será que essa dívida ou escolha de
um fundamento sólido segundo o pensamento vaziano, por mais valioso
e importante que seja, não o inibiu de interagir mais radicalmente com
outras formas de pensar nas diversas correntes de pensamento da teolo-
gia da libertação, como ele tão amplamente classificou (LIBANIO, 1987),
mas também com as gerações emergentes (MENDOZA-ÁLVAREZ, 2011),
considerando o desmoronamento da própria modernidade e a uma outra
forma de pensar a própria teologia em uma era pós-metafísica, pós-cristã?

3.3 Teologia fundamental outramente


Nesse passo, a título de provocação e na perspectiva do exercício docente,
gostaria de propor dois momentos distintos no ensino desta disciplina univer-
sitária. Considerando que não podemos partir de uma cultura religiosa cristã
básica de nossos estudantes, faz-se necessário uma visão ampla e histórica
da própria linguagem da fé, segundo os conceitos que foram reelaborados
ou criados ao longo da história do cristianismo e, ao mesmo tempo, os
egressos precisam não apenas compreender criticamente, mas, como cristãos,
inclusive, continuar o exercício de fazer teologia diante de novas situações
históricas, conforme indicam as próprias diretrizes curriculares para os cursos
de Bacharelado em Teologia (MURAD, 2012, p. 123-124).
Proponho, assim, reorganizarmos o curso de teologia fundamental em dois
momentos distintos: primeiro, estudar, em uma perspectiva mais histórica,

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024 39

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 39 07/05/2024 20:40:48


a gestação da própria linguagem da fé, desde as apologias antigas até
a teologia fundamental moderna e contemporânea; segundo, fazer uma
reflexão e debate levantando as questões fundamentais de teologia, de
forma mais interativa e participativa (sala de aula invertida). Para essa
abordagem histórica preliminar pode-se usar, por exemplo, a obra clássica
de Sesboüé e Theobald (1996), supracitada e traduzida no Brasil. Trata-
-se, porém, não de privilegiar os conceitos complexos e abstratos, embora
desenvolvendo-os, mas, sobretudo, buscando contextualizar cada um deles,
ensinando a evitar anacronismos e conservadorismos infundados, mostrando
a própria dinâmica da teologia em seu exercício de reinterpretar a fé a
partir de suas contestações ao longo da história. Por sua vez, faz-se indis-
pensável, depois de um itinerário maior dos estudantes nos estudos das
demais disciplinas, propor um segundo momento, de preferência no final
da graduação, proporcionando uma retomada de todos os “tratados” ou
disciplinas teológicas, numa perspectiva de síntese pessoal e coletiva, sob
o modo de questões fundamentais. Além de permitir uma maior interação
e debate, tal exercício acadêmico poderia proporcionar uma visão geral
da teologia e, eventualmente, a possiblidade de uma continuidade, seja
no ministério pastoral seja em uma pós-graduação. Nesse caso, a melhor
forma seria de seminário interdisciplinar, inclusive convidando os demais
professores para um debate com o de teologia fundamental.

Enfim...

Libanio cumpriu à risca a sua missão de buscar as razões de nossa espe-


rança perante os desafios do tempo em que viveu, fazendo uma teologia
alinhada às orientações conciliares, não apenas atualizando os tratados da
fé e da revelação, mas tratando de tantos outros temas em diálogo com
a sociedade. Incluiu na teologia fundamental os problemas de fronteiras
(METZ, 1965, p. 3-7), segundo o paradoxo cristão fundamental: por um
lado, a fé cristã repousa sobre a afirmação da revelação plena de Deus
em Jesus Cristo, uma vez por todas (ephapax: Hb 9,12), por outro, uma
“nova interpretação deve ser recomeçada diante de cada situação nova e
perante quem quer que nos interpele (1Pd 3,15)” (OLIVEIRA, 2012, p. 87).

Desse modo, pensar uma teologia fundamental outramente, a rigor, não


significa senão continuar o exercício tão antigo como o próprio cristianismo
de buscar novas razões e novas formas de dizer a nossa esperança diante
de nós mesmos e de tantos outros interlocutores, estudantes e autores, em
sua diversidade irredutível de viver e de pensar, preparando-nos, assim,
para testemunhar e justificar a fé em toda sua justeza e mistério inesgotá-
vel, diante de toda pessoa que dela nos pedir contas, em qualquer tempo
e lugar, mas com “mansidão e respeito” (1Pd 3,16), afinal, “só o amor é
digno de fé” (BALTHASAR, 1999). Assim, seja!

40 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 40 07/05/2024 20:40:48


Referências
BALTHASAR, H. U. L’amour seul est digne de foi. Saint-Maur: Parole e Silence, 1999.
BAUMAN, Z. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
BINGEMER, M.C.L. A experiência e a história: espaços da Teologia Fundamental.
In: GASDA, E. E. Sobre a Palavra de Deus. Hermenêutica bíblica e Teologia Funda-
mental. Petrópolis: Vozes, 2012.
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Dei Verbum. 1965. Disponível
em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/
vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html Acesso em: 4 nov 2023.
DAMIÃO, S. A. Teologia da Felicidade. São Paulo: Loyola; Rio de Janeiro: Editora
PUC-Rio; Recife: Unicap, 2022.
DE MORI, G. Ouvinte e servidor da Palavra: bibliografia primária de João Batista
Libanio. In: MURAD, A.; BOMBONATTO, V. Teologia para viver com sentido. São
Paulo: Paulinas, 2012.
LAMBERIGTS, M. et al. 50 anos após o Concílio Vaticano II: teólogos do mundo
inteiro deliberam. São Paulo: Paulinas, 2017.
LIBANIO, J. B. Entrevista a Flávio Senra. In: MURAD, A.; BOMBONATTO, V.
Teologia para viver com sentido. São Paulo: Paulinas, 2012.
LIBANIO, J. B. Eu creio, nós cremos: tratado da fé. São Paulo: Loyola, 2000.
LIBANIO, J. B. Introdução à Teologia Fundamental. São Paulo: Paulus, 2014.
LIBANIO, J. B. Teologia da libertação: roteiro didático para um estudo. São Paulo:
Loyola, 1987.
LIBANIO, J. B. Teologia da revelação a partir da modernidade. São Paulo: Loyola, 1992.
Coleção Fé e Realidade.
MALZONI, C. V.; PACHECO, L.; OLIVEIRA, P. R. F. As portas de uma igreja aberta
segundo João Evangelista [E outras histórias que a Bíblia não contou]. São Paulo:
Paulinas, 2019.
MENDOZA-ÁLVAREZ, C. O Deus escondido da pós-modernidade: desejo, memória e
imaginação escatológica. Ensaio de teologia fundamental pós-moderna. São Paulo:
Realizações, 2011.
METZ, J.-B. Éditorial à l’édition française. Concilium, n. 6, p. 3-7, 1965.
METZ, J.-B. La foi dans l’histoire et dans la société: essai de théologie fondamentale
pratique. Paris, Cerf, 1999.
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Bra-
sília: Unesco, 2000.
MURAD, A. Aprender a pensar e a dialogar à luz da fé. In: MURAD, A.; BOM-
BONATTO, V. Teologia para viver com sentido. São Paulo: Paulinas, 2012.
OLIVEIRA, P. R. F. Discerner la foi dans des contextes religieux ambigus: enjeux d’une
théologia du croire. Paris: Cerf, 2004.

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024 41

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 41 07/05/2024 20:40:48


OLIVEIRA, P. R. F. O Rosto Plural da Fé: da ambiguidade religiosa ao discernimento
do crer. Recife: Unicap; São Paulo: Loyola, 2008.
OLIVEIRA, P. R. F. Dar razões da esperança cristã no seio da ambiguidade re-
ligiosa. In: MURAD, A.; BOMBONATTO, V. Teologia para viver com sentido. São
Paulo: Paulinas, 2012.
OLIVEIRA, P. R. F. Libanio, João Batista théologien (1932-1914). In: CHEZA, M. et.
Al. Dictionnaire historique de la Théologie de la Libération. Paris: Lessius, Namur, 2017.
OLIVEIRA, P. R. F.; LIMA, D. N. O papa Francisco na agenda do Concílio Vaticano
II: por uma Igreja servidora e pobre, a serviço do Evangelho e do Reino. Horizonte,
Belo Horizonte, v. 19, n. 59, p. 582-607, 2021.
QUEIRUGA, A. T. A teologia depois do Vaticano II: diagnósticos e propostas. São
Paulo: Paulus, 2015.
RASCHIETTI, E. A missão em questão: a emergência de um paradigma missionário
em perspectiva decolonial. Petrópolis: Vozes, 2022.
RIBEIRO, N. Prefácio. Pensar a hermenêutica teológica outramente: Do saber
hermenêutico à sabedoria do Deus dos pobres. In: AQUINO JÚNIOR, F. Teologia
e Hermenêutica: da “teologia como hermenêutica” ao momento hermenêutico da
teologia. Petrópolis: Vozes, 2021.
SESBOÜÉ, B.; THEOBALD, C. La parole du salut: histoire des dogmes. Tome IV.
Paris: Desclée, 1996.
THEOBALD, C. La Révélation. Paris: Ed. de l’Atelier, 2001.
TILLICH, P. La naissance de l’esprit moderne et la théologie protestante. Paris: Cerf, 1972.
TOLENTINO MENDONÇA, J. A leitura infinita: a Bíblia e a sua interpretação. São
Paulo: Paulinas; Recife: Unicap, 2015.
TOLENTINO MENDONÇA, J. Nenhum caminho será longo: Por uma teologia da
amizade. São Paulo: Paulinas, 2013.
TOLENTINO MENDONÇA, J. O pequeno caminho das grandes perguntas. Lisboa:
Quetzal, 2017.

Artigo submetido em 01.02.2024 e aprovado em 02.03.2024.

Pedro Rubens Ferreira Oliveira é Doutor em Teologia pelas Facultés Jésuites de Paris (2002),
professor da Unicap, desde 2006, onde é pesquisador do programa de pós-graduação em
Teologia. orcid.org/0000-0002-2736-5523.E-mail: pedro.rubens@unicap.br
Endereço: Rua do Príncipe, 526 -Boa Vista
50050-900 Recife — PE

42 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 56, n. 1, p. 21-42, Jan./Abr. 2024

Perspectiva 158 Jan Abr n1 2024.indd 42 07/05/2024 20:40:48

Você também pode gostar