O Jogo Social Da Memória e Da Identidade

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O jogo social da memória e da

identidade: transmitir, receber – por


Talita Magnolo e Luísa Guimarães

Aqui, apresentamos algumas reflexões de Joël Candau


no livro “Memória e Identidade” (2018). O autor
começa relembrando sobre o termo “Pensamento
social” (HALBWACHS), que vincula à uma memória,
que resulta, em essência, de transmissão de um capital
de lembranças e esquecimentos. Ainda sobre este
tema, o autor considera como sendo um “Fracasso da
memória” quando a exteriorização do pensamento e da
cadeia de memória torna-se impossível. Um exemplo
seria quando os deportados achavam que seus filhos
não acreditariam em suas histórias e os filhos não
tinham coragem de escutá-los.
“E quando a transmissão é impossível, indizível,
como imaginar que se possa ter um
compartilhamento capaz de fundar as
representações de uma identidade coletiva?”

Sem a mobilização da memória, que é a transmissão, já


não há socialização nem educação, e, ao mesmo tempo,
se admitimos, que a cultua é “uma tradição
transmissível de comportamentos apreendidos”, toda
identidade cultural se torna impossível. Se o homem é
um ser social, significa que a transmissão contínua de
conhecimentos entre as gerações, sexo, grupos, lhe
permite aprender ao longo de sua vida e, ao mesmo
tempo, satisfaz o seu instinto intelectual e subjetivo. A
aprendizagem seria, portanto, a adaptação do presente
ao futuro organizada a partir de uma reiteração do
passado.

Se a essa transmissão é repetida várias vezes diante de


muitos indivíduos, estará no princípio da reprodução
de uma sociedade. No entanto, essa reprodução jamais
será pura ou uma autêntica transfusão memorial, já
que ela “não é assimilada como um legado de
significados nem como uma conservação de uma
herança”. Para que seja útil na construção das
estratégias identitárias, essa transmissão deve atuar
no complexo jogo da reprodução e da invenção da
restituição e da reconstrução, da fidelidade e da
traição, da lembrança e do esquecimento

“Se memorizar serve para transmitir, é o


conteúdo transmitido ou o laço social que gera a
transmissão? Educação, museus, arte, não são
formas operacionais de transmissão visando
menos transmitir uma memória que fazer entrar
nas memórias a crença do corpo social em sua
própria perpetuação, a fé em raízes comuns e um
destino compartilhado, ou seja, uma consciência
identitária? Qualquer que seja a resposta a essa
questão é certo que nada seria possível sem a
expansão da memória humana”

O autor afirma que o cérebro humano não dá conta de


reter todas as memórias. O homem, portanto, recorre a
extensões da memória. Progressivamente, essa
exteriorização da memória vai permitir a transmissão
memorial. As gravuras pré-históricas, por exemplo, são
provavelmente a primeira expressão de uma
preocupação propriamente humana de inscrever,
deixar rastros, assinar, deixar suas iniciais, fazer
memória, quer se trate de uma memória explícita ou de
uma memória mais complexa, de abstrações, símbolos,
entre outros.
A tradição escrita facilitou o trabalho dos portadores,
guardiões e difusores da memória. Os primeiros
memoriais consagrados do Holocausto, por exemplo,
foram narrativas escritas, com lembranças que contam
a vida e a destruição das comunidades judaicas. Tais
produções desejavam transformar o lugar de leitura
em espaço comemorativo, que exerceu um importante
papel na construção identitária. A escrita permitiu,
portanto, a socialização da memória e a possibilidade
de estocagem de informações cujo caráter fixo pode
fornecer referenciais coletivos.

“Com os grandes textos, os princípios autorizados


de inteligibilidade do mundo social se tornam
disponíveis não apenas para a população de
letrados, mas para todos que possuem a
possibilidade de escutá-los por ocasião das
grandes narrações, pregações, sermões,
exportações de toda natureza que se nutrem de
textos fundadores. O fato de que apenas as
religiões do Livro sejam verdadeiramente
religiões do proselitismo é outro sinal do poder
memorial da escrita. Em muitos casos, no
entanto, o escrito é antes um álibi do que um
instrumento para a memória. No entanto, mesmo
quando o texto fica como referência visual, com
frequência citados em variadas versões, mas
nunca de fato consultado, ela orienta as
memórias individuais em uma mesma direção,
focaliza-se em direção a significações particulares
que terão, por conseguinte, grandes
possibilidades de serem compartilhadas”

O autor afirma que Mondhler Kilani observou que a


simples evocação da existência do documento tem
efeito de persuasão sobre os ouvintes, sem que seja
necessário o uso efetivo do ato notorial. Nos casos em
que isso acontece, pouco importa o conteúdo exato da
memória escrita que é mobilizada para confortar e
tornar provável a memória oral e que, por essa razão,
contribui para o seu compartilhamento. O texto é,
nesse caso, um fator de “uniformização tendencial dos
horizontes mentais”, se torna fraca e adquire da forma
de “comunidade imaginada”. O autor levanta a
seguinte hipótese: a escrita facilitou a socialização de
um certo conteúdo memorial mais consistente do ponto
de vista factual e, provavelmente, superficial, do ponto
de vista das representações

A memória humana está de tal modo dilatada que


nenhuma memória individual pode pretender esconder
seu conteúdo. Ao final do segundo milênio,
presenciamos uma aceleração da expansão da
memória, a tal ponto que a modernidade poderia ser
definida como uma tentativa de codificação total do
mundo e a produção profusa de informações, traços e
imagens. Nos últimos anos produziu-se muito mais
informações do que nos últimos cinco mil anos (livros;
vídeos; jornalismo; internet, celulares…). O autor
alerta para o risco de museus e bibliotecas se tornarem
“terrenos documentais abandonados” e, segundo ele, o
arquivo trabalha a priori contra ele mesmo.

“Em resumo: o mundo moderno produz traços e


imagens a um nível jamais visto na história das
sociedades humanas, estando em parte submisso
às “ideologias de segurança” da história e da
memória que conduzem a tudo conservar, tudo
armazenar, musealizar a totalidade do mundo
conhecido e, por outro lado, continuando a
produzir mais informações e mensagens.”

É possível pensar que, sob influência das novas


tecnologias de informação e comunicação, uma nova
espécie humana parece nascer atualmente sob nossos
olhos, que o autor chama de “comunicantes”, imersa
em um universo desordenado de traços e irrigada por
fluxos ininterruptos de imagens. Os indivíduos, em
razão da impossibilidade de suportar as imensas
sobrecargas memoriais, são muitas vezes incapazes de
conferir sentido às informações adquiridas: estas são
apresentadas, mas raramente representadas. As
sociedades modernas são menos capazes de transmitir
memória que aquelas de menor expansão memorial.

O autor destaca a importância dos quadros sociais para


a transmissão da memória religiosa ou doméstica e,
quando esses quadros sociais entram em colapso ou se
tornam múltiplos ou multiformes, a transmissão é
interrompida, provocando uma falta e uma necessidade
de memória. A compulsão memorial contemporânea e o
que denominamos crises identitárias se explicariam
por uma expansão descontrolada da memória.

Em “As vias de transmissão”, o autor reitera a ideia de


que a transmissão de identidades culturais não é
exclusiva da língua escrita, ocorrendo de diferentes
formas. A cultura doméstica, como exemplifica Candau,
é perpetuada através das memórias domésticas
transmitidas por meio de filmes, fotografias, entre
outros.

A invenção da fotografia possibilitou a construção e a


propagação de memórias de acontecimentos factuais e
familiares, tornando mais fácil o processo de
transmissão. Entretanto, como ressaltado no texto, tal
invenção também facilitou a criação de memórias
manipuladas.

Além da cultura doméstica, existe também a cultura


profissional, que preza a criação de memórias acerca
dos saberes necessários para a realização de um
trabalho. Pescadores, enfermeiros, jornalistas – todas
essas figuras possuem uma identidade profissional
própria, repassada de geração em geração. Citando o
autor: “transmitir uma memória e fazer viver, assim,
uma identidade não consiste, portanto, em apenas
legar algo, e sim uma maneira de estar no mundo.”

No subcapítulo seguinte, “Memória e Protomemória”,


Candau propõe uma distinção entre dois tipos de
transmissão: a memorial, referente à construção de
memórias, e a protomemorial, referente às ações
involuntárias, ao senso prático de cada um e aos
diversos dispositivos inscritos ao corpo. Ele infere que
qualquer tipo de transmissão essencialmente
protomemorial é um elemento decisivo na formação de
identidades, tratando-se da difusão de costumes.
A tradição, como ele explicita, é uma combinação os
tipos de transmissão memorial e protomemorial, pois,
por definição, uma tradição é sempre autêntica e
possui um universo próprio de signos e experiências
coletivas, sendo uma representação do passado que se
atualiza no presente. Ademais, o autor aponta que, em
algumas comunidades, a recepção é mais importante
do que a transmissão em si, tendo em vista que o ato
de receber garante uma diversidade maior de
interpretações, assemelhando-se, assim, à
autenticidade da tradição. jovens americanos de
origem judaica que recebem as tradições de seus pais,
por exemplo, interpretam aquilo que é transmitido a
eles no contexto da sociedade americana em que foram
criados.

No que diz respeito ao debate recorrente entre


memória e esquecimento, Candau acredita que o
esquecimento não é necessariamente um fracasso da
memória, mas sim algo necessário. Sem o
esquecimento, as lembranças dos indivíduos não
teriam qualquer alívio. Ele elenca dois tipos principais
de esquecimento: o moderno, causado por perdas
identitárias dentro de um grupo social, e o tradicional,
causado pela possibilidade de ascender a um novo
estatuto em uma comunidade.

Por último, o autor faz uma distinção entre outras duas


formas de transmissão: a transmissão histórica e a
transmissão memorial. Enquanto a primeira pretende
representar com exatidão o passado, a segunda busca,
no máximo, a verossimilhança. Candau descreve a
transmissão histórica como a ordenação dos fatos e a
transmissão memorial como a desordenação dos fatos,
que são atravessados por emoções, paixões e afetos.
Ainda, alega que a história pertence a todos, enquanto
a memória é mais restrita e capaz de se integrar na
construção de estratégias identitárias.
ENTRE MEMÓRIA E HISTÓRIA: A
problemática dos lugares – por
Márcio Henriques

Apresentamos, aqui, os principais conceitos e


argumentos do texto ENTRE MEMÓRIA E
HISTÓRIA: A problemática dos lugares*, do
historiador Pierre Nora, nascido em 17 de novembro
de 1931, em Paris, conhecido pelos seus trabalhos
sobre a identidade francesa, a memória, o ofício do
historiador e pelo seu papel como editor em Ciências
Sociais, tendo seu nome associado à Nova História
(“nouvelle histoire”).

CLIQUE AQUI para acessar o texto completo

Em ENTRE MEMÓRIA E HISTÓRIA: A


problemática dos lugares, Nora (1993) inicia suas
considerações falando-nos sobre o conceito de
“aceleração da história”, expressão definida pelo autor
como
“uma oscilação cada vez mais rápida de um
passado definitivamente morto, a percepção
global de qualquer coisa como desaparecida –
uma ruptura do equilíbrio. O arrancar do que
ainda sobrou de vivido no calor da tradição, no
mutismo do costume, na repetição do ancestral,
sob o impulso de um sentimento histórico
profundo. A ascensão à consciência de si mesmo
sob o signo do terminado, o fim de alguma coisa
desde sempre começada.”

O autor sugere que o atual momento da história


desperta a curiosidade pelos lugares onde a memória
se cristaliza, considerando a existência de “locais de
memória” onde ainda existe um sentimento de
continuidade residual. “Há locais de memória
porque não há mais meios de memória.” Tal
fenômeno seria de extensão mundial, graças à
mundialização, à democratização, à massificação e à
mediatização. Teríamos, portanto, o fim das
“sociedades-memória, que asseguravam a conservação
e a transmissão dos valores: igreja ou escola, família ou
Estado”. Também constata-se o fim das “ideologias-
memórias, que asseguravam a passagem regular do
passado para o futuro, ou indicavam o que se deveria
reter do passado para preparar o futuro, quer se trate
da reação, do progresso ou mesmo da revolução”.

Dessa forma, o modo da percepção histórica dilata-se


prodigiosamente, com a ajuda da mídia, “substituindo
uma memória voltada para a herança de sua própria
intimidade pela película efêmera da atualidade”. Nora
considera que a aceleração contrapõe a “memória
verdadeira, social, intocada”, das sociedades arcaicas
com a história das sociedades atuais, condenadas ao
esquecimento do passado.

“Se habitássemos ainda nossa memória, não


teríamos necessidade de lhe consagrar lugares.
Não haveria lugares porque não haveria memória
transportada pela história.”

Assim, ao se perceber a inexistência de rastro,


distância ou mediação, não estaremos mais dentro da
verdadeira memória, mas dentro da própria história.
Nora opõe o conceito de memória ao conceito de
história, conforme as características apontadas abaixo:
MEMÓRIA HISTÓRIA
. é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse . é a reconstrução sempre problemática e inc
sentido, ela está em permanente evolução. do que não existe mais.
. é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno
. é uma representação do passado
presente.
. é afetiva e mágica, não se acomoda a detalhes que a . é uma operação intelectual e laicizante que
confortam. demanda análise e discurso crítico.
. emerge de um grupo que ela une. . pertence a todos e a ninguém.
. se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no . se liga às continuidades temporais, às evolu
objeto. às relações das coisas

Valendo-se dessa distinção, o autor afirma que a


memória é um absoluto, ao passo em que a história só
conhece o relativo, ao pretender uma reconstituição de
um passado sem lacuna e sem falha. “O movimento
da história, a ambição histórica não são a
exaltação do que verdadeiramente aconteceu, mas
sua anulação.” Contrapondo os modelos de história
francês e norte-americano, Nora indica o seguinte:
HISTÓRIA na França: HISTÓRIA nos EUA:
A historiografia é iconoclasta e irreverente. Ela Memória plural e de contribuições múltiplas. História com
consiste em tomar para si os objetos melhor disciplina sempre praticada. As diferentes interpretações n
constituídos da tradição. A memória se torna questionam a Tradição americana, seja porque, num certo
objeto de uma história possível. ela não exista, ou não passe principalmente pela história.

O autor conclui que, atualmente, o estudo dos lugares


na França encontra-se, na encruzilhada entre um
“movimento puramente historiográfico”, com a reflexão
da história sobre si própria e um “movimento
propriamente histórico”, correspondente ao fim de uma
tradição de memória. Sobre o conceito de “lugares de
memória”, Nora afirma que são,” antes de tudo,
restos. A forma extrema onde subsiste uma
consciência comemorativa numa história que a chama,
porque ela a ignora”.
Ressalta-se, a partir de então, a valorização do novo,
do mais jovem, do futuro. Em uma sociedade que tende
a reconhecer indivíduos iguais e idênticos – “museus,
arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários,
tratados, processos verbais, monumentos, santuários,
associações”, são considerados marcos testemunhais
de uma outra era, conferindo-nos a ilusões de
eternidade, o que nos proporciona sinais de
reconhecimento e de pertencimento, por seu aspecto
nostálgico.

A noção de que é preciso “manter aniversários,


organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres,
notariar atas” – atividades não naturais – fazem com
que os “lugares de memória” nasçam e vivam de um
sentimento onde não há memória espontânea. “Mas se
o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se
teria, tampouco, a necessidade de construí-los.”

Tais lugares representam “uma memória na qual não


mais habitamos, semi-oficiais e institucionais, semi-
afetivos e sentimentais”. Seriam, portanto, “lugares de
unanimidade sem unanimismo que não exprimem mais
nem convicção militante nem participação apaixonada,
mas onde palpita ainda algo de uma vida simbólica”. O
autor conclui que “não se celebra mais a nação, mas se
estudam suas celebrações”. Sobre a condição da
memória tomada como história, Nora nos diz que “tudo
o que é chamado hoje de memória não é, portanto,
memória, mas já história (…). A necessidade de
memória é uma necessidade da história”.

Quanto menos a memória for vivida do interior, mais


ela terá a necessidade de “suportes exteriores e de
referências tangíveis de uma existência que só vive
através delas”. “O que nós chamamos de memória
é, de fato, a constituição gigantesca e vertiginosa
do estoque material daquilo que nos é impossível
lembrar, repertório insondável daquilo que
poderíamos ter necessidade de nos lembrar.”

O autor considera que a produção de arquivos é,


portanto, um imperativo da época e que “o fim da
história-memória multiplicou as memórias particulares
que reclamam sua própria história”. Afirma, ainda, que
“quanto menos a memória é vivida coletivamente, mais
ela tem necessidade de homens particulares que fazem
de si mesmos homens-memória”. Sobre a razão de ser
de um “lugar de memória”, Nora diz que sua função é
parar o tempo, bloquear o trabalho do esquecimento e
fixar um estado de coisas. “Imortalizar a morte,
materializar o imaterial para prender o máximo de
sentido num mínimo de sinais”.

O autor finaliza dizendo-nos que a memória só


conheceu duas formas de legitimidade, a histórica ou a
literária, exercidas paralelamente mas, até hoje,
separadamente. “A fronteira hoje desaparece e sobre a
morte quase simultânea da história-memória e da
história-ficção, nasce um tipo história que deve seu
prestígio e sua legitimidade à sua nova relação com o
passado, um outro passado”.

A história seria, pois, “nosso imaginário de


substituição”.

Narrativa: entre memória, pensamento e


linguagem – por Rosali Henriques

Na semana passada uma das minhas irmãs, que é


professora na rede pública de Minas Gerais, pediu-me
para revisar um texto chamado “Narrativas da
quarentena” sobre ensino online, processo pelo qual os
professores, as escolas e os alunos estão passando
durante esse processo pandêmico que vivemos
atualmente. A ideia era que cada professor falasse
sobre a sua experiência com os erros e acertos nas
aulas virtuais. No mesmo período, estava lendo o texto
da tese de doutorado de uma grande amiga que estou
co-orientando e que aborda as narrativas de memória.
A partir da leitura desses textos, como diria em Minas
Gerais, fiquei matutando sobre os processos de narrar
e como a memória afeta e é afetada pelas narrativas.
Na verdade, embora nenhuma das minhas pesquisas
nem de mestrado ou doutorado tenha abordado de
frente as narrativas, é uma questão que me atrai e
acho que devo explorar em pesquisas futuras. Esse
texto é apenas uma reflexão sobre o assunto, tentando
abordar a relação entre pensamento e linguagem nas
narrativas de memória.

Narrativa é uma palavra que está muito banalizada nos


dias de hoje. Tudo hoje é narrativa ou disputa de
narrativa. Mas o que significa narrativa? É uma
exposição de fatos e pode ser feita de várias formas:
através da linguagem oral ou escrita, através de
imagens (linguagem visual) ou através da
representação. Quando os nossos antepassados do
Paleolítico Superior começaram a desenhar nas
cavernas eles estavam criando uma narrativa. Ali
temos os embriões do que seriam a escrita, a arte e o
registro das narrativas. Na verdade, podemos dizer
que as narrativas estão ligadas ao pensamento e à
linguagem, mas se ancoram em nossa memória
Pintu
ras rupestres encontradas nas cavernas de Lascaux, na
França, em 1940
Todas as narrativas são seletivas e são representações
de fatos e não o fato em si. É como o quadro “A traição
das imagens” de André Breton onde o desenho é uma
representação do cachimbo e não o cachimbo em si. Da
mesma forma, as narrativas de memória são produções
sobre um passado e não necessariamente o passado
vivido. Desde os mais primitivos tempos, passando
pelos griots[1], pela tradição oral, pela história oral ou
em diários de meninas[2], as narrativas de memória
foram sempre na perspectiva do presente, com a
reflexão de algo que já passou e com o objetivo de
trazer alguma lição para o futuro. Deve-se salientar
que a narrativa esteve sempre presente na história do
homem, desde as culturas orais primárias, até a era
das novas tecnologias. Em sua obra “O gesto e a
palavra”, Leroi-Gourham (1983) afirma que a história
da memória pode ser dividida em cinco períodos: “o da
transmissão oral, o da transmissão escrita por meio de
tábuas ou índices, o das fichas simples, o da
mecanografia e o da seriação eletrônica”. Com base
nessa classificação podemos afirmar que as narrativas
ganharam contornos novos, mas a essência da
narração é a mesma desde os primitivos griots até as
redes sociais, pois não há grandes mudanças nas
formas narrativas. A partir do desenvolvimento da
escrita e, posteriormente, com o surgimento das mídias
(fotografias, vídeos), algumas mudanças foram
efetuadas na forma, mas não no conteúdo das
narrativas. Nas redes sociais, assim como no diário de
Helena Morley, por exemplo, o que está sendo narrado
são os eventos cotidianos. No entanto, o que nos difere
dos outros seres vivos é a produção de registros sobre
a nossa própria vida. Esses registros podem ser das
mais variados formatos, mas a essência da narrativa é
sempre a mesma: ela conta um fato num determinado
tempo e lugar, com personagens e possui um
desencadeamento lógico (causa, modo e
consequência).

Em relação à representação da memória, Levi (2004),


em sua obra autobiográfica “Os afogados e os
sobreviventes”, nos alerta para o desejo do
esquecimento de muitos dos sobreviventes dos campos
de concentração nazista, no que ele denomina de
“memória da ofensa”. No entanto, ele afirma que essa
memória está sempre ancorada no contexto dos fatos e
não é cópia fiel dos mesmos, pois a memória não é a
reprodução exata dos acontecimentos. Um dos riscos
ao analisar as memórias de determinado autor é
esperar que os fatos por ele narrados sejam cópia fiel
dos acontecimentos. Quando estudamos as memórias
de uma determinada pessoa, seja através de gravações
de depoimentos orais, ou mesmo em obras biográficas,
não podemos deixar de levar em conta o fato de que a
memória não é uma fotografia precisa dos fatos, mas as
sensações que restaram dos fatos vividos. Não se trata
de reproduzir os fatos, tarefa praticamente impossível,
mas lembrar do que se passou. E isso é a memória. Ela
é seletiva e, portanto, como Levi mesmo afirma, falaz.

Mas como a linguagem e o pensamento atuam nas


narrativas? Para isso é preciso ir um dos pensadores
russos da abordagem histórico-cultural: Lev Vigostki.
Para Vigotstki (2000) “A palavra não é outra coisa
senão um objeto ao lado de outro objeto”. Para ele, o
vínculo entre a palavra e o significado não é
meramente associativo, mas estrutural. Vigotski faz um
apanhado crítico sobre as principais correntes do
pensamento ao discordar de seus pressupostos. Para
ele, a relação entre pensamento e palavra é um
processo, pois “o pensamento não se exprime na
palavra, mas nela se realiza” (Vigotski, 2000). Nesse
sentido, ele afirma que o pensamento e a linguagem
são a chave da compreensão da natureza humana. A
palavra tem papel central na consciência e na nossa
memória. E, sem memória e sem consciência não
seríamos humanos.

Um dos conceitos-chave na abordagem histórico-


cultural é o da mediação. Na concepção de Vigotski, os
homens não têm acesso direto aos objetos do
conhecimento, eles são mediados por outras pessoas,
pelos instrumentos simbólicos e pelos objetos. Para
Vigotski, a mediação é sempre feita através na relação
entre sujeito, objeto e artefato. A transformação do
objeto em instrumento de memória demonstra que o
objeto passou a comportar funções sociais, pois passa a
ter outras funções que não somente utilitárias, mas
simbólicas. Os instrumentos e os signos criados pelo
homem são também transformados em símbolos
culturais. Vigotski aponta também que a memória
torna-se cada vez mais lógica, organizando-se por
conceitos. Dessa forma, ocorre uma mudança na
estrutura da memória, que passa
de mneme (elementar) para mnemotécnica (superior),
de uma estrutura imediata para uma mediata. Ele
afirma que não é somente com o desenvolvimento que
a estrutura da memória se modifica, mas também a
função psicológica da mesma.

A memória na perspectiva histórico-cultural é uma


construção social, pois é na constituição coletiva do
conhecimento que os seres humanos se transformam. A
elaboração da memória é uma das diferenças entre os
seres humanos e os animais. E, para Vigotski a
construção coletiva do conhecimento se dá junto com
os outros e pelos outros, na relação de mediação entre
os seres humanos. O papel dos instrumentos e dos
signos, principalmente da fala, na constituição da
memória é extremamente importante. Pois é a partir
do uso da memória é que nos estabelecemos como
seres humanos. Se pensamos, agimos e se agimos
seremos portadores de memória, assim parafraseando
Descartes podemos dizer: “penso, logo, tenho
memória”. E podemos assim concluir, que se
pensamos, temos memória, logo construiremos
narrativa de memória.

Referências

LEROI-GOURHAM, André. O gesto e a palavra. Vol 2.


memória e ritmos. Lisboa: Edições 70, 1983.

LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes:os


delitos, os castigos, as penas, as impunidades. 2ª ed.
São Paulo: Paz e Terra, 2004.

VIGOTSKI, Lev Semionovich. A construção do


pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
[1] Griots são os contadores de histórias, geralmente
idosos, nas culturas tradicionais africanas.

[2] Um exemplo muito interessante de um diário


publicado é a obra de Helena Morley “Minha Vida de
Menina” que retrata o cotidiano de uma jovem na
Diamantina dos anos de 1893 a 1895.

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