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O jogo social da memória e da
identidade: transmitir, receber – por
Talita Magnolo e Luísa Guimarães
Aqui, apresentamos algumas reflexões de Joël Candau
no livro “Memória e Identidade” (2018). O autor começa relembrando sobre o termo “Pensamento social” (HALBWACHS), que vincula à uma memória, que resulta, em essência, de transmissão de um capital de lembranças e esquecimentos. Ainda sobre este tema, o autor considera como sendo um “Fracasso da memória” quando a exteriorização do pensamento e da cadeia de memória torna-se impossível. Um exemplo seria quando os deportados achavam que seus filhos não acreditariam em suas histórias e os filhos não tinham coragem de escutá-los. “E quando a transmissão é impossível, indizível, como imaginar que se possa ter um compartilhamento capaz de fundar as representações de uma identidade coletiva?”
Sem a mobilização da memória, que é a transmissão, já
não há socialização nem educação, e, ao mesmo tempo, se admitimos, que a cultua é “uma tradição transmissível de comportamentos apreendidos”, toda identidade cultural se torna impossível. Se o homem é um ser social, significa que a transmissão contínua de conhecimentos entre as gerações, sexo, grupos, lhe permite aprender ao longo de sua vida e, ao mesmo tempo, satisfaz o seu instinto intelectual e subjetivo. A aprendizagem seria, portanto, a adaptação do presente ao futuro organizada a partir de uma reiteração do passado.
Se a essa transmissão é repetida várias vezes diante de
muitos indivíduos, estará no princípio da reprodução de uma sociedade. No entanto, essa reprodução jamais será pura ou uma autêntica transfusão memorial, já que ela “não é assimilada como um legado de significados nem como uma conservação de uma herança”. Para que seja útil na construção das estratégias identitárias, essa transmissão deve atuar no complexo jogo da reprodução e da invenção da restituição e da reconstrução, da fidelidade e da traição, da lembrança e do esquecimento
“Se memorizar serve para transmitir, é o
conteúdo transmitido ou o laço social que gera a transmissão? Educação, museus, arte, não são formas operacionais de transmissão visando menos transmitir uma memória que fazer entrar nas memórias a crença do corpo social em sua própria perpetuação, a fé em raízes comuns e um destino compartilhado, ou seja, uma consciência identitária? Qualquer que seja a resposta a essa questão é certo que nada seria possível sem a expansão da memória humana”
O autor afirma que o cérebro humano não dá conta de
reter todas as memórias. O homem, portanto, recorre a extensões da memória. Progressivamente, essa exteriorização da memória vai permitir a transmissão memorial. As gravuras pré-históricas, por exemplo, são provavelmente a primeira expressão de uma preocupação propriamente humana de inscrever, deixar rastros, assinar, deixar suas iniciais, fazer memória, quer se trate de uma memória explícita ou de uma memória mais complexa, de abstrações, símbolos, entre outros. A tradição escrita facilitou o trabalho dos portadores, guardiões e difusores da memória. Os primeiros memoriais consagrados do Holocausto, por exemplo, foram narrativas escritas, com lembranças que contam a vida e a destruição das comunidades judaicas. Tais produções desejavam transformar o lugar de leitura em espaço comemorativo, que exerceu um importante papel na construção identitária. A escrita permitiu, portanto, a socialização da memória e a possibilidade de estocagem de informações cujo caráter fixo pode fornecer referenciais coletivos.
“Com os grandes textos, os princípios autorizados
de inteligibilidade do mundo social se tornam disponíveis não apenas para a população de letrados, mas para todos que possuem a possibilidade de escutá-los por ocasião das grandes narrações, pregações, sermões, exportações de toda natureza que se nutrem de textos fundadores. O fato de que apenas as religiões do Livro sejam verdadeiramente religiões do proselitismo é outro sinal do poder memorial da escrita. Em muitos casos, no entanto, o escrito é antes um álibi do que um instrumento para a memória. No entanto, mesmo quando o texto fica como referência visual, com frequência citados em variadas versões, mas nunca de fato consultado, ela orienta as memórias individuais em uma mesma direção, focaliza-se em direção a significações particulares que terão, por conseguinte, grandes possibilidades de serem compartilhadas”
O autor afirma que Mondhler Kilani observou que a
simples evocação da existência do documento tem efeito de persuasão sobre os ouvintes, sem que seja necessário o uso efetivo do ato notorial. Nos casos em que isso acontece, pouco importa o conteúdo exato da memória escrita que é mobilizada para confortar e tornar provável a memória oral e que, por essa razão, contribui para o seu compartilhamento. O texto é, nesse caso, um fator de “uniformização tendencial dos horizontes mentais”, se torna fraca e adquire da forma de “comunidade imaginada”. O autor levanta a seguinte hipótese: a escrita facilitou a socialização de um certo conteúdo memorial mais consistente do ponto de vista factual e, provavelmente, superficial, do ponto de vista das representações
A memória humana está de tal modo dilatada que
nenhuma memória individual pode pretender esconder seu conteúdo. Ao final do segundo milênio, presenciamos uma aceleração da expansão da memória, a tal ponto que a modernidade poderia ser definida como uma tentativa de codificação total do mundo e a produção profusa de informações, traços e imagens. Nos últimos anos produziu-se muito mais informações do que nos últimos cinco mil anos (livros; vídeos; jornalismo; internet, celulares…). O autor alerta para o risco de museus e bibliotecas se tornarem “terrenos documentais abandonados” e, segundo ele, o arquivo trabalha a priori contra ele mesmo.
“Em resumo: o mundo moderno produz traços e
imagens a um nível jamais visto na história das sociedades humanas, estando em parte submisso às “ideologias de segurança” da história e da memória que conduzem a tudo conservar, tudo armazenar, musealizar a totalidade do mundo conhecido e, por outro lado, continuando a produzir mais informações e mensagens.”
É possível pensar que, sob influência das novas
tecnologias de informação e comunicação, uma nova espécie humana parece nascer atualmente sob nossos olhos, que o autor chama de “comunicantes”, imersa em um universo desordenado de traços e irrigada por fluxos ininterruptos de imagens. Os indivíduos, em razão da impossibilidade de suportar as imensas sobrecargas memoriais, são muitas vezes incapazes de conferir sentido às informações adquiridas: estas são apresentadas, mas raramente representadas. As sociedades modernas são menos capazes de transmitir memória que aquelas de menor expansão memorial.
O autor destaca a importância dos quadros sociais para
a transmissão da memória religiosa ou doméstica e, quando esses quadros sociais entram em colapso ou se tornam múltiplos ou multiformes, a transmissão é interrompida, provocando uma falta e uma necessidade de memória. A compulsão memorial contemporânea e o que denominamos crises identitárias se explicariam por uma expansão descontrolada da memória.
Em “As vias de transmissão”, o autor reitera a ideia de
que a transmissão de identidades culturais não é exclusiva da língua escrita, ocorrendo de diferentes formas. A cultura doméstica, como exemplifica Candau, é perpetuada através das memórias domésticas transmitidas por meio de filmes, fotografias, entre outros.
A invenção da fotografia possibilitou a construção e a
propagação de memórias de acontecimentos factuais e familiares, tornando mais fácil o processo de transmissão. Entretanto, como ressaltado no texto, tal invenção também facilitou a criação de memórias manipuladas.
Além da cultura doméstica, existe também a cultura
profissional, que preza a criação de memórias acerca dos saberes necessários para a realização de um trabalho. Pescadores, enfermeiros, jornalistas – todas essas figuras possuem uma identidade profissional própria, repassada de geração em geração. Citando o autor: “transmitir uma memória e fazer viver, assim, uma identidade não consiste, portanto, em apenas legar algo, e sim uma maneira de estar no mundo.”
No subcapítulo seguinte, “Memória e Protomemória”,
Candau propõe uma distinção entre dois tipos de transmissão: a memorial, referente à construção de memórias, e a protomemorial, referente às ações involuntárias, ao senso prático de cada um e aos diversos dispositivos inscritos ao corpo. Ele infere que qualquer tipo de transmissão essencialmente protomemorial é um elemento decisivo na formação de identidades, tratando-se da difusão de costumes. A tradição, como ele explicita, é uma combinação os tipos de transmissão memorial e protomemorial, pois, por definição, uma tradição é sempre autêntica e possui um universo próprio de signos e experiências coletivas, sendo uma representação do passado que se atualiza no presente. Ademais, o autor aponta que, em algumas comunidades, a recepção é mais importante do que a transmissão em si, tendo em vista que o ato de receber garante uma diversidade maior de interpretações, assemelhando-se, assim, à autenticidade da tradição. jovens americanos de origem judaica que recebem as tradições de seus pais, por exemplo, interpretam aquilo que é transmitido a eles no contexto da sociedade americana em que foram criados.
No que diz respeito ao debate recorrente entre
memória e esquecimento, Candau acredita que o esquecimento não é necessariamente um fracasso da memória, mas sim algo necessário. Sem o esquecimento, as lembranças dos indivíduos não teriam qualquer alívio. Ele elenca dois tipos principais de esquecimento: o moderno, causado por perdas identitárias dentro de um grupo social, e o tradicional, causado pela possibilidade de ascender a um novo estatuto em uma comunidade.
Por último, o autor faz uma distinção entre outras duas
formas de transmissão: a transmissão histórica e a transmissão memorial. Enquanto a primeira pretende representar com exatidão o passado, a segunda busca, no máximo, a verossimilhança. Candau descreve a transmissão histórica como a ordenação dos fatos e a transmissão memorial como a desordenação dos fatos, que são atravessados por emoções, paixões e afetos. Ainda, alega que a história pertence a todos, enquanto a memória é mais restrita e capaz de se integrar na construção de estratégias identitárias. ENTRE MEMÓRIA E HISTÓRIA: A problemática dos lugares – por Márcio Henriques
Apresentamos, aqui, os principais conceitos e
argumentos do texto ENTRE MEMÓRIA E HISTÓRIA: A problemática dos lugares*, do historiador Pierre Nora, nascido em 17 de novembro de 1931, em Paris, conhecido pelos seus trabalhos sobre a identidade francesa, a memória, o ofício do historiador e pelo seu papel como editor em Ciências Sociais, tendo seu nome associado à Nova História (“nouvelle histoire”).
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Em ENTRE MEMÓRIA E HISTÓRIA: A
problemática dos lugares, Nora (1993) inicia suas considerações falando-nos sobre o conceito de “aceleração da história”, expressão definida pelo autor como “uma oscilação cada vez mais rápida de um passado definitivamente morto, a percepção global de qualquer coisa como desaparecida – uma ruptura do equilíbrio. O arrancar do que ainda sobrou de vivido no calor da tradição, no mutismo do costume, na repetição do ancestral, sob o impulso de um sentimento histórico profundo. A ascensão à consciência de si mesmo sob o signo do terminado, o fim de alguma coisa desde sempre começada.”
O autor sugere que o atual momento da história
desperta a curiosidade pelos lugares onde a memória se cristaliza, considerando a existência de “locais de memória” onde ainda existe um sentimento de continuidade residual. “Há locais de memória porque não há mais meios de memória.” Tal fenômeno seria de extensão mundial, graças à mundialização, à democratização, à massificação e à mediatização. Teríamos, portanto, o fim das “sociedades-memória, que asseguravam a conservação e a transmissão dos valores: igreja ou escola, família ou Estado”. Também constata-se o fim das “ideologias- memórias, que asseguravam a passagem regular do passado para o futuro, ou indicavam o que se deveria reter do passado para preparar o futuro, quer se trate da reação, do progresso ou mesmo da revolução”.
Dessa forma, o modo da percepção histórica dilata-se
prodigiosamente, com a ajuda da mídia, “substituindo uma memória voltada para a herança de sua própria intimidade pela película efêmera da atualidade”. Nora considera que a aceleração contrapõe a “memória verdadeira, social, intocada”, das sociedades arcaicas com a história das sociedades atuais, condenadas ao esquecimento do passado.
“Se habitássemos ainda nossa memória, não
teríamos necessidade de lhe consagrar lugares. Não haveria lugares porque não haveria memória transportada pela história.”
Assim, ao se perceber a inexistência de rastro,
distância ou mediação, não estaremos mais dentro da verdadeira memória, mas dentro da própria história. Nora opõe o conceito de memória ao conceito de história, conforme as características apontadas abaixo: MEMÓRIA HISTÓRIA . é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse . é a reconstrução sempre problemática e inc sentido, ela está em permanente evolução. do que não existe mais. . é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno . é uma representação do passado presente. . é afetiva e mágica, não se acomoda a detalhes que a . é uma operação intelectual e laicizante que confortam. demanda análise e discurso crítico. . emerge de um grupo que ela une. . pertence a todos e a ninguém. . se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no . se liga às continuidades temporais, às evolu objeto. às relações das coisas
Valendo-se dessa distinção, o autor afirma que a
memória é um absoluto, ao passo em que a história só conhece o relativo, ao pretender uma reconstituição de um passado sem lacuna e sem falha. “O movimento da história, a ambição histórica não são a exaltação do que verdadeiramente aconteceu, mas sua anulação.” Contrapondo os modelos de história francês e norte-americano, Nora indica o seguinte: HISTÓRIA na França: HISTÓRIA nos EUA: A historiografia é iconoclasta e irreverente. Ela Memória plural e de contribuições múltiplas. História com consiste em tomar para si os objetos melhor disciplina sempre praticada. As diferentes interpretações n constituídos da tradição. A memória se torna questionam a Tradição americana, seja porque, num certo objeto de uma história possível. ela não exista, ou não passe principalmente pela história.
O autor conclui que, atualmente, o estudo dos lugares
na França encontra-se, na encruzilhada entre um “movimento puramente historiográfico”, com a reflexão da história sobre si própria e um “movimento propriamente histórico”, correspondente ao fim de uma tradição de memória. Sobre o conceito de “lugares de memória”, Nora afirma que são,” antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora”. Ressalta-se, a partir de então, a valorização do novo, do mais jovem, do futuro. Em uma sociedade que tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos – “museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações”, são considerados marcos testemunhais de uma outra era, conferindo-nos a ilusões de eternidade, o que nos proporciona sinais de reconhecimento e de pertencimento, por seu aspecto nostálgico.
A noção de que é preciso “manter aniversários,
organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas” – atividades não naturais – fazem com que os “lugares de memória” nasçam e vivam de um sentimento onde não há memória espontânea. “Mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los.”
Tais lugares representam “uma memória na qual não
mais habitamos, semi-oficiais e institucionais, semi- afetivos e sentimentais”. Seriam, portanto, “lugares de unanimidade sem unanimismo que não exprimem mais nem convicção militante nem participação apaixonada, mas onde palpita ainda algo de uma vida simbólica”. O autor conclui que “não se celebra mais a nação, mas se estudam suas celebrações”. Sobre a condição da memória tomada como história, Nora nos diz que “tudo o que é chamado hoje de memória não é, portanto, memória, mas já história (…). A necessidade de memória é uma necessidade da história”.
Quanto menos a memória for vivida do interior, mais
ela terá a necessidade de “suportes exteriores e de referências tangíveis de uma existência que só vive através delas”. “O que nós chamamos de memória é, de fato, a constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossível lembrar, repertório insondável daquilo que poderíamos ter necessidade de nos lembrar.”
O autor considera que a produção de arquivos é,
portanto, um imperativo da época e que “o fim da história-memória multiplicou as memórias particulares que reclamam sua própria história”. Afirma, ainda, que “quanto menos a memória é vivida coletivamente, mais ela tem necessidade de homens particulares que fazem de si mesmos homens-memória”. Sobre a razão de ser de um “lugar de memória”, Nora diz que sua função é parar o tempo, bloquear o trabalho do esquecimento e fixar um estado de coisas. “Imortalizar a morte, materializar o imaterial para prender o máximo de sentido num mínimo de sinais”.
O autor finaliza dizendo-nos que a memória só
conheceu duas formas de legitimidade, a histórica ou a literária, exercidas paralelamente mas, até hoje, separadamente. “A fronteira hoje desaparece e sobre a morte quase simultânea da história-memória e da história-ficção, nasce um tipo história que deve seu prestígio e sua legitimidade à sua nova relação com o passado, um outro passado”.
A história seria, pois, “nosso imaginário de
substituição”.
Narrativa: entre memória, pensamento e
linguagem – por Rosali Henriques
Na semana passada uma das minhas irmãs, que é
professora na rede pública de Minas Gerais, pediu-me para revisar um texto chamado “Narrativas da quarentena” sobre ensino online, processo pelo qual os professores, as escolas e os alunos estão passando durante esse processo pandêmico que vivemos atualmente. A ideia era que cada professor falasse sobre a sua experiência com os erros e acertos nas aulas virtuais. No mesmo período, estava lendo o texto da tese de doutorado de uma grande amiga que estou co-orientando e que aborda as narrativas de memória. A partir da leitura desses textos, como diria em Minas Gerais, fiquei matutando sobre os processos de narrar e como a memória afeta e é afetada pelas narrativas. Na verdade, embora nenhuma das minhas pesquisas nem de mestrado ou doutorado tenha abordado de frente as narrativas, é uma questão que me atrai e acho que devo explorar em pesquisas futuras. Esse texto é apenas uma reflexão sobre o assunto, tentando abordar a relação entre pensamento e linguagem nas narrativas de memória.
Narrativa é uma palavra que está muito banalizada nos
dias de hoje. Tudo hoje é narrativa ou disputa de narrativa. Mas o que significa narrativa? É uma exposição de fatos e pode ser feita de várias formas: através da linguagem oral ou escrita, através de imagens (linguagem visual) ou através da representação. Quando os nossos antepassados do Paleolítico Superior começaram a desenhar nas cavernas eles estavam criando uma narrativa. Ali temos os embriões do que seriam a escrita, a arte e o registro das narrativas. Na verdade, podemos dizer que as narrativas estão ligadas ao pensamento e à linguagem, mas se ancoram em nossa memória Pintu ras rupestres encontradas nas cavernas de Lascaux, na França, em 1940 Todas as narrativas são seletivas e são representações de fatos e não o fato em si. É como o quadro “A traição das imagens” de André Breton onde o desenho é uma representação do cachimbo e não o cachimbo em si. Da mesma forma, as narrativas de memória são produções sobre um passado e não necessariamente o passado vivido. Desde os mais primitivos tempos, passando pelos griots[1], pela tradição oral, pela história oral ou em diários de meninas[2], as narrativas de memória foram sempre na perspectiva do presente, com a reflexão de algo que já passou e com o objetivo de trazer alguma lição para o futuro. Deve-se salientar que a narrativa esteve sempre presente na história do homem, desde as culturas orais primárias, até a era das novas tecnologias. Em sua obra “O gesto e a palavra”, Leroi-Gourham (1983) afirma que a história da memória pode ser dividida em cinco períodos: “o da transmissão oral, o da transmissão escrita por meio de tábuas ou índices, o das fichas simples, o da mecanografia e o da seriação eletrônica”. Com base nessa classificação podemos afirmar que as narrativas ganharam contornos novos, mas a essência da narração é a mesma desde os primitivos griots até as redes sociais, pois não há grandes mudanças nas formas narrativas. A partir do desenvolvimento da escrita e, posteriormente, com o surgimento das mídias (fotografias, vídeos), algumas mudanças foram efetuadas na forma, mas não no conteúdo das narrativas. Nas redes sociais, assim como no diário de Helena Morley, por exemplo, o que está sendo narrado são os eventos cotidianos. No entanto, o que nos difere dos outros seres vivos é a produção de registros sobre a nossa própria vida. Esses registros podem ser das mais variados formatos, mas a essência da narrativa é sempre a mesma: ela conta um fato num determinado tempo e lugar, com personagens e possui um desencadeamento lógico (causa, modo e consequência).
Em relação à representação da memória, Levi (2004),
em sua obra autobiográfica “Os afogados e os sobreviventes”, nos alerta para o desejo do esquecimento de muitos dos sobreviventes dos campos de concentração nazista, no que ele denomina de “memória da ofensa”. No entanto, ele afirma que essa memória está sempre ancorada no contexto dos fatos e não é cópia fiel dos mesmos, pois a memória não é a reprodução exata dos acontecimentos. Um dos riscos ao analisar as memórias de determinado autor é esperar que os fatos por ele narrados sejam cópia fiel dos acontecimentos. Quando estudamos as memórias de uma determinada pessoa, seja através de gravações de depoimentos orais, ou mesmo em obras biográficas, não podemos deixar de levar em conta o fato de que a memória não é uma fotografia precisa dos fatos, mas as sensações que restaram dos fatos vividos. Não se trata de reproduzir os fatos, tarefa praticamente impossível, mas lembrar do que se passou. E isso é a memória. Ela é seletiva e, portanto, como Levi mesmo afirma, falaz.
Mas como a linguagem e o pensamento atuam nas
narrativas? Para isso é preciso ir um dos pensadores russos da abordagem histórico-cultural: Lev Vigostki. Para Vigotstki (2000) “A palavra não é outra coisa senão um objeto ao lado de outro objeto”. Para ele, o vínculo entre a palavra e o significado não é meramente associativo, mas estrutural. Vigotski faz um apanhado crítico sobre as principais correntes do pensamento ao discordar de seus pressupostos. Para ele, a relação entre pensamento e palavra é um processo, pois “o pensamento não se exprime na palavra, mas nela se realiza” (Vigotski, 2000). Nesse sentido, ele afirma que o pensamento e a linguagem são a chave da compreensão da natureza humana. A palavra tem papel central na consciência e na nossa memória. E, sem memória e sem consciência não seríamos humanos.
Um dos conceitos-chave na abordagem histórico-
cultural é o da mediação. Na concepção de Vigotski, os homens não têm acesso direto aos objetos do conhecimento, eles são mediados por outras pessoas, pelos instrumentos simbólicos e pelos objetos. Para Vigotski, a mediação é sempre feita através na relação entre sujeito, objeto e artefato. A transformação do objeto em instrumento de memória demonstra que o objeto passou a comportar funções sociais, pois passa a ter outras funções que não somente utilitárias, mas simbólicas. Os instrumentos e os signos criados pelo homem são também transformados em símbolos culturais. Vigotski aponta também que a memória torna-se cada vez mais lógica, organizando-se por conceitos. Dessa forma, ocorre uma mudança na estrutura da memória, que passa de mneme (elementar) para mnemotécnica (superior), de uma estrutura imediata para uma mediata. Ele afirma que não é somente com o desenvolvimento que a estrutura da memória se modifica, mas também a função psicológica da mesma.
A memória na perspectiva histórico-cultural é uma
construção social, pois é na constituição coletiva do conhecimento que os seres humanos se transformam. A elaboração da memória é uma das diferenças entre os seres humanos e os animais. E, para Vigotski a construção coletiva do conhecimento se dá junto com os outros e pelos outros, na relação de mediação entre os seres humanos. O papel dos instrumentos e dos signos, principalmente da fala, na constituição da memória é extremamente importante. Pois é a partir do uso da memória é que nos estabelecemos como seres humanos. Se pensamos, agimos e se agimos seremos portadores de memória, assim parafraseando Descartes podemos dizer: “penso, logo, tenho memória”. E podemos assim concluir, que se pensamos, temos memória, logo construiremos narrativa de memória.
Referências
LEROI-GOURHAM, André. O gesto e a palavra. Vol 2.
memória e ritmos. Lisboa: Edições 70, 1983.
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes:os
delitos, os castigos, as penas, as impunidades. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
VIGOTSKI, Lev Semionovich. A construção do
pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000. [1] Griots são os contadores de histórias, geralmente idosos, nas culturas tradicionais africanas.
[2] Um exemplo muito interessante de um diário
publicado é a obra de Helena Morley “Minha Vida de Menina” que retrata o cotidiano de uma jovem na Diamantina dos anos de 1893 a 1895.