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ISSN 2357-9854|e-ISSN 2596-3198 (online)

Ato docente como ato criativo: acontecimento e experiência

Andrea Hofstaetter
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil)

RESUMO — Ato docente como ato criativo: acontecimento e experiência — As Atividades de


Allan Kaprow e a ideia de Pedagogia como evento, de Dennis Atkinson, são chave para pensar na
criação de uma proposta de Objeto propositor poético e na atuação docente como atuação criativa.
Transformar a ideia de materiais didáticos para Artes Visuais significa repensar processos
educativos visando transformações não só nos modos de aprender, mas também nas formas de
relacionar-se e de ocupar os espaços, utilizando o corpo, proporcionando diálogos e
compartilhamento de saberes, além de incluir aspectos lúdicos e imaginativos.
PALAVRAS-CHAVE
Atividades de Kaprow. Pedagogia do evento. Objeto propositor poético.

ABSTRACT — Poetic proposer object in the production of the pedagogical event — The
Activities of Allan Kaprow and the idea of Pedagogy as an event, by Dennis Atkinson, are key
elements when thinking of the creation of a proposal for a Poetic proposer object and the teaching
performance as creative performance. Transforming the idea of teaching materials for Visual Arts
means rethinking educational processes aimed at transforming not only the ways of learning, but
also the ways of relating and occupying spaces, using the body, encouraging dialogues and sharing
knowledge, in addition to including playful and imaginative aspects.
KEYWORDS
Kaprow’s Activities. Pedagogy of the event. Poetic proposer object.

RESUMEN — El acto docente como acto creativo: acontecimiento y experiencia — Las


Actividades de Allan Kaprow y la idea de la Pedagogía como Evento de Dennis Atkinson son claves
para pensar la creación de una propuesta de Objeto poético propositivo y en la actuación docente
como actuación creativa. Transformar la idea de materiales didácticos para las Artes Visuales
significa repensar los procesos educativos visando transformaciones no sólo en los modos de
aprender, sino también en los modos de relacionarse y ocupar espacios, usando el cuerpo,
haciendo posible que haya diálogos y el intercambio de saberes, además de incluir aspectos lúdicos
e imaginativos.
PALABRAS-CLAVE
Actividades de Kaprow. Pedagogía del evento. Objeto poético propositivo.

HOFSTAETTER, Andrea. Ato docente como ato criativo: acontecimento e experiência. 1


Revista GEARTE, Porto Alegre, v. 9, 2022.
http://dx.doi.org/10.22456/2357-9854.128538
Introdução

As Atividades de Allan Kaprow e a ideia de pedagogia como evento, de


Dennis Atkinson, são chave para pensar na criação de uma proposta de objeto
propositivo poético e na atuação docente como atuação criativa. Transformar a
concepção de materiais didáticos para artes visuais significa repensar processos
educativos visando transformações não só nos modos de aprender, mas também
nas formas de relacionar-se e de ocupar os espaços, utilizando o corpo e
proporcionando diálogos e compartilhamento de saberes, além de incluir aspectos
lúdicos e imaginativos.

Este texto1 apresenta parte da reflexão teórica que acompanhou a


realização de um estágio de pós-doutoramento, junto ao Programa de Pós-
Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da UFRGS, sob orientação
da Profa. Dra. Analice Dutra Pillar. Aborda a relação entre determinado tipo de
proposição artística, participativa e relacional, com a ideia de pedagogia como
acontecimento e com a intenção de provocar a criação e utilização de objetos
propositivos poéticos em situações de aprendizagem.

Um dos artistas referenciais para esta reflexão é Allan Krapow,


especialmente tendo em foco suas Atividades, criadas na década de 1970, após a
legitimação do happening como prática artística. As Atividades criam uma forma
de jogo entre os participantes, tomando situações da vida cotidiana, mas
produzindo outro olhar sobre elas, com abertura para novos pensamentos.

Dennis Atkinson traz uma contribuição para pensar em proposições


pedagógicas em que os sujeitos envolvidos experimentarão acontecimentos
provocadores de irrupções no cotidiano, nomeando essa forma de atuação como
pedagogia do evento ou do acontecimento. Nesta investigação pretendeu-se tomar
as situações de aprendizagem como acontecimentos ainda não vividos e que
trouxessem possibilidades de invenção e de recriação do e no próprio cotidiano.

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Revista GEARTE, Porto Alegre, v. 9, 2022.
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A produção e utilização de objetos propositivos poéticos, ou materiais
didáticos poéticos, neste percurso de pesquisa, aproxima-se do ato artístico e
compreende a atuação docente, especialmente em artes visuais, como
possibilidade de produção intencionalmente poética. Docentes em Artes Visuais
ou de outras modalidades artísticas (ou até de outros campos do conhecimento)
poderão realizar seu trabalho como ato poético e produzir materiais didáticos
coerentes com essa forma de abordagem. Pensar em proposição docente como
proposição artística oportuniza elevar a potência das ações educativas, que além
de propiciar experiências estéticas e ampliação de referenciais artísticos, se
abrirão à dimensão do ato criativo, que é sempre abertura ao informe.

Será brevemente apresentada, nesse texto, a criação de um material


específico, entendido como objeto propositivo poético, produzido em 2019, como
parte do projeto de estágio pós-doutoral. O material em questão intitula-se Olhos
e mãos e foi utilizado experimentalmente na educação básica e no ensino superior.

Espera-se contribuir com o campo de produção e pesquisa sobre materiais


para aprendizagem em Artes Visuais e entende-se que uma das funções do/a
educador/a é produzir objetos propositores, desencadeadores de processos de
criação, fruição poética e pensamentos singulares com os/as estudantes dos
diversos níveis da educação.

As Atividades de Kaprow

Para compor parte da fundamentação artística e teórica do projeto


específico de produção de material didático para Artes Visuais Olhos e mãos,
foram elencados os trabalhos de alguns artistas que tiveram interesse em
possibilitar novas relações entre pessoas e das pessoas com o ambiente e/ou com
objetos presentes no cotidiano. Um desses artistas é Allan Kaprow, nascido em 23
de agosto de 1927, em Nova Jersey, EUA e falecido em 5 de abril de 2006, na
Califórnia, EUA. Kaprow é considerado como o iniciador da prática de happenings,
ao final dos anos 1950, e de sua legitimação no campo da arte.

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A década seguinte, dos anos 1960, foi um período de intensas
transformações no campo das Artes Visuais, a partir do surgimento de novas
formas de compreender e de produzir, tal como os happenings, as performances,
as instalações e outras formas de proposições participativas ao público. Surgiram
muitas novas aberturas para propostas de envolvimento e de participação do
público na produção e experimentação de proposições artísticas.

Depois da legitimação dos happenings, já na década de 1970, Kaprow criou


outro tipo de proposição, mais intimista e mais próxima de ações do cotidiano, que
chamou de Activities (Atividades). Trata-se de roteiros ou espécies de protocolos
que sugerem a realização de algumas ações muito simples, na interação entre
duas ou mais pessoas, ou até individualmente, sem a presença de um público.
Essas ações são referenciadas em práticas cotidianas, mas como são realizadas
fora de contexto, produzem estranhamento e reflexões sobre atos da vida
cotidiana, sobre formas de relacionamento social e sobre hábitos de convivência.

As atividades de Kaprow requerem uma disposição para experimentar algo


extraordinário, no sentido de que, mesmo tendo referência no ordinário, se realiza
em outro contexto e/ou na relação com outra(s) pessoa(s), de forma inusual. A
ausência de público também cria outro modo de vivenciar a proposição,
produzindo-se uma situação vivencial singular e inusitada, apesar de ser
controlada por um roteiro prévio. Nessa forma de ação, arte e vida aproximam-se
de tal forma que os limites entre ambas podem se confundir.

De acordo com Thaise Nardim, Kaprow desvia a atenção do objeto


institucionalizado como arte “dirigindo a atenção do fruidor ao tempo presente e a
conduzindo às produções locais que ainda não estavam institucionalizadas como
‘locais de arte’” (NARDIM, 2011, p. 107). Suas ações, nessa proposta, visam
escapar da absorção pelo sistema artístico institucionalizado.

Interessante observar que essa proposição surge no campo do ensino de


arte, quando os primeiros roteiros foram executados pelo artista com seus alunos.

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Um roteiro realizado em 1972, com os alunos do California Institute of Arts (CalArts)
foi Easy, com o seguinte enunciado:

(leito de rio seco)


molhando uma pedra
carregando-a rio abaixo até que esteja seca
largando-a
escolhendo, lá, outra pedra
molhando-a
carregando rio acima até secar
largando-a
(NARDIM, 2011, p. 106).

Esse é um roteiro de ações básicas, havendo que, para sua execução, se


tomar uma série de decisões relativas aos detalhes que envolvem os vários
elementos implicados nas ações. Ao executar o roteiro, além de participar da obra,
os executores estão vivendo a vida, decidindo sobre como fazer e sobre como
perceber as coisas. Estão observando e pensando sobre o que acontece a partir
das escolhas realizadas.

Os roteiros das Atividades exigem um envolvimento direto dos indivíduos


que farão parte da experiência. Não se trata de uma representação. E, apesar de
ter ligação com atividades cotidianas, também não se pode dizer que o que ocorre
é o cotidiano. As ações estão deslocadas de seu contexto original e não serão
representadas nesse outro contexto. O que Kaprow propõe é algo que se aproxima
da ideia de jogo (NARDIM, 2011, p. 113).

O jogo pressupõe uma atividade regida por um conjunto de regras e a


adesão de quem quer jogar, aceitando as regras e entregando-se à atividade com
envolvimento integral. O jogo faz parte da cultura como elemento fundante, de
acordo com Huizinga (2005). Para esse autor o jogo é uma forma de pensamento,
distinta de todas as outras. Algumas das principais características do ato de jogar
são: aliar realidade e imaginação, romper com a lógica do cotidiano, provocar o
prazer, ser espaço privilegiado de simbolização, compreender ordem, tensão,
movimento, mudança, ritmo, entusiasmo. O jogo faz parte de qualquer cultura e é
importante em qualquer idade. Na vida adulta aparece em práticas como

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cerimônias, festas, rituais, atividades profissionais e desafios de todo tipo
(MARTINS, 2005, p. 96-97).

Kaprow, nas Atividades, propõe jogos com elementos da vida. Ele propõe
brincar com aquilo que fazemos todos os dias, provavelmente sem prestarmos
muita atenção, tal como escovar os dentes, falar ao telefone, ir ao supermercado...
Kaprow discorre sobre as funções de tais propostas, ligadas à ideia do an-artista,
no seu texto em três partes intitulado A educação do an-artista (1971-1974). O an-
artista tem uma função educativa, no sentido de fazer olhar a vida com outros
olhos, de brincar com ela. É como se ele refizesse a vida, as coisas do mundo,
dentro de um jogo de ressignificações.

Essa forma de lidar com a experiência, envolvendo uma ideia de jogo, tem
relação com o pensamento de John Dewey, que foi referência direta para as
proposições de Kaprow. É de Dewey a obra Arte como experiência, publicada em
1934, em que o autor discorre sobre os fundamentos de uma pedagogia baseada
na experiência do próprio aprendiz. Para Dewey toda experiência tem caráter
estético e produz aprendizagem.

É necessário redescobrir a potência da experiência no processo de construção


de conhecimento. Interessava a Dewey pensar sobre como uma experiência pode
gerar um desequilíbrio que leve à busca de novas formas de lidar com a realidade, de
aberturas para a produção de novos conhecimentos. O conhecimento é construído a
partir de um processo ativo, que produz transformações – no indivíduo e no próprio
campo de conhecimentos (NARDIM, 2011).

Para Dewey, a percepção tem papel fundamental nesse processo, como


motivadora para a busca de algo a partir do que é percebido. A experiência é algo
que acontece no corpo e que relaciona percepção, emoção, pensamento e ação.
O ato criativo, em especial, tem esse atributo de ser uma experiência vital, que
envolve corpo em ação, processo, elaboração de significados e sentidos e na qual

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não é possível separar intelecto, emoção e ação. E é experiência em andamento,
não apenas algo que já se passou.

Apesar de as Atividades lidarem com certos campos de sentidos que se


referem a modos de ser e de se relacionar, os conteúdos envolvidos não estão
previamente determinados. As ações dão foco ao corpo, a espaços de
deslocamento do corpo, a objetos que fazem parte desses espaços, ao ambiente
natural e cultural em que o corpo vive. Mas o sentido que cada um vai atribuir à
experiência vivida nessas propostas, é singular e relacionado às referências
pessoais e culturais.

Pedagogia do evento em Atkinson

De acordo com Nardim, “as Atividades (de Kaprow) são obras com caráter de
evento, assim como os Happenings. Nelas, um pequeno grupo de pessoas engaja-se
na realização de ações previstas em um roteiro” (2011, p. 106). O pensamento que
funda as Atividades de Kaprow relaciona-se muito intensamente com as ideias de
Dennis Atkinson (2008; 2014) sobre pedagogia e formas de aprender.

O interesse pelas proposições de Kaprow, nesta pesquisa, se dá por


pretender-se uma aproximação à ideia de pedagogia como evento ou como
acontecimento, de Dennis Atkinson. Essa compreensão do modo de exercitar a
pedagogia – de vivenciar o ato de aprender – conecta-se com o interesse em
aprender de forma ativa, participativa, relacional. Compreende-se que a
aprendizagem é um processo de vida, no qual cada um realiza conexões com e
entre vivências, experiências, referências e conhecimentos anteriores. Também se
compreende o processo de aprendizagem como um processo de invenção, de
criação e de produção de conhecimento e de cultura.

Para Atkinson, um acontecimento é um evento da ordem do impensado, do


imprevisto e sempre do inusitado. Qualquer acontecimento se dá no momento de
acontecer, no qual não se tem controle total sobre o que vai se produzir. Um
acontecimento sempre envolve relações entre sujeitos, que estarão participando
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desse momento com suas particularidades, com suas próprias intenções e com sua
própria rede de conexões e conhecimentos prévios, com seus afetos e suas verdades.

A pedagogia do evento procura dar espaço a procedimentos da verdade


na aprendizagem, isto é, dar espaço ao imprevisível. Este tipo de
pedagogia nas artes visuais não pode se situar no discurso de reprodução
social e cultural que procura ensinar valores e formas estabelecidas, nem
pode se situar no discurso crítico que procura ensinar ferramentas para
questionar estes valores e formas, pois enquanto estes partem da ideia
de que o estudante não pode pensar por si mesmo, não haverá espaço
para a produção, ou poiese. Para uma pedagogia do evento é importante
que exista espaço para personalizar o conhecimento construindo novas
formas (FERNÁNDEZ MÉNDEZ, 2015, p. 29).

Essa forma de pensar o ato de aprender tem aproximação direta com o que
pretendeu Kaprow com as Atividades. Em cada uma delas se produzem
acontecimentos que farão irromper algo, como aprendizagem, ligada à
experiência. E se poderá produzir reflexões e verdades.

Para Atkinson as situações educativas são espaços políticos e de dissenso.


Um evento ou acontecimento sempre irá perturbar aquilo que já está estabelecido.
Um evento será um distúrbio, uma ruptura na forma usual de pensar e atuar. Um
evento nunca ocorre isoladamente. Está sempre encadeado a outros eventos.
Dessa forma, pode precipitar a aprendizagem, porque requer o estabelecimento
de novas relações entre o que é conhecido e o que ainda não é.

Tatiana Fernández Méndez, em sua tese de doutoramento, intitulada O


evento artístico como pedagogia, de 2015, aborda a intencionalidade poética no
ato educativo e a intencionalidade pedagógica do ato criativo, como também a
importância da experiência no ato de aprender. Referencia sua pesquisa na ideia
de evento de Atkinson e no pensamento de John Dewey que, em sua abordagem,
estão intrinsecamente ligados:

O conceito de evento pedagógico de Atkinson [...] que se estende ao


conceito de evento artístico, se relaciona à experiência estética deweyana
na ênfase sobre o corpo em sua experiência com o mundo, isto é, sobre
a existência. Para ele, a ideia de existência implica em um estar (being
there) em um lugar particular de tal maneira que a diferença permita
estabelecer relações, estruturas, posições e identidades entre os seres.
(FERNÁNDEZ MÉNDEZ, 2015, p. 97).
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Na educação em arte e no campo da produção artística se opera com a
noção de evento. E evento entendido como abertura para o que ainda não foi
pensado, como possibilidade de criação de procedimentos de verdade
relacionados a contextos da experiência. Essas verdades são produtoras de
transformações na realidade.

Material didático como criação poética

Nessa pesquisa buscou-se estudar referências artísticas e teóricas para


fundamentar a criação de um material didático, que é chamado de objeto propositivo
poético. O projeto de pesquisa que tem esse tema – de pensar a criação de materiais
didáticos como ato poético – tem o principal objetivo de contribuir para uma
transformação da própria concepção de material didático, ampliando referenciais
artísticos e teóricos que possam ajudar na criação de materiais que produzam
eventos, experiências transformadoras e a intervenção poética sobre a construção de
conhecimentos em Artes Visuais. Dessa forma, pretende-se uma reflexão mais ampla
sobre aprendizagem em arte, intermediada pela utilização de recursos didáticos
poéticos. E que estabeleça uma relação entre aquilo que se produz no contato com
proposições artísticas e o que se produz no ato educativo.

Comumente, material didático é entendido como qualquer coisa que ajude alguém
a aprender algo. No percurso dessa investigação foram buscados outros conceitos e
ideias para tornar mais claro o que se pretende quando se pensa na criação e utilização
de materiais especialmente elaborados para uso em situações de aprendizagem em
Artes Visuais. Chegou-se a algumas diferentes definições que ajudam a formular o
entendimento de objeto propositivo poético. Alguns desses conceitos encontrados foram:
objeto de aprendizagem (fontes diversas, da área da educação), objeto propositivo
(MARTINS, 2005), objeto de aprendizagem poético (FERNÁNDEZ MÉNDEZ, 2015),
dispositivos sensíveis para aprendizagem (LUPA, 2016).

Esses referenciais levaram a pensar na criação de alguns materiais que se


pretendem propositivos dessa forma de experiência: direta, envolvente, artística e

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relacional, possibilitando que se viva a aula de Artes Visuais de outra maneira. Um
desses materiais, criado e experimentado num projeto de pós-doutoramento, é o
intitulado Olhos e mãos (2019), como já mencionado.

O objeto propositivo poético Olhos e mãos é um conjunto de dispositivos para


serem usados no corpo, especialmente nos olhos e nas mãos, como referenciado em
seu título. São espécies de extensões corporais, como se pode ver nas Figuras 1 e 2.
Esses dispositivos foram elaborados com a intenção de produzir experiências
diferenciadas de percepções através dessas extensões do corpo, propiciando
diferentes relações do corpo com o espaço e com outros corpos.

Além das extensões corporais, chamadas de “Óculos de realidade especial


ou inventada” e “Luvas de sensação”, fazem parte do material alguns protocolos
de ações, com referência direta nas Atividades de Allan Kaprow.

Figura 1 — Óculos de realidade especial ou inventada, 2018

Fonte: Acervo da autora.

Os “Óculos de realidade especial ou inventada” foram criados a partir do modelo


Google CardBoard, disponível on-line em: https://www.techtudo.com.br/dicas-e-
tutoriais/noticia/2015/06/aprenda-como-fazer-um-oculus-rift-caseiro-siga-dicas.html e
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utilizado para visualização de realidade virtual através de aplicativos digitais e telefone
móvel. O modelo foi adaptado para três formatos. Ao invés de utilizar o telefone móvel,
foram criadas lâminas com imagens em transparência, em três diferentes conjuntos:
imagens com referência na natureza, imagens com efeitos ópticos e imagens a partir de
trabalhos artísticos da autora.

As “Luvas de sensação” são uma transformação de luvas de proteção ou


uma criação de dispositivos para serem usados pelas mãos, com intuito de causar
sensações diversas através do manuseio e do contato com a pele. Há três
conjuntos de luvas, sendo eles: luvas de proteção com objetos costurados, luvas
de proteção ou de fantasias com texturas e materiais variados e luvas inventadas
com objetos e materiais inusuais para o objeto luva. As Luvas sensoriais de Lygia
Clark, de 1967, são referência para esses objetos e intenções.

Figura 2 — Luvas de sensação, 2019

Fonte: Acervo da autora.

Ao se usar as luvas haverá a experimentação de sensações táteis pelas


próprias mãos e pela pele da pessoa com a qual se entrará em contato. As luvas
e os óculos serão utilizados individualmente ou em duplas, tendo como guia um

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roteiro ou protocolo de ações sugeridas, com inspiração nas Atividades de Kaprow,
como já dito.

Foram elaborados oito protocolos de ações sugeridas, alguns com


referência direta em Atividades específicas de Kaprow. Os protocolos foram
criados tendo em vista a utilização dos Óculos de realidade especial ou inventada
e das Luvas de sensação. Por isso preveem o uso desses dispositivos corporais
nas ações sugeridas. Os protocolos são sugestões que podem ser alteradas
durante o uso, que depende dos próprios dispositivos utilizados, que serão
escolhidos pelos participantes.

A concepção da proposta e do material também prevê a criação de óculos,


luvas e protocolos pelos próprios participantes, sendo uma proposição adaptável
a diferentes contextos e aos materiais disponíveis. Poderão ser criados, por
exemplo, outros modelos de óculos, com armações simples, de óculos comuns ou
de papelão.

Além do material físico, foi elaborado um material digital que apresenta toda
a proposta e as referências teóricas e artísticas do projeto. O endereço do material
digital é: <https://prezi.com/xufp8u44dfnp/olhos-e-maos/>. O material apresenta
outros referenciais artísticos e teóricos, além dos apresentados nesse artigo. O
público-alvo inicial são jovens e adultos, mas todo material também poderá ser
adaptado para crianças menores.

O estudo das Atividades de Allan Kaprow e da ideia de pedagogia como


evento ou acontecimento, de Dennis Atkinson, em muito contribuíram para a
criação da proposta aqui apresentada. As ideias se conectam diretamente ao
conceito de Objeto propositivo poético e à intenção de pensar na criação e uso de
materiais didáticos para uso em situações de aprendizagem como ato poético.

Esta reflexão poderá levar a repensar processos educativos em Artes


Visuais e em outras áreas de conhecimento, visando transformações não só nos
modos de aprender, mas também nas formas de relacionar-se e de ocupar os
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espaços, utilizando o corpo e proporcionando diálogos e trocas entre as pessoas
– além de incluir aspectos lúdicos e imaginativos.

A criação de materiais para uso na aprendizagem a partir dessa perspectiva


se pauta no entendimento de que a ação docente pode ser ação intencionalmente
poética. Nessa proposta de ação poética o evento artístico e o evento pedagógico
se aproximam, não sendo necessariamente possível distinguir um do outro.

O Objeto propositivo poético criado nessa investigação é aberto à atuação


poética dos utilizadores, que atuarão sobre o material e farão uso dele de maneira
pessoal e relacional. Dessa forma, cada uso será um acontecimento, que poderá
suscitar invenções e recriações impensadas até então.

Nota

1
Este texto é uma versão reduzida de artigo publicado na Revista Educação, UFSM, Santa Maria,
v. 47, 2022. ISSN: 1984-6444. DOI http://dx.doi.org/10.5902/1984644448109. Disponível em:
https://periodicos.ufsm.br/reveducacao.

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NARDIM, Thaise Luciane. As atividades de Allan Kaprow: artes de agir, obras de viver. Revista
Valise, Porto Alegre, v. 1, n. 1, jul. 2011.

Andrea Hofstaetter
Professora Associada do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS
(IA/UFRGS), atuando principalmente no Curso de Licenciatura em Artes Visuais. Mestre e Doutora
em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do IA/UFRGS. Realizou
estágio Pós-Doutoral na área de Educação e Artes Visuais, no Programa de Pós-Graduação em
Educação da Faculdade de Educação da UFRGS. Possui graduação em Licenciatura Plena em
Educação Artística: Habilitação em Artes Plásticas, pela Federação de Estabelecimentos de Ensino
Superior em Novo Hamburgo - FEEVALE (1994). Participa do Grupo de Pesquisa em Educação e
Arte (GEARTE/UFRGS/CNPq). É membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes
Plásticas (ANPAP). Desenvolve projetos de pesquisa e extensão na área de produção,
experimentação e avaliação de materiais didáticos e objetos de aprendizagem para o Ensino de
Artes Visuais.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6079-2551
E-mail: andrea.hofstaetter@gmail.com
Currículo: http://lattes.cnpq.br/1668397570218948

Recebido em 07 de setembro de 2022


Aceito em 30 de outubro de 2022

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