A eleição de 1974

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A eleição de 1974

O Início da Abertura e as Eleições de 1974


O governo Geisel se associa ao início da abertura política que o general-presidente definiu
como lenta, gradual e segura. Na prática, a liberalização do regime, chamada a princípio de
distensão, seguiu um caminho difícil, cheio de pequenos avanços e recuos. Isso se deveu a
vários fatores. De um lado, Geisel sofria pressões da linha-dura, que mantinha muito de sua
força. De outro, ele mesmo desejava controlar a abertura, no caminho de uma indefinida
democracia conservadora, evitando que a oposição chegasse muito cedo ao poder. Assim,
a abertura foi lenta, gradual e insegura, pois a linha-dura se manteve como uma contínua
ameaça de retrocesso até o fim do governo Figueiredo.

A estratégia da distensão foi formulada pelo presidente e pelo general Golberi, que voltou
ao governo como chefe do Gabinete Civil da presidência. Após 1967, Golberi se dedicou a
atividades na empresa privada, primeiro como consultor e depois como presidente para o
Brasil da multinacional Dow Chemical. Essa vinculação o expôs à ira dos nacionalistas e da
linha-dura.

Por que Geisel e Golberi decidiram promover a liberalização do regime? Teria sido ela fruto
de pressões da oposição?

Sem dúvida, a oposição começara a dar em 1973 claros sinais de vida independente; o
confronto entre a Igreja Católica e o Estado era também muito desgastante para o governo.
A equipe de transição de Geisel tratou aliás de estabelecer pontes com a Igreja, a partir de
um ponto comum de entendimento: a luta contra a tortura. Mas a oposição política e a Igreja
não eram o termômetro mais sensível a indicar a necessidade da distensão. Esse
termômetro se localizava nas relações entre as Forças Armadas e o poder. O poder fora
tomado pelos órgãos de repressão, produzindo reflexos negativos na hierarquia das Forças
Armadas. Um oficial de patente inferior podia controlar informações, decidir sobre a vida ou
morte de pessoas conforme sua inserção no aparelho repressivo, sem que seu superior na
hierarquia militar pudesse contrariá-lo. As funções e os princípios básicos das Forças
Armadas eram assim distorcidos, trazendo riscos à integridade da corporação militar.

Para restaurar a hierarquia, tornava-se necessário neutralizar a linha-dura, abrandar a


repressão e, ordenadamente, promover a "volta dos militares aos quartéis". Por outro lado,
lembremos que a "democracia relativa" era uma meta buscada pelo grupo castelista desde
1964.

O governo começou a travar nos bastidores uma luta contra a linha-dura. Ao mesmo tempo,
permitiu que as eleições legislativas de novembro de 1974 se realizassem em um clima de
relativa liberdade, com acesso dos partidos ao rádio e à televisão. Esperava-se um triunfo
fácil da Arena, que seria realçado pelo fato de o MDB ter sido autorizado a se expressar,
mas os resultados eleitorais surpreenderam o governo. Da soma de votos válidos para o
Senado, em um total de 24,5 milhões, o MDB obteve cerca de 14,5 milhões de votos, ou
seja, 59%. Conquistou dezesseis das 22 cadeiras em disputa e a Arena apenas 6. A Arena,
no entanto, continuou a ser majoritária, pois apenas parte do Senado foi renovada em 1974.

Para a Câmara Federal, na contagem geral de votos, a Arena superou o MDB por pequena
maioria. Obteve 11,8 milhões (52%) contra 10,9 milhões de votos (48%). O partido do
governo conquistou 204 cadeiras contra 160 da oposição; mas era evidente o avanço do
MDB com relação às eleições de 1970. É importante observar que o MDB ganhou nos
grandes centros urbanos e nos estados mais desenvolvidos, onde a independência do
eleitor era maior. Por exemplo, nas eleições para o Senado, obteve na Guanabara e no
estado de São Paulo mais de 70% dos votos. O MDB triunfou em 79 das 90 cidades do país
com mais de 100 mil habitantes. As 11 cidades em que a Arena foi vitoriosa localizavam-se
no Nordeste. A negação das liberdades era profundamente sentida pelos chamados
formadores de opinião, e a miragem do milagre econômico começava a se dissipar.

No curso de 1975, Geisel combinou medidas liberalizantes com medidas repressivas. As


últimas eram destinadas a acalmar o "público interno", ou seja, integrantes da corporação
militar. No mês de janeiro, tivemos exemplos dessa tática: em surdina, o governo suspendeu
a censura ao jornal O Estado de S. Paulo; a isto se seguiu uma ousadia maior dos outros
jornais, com destaque para a Folha de S. Paulo. Por outro lado, o ministro da Justiça
Armando Falcão desfechou uma violenta repressão contra o PCB, acusando-o de estar por
trás da vitória eleitoral do MDB.

Um confronto importante entre o governo e a linha-dura ocorreu afinal às claras em São


Paulo. Embora a guerrilha tivesse sido eliminada, os militares linha-dura continuavam a
enxergar subversivos por toda parte. Continuava também a prática da tortura, acrescida do
recurso ao "desaparecimento" de pessoas mortas pela repressão. Na realidade, esses
métodos, justificados por alguns como mal inevitável decorrente de uma "guerra interna",
sobreviveram e até se intensificaram depois que a "guerra" terminou. Em outubro de 1975,
no curso de uma onda repressiva, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV
Cultura, foi intimado a comparecer ao DOI-Codi de São Paulo. Ele era suspeito de ter
ligações com o PCB. Herzog apresentou-se ao DOI-Codi e daí não saiu vivo. Sua morte foi
apresentada como suicídio por enforcamento, uma forma grosseira de encobrir a realidade:
tortura, seguida de morte.

O fato provocou grande indignação em São Paulo, sobretudo nos meios da classe média
profissional e da Igreja. Os bispos presentes à Conferência Regional dos Bispos que se
realizava em Itaici denunciaram as mortes por tortura. A Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) pôs-se à disposição da mulher de Herzog - Clarice - para responsabilizar o Estado
pela morte de seu marido. A missa celebrada na praça da Sé por dom Evaristo Arns,
assistido por dois rabinos e um pastor protestante, foi um ato comovido de repulsa à
violência. O secretário de Segurança de São Paulo, coronel Erasmo Dias - integrante da
linha-dura -, tratou de bloquear o acesso da população ao centro da cidade, provocando um
verdadeiro tumulto no trânsito. Mesmo assim, milhares de pessoas lotaram a praça e a
catedral da Sé. Poucos meses mais tarde, em janeiro de 1976, o operário metalúrgico
Manuel Fiel Filho foi morto em circunstâncias semelhantes às da morte de Herzog. Mais uma
vez, a versão oficial era de suicídio por enforcamento.
O presidente Geisel, que já emitira sinais de descontentamento ao "público interno",
resolveu agir. Um poder paralelo se instalara em São Paulo com as bênçãos, ou, no mínimo,
a omissão do comandante do II Exército, Ednardo D'Ávila Melo. Geisel substituiu-o por um
general de sua inteira confiança - Dilermando Gomes Monteiro -, que começou a usar outra
linguagem e a estabelecer pontes de contato com a sociedade. A tortura nas dependências
do DOI-Codi cessou, embora as violências em São Paulo não tivessem terminado. A linha-
dura tinha ainda bastante fôlego. Por exemplo, em setembro de 1977, a Polícia Militar, por
ordem do coronel Erasmo Dias, invadiu a Universidade Católica (PUC), onde milhares de
estudantes se reuniam para tratar da reorganização da UNE, na ilegalidade. A invasão foi
acompanhada de espancamentos e lançamento de bombas, resultando em graves
queimaduras em cinco estudantes.

Pacote de Abril
Após o resultado do pleito de novembro de 1974, os confrontos eleitorais passaram a ser
uma preocupação para o governo. Haveria eleições municipais em novembro de 1976, e a
possibilidade de uma derrota da Arena era real. Meses antes, em julho de 1976, uma lei
modificadora da legislação eleitoral barrou o acesso dos candidatos ao rádio e à televisão. A
medida foi batizada de Lei Falcão, pois o ministro da Justiça teve a duvidosa honra de
imaginá-la. Nas eleições municipais, os partidos poderiam apresentar no rádio e na televisão
apenas o nome, número e currículo dos candidatos, e uma fotografia destes no caso da
televisão.

Embora a Lei Falcão atingisse em princípio tanto a Arena como o MDB, era o partido da
oposição o grande prejudicado. Ele perdia uma oportunidade única para divulgar suas
ideias. Nessa época, a propaganda eleitoral era uma novidade atraente, mas ninguém
poderia aguentar a monotonia da fala imposta pela Lei Falcão. Mesmo assim, o MDB venceu
as eleições para prefeito e conquistou maioria nas Câmaras Municipais em 59 das cem
maiores cidades do país.

Geisel apertou o cerco, introduzindo em abril de 1977 uma série de medidas que ficaram
conhecidas como o "Pacote de Abril". O "pacote" foi baixado depois de uma crise entre o
Executivo e o Congresso, quando o governo não conseguiu a maioria necessária de dois
terços para aprovar várias alterações constitucionais. O presidente, em resposta, colocou o
Congresso em recesso e, a partir daí, emendou a Constituição e baixou vários decretos-leis.

Entre as medidas do "Pacote de Abril", estava a criação da figura do senador biônico, cujo
objetivo era impedir que o MDB viesse a ser majoritário no Senado. Os senadores biônicos
foram eleitos, ou melhor, "fabricados", por eleição indireta de um colégio eleitoral
organizado de forma a tornar muito difícil a vitória da oposição. O critério de representação
proporcional nas eleições à Câmara dos Deputados foi alterado, de modo a favorecer os
estados do Nordeste. Estes passaram a eleger proporcionalmente maior número de
representantes do que os estados do Centro-Sul. A medida visava favorecer a Arena, que
controlava a maioria dos votos no Nordeste. Além disso, o "pacote" estendeu as restrições
da Lei Falcão às eleições para os legislativos federal e municipal. O mandato do presidente
da República passou de cinco para seis anos.
Ao mesmo tempo, o governo iniciou em 1978 encontros com líderes do MDB, da ABI e
representantes da CNBB para encaminhar a restauração das liberdades públicas. Em
outubro de 1978, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional nº 11, que entrou em vigor
em 1º de janeiro de 1979. Seu objetivo principal foi revogar o AI-5, incorporado à
Constituição. A partir dessa data, o Executivo já não poderia declarar o Congresso em
recesso, cassar mandatos, demitir ou aposentar funcionários a seu critério, privar cidadãos
de seus direitos políticos. O direito de requerer habeas corpus foi também restaurado em
sua plenitude. Ao mesmo tempo, a Emenda nº 11 criou ao lado da figura já existente do
estado de sítio as chamadas "salvaguardas", pelas quais o Poder Executivo poderia decretar
o estado de emergência e medidas de emergência. As últimas poderiam ser tomadas para
restabelecer a ordem pública e a paz social em locais determinados, atingidos por
calamidades ou graves perturbações. Essas restrições levaram o MDB a abster-se na
votação da emenda.

Criou-se a partir de 1979 uma situação em que os cidadãos podiam voltar a manifestar-se
com relativa liberdade e em que os controles à imprensa haviam desaparecido. A oposição
tinha também campo de manobra, mas não podia lograr seu objetivo lógico de chegar ao
poder.

O MDB alcançou bons resultados nas eleições legislativas de 1978, apesar das restrições. O
partido se tornara o canal político de expressão de todos os descontentamentos da
população, integrando em seus quadros desde liberais até socialistas. A campanha eleitoral
de 1978 contou com o apoio dos militantes de diferentes grupos da sociedade civil:
estudantes, sindicalistas, advogados, membros das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs),
ligados à Igreja. Esses grupos estabeleceram uma ponte entre o MDB e a grande massa,
reduzindo o grave inconveniente da impossibilidade de se ter livre acesso ao rádio e à
televisão.

O MDB obteve 57% dos votos válidos para o Senado, mas não ficou com a maioria daquela
casa. Isso se explica porque a representação no Senado não é proporcional, e sim por
estados. Além disso, havia a presença dos biônicos. A Arena continuou majoritária na
Câmara Federal, conquistando 231 cadeiras contra 189 do MDB. Manteve-se a
concentração de votos no MDB nos estados mais desenvolvidos e nas grandes cidades. O
partido recebeu na votação para o Senado cerca de 83% dos votos em São Paulo, 63% no
estado do Rio de Janeiro e 62% no Rio Grande do Sul. De qualquer forma, o governo
continuava a ter maioria no Congresso.

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