De Quatro - Miranda July
De Quatro - Miranda July
De Quatro - Miranda July
PARTE UM
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
PARTE DOIS
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
PARTE TRÊS
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
Í
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
PARTE QUATRO
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
PARTE UM
CAPÍTULO 1
Obrigada!, respondi.
Era tarde para ligar, então mandei uma mensagem e adormeci imaginando
Tim Yoon verificando placas.
Yoon, meio-dia e um. Fez zum-zum para o sol da tarde. Yoon, bocejo de
jejum. Fez zum-zum para o Sol, bocejou de jejum na crosta da Terra. Depois
voltou com uma travessa branca em cada mão.
— Continuo verificando as placas? – gritou Yoon, ao se aproximar.
— Sim, não pare. Pode fazer isso pra sempre?
— Vou tentar – ele disse, ofegante, enquanto passava correndo por mim.
Observei-o afundar no horizonte, então virei o rosto para o outro lado,
esperando que desse a volta no globo e ressurgisse.
Meses se passaram até que Tim Yoon me retornou e eu já havia descoberto
quem era o tal telefotógrafo.
CAPÍTULO 2
Harris tinha acabado de achar um mapa dobrável dos Estados Unidos e estava
tracejando rotas com os dedos.
— Se você pegar a rota sul, vai passar pelo Novo México e dormir uma noite
em Las Cruces.
Eu estava segurando uma escova plástica de cabelo e tentava prestar atenção
em todos os tracinhos vermelhos e azuis, mas meus olhos repicavam.
— Não é melhor só colocar Nova York no Google Maps?
— Mas há muitos jeitos de chegar. Rotas diferentes.
Aconselhou que eu tirasse uma semana a mais para que a viagem não
comesse meus dias em Nova York.
— Sério? Aí serão mais do que duas semanas sem vocês.
Eu nunca tinha passado tanto tempo longe de Sam. Toda vez que elu passava
correndo por nós eu tentava lhe entregar a escova de cabelo; mas é claro que
aos sete anos qualquer pessoa poderia ser a comandante de seus cabelos
emaranhados.
— Mas imagina dirigir por uma semana e aí dar meia-volta pra casa. É
melhor você tirar três semanas pra fazer valer o esforço.
— Três semanas? Não, é muito tempo longe.
Ele estava sendo generoso porque eu havia passado muito tempo com Sam
enquanto ele trabalhava com sua protegida-de-vinte-e-sete-anos, Caro.
Protegida é a palavra certa? Aprendiz, sei lá. Ele é produtor musical, o que na
verdade é ótimo – não há competição entre nós e ele sabe as necessidades da
alma do artista. Antes eu a chamava de Caroline; Caro parecia íntimo demais,
um apelido carinhoso.
(“Só a imprensa a chamava de Caroline”, Harris havia me dito.)
(“Tudo bem. Não me incomoda agir como a imprensa.”)
Mas não era só porque ele me devia horas de creche; Harris não tem muitos
sentimentos conflitantes em relação ao ambiente doméstico. Eu também não
tinha, até termos uma criança. Harris e eu éramos dois workaholics, na
mesma medida. Sem criança, eu conseguia sapatear no sexismo da minha
época, mas virar mãe esfregou minha cara nesse vespeiro. Um preconceito
latente, internalizado por nós dois, veio à tona com a parentalidade. Ficou
claro que Harris era claramente recompensado por tudo que fazia, já eu sentia
uma vergonha silenciosa pelas mesmas coisas. Não tinha como lutar contra
isso, nem ninguém para responsabilizar, pois vinha de toda parte. Até andar
pela minha própria casa me deixava assombrada, repleta de culpa por qualquer
coisinha que eu fazia ou deixava de fazer. Harris não conseguia ver a
assombração e essa era a pior parte: viver com alguém que, em essência, não
acreditava em mim e que ficava muito, muito indisposto para fingir empatia –
ou então virar o vilão! De sua própria casa! Tão irritante para ele. E tão
irritante ser a esposa, e não outra mulher que pudesse aproveitar o quão
incrível ele era. Tão doloroso para nós dois, sobretudo porque éramos pessoas
modernas e criativas, acostumadas a viver nossos sonhos de futuro. Mas um
bebê só existe no presente, o presente histórico, geográfico e econômico. Com
um bebê, não se podia mais ser tímido ou gracioso em relação ao capitalismo
– dinheiro significava tempo, tempo significava tudo. Podíamos ter pulado essa
parte, mas viramos pais; nem precisaria ter chegado a um ponto crítico. Por
outro lado, é bom quando as coisas chegam num ponto crítico. E aí um dia, de
repente: bum.
Harris riscava o mapa com um marca-texto e dizia que ainda dava tempo de
decidir se eu ficaria mais alguns dias.
— Essa é a grande coisa de dirigir; você pode improvisar.
Ele poderia ser generoso assim pelas razões que acabei de explicar. Eu não!
Eu sempre quis que ele voltasse logo – viagens prolongadas, feriados escolares,
uma criança muito doente para ir à escola, essas coisas dão um frio na espinha
das mães que trabalham e cuja liberdade, para começo de conversa, é muito
precária. Mas eu adorava isso no Harris, o quanto ele me encorajava a ficar
mais e me divertir. Lembrei que tinha que voltar até o dia quinze. Claro,
respondeu ele; sem dúvidas.
Todo mundo sabia que meu encontro com Arkanda era no dia quinze.
Arkanda não é seu nome verdadeiro. Ela é uma pop star mundialmente
famosa de quem você com certeza já ouviu falar. Não só famosa, mas muito
amada. Um tempo atrás, Liza, minha agente, recebeu uma ligação da equipe
dela. Arkanda queria me encontrar em Malibu no fim de abril para conversar
sobre um projeto em potencial e eles passariam os detalhes até o dia vinte de
abril. Todos os meus amigos ficaram atônitos com essa reviravolta, atônitos
até demais. Por que, por que, por que Arkanda gostaria de trabalhar com você,
se perguntavam em voz alta. Quando insinuei que talvez tivesse a ver com a
minha produção artística, eles disseram coisas como Claro, tem razão, quem
sabe, pode ser sim. O nível de fama de Arkanda alterava tanto o cenário que, em
geral, meu trabalho não era mais notável que o de Cassie, que era designer
gráfica de uma empresa de molho picante, ou o de Destiny, que gerenciava um
complexo de apartamentos herdados. Mas, escolhendo a mim, por tabela,
Arkanda havia escolhido todos os meus amigos; todo mundo estava esperando
o fim de abril. Projeto em potencial. É claro que podia não ser nada de mais, algo
como escrever um ensaio ou entrevistá-la. Até mesmo dirigir um vídeo não
mudaria minha vida, mas ainda assim aceitaria com prazer fazer qualquer uma
dessas coisas, que farra! Mas se fosse para realmente colaborar, passar um
tempo juntas, partilhar um novo mundo – um disco, letras, vídeos, a direção
de arte –, uma fusão de mentes criativas que em seguida faria parte da cultura
em um nível que eu nunca alcançaria sozinha… Eu esbanjaria uma blusa nova
no dia vinte: seda em decote V bem cavado. No dia dezenove, a equipe dela
me ligou para remarcar o encontro para o começo de junho, depois adiou para
o outono, e aí para mais perto do Ano-Novo, e essa mudança de datas
prosseguiu indefinidamente. Quando meus amigos e eu já estávamos
começando a perder as esperanças, uma nova data chegou, o dia quinze, mais
uma vez em Malibu, num restaurante chamado Geoffrey’s, e algo que nunca
tinha acontecido antes: um horário. Três da tarde.
— E se meu carro quebrar ou algo assim?
— De um jeito ou de outro você chega em Malibu dia quinze às três da tarde
– disse Harris.
Nem é preciso dizer que se Arkanda quisesse minha colaboração nós apenas
adaptaríamos nossas vidas para tornar isso possível. Até Harris é fã de
Arkanda, e não ironicamente. Ele daria tudo para produzir uma de suas
músicas (o que tornava tudo ainda mais saboroso ela ter me escolhido). Talvez
nós dois estivéssemos blefando com relação a essa cruzada pelo país de carro,
cientes de que eu acabaria recuando e pegando um avião.
— Você não se preocupa com a minha segurança? – perguntei.
— É por isso que estou ajudando você a traçar a rota – respondeu Harris,
com os olhos no computador. – Porque há lugares bons e ruins para fazer as
paradas.
Ele estava lendo um tópico do Reddit sobre cidades e hotéis queer-friendly,
supondo que seriam mais seguros para uma mulher viajando sozinha. Mas ele
estava confiante de que eu ia aproveitar a viagem, que aplacaria minha
tristeza, e acreditava que eu ficaria bem. Sempre que saio de casa, ele diz
“Divirta-se!”. No começo, achava que ele não estava nem aí pra mim, se esse
fosse todo o temor que tinha pela minha segurança.
Meu pai sempre se despedia de minha mãe com uma arenga de advertências,
frisando o quanto ela era essencialmente incapaz de tudo que estava prestes a
fazer. Fazia isso para protegê-la, para que ficasse em alerta e assim fornecia-lhe
uma chance de sobreviver, afinal tudo podia acontecer a qualquer momento,
até mesmo em casa. Por exemplo, a mãe dele, minha avó Esther, havia se
jogado da janela de seu apartamento em Nova York quando tinha cinquenta e
cinco anos. Não deixou pistas, com exceção de que havia lamentado pelos
tantos cabelos brancos.
— Ela não suportou ver sua beleza esvanecer – diz meu pai com o mesmo
tom incrédulo. Quem se mataria por uma bobagem dessas? – E seu cabelo era
castanho, nem sombra de um fio grisalho!
Ela provavelmente pintava o cabelo, é o que eu sempre penso, mas não digo
porque não quero que meu pai desconfie que eu pinto o cabelo e por isso sou
parecida com ela. Harris estava imprimindo o mapa de sua rota sugerida.
— Pra que isso se posso usar o celular? – perguntei, olhando para a linha que
cortava a parte superior dos Estados Unidos.
— E se acabar a bateria?
Pendurei o mapa em cima da mesa na garagem de casa, ao lado do bilhete
do vizinho. Se o telefotógrafo voltasse quando eu estivesse cruzando o país,
ele não conseguiria me achar com suas lentes de longa distância; teria que se
contentar com as fotos antigas.
CAPÍTULO 3
E m seis dias eu estaria na estrada, dirigindo oito horas por dia. Pegaria a
210 para a I-15 e seguiria pela I-70 até o fim, de Utah à Pensilvânia
Turnpike, depois em direção à I-76, de lá pegaria a I-276 para chegar na I-95 e
em seguida a I-278 até Nova York. Depois das quatro primeiras horas de
estrada, faria uma parada em Las Vegas; me disseram que lá havia um
restaurante macrobiótico muito bom chamado Bendita. Dirigiria até o Zion
National Park, onde havia um túnel com janelas para ver a paisagem. Passaria
a primeira noite em Salina, Utah. De Salina seguiria para Denver, de Denver
para o Kansas, e já seria a metade do caminho. Não é incrível, disse Harris, que
o meio do caminho fique exatamente no meio do país. Concordei, mas acharia
melhor que outra pessoa estivesse dirigindo. Eu me imaginava olhando pela
janela, cochilando, desembrulhando um sanduíche com as duas mãos – coisas
que provocariam minha morte. Harris me ensinou a acionar o controle de
cruzeiro no volante para deslizar estrada afora.
— Eu não me vejo usando isso – respondi. Parecia tão seguro quanto um
carro que anda sozinho.
— Tá, mas você vai cansar de ficar com o pé no acelerador oito horas por
dia.
Instantaneamente meu pé ficou exausto.
De café da manhã, levaria barras de proteína para começar cedo. Dizem que
você pode perder muito tempo esperando os restaurantes abrirem. Do Kansas
para Indianápolis, parando em Casey, Illinois, para visitar a maior coleção do
mundo de objetos gigantes. De Indianápolis para Pittsburgh, onde terminava a
I-70 e eu tinha um ex simpático. De Pittsburgh para Nova York, onde eu
passaria seis noites caríssimas no Carlyle, tempo de sobra para ver todos os
meus amigos e todos os museus e galerias e peças de teatro e fazer reuniões de
trabalho. E aí mais seis dias de estrada para voltar para casa, que todo mundo
disse que seria muito mais rápido, porque a volta pra casa sempre parece mais
rápida. Separei doze audiolivros e muitas playlists que as pessoas tinham feito
especialmente para que eu as ouvisse em determinada parte do caminho, por
exemplo uma robusta compilação de folk e blues para o Delta do Mississippi,
caso eu decidisse seguir para o sul. Minha lista de tarefas só foi aumentando de
tamanho – inspeção veicular, terapia lombar, sacar dinheiro, roupas com
proteção solar, gel para rosácea, mais Benadryl etc. etc. –, mas deixei por isso
mesmo e, aos poucos, a lista foi ficando cada vez menor. O Benadryl era para
dormir, não para alergia. Eu andava acordando toda noite às duas da manhã.
Mas a coisa só ficava séria caso eu não tivesse Benadryl, porque aí entrava num
estado de fuga angustiante que só terminava quando o sol nascia sobre um
frágil e chorão resto de ser humano incapaz de pensar ou trabalhar, quanto
mais de dirigir com segurança. É por isso que eu precisava de mais Benadryl.
Era uma viagem de duas semanas e meia. O tempo mais longo que fiquei
separada de Sam ou Harris havia sido duas semanas, agora esse tempo era o
mínimo para a viagem ser confortável. Eu disse a mim mesma que se sentisse
muita falta de Sam ou se Sam sentisse muito a minha falta eu poderia pegar
um voo de volta a qualquer momento e pagar alguém da Craigslist para trazer
o carro de volta. Mas era improvável que Sam sentisse minha falta, afinal o que
os olhos não veem o coração não sente. Isso também se aplicava a mim. O
grande medo era de que nos esquecêssemos. Esse sempre foi o meu medo
inerente: de que alguém que eu amava passasse a me ver como uma estranha.
Ou que eu pegasse um caminho tão tortuoso que não fosse capaz de voltar.
Antes mesmo de sofrer com comprometimento cognitivo leve, minha mãe
sempre se apresentava quando eu atendia o telefone. É sua mãe quem fala:
Elaine, dizia ela, prevendo que eu não reconhecesse sua voz ou tivesse
esquecido seu nome. Depois de duas semanas e meia, era provável que eu
tivesse que me apresentar de novo para minhe filhe, e esse era o tipo de risco
mais doloroso que alguém pode correr na vida.
*
Um dia antes da minha partida, Sam e eu tomamos o banho derradeiro juntes.
Era nosso ritual semanal, iniciado antes de elu aprender a sentar, quando eu
ainda tinha que escorar elu, caso contrário tombaria. Agora elu se encaixa
languidamente entre as minhas pernas, feito um chinelo dentro de um
chinelo, e usa meu peito como travesseiro. Nós deixamos tudo escuro e
acendemos uma vela almiscarada, o vapor serpenteando a chama. Comemos
fatias de maçã com mel, o barulho da nossa mastigação molhada imperava até
que um de nós comentasse sobre a água ou o tempo ou nossos corpos – nesse
ambiente místico tínhamos só grandes pensamentos, como dois maconheiros.
Em geral, meditávamos sobre nosso amor e sobre o fato de que sempre
tomaríamos banhos juntes dessa forma. Eu sabia que não, mas que sempre
poderíamos nos lembrar desse sentimento. Às vezes eu chorava, de amor
simplesmente, e Sam dizia, “Ó, mamãe”.
Naquela noite, Sam perguntou se podíamos ter um cachorro quando eu
voltasse de viagem.
— A ideia é essa – respondi.
— É um sim?
— Vamos ver o que acontece.
— As crianças não são boas nisso, mãe.
Sam sempre explicava essas coisas para mim, como se elu fosse criança há
mais tempo do que eu era mãe.
— Você é diferente das outras mães – elu havia dito poucas semanas antes.
— Sou? E como são as outras mães?
— Ah, tipo, você mostra alguma coisa que fez e elas dizem coisas como
“UAAAU, AMEI!”.
Não era a resposta que eu esperava; e não foi tão ruim ouvi-la. Minha mãe
nunca soube muito bem como agir, o que fazer numa determinada situação,
então em geral ela perdia o rumo, prometia a lua, e aí do nada mudava de
ideia e recuava, irritada.
— Eu adoro as coisas que você faz – respondi, ajeitando sua franja molhada.
— Eu sei, é que você fala como se estivesse conversando com um adulto.
— UAAAU! – exclamei, tentando consertar.
Elu revirou os olhos, algo que tinha acabado de aprender.
— Eu não gosto disso. Mas as outras crianças gostam.
— Okay.
— Você tem que se comportar assim na minha próxima festa de aniversário.
— Mas falta um ano ainda.
— Eu espero.
— Combinado. Vou me esforçar.
Enquanto eu secava seu corpo, conversamos sobre as lembrancinhas que eu
traria de cada estado.
— Um brinquedo.
— Brinquedo não. Vou pegar algo da natureza.
— Um chaveiro já está bom.
— Pode ser uma pedra ou um cacho de sementes. Ou um guardanapo
engraçado de algum jantar.
— Guardanapo? Eu não quero um guardanapo! Traz então uma coisa só,
bem maneira.
De manhã, o céu estava acinzentado e tive a sensação de que aquele seria meu
último dia sobre a Terra. O que, para todos os efeitos, sabíamos que seria. Era
diferente de pegar um avião, afinal todo mundo sabe que pegar estrada é cem
vezes mais perigoso; dirigir era isso. Vesti minha roupa branca antirraios
solares e passei um bom tempo arrumando o porta-malas e sentada no banco
do motorista ensaiando pegar as coisas sem olhar para elas. A irmã de uma
conhecida havia causado um engavetamento de seis carros numa estrada
interestadual só porque baixou os olhos para colocar uma fita do Oingo
Boingo. Então beijei o rosto inteiro de Sam, mas elu estava ansiose para se
refastelar em seu prometido tempo de tela. Harris tirou uma foto.
— Liga pra gente de Utah hoje à noite – disse ele, me abraçando. Olhei para
ele como quem diz: Se eu sobreviver, se eu voltar pra casa, vamos acabar de uma vez
com essa farsa e virar uma pessoa só. Ele me olhou como quem diz: Se você
quisesse, poderíamos começar agora mesmo. Em resposta, meus olhos nada
disseram.
CAPÍTULO 5
Liguei pro Harris. Contei que não tinha ido tão longe quanto esperava.
— Onde você está?
Semicerrei os olhos para o lustre de plástico no centro do teto e me
perguntei se toda luz, independente da forma – vela, abajur, vagalume – vinha
originalmente do Sol.
— Perto do Zion National Park.
— Ah, tá, você chegou a Utah, impressionante.
Eu estava a um passo de comentar sobre a paisagem que vi pela janela
dentro do túnel quando me dei conta de que ele queria desligar a ligação.
— Tô resolvendo um lance aqui com a Caro.
Harris nunca quer saber mais do que o mínimo. Acho tranquilo. Chegaria a
hora, depois dessas formalidades, em que nos entregaríamos a um jorro de
emoção. E obviamente agora eu só teria mais “mentiras” para contar.
Mentiras entre aspas porque as pessoas sempre usam as palavras com muita
justeza, como se a verdade fosse um diamante puro. Mas beleza, chamemos de
mentira. Cada pessoa mente o quanto lhe basta. É preciso se conhecer e
executar a quantidade de inverdades que sua própria constituição exige.
Conheço muitas mulheres (como minha amiga Jordi) que não conseguem
suportar o sentimento que a mentira lhe desperta – não é a praia dela.
“O que você avista é o que você tem”, dizem essas mulheres sobre si
mesmas. Para mim, mentir criou uma quantidade segura de problemas e o
que eu avistava era só uma das minhas quatro ou cinco faces – todas elas reais,
todas elas com necessidades próprias. A única mentira perigosa era aquela que
demandava que eu me comprimisse numa única entidade conveniente à
compreensão das pessoas. Eu era um caleidoscópio, cada pedaço de vidro
brilhante modificando-se com os giros.
— Dizem que um caleidoscópio não devia se casar, pelo menos não com
uma pessoa tão convencional – disse Jordi quando contei a ela essa teoria.
— Mas eu tenho um lado convencional também – retruquei. – Pra casar eu
tenho que ser só isso? Exigimos isso dos homens? Não, para eles seria
humilhante, afinal constroem sua identidade por meio do trabalho e do poder
e da majestade com que desfilam pelo mundo, como se fossem
autossuficientes. É a mesma coisa.
Um dia, quando estivéssemos prontos, eu me revelaria inteiramente para o
Harris; seria como mostrar um suéter tricotado em segredo.
Deus meu, diria ele. Como você arranjou tempo para fazer isso?!
Uma hora aqui outra ali, quando dava. Às vezes você estava perto de mim.
Eu não sabia que você tricotava!
Você desconhece muitas coisas sobre mim; essa é a nalidade desta metáfora do
suéter.
É claro que, se você passa anos e anos tricotando uma hora, o suéter fica tão
grande que passa a ser impossível escondê-lo.
CAPÍTULO 6
Por incrível que pareça, ela tinha bom gosto. No primeiro dia de serviço,
apareceu com catálogos de papel de parede marcados com post-its em todas as
estampas rosadas, também em belíssimos padrões botânicos cheios de
papagaios em tons perolados sobre árvores tropicais do século XVIII. Ela sacou
a particularidade que havia na combinação colcha rosa e carpete marrom de
fábrica – na parte da tarde, cobriu o carpete com um marrom ainda mais
bonito, um Grand Parterre Sarouk feito de lã neozelandesa. Enquanto media,
já cortava, em seguida prendia cada parte com a diligência de suas unhas de
pedra preciosa e eu só pensava quantos segundos até que alguém do hotel
batesse na porta. Cinco? Sete? Oito segundos. Abri a porta na primeira batida e
antes que o surfista velho dissesse um A, Claire disse “Olá, Skip” e pediu que
ele tirasse os sapatos. Ele olhou para o carpete felpudo e tirou os chinelos,
inquieto. Caminhou lentamente pelo quarto. Claire fez uma pausa, martelo
nas mãos.
— Gostoso, né?
— Caro – respondeu ele. – Não vou pagar por isso.
— Ela pagou.
Ele não parava de massagear o carpete com os dedões do pé. Limpou a
garganta.
— Para todos os efeitos, isso viola os termos de hospitalidade que você
assinou. Quer dizer, acho que viola. Acho que é depredação de patrimônio
alheio.
Claire fez um ruído de ofensa.
— Podemos resolver isso na minha saída? – perguntei. – Depois que você vir
o resultado?
— Você planeja fazer mais mudanças?
— É preciso ver o todo – disse Claire, se levantando. – Estamos trabalhando
com as seguintes palavras-chave: Brunelleschi, Borgonha, caquis, dálias,
cumaru.
Eu não teria revelado as palavras-chave.
— Cumaru. Agora tudo é cumaru… o que é mesmo?
— Tem cheiro de mel e cereja – respondeu ela.
— Ah – disse ele, assentindo sem pressa. – Minha mãe tinha uma bola de
porcelana, não chegava a ser uma bola, parecia um ovo, cheio de buraquinhos.
Tinha esse cheiro.
— Um pomander – respondeu Claire.
— Acho que é – murmurou ele.
— É vitoriano.
— Pode crer.
— Precisamos voltar ao trabalho.
— Também vou nessa – disse ele, escafedendo-se. Claire fechou a porta em
silêncio. Tinha um poder admirável, provavelmente a queridinha do papai.
No fim do dia, tirou aquele colchão deplorável da cama e nós o colocamos
na mala de seu carro.
— Já volto com o colchão novo. É muito bom, espuma viscoelástica.
Ela atentou para minha reação para ver se eu sabia o que era. Por alguma
razão, achava que conhecia mais palavras do que eu.
— Eu sei o que é espuma viscoelástica.
— Beleza. Então sabe que demora uma semana para o gás todo sair.
Eu não sabia disso, do prazo. Comentei que era muito sensível a cheiros.
— Imaginei – disse ela. – Esse que eu vou trazer o gás já saiu; daqui a uma
semana troco pelo seu. Está pegando um ar no meu quintal neste exato
momento.
Mas que plano complicado.
— Então esse que você vai trazer… por que não ficamos com ele?
— Ué, você vai querer o colchão novinho, pagou por ele.
— Tá bom. Obrigada.
E tudo ainda parecia complexo.
Ela foi embora com o colchão velho e, menos de vinte minutos depois,
voltou com o de espuma viscoelástica. Era bem mais pesado. Com dificuldade,
colocamos o colchão em cima da cama e a refizemos com os lençóis grossos
que havia trazido pela manhã.
— Experimenta. Você vai gostar.
Sentei com cuidado. Muito bom; reagi com um sorriso. Ela retribuiu.
— É o colchão da minha cama.
Levantei de pronto.
— Puxa… achei que você não ia se incomodar – disse ela –, porque o do
hotel estava imundo.
Olhei para a cama.
— Onde você e o…
O nome Davey já me era muito familiar, como se eu o conhecesse de fato.
— … o seu marido vão dormir?
— A gente não tem frescura – disse ela. – Temos colchões infláveis… vai ser
divertido! Tipo acampar.
Claire fazia aquela coisa de bater enquanto abria a porta com a chave que dei a
ela, então eu sempre saía correndo para me recompor, enxugar o rosto, vestir
uma camiseta enquanto ela dizia Oi, oi, ooooi! Hoje ela desembestou para
dentro do banheiro, onde deixou um vidro de sabonete líquido de cumaru e
uma loção feita por freiras italianas. Substituiu as toalhas do hotel por outras
novas e brancas como a neve que trouxe numa bolsa gigante de lona.
— Toca só – disse ela, apontando para as toalhas. Encostei com educação e
depois as esfreguei com as duas mãos e encostei o rosto. A melhor toalha que
já vi. Tão encorpada e absorvente que fazia todas as outras toalhas parecerem
trapos. Havia uma toalha enorme de banho, uma toalha de mão, uma
toalhinha e uma outra que Claire descreveu como “semitoalha” – para
situações mais drásticas, como a boca suja de pasta de dente ou cabelo
encharcado de condicionador.
— A “semitoalha” preserva as outras toalhas, que devem ser usadas no rosto
e no corpo – disse ela, deixando-a ao lado da pia.
— Você inventou a “semitoalha”? – sussurrei.
— Você pode largar essas toalhas em qualquer lugar que a Helen vai
substitui-las por um jogo novo a cada dia, é de praxe.
Notei que Claire ignorava a maioria das coisas que eu dizia e senti que estava
conversando com a minha mãe, mas que agora ela tinha deficiência auditiva.
Enquanto Claire e um encanador substituíam a banheirinha por uma
banheira diferente e melhor com um chuveiro “chuvisco”, fui para o carro e
fiz uns telefonemas. Pedi que minha agente, Liza, cancelasse a reserva no
Carlyle, a reunião com a designer de sapatos feminista e que tentasse
conseguir o reembolso dos ingressos de um espetáculo off-Broadway, muito
embora, enfatizei, isso fosse menos importante que o cancelamento da reserva
no Carlyle, que, sozinho, havia comido mais da metade do meu rico
dinheirinho.
Liza não perguntou o motivo. Não era o tipo de pessoa para quem eu tinha
que dar satisfações ou ficar envergonhada, afinal ela não tinha qualquer
interesse pelo que eu fazia; ela era só uma colega da época do colégio.
Durante uma crise financeira difícil, pós-divórcio, ela procurou a turma inteira
e, embora nunca tivéssemos conversado na escola, disse a ela que poderia me
ajudar por alguns meses até se restabelecer. No decorrer desses meses, finalizei
o trabalho que me daria reconhecimento, e Liza, creio eu, cuidou das coisas
direitinho. De todo modo, deu certo, e agora que ela era ponte entre todos os
contatos, nunca me pareceu justo pedir que ela saísse da jogada, sobretudo
depois que foi diagnosticada com fi bromialgia. Harris adora conjecturar a
quantidade de dinheiro que eu teria ganhado ao longo desses anos se eu
tivesse uma agente de verdade, e não Liza.
Não consigo explicar como as circunstâncias do meu sucesso se baseiam
num acordo de carregar essa pessoa nas costas pelo resto da minha vida.
Sempre tem que haver um fardo para equilibrar as coisas. (Indispensável dizer
que um homem jamais se atolaria nessa penitência financeira mirabolante). E
Liza é amada por todo mundo. Em todos os lugares por onde passo, mundo
afora, as pessoas perguntam Como está Liza? e ficam um pouco desapontadas
por eu não ser tão sociável quanto ela. Depois de cada evento, quando é a hora
de ir embora, acabo respondendo às perguntas sobre Liza e de certa forma
elaborando nossa relação, insinuando que éramos namoradas no colégio e
que, mesmo depois do meu casamento, seguimos firmes e fortes mas pagando
os pecados de nossa atração fatal, sempre presas uma à outra. Não é verdade.
Mas sempre tem uma machona ou uma pessoa não binária no corpo de
anfitriões das faculdades que pestaneja quando conto essa história, dá um
golinho em sua bebida sem álcool, olha para os sapatos e, quando volta a me
encarar, retribuo com um sim picante. Mas isso para por aí. Preciso manter
minha lesbianidade viva e em segurança, como uma pessoa que enterra
trouxinhas de dinheiro ao redor do mundo – não sei de nada, mas sei de tudo.
— Onde você tá agora? – perguntou Liza antes de desligar.
— Quase em Pittsburgh.
— Ah, então amanhã chega em Nova York.
— Amanhã, Nova York – confirmei, observando uma mãe usar lencinhos
para limpar alguma coisa no banco de trás do carro. Vômito de criança,
provavelmente.
Mandei uma mensagem cancelando todos os compromissos que tinha com
amigos explicando que havia tido uma revelação e que ia aproveitar meu
tempo no Carlyle para viver um retiro de escrita, mas que entraria em contato
na próxima vez que estivesse na cidade. Um amigo respondeu Agarra essa
onça/ mal posso esperar para conhecer o mundo que você está invocando!
Deixei o autodesgosto passar por mim como uma nuvem. Tinha só uma
amiga, a Mary, de quem eu era próxima demais para falar esse tipo de coisa,
então apenas disse que estava passando por uma crisezinha e que não tinha
cabeça para fazer mais nada.
— Crise… de meia-idade?
Não, eu ri. Embora as crises de meia-idade fossem malfaladas, talvez cada
uma seja única e profunda, e sua má-fama seja culpa de uns idiotas em
conversíveis vermelhos. Me imaginei cumprimentando um cara desses com
solenidade: Percebi que você chegou na fase dos grandes questionamentos.
Que Deus te ajude, guerreiro.
— Você está tendo um caso?
— Não, não, nada a ver.
— É a menopausa?
Ri de novo. Mary era mais velha que eu e tinha obsessão com as ondas de
calor. Ela aproveitou a oportunidade para me contar a história do dia em que
enfiou a cabeça dentro do congelador no meio de uma festa, e eu ri mais uma
vez. Eu gostava de viver alheia a esses acontecimentos. Minha ignorância me
permitia ser a irmãzinha mais nova, praticamente uma criança.
— Aconteça o que acontecer, saímos pra almoçar, tá?
— Almoçamos e foi delicioso e adorei ver você – respondeu Mary.
Dei uma choradinha. Talvez eu devesse ter ido à Nova York.
— Te amo.
— Também te amo. Boa sorte, meu bem.
No terceiro e último dia, Claire me pediu para passar a tarde inteira fora do
quarto enquanto ela fazia o “CQ”.
— Controle de qualidade – explicou.
— Eu saquei – respondi.
Fui dar uma volta e liguei para todos os amigos que me vieram à mente.
Foram conversas arredias, porque eu não podia falar quase nada sobre a
situação, então só perguntava da vida deles. Algumas pessoas são assim,
sempre prontas para fazer a próxima pergunta, evitando que sejam
questionadas. Que vida triste, mas talvez vivam bem assim. Fui ao Grocery
Outlet e saí com comida suficiente para aquele dia. Eu não precisava evitar as
compras de comida do dia seguinte porque eu não tinha mais nada para fazer.
Enquanto caminhava, percebi que um carro andava lentamente ao meu lado.
Era o Davey. Ele não pareceu surpreso ao me avistar com uma sacola de
compras no quadril.
— Mudança de planos? – disse ele, abaixando o vidro.
— É.
— Aqui é bom demais.
Uma piada. Nós rimos. Coloquei a sacola de compras no outro lado do
quadril e olhei na direção do Excelsior.
— Não vou tomar seu tempo – disse ele –, só queria dar um alô.
Continuei a caminhada e ele dirigia lentamente ao meu lado. Eu não
conseguia lembrar por que estava com tanta pressa. Quase tive vontade de
correr.
— Se você ainda estiver aqui no Memorial Day, pode ver o desfile. Nada de
mais mas vai que você gosta dessas coisas de cidade pequena. Ou eu posso
fazer um passeio com você, mostrar a cidade.
— Não sei se ainda estarei aqui – respondi, ignorando o convite para o
passeio.
— Não? – perguntou ele, e encolhi os ombros como uma órfã, uma
andarilha. Tinha alguma coisa estranha nessa conversa e eu não conseguia
definir o que era. Ele acenou e foi embora e eu continuei andando. Trotando.
Não falamos sobre a reforma de sua esposa. A coisa estranha era essa.
Nenhum de nós tocou no assunto.
Claire me fez entregar a sacola de compras para ela e esperar do lado de
fora. O quarto estava pronto e, embora eu tivesse dormido ali todas as noites e
acompanhado toda a reforma, ela queria fazer um tour completo comigo ao
final, como se tudo fosse novidade para mim. Acho que aprendeu isso em
programas de TV sobre reformas de casa, porque sempre terminam com uma
revelação espetacular. Ela me fez entrar no carro e sair em seguida, como se
tivesse acabado de estacionar; fez um vídeo da minha caminhada em direção
àquele hotel decrépito de estuque em amarelo-claro. Me embananei com as
chaves e ela deu um passo para trás, dando um zoom no meu rosto que estava
prestes-a-se-transformar-em-júbilo. Abri a porta, mas nem precisei fingir nada.
A trilha sonora era Chopin e, com todos aqueles toques finais – gravuras de
Audubon emolduradas, mesa com tampo de mármore –, o quarto de hotel era
de uma opulência impressionante. Não tão extrema como a do Le Bristol, mas
fiquei emocionada. As cortinas transparentes ainda permitiam a entrada da luz
como as antigas de poliéster, mas eram ornamentadas em tecidos floridos com
peônias rosadas e dálias cor de damasco que se correspondiam com as mesmas
dálias e peônias do papel de parede, entre os pássaros. Como pode? Haviam
sido feitos pela mesma empresa? Encostei a mão na borla dourada e roliça que
pendia na extremidade de uma das cordas.
— Puxa – disse Claire.
Puxei, e as cortinas se fecharam filtrando a luz do dia com um dourado
roseado sobrenatural. Claire andava na ponta dos pés, acendendo
luminariazinhas e arandelas de latão, mas era a luz rosada da cortina que dava
a seu rosto um brilho angelical. Ela demonstrou como eu poderia conectar
meu telefone a um sistema de som que era “um nível abaixo do Sonos”. No
armário, ao lado do cofre, um forninho preto e elegante.
— A parte de cima do forninho esquenta muito, hein?
Eu poderia passar a vida inteira olhando para ele, tão iluminado, mas ela não
parava quieta. Havia duas cadeiras em veludo rosa que eu nunca tinha visto
igual, intimamente alinhadas uma de frente para a outra. Sentei em uma delas
e passei os dedos nos entalhes da madeira escura.
— São cadeiras muito especiais – disse Claire, alisando o veludo. – Eu guardo
essas cadeiras há muito tempo, dentro do plástico, na garagem lá de casa.
— Ah, mas devia guardar pra sempre! – respondi, me levantando.
— De jeito nenhum, elas não combinam com nosso estilo… estava
guardando para o cliente certo.
Nosso. O estilo de Claire e Davey. Imaginei as prateleiras da IKEA e aquela
bagulhada divertida dos lares juvenis. Não que eu já tenha vivido assim, minha
bagulhada sempre foi muito elaborada, mas entendo a repulsa a duas cadeiras
impassíveis atulhando a sala feito um pai e uma mãe perscrutadores.
— São conhecidas como “cadeiras bisavós”.
— Uma bisavó na cadeira seria tão bom.
— Não, bisavós mesmo…
— Eu sei. Foi uma piada.
Claire sorriu, quase um sorriso, preservando o verdadeiro para as coisas que
de fato achava engraçadas. Nunca chegamos a nos dar bem, mas pouco
importava. Peguei o telefone e ela me passou seu Pix e fiz uma transferência
de vinte mil dólares antes de descobrirmos que o limite é de 4.999,99; então,
fui atrás da minha bolsa e desenterrei meu talão de cheques. A folha de cima
do canhoto dizia que eu tinha feito uma massagem há dois anos. Em que
momento passaria um novo cheque? E o que sentiria quando Claire saísse pela
porta e eu me visse de repente sozinha, não em Nova York com tantas
possibilidades, mas em Monróvia, onde todas as ruas e lojas já me eram
familiares? Eu já sentia a depressão se aproximando, o tsunami se armando.
Claire foi embora e eu desabei no chão, e então ela voltou – tinha se esquecido
de devolver a chave do quarto – e tentei rapidamente me levantar, mas nem
valeria a pena o esforço. Desabei mais uma vez e ela se despediu mais uma
vez, agora temerosa, afinal eu era doida, o que não fazia a menor diferença
para ela, que já tinha sido paga.
CAPÍTULO 7
Naquela noite, sozinha no 321, olhei para Davey como se eu fosse recém-
casada, nervosa, insegura, depois de anos sendo mentalmente abusada por
tantos padrastos e CEOs e médicos, eu ainda conseguiria bater couro com esse
rapaz, seu peito, seus mamilos, ou eles eram doces e sagrados demais?
Não eram. Deitei na cama e me masturbei enquanto imaginava nós dois
tirando a roupa e ele enfiando o pau na minha buceta, que ficou tão molhada
agora que gozei pela primeira vez, e depois ele me fodia por trás, e agora
metia no meu cu (Claire nunca deixa), o que me fez gozar de novo, e aí estava
chupando seu pau e gozei de novo, e ele lambia minha buceta como se
estivesse morrendo de vontade e eu gozei de novo, pela quarta e última vez, e
caí exausta em seus braços imaginários, nós dois suados e grudentos e
esgotados. O tipo de sexo presente, totalmente animal que Jordi fazia. E não
acabou por aí – tão logo senti a necessidade de recomeçar, me esfreguei e me
contorci no mesmo colchão onde ele havia ejaculado tantas vezes. Foi uma
foda insondável, insuportável como uma coceira impossível de coçar. Eu já
tinha passado por isso, de ficar apaixonada e cair na fantasia, mas dessa vez
tinha uma certa especificidade, era diferente de todas as coisas anteriores e
havia dois motivos para tal.
1. Foi surpreendente. Fui pega no pulo, o corpo dele se aproximou do meu e
a partir daí senti que não era a autora de minhas próprias fantasias. Parecia
que estava se apossando de mim e isso deu a esse romance interno um
senso de realidade muito pungente porque
2. (e isso foi como receber uma porrada na cabeça no meio da noite) Eu era
velha demais para ele.
Era minha primeira vez sendo velha demais. Nem sempre eu tive o que quis
– os homens não estavam dispostos a deixar suas esposas por minha causa ou
fazer algo além de flertar – e mesmo nesses casos humilhantes eu não
questionei meu direito ao desejo. De uma hora para outra, minha luxúria
havia se tornado rude, inadequada. Eu era poderosa e interessante, talvez
engraçada e única; levei-o a sério de um jeito que não estava acostumado –
mas ele não estava se masturbando para mim. Poucos anos atrás, aos quarenta
ou quarenta e dois, eu seria uma candidata, agora era tarde demais. E ele era
só o primeiro. Daqui em diante, essa seria a norma. E não só com homens
mais jovens que eu, com todos os homens. Nunca mais eu teria o que queria –
no quesito homem.
Antes da minha avó Esther se suicidar, ela esvaziou todos os frascos de
comprimido na janela, bem em cima da Park Avenue. O porteiro depois
descreveu o episódio para nós como “chuva”. Sempre tínhamos que voltar ao
prédio porque a tia Ruthie, filha dela, herdou o apartamento, então foram
muitas as oportunidades de repassar detalhes com o porteiro. Sra. Migdal lhe
dera uma boa gorjeta naquele dia, segundo ele. Aí, depois de jogar os
comprimidos, ela se enfiou dentro de um saco de lixo, um saco de lixo preto,
para que não deixasse uma grande bagunça para a pessoa que tivesse que
limpar. Eu não sei como ela conseguiu se jogar da janela estando dentro do
saco de lixo, mas isso me lembra do jeito que as garotas dão, por exemplo,
para tirar a camiseta ou trocar de roupa por baixo do casaco sem cometer
indiscrições. Ela também conseguiu.
Vinte e três anos depois, Ruthie pulou da mesma janela. Ela persistiu mais
tempo que sua mãe, mas não tanto. Isso aconteceu faz sete ou oito anos, foi
antes de me ocorrer que eu seria a próxima nessa linhagem matriarcal.
Levantei e lavei o rosto, o ladrilho estrelado e frio sob meus pés. Quão louca
e vaidosa uma pessoa tinha que ser para se matar depois de descobrir que sua
grande motivação, o que realmente dava ânimo de viver, não existia mais?
Talvez não seja tanta loucura. Se ao nascer as pessoas fossem arremessadas
pelos ares, envelheceríamos conforme a subida. No auge da ascensão,
estaríamos na meia-idade e aí cairíamos para o resto de nossos dias, ao longo
de toda a segunda metade da vida. A queda podia ter a mesma duração, mas
era bem diferente da ascensão. Durante todo o tempo de subida, ninguém
poderia imaginar o que aconteceria a seguir em sua jornada particular e única;
não haveria nada ao virar uma esquina. Ao passo que a queda sempre ocorre
da mesma forma para todas as pessoas.
Caminhei pelo carpete novo me lembrando do dia em que o pai de oitenta
anos do meu amigo havia piscado para mim enquanto eu dançava. Não foi
uma anomalia engraçada, era o pão nosso de cada dia; no futuro, eu talvez me
sentisse agradecida quando isso acontecesse, mesmo que o homem tivesse
noventa, cem, cento e vinte anos. Um homem de qualquer idade. Homens e
mulheres trans, pessoas com menos marcações de gênero eram outra história
(sempre), mas se minha fábula heterossexual tinha alguma importância (e de
repente parecia que sim), então essa conclusão foi muito abrupta. Eu não previ
que isso aconteceria e por isso não norteei minha vida nesses parâmetros. Eu
não me joguei para o mundo e fiz todas as coisas certas a se fazer enquanto
ainda era possível. Fiquei sentada no meu ninho como uma galinha
complacente, certa de que quando quisesse voltar a pavonear por aí tudo seria
exatamente como antes.
Mas, para esclarecer os fatos, eu nunca tinha, em qualquer idade, desejado
um corpo masculino em específico do jeito que desejava agora. Meus
namorados e paixonites sempre tinham uma certa beleza, mas minha atração
se concentrava em seus rostos, onde pairavam seus talentos e forças. Desejar
sexualmente toda a extensão corporal de uma pessoa, da cabeça aos pés, era o
que enraizados no corpo faziam, como Jordi e todos os homens. Agora, pela
primeira vez, entendi todo o frisson em torno disso. O modo como a beleza
pode assaltar seu coração, mobilizar você, deixar você de joelhos e aí, com
alguma perversão, você quer foder aquela coisa pura e linda. O sexo era um
jeito de conseguir isso, não só de olhar, mas de acompanhar isso. De repente,
entendi toda a arte clássica. Aquele sem-número de nus esculpidos, Vênus em
sua concha, Davi de Michelângelo. Entendi também as roupas sensuais. Eu
usava essas roupas sem entender o porquê, via o estilo sensual como um entre
tantos, sem perceber que era o único. É recomendável que, se possível, a
pessoa sempre esteja saindo de sua concha. Alheia a esse dado, sem realmente
entender sua importância, eu sempre tinha sido um corpo para outras pessoas,
nunca um corpo para mim mesma. Eu não havia coadunado com o prazer
furioso de desejar um corpo real e específico sobre a Terra.
Desejar um corpo é uma coisa séria. Quando alguém diz que talvez nunca se
recuperasse, é verdade. Esse tipo de desejo abre uma ferida que a pessoa
carregará pelo resto da vida. Mas ainda era melhor do que não ter conhecido.
Ou esperava eu que fosse.
Essa percepção, afinal, foi um sonho ruim, um pesadelo. A vida não ficou
melhor depois disso. Bastava que tivesse se distraído e pronto. A chance
aconteceu e você perdeu o bonde. Fiquei pensando se levaria meu trabalho
adiante e aí me dei conta de que meu trabalho era tudo que me restava. Mas
eu havia entendido tudo errado – achava que estava trabalhando para ganhar
um prêmio, mas o prêmio estava bem na minha frente, eu já tinha ganhado, e
o trabalho sempre era uma coisa que eu podia deixar para depois, afinal eu
não era mais jovem o suficiente para ser bonita e não poderia mais ser
desejada por alguém bonito.
Na tarde do dia seguinte, pouco antes das quatro, caminhei até a Hertz
tremendo como uma pessoa a caminho de sua execução (que, apesar de
aterrorizada, queria mais que tudo ser executada). Lá estava ele atrás do
balcão; sorriu e fez um aceno de cabeça – ele era real e queria passear comigo
e isso bastava. E mesmo que não bastasse, bem, seria assim pelo resto da
minha vida. Eu estava sexualmente atormentada e de luto, mas (e me agarrei a
isso como a uma boia) no fundo eu não estava nem aí para ele. Não queria
dividir minha vida com o rapaz que trabalhava na Hertz de Monróvia.
— Eu tenho uma teoria de que estamos na Arcádia – disse ele naquela tarde.
– É na fronteira, mas chamam de Arcádia para evitar invasões, sabe?
Saímos e tentamos encontrar a linha que ligava Monróvia a Arcádia.
Concluímos que era uma linha invisível pairando num local específico –
tracejamos com as mãos e começamos a senti-la com intensidade. Aqui, veja
enquanto toco a linha, ele disse. Ele queria que eu olhasse com muita atenção
e visse se notava algo se encostando nele brevemente enquanto passava por
ela. Olhei com todas as minhas forças e ele disse, Você acabou de passar por
ela, e olhou meu corpo para ver se o tecido do meu suéter fino estava se
agarrando a mim. Enquanto ele olhava fixamente para o meu peito em plena
luz do dia, meus olhos se encheram de lágrimas, afinal esse tipo de brincadeira
só pode ser feita com uma criança ou com um corpo neutro, como o de uma
mulher idosa.
Naquele dia, caminhamos a maior parte do tempo em silêncio. Ele estava
entediado? Já tínhamos conversado sobre todos os assuntos possíveis? Seria
esta a última caminhada? Ele me levou até uma cerca de madeira e se inclinou
sobre ela, inspirando o ar. Dei uma cheiradinha na cerca. Um aroma quente e
doce, quase vivo.
— Eu adoro essa cerca – disse ele.
Tentamos identificar a natureza daquele cheiro, algo a ver com a infância,
com contentamento. Ah. Boceta. A cerca tinha cheiro de boceta. Fiquei
corada, esperava que ele não pensasse a mesma coisa. Será que havia trazido
Claire aqui? A reforma ainda não havia sido mencionada, mas toda hora ele
tocava no nome dela, então comecei a achar que ele ainda não tinha ligado os
pontos. Devia ser um desses maridos que não prestam muita atenção no que a
esposa diz.
Desfiz as malas rapidamente, troquei de roupa e corri para a Hertz. Ele tinha
acabado de sair, disse Glenn-Allen. Eu não tinha o telefone dele. Tinha o
telefone da Claire, mas era melhor não. Saí da loja atordoada.
Alguém gritou meu nome.
Era ele; estava encostado no carro. Corri. Tive que correr, porque andar
parecia muito lento.
— Vamos nessa?
— Adoraria – disse ele, levantando o telefone para se desculpar. – Claire
precisa de mim em casa.
Acenei com a cabeça. Dessa vez, não faria as malas com cuidado. Ia jogar
tudo lá dentro. O resto de minha vida seria de trabalho árduo e, em seguida,
eu morreria. É o que acontece com a maioria das pessoas. Nada de mais.
— Ah, mas se você estiver livre mais tarde, podemos nos encontrar.
Atrás dele, nos fundos do estacionamento, uma mulher travava uma luta
com seu filho.
— À noitinha?
— À noitinha – disse ele.
A criança se recusava a andar e a mulher ordenava que andasse, agora. A
criança sentou no chão. O que a mãe ia fazer? Permanecer firme? Ou ceder,
estragando a criança para sempre? Não era problema meu. Virei o corpo para
não precisar assistir à resolução.
— Você conhece o Buccaneer? – perguntou ele.
— Já vi esse nome. É um bar.
— Isso. É um bar.
Ele caminhou de costas para o carro sem tirar os olhos de mim. E abriu a
porta com a mão pelas costas.
— Oito?
Pela janela, ele pôs um chapéu invisível antes de ir embora. A criança estava
deitada de costas na calçada. A mãe não sabia o que fazer. Estava a um passo
de perder as estribeiras. Dei as costas e fui embora. Que roupa eu ia usar? Ou
será que essa mesma? KIERAN, berrou ela, É A SUA ÚLTIMA CHANCE.
CAPÍTULO 8
Caí no chão de joelhos e apertei a testa contra o carpete. Comi meia torrada.
Tentei demorar para responder. Depois de vinte minutos, escrevi:
Mas você com certeza dormiu mais do que eu.
Depois da nossa lua de mel pós UTIN – ali por volta do 31 de maio –, vi Harris
se tornar um pai bobo e afetuoso. Não dividíamos mais a sétima esfera do
inferno, então ele não tinha culpa por ter recuperado os ânimos; era melhor
para todo mundo que o tivesse recuperado. Tentei fazer o mesmo.
O primeiro flashback aconteceu num banheiro público de Griffith Park. Eu
tinha acabado de fazer uma manobra esquisita para fazer xixi com o bebê
amarrado no meu colo e sacudia as mãos debaixo da torneira para tentar
acionar o sensor de movimento. Depois de um tempo, reparei que havia um
pedal para abrir a água. Eu já tinha visto isso em algum lugar, não?, me
perguntei, mas eu já estava dentro do flashback – antes da queda, sempre há
um momento mais neutro de desorientação. No hospital. E lá estava eu com
Harris, de camisola branca, apertando o pedal com o pé para lavar as mãos,
limpá-las, mas apressada, com muita pressa, não podia esperar mais um
segundo para ver meu bebezinho – era horrível que elu estivesse tão só, sob o
plástico da incubadora. Pior que isso: o temor que sentia pelo pior que poderia
ter acontecido naquela manhã. As coisas ficaram ainda piores enquanto
almoçávamos? Voltariam à zona de perigo? Nunca deveríamos ter saído de lá.
Andem logo!
Tudo isso aconteceu na duração de no máximo dois segundos. Voltei ao
banheiro, suava e chorava, Sam aninhade em meus braços. Encontrei meus
olhos no espelho. Opa. Ainda não tinha acabado. O passado sempre pode
retornar, da mesma forma, a qualquer momento, libertado por uma
combinação aleatória de sons e movimentos. Tudo ainda estava em mim, até o
cheiro do sabonete antisséptico. Olhei para Sam. Parecia despreocupade,
roendo um elefantinho de borracha e me olhando assoar o nariz.
— Senti tanta coisa que chorei. Cansei de chorar, mas ainda sinto tristeza.
Tudo bem se sentir triste.
Era o que podia ser feito naquela hora. Fomos para casa.
Pelo resto do dia, fiquei tão exausta que mal conseguia me mexer, como se
toda minha energia tivesse se esgotado em um segundo. Acabei contando do
flashback para Harris e foi como derramar um copo d’água no ralo, nenhum
alento. A culpa não foi dele – imagina todas as pessoas que já tiveram que
saudar um viajante do tempo em sua volta para casa. Não tem como fazer as
perguntas certas estando tão crente no momento presente. Qual era o cheiro dos
cavalos? Essa seria uma boa pergunta.
— O que você vai fazer hoje à noite? – perguntou Harris.
— Vou jantar com a Mary.
A resposta saiu pronta, sem premeditação. E com essa mentira, meu coração
disparou. Quase quatro da tarde.
*
Cheguei à Hertz pontualmente e Davey se comportou como nos dias
anteriores. O rosto impassível. Enquanto caminhávamos, esperei pelo sinal
para continuarmos de onde havíamos parado, mas ele parecia aéreo.
— Quer tomar um smoothie? – perguntou, animado.
Eu não disse nada e ele complementou com “Eu quero”, nos levando para
um lugar chamado Nekter. Com o smoothie de manga nas mãos, começou a
assobiar entre dentes enquanto se dirigia para o banheiro. Eu não sabia se
devia segui-lo. Continuou assobiando ao passar pelo banheiro, passou pela
despensa e saiu pela porta dos fundos. Corri atrás dele pela viela – que ele
atravessou em direção a um prédio baixo de estuque amarelo-claro. Não sendo
da cidade, levei um tempo para saber onde estava. Era o Excelsior, os fundos
do hotel. Era a minha janela, alta demais para escalar. Mas havia uma
espreguiçadeira de lona rosa e desbotada no outro extremo da viela – ele
caminhava para pegá-la. Corri para o outro lado do prédio e entrei no meu
quarto. Abri as cortinas e a janela. Já em cima da espreguiçadeira, ele se
ergueu com facilidade e saltou com uma das mãos no parapeito. Ele fechou a
janela e a cortina, pôs o smoothie em cima da mesinha de cabeceira e me
puxou. Se estivéssemos num filme, ele me beijaria agora; mas ele me envolveu
em seus braços e ficou imóvel, como se corrigisse algo que saíra errado ao
longo do dia. Ficamos ali, respirando fundo, nos recuperando de todos os
segundos em que não estivemos juntos.
— Não posso mais entrar pela frente – disse ele, se afastando.
— Você saiu daqui muito tarde ontem, acho que não vai dar nada.
Eu só queria que nos abraçássemos de novo. Ele examinou meu rosto.
— Me diz… qual é o acordo do seu casamento?
— Sou casada – respondei. – O acordo é esse.
— Mas parece que seu acordo é outro, tendo em vista que…
Ele acenou vagamente para mim. Olhei para meu vestido.
— Tendo em vista?
— Tendo em vista isso aqui. Eu, aqui. Mas tendo em vista, sei lá, seu
trabalho?
Meu trabalho era repleto de um sem-número de casais improváveis, sexo
proibido, surrealismo e lesbianidade livre. Ao que parece, ele levou tudo isso
ao pé da letra. Tentei me imaginar do ponto de vista dele, mulher casada e
mãe, com a vida fora dos trilhos. Literalmente colapsando sobre trilhos,
pernas para o alto.
— Sou tão casada quanto você – respondi. – Mesmo barco.
— Fico até aliviado. Você se sente muito culpada?
Culpada? Minha cabeça até boiou ao tentar contar a quantidade de vezes em
que me senti culpada, segundo a segundo, todos os dias da minha vida. Tanto
que, agora, parecia que eu tinha uma justificativa. Eu me devia isso.
— A culpa me parece uma perda de tempo – respondi. – Prefiro me sentir
culpada quando estou sozinha.
Ele assentiu, parecia ter entendido a dica, e começou a sincronizar seu
telefone com o aparelho de som. Um R&B suave ecoava da caixa de som. Ele se
deitou no carpete e indicou que eu me sentasse perto dele; deitei de bruços.
— Fiquei pensando se a gente…
E demonstrou o que queria dizer, virando de lado e estendendo a mão para
mim. Me aproximei dele. Ele me abraçou, ficamos deitados como um casal
em uma cama e a música dizia Sabe, quer saber, tenho pensado muito em você.
Quando seu pau ficou muito duro, nos afastamos. Nossas mãos se
encontraram; puxei um de seus dedos para minha boca e ele o enfiou.
Durante minha vida inteira, os homens enfiaram seus dedões na minha boca
e, embora eu autorizasse, sempre pensava Tá maluco? O que vou botar na boca em
seguida? Seu sapato? Não é melhor eu lamber a sarjeta? Mas dessa vez foi
totalmente diferente. Eu queria que o dedo estivesse mais sujo. Eu queria
comer um dia inteiro da vida dele; tudo que havia feito no decorrer desse dia.
Ele gemeu e tirou o dedo, mas eu não aceitei – busquei seu polegar com os
lábios, segurei, agarrei e chupei como um bebê, mas ele tirou esse dedo
também.
— Melhores segundos da minha vida – sussurrou ele, mas se sentou, se
forçando a se afastar de mim. – Quando você vai embora?
— Daqui a uma semana.
Para mim, pareceu muito tempo. Olha quantas coisas aconteceram em
apenas vinte e quatro horas.
— Você podia ter se aproximado antes – disse ele. – Você demorou uma
semana pra chegar em mim.
Baixei os olhos. Eu não podia ter me adiantado, afinal estava reformando
esse quarto com a esposa dele. Mas não disse nada. O R&B passou a hip-hop.
De repente, ele se levantou e aumentou o volume. Ele ia começar a dançar?
Me levantei discretamente, fui ao banheiro e fechei a porta. Passei protetor
labial nos lábios e na bochecha, arrumei o cabelo. Ele estava dançando lá fora.
Achei esquisito. O que eu ia fazer… ficar ali assistindo e depois bater palmas
no final? Ou só fingir que estava tudo normal. Era a coisa a certa a se fazer.
Saí planando e sorrindo discretamente em direção ao frigobar. Pela visão
periférica, observei sua dança enquanto preparava uns petiscos com
torradinha, abacate e azeitona. Ele era bom, mas não era fenomenal. Às vezes,
no calçadão de Venice, aparecia uma dançarina de deixar o queixo caído e
cifrões passavam a girar nos olhos dos passantes. Cada pessoa sentia como se
ela fosse uma descoberta sua e de vez em quando a dançarina aparecia num
programa de entrevistas à noite. Mesmo de canto de olho, saquei que Davey
não estava no mesmo nível. Até achei bom. Se fosse talentoso de fato eu teria
me apaixonado por ele; sentiria que havia recebido uma graça divina.
Ele abaixou o volume e comemos os petiscos que eu tinha preparado. Por
incrível que pareça, ficaram uma delícia e tive que fazer de tudo para
convencê-lo de que eu não era uma boa cozinheira. Listamos todas as coisas
que gostávamos de comer. Ele não estava nem aí para a saúde. Olhou o
Instagram pela milésima vez e eu dei uma bronca nele.
— Você tá aqui. Eu te sigo – respondeu, se defendendo.
— Mas eu uso muito pouco.
— Você não é viciada em internet?
— Leio muita notícia. – Me senti velha ao dizer isso. – E frequento fóruns de
mensagens.
— Te peguei! Cada um com seus problemas!
Levantei as mãos, como quem diz Eu confesso, e torci para que ele não me
perguntasse para que servia um fórum de mensagens.
— Pra que serve um fórum de mensagens?
— É um fórum de sapatos.
Era um fórum de mães. Mães que tinham um só problema em comum. Mas
eu não queria que ele me visse como uma mãe que tem um problema.
— Sapato?
— Um salto alto raríssimo.
Ele apertou meu pé sobre a meia branca e ficamos em silêncio.
*
Apesar do comentário da enfermeira, vasculhei a internet atrás de
informações sobre a hemorragia feto-materna, buscava alguém que tivesse
passado por isso. Aprendi a soletrar cada uma das três palavras, não só a mais
fácil, materna. Ao contrário de outros tópicos, que pareciam não ter fim, havia
um número muito limitado de sites que continham essas três palavras juntas.
Alguns artigos científicos e a matéria de um tabloide sobre um “bebê
fantasma” que havia sobrevivido, graças a Jesus. A mãe do bebê já estava
grávida novamente, seguiu a vida e estava bem. Mas não era isso que eu estava
procurando. Eu queria encontrar uma mãe que tivesse flashbacks que a
deixavam sem chão em plena luz do dia.
Meu erro (como sempre!) é trabalhar quando o contrário é o recomendado;
demorei dois anos para enfim digitar “HFM”. E achei: babytalk.com/hfm. Meu
coração disparava à medida que lia a página. A enfermeira não estava errada:
todas eram mães de natimortos. Algumas queriam saber se voltaria a
acontecer caso engravidassem de novo. A maioria comentava só para dizer
PQP. PQP, como isso foi acontecer? E como a ciência não sabia responder, não
havia respostas – só o eco de outras mães que também postaram PQP em outra
ocasião, muitas num outro ano. O diálogo não estava atualizado, só mulheres
solitárias acendendo velas no mesmo altar. Um dos maridos falava em nome
de sua esposa, que estava chumbada demais até para conseguir digitar HFM ou
PQP. Ele queria uma solução, queria respostas. Não compreendia que nós
mulheres nunca esperamos respostas nem que as coisas tenham solução. O
máximo que esperamos é companheirismo. Mas é óbvio que não seria
apropriado eu postar esse tipo de coisa. Minha história era tão diferente que
calhou de ser o oposto – um milagre – e não havia nenhum debate para mães
de natimortos sobreviventes. Então, toda vez que eu era açoitada por um
flashback, eu voltava ao fórum e lia as conversas. Parecia bizarro espiar
anonimamente, mas eu não tinha outro lugar para ir e era muito, muito
melhor do que nada.
Contei para Jordi tudo que tinha acontecido e ela disse ter suspeitado que ele
era um bom dançarino.
— Sério? Até quando eu disse que ele não era?
Ela disse que eu era difícil de agradar e que um rapaz branco teria que ser
muito bom até para conseguir mostrar a cara no mundo da dança. Às vezes,
quando ela falava sobre ele eu ficava com ciúme dos dois – Jordi e Davey –,
embora nem se conhecessem. Quando ela se compadeceu do dilema dele, eu
me senti um animal selvagem entre humanos, ansiando atributos civilizados.
Quando achei que íamos nos despedir, afinal eu já havia a exaurido com meu
único e incansável assunto, ela perguntou se eu estava apaixonada por ele. Dei
uma gargalhada.
— Não, não – respondi –, não é pra tanto. Ele é um pateta. Ih… ele esqueceu
a camiseta aqui. – Enfiei um rosto da camiseta e inspirei profundamente.
— Mas pelo que você disse…
Não a deixei terminar a frase.
— Se você o conhecesse, ia rir. Você podia escolher qualquer pessoa da rua e
seria tão provável de me fazer apaixonar quanto ele. E, na verdade, é isso que
ele é, uma pessoa que conheci na rua, num posto de gasolina – fiz uma pausa e
deixei as palavras posto de gasolina serem absorvidas.
— Certo. Beleza.
Ficou um clima estranho. Ela estava zangada? Disse que só estava cansada.
Estava fazendo uma escultura nova, uma peça em mármore verde.
No dia seguinte, Davey só podia ficar uma horinha; tinha que ajudar Claire
com alguma coisa. Fiquei alarmada mas sorri e balancei a cabeça bem passivo-
agressiva.
— Não faz assim. Pra mim também é ruim.
Era mesmo? Adoraria ver um gráfico comparativo de contrariedade.
Ficamos aninhados durante essa hora como dois apaixonados, e aí ele foi
embora. Não era agradável ter mais tempo sozinha. Esperar até as quatro da
tarde era suficiente para comer e me masturbar e aí assistir a uma ou duas
comédias românticas, eu não precisava ter uma noite inteira para isso.
Encomendei para Sam uma colher gigante, de uma empresa chamada
greatbigstuff.com. Às cinco, calcei o tênis e fui dar uma volta no arboreto, e
meu pensamento se alternava entre Davey e imaginar a cena em que daria a
colher gigante para Sam, o deleite que elu sentiria. Elu teria acabado de chegar
da escola agora, com sua babá Leila. Se eu ligasse para ela, era improvável que
me perguntasse alguma coisa antes de passar o telefone para Sam. Leila era
uma babá “sem prejuízo” – ela não criava nem inspirava Sam, mas elu se
sentia segure com ela. Nossa primeira babá, Jess, meditava com o bebê,
cozinhava refeições macrobióticas e aplicava shiatsu em mim e no Harris. Ela
era boa demais para nós e sabíamos disso. Depois de um ano, ela foi afanada
de nós furtivamente por uma família que lhe ofereceu plano de aposentadoria,
plano de saúde e salário integral por meio-período de trabalho. Quem tinha
tanto dinheiro assim? Jess não podia contar, ela assinou um acordo de
confidencialidade, e achamos que era alguém da alta patente da política local,
afinal sua mãe trabalhava no gabinete do prefeito. Fosse quem fosse, durou
pouco tempo, Jess abriu seu próprio restaurante em Sonoma alguns anos
depois. Às vezes, ainda gritávamos Jess! de brincadeira quando tudo estava
pelos ares ou estávamos famintos demais para cozinhar. Sam também gritava
Jess! e era muito engraçado porque elu nem se lembrava dela. Já Leila havia
esquecido que eu estava fora da cidade, e não no meu escritório na garagem.
— Você achou que eu estava na garagem esse tempo todo?
— Quase não vejo você, vou embora quando Harris chega em casa.
Tive que tomar medidas drásticas para não ter que entrar em casa depois
que Sam chegava da escola. Eu tinha até um penico na garagem.
— Ok. Olha, não estou em casa.
Eu não disse onde estava; essa nova geração tinha atributos psíquicos pouco
expressivos.
— Pode colocar Sam na linha?
Ela passou o telefone para elu, que logo perguntou sobre a coisa gigante.
Fiquei feliz por enfim poder contar.
— É uma colher.
— Qual o tamanho?
— Do tamanho da minha perna.
— Não é tão grande.
— Você achou que seria de que tamanho?
— Sei lá… podia bater no teto.
— Mas como ia caber no carro?
— Você podia amarrar no bagageiro, que nem as coisas de acampamento.
Conversamos sobre a belezura da colher, que parecia saída de um livro do
Richard Scarry, e em seguida elu perguntou se eu achava que adotaríamos um
cachorro quando eu voltasse para casa.
Eu tinha me esquecido disso, de ter que me tornar uma pessoa tranquila que
gosta de brincar com cachorro. Ao invés de virar uma Motorista (ou cruzar o
país de carro), teria que duplicar a aposta em virar Manobrista. Literalmente.
— A gente vê quando eu voltar pra casa – respondi. – Não consigo decidir
nada daqui.
— Posso ver Nova York? – perguntou elu, já mudando para o FaceTime. Eu
aceitei, mas mantive o rosto bem enquadrado enquanto escrutinava a área.
Nada muito nova-iorquino por aqui. Fui na direção de um estacionamento
elevado do outro lado da rua.
— Estou no bairro periférico agora.
— Que isso?
— É um lugar mais silencioso, não tem táxis nem nada.
Bufei e arfei enquanto subia as escadas até o topo do estacionamento. Tinha
uma vista incrível do centro de Los Angeles. Virei a câmera.
— Manhattan.
— Uau – elu respirou fundo, contemplando o horizonte. – Tô vendo o
Empire State!
— Isso mesmo.
Não só a cidade errada, mas a hora errada do dia. Seria interessante saber,
em termos cármicos, como isso voltaria para mim. Quais mentiras Sam
contaria para mim no futuro para proteger suas paixões secretas e
moralmente questionáveis. Se o carma funcionava assim, então fechei os olhos
e fiz uma notinha mental para minha inverdade: Tudo vai car bem, amorzinho.
Foi para Sam, no futuro, quando elu mentisse para mim.
Elu perguntou quantos dias faltavam para eu chegar em casa e, como eu
tinha acabado de negociar mais uns diazinhos, a conta estava fresca: cinco.
Pareceu um longo tempo para nós, mas assim que desliguei o telefone pareceu
muito mais curto. Quando estava chegando ao hotel, Davey mandou uma
mensagem: Desculpa, achei que ela só queria minha ajuda para colocar no
carro. Olhei para a frente e avistei Claire me esperando na porta. E com um
colchão. E Davey.
Ela ficava tão pequena perto dele, um desses casais altão e baixinha. Quando
me sentei no colo de Davey, tive que levantar a cabeça para chegar perto do
rosto dele. Ela deve erguer o rosto para ele como uma criança. Acenei e ela
acenou de volta e ele fez um gesto cuidadoso com a cabeça. Não estraga tudo,
disse para mim mesma. Não estraga tudo. Eu abri a porta e agradeci por terem
me esperado. Claire me apresentou a Davey e se interrompeu em seguida.
— Acho que vocês já se conhecem – disse ela, rindo.
Achei que ela ia ajudar Davey, mas só apontou e ele arrastou o colchão para
dentro. Ela parecia ser a chefe da casa, mas certamente era mais complexo do
que isso. É provável que ele a tenha salvado de alguma coisa e ela o tenha
salvado também. Tirei as cobertas e dei uma forcinha enquanto Davey tirava o
antigo colchão. Aí nós dois colocamos o novo, o nosso colchão. Claire me
ajudou a arrumar a cama – uma de cada lado, alisando e esticando. Qualquer
coisa pode virar um ritual, basta que lhe demos o nome antes que chegue ao
fim. Esse foi o Ritual da Permissão. Permito-vos que fodas meu marido.
Arrematamos com todas as almofadas floridas, uma por uma.
CAPÍTULO 9
N o dia seguinte, ele estava ocupado quando cheguei na loja, então tive que
me sentar ao lado de uma cliente na fileira de cadeiras enquanto ele
alugava um carro para uma mulher da minha idade. Pelas costas, tentei
descobrir se ela estava flertando com ele. Fiquei louca, mais uma atrás dele;
ele ficava todo saidinho com as clientes. Em outra dimensão, eu também me
envolvia com outras pessoas. Olha minha estatura! Às vezes, as pessoas
queriam meu autógrafo! Não consegui sustentar essa ideia na cabeça nem por
um segundo antes que fosse engolida por um pensamento novo e muito mais
profundo: E daí. Nada disso causou qualquer impacto naquela Hertz da
fronteira Arcádia/Monróvia. Olhei para o teto, respirei, coloquei os ombros
para trás. A mulher grisalha que estava sentada ao meu lado riu e disse entre
dentes algo esquisito que me soou como “Você está admirando ele”, mas claro
que não foi isso.
— O que disse?
— Você está admirando… o corpão dele – disse ela, ajeitando o colar
turquesa.
Minha orelha direita fez um zumbido e dei um apertinho enquanto sorria e
piscava.
— Dele quem?
— Davey, ora.
Eu não sabia se minha negação pareceria convincente e, além do mais, por
que deveria? Que comentário absurdo o dela. Ninguém precisava falar com
lunáticos. Continuei sorrindo e balançando a cabeça por educação, como se
não entendesse uma só palavra do que ela dizia, papo furado.
— Não vou contar pra ninguém – disse ela, piscando o olho.
Dei uma risada e por uns instantes quis matá-la, apertar seu pescoço em
silêncio até que ela tombasse no chão, e empurrá-la para baixo das cadeiras
com o calcanhar do meu salto alto. Davey olhou para mim e eu sorri um olá.
Ele parecia alarmado pela mulher grisalha e se voltou bruscamente para a
cliente, pegou uma caneta para explicar o mapa.
Me afastei da mulher. Quem era ela? Uma bruxa? Ela tinha providenciado
alguma coisa para ele e agora Davey lhe devia a alma de seu primogênito? Ela
tinha um poder escuso sobre ele. Sua mão parecia uma garra, que ela estendeu
na minha direção.
— Me chamo Irene. Sou mãe dele.
Ah, era a mãe.
— Já vi olhares como o seu antes – disse ela. – Eu sempre me surpreendo
porque ele chegou tarde à puberdade, uma carinha de menino até fazer
dezessete anos. E aí de repente: mulheres no supermercado, garotas no meio
da rua, até avós.
O rosto. Eu não estava sendo cuidadosa com minha expressão. Jesus Cristo.
Quem mais sabia? Todas as pessoas que olhavam para mim? Ele estava em
apuros – suava e se atrapalhava na frente da cliente. Ele sabia exatamente que
tipo de frases embaraçosas de mãe ela estava dizendo para mim. Me levantei,
virei as costas para ela e saí da loja. Foi um ato de solidariedade. Que dizia: não
estou nem aí para ela. Ela não significa nada. Imediatamente, ele mandou o
emoji de mãos rezando e disse que já falava comigo.
Quando me dei conta, lá estava ela ao meu lado novamente.
— Eu ouvi falar dos encontros das quatro da tarde – disse, com os olhos
cintilando.
Quem contou? Ah, claro. O tio que é dono da franquia da Hertz certamente
é irmão dela.
— Vamos comer uma coisinha e conversar? – disse ela, me pegando pelo
braço.
Virei e olhei para ele pela vitrine, sem poder fazer nada. Como eu poderia
negar um pedido de sua mãe? De olhos arregalados, ele nos observou indo
embora.
Fomos ao Sesame Grill e nós duas pedimos uma sopa minestrone.
— É a única coisa que eu consigo comer aqui – disse ela. – Você sabe que ele
e Claire vão ter um filho em breve.
— Sei que o plano é esse.
— É mais que um plano, ele se comprometeu. Sem ela, ele não seria nada.
Fiquei ofendida por esse resumo que ela fez dele.
— Ele não sabe se cuidar sozinho. Não saberia nem que marca de pasta de
dente comprar. Quantos anos você tem? Quarenta e cinco?
— Isso.
Decepcionante que ela tenha acertado em cheio.
— E você tem marido e uma criança e é bem-sucedida na sua área. Áreas.
Ela, ou Glenn-Allen, ou o tio haviam lido coisas sobre mim.
— Você leu sobre mim.
— Não, Davey me contou.
Coloquei a colher na mesa.
— Ah, Davey contou.
— Eu sei de tudo. Sou a única pessoa que sabe.
No começo, não acreditei nela. Afinal, esse era o melhor jeito de fazer uma
pessoa desembuchar sobre um assunto de sua suspeição.
— Vou dizer uma coisa: ele está louco por você – ela fez uma pausa para dar
um gole longo na sopa. – Em termos eróticos, essa é a experiência mais
importante que ele teve até hoje. Eu percebo quando ele fala de você.
Ela estava em polvorosa. Doida para despejar seu barril de sabedoria e molas
enferrujadas. Continuei olhando para a mesa, numa postura de submissão
involuntária.
— Felizmente, ele pratica kundalini, não precisa desperdiçar energia à toa…
Sabe transformá-la e usá-la a seu favor. Na dança. Você conhece kundalini?
Não achei que era uma pergunta real, não respondi.
— Não se preocupe… não fui eu que ensinei para ele – complementou, rindo
dessa ideia absurda. – Mas poderia ter ensinado! Estudo isso há trinta e cinco
anos! Mas consegui um professor ótimo para ele, um aluno do meu professor,
Suraj. Você tem uma menina?
Não atribua gênero à minha criança.
— Quando a gente tem um menino, é uma grande responsabilidade torná-lo
um homem bom. Um homem que saiba usar sua energia sexual. No dia em
que vi manchas no lençol, liguei para minha melhor amiga, Audra; vocês se
dariam bem, ela é superartística. Disse a ela: Audra, Davey está tendo sonhos
eróticos. Chegou a hora. Conversávamos sobre isso há anos, tínhamos esse pacto,
e ela cumpriu. No dia seguinte, ela fez um convite a Davey, eles conversaram e
ela virou sua amante. Ela o fez conhecer seu corpo, explicou todas as partes da
vagina e da vulva. Vaginas são complicadas, né?
Meu estômago estava embrulhando e comecei a me curvar, a testa quase na
mesa.
— Eles assistiam à pornografia juntos e ele entendeu que aquilo não era real.
E eles faziam tanto sexo que ficou banal para ele. Ele era diferente dos outros
adolescentes, perambulando por aí e causando confusão por estar com o
quarto chacra interditado. Foi nessa época que ele começou a ficar bonito.
Levou a dança a sério e começou a namorar a Claire. Garotinha sortuda, até
hoje não sabe como conseguiu tirar a sorte grande. Você sabia que ela deita de
bruços e deixa ele fazer todo o resto? Acho que até hoje ainda não fez sexo
oral nele. Não que ela seja fria, adoro aquela garota, tão talentosa, mas sempre
disse a ele que a história não acabava nela. Que havia outros horizontes
sexuais a serem desbravados. Você tem sido ótima, porque ele está
conseguindo pôr a kundalini em prática. É claro que não pode haver sexo,
porque você é uma pessoa pública e casada, mas estou certa de que você sabe
disso e está só passando por uma crise da idade. Eu já passei por isso.
Foi a gota d’água. Olhei profundamente nos olhos dela e balancei a cabeça:
Chega. Não aguento mais. Enquanto eu me levantava, ela começou a fazer
um rebuliço com a minha sopa, tentando chamar a atenção do garçom.
— Ela quer pra viagem! Pode levar?
Ela despejava a sopa numa vasilha plástica quando saí do restaurante. Fiquei
um tempo em pé na calçada e olhei para ela pelo vidro. Mostrou a vasilha com
a sopa para mim. Pensei em gritar com a intensidade necessária para quebrar
o vidro, que cairia no chão como chuva. Voltei para o Excelsior e me deitei na
cama. Ele tinha mandado muitas mensagens.
— O que ela disse pra você?
Foi assim que ele atendeu o telefone. Meu coração foi no chão; é assim
mesmo que se atende o telefone quando sua mãe tem um papel tão
inapropriado na sua vida sexual.
— Ela é a sua confidente? A única pessoa pra quem contou?
Ele ficou em silêncio.
— Sabe quem é minha confidente? Minha amiga Jordi. Ela é uma amiga.
Minha mãe é que não é. Nem meu pai. Ou a melhor amiga da minha mãe,
Audra.
— Ela contou da Audra?
— Ah não. Então é verdade?
— Não faça eu me sentir um esquisitão – sussurrou ele.
Eu não via as coisas nesses termos. Ele era só uma criança quando isso
aconteceu. Se ele fosse uma menina que tivesse um pai mais que participativo,
eu o consideraria vítima de um abuso. Não tinha diferença.
— Desculpa.
— Todo mundo tem problemas, né?
— Mas por que você contou pra ela? Não tinha que haver um limite aí?
— Vou conta pra quem? Prum amigo? Ela leva essas coisas muito a sério, é
respeitosa, sabe? Eu explico a profundidade do nosso lance e ela entende.
Minutos depois, ele acrescentou que estava se empenhando em fazer
mudanças na relação deles.
— Preciso sair dessa cidade. Meu problema é esse.
Gostei quando ele disse eu e não nós, porque esse assunto envolvia a Claire.
Ele estava começando a fazer isso com mais frequência. Perguntei se eu tinha
algum papel nisso. Sua mãe nunca seria minha sogra, esse problema era da
Claire. Mas quão habilidoso ele era? Um amante habilidoso demais é meio
nojento – o desejo precisa nos deixar desajeitados. Sempre imaginei nós dois
tropeçando de fome um no outro.
— Então você está praticando kundalini…
Ele riu.
— É, não, até porque me masturbo toda vez que vejo você.
Me senti um pouco melhor, afinal ela não sabia de tudo. Dei uma risada e ele
disse de supetão:
— Vamos esquecer isso? Minha mãe é esquisitona e sabe demais da minha
vida, mas eu não passo de um idiota que vive pensando em você.
— Tá.
— Obrigado.
— Só mais coisa – eu disse.
— Ah, não.
— Será que você tem um lance com mulheres mais velhas por causa de
Audra?
— Mas você não… ela era muito, muito mais velha. Penso em nós dois
como se tivéssemos quase a mesma idade. Aproximadamente.
— Mas ela provavelmente tinha a minha idade quando você tinha… Peraí,
mas vocês ainda…?
— Não, não. Não. Ela é tipo…
Ele começou a calcular a idade que ela tinha hoje em dia, mas o número
parecia alto demais para ser revelado.
— Não. Desde Claire, não. Claire detesta Audra. E ela concorda com você
que sou próximo demais da minha mãe.
Eu não queria ser parecida com Claire, então disse: Quem sou eu pra julgar?
E que esperava que quando minhe filhe crescesse se sentisse confortável para
me contar as coisas (se sentisse meio confortável já estava de bom tamanho).
— É esquisito a gente aqui conversando pelo telefone – disse ele. – Nunca
fizemos isso. Posso ir praí?
— Onde você está?
— Em frente à loja de smoothie.
Considerei dizer hoje não, como se tivesse outras coisas para fazer ou
autocontrole.
— Estou abrindo a janela.
Em poucos minutos, ele estava subindo e aí nos abraçamos, inundados de
comoção e alívio. Não fazíamos joguinhos porque não era necessário. Fiz
nossos petiscos, ele colocou uma playlist nova, nos deitamos no chão. Tocou
uma música da Arkanda. Uma em que ela canta sobre como é fazer sexo com
ela.
— Você escolheu essa música ou é aleatório?
— Eu escolhi – respondeu.
Deixei que isso reverberasse pelo corpo antes de me exibir.
— Vou me encontrar com ela quando voltar para casa, vamos conversar
sobre um projeto em potencial.
Ele se sentou.
— Tá me zoando.
— Não. Ela que fez o contato. Ou a equipe dela fez o contato. Quinze de
junho, às três da tarde, no Geoffrey’s em Malibu.
Não era necessário citar os tantos adiamentos do encontro.
— É daqui, tipo, uma semana!
Arkanda maldita. Não fosse ela, poderia curtir mais alguns dias de viagem;
Harris havia dito que essa era melhor parte de viajar de carro, a flexibilidade.
Seria um absurdo Liza tentar postergar o encontro? Será que alguém já fez isso
com Arkanda? Não. Não seria apropriado. Ah, vida, tão brincalhona! Sempre
dando uma lição! Eu nem quis saber qual era a lição.
— Quem sabe vou com você – disse Davey.
— Venha! É um restaurante lindo na beira de um penhasco, nós três
tomaríamos um drinque olhando o mar.
— Tava brincando, mas cara, que imagem. Não vou esquecer essa imagem
tão cedo. Me manda uma mensagem depois.
Foi bom ouvir isso porque não havíamos falado muito, nada, sobre como
seria nosso relacionamento na semana seguinte. Que formato teria. Quando
ou como faríamos para nos ver.
— Vou te mandar uma foto minha com Arkanda.
— Surreal.
É claro que eu poderia fazer mais do que mandar uma foto. Arkanda sempre
trabalhava com dançarinos; a depender do motivo do nosso encontro, talvez
até fosse meu trabalho achar dançarinos para ela. Eu não queria deixá-lo com
muitas expectativas, mas foi bom saber que esse era um jeito de dar uma
forcinha para o futuro. Ele escorregou as pernas por entre as minhas. Uma
novidade. Lentamente, apertei minhas pernas nas dele, uma reação
automática, como um bebê que aperta todos os dedos que encostam em sua
mão.
Era minha última noite em Nova York. Quando Davey foi embora, fiz um
vídeo para Sam e Harris com o belo papel de parede ao fundo: Triste que vou
deixar esse lindo quarto mas MUITO feliz que estou voltando pra vocês! Eu sabia que
estava abusando da sorte, fingindo estar num outro quarto de hotel. Um
terapeuta diria que eu queria um flagrante, mas não acho que é por aí. Eu só
queria que vissem o papel de parede – que me conhecessem um pouco mais.
Na tarde seguinte, Davey pulou pela janela e começou a andar pelo quarto,
fechou as cortinas e apagou as luzes até ficarmos no breu. Eu ri na escuridão.
E aí ouvi o barulho de um isqueiro, a mordida e o estalo inconfundíveis. Seu
rosto se iluminou, ele fazendo uma conchinha para um baseado.
— Você fuma?
Ele soltou a fumaça e passou para mim. Foi inesperado. A maconha nem
sempre me caía bem, mas aqui havia um pacto discreto de sensualidade. O
jeito tão casual com que ele agiu. Dei um tapa. O beque era a única luz dentro
do quarto, e encarar o lume só tornou o breu mais breu. Ele pôs um hip-hop
cujo tema era estrelas e que eu já havia dito gostar. Consegui ouvir que ele se
movia no escuro, dançando.
— Já dançou essa música? – disse ele, tentando me tirar do chão.
— Sempre – disse, sem me mover.
— Não consigo ver você.
Me levantei. Fechei os olhos e imaginei que estava em casa, vendo meu
reflexo nas janelas. Que coisas fiz com o meu corpo enquanto fingia estar
exatamente nessa situação? Quando fingia ser a melhor dançarina, uma
profissional, uma filha da puta tremendamente sexy. Dobrei os joelhos,
agachei e balancei a pélvis deixando os braços estendido em direção ao chão,
minhas mãos tremendo como se eu fosse lançar dados. E esse movimento,
quando a coisa engrenou, se transformou num outro em que eu me inclinava
para trás, de um lado para o outro, um ombro parado de cada vez, depois um
ombro ondulado de cada vez. Estou pescando, pensei, e me senti como uma
vara de pescar bem safada, que se curva e dá um puxão.
— Gostei – disse ele.
Ele estava me vendo.
— Desculpa. Meu foco voltou.
Meus olhos também tinham voltado e vi que ele fazia o mesmo movimento
que eu, não uma imitação boba, mas como quem não quer nada ele calibrava
a parte inferior do corpo, havia tirado o peso dos ombros, e não sei se pela
ajuda do manto da escuridão, mas a pescaria de repente tornou-se mais
especial. Ficamos reproduzindo essa nova sequência, até que mudou
naturalmente para outra coisa e depois outra; às vezes nos aproximávamos
muito, eu sentia o calor de seu hálito, e em seguida o quarto inteiro nos
separava, um cinza alucinante que nos consumia, e através do qual ele parecia
uma pintura, e aí nos aproximamos novamente.
Coloquei a mão na boca.
Às vezes, quando tinha um pau na minha boca ou na minha buceta, eu
tocava meus lábios para senti-los esticados, o aperto do ajuste. Foi assim
também dessa vez, mas com alegria. Eu sabia que estava sorrindo, mas qual o
tamanho do sorriso? E aí, com os dedos nos lábios, meus olhos rolaram pela
escuridão e encontraram seu bigodinho bobo e macio. Em seguida para a
camisa abotoada em seu pescoço grosso. Dei um passo para trás e observei
aquela dança. Ele fazia algo muito pateta, balançando os braços como um
macaco. Talvez eu tenha ficado de queixo caído – sem parar de dançar, ele
gritou O quê? por cima da música e gritei de volta Depois te digo! e ele gritou
Coisa boa? e, ainda sorrindo, gritei Acho que não!
Assim que ele foi embora, liguei para Jordi. Ela não atendeu, mandei uma
mensagem dizendo que precisava falar com ela urgentemente e aí liguei mais
uma vez, não fui atendida, então deitei imóvel na cama, esperando. Quando
ela enfim me retornou, atendi no primeiro toque e ela disse Você tá bem? e
comecei a chorar, soluçando involuntariamente e com força.
— É claro que amo Davey – me engasguei. – Estou completamente
apaixonada por ele.
— Eu sei – respondeu ela, plácida.
Descrevi seu bigode, a camisa abotoada até o pescoço.
— Todas essas coisas que eu achei que seriam impedimento para a paixão de
repente se tornaram as coisas que mais amo nele. Como assim? O que está
acontecendo? – disparei, como se ela fosse a responsável por isso.
— É aquele tipo de amor que nos faz perder o sono?
— Seria se eu não chapasse com três Benadryl toda noite.
— Peraí, você está tomando toda noite?
— Se não for assim, acordo às duas da manhã e no outro dia fico estragada.
Depois falamos sobre isso.
— Mas é saudável? Dá pra fazer isso ao longo dos anos? Vou me informar.
— Acho que tudo bem. Nem precisa de receita.
— … aumentam os riscos de desenvolver alguma demência – leu Jordi.
Uma notícia ruim, dada a deficiência cognitiva de minha mãe, mas a
demência era o menor dos meus problemas agora.
— Vou parar de tomar quando voltar pra casa. – Casa. Merda.
— Arkanda vai ter a solução.
Ri entre lágrimas, mas é isso aí: ela provavelmente teria a solução. Para o
remédio, para o amor.
— Você quer trocar o Harris por ele?
— Não – fácil e tranquilo de responder, ainda. – Não é pra tanto. O que sinto
é amor de amante. Quero dançar com ele e só, não quero ter filhos com ele.
— Ah, então tudo bem.
— E transar com ele. Beijá-lo. Ficar deitada nos braços dele o dia inteiro.
— Se você fosse um homem francês não teria problema nenhum – frases de
Jordi.
Ela era uma amiga e tanto.
Ia ficar tudo bem. Meus últimos dias seriam dias incríveis e aí eu voltaria para
casa e me encontraria com Arkanda. Mandaria uma foto nossa para Davey.
Talvez ela o contratasse como dançarino e talvez eu nem tocasse nesse
assunto. Minha vida continuaria em transformação e expansão. O lance com
Arkanda provavelmente demandaria viagens. Me imaginei ligando para Davey
dos quartos de hotel, do verdadeiro Le Bristol, inclusive. Arkanda ia sacar que
aquilo em que estávamos trabalhando (um disco? um filme? um livro?) era tão
dela quanto meu e lá estaria ela com as mãos no quadril enquanto seu
advogado dividiria os créditos e os royalties (“Eu gosto que as coisas sejam
justas”, explicaria ela, “todos os pingos nos is”) e aí sairíamos juntas em turnê.
E não é que Davey perderia seu posto, é só que a vida passaria a ser uma longa
jornada de novas experiências, então eu já estaria satisfeita quando enfim
voltasse para casa; ia ser bom voltar. As particularidades das semanas que
passei em Monróvia seriam soterradas por tantos outros detalhes
extraordinários. Arkanda contrataria “massagens” para nós e eu ficaria
surpresa ao descobrir que esse era um termo discreto para “sexo”. Não seria
educado recusá-las. E as lindas mulheres e homens que nos fariam gozar
seriam profissionais, com suores e paus limpos, e depois, enquanto
tomássemos banho, Arkanda diria que eram os melhores do mercado, todas as
estrelas pop contratavam seus serviços.
Tá, a parte em que ela fica só com metade dos royalties nunca ia rolar. Mas
eu de fato tinha um encontro com ela e não me surpreenderia se as estrelas
pop fizessem esse tipo de massagem. A verdade é que eu estava com a faca e o
queijo na mão. Ou só a faca ou só o queijo, inclusive um encontro marcado
com alguém que tinha a faca e o queijo na mão.
CAPÍTULO 10
Na tarde seguinte (de Indiana para o Kansas), ele chegou com um saquinho de
papel e disse que era para mais tarde. Eu queria muito que fosse um
brinquedinho sexual.
— Você não pode enfiar o pau em mim, mas pode me foder com o que está
dentro daquele saquinho?
Ele riu e disse que não, que eu ia ver o que era.
— Primeiro – disse ele, segurando minha mão –, vamos deitar na cama.
Fiquei incrédula.
— Tá falando sério?
— Diferente de você, não sou um espírito livre, mas estou tentando.
Ó. Ele estava achando que ia me perder se não dobrasse a aposta. E talvez
me perdesse! Um dia, com certeza. Se assim permanecesse durante anos.
Deitei com a cabeça no peito dele. Ele disse que não conseguia acreditar,
deitado ali com a garota dos seus sonhos nos braços. Eu nos vi deitados assim
pelo resto de nossas vidas, profundamente casados com outras pessoas mas
sempre cientes de que poderíamos voltar a esse nosso mundo. Agora eu tinha
o que sempre quis ter; ele era tão real que podia ser amado e me amar de
volta, mas não tão real para ser desejado. Pouco importava toda desolação que
passei até aqui, eu sempre teria essa nova perspectiva. Sorri, pensando na
teoria dos Motoristas e Manobristas. Agora eu poderia ter uma vida plena de
Manobrista ao invés de me tornar Motorista, como Harris. E provavelmente
seria uma esposa e uma mãe melhor agora que eu tinha um amante. Um
quase amante.
Fisicamente, estávamos sempre a um passo de uma descoberta. Naquela
noite do saquinho de papel, levantei sua camisa e beijei seu peito. Os pelinhos
dos mamilos. Então lentamente fui em direção à sua cueca, que eu jurava ser
uma boxer, mas era branca e justa e me deixou um pouco desconcertada.
Desabotoei sua calça jeans e ele disse Porra baixinho. Aquela forma grande e
dura mal conseguia se conter. Beijei o cós da cueca e cheirei profundamente o
tecido. Mal podia acreditar que eu estava ali em baixo e queria ficar lá para
sempre. Construir uma cabaninha ao lado de seu pau e viver lá pelo resto dos
meus dias. Alguém então se pergunta por que não comecei a chupá-lo? Será
que ele me faria parar? É, sim. Ele poderia e seria humilhante. Pressionei os
lábios em seu pênis coberto e foi aí que ele me puxou para cima, severo. A essa
altura, eu já sabia que esse era seu olhar quando se esforçava ao máximo para
não ceder. Parecia estar prestes a dar um soco em seu próprio rosto ou bater a
cabeça na cabeceira da cama. Foi muito penoso para ele, ao passo que para
mim foi um jogo vitoriano elaborado. Descobriríamos novos toques a cada
dia, prolongando a descoberta ao máximo possível, e um belo dia
concordaríamos em ceder. E aí seria a vida real. Cheiros reais e línguas
molhadas e esperma e pelos pubianos e tudo seria surpreendente. O desvio
para essa terra da intimidade física seria como romper a barreira do som, a
decolagem de um avião, bebês aprendendo a andar. Um novo mundo se
abriria e, sim, viria repleto de problemas novos, mas ah, a alegria oriunda de
uma pausa, feita no meio de uma frase, para nos beijar.
— Preciso levantar – disse ele, se afastando de mim.
No saquinho havia uma lâmpada estroboscópica. Ri muito alto. Como
assim?
Confia em mim, disse ele, ela deixa as coisas mais intensas. Como se eu não
soubesse que lâmpada era essa, como se nunca tivesse ido a um baile na oitava
série. Ele desligou as luzes e pôs a música no volume máximo que Skip
permitia, então acendeu a lâmpada. Começamos a dançar. Eu não me
incomodava mais por não ter habilidade semelhante à dele; compreendi que
só importava o comprometimento total. O quarto parecia despedaçado, nos
víamos e não nos víamos mais. No instante em que a estroboscópica nos
flagrou, éramos apenas espíritos, olhando nos olhos um do outro, muito
sérios. Com a linguagem, isso não seria possível. As palavras sempre
rebaixavam as coisas com seu pretenso conhecimento, suas tentativas elaboradas.
As palavras podiam se acomodar em dois cérebros diferentes. A dança era um
jeito de diminuir essa lacuna. Que lacuna? Como poderia haver uma lacuna
entre dois seres vivos, tendo em vista que cada coisa viva corresponde a uma
só coisa. Útil que fôssemos humanos, mas não essencial, não, essencial não. A
batida era comunicação em estado puro, não poderia haver mal-entendidos e
só aproximava as coisas. O humor: síncope. Opor-se ao ritmo era uma forma
de parecer chique, de se exibir, a criança que ousa se afastar da mãe mesmo
sabendo que sua mãe estará em tudo e toda parte. Às vezes, eu dançava como
uma velha, quase parada, me balançando de leve. Noutras, minha bunda se
intumescia como a bunda de um macaco velho e acasalava com o ar,
bombeando. Nada foi embaraçoso, isso precisa ser destacado: ninguém sentiu
vergonha. Foi tipo tomar MD, mas não tomamos.
E tem mais: ele era glorioso no que sabia fazer. Conseguia ficar pendurado
no ar, na horizontal, por um tempo bizarramente longo, às vezes batucando
os dedos, fazendo uma piada. Podia assumir uma forma totalmente feminina,
não só a essência, mas chegava a parecer peitudo, bucetudo. Fiz um gesto com
os dedos que era como se os deslizasse por entre seus lábios molhados e
naquela hora eu tive a certeza de que nós sabíamos o que significava. Na
maior parte tempo, ele era só um ótimo dançarino de hip-hop. Um corpo
forte e incansável que não parava nunca. Quando finalmente ficávamos
exaustos, nos jogávamos na cadeiras bisavós ou no chão e ele abria o frigobar e
pegava a caixa de suco de laranja que havia trazido. Passávamos a caixa de
boca em boca e quando ela batia na minha língua, eu achava que tínhamos
chegado na melhor parte. Estar fisicamente exaustos bebendo suco de laranja
juntos.
E le havia tido um sonho erótico com o garoto que estudava junto com ele
no colégio.
— Aaron Bannister. Um garoto doce. Meio gordo. Imagina o rosto dele, o
rosto mais gentil e inocente.
— Ele também tava a fim?
— Totalmente a fim.
— E foi um daqueles sonhos eróticos que você fica com tanto tesão que
quase goza no sonho?
— Sim, claro. Eu gozei.
Absorvi essa informação.
— E o que vocês… faziam? Sexualmente?
— Ah, eu chupava, assim, o pau dele.
Ele só estava envergonhado por ter que afirmar o óbvio, verbalizar. Fiquei
muito apaixonada nessa hora. Nenhum homem com quem tive algo havia
admitido um sonho erótico gay. Quando pressionados, e eu os pressionava,
diziam que não tinham esse tipo de sonho, o que era ainda mais
decepcionante. Eu não pedia que fossem bissexuais, só que habitassem a
extensão de sua masculinidade. Mas eu me sentia atraída por homens mais
velhos. Você volta uma geração ou duas e o custo de ser gay é muito alto, não
comporta flertes inoportunos; a pessoa só não se lembra desses sonhos. Os
riscos eram ridiculamente altos, frente a frente com a masculinidade – muitas
vezes corriam perigo e a ameaça era real; todos os meus namorados, incluindo
Harris, haviam apanhado na escola por serem “artísticos”. Então achavam
muito irritante me ver ronronar sobre erotismo gay, como se eu não os
conhecesse.
Davey também era esse tipo de homem, antiquado e moralista, mas era um
homem de seu tempo. A homossexualidade não era grande coisa para ele e
fim, então se lembrou do sonho e o motivo por que estava me contando nem
era esse – o motivo era Aaron Bannister. Ele sabia que eu adorava saber de seus
amigos da escola, o elenco original, os arquétipos.
— Vamos procurar o Aaron. Quero que você veja o rosto dele.
Eu nunca tinha aberto meu computador na frente dele e parecia uma
maquininha engraçada. Meus dedos corriam por toda parte como um
espaguete nômade e a sensação me fez rir. Eu nem sequer consegui senti-los
direito.
— Você não sabe como se escreve Aaron? – disse, rindo. – A, a. Qual seu
problema? – balançou a cabeça e começou a digitar.
— Olha esse rosto – ele apontou para o sorriso dolorido de Aaron Bannister.
– Eu devia ter transado com ele no colégio. Provavelmente ele era gay.
Levantei as sobrancelhas. Talvez todos os rapazes fossem bissexuais hoje em
dia. Claire sabia disso? Claro, respondeu ele, mas eram diferentes nesse
quesito. Ele me pediu para mostrar as pessoas que eu tinha namorado e
procurei minha primeira namorada.
— Que lindinha – disse ele. – Vocês deviam ser um casal fofo.
Foi a única vez que chorei com ele. Abaixei a cabeça e solucei sem conseguir
imaginar o porquê.
Quanto mais nos aproximávamos de fazer sexo, mais claro ficava que não ia
acontecer.
— Vamos fazer outras coisas – disse ele, doce.
— E se a gente se beijasse – respondi.
— Se rolasse um beijo, eu ia ter que fuder você.
Não soou como um problema para mim. Não que não fosse assustador trair
de verdade, era assustador, mas essa situação era daquele tipo raro em que
temos que ir adiante, aproveitar e guardar a experiência no coração para o
resto da vida, uma espécie de vacina contra outros casos menos
extraordinários. Contra a amargura.
Observei enquanto ele caminhava para o banheiro. Estou pensando numa
coisa, pensei. No que estou pensando?
Avancei e antes que ele percebesse que eu estava atrás dele, enfiei a palma da
mão no fluxo de seu mijo quente, e catei um bocado que transbordava. Ele
deu uma risada que parecia um latido surpresa e ficou imediatamente em
silêncio – parecia que precisava de toda concentração para continuar mijando
na minha mão. Era mijo demais, continuava saindo num jorro quente e
constante e tinha cheiro de cereal. O cheiro e a quentura da urina eram
desnorteantes; as pessoas são severamente instruídas a ficar longe do mijo,
mas nem existe uma lei ou punição, ser mijado é a punição. Mas ninguém
morre quando encosta no mijo e sobreviver a isso faz com que as pessoas se
sintam poderosas. Ele acabou, sacudia as últimas gotas. Tomei cuidado para
não olhar para seu pênis. Guardou na calça e fui lavar a mão na pia. Ele me
observou enxaguá-las e então se aproximou e espirrou sabão em suas mãos,
ensaboou-as, lavou minha mão e o punho e o antebraço e os dedos. Fez com
todo esmero, como se minha mão fosse algo muito precioso, um tesouro.
— Você gosta disso? – perguntou, muito sério, sem se referir à lavagem da
mão.
— Não, nunca tinha feito isso antes. Até agora, nunca tinha nem pensado.
— Ficou com tesão?
— Não cheguei a ficar. Mas gostei.
Agora ele secava minha mão com a toalha grande.
— Você cou com tesão?
— Você não sacou que eu estava tentando ficar numa boa?
— Eu não havia me atrevido a olhar.
— Você tem que ir embora? – sussurrou ele.
Fiquei comovida que ele quisesse inverter os papéis. O brilho nos olhos, a
concentração dizia que nada disso havia passado pela cabeça dele antes, mas
agora que sim, ele havia embarcado cem por cento. Inocente mas totalmente
comprometido, sua essência era essa.
— Acho que não preciso ir.
— Talvez mais tarde.
— Eu preciso trocar meu absorvente – eu disse como um aviso de que
precisava ficar um minuto sozinha, mas ele levou a coisa para outro lado.
— Tá bom – respondeu, olhando ao redor. – Onde está?
Fiquei petrificada.
— Ah, mas você não precisa…
Parecia magoado e de repente constrangido. Sorriu, piscou, desviou o olhar.
Eu tinha acabado de quebrar um feitiço lindo. Ele já estava quase na porta.
Peguei a caixinha que estava numa prateleira alta de vidro.
— Tá aqui.
Eu não queria que ele visse minha vagina. Todas as vaginas são lindas quando
você está prestes a enfiar o pau nelas, mas aqui, pingando sangue pelo buraco
da privada – de que nos servia isso?
— Eu não olhei quando você estava fazendo xixi, estava olhando na mesma
direção que você.
— Eu sei, mas como é que eu vou…
Ele estava segurando o absorvente interno envolto em plástico, inclinando a
cabeça, tentando entender a logística.
— Talvez seja melhor eu sentar… e aí você senta no meu colo.
Ele fingiu colocar o absorvente entre as pernas e o gesto foi um pouco
perturbador para mim; fiquei com vontade de rir, mas não o fiz.
— Tá.
Ele se sentou de calça em cima da privada aberta.
— Pode ser um banho de sangue.
— Eu só quero enfiar lá dentro. Não vou cutucar você.
Puxei a calcinha e amarrei a saia em volta da cintura enquanto me sentava
no colo dele, alinhando minhas coxas sobre suas coxas. Ele pôs a mão na
minha barriga e soltou um suspiro longo, controlado. Estava se acalmando;
talvez alguma técnica do kundalini.
— Tem que abrir? – sussurrou ele, segurando o OB.
— Primeiro, tem que sair o que está aqui – respondi, me abaixando
mecanicamente. Ele empurrou minha mão. Senti seus dedos grandes
procurando a cordinha da mesma forma que eu costumava fazer.
Pressionavam os lábios que provavelmente também estavam sujos de sangue.
Senti que estava a ponto de chorar, um misto de vergonha, excitação e um tipo
inesperado de tristeza, como se isso enfim acontecesse depois de uma vida
inteira de negligência. Estive tão sozinha no meu período menstrual por todos
esses anos. Ele achou a corda, enrolou o dedo em volta dela, puxou e pareceu
surpreso que o absorvente não tivesse pulado. Respirando pesado no meu
ouvido, ele deu um puxão longo e tão constante que o absorvente veio à luz.
Sob minha coxa direita, senti a dureza de seu pau. Ele segurou o OB no ar pela
corda, a criatura quase negra da Terra Média. Arranquei um pedação de papel
higiênico, já pronta para assumir o controle, mas foi ele que o embrulhou com
muita concentração, cometendo vários erros de novato e escolhas
surpreendentes, como, por exemplo, dobrar o papel higiênico primeiro.
— Agora é só jogar aqui? – perguntou, e jogou o absorvente na lixeirinha
branca de porcelana. E agora se empenhava para abrir o OB, procurando o
plástico semelhante a um maço de cigarro. Desenrolou o barbante azul.
— Não tem um… achei que tinha, sei lá, um negócio pra botar…
— Eu não uso esse tipo de absorvente.
Quase consegui tocar seus pensamentos girando como bolas de metal.
Nenhum aplicador. Ele estava com o rosto encostado no meu pescoço e se
abaixou entre as minhas pernas mais uma vez e enfiou a ponta de seu dedo
dentro de mim. Fechei os olhos. Estava encontrando o buraco. Aí, com a outra
mãozona, ele empurrou o absorvente.
— Pode ir mais? – sussurrou.
— Bem mais.
Ele empurrou – e seu dedo – bem dentro de mim, sua mão inteira cobrindo
minha buceta. Ele tomou muito cuidado para não mover o dedo ou a palma
da mão, mas também não conseguia sair. Ficamos sentados, respirando fundo
juntos, por muito tempo. Então ele se levantou, eu me limpei com papel
higiênico e levantei, subitamente sem jeito, como se já tivesse esquecido como
fazer qualquer coisa sozinha. Havia só uma manchinha de sangue em sua calça
jeans, ninguém ia reparar. Lavou as mãos. Nos olhamos no espelho, muito
sérios e depois começamos a sorrir. Sexo é muito bom, mas isso é melhor. Era
o tipo de coisa que nunca mais faríamos com outras pessoas. Uma coisa nossa.
Nosso lance estava chegando ao fim. Minha rota invertida era difícil de
acompanhar, mas planejava adiar meu retorno por mais um dia, afinal o que
era um dia na rotina de Sam. Paramos de dançar e ficamos deitados, de
conchinha ou de mãos dadas, olhando para o rosto um do outro. Não falamos
sobre o domingo, algo que só aceleraria o processo, até que naquela noite ele
disse finalmente, Esse foi o momento mais lindo da minha vida.
— Estou só a trinta minutos de distância daqui – respondi, nos braços dele.
Ele ficou quieto. Não só quieto, imóvel. Parecia que segurava a respiração.
— O que você tá imaginando? – perguntou enfim.
— Ah, que se a gente quiser podemos nos ver…
Quieto de novo. Virei para ficar de frente para ele.
— Quer dizer, não é que nunca mais vou ver você – ri.
— É, quem sabe… alguma hora.
De repente percebi que embora tivéssemos vivido uma intimidade profunda,
não havíamos conseguido nos comunicar tão bem. Essa parte de nós não havia
comparecido. E agora parecia rude tocar num assunto tão específico. Deixei
pra lá. Dava para voltar a esse assunto amanhã, quando não tivéssemos mais
tempo de sobra.
No sábado, liguei para Harris e disse que já estava perto mas queria passar a
noite em Monróvia.
— Mas não dá nem trinta minutos… vem direto pra casa.
— Estou um caco, dirigindo há dias. Só preciso de uma noite pra me
recompor. Dirigir dá a sensação de que preciso de férias depois das férias!
Uma lógica estranha havia entrado no jogo. Pensei que se conseguisse
colocar um pouco de verdade sobre todo o acontecido, talvez todos aqueles
dias poderiam se esconder atrás dela, como num arbusto.
— Onde você vai ficar?
Ele estava vindo atrás de mim? Para fazer uma surpresa?
— Esqueci o nome… é um hotel qualquer. Mas o quarto nem é tão ruim.
Ele disse que Sam não aguentava mais esperar, mas não disse nada se ele
aguentaria. Imaginei que estivesse um pouco chateado por eu não voltar
direto para casa; que eu não estivesse louca para voltar.
— Você pode levar elu para escola segunda? – perguntou. – Tenho uma
reunião às nove da manhã.
Quase dei uma risada. Essa pergunta soou tão estranha para mim, quase a
paródia de uma vida. Mas eu só teria que viver essa vida por mais um dia; meu
encontro com Arkanda era na terça.
— Claro. Mas na terça você leva porque vou me encontrar com Arkanda.
— Não era no fim do dia?
Era sim, mas eu queria acordar com calma, tomar banho, besuntar meu
corpo inteiro de creme… Ops, era só aqui que eu vivia desse jeito.
— Tá certo, eu levo na terça.
Dormi num hotel em Monróvia como disse que dormiria. De manhã, liguei
para a recepção e disse que queria fazer o check-out mais tarde.
— Que horas? – perguntou Skip.
— Às duas.
Davey fazia um almoço longo ao meio-dia. Eu não conseguiria justificar o
fato de levar um dia inteiro para dirigir de Monróvia até em casa.
— Tudo bem – disse Skip. – Mas deixa as chaves na recepção. As pessoas
costumam levar a chave pra casa.
Fiz as malas. Surreal tirar malas tão familiares de debaixo da cama e tirar
minhas roupas dos cabides dourados. Os cabides também eram meus? Sim,
em teoria eu podia levar tudo embora desse quarto. A lixeirinha de porcelana,
as toalhas, a colcha; paguei por tudo isso. Mas se eu colocasse todas as coisas
no meu carro, elas não esperariam minha volta. Deixar o quarto intacto era
garantia de que Davey e eu nos encontraríamos aqui novamente, no mínimo
algumas vezes. Dobrei minhas roupas com esmero, fazendo de conta que ia
desfazer as malas na casa de hóspedes de Arkanda, talvez com ela do lado. É
claro que nada disso aconteceria tão rápido – eu teria que desfazer e refazer as
malas em casa –, mas essa performance tornaria possível a constância do
movimento. Dobrei a camisa xadrez macia de Davey e a coloquei
cuidadosamente sobre uma das cadeiras bisavós. Deixei um maço de notas de
vinte na mesa com tampo de mármore para Helen, uma nota para cada dia da
minha estada. Tomei um banho e coloquei o mesmo vestido creme que havia
usado no nosso primeiríssimo dia neste quarto. Eu estava reluzente frente ao
espelho, pontinhos pulsantes circundavam minha cabeça, ou era misticismo
ou eu não estava conseguindo respirar. Meu telefone tocou; era Liza.
— Estou ocupada – respondi.
— Vou mandar mensagem, então.
— Tá, vamos desligar e você manda.
— Vou só adiantar o assunto, para o caso de surgirem dúvidas instantâneas,
aí desligamos e mando uma mensagem com os detalhes.
Não chegava perto de como uma agente deveria agir.
— Tá, seja rápida, como numa mensagem.
— Deixa eu pensar numa forma de ser bem sucinta – ela fez uma pausa. –
Certo, vamos lá: Arkanda cancelou. Para mais detalhes, me liga.
— Quê?
— É melhor eu desligar?
Por um segundo, andei pelo quarto em silêncio.
— Não compreendo. Já tínhamos a hora e o lugar – três da tarde no
Geoffrey’s.
— Pois é. Foi o que eu disse a eles.
— E o que eles disseram?
— Disseram assim, Lamentamos muito.
— E o que você disse?
— Respondi, Mas então já vamos marcar uma nova data.
— Ótimo. Melhor abordagem.
— Eu sempre digo isso. Em geral funciona, mas dessa vez a assistente disse
que tinham que ver, toda a agenda de Arkanda estava sendo reformulada
porque ela tinha que passar três meses em Pequim.
— E o que isso quer dizer?
— Eu respondi assim, Sextas-feiras são dias bons? Ela disse que eles não se
guiam por dias da semana, só pelos números. Domingo não é diferente de
terça. Todo dia é terça. Achei muito interessante.
Nessa hora, desliguei o telefone.
Olhei para minha mala e minha mochila que já estavam ao lado da porta.
Talvez algum outro imprevisto acontecesse; talvez tivesse que ir a Nova York
para trabalhar. Não, claro que não, afinal eu tinha acabado de voltar de lá. Não
iria a parte alguma por um bom tempo. Tive um mau pressentimento, gosto
amargo na língua. Um alarme soava à distância? Não. Alarme nenhum, era só
o som que os ouvidos fazem em silêncio, chacoalhando.
Pouco antes de ele chegar, senti uma expectativa repentina e estranha de que
ele enfiaria a mão no bolso e tiraria um presente e seriam joias. Eu receberia
um colar ou bracelete e não importa o que acontecesse depois eu sempre
poderia tocá-los nos dias subsequentes para me sentir bem. Ele enfiou a mão
no bolso, mas não a tirou de lá. Olhou para minhas malas e, em seguida, para
sua camisa dobrada na cadeira.
— Eu queria que você levasse isso.
Era bem diferente de ganhar um medalhão, mas abri a mala. Ele se ajoelhou
ao meu lado, pôs a camisa em cima da minha valise de produtos pessoais e deu
um tapinha nela. Então, abaixou a cabeça e se inclinou para olhar debaixo da
cama.
— O que é isso? – perguntou, apontando.
Eu puxei o quadro que havia deixado ali há tanto tempo.
— É um daqueles quadros que não dizem nada, então não ofendem
ninguém. Acho que são feitos especialmente para quartos de hotel e
consultórios médicos.
Ele olhou para o quadro.
— É uma mulher, você reparou? – perguntou, contornando a forma cinza
com o dedo. – Ela está andando pela floresta ou está numa espécie de
caverna…
Por que estávamos desperdiçando nosso tempo precioso com isso? Coloquei
o quadro embaixo da cama. Levantamos e ele me abraçou e eu pensei, Ótimo,
vamos nessa. Porque só restavam algumas horas para lidar com tudo que
havia acontecido entre nós e debater como nos incluiríamos um na vida do
outro dali em diante. Eu antevia encontros uma vez por mês ou uma vez a
cada dois meses. E tinha algumas ideias sobre como ajudá-lo a ter perspectivas
no mundo da dança em Nova York. Ou em Londres. Ou em lugares distantes
onde poderíamos, eventualmente e sem pressa, consumar esse fato.
Ele beijou minha testa.
— Eu queria poder levar suas coisas para o carro.
Recuei, perplexa.
— Restam quase duas horas. Podemos fazer o que quisermos em duas
horas.
— Não podemos nos despedir por tanto tempo. Vai ser muito mais doloroso.
— Mas temos muito… o que conversar – respondi. – O que vamos fazer?
Você vai me ligar?
— Quando?
— Quando? Sei lá, para saber se cheguei bem em casa? Ou pra saber como
vou estar amanhã?
— Essa não é uma boa ideia. Vai começar todo um lance de ligações e
mensagens. O melhor é a abstinência.
Abstinência.
— Que tal mandar mensagem depois do encontro com Arkanda? Com a foto
que eu tirar com ela pra mandar pra você?
Eu poderia mandar uma mensagem para ele dizendo que ela havia
cancelado de supetão.
— Melhor não, mas vou pensar em você na terça às três da tarde. Torcendo
para que dê tudo certo.
Fiquei muda. Ele segurou minha cabeça.
— Foi lindo – sussurrou ele. – Nunca mais vou viver um lance tão legal.
Encostei no peito dele, meus olhos esbugalhados.
Eu tinha feito um cálculo errado, cometido um erro básico e bobo. Nada
dito agora poderia ajudar; de repente e de modo indiscutível, ficou claro que já
era tarde demais. Algo de muito ruim ia acontecer e o único jeito de evitá-lo
teria sido não parar para almoçar em Monróvia há duas semanas e meia.
Fiquei paralisada e serena. Disse que lhe desejava o melhor. Ele olhou ao
redor e disse que ia sentir falta do quarto; respondi que eu também. Uma
conversa horrível, mas não fazia diferença. Balas disparadas contra um corpo
morto. Ele repetiu que adoraria poder levar minhas malas para o carro e eu
disse que tudo bem. Ele subiu na janela, uma perna primeiro, outra perna
depois. Era a chance de fazer algo de romântico com a janela aberta entre nós,
mas abri um sorriso tenso e fechei as cortinas. Fui de encontro às minhas
malas e comecei a empurrá-las para fora da porta, em direção à recepção. Não
virei para ver se Davey tinha dado a volta no quarteirão e ia correr atrás de
mim, mas logo ficou evidente que não ia fazer isso. Enquanto Skip pegava
minha chave, um casal de meia-idade chegou, suado e desgrenhado da estrada.
— Viemos conferir, a placa diz… “não não há vagas”.
— Dois nãos fazem um sim – respondeu Skip, passando meu cartão de
crédito. – Inclusive, temos um apartamento.
— Apartamento! – exclamou a mulher, se virando para o marido. – Que
maravilha.
Ele assentiu.
— Acho que podemos fazer essa gracinha por uma noite.
— O apartamento está sendo limpo nesse exato momento, esperem só
alguns minutos.
Skip já havia me entregado o recibo e olhou como quem diz Em que mais
posso ajudar. O casal também estava olhando para mim. Abri a boca para fazer
um comentário sobre o apartamento, para contar que ela pertencia a mim –
mas não pertencia. Quem quer ter uma propriedade tem que agir de outro
modo. Contrato de depósito, coisas do tipo. Levei as malas para o carro,
lágrimas escorriam livremente pelo meu rosto. Helen carregava toalhas limpas
e dobradas para o quarto 321, mas parou para me observar acomodando as
coisas.
— Não me arrependo do que fiz – disparou ela. Fiquei surpresa; parei de
chorar. – Se pudesse voltar atrás, não agiria diferente. Faria tudo exatamente
igual.
Parecia que ela havia cometido um crime hediondo e de certo modo achou
que eu deveria ser a pessoa a saber que ela não estava arrependida. Balancei a
cabeça como se tivesse entendido e, um tanto constrangida, entrei no carro e
comecei a dar ré.
O caso extraconjugal. Ela não se arrependia de ter traído o tio de Claire.
Olhei para ela pelo retrovisor. Agarrada às toalhas, ela me observou ir embora.
PARTE DOIS
CAPÍTULO 12
À
Às duas da manhã, estava desperta como se fosse o meio da tarde. Meu alívio
extasiado foi pras cucuias; havia escapado de mim nas poucas horas de sono. É
claro que poderia me sentir bem ao ouvir a voz de Davey e aí
progressivamente mal uma hora depois de ouvi-la. Deitada, no escuro, toda a
severidade da minha fixação ganhava contornos. O tempo não marcava meus
pensamentos sobre ele, as respirações marcavam – duas ou três, nada além
disso. Como isso foi acontecer? Não fazia sentido. E agora estava me
masturbando sem nem conseguir chegar a uma conclusão. Seu pau entrava
dentro de mim enquanto ele me beijava e nós nos olhávamos incrédulos de
que isso enfim estava acontecendo; ele ficava repetindo meu nome enquanto
metia com mais força e mais velocidade e o pau dele era o meu clitóris; eu
estava metendo no meu próprio buraco com seu/meu clitóris duro e gigante,
o pau roxo brilhante, e era tão delicioso – talvez fudesse o pólipo, que espero
que seja benigno.
— Mamãe, acordei!
Eram seis da manhã.
Levantei da minha tumba. Fiz um smoothie, tostei um waffle; expliquei
coisas e ri no final das piadas. Descobri que podia conversar com Sam e pensar
em Davey ao mesmo tempo. Cortei o dedo enquanto fatiava uma cenoura e
por um momento breve e acachapante – ao estancar o sangue e pegar um
Band-Aid – me senti presente e plena, integração total entre corpo e mente.
Sua vida pode ser assim daqui por diante, disse a mim mesma. Deixa esse cara pra
lá.
*
A semana terminou e não tentei transar com Harris, o que fazia parecer que
eu tinha um boleto vencido. Eu sabia que seria bom ter um orgasmo, chorar;
certamente o sexo nos reconectaria… o problema era esse.
Sam terminou a segunda série e aí veio o acampamento de verão, uma
programação tosca e aleatória. Retorno às 2h25? Por que não 2h30? Eu precisava
daqueles cinco minutos para fazer minhas pesquisas superconcentradas à la FBI
na internet. Ao longo dos anos, a mãe e o tio de Davey haviam publicado fotos
dele e da irmã, Angela, que em geral eram saborosamente sem conceito,
imagens desfavoráveis. Eu adorava vê-lo nessas situações. Pele irritada de
gilete, acne, cabelo comprido. Dali caí no perfil de Angela; de vez em quando
o irmão a visitava em Sacramento e eu gostava de vê-los passeando juntos,
sem Claire. Será que Angela gostava de Claire? Certamente teria preferido a
mim como cunhada se tivessem lhe dado essa opção. Também visitei o perfil
do namorado de Angela e me aprofundei muito no desejo dele de começar
um negócio na carpintaria. Davey tinha dado coração numa postagem sobre a
substituição de uma bancada. Sempre que via seu nome completo naquela
selva, meu coração parava: Davey Boutros. Mas para cada moeda de ouro
sempre tinha um escorpião à espreita. No feed do namorado de Angela havia
um carrossel de fotos de família tiradas numa trilha. Na terceira foto, Davey
está atrás de Claire, abraçando-a pela cintura. A imagem mais violenta e
obscena que já vi – uma faca na barriga teria sido mais educado. Tentei me
acalmar no feed de Dev, o amigo dançarino de Davey, nosso álibi. Ele só
postava vídeos de dança e, ao longo do tempo, Davey aparecia em muitos
deles – mas em nenhum desde que voltei para casa. Talvez Davey estivesse
triste demais para dançar, assim como eu, tristíssima para conversar com Deus
ou para trabalhar ou fazer qualquer outra coisa que não rolar a tela do celular.
Toda noite eu voltava da garagem o mais tarde possível, as noites com Harris
e Sam eram as mais traiçoeiras; eu imitava meus trejeitos em interações que
deveriam ser naturais para mim, mas agia como uma hóspede perpétua,
ansiosa para demonstrar o quanto se sentia à vontade. Então novamente caía a
madrugada e me dava conta do quão perdida eu estava, havia perdido o
vínculo com minha família e formado uma aliança com um cara que podia
muito bem ser fictício.
Fiquei girando na cama até o amanhecer, me perguntando se a alma
visitante do meu pai tinha voltado e se era possível que estivesse me visitando.
Não literalmente, mas meu pai e eu temos essa mesma habilidade de sair do ar
em qualquer tipo de ambiente, assustados com o que é familiar. É uma pena
que eu tenha estabelecido limites tão rígidos na relação com meu pai. Ele
nunca saberia o quanto me preparou bem! Nem das tantas vezes em que eu
ainda via o mundo por seus olhos. Coisa que na minha juventude havia
assegurado uma certa intimidade (com ele), mas agora parecia atrapalhar essa
mesma intimidade na maior parte do tempo.
— Mamãe, acordei!
Esfreguei e lustrei feito uma mulher cujo único orgulho é o chão de sua casa.
Investi na geladeira e no freezer, limpei armários, esvaziei gavetas de cacarecos
– todos os lugares com os quais uma pessoa feliz nunca se preocuparia.
Uau, disse Harris. Acho que nunca levantamos aquele tapete.
Dei esses comandos a mim mesma e me obedeci, sem, de um jeito ou de
outro, envolver qualquer sentimento nas tarefas. Cômodo por cômodo: cada
gaveta, piso, armário, prateleira, janela. Sem velocidade ou animação, só
método – a serva zelosa de um eu futuro e aconchegado. Em alguns fins de
semana, eu ficava tão acabada que só conseguia dar conta de uma parede por
cômodo, e muito devagar. Por ser um trabalho indesejável, nada divertido,
Sam e Harris ficavam de braços cruzados.
— Você vai limpar a gaveta da minha cama? – perguntou Sam, totalmente
sem roupa, só um relógio digital no pulso.
— Hoje não. Agora só consigo limpar essa parede. A faxina vai levar em
conta só o que tem relação com essa parede. Vai vestir uma roupa.
— E a cesta de brinquedos?
A cesta de brinquedos ficava no canto que era a intersecção da parede de
hoje com a parede da semana seguinte.
— A cesta vou limpar hoje.
— E o meio do quarto? – disse Sam, em pé no meio do quarto.
— Assim que eu terminar as quatro faces da parede, vou passar aspirador no
quarto inteiro, inclusive no meio.
Sam se sentou no meio do tapete como se fosse me esperar por semanas, em
seguida ficou impaciente e encostou na parede que eu estava limpando.
Fechou os olhos e enlaçou os joelhos com os braços, esperando.
— Mas que coisinha é essa que está aqui? – me perguntei, falando sozinha. –
Nunca notei essa coisinha aqui antes, encostada na parede que estou
limpando.
A coisinha começou a rir. Tirei a coisinha da parede e a coloquei em cima do
tapete. A coisinha ainda estava de olhos fechados. Peguei um pano limpo e
limpei seu rosto, atrás das orelhas, entre os dedos. Limpei cada joelho e a
coisinha ria. Virei a coisinha e limpei as polpinhas da bunda e a parte de cima
dos pés. Quando acabei, a coisinha abriu os olhos e, embaralhando suas
metáforas, aparentava alguém que dormia há cem anos.
— Quem sou eu? – perguntou elu. – Quem é você?
— Sou sua mãe.
— Mãe? O que é mãe?
— É uma pessoa que cuida de você porque você é filhe dela.
— Filhe? O que é filhe?
Elu andou pelo quarto encostando em todos os objetos familiares com
muita admiração.
— Ume filhe é uma pessoa mais nova.
— Filhe é isso aqui?
— Não, isso é uma cama.
Elu saiu do quarto para fazer descobertas no resto da casa.
Todos os dias eu tinha oportunidades como essa. Todos os dias Sam e Harris
estendiam suas mãos e diziam: Sai dessa mágoa. Mas eu não conseguia.
CAPÍTULO 13
E ra fácil enganar Sam porque elu agia em função das coisas que queria,
momento a momento – é claro que sofria a influência das minhas
oscilações emocionais, mas elu não podia me questionar de modo tão
específico. Harris, por outro lado, começava a perceber que alguma coisa
estava acontecendo. Eu já lhe devia várias semanas de sexo; ele nunca
colocaria as coisas nesses termos, é um homem bom – mas meu humor tinha
impacto sobre a casa, seu funcionamento. Estávamos assistindo a um
programa de TV sobre uma agência de viagens quando ele apertou o pause.
— Você está chorando?
Eu não tinha percebido.
— A pindaíba dele me comove muito – respondi, rapidamente me
recompondo. – Um negócio… muito difícil de manter por causa da
tecnologia… essa coisa de reserva online.
Harris, que não é idiota, não disse nada. Suspirei e fechei os olhos.
— Estou exausta de tanto dirigir. Exaurida.
— Às vezes, é difícil voltar – disse ele, tranquilo. – Muito difícil.
Então ele sabia? De algum jeito, sabia. Talvez soubesse. Talvez estivesse
prestes a fazer uma confissão, então eu também faria uma confissão e seria
enfim o começo de avançarmos no impasse. Um momento inconveniente, já
que eu não estava a fim de nenhum avanço. Mas essa predisposição pode
mudar com o tempo, tipo aquelas pessoas que de uma hora para outra
aceitam Jesus no coração e dizem, Jesus?, segundos antes de nascer de novo.
Ajeitei a postura, me confortando. Ele estava procurando as palavras corretas.
— Quando volto do Olympic – Olympic era um estúdio de gravação em
Londres –, sempre levo alguns dias para me readaptar.
— Eu sei – disse, esperando a confissão.
— Pra pegar de novo o ritmo das coisas.
— Claro.
— Mas aí eu consigo.
Ah. Nenhuma confissão. Ele queria dizer que havia um limite de tempo para
uma pessoa ficar amuada e aparentemente ele sabia medir esse limite com
precisão.
— Acho que tem mais coisa aí – disse, assertiva. – O que está rolando
comigo é diferente do que acontece com você quando está gravando um
disco.
Ele desligou a TV, respirou bem fundo e ficou à espera. Da minha grande
revelação.
Deus meu, o que acabei de fazer. O plano não era esse. Eu devia só limpar a
casa e puxar o elástico no pulso até esquecer Davey.
— Você não vai entender – resmunguei, tentando desviar do assunto.
— Vamos tentar – respondeu, com um sorrisinho petrificado. Ele já estava
furioso com o que eu ia dizer, independentemente do que fosse.
Abaixei a cabeça e apoiei o queixo nos joelhos e tentei desesperadamente
pensar numa situação ou condição que pudesse acabar com essa conversa,
alguma coisa assustadora mas não tão extremada; um ponto-final.
— É a… menopausa.
— Ah!
Sua expressão mudou, suavizando-se para um desconforto leve.
— Pois é.
No mundo das mentiras, essa pareceu convincente. Historicamente, foram
tantas as mulheres que falharam em omitir sua biologia que não havia
problema em pecar falando demais. Eu podia pegar algumas informações com
Mary, minha amiga mais velha que sempre falava sobre as ondas de calor.
— Menopausa. Preciso ler mais sobre isso.
— Seria ótimo – respondi, esperando que ele não lesse tanto a ponto de
descobrir que eu não estava na menopausa. Então voltei a chorar, com uma
facilidade surpreendente. Ele me abraçou e disse que íamos passar por isso.
Havia generosidade entre nós. Ele foi genuinamente compreensivo e eu
consegui canalizar sua compaixão em prol da minha dor real, do caos em meu
coração. Ele estava a um passo de dar início a um beijo, o que para mim já
seria demais, então reconsiderou. Deu um tapinha nas minhas costas. Talvez
eu pudesse viver o resto da vida assim, contrabalanceando cada mentira com a
mentira seguinte, mantendo tudo em seu devido lugar.
Saímos para caminhar depois do jantar. Sam gostava de visitar os cachorros
do parque canino, lavar as tigelas na torneira, enchê-las com água limpa e
incentivar os cachorros dos vizinhos a beber água.
— Vamos, cara – disse Sam –, tá na hora de beber água.
— Acho que ele não está com sede, benzinho – disse uma mulher,
respondendo por seu cachorro. – Qual deles é o seu?
— Ainda não tenho um. Estamos esperando a hora certa.
A mulher olhou para mim, uma mãe que nitidamente se preocupava mais
com pelos de animais no sofá do que com a alegria do rebento. Não é só pelo de
cachorro! Sorri como quem implora. É que estou vivendo à or da pele! Socorro!
Mas pelo restante do tempo que ficamos no parque dos cachorros tentei
parecer sã. Toda vez que pensava em Davey puxava o elástico e me forçava a
dizer Oi, lindinho ou Oi, querido para um cão. Cumprimentei quase vinte
cachorros e todos gostaram muito de mim. Você fez um amigo, disse Harris
quando um cachorro lambeu minha mão.
Voltando para casa, Sam correu na frente pela grama e fez uma parada
abrupta na área de piqueniques.
— Me liga – disse Sam. – O que isso significa?
Olhei para frente, horrorizada.
— Significa Me liga – respondeu Harris. – Alguém quer receber uma ligação.
— Mas por que está escrito numa cadeira?
Dei de ombros, como quem diz Só Deus sabe.
— Será que pode pegar?
— Não sei, talvez tenha dono e a pessoa deixou aqui…
— É muito legal – disse Harris, estatelando-se na cadeira. – E se a gente
pegar. E colocar no quintal.
Balancei a cabeça: Sério?
— Como assim? – perguntou ele. – Você adora essas coisas.
Sam sentou no colo de Harris.
Fiquei em silêncio. Não foi fácil para mim avaliar a cristalinidade da situação.
Quão óbvio ficou que essa era a cadeira que meu amante usava para subir na
minha janela? E que eu – eu, a mamãe – havia escrito ME LIGA nela?
— Podemos colocar debaixo da tília – respondi.
— Como vai sua crise ou casinho de meia-idade? – Mary perguntou; não nos
falávamos desde que eu havia desmarcado com ela.
Ri com desdém e depois baixei o tom de voz.
— Tenho algumas perguntas sobre menopausa e libido.
— Cadê meu livro do Lego? – gritou Sam da porta da garagem.
— Embaixo do sofá! Desculpa, Mary.
— Perimenopausa – disse ela. – Você está na perimenopausa.
— Sim. Mas basicamente é que…
— Não estou ouvindo nada.
— Desculpa! Eu quero muito saber se… é o fim – fiz um sussurro falso,
teatral. – É isso que você está dizendo? Que não vou mais me sentir assim,
sentir desejo, daqui a poucos anos? – diga que não. Não, não, não, você entendeu
tudo errado.
Ela suspirou.
— Agradeça que você ainda sente. Eu me sinto agora um pouco…
entorpecida. Morta lá embaixo – me perguntei se ela estava tentando deixar as
coisas piores do que eram. Às vezes eu fazia isso para compensar a falta de
imaginação das pessoas. Mas eu tinha muita imaginação, então talvez devesse
não imaginar demais. – Acabam os impulsos hormonais, tudo fica mental –
prosseguiu. – Tenho que criar uma narrativa para dar o ensejo, caso contrário
começa a parecer que é um estupro.
Era uma novidade para ela? Eu sempre tive que dar a largada no sexo, cavar
uma calha em declive para que pudesse fluir livremente ladeira abaixo. Isso de
ser surrada, macetada pelo desejo era muito recente. Recentíssimo. Contei
para Mary sobre o tesão enraizado no corpo versus o tesão enraizado na
mente.
— Porque parecia que você estava enraizada no corpo.
— Definitivamente estava – disse ela, rindo –, nem eu reconheço aquela
pessoa mais, meu antigo eu cheio de desejo. Não consigo mais me imaginar
fazendo as coisas que fazia.
Eu a vi curvada sobre um carro. Sendo lambida por um cachorro. Sua bunda
apertando os botões de um elevador. Ela fez tudo isso para agora se permitir
ao riso.
— Então agora você está enraizada na mente – concluí.
— Acredito que sim. E você?
— Eu vivia enraizada na mente até… uns meses atrás.
— Então talvez não seja uma mudança tão drástica pra você – disse ela. – Só
vai voltar ao normal. Pelo menos você deu o grito final? Né?
Não respondi.
— Todas nós devíamos fazer… como é o nome mesmo daquele rito que os
adolescentes Amish fazem?
— Rumspringa? – respondi.
— Isso, rumspringa. Devíamos ter direito a um ano de libertação durante a
perimenopausa, sabendo que o fim está próximo – ela gargalhou. – É uma
época muito perigosa, logo antes do fechamento das cortinas.
— Perigoso para o casamento?
— Também. Mas eu estava pensando na gente. Temos que descobrir quem
somos e o que está chegando ao fim para saber o que fazer quando a estrada
se bifurcar. É uma espécie de gravidez.
Bifurcação? Que bifurcação? Havia uma escolha a ser feita? Havia dois tipos
de mulher na pós-menopausa? O filho de Mary começou a gritar ao fundo,
alguma coisa envolvendo uma torradeira, ela se desculpou, tinha que desligar.
Imediatamente tirei o elástico do meu pulso. Não podia acreditar que estava
tentando matar meu desejo – a última e preciosa onda de desejo! – como se
fosse um mau hábito, um vício. Eu precisava fazer o contrário.
CAPÍTULO 15
E u voltaria ao Excelsior, ajustaria os faróis do jeito que ele fez e daria play
numa música do momento. Não estaria nua, mas mostraria mais do que
ele já viu; minha bunda, por exemplo, ele não a conhecia em toda sua
extensão. Estaria arqueada sob a luz da lua. Eu dançaria entre as pilastras. Uma
dança incrível que falaria por si – nenhum trabalho para ele, nada a ser
considerado, visando apenas o pau. Eu não mandaria mensagem. Não
quebraria as regras; não precisaria fazer isso. Postaria. Ele nunca passava mais
que quinze minutos sem olhar as redes sociais. Uma espera curta até que ele
viesse acabar comigo. E se ele insistisse na postura moralista, explicaria minha
situação. Que eu queria fazer sexo com ele antes de morrer, porque depois de
morrer eu teria de viver por mais quarenta e cinco anos.
Tranquei a porta da garagem e posicionei meu telefone em cima da mesa de
perna bamba. Eu tinha lembranças muito boas da minha bunda, mas não a via
há algum tempo, então tirei a roupa, fiquei de costas para a câmera e fiz uns
movimentos improvisados para me inspirar. Reassisti ao vídeo para ter certeza
de que meus olhos não estavam me enganando. Gravei de um ângulo
diferente, mas não adiantou de nada. Algo havia acontecido ali atrás; mas não
dava para saber exatamente quando. Uma sensação semelhante a quando não
conseguimos achar nossa própria bolsa e aí nos damos conta de que ela foi
roubada. Minha bunda estava reta onde costumava ser redonda; parecia dois
braços gordos. E havia uma pancinha na parte da frente, logo abaixo do
umbigo. Não ia rolar. Não, essa era minha situação real. A dança era minha
única chance; eu tinha que dar tudo de mim.
Em se tratando de exercício físico, nunca fiz mais do que comprar um
pacote de dez aulas de yoga e fazer duas. Era tão fraca que às vezes meu braço
se cansava quando escovava os dentes. Balançava a cabeça ao invés de acenar –
as mãos pesam! Ninguém admite! A cabeça também pesa. Manter a
geringonça inteira de pé já era o suficiente. Quase sempre eu estava apoiada
em alguma coisa, dividindo o peso com um balcão ou uma porta. Não havia
nada de errado comigo, era só que o exercício soava como excesso de
investimento num corpo temporário. Não era mais inteligente perder tempo
fazendo coisas que sobreviveriam ao corpo? Até então, meu pensamento era
esse. Segundo a internet, eu precisaria de três a seis meses para condicionar
meu abdômen e glúteos. Eu tinha esse tempo? E essa força de vontade? Dei
zoom no gráfico hormonal. Os números ficaram um pouco confusos, mas,
fazendo uma medida científica com a unha, entendi que estava a quatro meses
da beira do precipício. Pensei em Mary e na bifurcação. Os dois caminhos
pareciam óbvios e incontornáveis:
transar com Davey × uma vida de arrependimento e amargura
A dança tinha que dar certo; se eu não conseguisse atrai-lo, as consequências
seriam drásticas e duradouras. É claro que eu treinaria por três meses; eu tinha
sorte de ainda ter tempo.
— Vamos supor que você vai transar com ele – disse Jordi, dando uma
colherada no sorvete de baunilha –, e aí?
— E aí o quê?
— O que vai acontecer depois?
Ri. Me senti alegre imaginando esse depois. Estávamos comendo sorvete
com granulado arco-íris colorido artificialmente.
— É sério – disse Jordi –, por exemplo, Coyote e Papa-léguas. Se ele pega o
pássaro, quem é ele? Sobre o que é o desenho? Davey talvez seja uma quimera.
— Uma quimera?
— Sim, produto da imaginação, uma ilusão.
Fiz uma careta.
— O desenho é sobre um coiote que finalmente consegue o que quer e aí
pode seguir adiante. Pode fazer pedidos a outras companhias além da Acme,
encomendar coisas que não são para matar o Papa-léguas. Tudo graças a uma
fodinha inofensiva.
Eu me ouvia enquanto falava. Eu parecia ser outra pessoa, alguém que
acreditava que o sexo poderia me salvar, o completamente oposto de saber
que só o meu trabalho poderia fazer isso por mim. Que trabalho? Eu não tinha
nenhum projeto além de ensaiar meu número de dança; minha agenda estava
vazia, com exceção dos dias na academia.
— E Arkanda? – perguntou Jordi. – Já voltou de Pequim?
Fiquei surpresa com a pergunta. Jordi era a única pessoa imune a Arkanda.
Eu parecia estar tão alheia assim?
— Eu nem teria tempo para começar um novo projeto agora – respondi,
cortando. – Quer dizer, tempo eu tenho, só não tenho espaço mental.
É claro que Harris tinha que passar uma semana e meia trabalhando com
Caro e a Orquestra Sinfônica de Londres.
— Tudo bem por você? – perguntou ele. – Estará com tempo livre?
Olhei para ele horrorizada. Sozinha com Sam, eu teria que ser uma pessoa
presente e responsável o tempo todo; não poderia viver num mundo onírico
agonizante, me masturbando até chegar o momento do número de dança.
Tudo certo, sussurrei. Divirta-se.
Ele ignorou meu drama, afinal, honestamente, que papelão. Depois de ele
ter sido tão solícito durante a viagem de carro pelo país? E ele tinha razão.
Num tribunal eu estaria do lado dele, contra mim mesma. Ultimamente, nada
do que eu sentia era admirável ou defensável. Minha vida interior – minha
alma – era repulsiva, vaidosa e profundamente egoísta. Só mesmo levantando
tijolos de ferro eu conseguiria me redimir por um tempo. Harris foi para o
aeroporto num SUV preto comprido com vidro fumê; as coisas eram assim
com Caro. Na quarta-feira, o acampamento de verão acabou mais cedo, então
Sam se sentou no canto do porão da ginástica com o iPad na mão e, de vez em
quando, olhava para cima como quem dizia Você consegue, mamãe, vai nessa.
Quase fui às lágrimas.
Cuidar sozinha de uma criança, de certa forma, era mais fácil. Eu podia ser
severa no comando do barco. Ordenei que Sam fizesse a própria cama e
dobrasse os guardanapos, nós dois cumprindo no laço o cronograma. Mas os
dias eram brancos, vazios, mesmo com jogos e comidas inventadas, passeios
de bicicleta e banhos longos; eu não conseguia gestar sozinha uma sensação
familiar acolhedora e saudável. Parecia encenação.
— Talvez seja – observou Jordi. – Sam conhece bem você? – Só uma pessoa
que não tem filhos faria uma pergunta dessas. Ela estava sentada na cadeira
rosa Me Liga, sob a tília. Assistíamos à criança despedaçar uma árvore do
outro lado do quintal. – Se você está mentindo para Harris, então está
mentindo para Sam?
Quando tomávamos banho juntos, não, mas, claro, suponho que na maioria
do tempo eu tentava me mostrar uma pessoa mais equilibrada do que
realmente era.
— Mais uma coisa para a conta dos hormônios – disse Jordi, fazendo
referência ao gráfico. – Imagina o que é ser homem. Não menstrua. Não vive
mortes dentro da própria vida. Não se transforma em outra pessoa.
Toda vez que Jordi e eu nos encontrávamos, pairava a premissa de que
havíamos mudado radicalmente desde o encontro anterior, e assim
permaneceríamos para sempre. Essa inquietação era, honestamente, dolorosa.
Também excitante, porque nunca sabíamos o que estava por vir. Nossa
transformação constante era, claro, um grande segredo – para o mundo e até
para Sam, mas encenávamos a mesmice.
— Acho que estamos agindo errado – disse Jordi. – Nos achatando assim. Ser
errática não significa ser maluca ou irresponsável. Será que não devíamos
normalizar a mudança?
Agora Sam falava para um público imaginário e absorto de milhares de
pessoas. Ficamos assistindo enquanto fazia muitos floreios com as mãos.
— Mas voltando – respondi. – Não se esqueça. – Esquecer o que mesmo? De
repente, unimos todos os esforços para nos lembrar de que caralhos
estávamos falando segundos atrás.
— Não podemos encenar a mesmice – disparou Jordi.
— Tá. Ah, tenho um ótimo chavão pra isso – respondi. – Uma pílula de
sabedoria.
Contei a ela que Arkanda não levava em conta os dias da semana, só os
números.
— E aí domingo não é diferente de terça. “Todo dia é terça-feira”.
Caso tivesse estabilidade hormonal, como os homens têm, talvez não
precisasse seguir as indicações que o corpo dá para definir os momentos de
descanso. Teria que incorporar: domingo é o dia em que não trabalhamos, dia
do Senhor. Mas se quem define os dias é você, o relógio biológico e o
calendário, então todo dia pode ser terça-feira. Talvez quisesse gravar duas
semanas inteiras, gravando o álbum número um das paradas de sucesso, e aí
descansaria a semana seguinte inteira enquanto sangra.
— Todo dia é terça-feira – repetiu Jordi. – Saquei. Virou um adesivo na
minha cabeça. Notícias do projeto em potencial? Foi mal. Deixa pra lá.
Demonstrei a ela como fazer agachamentos (costas retas, peso sobre os
calcanhares) e conversamos sobre o momento atual de sua vida profissional.
Ela queria sair da agência de publicidade; Mel dava força e dizia “carpe diem,
porra”. Fiquei emocionada com isso, pensando em Mel dizendo essa frase
idiota.
— Talvez você sinta saudade do Harris – arriscou Jordi, apreensiva.
Fiquei olhando para ela. Eu sofria de saudade, mas não dele.
Quando ele enfim voltou para casa – usando um boné de beisebol e
cheirando a avião –, ficou claro o quanto Sam e eu nos beneficiávamos desse
contraponto, de ter um tipo diferente de pessoa em casa. Um Motorista. Ele
bagunçou todas as nossas engenharias e interrompeu nossos devaneios, mas
imediatamente chegou junto de Sam e do cachorro, se entregou de corpo e
alma a eles. Ao menos parecia que sim. Talvez estivesse encenando, afinal
havia dito que sempre demorava uns dias para voltar a entrar no ritmo das
coisas.
— Não é estranho – perguntei, assistindo-o desfazer as malas – voltar a fazer
parte de uma família depois de passar um tempo sozinho?
Ele não respondeu e continuei tagarelando sem parar até que consegui me
enxergar ali: uma pipoqueira elétrica sem nenhuma tigela embaixo.
— Enfim – concluí, rindo, enviesando os olhos e girando os dedos para
mostrar que eu era um relógio-cuco –, bem-vindo ao lar! – E fui direto para o
meu quarto antes de me tornar uma pessoa ainda mais irritante.
Lembrei: sexo. Mas fiquei imóvel.
Quando acordei às duas da manhã, a luz de seu quarto também estava acesa.
Jet lag. Nas três noites seguintes, nós dois acordamos no meio da noite e
ficamos lendo cada um em seu quarto. Mas aí seu relógio interno foi ajustado
e só restava eu mais uma vez.
*
— Eu não quero tomar estrogênio por vaidade, mas é verdade que mantém a
pele encorpada e hidratada? – perguntei à dra. Mendoza. – Se sim, quanto
tempo dura?
Tínhamos acabado de repassar meu gráfico hormonal. Começaria com 0,25
miligramas de pomada bioidêntica duas vezes ao dia e um comprimido de
progesterona à noite. Eu esperava ficar orvalhada, quase renascida, a tempo da
dança que faria para Davey.
Dra. Mendoza sorriu.
— A vaidade é uma grande incentivadora, porque você consegue ver seu
corpo de fora. Mas lembre que mudanças idênticas estão ocorrendo na parte
interna também. Suas cartilagens estão ressecando, assim como seu rosto.
Exercícios, uma dieta mediterrânea, reposição hormonal: é assim que se reduz
inflamações e se protege as articulações. E o cérebro! Os bioidênticos reduzem
em um terço o risco de demência. Queremos que você tenha uma vida
independente aos oitenta e até noventa anos.
Eu não tinha certeza se conseguia me enxergar indo tão longe. Por outro
lado, me vejo como “elemento maternal” desde os doze, quando peguei
minha sobrinha recém-nascida no colo e minha tia rosnou Sinto cheiro de
elemento maternal de longe. Assim, fazer uma projeção biológica de mim mesma
no futuro não era novidade.
Preenchi a receita na Rite Aid, também outras de remédio para alergia e
antibióticos. Todas as manhãs e noites tirava a tampa azul do tubo de Estradiol
e um jato único e preciso de creme branco era disparado. Eu corria o dedo
para catar o creme e passava na parte interna da coxa, alternadamente.
— E vou parar de tomar o comprimido de progesterona pouco antes da lua
cheia – expliquei a Jordi –, para conseguir menstruar.
Ela abriu o frasco, cheirou os comprimidos. Tinha dúvidas sobre a TRH, e eu
não tinha argumentos. Eu só não queria que ela se aborrecesse comigo mais
tarde, quando estivéssemos na casa dos oitenta e ela estivesse um terço mais
demente que eu. Amiga da onça você! diria ela. E mais uma coisinha: quem é você?
Os hormônios demoraram um mês para fazer efeito, até que um dia inventei
uma musiquinha boba para Sam sobre um bebê chamado Bibby. Os
hormônios não me faziam cantar, mas me ajudavam a regular o estresse e
voltar ao estado de antes, para que eu não vivesse num caldeirão eterno. Ainda
chorava com facilidade, mas não queria saber se alguma hora ia parar de
chorar. Os trens descarrilados da emoção voltaram a ser trens comuns,
andando nos trilhos, fazendo as paradas habituais. E com a progesterona
passei a dormir a noite inteira, aquele sono quentinho, profundo e onírico de
uma grávida, mas sem o barrigão que atrapalha o sono.
O bebê Bibby, eu cantava enquanto lavava a louça, era um bebezão/ mais
bebezão que Bobby…
Mas não eram só os hormônios. Esse tempo de preparar meu corpo para a
dança foi agradavelmente finito; acabaria no sexo com Davey e isso era ainda
melhor do que uma estreia. Com algo pelo que ansiar no horizonte, eu me
sentia muito bem, quase animada. Harris entrou no coro da minha música do
Bibby.
— … um bebezinho – disse ele.
— Como assim?
— Estou complementando a música: mais bebezão que Bobby/ um bebezinho.
Eu já tinha esquecido que ele tinha esse hábito de melhorar minhas
musiquinhas bobas, levando tudo a sério.
Coloquei mais sabão na esponja.
Se a perimenopausa era causadora da minha inquietação, minha desordem,
e se tomar hormônios fosse a solução… então não havia desordem alguma,
estava tudo bem. Agora cantávamos a canção juntos desde o começo, o Bebê
Bibby, mas mantive meus dedos secretamente presos na esponja, um sinal para
o público, para Deus, para quem estivesse assistindo. Mantenha a garra.
— Bom? – bufei. Eu não sabia a que ele se referia. Será que precisavam
ocupar minha máquina, meu horário de aula, com um levantador mais sério?
— É, você parece bem – disse ele.
Scarlett concordou com a cabeça e fez um sinal de joinha para mim com seu
polegarzinho pintado de esmalte. Me olhei no espelho. O suor escorria pelas
laterais do meu rosto. Eu estava usando um short preto de elastano e um sutiã
de corrida; as roupas largas esquentavam muito e eu precisava enxergar bem o
que estava fazendo. Aqueles barulhos animalescos que no começo me
assustavam? Agora saíam da minha boca, involuntariamente, nos
levantamentos mais excruciantes. Nos pesos livres, já tinha ido de oito para
doze, de doze para quinze e de quinze para vinte e já estava levantando o
kettlebell mais pesado, o de quarenta quilos. E como eu já havia sido alertada,
comecei a notar diferença nas pequenas coisas. Carregar as compras, por
exemplo – passei a segurar uma sacola em cada braço, até as que continham
potes e garrafas, e sentia um certo prazer com as sacolas balançando. E o peso
do meu próprio corpo parecia menos árduo. Eu flutuava como se a gravidade
se equilibrasse por uma força de sustentação igual e, ao mesmo tempo, oposta.
Naquela noite, tirei a roupa toda e fiquei em frente ao espelho. Sam olhava
com curiosidade para mim e para o espelho e para mim.
— Estou mudando – comentei.
Sam tirou toda sua roupa e ficou cutucando os reflexos. Viramos para um
lado e para o outro, nos contemplando.
— Eu também estou mudando – disse elu.
— Você definitivamente está.
— Você também – disse elu, de forma educada.
— Como? – perguntei.
Olhou para mim, estreitando os olhos.
— Você está… – elu pôs a mãozinha na minha barriga com cuidado. – Mais
alta.
Dessa vez, disse ao Harris aonde estava indo. Ele estava usando um fone de
ouvido gigante, acenei para chamar sua atenção.
— Tô te ouvindo – disse ele, sem tirar o fone de ouvido.
— Lembra que fiquei em Monróvia na última noite da minha viagem? –
perguntei em alto e bom som.
— Você não precisa falar assim. A tecnologia é perfeita, ouve só.
Ele tirou o fone de ouvido e pôs na minha cabeça.
— Tá me ouvindo perfeitamente, né?
Estava, inacreditável.
— Pensei em passar a noite lá, pra trabalhar. Posso acordar cedo e mergulhar
de cabeça. – De cabeça em quê? Que trabalho? Eu contava as braçadas de
distância que mantínhamos um da carreira do outro. Ele tirou o fone de
ouvido e olhou para ele, piscando.
— Por uma noite só ou vai virar algo cotidiano?
Nem tinha me ocorrido querer uma noite a mais, mas que falta de visão. Se
acontecesse uma vez, voltaria a acontecer. Era só para viver um affair, o
último grito cujo efeito duraria semanas ou meses e então chegaria ao fim.
Davey e Claire iam ter um filho; eu ia ter uma queda de libido e não faria
diferença, porque saberia cuidar de mim mesma. Harris e eu poderíamos dar
um passo adiante. De certo modo, eu estava fazendo isso por nós dois, pelo
nosso futuro.
— Vai virar cotidiano. Estarei em casa quando Sam chegar da escola. Pode
deixar que converso com Sam.
Eu disse isso num tom de voz muito firme, pronta para qualquer tática que
ele usava para me fazer mudar de ideia. Mas ele não fez nada. Harris não
estava no controle. Na pior das hipóteses, ele era um rei que queria que seus
súditos o achassem justo. Na melhor, ele queria me ver feliz.
— Divirta-se – disse ele.
Quando entreguei meu cartão de crédito ao Skip, ele me disse para guardá-lo.
— Uma anedota sobre aquele quarto: quando explico que é um apartamento
especial e que uma pessoa importante me ajudou a criá-lo…
Arregalei os olhos.
— … sem falar seu nome, claro – apressou-se para completar –, mas nem
posso cobrar o preço que vale. – Ele começou cobrando o dobro dos outros
quartos, cem dólares a noite. – Então comecei a pedir cento e cinquenta.
Ninguém hesitou. Duzentos. Ninguém piscou. Agora é trezentos a noite.
Ele me entregou a chave.
— Todo seu. Sempre que quiser, me liga, vejo se está disponível e aí você
vem. De graça.
Essa gentileza me surpreendeu. Eu não soube como responder. Frisei que
minhas estadias grátis, por trezentos dólares a noite, só acabariam no dia em
que somasse o valor total que gastei pelo quarto.
— Posso ficar com a chave?
Skip olhou para mim como se eu tivesse dito uma coisa grosseira e de
repente fiquei muito paranoica, me senti muito careta em relação à posse e à
propriedade. Parecia que não conseguia lidar com a fluidez de que aquele
quarto era meu e seria para sempre. Como se não confiasse em mim mesma,
na minha capacidade de ser ética, a menos que fosse obrigada por lei. Pendurei
a chave na minha aliança e disse que talvez precisasse voltar com regularidade,
se o projeto que estava desenvolvendo aqui caminhasse bem hoje.
— É diferente do projeto em que você estava trabalhando da última vez?
— O mesmo projeto, na verdade. Uma continuação do que já comecei.
— Se puder, tente vir às quartas-feiras. No meio da semana sempre está
vago.
— Então se eu vier toda semana não vai pesar pra você?
Mas que conversa adorável, o affair estava ficando cada vez mais real. Skip
me puxou para seu lado do balcão. Eu ri. Era engraçado ficar no lugar dele.
Ele abriu a tela de reservas e digitou meu nome na quarta-feira seguinte e
depois abriu uma caixinha que dizia “reserva recorrente” e meu nome
preencheu todas as quartas-feiras do calendário. Ele baixou a tela para me
mostrar que as quartas-feiras não tinham fim, e isso significava muito sexo
com Davey.
— Obrigada – respondi. – É muito gentil de sua parte.
— Espero que esteja conforme você deixou.
Ela voltou com uma bolsa de pano do mercado dos produtores locais nos
ombros. Eu não estava com fome e perdi a paciência.
— Você não terminou de contar sua história – eu disse, categórica.
— Ah, eu sei – respondeu ela, vasculhando a bolsa com timidez. Era
estranho ver aquele olhar brincalhão num rosto velho; deixei um bilhete
mental para mim mesma, não aparentar timidez nos próximos cinco anos.
Como um mágico com a cobra, ela vagarosamente tirou da bolsa um cinto
preto de couro. O cinto.
— Quem de nós duas vai usar? Você escolhe.
Gargalhei, não consegui me conter. A expressão em seu rosto mudou.
— Você queria detalhes. Detalhes pra quê? Pra você voltar pra casa e
encontrar seu marido e filho e fantasiar sobre mim e Davey enquanto se
acaricia pelos próximos vinte anos?
Fiquei muda. O que ela queria que eu fizesse, implorasse? Eu imploraria.
Mas ela emendou um discurso retórico.
— É ótimo fantasiar e até uma certa idade pega bem. Mas aí você precisa ter
as experiências vividas ou vai pirar. É o que mais acontece: demência, perda de
memória, Alzheimer; sobretudo com as mulheres. As fantasias consomem as
mulheres até que não conseguem mais juntar lé com cré.
— Será que essas coisas são… genéticas? – perguntei, já meio debilitada.
— São. De geração para geração.
Ela tirou da bolsa um frasco de vidro com dois cálices.
— Você acha que esses sonhos de uma noite de verão não fazem mal a
ninguém – e me entregou um dos cálices –, mas fazem. Mal pra você e pra
todo mundo à sua volta. Saúde.
Ela brindou comigo e nós entornamos ao mesmo tempo, tequila, mas não
tinha como eu ter um lance sexual com ela, se essa era a insinuação. Não havia
qualquer atração entre nós. Inclusive entrei em pânico ao imaginá-la com o
cinto a essa altura do campeonato, aos sessenta ou sei lá quantos anos tinha.
Ela nem tinha cintura para esse cinto. Talvez concordasse em responder só
uma das minhas perguntas. Qual delas? Ele fazia barulho quando gozava? Não.
O que ele mais gostava no sexo? Não, muito ampla.
Ela me observava, braços cruzados.
— Você quer a verdade nua e crua? Posso te contar tudo. Tudinho. Mas talvez
eu não queira. Talvez não esteja interessada em aumentar ainda mais seu
frenesi sexual.
— Não sei se eu chamaria isso de…
— Tá – interrompeu ela –, você está totalmente presa nisso. Então, o que
deseja fazer é voltar para a realidade de algum modo. De qualquer jeito. Ele
me perguntou se eu conseguia me movimentar como fiz no vídeo, e foi isso
que aconteceu em seguida. Você quer usar o cinto ou uso eu?
Ela esbravejava como uma pessoa que ordena que você aceite Deus. Me
lembrei do meu penhasco de estrogênio e da minha avó e da minha tia; a
teoria de Audra era assustadoramente semelhante à do meu pai – ou ambos
eram loucos ou a louca era eu por não me agarrar à mão que ela estendia para
mim. Podia ser a última chance. Ela balançou o cinto, impaciente.
— E se eu – como foi mesmo que ela disse? – me – gritei a palavra sem
querer – acariciasse… enquanto você me conta tudo. – Não tinha como eu me
rebaixar mais. Ela ficou animada como se enfim eu tivesse dito alguma coisa
interessante.
— Você já fez isso antes? Costuma fazer com suas amigas?
Deus, não, respondi.
Ela desligou a luz e olhou para mim deitada na colcha rosa. Serviu-se de
mais uma dose. Me perguntei se ela já tinha saído com mulheres; sua intenção
parecia ser mais de autoajuda do que sexual. Ela se escorou na parede e deu
um gole no cálice.
— Aí eu dancei como eu tinha dançado no vídeo pro meu ex-namorado,
toda nua, mas com o cinto.
Aguardei para ver se ela ia dançar, mas não dançou, graças a Deus, então
fechei os olhos e lambi minha mão, ação desnecessária.
— Ele disse assim “Faz aquela coisa que você fez no final. Com a parede”.
No final eu caía e me apoiava na parede com as duas mãos. E assim fiquei, nua
e de costas pra ele, as mãos acima da cabeça apoiada na parede. Ele ficou em
silêncio, acho que só observando, e aí bem devagar senti que ele estava vindo
na minha direção. Ele estava muito, muito nervoso. Queria agir do jeito que
achava que deveria, provavelmente com agressividade, bem machão, mas senti
que ele estava tremendo. Então me virei e coloquei meus braços sobre ele e
ficamos assim, nus e separados pela ereção dele, e aí começamos a nos beijar.
Foi muito estranho ouvir essa história por ela porque era eu quem deveria
estar contando para mim mesma. Ela pôs cada imagem na minha cabeça para
que eu nem precisasse pensar. No começo me masturbei de modo cordial – do
jeito que eu achava que as mulheres costumavam fazer –, mas logo cedi,
enrijeci meu corpo à la rigor mortis e deixei a mão frenética. A primeira vez
que gozei, depois que ela descreveu Davey lambendo faminto sua buceta, fez
uma pausa que me deixou desconcertada – ela está esperando eu me recuperar?
eca –, mas prosseguimos. Virei de bruços como sempre faço quando estou
imaginando que enfio meu pau em alguém. Já fui Davey tantas vezes,
transando não só com Aaron Bannister, mas com tantas mulheres e homens
diferentes; agora posso ouvir o relato de como foi essa sensação. Ela se sentou
na beirada da cama e começou a falar baixinho. Contou como o pau dele
preenchia sua boca e de como às vezes ele ficava confuso, querendo colocar o
pau em sua boca e nos peitos ao mesmo tempo e que isso era uma delícia; e
diferente do pau de Davey, o meu podia estar em dois lugares ao mesmo
tempo, aumentei a velocidade do movimento e já ia ter mais uma ereção
quando percebi que a cama estava se mexendo de leve, ritmada.
Tá, ela ficou excitada, reação humana. Ainda assim, brochei. Não fazia parte
do nosso acordo e achei nojenta aquela masturbação em dupla. Mas ela
continuou contando a história, cada vez mais sem ar e, depois de um ataque
de constrangimento, voltei a me masturbar. Não tinha como parar e a cama
absorveu o pior da situação. Um colchão Tempur-Pedic.
Ela se descreveu cavalgando em Davey e contou que ele saía da escola na
hora do almoço para isso, que era insaciável, que eles ficaram se roçando no
quarto de hóspedes durante uma festinha onde Irene – sua melhor amiga, mãe
de Davey – estava no cômodo ao lado e essa lembrança em particular a deixou
comovida, em silêncio, só respirando com avidez ali deitada ao meu lado,
enquanto sua mão trabalhava dobrado; me virei para ela, não tive como evitar,
ela estava tão excitada e quente e próxima, então ela se agarrou a mim e me
agarrei a ela, sentindo seus peitos grandes e macios sobre os meus, os mesmos
que Davey sentira. Queria beijá-la? Não tinha como, pelo alinhamento dos
nossos rostos. Dei umas linguadas enquanto tirava sua saia e calcinha e ela
disse Por favor, por favor, como quem implora fazendo beicinho, uma besteira
que funcionou; um rebaixamento. Eu nunca tinha tocado num corpo tão
grande e roliço; agarrei suas coxas, depois sua bunda grande, depois as coxas
novamente; espalmei sua buceta inchada, apertei seus brações – e parecia que
minhas mãos sempre queriam mais daquela carne toda. Sua pele estava
ficando fina por causa da idade, parecia casca de banana, mas não era
desagradável, era uma delícia, uma irrigação quente e aveludada. Bem, isso me
deixou sem chão, pensei. Quem diria.
O que eu achei que era a barriga, na verdade era uma continuação de sua
buceta, como nas bonecas Kewpie. Eu não queria que ela percebesse que eu
estava meio que em outra dimensão, tentando sentir o roçar da buceta-barriga
sobre meu clitóris, e isso me fez descobrir que os peitos dela, pelo modo como
pendiam, irmanavam tudo. Não se tratava de buceta/espaço/peitos – era uma
buceta ilhada por peitos. Um corpo que era só peitos. Vislumbrei colocar
aquele peito todo na boca, só pela emoção de falhar em tentar contê-la, tudo
transbordava e se derramava. É claro que seria muita covardia, mas o desejo
acende novos caminhos neurais, como se o sexo, o conceito do sexo total,
estivesse prestes a ser mapeado pela primeira vez. Porque, apesar de tudo que
aconteceu nesse quarto, o corpo dela foi o único corpo com que estive desde
que conheci Harris. Foi como voltar a superfície depois de nadar às cegas por
quinze anos. De repente, consegui me reorientar em relação à terra, avistar
onde estive esse tempo todo, e era um lugar totalmente diferente do que eu
pensava estar.
Eu queria deslizar meu dedo por sua caverna molhada – só para senti-la,
nada mais que isso –, mas pouco antes de me abaixar naquela direção me
lembrei de um item que constava no site WebMD – a caverna não estaria tão
molhada, por causa da idade dela. Lamber sua buceta era íntimo demais e
lamber minha mão parecia grosseiro, então numa ação tão rápida quando
involuntária, mergulhei os dedos na minha própria buceta – profundamente –
e levei o que eu tinha para ela. Fiz isso algumas vezes, meus dedos indo e
voltando numa síncope de provocação e agora, depois de tanto investimento
que fiz, eu queria fazê-la gozar. Ia ser fácil, ela estava quase lá. Esperei até que
ela estivesse quase se contorcendo para começar a fazer movimentos
circulares no seu clitóris. Não foi fácil; eu tinha esquecido como algumas
mulheres demoram para gozar! Fingi ser o Davey jovem, ainda aprendendo.
Me perguntei se ela tinha algum costume de usar o vibrador, se essa seria uma
tarefa tola de minha parte, mas o dia estava começando a raiar, a respiração
dela ficou mais intensa de repente e mais intensa, até que finalmente deu um
pinote e socou a cama. Ela ficou imóvel, mas estava tendo arrepios.
Deitadas de costas, estávamos ofegantes. Um dos meus braços na cintura
dela. Minha mente girava. Seria muito estranho depois? Sentimentos
entrariam na jogada? E se ela se apaixonasse por mim? Um passo de cada vez.
Aja com gentileza.
— Você estava certa – sussurrei. – Era melhor viver algo real do que…
— Nada? Transar comigo era melhor que nada? – disse ela, quase
esbravejando, mas riu, pegou a blusa e saltou da cama.
Pisquei os olhos e me sentei na cama, observando enquanto ela ajeitava a
saia. Começou a calçar o sapato. Não ia se apaixonar por mim; que tolice.
Enquanto a névoa pós-coito se dissipava, recordava a mulher que tinha me
oferecido o cinto, servido o chá de pera, me vendido a colcha – e desde o
começo a via como uma pessoa essencialmente triste, digna de pena. Mas
aquela cama linda em sua sala… é provável que fudesse e se acariciasse e
beijasse as pessoas sobre aquela cama toda hora. Ela não estava presa no
passado – depois do encontro com Davey, seguiram-se muitos outros. A pessoa
triste só existia na minha cabeça.
Meu rosto ficou vermelho. Não era só Audra que eu tinha levado para o
brejo; mas todas as mulheres com idade suficiente para ser minha mãe.
Inclusive – em pouco tempo – eu mesma.
Apuros, pensei, avistando minha situação. Um enigma de difícil solução. Um
paradoxo. Não parecia possível levar alguém para o brejo (uma das mãos a
puxar pelo colarinho), mas também não parecia viável se jogar pela janela
dentro de um saco de lixo.
Observei enquanto Audra pegava um copo d’água e arrumava o cabelo com
uma escova que tirou da bolsa. Que maravilha ter uma escova na bolsa.
— Você está linda – disse, da cama, e Audra respondeu com um sorriso,
como se eu fosse uma garotinha confusa. Dever cumprido. Ela estava pronta
para ir para casa.
T inha uma caixa de pizza abarrotando a geladeira, mas fora isso tudo
estava exatamente igual como quando saí no dia anterior.
— Fizemos uma festa do pijama! – disse Sam, erguendo os braços como
quem faz tchã-ram. – E assistimos metade de um documentário sobre jazz!
Abracei e beijei elu, cheirei suas bochechas. Como essa criança se encaixaria
na minha nova vida? Sem falar nesse marido. Devagar e sempre. Sem deixar
sequelas.
— Conseguiu trabalhar bastante? – perguntou Harris.
Esqueci de me sentir culpada quando entrei pela porta da frente; continuei à
espera da culpa, mas ela não apareceu. Aquela havia sido uma questão de vida
ou morte, não um casinho, uma escada estendida para mim.
Enfiei a cara no cabelo de Sam e sussurrei, Sim, foi muito produtivo.
Harris saiu para correr e achei curioso, porque ele não corre. Quando
voltou, fui para a academia-porão. Levantei quarenta quilos, sustentando nos
quadris, abdômen trincado, calcanhar no chão. Dança consumada, mas é claro
que eu ia continuar fazendo ginástica. Precisava de força, dos meus ossos, para
conseguir realizar os dez milhares de coisas na metade futura da minha vida.
No espelho, meus olhos severos, obstinados.
Vai, bandida, disse Brett.
Quando Sam já estava dormindo, Harris me chamou na mesa de jantar para
mostrar algo no computador dele. Achei que ia me mostrar alguma música,
uma gravação nova e fiquei entusiasmada porque me senti importante.
Mas não era uma gravação, era eu que estava na tela, dançando num vídeo
que parecia ter centenas de anos mas que havia sido gravado na noite anterior.
— O que é isso – ele se aproximou da tela – que você está vestindo?
— Uma camisa xadrez?
— E na parte de baixo?
Fiquei muda, meus quadris balançando pareciam sórdidos. Música deixa
tudo aceitável.
— Calcinha.
Fiquei assustada; foi assustador esse flagrante. Em seguida, ele perguntaria
para o que ou para quem era aquela dança. E foi o que aconteceu. Empinei os
ombros para trás. Espírito andarilho.
— Imagina se os pais dos amigos de Sam vissem isso? Ou os professores?
Fiquei de queixo caído.
O que as pessoas vão pensar? Era o que ele queria saber? Eu era uma bola de
luz pulsante e amorfa tentando compreender essa forma humana e maternal.
As roupas que eu uso, a qualquer hora ou ocasião, jamais fariam concessão aos
pais dos amigos de Sam. Eu ri e disse “Você pode tirar a stripper de um bar,
mas…” O final da frase não fazia sentido, mas ele entendeu. Não pedi
desculpas.
— Será que você não está tentando controlar minhas roupas?
— Sério? – disse ele. – Você acha que o problema aqui é esse?
— Ué, o corpo é meu.
— Jesus! Claro, “seu corpo, suas regras”, eu sei, mas não acha um pouco
inapropriado, afinal você é casada? Um pouco desrespeitoso?
— Desrespeitoso com quem?
— Comigo. Sobretudo por causa… – ele se deteve e entendi o que ele queria
dizer. Se na intimidade eu também estivesse dançando de calcinha para ele,
transando com ele, tudo bem, mas como eu não estava fazendo nada disso,
aquele vídeo soou mais doloroso. Ele não disse isso, contudo. Sobretudo por
causa… de tudo foi como ele terminou a frase. Que alívio. Teria sido difícil
ignorar os sentimentos do meu camarada, meu parceiro – mas de um homem
controlador? Arregacei as mangas.
— Tá, mas olha só, eu estava pensando que… – puxa, eu estava me
expressando como a criatura enlevada que vagueia pelas ruas. Essa criatura era
um súcubo, determinada à destruição, ou meu verdadeiro eu? De um jeito ou
de outro, tarde demais, a raiva tomava conta de mim. Levantei a voz. – Eu
estava pensando que vivo num sistema que é desrespeitoso comigo, com
pessoas como eu…
— Pessoas como você? Que tipo de pessoa é essa?
Tentei pensar num jeito de me resumir que não fosse incriminatório nem
desse início a uma guerra de gênero.
— Uma Manobrista – respondi, usando as palavras dele.
Ele revirou os olhos.
— Tá, até aí nenhuma novidade.
— A novidade é que cansei de tentar ser outro tipo de pessoa. Uma Motorista
– respondi, cuspindo essa palavra. – Não tenho mais vergonha disso. – Mas na
verdade eu tinha sim, muita vergonha; abri o verbo, dei o grito de guerra.
— Tenho que ser outro tipo de pessoa para ser boa? Para merecer prazer?
Nunca devo ter desejos? E sempre me sentir envergonhada?
Não! Não mesmo! Foi só o começo.
— Você consegue entender que só me restam três anos antes da minha
queda de libido? Sua testosterona funciona assim… – desenhei no ar uma linha
horizontal. – E meu estrogênio funciona assim… – desenhei o penhasco,
raivosa, picotando o ar com a palma da minha mão; furiosamente, na verdade,
eu estava FURIOSA PRA CARALHO com essa injustiça. – Você tem todo o tempo do
mundo, mas eu estou prestes a morrer aqui, nessa casa!
Harris olhava para mim como se eu fosse louca, maníaca. Parei de falar, mas
minhas palavras não paravam de soar. As consequências eram muitas, e
assustadoras.
— Se você tivesse dito que fiz algo que magoou você – dizia ele, bem
devagar, segurando a lateral do rosto como se eu tivesse lhe dado um soco –,
eu teria no mínimo evitado fazer novamente.
— Eu tenho evitado isso o tempo todo – respondi. – Ao longo de todo o
casamento.
As palavras voavam da minha boca como pássaros.
A resposta dele foi direta.
— Vai se fuder, você desperdiçou o que teriam sido os melhores anos da
minha vida – disse ele. – Da única vida que eu tenho.
Ele estava certo. Do que eu estava falando? Nossa antiga devoção tomou
conta do meu coração de repente, uma queimação dolorosa. Por que eu
estava arriscando meu companheiro de longa data, meu lar, por uma energia
inominável?
O pânico deu um salto na minha garganta.
Imediatamente entendi seu ponto de vista, oitenta por cento dele, no total.
Perdão, perdão, me perdoa, respondi, eu te amo, por favor, me perdoa, como se
tentasse enrolar de volta um rolo inteiro de papel higiênico. Mas não tinha
como voltar atrás; a merda estava feita.
Ele fechou o computador, foi para o quarto dele e fechou a porta.
Deitei na cama tremendo de frio e não me cobri porque não tinha forças para
puxar as cobertas. Consegui ouvir Harris sussurrando no telefone; estava
contando o que aconteceu para alguém. Imaginei que me levantava daqui
agora mesmo, saía pela porta da frente e encontrava todas as mulheres da
vizinhança que também estavam deixando seus lares. Todas nós corríamos
para o mesmo campo, um lugar que não tinha sido previamente combinado
entre nós, mas que parecia um ponto de encontro implícito para quando o
momento crítico chegasse. Corríamos feito cavalos, mas não éramos cavalos,
então depois dos abraços de boas-vindas não havia mais nada a ser feito na
grama. Todas começavam a olhar seus celulares à espera de uma ligação de
seus parceiros, mas nenhum deles havia se manifestado ainda. Cedo demais.
Estávamos fora de casa há pouco tempo. Então, em breve, já seria um milhão
de mulheres à espera de uma ligação de seus parceiros, que precisavam delas,
mas que logo entrariam em pânico e sentiriam culpa, se sentiriam dilaceradas,
nosso modus operandi. Começar a revolução aqui, agora, nesse gramado? Ou
voltar para casa, voltar para o curral, usar a escova elétrica, se sentir sombria e
aprisionada? É claro que ninguém tomou uma decisão porque já estávamos
todas em casa, não num campo. Não havia um ponto coletivo de inflexão. A
maioria de nós nunca faria nada muito diferente. Nossos anseios e raivas
silenciosas seriam sufocados e passados para nossos filhos, eles nos odiariam
muito por isso e na vez deles tentariam fazer as coisas de outro modo. As
grandes mudanças sempre aconteceram assim, não ao longo de uma vida, mas
em intervalos de gerações. Caso você quisesse de fato fazer alguma mudança,
bastava crer em si mesma e no seu bebê; tinha que se permitir renascer
inteiramente dentro de uma outra vida. É claro que à espreita estava o perigo
de arriscar tudo, de acabar com tudo, por nada. Como eu tinha acabado de
fazer.
PARTE TRÊS
CAPÍTULO 19
— Mas com quem ele estaria tendo um caso – perguntou Jordi – já assim, de
cara?
— Com Caro.
Minha mente foi tomada por essa ideia e senti um alívio estranho, uma isca a
ser mordida.
— Uma pop star de vinte e cinco anos? – gargalhou ela. – Peraí, esse é o tal
cinto?
— É. Estou usando para não esquecer por qual bifurcação da estrada devo
seguir. Ela tem vinte e oito anos e ele passa muito tempo com ela. Muito
tempo. Tudo bem, também; ninguém sabe melhor do que eu como essas
coisas acontecem; provavelmente tem um lado dele que só vem à tona com
ela.
Isto é, o lado do pau. Por que ele não teria o mesmo direito de abrir espaço
para essa transformação por meio do sexo? Todo mundo tem esse direito; uma
democracia psicossocial. Sequei os olhos e assoei o nariz.
— Dá um tempo pra ele – disse Jordi. – A primeira reação não é a reação eterna.
– Essa era uma citação de um livro junguiano de autoajuda que repetíamos
uma para outra quando nossos parceiros estavam putos da vida conosco.
— Ou sei lá também – respondi –, as coisas só vão piorar. Esse é o primeiro
momento depois da queda do avião, mas antes do plantão com as últimas
notícias.
Jordi conhecia a história da vez que fiquei ouvindo o rádio com meu pai.
— Sempre tem a defasagem de tempo – disse ela.
— Exato.
D uas semanas se passaram desde que eu disse aquelas coisas horríveis. Foi
uma briga diferente das outras; não bastava o orgulho nem que um de
nós acabasse pedindo desculpas e aí lágrimas, beijos e fazer as pazes. É
plausível que eu quisesse dizer todas as coisas horríveis que disse e nós dois
sabíamos disso. Quando imaginei que voltaria a seguir a vida normalmente,
“superando meus anseios”, uma desesperança familiar tomou conta de mim.
Mas me estabelecer numa vida nova e mais solta como uma mãe divorciada
soava como uma punição, a história de outra pessoa. Quanto a Harris, nem
conseguia olhar para mim. Quando tínhamos que fingir, na frente de Sam,
percebi que na verdade ele estava olhando para minha testa ou para minha
bochecha, para qualquer parte do meu rosto que não conseguiria devolver o
olhar. Um beco sem saída. Não era um ambiente saudável para uma criança,
mas ainda tínhamos umas duas semanas para reverter o futuro de Sam como
um viciado em drogas. Duas semanas para que um de nós tomasse alguma
providência.
— É uma vida de ilhéu – disse Jordi –, esse que é o problema. Ninguém
consegue espiar o que se passa no relacionamento dos outros, e assim
seguimos vagando no mundo das trevas. Pensa só na tecnologia! Só avança tão
rápido porque as pessoas reúnem seus conhecimentos. Software de código
aberto e essas coisas todas.
Concordei considerando as palavras que eram mais familiares para mim, e
sorrateiramente fiz uma busca por “código aberto” no celular.
Um software público desenvolvido de forma colaborativa. Senti esperança. Seria
possível abrir o código-fonte de uma crise conjugal? Fui descendo a página. E li
criação mais rápida de projetos (ótimo, quanto mais cedo melhor), apoio quase
total da comunidade (por favor!), facilitação no gerenciamento de licenças (tá, não se
aplica), sem que o usuário que obrigado a trabalhar com um único fornecedor
(Harris).
Valeu a tentativa.
Naquela noite, mandei mensagem para todos os meus amigos casados, na
faixa dos quarenta ou cinquenta anos (também para alguns amigos mais
jovens, para garantir certas coisas). O que você vai fazer quarta-feira?,
perguntei. Marquei com um por um e enviei o endereço do Excelsior. Quarto
321. Vai ter lanche.
— Uau, cortina linda. Que flores são essas? – perguntou Nazanin, quarenta e
nove, observando o quarto.
— Dálias e peônias – respondi, correndo para servir as bebidas que estavam
na mesa com tampo de mármore; outras três mulheres ainda me visitariam
hoje.
— Você está gravando?
Nazanin uma vez permitiu que eu gravasse uma conversa cotidiana entre ela
e a babá quando eu estava grávida e não conseguia compreender a natureza
dessa relação (embora na época do HFM e da Jess, nossa babá maravilhosa, essa
inquietação tenha se dissipado).
— Não estou gravando. Aceita um prosecco? – perguntei o que ela queria,
em termos de relacionamento, se pudesse escolher ter qualquer coisa.
Supondo que a maioria das pessoas levava a vida como Cassie, eu precisava
saber se meus desejos eram diferentes ou mais ousados que das outras
mulheres. Todo mundo estava moendo, moendo, moendo?
— O que eu ia querer… teoricamente?
Nazanin era uma sapatão filha de uma mulher convencional e tinha um
casamento de vinte anos.
— Esqueça a Kate. Imagine que não há como perdê-la ou magoá-la.
— Tá, vamos lá… eu queria ter mais alguém além da Kate, em outra cidade
– disse ela, olhando ao redor, como se o quarto pudesse estar grampeado. –
Um homem trans ou um tipo bem masculino que nem eu.
Assenti. Não esperava ouvir isso.
— Um oitavo de mim provavelmente é um homem gay. Mas eu não queria
que essa parte de mim estivesse à frente da vida, sabe? Posso só ficar me
masturbando com fotos de Lore Estes.
Lore Estes; o livro da mesa de centro. Nunca abri esse livro, por algum
motivo presumi que a artista já tivesse morrido. Respondi que um oitavo
parecia muita coisa, no tocante ao desejo.
— Provavelmente é um dezesseis avos – disse Nazanin. – Não vale a pena o
risco.
1/16 = não vale o risco. > 1/8 = talvez valha, digitei na sequência, tirei o cinto
da bolsa e o segurei com as palmas das mãos como uma jiboia. Minha parte
oculta não dizia respeito à orientação sexual, como a de Nazanin – como você
a chamaria?
Shareen, quarenta e sete, foi a última entrevista oficial do dia. Ela era casada
com um homem muito importante, Ari, advogado trabalhista.
— Mas Ari é meu segundo marido – complementou ela. – Agora vira.
Ela estava fazendo uma massagenzinha em mim, drenagem linfática.
— Mas não é preciso odiar o parceiro para se divorciar?
— Não. Não tinha nada de errado com o Steven, meu primeiro marido. Eu
só não me conhecia quando o conheci. Tinha vinte e quatro anos.
Eu tinha trinta anos quando Harris e eu nos conhecemos. Eu me conhecia
bem o suficiente para saber que era excessiva demais para uma pessoa séria se
comprometer comigo. Então mudei, amadureci e me saí muito bem. No
geral.
— Steven. Eu nunca ouvi você falar esse nome.
— Quase nunca penso nele.
Então você pode se livrar completamente de alguém, sem deixar rastros.
Como num filme de terror.
— Sabia que você tem uma bola gigante na garganta?
— Literalmente? – perguntei, apertando o pescoço.
— Não. Isso é raiva.
Raiva, escrevi no meu bloco de notas. Jordi chegaria em breve.
Raiva. Sempre perdi a coerência, a capacidade mental, no tocante à raiva
arraigada, isto é, a raiva dos pais. Minhas mãos flutuaram sobre o teclado do
celular, perplexas. Uma bola murcha escarafunchando as linhas dos bolsos
vazios: nada tenho.
Talvez o lance fosse esse.
Nada, o vácuo, impossível de ser dragada ou articulada. Quem sabe algo marcante
– um acontecimento, um trauma – a ser lembrado, superado, lamentado. Tentei ligar
os pontos entre mim e Harris, à nossa situação, mas olha quem acabou de
chegar.
Jordi chegou reconhecendo todas as coisas que eu descrevera nos últimos seis
meses. Tudo era ainda mais lindo do que imaginara.
— Mas essa luz… por entre as cortinas…
— Que brilho, né, um pôr do sol perpétuo.
— Ainda tem esse… sabonete. Como pode cheirar tão bem? – perguntou
ela, ensaboando as mãos.
— Cumaru.
— Gente, e essas toalhas. Você se importa se eu tomar um banho?
Em meio ao vapor, contei a ela sobre meu dia em código aberto. Não tinha
certeza se havia aprendido alguma coisa, exceto que meus amigos ficavam
muito confortáveis nesse quarto de hotel. Descrevi como ficavam à vontade
para relaxar, falar abertamente sobre tudo, fazer massagem em mim e comer
biscoitos amanteigados.
— Nem imagino qualquer uma dessas coisas acontecendo na minha casa,
nem quando estou sozinha. Você, por exemplo, nunca tomou banho lá.
— Talvez você queira morar sozinha – sussurrou Jordi da banheiro, seu rosto
de lua levemente avermelhado.
Talvez. Ou talvez eu fosse aquela pessoa que passa as férias no Havaí e tem a
ideia estapafúrdia de se mudar para o Havaí para sentir que sua vida é férias
sem fim. Uma vez instalada na Big Island, descobriria que a devoção que existe
entre mim e Harris é a chave secreta da minha vida. Bronzeada e usando um
colar de flores, perderia a cabeça e entraria no campo da morte.
Jordi elogiou o azulejo do piso com estampa de estrelas e contei do dia em
que Claire e eu tentamos fazer o encaixe e da sensação de que se houvesse um
número exato de ladrilhos um portal para outro mundo teria se aberto.
— E tinha?
— Não, faltaram três. Se você olhar atrás da privada… tem três que são
verdes.
Ela escorregou, derramando água e olhou por cima do meu ombro.
— Não parece, combinam com os outros. – Eu me virei devagar, quase
assustada. – Tá vendo agora?
Sim, os ladrilhos verdes que minavam a estampa de estrela haviam
desaparecido; a forma estava magicamente completa. Alguém fez esse serviço.
Talia, trinta e sete anos, formada em história da biologia, era minha última
esperança. Ela disse que o problema não era o casamento, mas o ecossistema
social do entorno.
— A dança, por exemplo, já cumpriu uma função importante na sociedade,
danças de corte, danças campestres, danças de salão, e permitiam que as
pessoas tocassem outras pessoas que não seus maridos e esposas.
— E isso é… saudável?
— É, biologicamente é importante sentir outros braços e pernas… o cheiro
de corpos estranhos. Uma biosfera humana diversificada contribui para um
casamento saudável.
Ela disse essa última parte com exaustão, como se já tivesse usado esse
argumento centenas de vezes. Não duvido. Mas até onde eu sei, ela e o
parceiro não frequentavam bailes campestres.
Algumas práticas permanecem até hoje – a monogamia –, mas não as
microestruturas que a tornaram possível: a comunidade, a dança e sabe Deus o que
mais.
Essa foi minha última anotação, código aberto concluído. Não parecia ter
grande significado e é claro que não teria, não nesse caso. Esperei até o último
minuto para ir embora, dirigi a toda velocidade para casa. Mamãe está
chegando!
CAPÍTULO 21
E le disse que não costuma demorar tanto para retornar uma ligação, mas
sua filha tinha acabado de se casar.
— Foi um rebuliço! Casamento-viagem, sabe? Mas então, você queria
verificar umas placas, não era?
— Não precisa mais, não. Já resolvi – respondi, contando a história do
telefotógrafo e o panfleto da imobiliária.
— Mas pra que usar lente telefotográfica? Era um close?
— Não. Brian que matou a charada.
— Quem?
— Brian, seu amigo que era meu vizinho. Ele que me deu seu número. O
que trabalha no FBI?
— Você não acredita. Ele morreu.
Engoli em seco.
— Eu não soube. Meu Deus. Por acaso foi no… cumprimento do dever?
— Como assim?
— Ele tomou um tiro?
— Ah, não, não, ele tinha um probleminha nos rins. Estava há um mês e
pouco no FBI quando recebeu o diagnóstico e aí teve que sair.
Então era por isso que estava vendendo sua picape. Não estava se mudando;
estava morrendo.
Tim Yoon perguntou se eu precisava de mais alguma coisa.
— Rastrear? Tem alguém que você quer encontrar?
Respondi que não.
— Pois é, hoje em dia ninguém mais busca esses serviços, depois do
Facebook e essas coisas todas.
Naquela noite, contei a Harris sobre o telefotógrafo, o panfleto da
imobiliária, a morte de nosso vizinho. Estava contente de ter informações
importantes para compartilhar; ele ia ter que me responder… afinal, um
homem tinha morrido.
— Que tristeza. Ele era tão novo.
Cada palavra soava como um dólar que ele preferiria gastar em qualquer
outro lugar.
— Ele nem trabalhava mais no FBI – comentei.
— Faz sentido.
— Mas ainda usava o uniforme.
— Pois é. Triste demais.
Tive a impressão de que a conversa acabaria nessa hora, mas aí, por incrível
que pareça, ele perguntou qual era o valor da nossa casa. Eu não lembrava.
Corri até a garagem e voltei com o panfleto.
— Um milhão e oitocentos – disse ele em voz alta. – Bom saber. – Então ele
inclinou o corpo, estreitou os olhos. – É você?
— Sou.
— Hm. Bizarro. Ele deve ter fotografado de dentro do carro.
— Foi o que pensei – respondi. Quase uma conversa real. E havia uma
sensação estranha no ar; mas eu não conseguia identificar qual. Ele ficou
sentado, sem falar nada.
— E se você colocar esse robe – disse ele, enfim, bem sucinto.
— Meu robe? Por quê?
Ele fez cara feia, não disse nada.
— Eu doei pra caridade.
Ele se levantou. Eu já tinha matado a charada. Antes de sair da sala, ele disse
“Usa outra coisa, então”.
A porta da frente bateu enquanto eu olhava para minha cômoda. Ele tinha
acabado de sair? Vesti uma camisola curta e transparente e fiquei seminua na
sala de estar pelo que pareceu ser um ano, mas se fosse uma prova eu teria
ficado ali pelo resto da minha vida. Depois de um tempo, espiei pela janela da
frente. Ele estava sentado dentro do carro. Vou até lá? Voltei para o meu canto.
Por fim, uma batidinha na porta.
Ele não se esforçou muito para entrar no personagem, então demorei a
processar. Convidei-o para entrar, sentamos na cama. Ele pegou o telefone e
me mostrou as fotos que tinha acabado de fazer; nossos janelões sem cortinas
brilhavam no escuro e minha camisola estava totalmente translúcida. Sem
explicação, fiquei molhada, mas ele estava impassível. Coloquei as mãos sobre
o colo.
— O que mais você gosta de fotografar? – perguntei ao telefotógrafo.
— Sobretudo cenas da natureza.
— Você já foi ao Zion National Park?
— Nunca.
— Eu vou passar por lá – respondi. – Em breve, vou cruzar o país de carro. –
Se eu estava fazendo meu personagem do panfleto da imobiliária, então eu
ainda não tinha feito a viagem. Não que a precisão histórica tivesse alguma
importância nessa hora.
— Se você fosse minha esposa, eu nunca ia deixar você dirigir para tão longe
sozinha.
— Ah, não? Bom, tô a fim de um desafio, de uma aventura.
— Posso oferecer essa aventura.
Mas eu ainda não tinha certeza se queria.
— Ele nunca vai perceber a diferença – complementou.
— Ele quem?
— Seu marido.
Desabotoou a calça e seu pau caiu com peso. Vamos lá. Ajoelhei, fechei os
olhos e comecei pensando no telefotógrafo, que na minha cabeça era asiático,
como Tim Yoon. Ele disse alguma coisa que não entendi.
— Como?
— Você é safada pra caralho, hein?
— Pra caralho…?
Ele deu um tapa na minha bunda. Uau. Estava mesmo comprometido com o
papel. Estava até com uma aparência diferente, a boca meio aberta e uma
certa maldade nos olhos. Ele me levantou e me jogou na cama. Ah: ele estava
bravo comigo. E com aqueles olhos abertos e tensos, não pude fechar os meus,
eis um problema – como eu ia conseguir pensar com ele bem ali na minha
frente? Na verdade, eis uma crise, pois de repente ficou claro que tudo
dependia disso; eu tinha que trepar com o telefotógrafo sem fechar os olhos.
Com hesitação, passei as mãos nos pelos grisalhos de seu peito largo; ele
mudou de posição e um cheiro acre emanou dos lençóis, como um tapa na
cara. Esse homem, esse fotógrafo de pau duro, estava presente, não era uma
fantasia. Tentei desesperadamente recordar o que poderia estar fazendo caso
essa cena estivesse acontecendo na minha cabeça. Ele se masturba no carro,
mostra fotos, bota o pau pra fora – o que você faz agora? Você, a safada pra caralho.
Eu conseguia ouvi-la, seus pedidos idiotas, seus ruídos de lamento, primeiro
na minha cabeça, depois saindo das profundezas da minha garganta feito alma
sintonizada. Esses sons dispararam o arqueamento e a contorção do corpo e a
pronúncia de palavras como Me fode. Me fode, por favor, isso, vem, me fode. Assim
como aconteceu com Audra, uma combinação do salgado e do doce entre o
corpo e a mente que originou uma coisa totalmente nova, feito alquimia. Ou
sexo. O fotógrafo do cartão da imobiliária estava reagindo a tudo isso, ele
meteu em mim e essa nova dorzinha profunda, que não era um pólipo ou um
cisto, me encheu de esperança. A coisa foi tomando novas proporções e
ficando cada vez mais e mais obscena e desenfreada e tudo parecia possível
com esse cara, esse fotógrafo asiático que mal me conhecia. Eu só conseguia
pensar que Harris ia ficar muito envergonhado depois que gozasse.
Mas não – ele não ficou envergonhado e ele não era Harris. Passou a cueca
no meu peito para limpar o esperma, deitou e me envolveu em seus braços.
Mil anos se passaram desde que estive nesses braços pela última vez. Contou
de todas as coisas que ele fotografava além de casas e natureza. Ele fotografava
carros para anúncios. Tirava retratos de atores e modelos. Fazia fotografia still
para gravações de filme pornô e às vezes fotografava animais de estimação.
— Nós acabamos de adotar um cachorro – comentei.
— Qual raça?
— Misturado.
— Vira-lata?
— Acredito que sim. É mais do meu marido e de minhe filhe.
Eu esperava não estar indo longe demais. Depois de uma pausa, ele disse
que gostava mais de gatos e adormeceu. Atravessei o corredor e fui para
minha cama.
*
Quando liguei para Jordi, para contar da reviravolta surpreendente da noite
anterior, ela suspirou profundamente de alívio e disse: o sexo da reconciliação
é o melhor de todos.
É mesmo. É mesmo, concordei. Encostei minha testa na parede da garagem.
Eu achava que significava algo mais, algo que ainda não tinha nome.
Andei em círculos; uma bolha suspensa no óleo.
Fixei mais uma vez o panfleto da imobiliária em cima da minha mesa e
fiquei analisando a mulher de robe que deu início a essa história toda.
O “eu provisório” junguiano era seu verdadeiro eu. Assim como a lagarta ou
o girino, ela não foi feita para durar eternamente, mas talvez ajudasse a
originar algo novo.
Dirigi até a casa de caridade, onde havia doado onze sacos pretos de lixo – os
dez primeiros já eram águas passadas, mas o décimo primeiro estava perto da
porta da frente até algumas semanas atrás. Quais eram as chances de o robe
estar no décimo primeiro saco? Procurei na seção Pijamas e Lingerie. Olhei a
seção infantil, porque era pequeno, e a seção Vestidos só por desencargo.
— Talvez não esteja nessa loja – disse um funcionário. – As doações se
perdem. Pode estar em qualquer casa de caridade da Califórnia. Ou o mais
provável é que alguém já tenha comprado.
— Você acha então que é impossível de achar? – perguntei, olhando para
uma dupla de leões de cerâmica.
— Ah, com certeza.
— É isso aqui? – disse outro funcionário, segurando um cabide de plástico
com meu robe.
J ordi ficou perplexa. Pela primeira vez em muitos anos, sentiu vontade de
fumar um cigarro e fui com ela até a lojinha da esquina, onde comprou um
maço de American Spirits amarelo. Depois de exalar algumas rajadas de
fumaça pela janela de seu estúdio, começou a me interrogar.
— Você pode fazer tudo que quiser uma vez por semana?
— Ele também pode.
— Mas vocês não vão se divorciar?
— Não. Quer dizer, não falamos sobre isso.
Ela andava por toda a imensidão da sala, ziguezagueando entre suas
esculturas.
— Então você conseguiu. Foi honesta.
— Olha, fui honesta com o telefotógrafo primeiro. Digamos que eu
trapaceei.
— Sim, sim; foi sua Terceira Coisa.
Depois de emplumar mais fumaça, explicou o conceito quaker de Terceira
Coisa.
— É um assunto que não pertence a nenhuma das partes. A alma, em geral
muito tímida, consegue se comunicar mais facilmente por meio dessa Terceira
Coisa, de viés.
Malditos quakers. Inventaram as barras de chocolate, o absorvente noturno
e agora mais essa. A Terceira Coisa persevera? O telefotógrafo poderia virar o
três, fazendo de nós um trisal? Eu estava me agarrando a tudo, precisava que
algo me amparasse. O sonho do casamento era uma falácia, mas era antigo e
familiar, como Papai Noel. Precisava ser substituído. Muito embora até hoje
nada tenha substituído o Papai Noel, só a realidade, que sempre se impõe.
— Como você vai conhecer pessoas novas? – perguntou Jordi. Olhamos uma
para a outra sem saber a resposta. – Vai sair andando pela rua? Ah, que surreal!
Não é surreal? Por que você está tão calma?
— Acho que ainda estou em choque – respondi, olhando para minhas mãos.
— Com quem você gostaria de transar? Fala um nome.
— Comigo não é assim – disse, franzindo a testa. Mas meus olhos deslizaram
para o cartão que Jordi havia pregado na parede. Era de uma exposição que ela
tinha participado há mais de um ano; eu estava fora da cidade.
Jordi riu.
— Lore Estes?
Depois de conversar com Nazanin sobre as fantasias dela, enfim abri o livro
que ficava na nossa mesa de centro.
— Ela não, mas outra machona sim.
— Boto fé – disse Jordi, despregando o cartão da parede. – Queria saber
quem o Harris vai pegar. Ele é tão normalzinho… será que não vai se
apaixonar e casar de novo?
Olhei ao longe. Por alguma razão, o modo como ele havia dito igualdade
entre as nações me fez pensar que ele ia sair com várias mulheres, mulheres de
várias nações. Cheguei a me perguntar se tudo isso poderia não ter acontecido
se tivéssemos um projeto juntos, algo em vista para o futuro. Sem isso, tudo se
acabou. Ou talvez esse salto tenha sido preocupantemente adiado pelo meu
trabalho; talvez tivesse acontecido muitos anos antes se eu não estivesse tão
satisfeita com os riscos artísticos que assumi.
— Olha, se Harris está saindo com alguém, você também tem que sair –
disse Jordi.
— Ele não está! – garanti. – É só a sensação, a ideia de liberdade. Muito mais
sutil.
A sutileza perseverou por quase dois meses. Ele passava as noites de segunda
no escritório e eu às quartas no Excelsior. Tínhamos cuidado um com o outro
como se tivéssemos sobrevivido juntos a um acidente de carro; e, a cada
manhã, acontecesse o que acontecesse, eu abria os olhos e pensava: posso
fazer tudo que eu quiser. Era muito parecido com tantos sonhos que tive, mas
agora eu acordava nos sonhos, e não dos sonhos.
Até que uma noite, Harris esperou Sam adormecer, serviu-se de uísque e,
nervoso, me contou que tinha saído com alguém na noite da última segunda-
feira. Para jantar.
Respirei fundo.
— Foi com Caro?
Ele guinchou cuspindo o uísque.
— Ela tem vinte e oito anos! Tá mais próxima de Sam do que de mim, ela…
— Desculpa. Eu pirei.
Nem em um milhão de anos Harris teria considerado Caro; eu sempre
soube disso. Ela era intensa demais e sem limites. Eu era a pessoa que
precisava alucinar nos chacoalhões e perigos de um caldeirão e, por um breve
período – enquanto Sam estava na UTIN –, Harris me acompanhou nisso. Ele
dava golinhos no gim e na água com gás. Vê-lo ali, tão transparente, foi
parecido com tropeçar. Mas agora todos os dias eram assim; eu estava
continuamente acordando e em seguida acordando novamente dessa situação e
aí…
— Ela tem a sua idade – disse ele, sobre seu jantarzinho.
Tentei imaginá-la com base nessa informaçãozinha.
— Foi só um jantar ou…?
— Você quer que eu diga?
— Quero.
— Fomos pra casa dela.
— Tá – disse, e me levantei. – Tudo bem. – Então me sentei, coloquei as
mãos nas bochechas e depois cravei as mãos nas pernas. – Muito bem. Está
tudo certo.
Ele ficou me olhando, a postos para o que estava por vir. Cruzei os braços e
desviei o olhar. Era esse então o custo daquela sensação de liberdade todas as
manhãs. Brutal. Mas a vida já estava repleta de hipocrisia, eu não deveria
escolher esse caminho.
— Acho que vai ser bom – eu disse, com aspereza.
— Acha?
— Acho.
Nos olhamos, em choque, como duas pessoas que pairam no ar sem ter
onde se agarrar. Sem andaimes, sem cordas, sem asas – mas sem cair.
Duas segundas-feiras depois, ele disse que a mulher que tinha a minha idade, a
tal do jantar, tinha virado sua namorada.
— Você usaram essa palavra? Namorada? – Fiquei possessa.
— Sim; foi tudo muito rápido, eu sei. Mas sou diferente de você… na minha
idade, não tenho interesse em desbravar nada.
Chorei ao me lembrar de quando eu era sua namorada, antes de virar
esposa. Por alguns instantes, tive vontade de dar um soco no queixo dessa tal
mulher. Depois me vi sacudindo a poeira e pagando um drinque para ela.
Ela era uma conhecida nossa já havia alguns anos. Paige – uma terapeuta
ruiva, rusticamente bela, especializada em adolescentes neurodivergentes. Era
conhecida por ter um gosto impecável; sua casa já tinha aparecido na
Architectural Digest (dinheiro de família). Divorciada, sem filhos. Ela me ligou
no dia seguinte, que é o que se faz quando você vira namorada do marido de
uma conhecida.
— Mas que loucura – comentei. Eu estava tremendo, mas imaginei que ela
estivesse mais nervosa do que eu.
— Pois é – disse ela, respirando fundo. E rimos. Começou a chover e ela
disse está chovendo. Ela morava a poucos quarteirões de distância.
Tentamos lembrar quando tínhamos nos visto pela última vez.
— No brunch na casa do Erin, talvez?
— Ou depois daquele evento de Natal… na rua?
Como nunca tinha convivido detidamente com ela antes, achei difícil captar
a energia dessa conversa por telefone. Não era um flerte, obviamente, mas
queríamos desesperadamente nos sair bem, depois de ficarmos sentadas
falando de coisas aleatórias por sabe Deus quanto tempo. Não se preocupe! disse
meu tom de voz. Eu não vou ser um problema! Ambas agimos com extrema
gentileza, sensatez, sem picuinhas, mas com eventuais lampejos de faca: Eu
poderia acabar com a tua vida, mas não farei isso.
Ela estava um pouco desconfiada de nosso casamento inusitado. Estava
buscando estabilidade, segundo ela. Havia passado por muita coisa nos últimos
anos.
— Por causa do divórcio?
— Aconteceu mais coisa, talvez você tenha ouvido falar, mas meus dois
terrier morreram no intervalo de um mês. Já faz mais de um ano, mas minha
vida foi um perrengue desde então. Até hoje não consigo dormir bem.
— Compreendo. Você acorda às duas da manhã como se o dia já tivesse
amanhecido?
— Isso! Mesmo depois de um ano!
— Acho que não é só por causa dos terrier. Você tem a minha idade, né?
— Tenho quarenta e quatro.
— Já verificou suas taxas hormonais?
— Essas coisas de tireoide?
— Perimenopausa.
— Ah, sim, nossa. Mas não sinto ainda as ondas de calor.
— Algumas pessoas não sentem. E no que diz respeito a – que fique claro, eu
z uma pausa aqui – ao ressecamento vaginal?
O silêncio incômodo que se seguiu era a mãe de todos os outros silêncios
incômodos.
— Desculpa, mas é que minha ginecologista… só estou tentando… espalhar
essas informações…
— Hm. Mas pareceu que você estava querendo me perguntar o quão
molhada eu fico. Como um concurso pra ver quem tem o pau maior, só que
pra mulheres.
Muitas desculpas foram necessárias para a conversa voltar aos eixos, ainda
assim não tive coragem de pedir que não contasse esse episódio para Harris.
Tive clareza da minha situação: ela contaria a ele o que bem quisesse. Eu tinha
a minha primazia, ela tinha outra. Na verdade, a primazia, toda a ideia de
primazia, não poderia ser exercida nesse caso. Todos tinham que agir
corretamente com base em outras regras.
Uns dez minutos antes de Kris chegar, uma calma misteriosa tomou conta de
mim. Estava apática, não sentia nada por ela nem por ninguém. Nada tinha
importância. Provavelmente me sentiria assim antes de morrer; tanta
preocupação e tanta expectativa e na hora H: nada. Graças a Deus que ela não
se atrasou.
— Que lugar lindo – disse, com severidade, olhando ao redor com uma
mochila azul no ombro.
— Obrigada.
— O contraste entre o exterior e o interior.
— Pois é.
Esperei que dissesse mais alguma coisa, mas ela ficou em silêncio, então
assumi o controle. Enquanto tagarelava, fiz um pingue-pongue mental para
descobrir se havia clima entre nós – eu não estava dominada pelo tesão, ela
tampouco parecia estar. Ela agia com sobriedade, então decidi não usar o
vaporizador. Se eu não ficasse excitada quando as coisas tomassem a dimensão
física, eu poderia me projetar astralmente para uma situação mais tabu,
grampear uma tela invisível no meu rosto. É evidente que algumas pessoas
não transam no primeiro encontro, ela poderia ser desse tipo. Ou talvez eu
estivesse enganada e nem se tratasse de um encontro, afinal três horas já
haviam se passado e nenhuma de nós havia encostado na outra. Lá pela uma
da manhã, e já muito decepcionada, comecei a dar dicas de que aquele
encontro precisava acabar. Bocejei e ela disse Nossa, eu não costumo car nervosa
assim; vem aqui.
O cruzamento do limiar. No momento anterior lá estava ela, respeitosa, e no
momento seguinte lá estava eu, inverossímil, me sentando em seu colo, as
pernas abertas, as mãos sobre seus ombros largos.
Ela disse que eu era uma rainha e que ela queria me servir pelo resto da
noite. Perfeitamente, minha rainha, disse ela quando sugeri que tirássemos a
roupa e fôssemos para a cama. No começo achei muito irritante, mas logo o
sentido se revelou: eu não podia fazer nada de errado. Então, fiz a coisa mais
ousada e arriscada que se pode imaginar: nada. Não instiguei fantasias, não
levei a cabo o tesão; fiquei deitada ao lado dela, sentindo o calor de seu corpo
desconhecido enquanto ela inspirava e expirava. Depois de um longo tempo,
ou talvez depois de um minuto, uma das minhas mãos se deslocou para o
quadril dela, por vontade própria. Seus membros eram compridos e
musculosos, e senti um prazer profundo ao passar minhas mãos por seus
ombros e braços, quadril e coxas, de novo e de novo, sem qualquer objetivo,
como se estivesse dando início a um projeto sexual. Achei que isso seria
suficiente, que bastasse, então inventamos o beijo. Do zero. Primeiro, selinhos
e bicadas, depois beijos serpenteantes que não tinham começo nem fim (era
assim que Harris e Paige se beijavam? Será que ele pensou em mim num
momento impróprio como eu estava fazendo agora? – tudo muito estranho!).
Então, diminuímos a marcha para um novo tipo de beijo, girando nossas
cabeças lentamente de um lado para o outro, para que nossos lábios molhados
deslizassem um sobre o outro. Só aí minha buceta começou a despertar,
querendo trepar automaticamente com qualquer coisa que estivesse a seu
alcance, e minha imaginação se inflou involuntariamente, com agressividade e
ganância – para minha imaginação, não importava que esse fosse um primeiro
encontro, ela desejava ter tudo. Encostei meus lábios em sua orelha.
— E se você fosse o meu… – sussurrei a palavra – … papai?
Ela fechou a cara e fiquei vermelha. Estraguei tudo.
Ela deu um pulo – essa não! – e pegou a mochila.
Abriu a mochila.
Jogou uma coleção de paus em cima da cama.
— Qual você quer? – perguntou, me olhando severamente enquanto
preparava o coldre. – Aposto que o menorzinho.
Sorri de alegria, alegria plena. Quanta con ança. Aquele olhar sombrio – era
o Papai. Escolhi o médio e sussurrei, Me come.
Mas Papai ficou chateado com a minha ordem. Ficou muito excitado.
— Assim não dá – disse ele, se masturbando e puxando o lençol para ver
meu rosto.
Deus, fuderoso Deus. Minha buceta deu um tranco tão pesado que parecia
que um jato de veneno tinha entrado no meu sistema nervoso. Minha língua
ficou dura, meu cérebro desacelerou. A partir do momento que ele começou a
me ensinar a fazer sexo, facilitando tudo, entrei tanto na cena que não
conseguia parar de gritar: Estou fazendo certo? Aprendi certo? Mas quando ele
me virou de bruços e chegou por trás com força, emiti um som que não soou
como uma garota, mas como um animal faminto de duzentos anos enfim
alimentado. Nada se compara a um pau de borracha bem usado; o pólipo
invisível, a pena do Dumbo, escornada.
Ela foi embora no amanhecer. Eu tinha comprado biscoito de melaço para
depois do sexo. Comi dentro da banheira, ferida e feliz. É disso que vou lembrar
quando car velha, pensei, comendo biscoito na banheira.
Na noite seguinte, tentei contar a Harris da maneira que ele tinha pedido, sem
muitos detalhes. Eu disse que tinha tido um encontro.
— Certo. É alguém que eu conheço?
— Não. O nome dela é Kris. É artista. Dormi muito pouco.
Avaliei o terreno; lampejo de indignação e horror à moda antiga – afinal, não
passávamos de animais. Então ele passou as mãos no cabelo várias vezes e
disse Saquei, obrigado por me contar. Me tratou com frieza durante um dia
inteiro. Fiquei repetindo um mantra – não é problema meu não é problema meu
não é problema meu – e na noite seguinte parecia que ele havia sido vencido pela
curiosidade.
— Então quer dizer que nós dois temos namoradas?
— Não… Não é por aí. Não estou apaixonada. – Uma novidade. Desde
quarta-feira, só pensei na Kris algumas vezes, com alegria, zero obsessão. – Eu
quero fazer as coisas com calma, pelo bem de Sam.
— Nós dois só estamos aqui por Sam – assegurou Harris. – E você pode
viver o que quiser viver.
— Obrigada. – Me encostei no balcão da cozinha. Parecia conversa de
amigos! – Ela é ótima, tão bonita, mas eu queria ter mais experiências
românticas e me conhecer melhor, sabe?
— Olha, mudei de ideia. Eu não quero ouvir mais nada.
Eu via Kris uma vez por mês, quase sempre no quarto do hotel, mas às vezes
quando Harris voltava da casa de Paige eu pegava um voo rápido para
Oakland, só para passar a noite em seu chalé de telhas. Fazíamos basicamente
o que vínhamos fazendo desde o início: ficar de bobeira peladas, na pegação,
falando (eu) e nos beijando, por horas. Uma noite sussurrei Amo você, soou
natural – também absurdo. Quem era o você dessa frase? Eu disse como os
cowboys dizem Irra! Isto é, Eu montei esse cavalo no pelo, quem gostou faz barulho!
Eu comia os mirtilos que enfiava em todos os buracos do corpo dela, fodia a
buceta dela com um pau maior que o meu braço, me masturbava com o rosto
enfiado em seu rabo lindo e bronzeado. Eu já tinha esquecido o aspecto não
linear e aberto do sexo lésbico, mas lembrei rapidinho.
Achava seus orgasmos semelhantes aos de uma baleia saindo da água,
inesperadamente gigantesca.
Gostávamos de pedir comida e assistir a programas de TV em seu laptop.
Não encontrávamos outras pessoas nem íamos a qualquer evento pessoal.
Quando saíamos da cama para fazer uma caminhada ou tomar um banho ou
comer, era só para dar mais vontade de voltar para a cama.
Depois de quatro visitas, ela pegou minha mão e pôs um anel de ouro no
meu dedo mindinho. No lugar da pedra, uma fivelinha.
— Não vou tirar nunca – sussurrei, no mesmo espírito do Amo você.
— Um dia pode querer tirar.
Fiquei tentada a dizer Não, nunca!, mas preferi me forçar a fazer um breve
discurso sobre minha liberdade novinha em folha e a desistência de recriar meu
casamento. Foi difícil pronunciar cada palavra dessa, mas se eu não deixasse
nada registrado agora, mais tarde ela poderia levar para o lado pessoal. Não
estou interessada em trepadas aleatórias ou em poliamor, disse, mas tenho uma alma
andarilha. Preciso ser fundamentalmente autônoma. Seu rosto atento era uma
folha em branco, um pedaço de papel inescrutável. Que tentação, pensei,
desenhar alguma coisa nesse papel. O que eu desenharia? Um rosto? Rosto de
quem? O rosto dela. Ah, por isso que ela era musa de tanta gente e eu não.
Meu rosto era um pandemônio suado. Eu conseguia senti-lo se comovendo, se
renovando.
— Você tá falando de não monogamia? – disse ela, imparcial.
— Na-na-ni-na-não – respondi, tão nervosa que quase chorei. – De uma coisa
só nossa, nada a ver com isso! Teríamos que conversar sério sobre isso mais
pra frente. Criar regras. Quando a gente começar a se conhecer melhor.
Vi nós duas ali, sentadas no chão da sala de estar em frente à lareira,
redigindo nosso estatuto. Feridas antigas reveladas com ternura, fetiches
confessados; íamos rir e chorar e fazer pausas visando o autocontrole. E aí,
com todas as essas informações em mãos (levando Harris e Sam em
consideração), descobriríamos que tipo específico e personalizado de
relacionamento seria bom para nós duas. E tudo podia se adaptar! Conforme
nós mudávamos! Eu não disse nada, mas pensei nessas coisas enquanto ela me
beijava. Honestamente, fiquei orgulhosa por não ter dito coisa alguma e tudo
ter corrido tão bem – é o que parece, com base nesse beijo.
— Parece que está ficando sério – disse Harris, depois que eu já estava saindo
com Kris há alguns meses. – Queria saber se precisamos fazer mudanças no
nosso combinado.
— Que mudanças?
— Porque talvez alguma hora você queira morar com ela?
Devo ter olhado para ele como se olha para alguém que está
enlouquecendo. Ele riu.
— A coisa toda perderia o sentido – respondi. – Eu não teria mais pelo que
ansiar! Nada para que me preparar.
O futuro, em si, era meu outro amante, aquele que chegaria a tempo de
segurar minha onda. Não sendo uma presa do presente, estava segura; vinha
sendo gentilmente espremida e estimulada pelos meus preparativos sem fim.
CAPÍTULO 25
— N
papai!
a aula de ginástica, tem uma garota que se chama Paige – disse Sam,
durante um café da manhã. – É o mesmo nome da melhor amiga do
Melhor amiga? Era chegada a hora. Tínhamos que contar para elu que as
famílias podiam ser muito diferentes.
Fácil imaginar nossa sinceridade falando demais ou dizendo a pior frase
possível – algo que sairia por acaso, mas causaria um grande estrago –, então
escrevemos juntos um roteiro, que editamos num documento compartilhado
do Google. Na sexta-feira, depois do jantar, assim que eu desse um picolé para
Sam, ia começar a falar. Papai e eu, depois de um longo, longo tempo de
relacionamento romântico, e ainda nos amamos muito, sempre vamos nos amar, mas
agora nosso amor é mais parecido com uma amizade superprofunda.
— Será que é assustador dizer isso? – perguntei. – De um relacionamento
romântico?
— Dá pra falar de outro jeito. Algo mais neutro.
— Um relacionamento romântico. Um relacionamento romântico.
Depois que Harris comentasse sobre nossos novos amigos Paige e Kris, eu ia
voltar para parte do Somos uma família fora dos conformes, mas sempre seremos
uma família, para sempre.
— E se a gente se divorciar? – perguntou Harris. Estávamos de joelhos na
cama dele, com nossos laptops. – Em retrospecto vai parecer uma mentira?
— Só se a gente se divorciar daqui a, digamos, dois anos. Não acho que isso
vai acontecer… você acha que vai?
— Não, não.
Divórcio, a palavra por si, parecia serrilhada como uma faca, algo para
balançar por aí impondo perigo. Por enquanto, eu associava divórcio a
impostos, papelada, burocracia. Talvez viesse a fazer sentido, mas que dor de
cabeça. Casamento, a mesma coisa.
É
— É melhor a gente decorar nossas falas – comentei –, para que não soem
artificiais.
— É, tem que ser tudo muito casual. Eu posso improvisar.
— Tá, mas não improvisa demais; pode ficar cansativo.
— Não, não… só para parecer natural. E a deixa é…
— Posso comer um picolé.
Repassei minha parte da conversa sem parar ao longo de todo dia seguinte.
Ensaiei com Jordi e ela ficou muito emocionada. Sussurrei para mim mesma
na sala de espera da dra. Mendoza enquanto esperava minha consulta anual.
Quando chamaram meu nome, dei um pulo e a enfermeira disse: Você deixou
cair alguma coisa, apontando para o chão logo atrás de mim. Meu roteiro.
Imaginei outra mulher encontrando esse papel e lendo o texto, espantada e
admirada com a radicalidade dos novos conceitos de família. Ou sentindo
nojo, pena de nosse filhe. Enfiei o papel na bolsa.
Quando a dra. Mendoza perguntou se eu estava fazendo exercícios para
controlar o peso, enfim pude responder Sim, de fato estou.
— Ótimo. Previne a osteoporose.
— Eu sei. – Eu estava muito mais informada que no ano anterior.
Se tinha uma vida sexualmente ativa? E como!
Ela enfiou o bico de metal gelado e fiquei analisando seu rosto enquanto ela
analisava minha cavidade vaginal. Já tínhamos passado por muita coisa juntas,
mas nunca tínhamos sido próximas – talvez por culpa minha, no entanto.
Talvez ela tivesse mais proximidade com outras pacientes, afinal eu me sentia
uma criança passiva diante de médicos. Enquanto ela verificava se havia
caroços nos meus peitos, contei dos suicídios de minha avó e minha tia
quando estavam na meia-idade.
— E aí surtei desde a nossa última consulta, por causa da perimenopausa.
Ela assentiu, agora apalpava o outro peito.
— Todo mundo, todas as minhas pacientes acham que deveriam agir com
tranquilidade em relação a essas mudanças – agora ela examinava minhas
pintas –, mas “surtar” de fato tem um papel importante nessas transições.
Imagine como o canal vaginal esguicha fora a água ao comprimir os pulmões
de um bebê, é o choque dessa compressão e o súbito ar frio que fazem o bebê
chorar e respirar pela primeira vez! – Ela inspirou, então inspirei também. –
Esse trauma prepara para a fase seguinte, a vida na Terra.
A fase seguinte. Certo. Eu não estava chorando por causa do penhasco (o
escorrega, a escada, tanto faz), eu só estava me perguntando o que aconteceria
em seguida.
— Qual é a melhor coisa de estar na pós-menopausa?
— Melhor?
— Sim? – Talvez não haja nada de melhor.
— Hmm, vejamos… bem, a saúde mental da mulher que está na pós-
menopausa em geral é melhor do que em qualquer outro momento da vida,
tirando talvez a infância.
Como assim.
— Isso é verdade? E é porque paramos de menstruar?
— Tem mais a ver com o fato de que não estamos mais alternando
estrogênio e progesterona e FSH. E, claro, no patriarcado, seu corpo ainda não
pertence a você até que ultrapasse a idade reprodutiva.
Ela disse essa frase casualmente, não tanto como pensamento feminista,
mais como fato científico ou antropológico. Nada disso se enquadrava nas
descrições extremadas de minha amiga Mary, à prostração a que se referia,
mas eu não havia perguntado do que ela gostava na menopausa. Havia só
estendido a mão para ela, temerosa, e ela cumpriu seu dever de me assustar.
Depois da consulta, sentei no carro e fiz uma rodada rápida de código
aberto, enviando uma mesma mensagem para todas as mulheres mais velhas
que eu conhecia. Perguntei: Qual é melhor coisa da vida depois da
menstruação? Responda quando puder! Mas a primeira resposta, de uma ex-
professora de Sam do jardim de infância, chegou em menos de um minuto:
Depois da menopausa, minhas enxaquecas crônicas desapareceram.
Poderia estar acontecendo com você era o meu tom quando comecei a contar para
todas as pessoas que eu conhecia sobre a existência de Kris e Paige e o novo
formato do meu casamento. Eu estava preparada para o ciúme e me preparei
para ajudar outras mulheres a encontrar um caminho semelhante.
— E se Harris abandonar você pra sempre? – perguntou Cassie, franzindo a
testa.
— Você não entendeu? – respondi. – Simone de Beauvoir estava errada. Você
não só precisa querer o que quer, também pode ter o que quiser.
— Mas o que eu mais quero é querer – disse Cassie. – Esse é o grande lance
do desejo.
Não foi naquela mesma hora, mas um tempo depois estava tentando
argumentar sobre o que eu tinha gostado num filme que ele achava bobo, ao
que Harris disse: eu nunca entendi seu gosto; ao que respondi: nunca mesmo;
e enquanto debatíamos esse filme, me dei conta de que havíamos conseguido:
demos um passo. Harris e eu. Finalmente.
A formalidade exaustiva que surgiu desde o segundo dia havia de repente
ascendido, como uma depressão, uma nuvem de vapor, e o que restava eram
duas crianças velhas que se conheciam muito bem. Ficávamos acordados até
tarde, conversando na cozinha, ou nos encontrávamos para almoçar no meio
do dia porque do nada havia muito assunto em comum – não só Sam, mas
Paige, Kris, o disco da Caro, meu novo projeto indefinido (a qualquer
momento, hein!). Não tentávamos resolver nossas pendengas antigas, mas à
medida que essas pendengas antigas reencarnavam nas pessoas novas,
observávamos tudo com muito cuidado. Abre teu olho. Mas não nos
vangloriávamos, que sentido haveria nisso?
Nos dias bons, parecia óbvio que cuidaríamos um do outro em nossos leitos
de morte (ambos os leitos, claro). Noutros dias, eu tinha certeza de que só
estávamos reunindo forças para conseguir ter duas casas – e eu já via a minha:
um lugar alegre onde os amigos pudessem tomar um banho. De todo modo,
Harris e eu chegamos à conclusão de que esse tipo de casamento estava sujeito
a muitas outras mudanças, mas isso não nos assustava mais porque, conforme
havia dito para Jordi, nós demos o passo.
— Você devia ficar orgulhosa – disse ela. – Poucos casais conseguiram isso.
— É, vai saber – disse e dei de ombros para que os deuses não achassem que
sou boba. – Tenho certeza de que ainda há muito por vir.
— Então aproveita!
Tá bom, respondi, e fiz uma dancinha, uma dancinha idiota, como a do
Humpty Dumpty, ou de um ovo menos famoso.
CAPÍTULO 27
A visita seguinte que fiz à Kris foi em Oakland; peguei o avião numa sexta-
feira. Olhando pela janela do avião, me lembrei de uma brincadeira que
Sam e eu fazíamos quando elu estava começando a andar. De olhos
arregalados, bem travessos, elu se afastava de mim enquanto eu fingia soluçar
e arrancar meus cabelos de tanto desespero – e aí de repente elu corria para os
meus braços gritando, Voltei! Minha tarefa era abraçar e beijar elu com um
alívio histriônico. Nunca mais vou deixar você partir!
Será que poderia brincar disso com Kris? Poderia transar com ela como se
fosse Elsa Penbrook-Gibbard, como da última vez, e depois voltar de novo a
ser eu mesma para que Kriss pudesse “confessar seu casinho com ela”? Poucas
palavras seriam necessárias, ela poderia só dizer Transei com a Elsa e eu
encenaria a agonia, o horror do abandono, e aí, quando eu não estivesse mais
aguentando a cena, gritaria uma senha e nós nos abraçaríamos e nos
beijaríamos e ficaríamos olhando fixo para os olhos uma da outra, cientes de
que havíamos tocado o vazio, o núcleo fóbico, e ainda assim cá estávamos nós,
sãs e salvas. Eu me perguntei se ela toparia isso. Talvez. Ela era tão
brincalhona. Tão linda. Abri um sorriso lésbico para a comissária de bordo e
me senti próspera.
Quando cheguei, Kris estava com os ânimos esquisitos. Esquisitos não
(quem sou eu para julgar?), só pouco familiares. Ela demorou muito tempo
para pendurar meu casaco.
— Você tá bem?
Mas ela não lidava bem com perguntas diretas como essa.
Seguindo nosso ritual, fomos imediatamente fazer compras – provisões –
para que pudéssemos ir para nossa caverna. No mercado, eu sugeria
guloseimas especiais – chocolate? sorvete de manga? – e ela ficava indiferente,
que eu pegasse o que quisesse, nem se abalava. Na volta para casa,
caminhamos em silêncio carregando muitas sacolas, ela nem olhava no meu
olho. Eu olhava fixamente para as pessoas que passavam, mulheres de
negócios, bandos de garotas adolescentes rindo e gritando Vanessa! Vanessa!
Comecei a fazer vários exercícios de respiração ao mesmo tempo, até anular
um por um.
Nem chegamos a guardar as compras, nos sentamos – não lado a lado, eu
não me sentei no colo dela, nos sentamos uma de frente para a outra. Ela
abaixou a cabeça e depois de um longo tempo disse: Acho que nosso caso não
tem jeito. Somos incompatíveis.
Por muito pouco eu não ri.
Peraí: como assim? Em que realidade isso era verdade?
Na realidade dela. Como exemplo, falou de uma vez que eu não queria que
ela me beijasse porque tinha acabado de passar batom.
Minha mãe era assim, disse ela.
Fiquei animada – se o problema era esse, então não havia problema: eu
queria beijá-la! Eu adorava beijar sua boca. E foi o que eu disse, mas não surtiu
grande efeito.
Você está terminando comigo? Perguntei, de brincadeira.
Ela não disse nada. Só olhava para o chão.
Comecei a tremer sem parar. Segura a onda, disse a mim mesma. Abraça ela.
Só abraça ela. Coloquei meus braços em volta de seu corpo e ela
imediatamente começou a chorar. Porra, graças a Deus. Em seguida, ela disse
o que de fato estava acontecendo; seria uma noite longa, mas já estávamos na
estrada. Chegaríamos em casa no amanhecer.
— Acho que a gente pode dar um tempo hoje e conversar amanhã de manhã
– sussurrou ela, em cima do meu ombro.
Soltei os braços e recuei.
— Você quer que eu vá embora? Acabei de chegar. Vou praonde?
— Pra casa da Sharon.
A amiga da Bay Area que mencionei uma vez. Kris tinha pensado em tudo.
Saltei como um raio, catei minha bolsa, puxei a alça da minha mala de
rodinhas – cleque-cleque. Meu ouvidos estalavam; meu cérebro e músculos
inundados por um fluido ralo. Ela ficou olhando enquanto eu tirava o anel de
fivela de ouro. Era a coisa mais radical que consegui pensar em fazer. Com
certeza ela ia cair na real e entender o que estava acontecendo – ela estava me
perdendo! Mas ela só ficou olhando enquanto eu me digladiava com o anel,
deixei entortar, e aí caiu no chão e saí porta afora. Andei um quarteirão inteiro
à espera de ouvir o som de seus passos – passos de corrida ou passos de
caminhada rápida? Ela me agarraria pelas costas e diria Peraí ou ia caminhar
do meu lado por um tempão até que eu parasse.
Me sentei na calçada; ia ser mais fácil para ela me encontrar aqui se eu não
tivesse ido tão longe.
Depois de um tempo, voltei para o chalé.
Bati na porta, depois soquei.
Ela abriu a porta e me olhou como se eu fosse uma estranha Pois não?
Ela já tinha tomado banho e mudado de roupa. No tempo que fiquei
esperando, ela já tinha feito tudo isso. Estavas prestes a sair.
Cambaleei, pedi desculpas pela intrusão.
Claro, respondeu ela, mas estou muito cansada. Talvez mal consiga falar.
Aleluia.
Não será necessário falar, respondi.
A fala é comandada pelo lado esquerdo do cérebro, lado masculino, intelecto
excessivo. Podíamos só nos abraçar; nos acalmar e retomar o laço. Fui tão
dramática no lance do anel. Por que não respirei fundo e pensei duas vezes?
Que idiota, saí correndo daquele jeito quando tudo que ela queria era só um
pouco de espaço.
Tem certeza? perguntou Sharon. Você não precisa voltar pra lá. Pode ficar
aqui.
Sorri. Eu só estava aqui ainda por causa do tempo e das leis da física. Eu
tinha apenas que calçar os sapatos e andar aos trancos e barrancos, porque um
dos meus pés estava me criando problemas, parecia maior que o sapato. Dei
risada e apertei o pé com as duas mãos para que diminuísse de tamanho e
entrasse no sapato. Meu telefone vibrou dentro do bolso.
Antes de você chegar, preciso confessar: transei com a Elsa.
Mudei a passagem e fui para casa. Contei para Harris, para Jordi e cheguei a
pensar, naquele primeiro dia, que ia ficar tudo bem comigo. Meu choque foi
tão grande que virou uma espécie de euforia, a energia que as mães arranjam
para levantar carros.
— Eu queria pegar ela na porrada por fazer isso com você – disse Harris,
realmente puto.
Eu ria e meu ranho escorria; nunca o tinha visto falar desse jeito.
Aí a lua nasceu e me vi querendo contar para Kris sobre a coisa terrível que
havia acontecido mais cedo comigo naquele mesmo dia. Eu sabia que ela
entenderia porque foi com ela que meu medo do abandono veio à tona, minha
perversão. Peraí. Será que tudo que havia acontecido hoje não passava de
encenação? Um tipo muito sofisticado de terapia? Me sentei no escuro.
Quanta intensidade, mandei essa mensagem. Vamos demorar muito tempo
para processar tudo isso. Achei que ela não responderia porque eram duas da
manhã, mas ela respondeu, quase no mesmo minuto.
Você está me manipulando?
Enfim consegui entender por que meu pai chamava de campo da morte, não
de pânico primordial ou núcleo fóbico. Tratava-se de uma esfera à parte da
vida. O ar estava rarefeito; eu não conseguia respirar fundo. Havia um tom
quebradiço, sarcástico em cada som – se eu deixasse um prato cair, se
espatifaria no chão de modo corrosivo, a algazarra do ridículo.
Ela é sua namorada agora? Respondi no dia seguinte. Eu não sou mais?
Ela não respondeu, mas horas depois mandou uma mensagem perguntando
o nome da padaria que ela conheceu comigo. Fiquei olhando para a pergunta
dela com o nariz enfiado numa calcinha minha usada. Não foi difícil me
convencer de que esse era o cheiro quente da buceta dela e que lá estava eu
entre suas pernas mais uma vez.
Nabolom, respondi, respirando fundo; quem sabe o nome de uma padaria
fosse o começo para uma conversa mais longa sobre nossa situação. Não deu
em nada e pelo modo como um cheiro interage com o cérebro, tive uma
experiência muito prejudicial, uma guerra psicológica imposta por um déspota
maníaco. Dormir não era uma opção. Progesterona, melatonina, Benadryl,
THC, CBD, uns farelinhos de Xanax – se eu tomasse tudo isso de uma vez só,
sairia do ar por uma ou duas horas, não valia a pena; acordar para a realidade
seria muito pior do que já estar nela.
— Por que você não vai lá pra fora? – disse Jordi no FaceTime. – Consegue
pisar no chão? Primeiro, tira o sapato.
— Anota isso pra mim – respondi. – É o que eu quero fazer no futuro se um
dia conseguir sair dessa fossa.
Scarlett me mandou uma mensagem na terça e outra na quinta, sobre o
calendário da academia, mas em todas as vezes respondi que ainda estava
doente :(. Eu estava comendo de colher, mas sem a ajuda da minha boca mole;
meu estômago estava tão apertado que depois de dar três mordidas em
qualquer coisa uma quarta era impensável. A maneira que Kris olhou para
mim quando abriu a porta – Pois não? – era o que mais me deixava apreensiva.
Nem se minha mãe me olhasse desse jeito seria tão assustador.
Querida Kris. Minha Kris. Kris. Como começar? Qual seria uma boa combinação
de palavras para fazê-la querer se encontrar comigo. O ideal seria ao vivo, mas
até um FaceTime eu topava. Era o único jeito de sair dessa. Uma resolução.
Um encerramento. Uma espécie de cerimônia de conclusão. Sam entrou no
quarto.
— Mamãe, quer brincar de Lego?
Fiquei olhando para a criança. Elu já devia estar de pijama.
— Vai botar o pijama.
Mandei o rascunho do meu e-mail para Kris por mensagem para Jordi.
— Hm. Quanta generosidade – disse ela na tela.
— Obrigada. Eu penso assim, se ainda conseguirmos ser gentis uma com a
outra, mesmo que platonicamente… eu já entendi que acabou… mas se a
gente conseguisse conversar sobre o que aconteceu, sobre o choque, e aí se
despedir…
— Não manda nada.
— Mas é o único jeito de sair dessa.
— Mas e o sexo da reconciliação? Lembra Audra?
Pisquei. Sexo?
— Nazanin e Kate vão dar uma festa na semana que vem – disse ela. –
Vamos juntas, que tal?
Mandei o e-mail para Kris, dizendo que sentia arrependimento e remorso e
assim abrindo espaço para que ela respondesse na mesma moeda. Disse que
acreditei no que escolhi acreditar, que havia criado um relacionamento que era
noventa e oito porcento imaginário. Disse que não a culpava por ter preferido
Elsa, a retratista cujo dom era de fato ver a pessoa que estava à sua frente.
O e-mail não suscitou um pedido de desculpa semelhante nem qualquer
outra resposta.
Mas uma semana depois, em um passeio raro fora de casa (parque dos
cachorros), uma sapatão de cabelos compridos se apresentou como uma
amiga de Kris. Comecei a tremer.
— Eu preciso muito falar com a Kris – disse para a mulher. – Você podia dar
um toque nela.
Ela pôs a mão no meu ombro e disse:
— Não é necessário. Kris já perdoou você.
Ri.
Humor perverso!
Mas seu rosto estava sério. Na versão que Kris tinha da história, eu era a
criminosa, e a violência em meu rosto só confirmava o fato.
Não desconta em mim, disse a mulher, só estou colocando aspas.
Dei um sorrisinho.
Não haveria cerimônia de conclusão. O último avião já havia deixado a ilha;
eu estava ilhada para sempre.
Depois de duas semanas nesse estado (quarenta e seis quilos), Harris queria
passar duas noites na casa de Paige e eu disse, Vai sim, claro, eu seguro a onda
aqui. Já não estava fazendo o jantar e o café da manhã e lendo para Sam antes
de dormir? Eu podia fazer essas coisas com o sangue jorrando pelos meus
ouvidos, com um machado nas costas; ele não precisava se preocupar com
nada.
— Tem certeza de que você vai ficar bem com Sam? – perguntou ele, às
quatro da tarde. – Você consegue?
Sorri e fechei a porta.
Sam estava brincando de Lego e comendo palitos de cenoura em cima do
tapete da sala. Fala, galera, murmurou elu para si mesme, bem-vindes de volta ao
meu canal.
— Vou ao banheiro rapidinho – avisei. – Já volto pra gente brincar.
Sentei na beira da banheira e tentei pensar num plano para as quatro horas
seguintes. Até a hora de dormir.
Mas não é assim que os pensamentos funcionam – você não pode escolhê-
los como peras em uma árvore, eles caem na sua cabeça e fim:
O jantar-que-virou-encontro-amoroso na casa espetacular do Marina
District: foi assim que tudo começou. Na cama redonda e muito macia.
Começou provavelmente só com beijos, era a primeira vez. Então se
intensificou. Eu acentuei a situação quando fingi ser Elsa Penbrook-Gibbard.
Tampei a boca com a mão.
Mando uma mensagem para ela? Não, está tudo acabado.
Voltei a tremer, meus ossos finos não paravam de tremer. Olhei no espelho;
ainda estava com a mão na boca. Soltei a mão rapidamente. Eu estava aqui
dentro havia muito ou pouco tempo? Tinha que sair do banheiro, mas como?
E se eu não conseguisse parar de tremer? Como meu pai havia criado uma
filha diretamente do campo da morte?
Espiei pela porta.
— Tudo bem, Sam?
— Tô fazendo uma coisa incrível, mas ainda não acabei, fica aí!
Viu só, Deus existe.
Meu pai teria me envolvido em seu Deus nos acuda. Não tenho dúvida.
Uma criança tem todos os requisitos para a abdução porque acredita em tudo,
anzol, linha e chumbada.
Campo da morte? (perguntaria Sam) Isso existe?
Sim. É a única coisa que existe. Chegou a hora de você saber disso.
Eu poderia dificultar ainda mais as coisas; poderia fazer uma cena. Tentei
pensar se meu pai tinha feito isso. Será que ele acreditava mesmo que o avião
da minha mãe tinha caído ou ele aumentou um pouco a história, levando a
agonia ao cume para se certificar de que eu realmente compreendia a
situação? Agora entendo que pode ter sido um alívio para ele, até porque eu já
estava aqui naquela época, sozinha para todo o sempre.
— Pronto! – gritou Sam. – Pode sair agora!
Era chegada a hora.
Dei a descarga.
Fui em direção à sala, pé ante pé.
Sam havia feito uma obra-prima em Lego e a escondia atrás das costas,
sorrisão no rosto. Mas o sorriso de Sam vacilou quando viu meu rosto.
— Que foi, mamãe?
Lá vamos nós. Campo da morte.
— É que… – respire fundo. Conte até três. – Tive momentos difíceis lá no
banheiro.
— É assim mesmo! Às vezes demora pra ficar pronto. E precisa de mais
tempo.
— Concordo com você. Vou esperar mais um pouco. Vamos ver o que
temos aqui…
Era uma torre. Todas as paredes eram muito lisas e não tinha um buraco no
meio, era uma torre de Lego totalmente sólida.
— Que maravilhoso, meu bem. Tão compacta.
— Ainda não acabou – disse Sam.
Com ar muito solene, Sam me mostrou como a torre se encaixava
perfeitamente no canto da sala.
— E tem mais…
Agora elu empurrava a torre contra o vidro de um porta-retratos,
encaixando-a no canto da moldura: mais um encaixe perfeito. E mais… Sam
me levou até seu quarto – no canto do gaveteiro de meias: clique.
Em cada cantinho, eu sentia a tontura efervescente da familiaridade, como
um déjà-vu. A torre se encaixava em todos os ângulos retos da cama e do
parapeito da janela, e enquanto eu não parava de balançar a cabeça
exclamando – Que descoberta, meu bem! –, dei início a uma conversa paralela
com Sam dentro da minha cabeça.
Sei que é uma grande coisa, comentei, mas não entendo nada disso.
Isso é escala, respondeu Sam. Estávamos no campo da morte, mas num
campo diferente, um que sempre partilhamos. Era nesse campo que elu
gritava acorda acorda acorda para me avisar que estava na hora de ir para o
hospital.
Escala, claro, respondi. Tá, deixa eu pensar.
Você está num canto…
Isso.
… mas há cantos em todos os lugares.
Hm.
Olha só, mesmo num cantinho – Sam me mostrava o canto da estante
dentro da casa de bonecas –, ainda é um canto e a torre vai encaixar.
Como uma besta, fiquei olhando para os livros em miniatura.
Não sei se entendi, meu bem.
Sam deu um suspiro, nas duas realidades.
Logo você vai entender.
CAPÍTULO 28
Ela perguntou se eu tinha outros filhos. Apenas Sam, respondi. Achei melhor
não perguntar de Willa, nem fazer qualquer outra pergunta íntima; não nos
tornaríamos amigas. Casada? ela perguntou. Expliquei a situação e ela disse,
gostei, muito moderno. Tentei evitar, mas acabei abrindo o berreiro ao falar
de Kris e toda minha fossa recente. Arkanda disse: Uma piranha, essa gata, e
eu concordei.
— Você é do time das absortas, eu também sou – disse ela, cuspindo um
caroço de tangerina delicadamente. – Pé na estrada! Não se deixe paralisar.
Não encare o poço quando ele está sem água, Carter sempre diz isso.
Eu não fazia ideia de quem era Carter – o ex-presidente Jimmy Carter? –,
mas anotei essa coisa do poço no celular quando Arkanda foi ao banheiro. Ao
voltar, pegou sua bolsa gigante, cor de vinho e disse:
— Ei, então, vou meter o pé – disse ela, cruzando os braços. – Mas eu adorei,
foi muito especial, obrigada.
Ela estava indo embora? Não pude acreditar. Parece que nunca posso. De
repente, pensei em Sam encaixando a torre de Lego em todos os cantinhos.
Minha antiga sensação atordoante de abandono (ou talvez, a essa altura, esse
era um monumento ao abandono, a torre) me deixa apta a qualquer tipo de
perda, independentemente do tamanho. Kris não queria saber desse papo,
outras pessoas queriam; Arkanda quis. Se eu quisesse, ainda poderia ter essa
conversa muitas e muitas vezes, pelo resto da vida. Agora entendi, Sam. Os
cantos estão por toda parte.
— Já está meio tarde, não? – comentei, olhando para o telefone. Quase meia-
noite.
— Que nada, pra mim é cedo. Estou indo pro estúdio! – exclamou, batendo
palmas. – Eu não uso relógio nem sigo o calendário. Toda hora é agora; todo
dia é terça-feira.
Engoli em seco. Justo agora, no último minuto, fiquei completamente
pasma.
Ela me deu um abraço fraterno.
— Mas você fica! Parece muito cansada.
— Não, muito esquisito – respondi. – Dormir no quarto ao lado.
— Você que sabe – disse ela, e deu de ombros. E já com a mão na maçaneta,
olhou por cima do meu ombro para algo que estava logo atrás. – Talvez ela
seja a guardiã. Por isso não vai a lugar algum.
Virei para trás e olhei para a figura no quadro. Pela primeira vez, reparei
como ela estava ereta, parecia os guardas do Palácio de Buckingham ou de
algum outro lugar majestoso, suntuoso, quase sagrado.
Arkanda deu um tchauzinho com as pontas de suas unhas compridas e
fechou a porta.
N o fim das contas, demorei quatro anos – não seis dias – para chegar a
Nova York, e não fui de carro, fui de avião. O primeiro evento da turnê
de lançamento do meu livro era uma leitura no Brooklyn. Olhando pela janela
do avião, pensei na viagem de carro pelo país que supostamente transformaria
minha vida, aos quarenta e cinco anos, de maneira incontornável. Agora eu
estava com quarenta e nove. Nessa odisseia, penhascos e cavernas, um anel de
ouro, uma torre, será que também um labirinto e um cristal? Eu tinha
mudado mesmo? Um teste agora seria ótimo, um quebra-cabeças ou desafio
que eu não consegui resolver há quatros anos, mas que agora já teria
dominado.
Olhei para as nuvens, peguei o telefone.
Fiquei um tempão olhando minhas fotos, procurava uma foto específica.
É claro que ainda tinha o número dele.
Comprei Wi-Fi.
Achei melhor não mandar mensagem para ele.
Guardei o celular na bolsa, aliviada, e procurei um filme para assistir. Assisti
quatro minutos de Feitiço da Lua e pausei; espontaneamente, quase sem
perceber o que estava fazendo, mandei uma mensagem para Davey.
Oi. Com um pouquinho de atraso, risos, enfim percebi o lance dos azulejos.
Que delícia! E aí mandei a foto que tirei da parte de trás da privada.
Quando Cher e Nicolas Cage chegaram na ópera, eu já era o puro suco do
arrependimento. Até que, uma hora depois, ele deu coração na foto.
Hahaha, escreveu.
E:
Como você tá? Vi que está lançando um livro novo [emoji de champanhe] mas
ainda não consegui dar uma olhada
Talvez você, hm, “reconheça algumas partes” – escrevi mas apaguei.
Obrigada! Estou no avião para ny nesse momento, para divulgar o livro
Depois que muito tempo já se passou, não é necessário mencionar o
passado, e, para todos os efeitos, mal me lembrava dele. Mastiguei o gelo do
copo plástico.
Abrindo o jogo, escreveu, eu vi o flyer da sua leitura e me perguntei se seria
estranho eu aparecer?! Tô aqui com Dev, estamos preparando uma coisinha.
Apareça!
E aí o flyer do evento dele, o desenho de dois tigres dançando. Fiquei um
tempo olhando para o desenho. Seria na tarde do dia seguinte, bem antes da
minha leitura.
Legal!, escrevi. Estarei lá! E, como quem chega a uma conclusão tardia,
acrescentei: Ah e vou botar seu nome na minha lista de convidados!
Pousei na hora do rush, então quanto mais me aproximava da cidade, mais o
carro andava devagar. Noventa minutos depois, disse ao motorista que talvez
houvesse algum campo de força flutuante ao redor de Manhattan que “talvez
não conseguíssemos cruzar”. Eu quis ser engraçada, mas soou sem pé nem
cabeça. Ele me ofereceu um chiclete e depois encontrou umas balas no porta-
luvas. Evidente que eu estava faminta, mas tinha mais uma coisa. Eu não
conseguia saber o quê.
Se estivesse com menos fome, teria sacado que era porque eu não parava de
piscar.
Meu quarto ficava no trigésimo quarto andar, uma subida infinita. Entrei
cambaleando, joguei as malas no chão e comi os salgadinhos do frigobar
enquanto esperava o serviço de quarto chegar; mesmo depois de uma tigelona
de macarrão à bolonhesa, ainda tinha alguma coisa errada comigo. Quando
me deitei na cama, senti uma clareza violenta do que estava acontecendo.
Fechei os olhos e senti que estava caindo de um lugar tão alto que sentei
rapidamente e abri os olhos gritando. Levantei da cama, tomei um copo
d’água. Não era possível. Deitei de novo e, nervosa, fechei os olhos. Mais uma
vez um mergulho nauseante, semelhante a um elevador descendo sem aviso.
Acendi as luzes e sentei na beirada da cama. Se não conseguisse fechar os
olhos, não conseguiria dormir. Se não conseguisse dormir, no dia seguinte não
teria condições de ler para uma plateia nem de encontrar Davey; parecia um
enigma, um pesadelo mitológico. Fiquei olhando para o travesseiro, o pânico
insidiava.
Eu não queria acordar minha namorada; eram cinco da manhã em Londres
e nossa relação era recente para eu perder a compostura.
Harris e Paige estavam acampando com Sam.
— Põe no viva-voz – disse Jordi. – E que tal abrir a janela? Pegar um ar?
Deus meu, obrigada por essa mulher.
As janelas não abriam, pressionei a testa no vidro. Empire State Building.
One World Trade Center.
— Tenta respirar longa e profundamente. Estou pesquisando seus sintomas.
Inspirei; expirei. Daquela altura, as pessoas eram indistintas, eu só conseguia
enxergar o amarelo dos táxis, os toldos, as árvores mais altas. Labirintite, dizia
Jordi. Ou vertigem. Deslocamento do otólito dentro do meu ouvido.
— Diz aqui que a causa pode ser o avião, a mudança de pressão do ar. Ou,
claro: oscilações do estrogênio.
Um corpo que cai, como o filme do Hitchcock; então era isso. Me afastei da
janela.
— Tem cura ou vou ter isso pra sempre? – sussurrei. – Alô, alô.
Parecia que ela estava assistindo a um vídeo.
— Foi em qual ouvido?
Ouvido.
— Direito?
— Dá pra fazer uns exercícios – disse ela. – Você consegue reposicionar o
cristal se fizer um movimento específico de cabeça; se chama manobra de
Epley.
Assisti a uma mulher de blusa branca que deixava a cabeça em 45 graus e de
repente desabava, a cabeça ainda naquela posição esquisita. Já deitada, virava a
cabeça noventa graus para a esquerda e noventa para a direita, depois com o
corpo todo, mais noventa ainda na cama; depois sentava e recomeçava. Parecia
o Trio A, da Yvonne Rainer, um solo de dança sem música.
— Vamos lá – respondi.
— Ótimo.
Caí na cama.
— O que faço depois de deitar?
— Espera trinta segundos e aí faz noventa graus pra esquerda.
Quando terminei a sequência, fechei os olhos temerosa e, imediatamente
enjoada, despenquei.
— Não adiantou nada.
— Nem tinha como – disse Jordi –, uma vez só não basta. Tem que repetir a
sequência cinco vezes. Diz aqui pra você observar se os sintomas diminuíram
ao fim de cada série, e aí repetir.
Ah, esse tipo de coisa me irrita. Ambígua. Contínua.
Enquanto eu me virava e desabava e sentava e me virava e virava de novo –
tive a sensação ruim de que estava me afastando do momento presente. A voz
de Jordi – Essa foi a quinta, vê agora! – aguda, distante, e a atmosfera do quarto
era sombria e imensa, maior do que de fato poderia ser. Mau sinal. Comecei a
suar frio. Parei de me movimentar.
Elas não estavam no meu campo de visão, mas eu podia senti-las, cada uma
de um lado. Sua intensidade, sua essência.
Continua, Esther incentivava a neta.
Mas vai sem pressa, complementou tia Ruthie.
A magnitude do que estava acontecendo tomou conta de mim, senti que
estremecia e fiz uma pausa para vomitar no chão sem fazer alarde. Então
retomei a sequência.
Os movimentos pareciam muitíssimo arbitrários e cíclicos, mas minha avó e
minha tia pareciam discordar, então prossegui, me dedicando mais uma e
outra vez, compreendendo profundamente a tarefa em andamento. Direita,
desabe, esquerda, giro, senta. Por fim, eu não estava mais repetindo os
movimentos em nenhuma cama nem com nenhum corpo específico; a
manobra de Epley também poderia ser qualquer tipo de dança ou canção ou
ladainha religiosa, o grande objetivo era continuar sem a perspectiva do final.
Direita, desabe, esquerda, giro, senta, de novo e de novo por horas a fio.
Direita, desabe, esquerda, giro, senta, levanta, levanta, giro, giro… de uma
hora para a outra, ficou mais fácil. Uma natureza adicional, como respirar.
Tinha que respirar.
Vê agora!, disse Jordi.
Ver o quê? Eu já estava farta dessa repetição e muito, muito cansada. Fechei
os olhos e, misericórdia, adormeci.
CAPÍTULO 30
Enquanto escrevia este livro, conduzi uma série de entrevistas com mulheres
sobre as mudanças físicas e emocionas da meia-idade, e embora quase não
haja rastros dessas conversas no livro, tornaram a escrita ainda mais
necessária. Obrigada por conversarem comigo: Calista Termini, Caterina
Sorsonne, Megan Ace, Donna Pall, Megan Mullally, Marya Jones e Connie
Lovatt. Também Aydin Olsen-Kennedy e tantas outras pessoas que não
quiseram ser nominalmente citadas, obrigada.
Entrevistei três médicas e agradeço por seu precioso tempo: dra. Ricki
Pollycove (obstetra e ginecologista), dra. Michelle Gerber (naturopata e
parteira) e particularmente dra. Maggie Ney (naturopata e codiretora da
Women’s Clinic de Akasha), que leu o livro, atendeu a demandas e fez
anotações.
Agradeço a Jennifer McLaughlin, Emily Ross, Sarah Bibb, Kaylee
Mansbridge e Despina Vassiliadou por atenderem espontânea e honestamente
a uma íntima consulta pública.
Agradeço a Heather Corinna pela conversa e por ter escrito um livro sobre a
perimenopausa, o What Fresh Hell Is This?, publicado na hora certa.
Agradeço a Chris Svensson pelo apoio no design e a Sean Tejeratchi por
desenhar o gráfico hormonal junto comigo.
Agradeço a Sheila Heti por ler a primeira versão, a George Sauders por ler
uma versão posterior e a Eli Horowitz por ler ter lido tantas versões; seus
comentários foram cruciais e me encorajaram muito. Agradeço especialmente
à leitora e comentadora Maggie Nelson, cujas perguntas difíceis me
desafiaram ao desenvolvimento delas. Também Carla Frankenbach, pela
leitura e conversa. Agradeço à minha assistente, Elizabeth Litvitskiy, que
revisou todas as versões e durante muito tempo foi minha única leitora, olhos
e ouvidos sólidos e alegres.
Agradeço à minha agente, Sarah Chalfant, por compreender este livro e por
seguir acreditando em mim como escritora. Agradeço à minha editora, Sarah
McGrath, por ter tanta clareza e fé, sobretudo nos dias mais sombrios –
agradeço também a Alison Fairbrother por sua caneta afiada subsequente.
Agradeço a toda equipe da Riverhead: Helen Yentus, que fez a capa deste livro
à mão, Ashley Garland, Nora Alice Demick, Délia Taylor, Lavina Lee, Sheila
Moody, Geoff Kloske e à extraordinária Jynne Dilling Martin. Me sinto muito
sortuda pelo apoio que recebi de vocês.
Agradeço a Jacqueline Novak, Margaret Qualley, Kate Berlant, Louise
Bonnet, Alexa Greene, Marina Kitchen, Angela Trimbur, Dede Gardner, Julia
Bryan-Wilson, Carrie Brownstein, Khaela Maricich, Katie Sá-Davis, Bully Fae
Collins, Gina Rodriguez, Natasha Lyonne, Stella Lamar, Harrell Fletcher, Jay
Cherman, Nikki Providence, Maya Buffet-Davis, Shana Bonstin e Rick Moody,
cujos insights, danças, cuidados e música agora fazem parte de mim e deste
livro. Agradeço a Ali Liebegott por sua poesia enquanto terminava de escrever.
Agradeço aos meus pais, Richard Grossinger e Lindy Hough, e ao meu
querido irmão, Robin Grossinger: meus primeiros e infindáveis exemplos de
como fazer uma coisa do nada. Às minhas falecidas avó e tia, Martha e
Deborah Towers: não tenho ideia se fiz direitinho, mas acho que vocês
gostariam que eu tentasse.
E, finalmente, agradeço a Mike Mills e Hopper Mills, filhote, cuja ousadia
me encorajou.
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub
pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A.
De quatro
Site o cial da autora
https://mirandajuly.com/