04 Estefania Jaekel Da Rosa (1)
04 Estefania Jaekel Da Rosa (1)
04 Estefania Jaekel Da Rosa (1)
Resumo: Este artigo aborda algumas questões sobre a materialização das crenças afro-religiosas
praticadas nos lares das mulheres negras nas periferias de Bagé e de Pelotas, compreendendo
esses conhecimentos situados enquanto saberes afro-diaspóricos ancestrais, perpassados por
gerações, através da oralidade. Seguindo a busca por uma prática arqueológica feminista e
decolonial, esta etnografia arqueológica, desenvolvida a partir da observação e do convívio com
essas mulheres, demonstra como seus saberes e experiências foram importantes no processo de
aprendizado sobre a materialização do sagrado afro-religioso, tornando suas narrativas centrais
no entendimento sobre a potência existencial das coisas que fazem morada em suas Casas e
aquelas que podemos identificar em escavações arqueológicas. Nesse sentido, a crítica feminista
e decolonial sobre a Arqueologia da Diáspora Africana pode contribuir com novas epistemologias,
ancoradas nas subjetividades e agenciamentos dessas mulheres negras que resistem
cotidianamente às opressões e privações impostas pela colonialidade. Essa postura visa contribuir
ainda com leituras mais abrangentes sobre os contextos arqueológicos da diáspora africana,
incluindo perspectivas que dialogam com as comunidades negras da contemporaneidade.
Abstract: This article addresses some questions about the materialization of Afro-religious beliefs
practiced in the homes of black women in the outskirts of Bagé and Pelotas, understanding this
knowledge situated as ancestral Afro-diasporic knowledge, permeated by generations, through
orality. Following the search for a feminist and decolonial archaeological practice, this
archaeological ethnography, developed from the observation and interaction with these women,
demonstrates how their knowledge and experiences were important in the learning process about
the materialization of the Afro-religious sacred, making their own narratives that are central to the
understanding of the existential potency of the things that live in their homes and those that we can
identify in archaeological excavations. In this sense, the feminist and decolonial critique of African
Diaspora Archeology can contribute to new epistemologies, anchored in the subjectivities and
agencies of these black women who daily resist the oppression and deprivation imposed by
coloniality. This posture also aims to contribute with broader readings about the archaeological
contexts of the African diaspora, including perspectives that dialogue with contemporary black
communities.
Keywords: Archeology of the African Diaspora. Black women. Religions of African origin.
Introdução
Foram presas à ordem da delegacia, duas pretas feiticeiras que atraiam grande
ajuntamento de seus adeptos. Na ocasião de serem presas, encontrou-se-lhes um
santo e uma vela, instrumento de seus trabalhos.1
Ainda hoje o estigma da “preta feiticeira”2 persiste na definição das mulheres negras afro-
religiosas. Essa denominação mostra a persistência do medo e do preconceito sobre a crença
dessas mulheres, que sofrem violências desse estigma desde o período escravista3. Por outro
lado, observamos que essas mulheres resistiram ao longo da história, fazendo de seu feitiço um
instrumento de luta que permanece viva e atuante nas comunidades situadas na periferia. É nesse
sentido que compreendo que o termo “Preta feiticeira” se tornou uma autodenominação recorrente
entre as mulheres que residem nas periferias de Bagé e de Pelotas (RS-Brasil), o que nos leva a
refletir que, apesar de forjado pejorativamente pelo colonialismo euro-cristão, muitas mulheres
incorporaram este termo ao seu vocabulário para demonstrar o empoderamento e a resistência de
sua fé. Dessa forma, quando falamos aqui em “Preta Feiticeira” estamos justamente nos referindo
às mulheres negras que cultuam sua ancestralidade, resistindo através de suas subjetividades
para cumprir sua missão espiritual por meio da caridade, respeito e sabedoria para cuidar do
próximo. Entre ervas, benzeduras, velas, imagens e outras coisas, elas materializam a força dos
1 JORNAL DO COMERCIO apud MELLO, Marco Antonio Lírio de. Reviras, batuques e carnavais. A
Cultura de resistência dos escravos em Pelotas. Pelotas: Editora Universitária, 1994, p. 26.
2 Ao analisar os processos de inquisição das feiticeiras de Pernambuco e Bahia no século XVI, Juliana
Sampaio e Kleber Silva concluem que as feiticeiras eram mulheres empobrecidas, sem marido, que
moravam sozinhas nas zonas urbanas e utilizavam seus conhecimentos de magia também como uma
forma de ganhar a vida, postura que distanciava essas mulheres do ideal feminino apregoado pelo
catolicismo. Uma mulher sozinha e independente podia ser considerada esposa de Satã, por isso eram
associadas à prostituição e a bruxaria, sendo por isso denunciadas à Inquisição. SILVA, Kleber Henrique
da; SAMPAIO, Juliana Cunha. Mulher e Feitiçaria na América Portuguesa Do Século XVI: Cotidiano,
Magia e Inquisição. In: ENCONTRO ESTADUAL ANPUH – PE, 10, Petrolina, PE. Anais [...]. Petrolina,
PE: Associação Nacional de História, 2014, p. 9-35. Disponível em: http://eeh2012.anpuh-
rs.org.br/resources/anais/35/1398265369_ARQUIVO_Artigo.pdf. Acesso em: 27 jul. 2021.
3 Tomo aqui a expressão “feitiçaria” como um termo construído pelas elites na interpretação amedrontada
da religião do outro. O estranhamento cultural perante o desconhecido, relacionado a um imaginário
desqualificador das práticas religiosas tidas como exóticas, fez com que esses indivíduos utilizassem a
expressão pejorativamente. Para os “feiticeiros” e “enfeitiçados”, os feitiços faziam parte de uma
cosmologia religiosa específica, que trazia conforto espiritual e material e cuja devoção cimentava
solidariedades. MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.7 n. 1 | p. 54-78 | Jan.- Jun. 2021
Disponível em: http://revistas.est.edu.br/index.php/genero
56
Orixás e dos espíritos ancestrais em suas Casas, usando seus “feitiços” como instrumentos de
resistência à colonialidade do poder e ao racismo religioso na diáspora africana.
4 “Hibridismo não é uma referência à composição racial mista de uma população. É realmente outro termo
para a lógica cultural da tradução. Essa lógica se torna cada vez mais evidente nas diásporas
multiculturais e em outras comunidades minoritárias e mistas do mundo pós-colonial. Antigas e recentes
diásporas governadas por essa posição ambivalente, do tipo dentro/fora, podem ser encontradas em
toda parte. Ela define a lógica cultural composta e irregular pela qual a chamada ‘modernidade’ ocidental
tem afetado o resto do mundo desde o início do projeto globalizante da Europa.” HALL, Stuart. Da
diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2010, p. 74.
5 GOLDMAN, Marcio. A relação afroindígena. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 23, p. 213-222, 2014.
6 Essa tomada mais geral pelo termo “religiões de matriz africana” se deve também ao fato que a religião
não consistiu num ponto de partida, ela se mostrou aos poucos como uma alteridade imanente ao
cotidiano da periferia, definindo os laços sociais (família de sangue e de religião), presentes no dia-a-dia
para resolver diferentes problemas e conflitos que atingem suas famílias (saúde, financeiro, amoroso
etc.), e ainda, preservando as memórias da ancestralidade e da diáspora africana (por meio de
costumes, ritos, linguagem, alimentos, entidades etc.).
7 HARTEMANN, Gabby; MORAES, Irislane Pereira de. Contar Histórias e Caminhar com Ancestrais:
perspectivas afrocentradas e decoloniais na arqueologia. Vestígios, Minas Gerais, v. 12, n. 2, p. 7-34,
jul./dez. 2018, p. 17.
8 LÓPEZ, Laura Cecília. Que América Latina se sincere: uma análise antropológica das políticas e
poéticas do ativismo negro em face a ações afirmativas e às reparações no Cone Sul. 2009. 389 f. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009, p. 86.
9 WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias
políticas contra o sexismo e o racismo In: VERSCHUUR, Christine (Org.). Vents d'Est, vents d'Ouest:
Mouvements de femmes et féminismes anticoloniaux [en línea]. Genève: Graduate Institute Publications,
2009, p. 150. Disponível em: http://books.openedition.org/iheid/6316. Acesso em: 27 jul. 2021.
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.7 n. 1 | p. 54-78 | Jan.- Jun. 2021
Disponível em: http://revistas.est.edu.br/index.php/genero
57
“são constitutivas do modo como nos apresentamos e somos vistas”10. Assim, as subjetividades
dos corpos negros são construídas a partir de experiências racializadas, de vivências diaspóricas
que incorporam os ancestrais, as memórias da escravidão e os processos de exclusão que
enfrentam até os dias de hoje, tecendo um emaranhado complexo de vínculos, pertencimentos e
identidades11, processos nos quais procurei compreender a partir do convívio com as mulheres
negras que residem nas periferias de Bagé e de Pelotas, na tentativa de levar esses saberes e
narrativas ao cerne das discussões sobre os contextos arqueológicos da diáspora africana.
Com base nisso, a proposta aqui é justamente pensar o conceito de diáspora africana
adotando uma perspectiva feminista decolonial ao campo da arqueologia, conforme propõe
Loredana Ribeiro12, visando a decolonialidade enquanto projeto político e epistemológico que visa
transpor as imposições teórico-metodológicas do academicismo eurocêntrico, desafiando a
colonialidade do poder, sobre as intersecções gênero-raça-classe, e a colonialidade do saber, que
deturpa e silencia os conhecimentos não ocidentais sob a pretensa neutralidade científica e exclui
as experiências corporificadas de grupos subalternos e invisibilizados. Por isso, a descolonização
do conhecimento na arqueologia inicia quando aceitamos “desaprender” os pressupostos teóricos
opressivos para “reaprender” com o próprio processo de pesquisa, incorporando novas
perspectivas epistêmicas e situacionais orientadas por essas ontologias alternativas13.
Partindo dessas premissas, este artigo pretende discutir algumas questões levantadas ao
longo da pesquisa que desenvolvi no Programa de Mestrado em Antropologia14, abordando o
processo de aprendizado sobre a materialização do sagrado afro-religioso a partir dos
agenciamentos e subjetividades das mulheres negras em seu cotidiano nas periferias urbanas dos
municípios de Bagé e de Pelotas, no estado do Rio Grande do Sul.
espaços periféricos devem ser vistos como um locus de criatividade e de novas discussões
críticas. As margens não são lugares ausentes de fala, pois lutam cotidianamente contra o silêncio
e a marginalização impostas pelo racismo16. Os bairros de periferia, e consequentemente os
saberes e experiências afro-diaspóricas de seus moradores, costumam ser invisibilizados nos
estudos arqueológicos, os quais priorizam a busca por vestígios antigos, em senzalas e
quilombos, ou pela materialidade das comunidades tradicionais (quilombolas e afro-religiosas).
É nessa perspectiva que esta etnografia arqueológica foi idealizada para observar as
materialidades afro-religiosas nos lares das mulheres negras em situacionalidade periférica,
pensando-as enquanto referências epistemológicas para embasar novas abordagens sobre as
“coisas”17 e contextos arqueológicos da diáspora africana. Compreendemos, portanto, que
devemos buscar uma postura feminista decolonial desvencilhada da objetividade epistêmica18, a
qual nos deixe conduzir pelos conhecimentos situados das mulheres negras e das questões que
subjazem suas alteridades. E é nas práticas afro-religiosas da vida cotidiana que os
conhecimentos situados dessas mulheres podem nos proporcionar uma epistemologia da
alocação, do lugar e da corporeidade de suas experiências afro-diaspóricas, de onde emerge sua
visão de mundo desde um corpo situacional e localizado que se opõe às verdades estruturantes
impostas pelo colonialismo do saber e do poder19. Conforme orienta Loredana Ribeiro20, essa
metodologia focada nos estudos da vida cotidiana proporciona um ponto de partida privilegiado
para adentrar às subjetividades e aos agenciamentos femininos, os quais geralmente são
obscurecidos pelas epistemologias homogeneizantes e normativas impostas pela objetividade e
empirismo suscitados pela arqueologia.
A etnografia arqueológica foi definida como metodologia por consistir num campo de
pesquisa transversal entre a antropologia e a arqueologia, cujo objeto central são as coisas
materiais em suas múltiplas temporalidades, as quais são construídas e interpretadas em
narrativas que envolvem os pesquisadores e o público21. A etnografia tornou-se um método de
16 KILOMBA, Grada. Plantation Memories: Episodes everyday racism. 2. ed. Münster: Unrast Verlag,
2010, p. 64.
17 O conceito de “coisas” segue a perspectiva de Tim Ingold, pensando as formas enquanto matérias
fluidas e porosas que se integram na dinâmica da vida cotidiana, diferente de um objeto estático e
acabado nele mesmo. Na perspectiva das religiões de matriz africana as “coisas” visíveis são
materializações de potências vivas ou condutores de energias. ROSA, Estefânia Jaékel da. O feitiço da
Preta Velha tem (Re)existência de Preta Nova: uma etnografia arqueológica da materialização do
sagrado Afro-diaspórico na vida cotidiana das periferias de Bagé e Pelotas, RS. 2019. 213 f. Dissertação
(Mestrado em Antropologia) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Instituto de Ciências
Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2019, p. 25.
18 RIBEIRO, 2017, p. 215.
19 HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da
perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 1995, p. 13.
20 RIBEIRO, 2017, p. 212.
21 HAMILAKIS, Yannis. Archaeological Ethnography: a multitemporal meeting ground for archaeology and
anthropology. Annual Review of Anthropology, [s. l.], v. 40, p. 399-414, 2011, p. 401.
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.7 n. 1 | p. 54-78 | Jan.- Jun. 2021
Disponível em: http://revistas.est.edu.br/index.php/genero
59
pesquisa junto aos estudos arqueológicos por consistir num método eficaz de abordar questões
políticas, éticas, epistemológicas e sociais, que possibilitam o reconhecimento e a legitimidade
das reinvindicações de grupos sociais sobre o seu passado material, priorizando e valorizando os
significados e interpretações do público, possibilitando que os descendentes se apropriem de seu
passado e falem sobre o registro arqueológico.
É nesse sentido que compreendo que a etnografia arqueológica pode nos levar a refletir
e buscar uma mudança nas nossas práticas de pesquisa, pois ao aceitar compartilhar a
experiência vivida pelas pessoas nós iniciamos um processo de descolonização que também
passa por nossos sentidos corporais onde compreendemos que um material arqueológico pode
ser visto a partir de experiências multissensoriais. As pessoas se relacionam com as coisas
materiais no mundo, portanto, é através dos sentidos que o material produz afetos e memórias25.
Dessa forma, ao lidar com essa dimensão tátil e concreta das coisas, os arqueólogos devem abrir
seus sentidos sensoriais para outras formas de experenciar o mundo26. Para recuperar memórias
e afetos sobre coisas do passado, devemos apreender de novo os materiais, texturas, fluxos de
substância a partir de subjetividades e estímulos sensoriais múltiplos, reconstruindo o passado a
partir de outras possibilidades, de memórias e interações afetivas que as pessoas podem ter
estabelecido com as coisas27.
Esse diálogo com a Sônia tornou-se um “divisor de águas” na minha pesquisa, sendo
este o momento exato em que o emaranhado de coisas começou a fazer sentido e ganhar vida.
32 A noção de afeto desenvolvida por Jeanne Favret-Saada, a partir de suas experiências etnográficas com
feitiçaria no Bocage na França, define que aceitar participar e ser afetada não consiste em ter empatia,
tampouco lhe informa sobre os afetos do outro, mas mobiliza o seu estoque de imagens e abre uma
comunicação específica, verbal ou não verbal involuntária que é desprovida de intencionalidade e
representação. Dessa forma, ao conceder um estatuto epistemológico ao afeto, o etnógrafo vivencia e
observa uma variedade de experiências humanas compartilhadas com outras pessoas também afetadas,
podendo aprender sobre sistemas de representações nativas através de um outro tipo de comunicação.
SIQUEIRA, Paula. “Ser Afetado", de Jeanne Favret-Saada. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 13, n.
13, p. 155-161, 2005.
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.7 n. 1 | p. 54-78 | Jan.- Jun. 2021
Disponível em: http://revistas.est.edu.br/index.php/genero
62
Como eu não consegui perceber Ogum na Casa da Sônia? Essa e outras perguntas me levaram a
perceber o quanto a nossa prática cientifica é limitada e excludente, pois um único material abria
um abismo entre nossas linhas de conhecimento. Naquele momento, a minha formação
acadêmica não era capaz de compreender aquilo que Sônia havia aprendido numa vida inteira de
experiências dentro das religiões de matriz africana.
33 A diferença entre moderno e não moderno torna-se – na perspectiva moderna – uma diferença colonial,
uma relação hierárquica na qual o não moderno está subordinado ao moderno. LUGONES, 2014a, p.
943.
34 LUGONES, María. Colonialidad y género. In: MIÑOSO, Yuderkys Espinosa; CORREAL, Diana Gómez;
MUÑOZ, Karina Ochoa (eds.). Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemología y apuestas
descoloniales en Abya Yala. Popayán: Universidad del Cauca, 2014b, p. 58.
35 HARTEMANN; MORAES, 2018, p. 17.
36 INGOLD, Tim. O Dédalo e o Labirinto: caminhar, imaginar e educar a atenção. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, ano 21, n. 44, p. 21-36, 2015, p. 27.
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.7 n. 1 | p. 54-78 | Jan.- Jun. 2021
Disponível em: http://revistas.est.edu.br/index.php/genero
63
Maria relatou que seu pai sempre criticou a religião, e, apesar de sua avó ser
umbandista, o avô não gostava, logo, apenas as mulheres da família frequentavam. Por essa
razão, quando Maria foi acometida por alguns problemas de saúde seu pai entrou em sua Casa e
queimou todas as suas coisas de religião (roupas, guias, entre outras), restando apenas algumas
imagens escondidas em seu quarto. Segundo Maria, ele afirmava que sua doença teria sido
causada por aquelas “macumbas”, por isso, ainda hoje não pode nem imaginar que ela ainda
segue sua fé.
Após se recuperar dos problemas de saúde, Maria voltou a praticar a religião escondida,
por isso, como não pode mais frequentar a terreira, seguiu cuidando de suas entidades em Casa.
E assim, mesmo diante das adversidades e da repressão, Maria segue cultuando seus Orixás,
preparando energeticamente o seu espaço íntimo e incorporando suas entidades sempre que
precisa fazer seus “feitiços”, expressão que ela costuma usar para se referir às suas práticas
religiosas, com a ajuda principalmente de sua Preta velha, que nas palavras dela “era uma
velhinha cabeça branca, que cuidava de um filho de sinhorzinho, mas te digo: Oh nega
feiticeira!”37.
Na sala, Oxalá e Oxum se fazem presentes em quadros com as imagens católicas de Jesus e
Nossa Senhora Aparecida.
Num canto de seu quarto, num suporte bem alto atrás de uma cortina ela me permitiu ver
o pequeno Congá que mantém escondido, no qual estão presentes Xangô, Xangô Aganju, Oxum
e um Preto Velho. No local havia mel, velas entre outras coisas que ela não quis mostrar,
tampouco permitiu que eu fotografasse, por receio de ser identificada. Maria contou que toda a
semana acende velas e sempre que precisa ela trabalha em seu Congá, pois ele consiste num
ponto de energia e mediação espiritual da Casa. Maria compreende o ocultamento de sua fé
enquanto um ato de resistência similar a seus antepassados escravizados, os quais também se
submetiam a práticas religiosas clandestinas, pois eram vigiados e severamente castigados se
descobertos.
“Na época da escravidão, os negros não podiam adorar o mesmo santo dos brancos. A Oxum
é a cachoeira, que era o lugar onde também faziam as oferendas pra Nossa Senhora
Aparecida e a Nossa Senhora da Conceição. Aí os negros largavam as coisas na cachoeira
escondido, porque se pegassem um negro fazendo alguma coisa ele acabava apanhando no
tronco.”38
Os exemplos aqui apresentados, portanto, servem para demonstrar que mesmo nesses
meandros da vida cotidiana, envolvendo subjetividades e escolhas pessoais, as moradoras da
periferia são historicamente subjugadas por imposições colonialistas, que determinam até mesmo
as suas crenças religiosas, evidenciando que as religiões de matriz africana seguem inferiorizadas
por um pensamento cristão ocidental hegemônico, que determina o que é socialmente aceito no
campo religioso. Os problemas enfrentados por essas mulheres, vistos nos termos da
colonialidade do poder e do eurocentrismo39, demonstram que a supremacia do pensamento
moderno capitalista ocidental influencia diretamente nas relações intersubjetivas e culturais dessa
microesfera da religiosidade nas comunidades situadas na periferia, onde as religiões de matriz
africana são constantemente atacadas nesse processo de homogeneização imposto pelo
cristianismo.
No convívio com essas mulheres percebemos que esses atos de resistência, que
persistem nas esferas íntimas da vida cotidiana, fazem com que elementos da diáspora africana
atravessem gerações, persistindo nas memórias e vivência das pessoas que se territorializam na
periferia. A resistência das “Pretas Feiticeiras” ao longo da história, desde as Pretas escravizadas
que burlavam a vigilância na senzala, às Pretas de ganho ou libertas que realizavam seus rituais
sofrendo repressão policial no século XIX, ainda ecoam nas práticas religiosas das Pretas de hoje,
que com “fé e feitiços” resistem às mais diversas formas de opressão, mas não deixam de cultuar
seus ancestrais.
Como podemos ver, no mesmo território em que Anna Maria foi perseguida no século XIX
por praticar “feitiçarias” com Santo Antônio, bairro várzea em Pelotas, Maria esconde seu Exu
para não ser acusada de macumbeira pelos vizinhos. Nesses meandros, a fé e os feitiços se
camuflam no cotidiano da vida na periferia, e entre pedras, plantas, chás, benzeduras e outras
coisas atravessam temporalidades e nos fazem refletir sobre a (re)existência da mulher negra
através do culto à sua ancestralidade.
40 JORNAL DIÁRIO DE PELOTAS apud MOREIRA, Paulo R. Staudt; AL-ALAM, Caiuá Cardoso. 'Já que a
desgraça assim queria' um feiticeiro foi sacrificado: curandeirismo, etnicidade e hierarquias sociais
(Pelotas - RS, 1879). Afro-Ásia, Salvador, v. 47, p. 119-159, 2013, p. 125.
41 “A mulher africana tem um importante papel na disseminação das plantas africanas nas Américas, desde
o transporte em suas tranças até o conhecimento das técnicas e sua aplicação na medicina, culinária,
curandeirismo e práticas religiosas.” CARVALHO, Patrícia Marinho de. A travessia atlântica de árvores
sagradas: Estudos de paisagem e arqueologia em área de remanescente de quilombo em Vila Bela/MT.
2012. Dissertação (Mestrado em Arqueologia) – Programa de Pós-Graduação em Arqueologia, Museu
de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 81.
42 Plantas que possuem uma atuação energética agressiva, afugentando espíritos, filtrando energias
negativas e fazendo a limpeza energética.
43 As ervas calmas podem ser classificadas como mornas ou frias. As ervas mornas são as equilibradoras
de energia, pois não agridem e atenuam efeitos negativos de ervas quentes, ajudando a reconstruir a
energia e equilibrar a mente e o campo espiritual. As "ervas frias" não só equilibram como as ervas
mornas, como também são usadas para energizar um campo magnético específico, por exemplo, a
alfazema fortalece a intuição enquanto a melissa atua como calmante.
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.7 n. 1 | p. 54-78 | Jan.- Jun. 2021
Disponível em: http://revistas.est.edu.br/index.php/genero
66
geralmente estão presentes na parte externa para proteger a Casa das energias ruins da rua, para
assentar os Orixás e entidades que a família cultua, ou mesmo para atender as demandas
ritualísticas da família como o preparo de banhos de descarrego, energização e limpeza da Casa,
chás, benzeduras, sacralização de imagens entre outros usos cotidianos. As plantas, portanto,
atuam como “demarcadores culturais” na paisagem, auxiliando na identificação das Casas que
são protegidas por essas entidades espirituais das cosmologias afro-religiosas.
Ao adentrar o espaço íntimo logo nos deparamos com outro elemento que materializa as
crenças afro-religiosas, que é a “segurança” da Casa, que funciona como um filtro condensador
de energias, situado atrás da porta de entrada, geralmente invisibilizada ao olhar de quem chega
da rua. A segurança mais recorrente consiste numa espada-de-Ogum imersa num copo d’água,
mas em algumas Casas também encontramos outras entidades fazendo a proteção da porta
como as entidades espirituais Exus e Pretos Velhos. Em alguns casos, o copo não contém apenas
água, mas elementos como carvão, sal grosso e outros “segredos”, que consistem em elementos
combinados conforme a necessidade do ambiente e a solicitação da entidade que protege a
morada. As plantas e coisas presentes geralmente são preparadas pelas entidades (Exu, Caboclo
ou Preto Velho) do próprio médium ou guias que os moradores costumam se consultar nas
terreiras, no caso dos adeptos da Umbanda.
As médiuns que possuem consciência da sua filiação e das entidades que lhes
acompanham, possuem ainda a responsabilidade de “cuidar” dos seus guias espirituais, pois isso
se torna necessário para o seu equilíbrio energético e espiritual, portanto, precisam de um ponto
de apoio e comunicação com os seres espirituais, recriando seu próprio Congá onde podem
trabalhar a sua mediunidade e se conectar com o mundo espiritual. Em vista disso, esses espaços
sagrados costumam ser individualizados conforme a linha espiritual (Nação ou Umbanda) e o grau
de desenvolvimento mediúnico dos familiares. Logo, esses Congás podem ter desde as 7 linhas
da Umbanda ou apenas os Orixás de cabeça e as entidades cultuadas pela pessoa, podendo
estar em imagens compradas em Casas de artigos religiosos ou em elementos naturais da
vibração energética do Orixá, contendo ainda guias, velas, plantas, presentes como doces e
44 Em um dos casos observados, o Congá fica no quarto, atrás de uma cortina, pois precisa ser ocultado
para que a pessoa não seja associada às práticas religiosas da umbanda.
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.7 n. 1 | p. 54-78 | Jan.- Jun. 2021
Disponível em: http://revistas.est.edu.br/index.php/genero
67
perfumes, entre outras coisas que estão ali com a função de alimentar e dar suporte para a
atuação dos seres espirituais materializados nesses espaços sagrados.
Nos Congás de seus espaços íntimos, muitas mulheres cultuam sua fé, principalmente
aquelas que não sendo frequentadoras assíduas das terreiras, ou mesmo aquelas que são
impedidas de praticar seus rituais por contrariedade de seus pais e maridos45. Isso mostra a
importância dessas subjetividades em seu cotidiano, pois, ao cuidar de sua vida espiritual,
poderão equilibrar todas as questões que perpassam outros aspectos de suas vidas (amor, saúde,
dinheiro etc.). Dessa forma, os Congás atuam diariamente na vida dessas mulheres, pois na
presença das entidades elas podem senti-las vivas no atendimento de suas demandas.
“Aqui na mesa, tem esses aí que eu te mostrei, mas tem outros mais. A gente não vê, mas eles
estão. Tem 21 linhas, tudo na umbanda branca. Então, às vezes, quando quero me concentrar
para alguma coisa, para fazer uma oração pra alguma coisa, fico concentrada aqui, faço
minhas orações geralmente no copo d’água aí vem aquilo pra mim e eu enxergo. Às vezes,
vem assim, às vezes, em sonho. Às vezes, tô meio dormindo e acordada e vem tudo na minha
frente, às vezes, eu nem quero enxergar mais vêm. Aí tens que deduzir o que tu tá
enxergando, porque, às vezes, pode ser pra mim, às vezes, pode não ser, com ele (César)
mais ou menos eu vejo, mas se é outra pessoa não, aí fico pensando o que será? Agora
aconteceram umas coisas muito graves pra mim, aí me falaram, mas a gente avisou a senhora
que ia acontecer! Ah, mas eu não sabia que era pra mim!”46
Sônia me ensinou também que para as coisas do Congá ganharem vida, não basta
apenas pegar um objeto ou comprar uma imagem numa Casa de artigos religiosos, elas precisam
passar por um processo de sacralização, onde através de axés e energias presentes em
elementos que concebem as entidades (mel, ervas, perfume etc.), as coisas ganham existência
45 Um reflexo da colonialidade que, por vezes, é observada no cotidiano das moradias situadas nas
periferias, onde as mulheres são coibidas a frequentar os espaços públicos de culto ou, mesmo em
casos em que as tarefas como o trabalho, o lar e os filhos dificultam o cumprimento das obrigações
religiosas. Esses efeitos deixam essas mulheres expostas à violência e à coerção patriarcal. Segundo
Rita Segato, a privatização do espaço doméstico imposta pela colonialidade contribuiu com sua
marginalização política, restringindo os vínculos de solidariedade e colaboração das mulheres em
relação ao cenário público. SEGATO, Rita Laura. Colonialidad y patriarcado moderno: expansión del
frente estatal, modernización, y la vida de las mujeres. In: MIÑOSO, Yuderkys Espinosa; CORREAL,
Diana Gómez; MUÑOZ, Karina Ochoa (eds.). Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemología y
apuestas descoloniales en Abya Yala. Popayán: Universidad del Cauca, 2014.
46 Conversa com Sônia Guedes, em 2 jul. 2018.
47 Conversa com Sônia Guedes, em 3 fev. 2018.
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.7 n. 1 | p. 54-78 | Jan.- Jun. 2021
Disponível em: http://revistas.est.edu.br/index.php/genero
68
tornando-se as próprias entidades que passam a existir naquela “coisa”, concentrando energias
para assim servir como instrumento mediador de comunicação entre o mundo físico e espiritual.
As “coisas”, portanto, só ganham vida após passar por uma preparação para receber um
ser espiritual, assim como o médium precisa passar por um processo de iniciação e aprendizado
para conseguir se comunicar de forma efetiva com as entidades e Orixás. Segundo Sônia, existem
diversas formas de sacralizar os materiais para receber esses seres espirituais. As imagens
podem ser preparadas com água benta48, quando são da linha branca, ou com banho de 7 ervas
(podem ser variadas desde que equilibradas entre ervas fortes e fracas). Podemos ainda utilizar
elementos específicos de cada Orixá, por exemplo, a água salgada do mar para lavar as conchas
de Iemanjá, e água doce ou água com mel para sacralizar a imagem de Oxum. Como a mesa de
Sônia é de linha branca, ela afirmou que nenhuma peça é cruzada com cachaça ou sangue de
animal.
Os saberes afro-diaspóricos dessas mulheres negras nos levam ainda a pensar sobre a
espacialidade e as materialidades que costumamos escavar nos contextos arqueológicos. As
Casas que conheci, situadas na periferia, são locais de morada e de abrigo da família e dos seres
espirituais, por isso, devem ser preparadas e protegidas para manter o equilíbrio de todos.
Espacialmente, esse equilíbrio energético e protetivo é organizado a partir de pontos estratégicos
para atuação do plano espiritual, projetando a proteção principalmente para as entradas, que são
locais de passagem, de movimento, por onde podem entrar os espíritos maldosos e as energias
negativas. Dessa forma, a Casa é um conjunto de elementos vivos e dinâmicos, que permeiam as
subjetividades do cotidiano, por isso, devemos compreender que esses espaços íntimos familiares
são formados por coisas, pessoas e seres espirituais ontologicamente indissociáveis.
48 A “água benta” mencionada por Sônia consiste numa água preparada em seu Congá. Na falta de acesso
às ervas, Sônia buscou uma alternativa, acendeu velas em seu Congá e deixou um copo de água num
copo transparente. Nesse processo, os Orixás energizaram a água, podendo essa ser usada no preparo
da imagem, ou mesmo ingerida pelos membros da família, que passam por problemas. Além disso, não
são os elementos que compõem, mas é justamente a ação do banhar a peça para fazer a passagem
ritual que deve ser observada, pois mantém a crença de que banhando a peça “crua”, sem vida, ela
passa por uma personificação, assentando a entidade que passará a ser cultuada no espaço sagrado do
Congá.
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.7 n. 1 | p. 54-78 | Jan.- Jun. 2021
Disponível em: http://revistas.est.edu.br/index.php/genero
69
Essa forma de entender os lares a partir das cosmologias de matriz africana são
recriadas no presente através de ensinamentos que foram passados pela oralidade, pelos mitos
dos Orixás e crenças afro-religiosas. Esses conhecimentos situados, portanto, podem nos levar a
outras leituras e interpretações sobre as coisas e contextos que estudamos na Arqueologia da
Diáspora Africana.
A arqueologia da diáspora africana é uma disciplina que aborda dinâmica social e cultural
das populações afrodescendentes através da cultura material identificada nos sítios históricos49.
Sua problemática está profundamente enraizada na história e é um fenômeno verdadeiramente
global e multicultural, pois conforma identidades culturais híbridas e moventes, que recriam
processos de “africanização das Américas”, demonstrando uma resistência cultural50. Os estudos
arqueológicos da diáspora africana abordam os mais variados contextos e temas, elencados a
partir de uma análise crítica das noções de raça e racismo; das relações dicotômicas de poder;
dinâmicas e limitações impostas às práticas cotidianas; mecanismos de interação social e de
reprodução cultural; padrões de vida material; construção e reconstrução de identidades51; entre
outros elementos que se territorializaram pelo Atlântico Negro52 e materializaram identidades afro-
diaspóricas ao redor do mundo.
49 SYMANSKI, Luis Claudio. Arqueologia Histórica no Brasil: uma revisão dos últimos vinte anos. In:
MORALES, Walter; MOI, Flávia Prado (Orgs.). Centenários regionais em Arqueologia Brasileira. São
Paulo: Annablume, 2009, p. 290.
50 FERREIRA, Lúcio Menezes. Sobre o conceito de arqueologia da diáspora africana. MÉTIS: história &
cultura, Caxias do Sul, v. 8, n. 16, p. 267-275, jul./dez. de 2009, p. 269.
51 CARVALHO, 2012, p. 80.
52 GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernodade e Dupla Consciência. São Paulo: Editora 34, 2001, p.
34.
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.7 n. 1 | p. 54-78 | Jan.- Jun. 2021
Disponível em: http://revistas.est.edu.br/index.php/genero
70
espirituais recebem proteção contra as energias negativas externas, materializando outras formas
que irão atuar como filtros, proteções e seguranças, criando uma esfera “invisível” ao nosso olhar
leigo, mas que é real e presente para essa ontologia.
Essas coisas, portanto, quando analisadas pelo âmbito da arqueologia devem ser
compreendidas como indissociáveis da vida humana, pois “estamos misturados com as coisas do
mundo de tal maneira que somos ontologicamente inseparáveis53. Logo, “Nuestras experiencias
sensoriales, físicas y corporales diarias son la base de todo lo que conocemos. Así, estamos
arraigados a lo material, y lo material incluye nuestros cuerpos.”54
As coisas que dão existência aos Orixás e entidades estão vivas para as mulheres que
as cuidam, portanto, não são meros objetos inanimados e tampouco podem ser dissociadas das
entidades e pessoas que as cercam, são agentes equivalentes que se constituem mutuamente
num processo indissolúvel55. Compreendemos, dessa forma, que o conhecimento situado dessas
mulheres deve ser considerado uma teoria, não apenas uma interpretação, uma abstração, nos
levando a analisar a existência das coisas para além de sua esfera material56, tomando-a
enquanto forças e não apenas representação dessas. É nessa perspectiva que as coisas
sagradas foram apresentadas aqui a partir das narrativas das pessoas que cuidam delas, pois
foram seus saberes e ensinamentos que me levaram a esse processo de começar a enxergar
suas energias e existências, tornando possível que eu as descrevesse a partir de sua ontologia,
não como representações.
Considerando, portanto, que Iemanjá é uma concha, que as pedras são Xangô, os ferros
são Ogum, a espada de Santa Bárbara é Iansã e que todos esses Orixás também se fazem
presentes em imagens católicas, plantas, quadros e outras coisas que estão presentes nos lares
das mulheres negras, devemos compreender esses espaços como moradas desse sagrado, onde
não há uma separação entre “sagrado e profano”, mas sim coexistências e extensões que formam
os devires dessas comunidades. Contextualmente, devemos observar que o mundo espiritual se
materializa em coisas sacralizadas e em pontos energéticos da Casa, tornando visível a existência
desses seres que coabitam os espaços de moradia situados na periferia.
53 WEBMOOR, Timothty; WITMORE, Christopher L. Coisas são nós! Um comentário sobre as relações
humano/coisas sob a Bandeira da arqueologia “social”. Tradução de Bruno Leonardo Ricardo Ribeiro.
Vestígios, Minas Gerais, v. 10, n. 2, p. 157-178, jul./dez. 2016, p. 165.
54 VAN DIKE, Ruth M. Intencionalidad Importa: uma crítica a la agencia de los objetos em arqueologia. In:
ACUTO, Félix A.; SALVI, Valeria Franco (Eds.). Personas, cosas, relaciones: reflexiones arqueológicas
sobre las materialidades pasadas y presentes. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2015, p. 5.
55 WEBMOOR; WITMORE, 2016, p. 166.
56 NOVAES, Luciana de Castro Nunes. Breve Imaginação Antropológica Sobre Animação da Escrita e
Animismo na Ciência Arqueológica. Ambivalências, Aracaju, v. 5, n. 10, p. 22-48, 2017, p. 32.
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.7 n. 1 | p. 54-78 | Jan.- Jun. 2021
Disponível em: http://revistas.est.edu.br/index.php/genero
71
espaços de moradia também podia estar presente nas senzalas, fazendo com que as mulheres e
homens negros que partilhavam dessas cosmologias povoassem seu espaço de habitação com
os Orixás e entidades que cultuavam, protegendo esses lugares das energias ruins com filtros e
outras coisas que eram materializadas em “pontos estratégicos”, as quais, diferente do que
observamos hoje nas Casas das mulheres, deviam ser enterradas, justamente como uma
estratégia de ocultamento diante da repressão e da vigilância senhorial.
Em vista disso, essa etnografia arqueológica buscou elementos da Diáspora Africana que
se materializam nos lares do presente, mas compreende que essas coisas são dotadas de
múltiplas temporalidades. Ou seja, não importa se estamos falando de um material de ferro antigo
assentado numa senzala, ou de uma espada de Ogum atrás da porta, mas sim sobre a presença
do Orixá Ogum que atravessou o Oceano e permanece vivo junto ao seu povo, e que por ser uma
divindade guerreira, atua ativamente na resistência diária ao colonialismo que ainda se impõe
sobre os coletivos negros da atualidade. Portanto, essa etnografia das coisas no presente serve
também para repensarmos nossas práticas de campo nos contextos arqueológicos pretéritos.
olhos, não significa que eles não estejam naquele lugar. Por isso que os contextos de senzala,
mesmo que abandonados, enterrados e esquecidos não deixam de ser habitados, seja pelos
Orixás e entidades que ali eram cultuados, sejam pelos espíritos dos próprios moradores que
desencarnaram e continuam presos ali, “por ainda não terem encontrado a luz”59.
Figura 1: Imagem do contexto de deposição das garrafas identificadas pelo arqueólogo Luís Claudio
Symanski na Senzala do Engenho Água Fria.
Ao analisarmos esse mesmo croqui sob o prisma dos conhecimentos situados das
mulheres afro-religiosas percebemos que esses saberes persistem, pois a localização dessas
garrafas no canto da senzala sugere a existência de seres espirituais ou de potências energéticas
no local. Nas moradias situadas na periferia, ainda hoje, percebemos uma organização
cosmológica espacial similar, como podemos observar no croqui ilustrativo da distribuição espacial
dos seres espirituais e elementos energéticos na Casa de Sônia e sua mãe, dona Ivone. O
desenho não apresenta proporções reais, pois o objetivo aqui é apenas espacializar os pontos
59 Lição que aprendi em doutrina com os Pretos Velhos Pai Cipriano e Vô Zuza, ambos me alertaram dos
perigos que corremos ao escavar em senzalas, pois dizem que muitos pretos ainda podem estar ali.
60 SYMANSKI, Luis Claudio. O Domínio da Tática: práticas religiosas de origem africana nos engenhos de
Chapada dos Guimarães (MT). Vestígios, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, p. 9-36, 2007, p. 25.
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.7 n. 1 | p. 54-78 | Jan.- Jun. 2021
Disponível em: http://revistas.est.edu.br/index.php/genero
73
energéticos da Casa, observando como esses locais são compreendidos dentro dessa
cosmologia, correspondendo a domínios espirituais específicos.
Figura 2: Croqui ilustrativo da distribuição espacial dos elementos espirituais e energéticos na sala de estar
das Casas de Sônia e sua mãe dona Ivone em Bagé.
Na porta da Casa de Sônia estão presentes os Orixás Ogum e Bará, já na Casa de dona
Ivone, Ogum está acompanhado do preto velho Pai Cipriano. A presença deles nesses locais
indica não apenas o seu lugar de morada, mas também o seu lugar de trabalho, pois estão ali
justamente na função de proteger a Casa, combatendo as energias ruins que possam entrar e
prejudicar seus habitantes. O Congá fica localizado geralmente no canto noroeste61, o que indica
que esse pode ser um ponto de maior irradiação para morada dos Orixás e entidades, ou ainda,
porque fica mais distante da porta, que deverá ser protegida pelos guardiões (Exus), que são o
povo da rua, assim como os Orixás Ogum e Bará.
61 Nenhuma das pessoas que conversei tinha uma explicação exata sobre a presença constante dos
Congás no canto noroeste. Isso provavelmente está mais relacionado em situar-se num local em
oposição à porta de entrada.
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.7 n. 1 | p. 54-78 | Jan.- Jun. 2021
Disponível em: http://revistas.est.edu.br/index.php/genero
74
No cantinho de Pai Cipriano o caminho é da paz (bis) / Arrasto o toco, pega o toco
e bota lá / Saravá Pai Cipriano que chegou nesse congá (bis) Ele vai firmar, meu
pai, ele vai firmar / Os quatro cantos desta Casa / Com Ogum para guardar (bis)
(Ponto de Pai Cipriano)62
Por fim, acredito que a materialização das práticas afro-religiosas das mulheres negras
que vivem hoje nas periferias nos leva a refletir sobre a invisibilização e o ocultamento das coisas
do sagrado afro-diaspórico no período escravista.
Ao observar os Congás dos espaços íntimos das Casas identificamos Orixás e entidades
materializados de diferentes formas, os quais não são meros “objetos”, mas sim intensidades que
agenciam as relações entre o mundo físico e espiritual63. No entanto, para perceber essas “coisas”
enquanto entes relacionais que conectam regimes de existências é preciso compartilhar dessa
ontologia e inteirar-se dessas subjetividades a partir do reconhecimento desses conhecimentos
situados enquanto “modos de ver e estar no mundo”, processo que buscamos ao longo dessa
pesquisa a partir do convívio com mulheres afro-religiosas.
Acreditamos, portanto, que os saberes religiosos dessas mulheres sobre Orixás e lendas
africanas, sobre as formas de materializar esses seres em elementos naturais de domínio
especifico de cada Orixá, dos pontos energéticos estratégicos para fazer assentamentos e filtrar
as energias entre a rua e a Casa, entre outras “feitiçarias”, consistem em conhecimentos afro-
diaspóricos que foram passados pela oralidade não apenas nos lugares sagrados das Casas de
religião, mas também nos lares onde esse sistema de crenças e subjetividades são agenciadas e
vivenciadas em comunhão com a ancestralidade.
Considerações finais
Este artigo procurou suscitar algumas reflexões sobre como os saberes localizados e
corporificados das mulheres negras podem contribuir para os estudos da arqueologia da diáspora
africana. Essa pesquisa, realizada a partir de uma etnografia arqueológica, consistiu, antes de
62 REI DOS PONTOS. Blog direcionado a cultura da umbanda. Pontos de Preto Velho. Disponível em:
https://reidospontos.blogspot.com/p/pontos-de-preto-velho.html. Acesso em: 28 jul. 2021.
63 RAMOS, João Daniel Dorneles. A (Cosmo)lógica das Relações Humano-animais nas Religiões Afro-
brasileiras. Iluminuras, Porto Alegre, v. 17, n. 42, p. 166-189, 2016, p. 182.
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.7 n. 1 | p. 54-78 | Jan.- Jun. 2021
Disponível em: http://revistas.est.edu.br/index.php/genero
75
tudo, num processo constante de aprendizado a partir do convívio com as mulheres negras em
seu universo afro-religioso, o qual só foi possível porque elas aceitaram abrir suas Casas, contar
suas histórias e compartilhar seus saberes e memórias. Mesmo assim, e partindo de uma
tentativa de desconstrução de nossas práticas científicas colonialistas, o “estar nessas Casas” e
“ver o material” não foram suficientes para compreender os significados cosmológicos das coisas
que habitam os lares. Essas leituras, portanto, só me foram possíveis porque essas mulheres se
dispuseram a “traduzir” seus códigos e compartilhar seus conhecimentos e experiências, me
ensinando a “enxergar” e “sentir” aquilo que lhes é evidente, real e cotidiano, me mostrando a
importância de descolonizar nossos sentidos para alcançarmos uma prática arqueológica mais
inclusiva e politicamente engajada.
Dessa forma, ao adotar uma postura feminista decolonial na análise arqueológica afro-
diaspórica dos contextos escravistas, compreendo que não basta apenas identificar os contextos
de habitação dos escravizados e a cultura material a ela associada, mas antes disso, devemos
compreender a vida existente nas coisas que coabitavam as unidades residenciais do passado e
que ainda podem estar ali presentes, análise esta que deve ser embasada pelos conhecimentos
situados das religiões de matriz africana. Isso reforça que “observando coisas do presente” ou
“desenterrando coisas do passado” nós arqueólogas não devemos dissociar ou sobrepor nossas
premissas acadêmicas aos conhecimentos ancestrais da diáspora africana que repousam nos
corpos negros da atualidade.
Por fim, compreendo que os conhecimentos afro-religiosos dessas mulheres nos levam
também a refletir sobre as formas de ocultamento dessas crenças no período da escravidão, bem
como sobre as diferentes formas que essa fé se materializava e se espacializava nas senzalas.
Pois se ainda hoje as mulheres cuidam de seus Congás nos cantos das Casas, as negras
escravizadas deviam enterrar seus Orixás nos cantos da senzala, ou mesmo poderiam estar
presentes em elementos invisíveis ao olhar desapercebido dos senhores (assim como eu, que não
vi Ogum na Casa de Sônia), como plantas, pedras, conchas e outras coisas que ainda hoje
assentam esses seres espirituais e que só se torna visível e potente aos olhos de quem
compartilha dessas crenças e saberes afro-diaspóricos.
Referências
CASTAÑEDA, Quetzil E.; MATTHEWS, Christopher N. Introduction: ethnography and the social
construction of archaeology. Ethnographic archaeologies: reflections on stakeholders and
archaeological practices, Lanham, p. 1-23, 2008.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernodade e Dupla Consciência. São Paulo: Editora 34,
2001.
GOLDMAN, Marcio. A relação afroindígena. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 23, p. 213-222,
2014.
HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
HAMILAKIS, Yannis. Decolonial Archaeology as Social Justice. Antiquity, Durham, v. 92, n. 362,
p. 518-520, 2018.
HARTEMANN, Gabby; MORAES, Irislane Pereira de. Contar Histórias e Caminhar com
Ancestrais: perspectivas afrocentradas e decoloniais na arqueologia. Vestígios, Minas Gerais, v.
12, n. 2, p. 7-34, jul./dez. 2018.
KILOMBA, Grada. Plantation Memories: Episodes everyday racism. 2. ed. Münster: Unrast
Verlag, 2010.
LÓPEZ, Laura Cecília. Que América Latina se sincere: uma análise antropológica das políticas e
poéticas do ativismo negro em face a ações afirmativas e às reparações no Cone Sul. 2009. 389 f.
Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
LUGONES, María. Colonialidad y género. In: MIÑOSO, Yuderkys Espinosa; CORREAL, Diana
Gómez; MUÑOZ, Karina Ochoa (eds.). Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemología y
apuestas descoloniales en Abya Yala. Popayán: Universidad del Cauca, 2014b.
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 1992.
MELLO, Marco Antonio Lírio de. Reviras, batuques e carnavais. A Cultura de resistência dos
escravos em Pelotas. Pelotas: Editora Universitária, 1994.
MOREIRA, Paulo R. Staudt; AL-ALAM, Caiuá Cardoso. 'Já que a desgraça assim queria' um
feiticeiro foi sacrificado: curandeirismo, etnicidade e hierarquias sociais (Pelotas - RS, 1879). Afro-
Ásia, Salvador, v. 47, p. 119-159, 2013.
NOVAES, Luciana de Castro Nunes. Breve Imaginação Antropológica Sobre Animação da Escrita
e Animismo na Ciência Arqueológica. Ambivalências, Aracaju, v. 5, n. 10, p. 22-48, 2017.
RAMOS, João Daniel Dorneles. A (Cosmo)lógica das Relações Humano-animais nas Religiões
Afro-brasileiras. Iluminuras, Porto Alegre, v. 17, n. 42, p. 166-189, 2016.
REI DOS PONTOS. Blog direcionado a cultura da umbanda. Pontos de Preto Velho. Disponível
em: https://reidospontos.blogspot.com/p/pontos-de-preto-velho.html. Acesso em: 28 jul. 2021.
ROSA, Estefânia Jaékel da. O feitiço da Preta Velha tem (Re)existência de Preta Nova: uma
etnografia arqueológica da materialização do sagrado Afro-diaspórico na vida cotidiana das
periferias de Bagé e Pelotas, RS. 2019. 213 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) –
Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Instituto de Ciências Humanas, Universidade
Federal de Pelotas, Pelotas, 2019.
SEGATO, Rita Laura. Colonialidad y patriarcado moderno: expansión del frente estatal,
modernización, y la vida de las mujeres. In: MIÑOSO, Yuderkys Espinosa; CORREAL, Diana
Gómez; MUÑOZ, Karina Ochoa (eds.). Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemología y
apuestas descoloniales en Abya Yala. Popayán: Universidad del Cauca, 2014.
SILVA, Kleber Henrique da; SAMPAIO, Juliana Cunha. Mulher e Feitiçaria na América Portuguesa
Do Século XVI: Cotidiano, Magia e Inquisição. In: ENCONTRO ESTADUAL ANPUH – PE, 10,
Petrolina, PE. Anais [...]. Petrolina, PE: Associação Nacional de História, 2014, p. 9-35.
Disponível em: http://eeh2012.anpuh-
rs.org.br/resources/anais/35/1398265369_ARQUIVO_Artigo.pdf. Acesso em: 27 jul. 2021.
SIQUEIRA, Paula. “Ser Afetado", de Jeanne Favret-Saada. Cadernos de Campo, São Paulo, v.
13, n. 13, p. 155-161, 2005.
SYMANSKI, Luis Claudio. Arqueologia Histórica no Brasil: uma revisão dos últimos vinte anos. In:
MORALES, Walter; MOI, Flávia Prado (Orgs.). Centenários regionais em Arqueologia
Brasileira. São Paulo: Annablume, 2009.
SYMANSKI, Luis Claudio. O Domínio da Tática: práticas religiosas de origem africana nos
engenhos de Chapada dos Guimarães (MT). Vestígios, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, p. 9-36, 2007.
VAN DIKE, Ruth M. Intencionalidad Importa: uma crítica a la agencia de los objetos em
arqueologia. In: ACUTO, Félix A.; SALVI, Valeria Franco (Eds.). Personas, cosas, relaciones:
reflexiones arqueológicas sobre las materialidades pasadas y presentes. Quito: Ediciones Abya-
Yala, 2015.
WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias
políticas contra o sexismo e o racismo In: VERSCHUUR, Christine (Org.). Vents d'Est, vents
d'Ouest: Mouvements de femmes et féminismes anticoloniaux [en línea]. Genève: Graduate
Institute Publications, 2009. Disponível em: http://books.openedition.org/iheid/6316. Acesso em: 27
jul. 2021.