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A ANCESTRALIDADE QUE NOS ALIMENTA

Jurema J. de Oliveira1
RESUMO:
As narratologias de matriz africana decorrem de um tempo cosmogônico inserido no
cenário diaspórico, articulando discurso, prática e resistência na forma como se
elaboram os rituais diários de convivência, de organização familiar e comunitária,
apesar das vicissitudes diárias decorrentes do racismo estrutural.
Palavras-chave: Ancestralidade; Afro-brasilidade; Ficção

América!
És o espaço que faltava para estender-me, florir
Para expandir-me num novo solo e nova pátria
És a dádiva que Deus me deu na mais perfeita dor

América!
És a minha nova África!
Construí-te com a força dos meus braços!(CHIZIANE, 2017, p. 31).

A construção imagética por meio do discurso artístico da afro-brasilidade na


atualidade exige do pesquisador certa sensibilidade para identificar os caminhos da
ancestralidade que nos alimenta. O cenário representado nos romances, contos, poemas
e textos teatrais demarcam os caminhos para recompor uma história silenciada com o
advento da “abolição da escravidão”, já que a imagem do negro desaparece do cenário
oficial, apesar de ser a mão-de-obra básica a movimentar toda a economia brasileira.
Capturar a energia ancestral e depreendê-la na vida comunitária significa resistir às
mudanças oriundas inclusive do racista estrutural como bem define Silvio Almeida. O
racismo estrutural nasce de uma base organizada a partir de um conjunto de princípios
institucionais, históricos, culturais e interpessoais em uma sociedade que dar destaque a
um determinado grupo social e étnico e coloca os negros e os indígenas em condição
subalternizada. Há uma naturalização do racismo na sociedade brasileira. Diante disso,
trazer à tona a temática da ancestralidade que nos alimenta significa discutir e buscar
caminhos para modificarmos a visão de mundo acerca da negritude brasileira.

1
Drª. em Letras pela Universidade Federal Fluminense – Uff, Profª. Associada da Universidade Federal
do Espírito Santo-Ufes e pesquisadora da Fundação de Apoio à Pesquisa e Inovação do Espirito Santo –
Fapes, juremajoliveira@hotmail.com.

1
Inicialmente, a perspectiva dos valores ancestrais se fez presente na religiosidade. De
acordo com Oliveira
A ancestralidade assume hoje em dia o status de principio
fundamental diante do qual se organizam tanto os rituais do
candomblé, como as relações sociais de seus membros – ao
menos nas obras de importantes intelectuais ligados
organicamente às comunidades de terreiro. Supostamente
fincada na tradição da África tradicional, a ancestralidade
espalha-se, como categoria analítica, para interpretar as várias
esferas da vida do negro brasileiro – mormente na religião.
Legitimada pela “força” da tradição, a ancestralidade é um signo
que perpassa as manifestações culturais dos negros no Brasil,
esparramando sua “dinâmica” para qualquer grupo racial que
queira assumir a identidade de “africano” (2007, p. 23).

Os elementos estruturais da matriz religiosa oriunda da África fixados em


ambientes de resistência como as casas de Umbanda e de Candomblé foram
disseminados culturalmente nos demais ambientes sociais. Essa movimentação dos
valores afrodiaspórico teve desdobramento em outras expressões religiosas no Brasil.
Segundo Ivan Costa Lima, “compreende-se haver nas religiões de matriz africana, aqui
entendidas como candomblé, umbanda, tambor de Minas, catimbó, jurema e outras
denominações pelo Brasil, uma afirmação da identidade negra e ligação com as matrizes
africanas no Brasil” (2018, p. 72). A escuta crítica feita pelos estudiosos sobre os
valores de matriz africana produziu uma materialidade em diversos campos do saber.
Com destaque para a literatura, artes em geral, filosofia, matemática, história, biologia e
outros campos do conhecimento, já que o apagamento dos valores negros por séculos
exige do pesquisador um olhar atento e critico para descobrir na atualidade
personalidades negras esquecidas na galeria da história.
Nesse cenário de personalidades negras excluídas da galeria da História oficial
destaca-se aqui Zacimba Gaba oriunda de Cabinda, reino localizado ao norte de Angola.
Zacimba nasceu no século XVII, comandou seu povo na luta contra as invasões
portuguesa. Na qualidade de princesa da Nação Cabinda, ela resistiu às invasões
coloniais, mas foi levada como escrava ao Brasil em 1690 e vendida ao fazendeiro José
Trancoso, cuja fazenda estava localizada no Espirito Santo. Ela foi vendida juntamente
com 12 súditos do reino de Cabinda. Cabe destacar aqui que mesmo na condição de
escravizada Zacimba Gaba mantêm-se altiva e seus súditos relaciona-se com ela com a
mesma postura do antigo reino de Cabinda. Essa respeitabilidade é o que desperta o
ódio e o medo de José Trancoso em relação à princesa de Cabinda.

2
A luta pela liberdade sempre esteve nas ações dos escravizados. A
impossibilidade de encontrar formas amenas de obtenção de direitos levou os
escravizados a usarem artifícios não muito ortodoxos, como o venenamento. O veneno
devia ser dado em várias doses pequenas, pois não funcionava instantaneamente. No
entanto, os senhores com medo desse tipo de golpe obrigavam os escravos a provarem a
comida antes. Esse fato dificultou o processo de libertação de Zacimba Gaba e seu
povo, já que para obter sucesso ela teria que desenvolver a ação com muito cuidado para
não colocar em perigo a vida de seus irmãos.
Com a morte de José Trancoso, Zacimba estava preparada para liderar seu povo.
Ela ordena a invasão da Casa Grande e todos os torturadores foram mortos. Apenas a
família de José Trancoso foi poupada. A partir dessa fase Zacimba Gaba guia seu povo
e funda o quilombo no Norte do Espírito Santo, hoje município de Itaúna. Zacimba
Gaba lidera diversas invasões aos navios que ancoravam o Porto de São Mateus. Havia
sempre um cuidado em destruir os navios para evitar que continuassem a traficar
africanos para o Brasil. Persistente em sua luta pela liberdade, a princesa guerreira
morreu invadindo um navio português, lutando pela libertação do povo de Cabinda.

CAROLINA MARIA DE JESUS E CONCEIÇÃO EVARISTO


Esse fruto seco que tudo carrega
Elixir dos deuses e do diabo
Águas para o banho
Águas que matam a sede
É vida, é ventre...

Quando pensam que morri


Renasço nas mãos de uma mulher

Ser cabaça, ser fértil,


simples, discreta,
suave, dura e impermeável.
Reverberar o som com as suas sementes!(SOUZA, 2012, p. 32).

Resgatar histórias de personalidades negras da afro-brasilidade nos coloca em


diálogo constante com a construção da História do Brasil que precisa ser contada.
Ampliando a nossa discussão trazemos para cena outras figuras representativas da
matriz afrodiasporica na literatura moderna e contemporânea: Carolina Maria de Jesus e
Conceição Evaristo.
A era moderna viu nascer uma escritora negra que adquiriu destaque no século
XX e reconhecimento acadêmico no século XXI. Autora da obra que colocou em cena a
favela, Carolina Maria de Jesus com a habilidade pertinente aos grandes autores registra

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sua história, a familiar e dos herdeiros de negros deslocados de seu habitat com o
advento colonial. Em Diário de Bitita (2007), ela materializa episódios que reforçam o
peso do racismo estrutural que sustenta a base social brasileira:

Nesse ambiente indiferente à sorte de negros e pobres, foi onde nasceu


uma menina que iria se chamar, pelo batismo, Carolina Maria de
Jesus, mas que seria tratada, no seio da sua numerosa família, pelo
simples apelido de “Bitita”. Assim está lavrada a sua certidão de
nascimento. “Certifico que, às fls 99 do livro A 12, sob n0 de Ordem
203, foi lavrado o assento de nascimento de Carolina Maria de Jesus,
do sexo feminino, nascida no dia quatorze (14) de março de mil
novecentos e quatorze (1914), filha de João Cândido e de Dona Maria
Carolina de Jesus”. Transcrita a 18 de agosto de 1934, a pedido da
própria Carolina, para efeito de trabalho e viagens, não consta os
nomes dos avós, paternos e maternos, apenas do declarante, Benedicto
Camargo, um dos seus tios (FARIAS, 2017, p. 15 – 16).

Ler a experiência da afro-brasilidade por intermédio do discurso literário nos faz


refletir e entender o quando se faz necessário um arcabouço teórico literário com
princípios metodológicos para interpretar e classificar narrativas ausentes das ementas
universitárias. Em relação à Carolina Maria de Jesus, a experiência literária
metaforicamente tem a dimensão de seu desejo de mostrar ao mundo a realidade negra a
partir de sua cidade natal Sacramento – Minas Gerais, já que Diário de Bitita (2007)
além do aspecto literário, materializa dados históricos representativos da vivencia negra
no Brasil no início do século XX. Em Quarto de despejo: diário de uma favelada (2014)
como bem define Oliveira:
A obra Quarto de despejo (2014), de Jesus caracteriza-se como o
marco do século XX. A autora cumpre um papel expressivo no
cenário literário, apesar da critica tradicional visualizar em primeira
mão a origem da escritora para depois valorizar a sua obra, porém 60
anos depois a narrativa desperta o interesse de pesquisadores
brasileiros e estrangeiros, mas do ponto de vista editorial ainda deixa a
desejar. A pergunta que não quer calar: a ortografia da oralidade
mantida na escrita funciona como marca para estudo linguístico ou
como marca de sua classe social? Pois a ideia expressa no texto do
ponto de vista semântico se mantém com uma ortografia oficial ou
não, logo a revisão da obra não tiraria o sentido primeiro do texto (p.
150, 2021)

Contraditoriamente, a equipe editorial valoriza os erros ortográficos na obra


Quarto de despejo: diário de uma favelada (2014). Esse fato reforça a ideia de exclusão
deste livro do quadro das obras ditas “clássicas”. A liberdade artística tão valorizada nos
movimentos poéticos e literários não é percebida quando o escritor advém da periferia,
pois toda e qualquer variação linguística presente em sua obra será diretamente

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compreendida como analfabetismo, falta de escolaridade. No entanto, é por meio da
liberdade poética que o artista expressa seus anseios e se desvencilha da normatividade
gramatical e/ou métrica, utilizando na criação poética recursos como os versos
irregulares, erros ortográficos e/ou gramaticais e rimas falsas para atingir o objetivo
desejado.
O cenário contemporâneo apresenta diversas linhas de leituras das experiências
artística e literária de matriz africana. Destaca-se aqui Ponciá vicêncio (2003), de
Conceição Evaristo, narrativa que coloca em cena histórias familiares e coletivas da
afrodiáspora. A enunciação define lugares e objetos de fixação dos ancestres, vide a
passagem abaixo:

O pai de Ponciá Vicêncio olhou o homem de barro que a menina havia


feito e reconheceu nele o seu próprio pai. Pegou o trabalho e
examinou bem. Os olhos, a boca, as costas encurvadinhas, a magreza,
o bracinho cotoco, tudo era igual, igualzinho. A boca ensaiava
sorrisos, mas no rosto, a expressão era de dor. Teve a sensação de que
o homem-barro fosse rir e chorar como era feitio de seu pai, Chamou a
menina entregando-lhe o que era dela. Não fez nenhum gesto de
aprovação ou reprovação. (EVARISTO, 2003, p. 19)

O corpo matricial da representação do antepassado se materializa no barro,


material utilizado por Ponciá Vicèncio e sua mãe. Em Ponciá Vicêncio (2003),
detectam-se vários ambientes e objetos que remetem a memória ancestral. Um recurso
gramatical que reforça o vinculo entre representação social e encenação artística diz
respeito ao uso do verbo “escutar”. Assim, Ponciá Vicêncio ao retornar a casa da família
escutou e vivenciou todos os estágios do reencontro com os seus:
Escutou na cozinha os passos dos seus. Sentiu o cheiro de café fresco
e de broa de fubá, feitos pela mãe. Escutou o barulho do irmão se
levantando varias vezes, à noite, e urinando lá fora, perto do
galinheiro. Escutou as toadas que o pai cantava. Escutou os galos
cantando na madrugada, no galinheiro vazio. Escutou, e o que mais
escutou, e o que profundamente escutou foram os choros-risos do
homem-barro que ela havia feito um dia (...). Durante a noite, ela
vivera a certeza de que a casa estava habitada e cheia de vida. (...)
Olhou para a mesa de madeira e lá estava o homem-barro entre
prantos e risos (EVARISTO, 2003, p. 57, grifos nossos).

As características que Ponciá Vicêncio guardou do avô vai, pouco a pouco,


ocupando um “lugarzinho” no seu corpo:
Surpresa maior não foi pelo fato de a menina ter andado tão
repentinamente, mas pelo modo. Andava com os braços escondido às

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costas e tinha a mãozinha fechada como se fosse cotó. Fazia quase um
ano que Vô Vicêncio tinha morrido. Todos deram de perguntar por
que ela andava assim. Quando o avô morreu, a menina era tão
pequena! Como agora imitava o avô? Todos se assustavam. A mãe e a
madrinha benziam-se quando olhavam para Ponciá Vicêncio. Só o pai
aceitava. Só ele não se espantou ao ver o braço quase cotó da
menina. Só ele tomou como natural a parecença dela com o pai dele
(EVARISTO, 2003, p. 13, grifos nosso).

A narrativa avança gradativamente e nesse movimento detecta-se a força do mais velho


na vida de Ponciá Vicêncio e daqueles que simbolicamente são representados pela obra
de ficção. Evaristo materializa a resistência de gerações e gerações de negros que
durante séculos tiveram seus direitos negados.
Para ampliar a reflexão acerca da ideia de enunciação que valoriza o discurso
coletivo, coloca-se em cena Becos da memória (2017), de Evaristo. O estilo, a ideia de
coletividade presente na base filosófica bantu, mantem-se viva na enunciação das
narrativas da afro-brasilidade. Vide a passagem abaixo:

A ideia da cooperativa, que havia muito o Homem discutia com os


irmãos, começou a tomar corpo. Era cada um cuidando de sua vida,
mas cuidando também da vida dos outros. Os que estavam doentes ou
velhos e que não aguentavam plantar, se tinham alguma terra, cediam
para os que não dispunham de nenhuma. Os novos cuidavam da terra,
do alimento para si e para os que não tinham mais forças para disto
cuidar. As colheitas eram vendidas ou trocadas entre os plantadores
mesmo, e o excedente vendido fora. As mulheres que tinham filhos
revezavam entre si a tarefa de olhar as crianças e, assim, elas também,
alternadamente, iam trabalhar no cuidado da terra, sem, com isto,
sacrificar os pequenos (EVARISTO, 2017, p. 68).

CONCLUSÃO
Conclui-se que resgatar a figura histórica de Zacimba Gaba, uma personalidade
que contribuiu com o movimento libertário de negros escravizados, significa dar
visibilidade a uma personagem silenciada pela história oficial. Seguindo esta linha de
reflexão, pode-se dizer que Carolina Maria de Jesus na sua dinâmica discursiva elevou
gradualmente em sua obra a imagem do personagem negro. A resistência narratológica
de Jesus obteve visibilidade dentro e fora do Brasil, apesar da crítica acadêmica só
reconhecer o valor de sua obra no século XXI. Dentro desta perspectiva enunciativa,
destaca-se também Conceição Evaristo que obteve visibilidade artística com sua
produção literária. Os autores aqui citados contribuem significativamente para a
formação do arcabouço sociocultural advindo da ancestralidade que nos alimenta.

6
BIBLIOGRAFIA:
Almeida, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/zacimba-gaba-princesa-
angolana-que-foi-escravizada-e-lutou-pela-liberdade-de-seu-povo.phtml Visitado em
08/07/2021.
https://cearacriolo.com.br/zacimba-gaba-a-princesa-angolana-escravizada-que-lutou-
pela-liberdade-de-seu-povo/. Visitado em 08/07/2021.
CHIZIANE, Paulina. O canto dos escravos. Maputo: Matiko, 2017
FARIAS, Tom. Carolina; uma biografia. Rio de Janeiro: Malê, 2017.
JESUS, Carolina Maria. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10 ed. São Paulo: Ática,
2014.
- - -. Diário de Bitita. 2 ed. Sacramento: Bertolucci, 2007.
LIMA, Ivan Costa. “As religiões de matriz africana: espaços de conhecimentos e
atuação política”. In: OLIVEIRA, Jurema (Org.). Africanidades e Brasilidades:
literaturas e linguística. Curitiba: Appris, 2018.
https://observatorio3setor.org.br/noticias/a-princesa-de-angola-escravizada-no-brasil-
que-lutou-por-seu-povo/ Visitado em 08/07/2021.
OLIVEIRA, Eduardo David de. A ancestralidade na encruzilhada. Curitiba: Gráfica
Popular, 2007.
OLIVEIRA, Jurema. “Violência e resistência em Carolina Maria de Jesus”. In:
VIVALDO, Belmiro; MELO, Ezilda; ALVES, Miriam Couinho de Faria (Orgs.) Artes
latino-americana, gênero e direito. Salvador: Studio Sala de Aula, 2021.
SOUZA, Elizandra. Águas da cabaça. in: Águas da cabaça. São Paulo: Edição do
Autor, 2012.

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